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Sermão de Santo António

O sermão, constituindo uma exemplar peça da oratória sagrada, parte da alegoria dos peixes e todo ele gira em torno
do louvor e da repressão, do Bem e do Mal. E é dentro das lutas que dividem os jesuítas e os colonos, por causa dos
indígenas, que Vieira profere este sermão.

CONTEXTO HISTÓRICO SOCIAL QUE ESTÁ NA BASE DO SERMÃO

- estado de São Luís de Maranhão (nordeste do Brasil);


- onda de abusos e de crimes;
- enorme opressão desumana que os colonos cometem sobre os indígenas;
- ganância desenfreada, injustiça e corrupção.

RAZÃO DO TÍTULO DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

O sermão inspira-se na lenda medieval segundo a qual Santo António, numa das pregações destinadas a emendar o
comportamento dos homens, decide falar aos peixes ao constatar que os homens não lhe prestam atenção.
Compreensivos e atentos, os peixes levantam as cabeças à superfície das águas, comprovando a força da palavra do
santo. António Vieira imitá-lo-á visto que também não é ouvido pelos colonos do Maranhão que exploram os ameríndios
e os escravos negros; à semelhança do santo que tanto venera, falará aos “peixes” – alegoria dos colonos. Deste modo,
pode criticá-los sem temer represálias.

FUNÇÕES DO SERMÃO

- o sermão tem uma missão social (salvar os ameríndios da cobiça e exploração, isto é, salvá-los da antropofagia que
era a prática comum entre os homens na sociedade);
- um instrumento de intervenção na vida política do país;
- uma missão espiritual: divulgar a palavra de Cristo, o Evangelho e histórias de santos como exemplos a imitar.

ESTRUTURA DO SERMÃO

1. Exórdio:
Parte inicial de um discurso ou texto onde se dá uma ideia geral do assunto que se vai tratar – proémio.

Apresentação do assunto do sermão, partindo do conceito predicável, retirado das Sagradas Escrituras – texto bíblico
onde se fundamenta o discurso e parte onde ocorre a invocação divina à Senhora do Mar.

Máxima inspiradora: Vós (pregadores) sois o sal (doutrina, mensagem bíblica) da Terra Impedir a corrupção.

O sermão parte de uma afirmação retirada da Bíblia à qual se dá o nome de conceito predicável. O conceito predicável
que inicia este sermão é «Vós sois o sal da terra», afirmação retirada por Vieira do Evangelho de São Mateus. Que
pretende dizer o pregador aos seus ouvintes do Maranhão? O sal preserva os alimentos impedindo os de se estragarem
(era assim que antigamente a carne e o peixe eram conservados); ora, tal como o sal preserva os alimentos da corrupção,
o mesmo faz a palavra de Cristo a quem a ouve, visto que a palavra divina transmitida pelos pregadores (eles são o sal)
impede que os colonos (a terra) se afastem do caminho do bem. O conceito predicável é uma verdade intemporal que
tem raízes bíblicas e que, por esse facto, dá credibilidade à pregação já que ninguém se atreve a contestar a palavra de
Cristo.

2. Confirmação:
Exposição e desenvolvimento das ideias com forte argumentação dedutiva.

Louvor das virtudes dos peixes, em geral – cap. II – as virtudes genéricas são: «os peixes ouvem e não falam», donde
se depreende que os homens falam demais e não ouvem os bons conselhos do pregador; oram os primeiros animais
criados por Deus, são os animais mais numerosos e com maiores dimensões, são ordeiros, tranquilos e ouviram com
atenção e devoção a mensagem de Santo António, contrariamente aos homens que a desprezaram «tão furiosos e
obstinados».
Louvores aos peixes em particular, no cap. III

Louvores em particular
Peixe de Tobias Rémora Torpedo Quatro-Olhos
O fel sara a cegueira; o Tão pequeno no corpo e Descarga elétrica que faz Dois olhos voltados para cima
coração expulsa os tão grande na força e no tremer o braço do para se vigiarem das aves;
demónios; poder; pescador; Dois olhos voltados para baixo
para se vigiarem dos peixes.

Serão louvados o Santo Peixe de Tobias (que o salvou pelas suas entranhas, com a sua boca aberta, cura a cegueira,
afasta os demónios), a Rémora (alegoria da energia e força de vontade que devem ser o “leme”/ a orientação das ações
humanas. A rémora representa todos os que são imunes, como Santo António, à «fúria das paixões», guiando-se na
vida pela racionalidade), o Torpedo (produz uma descarga elétrica que passa para a mão do pescador, fazendo-lhe
tremer o braço. Isto quer dizer que a virtude deste peixe contagia o ser humano, sendo essa virtude a energia para lutar
contra a atração pelo mal) e o peixe Quatro-Olhos (este peixe ensina os homens a olharem para o céu para praticarem
a virtude e a não esquecerem o inferno sempre que olham para a terra).

Repreensão aos peixes em geral – cap. IV:

a) voracidade – os peixes grandes comem os pequenos (alegoricamente é referida a antropofagia social, isto é, os
homens poderosos aniquilam os mais frágeis, os marginalizados da sociedade: os ameríndios e negros do Brasil).

b) a vaidade, ignorância e a cegueira – estes dão a vida por insignificâncias, «um retalho de pano», mas os bens
terrenos são ilusórios e fonte de discórdias; o costume de se aproveitarem dos bens dos naufragados é condenável:
«Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta?» Deviam seguir o exemplo de Santo António que,
tendo nascido rico, abandonou tudo para imitar Jesus Cristo.

Repreensão aos peixes em particular – cap. V:

São repreendidos os peixes Roncadores (a alegoria dos homens arrogantes e vaidosos que prometem e não cumprem,
a soberba, o orgulho), Pegadores (alegoria da adulação e do parasitismo, vícios da alta nobreza e classe política, gostam
de receber favores e da adulação daqueles que deles dependem), Voadores (alegoria dos sempre insatisfeitos com a
vida e ambiciosos porque não se contentando em nadar no mar, querem voar como os pássaros – ambição desmedida,
presunção, capricho) e o Polvo (alegoria da hipocrisia e da traição, os vícios piores entre todos).

c) Peroração - Conclusão – conquistar/influenciar definitivamente o auditório: Vieira quer “consolar” os peixes, eles que
para além de terem sido alvo de duras críticas, também foram excluídos do terceiro livro da Bíblia – O Levítico.
Julgamento final dos peixes e louvores a Deus. O pregador compara-se aos peixes, mas, ao invés deles, assume que é
pecador.

ANTROPOFAGIA SOCIAL

- problema social – uma realidade que incide sobre e a exploração do homem pelo homem;
- análise social a partir de grupos marginais – os indígenas
- diferenças existentes impostas pelo homem: a ambição, o lado cruel, egoísta, competitivo e perverso do ser humano
como gerador de autodestruição.

A REPRESENTAÇÃO AOS PEIXES COMO IMAGEM DOS VÍCIOS HUMANOS

- toda a crítica é feita sob a forma de uma alegoria na qual os peixes simbolizam os vícios dos homens;
- censura em geral como tradução dos comportamentos humanos;
- pretende atingir o verdadeiro auditório – os homens da sua sociedade, os exploradores e os colonos portugueses em
São Luiz do Maranhão.
- visa repreender o Mal de tal modo que o ouvinte se apercebe da podridão em que se defronta.
Através do sermão alegórico, denuncia-se uma realidade político-social.
PREOCUPAÇÃO SOCIAL

- combate ao despotismo e a prepotência dos colonos do Brasil;


- defesa dos indígenas do Brasil, que eram desumanamente espoliados pelos colonos – homens sem escrúpulos que
enriqueciam à custa do suor e do sangue dos índios;
- desenvolve uma campanha contra as injustiças e anormalidades sociais;
- censura às terras de missão onde há falsidade, enganos, fingimentos, embutes e traições.

SENTIMENTOS REVELADOS PELO PREGAR AO LONGO DO SERMÃO

- indignação, revolta, repulsão, cólera, fúria, escândalo e tristeza.

MARCAS DISCURSIVAS

- intencionalidade comunicativa – docere (ensinar); delectatre (agradar) e movere (persuadir)


- alegoria – todo o sermão é alegórico ou uma extensa alegoria, a partir do cap. II (os peixes são alegorias dos homens
e das virtudes e vícios destes)
- insistência em perguntas retóricas – para dinamizar o discurso, tornando-o mais expressivo – texto mais vivo;
- apóstrofe – despertar a atenção, indicando qual é o destinatário visado. Confere mais força e autoridade ao discurso.
- imperativo – reforça a firmeza apelando sistematicamente à observação; pretende atingir o auditório, despertá-lo e
procura envolvê-lo no discurso.
- polissemia das palavras – verbo comer, pescar… sentido denotativo e conotativo
- construção paralelística – paralelismo anafórico e assimetria na escrita
- citações do foro sagrado e dados da História;
- frases exclamativas, interjeições, interrogações, gradação, alegorias;
- argumentos de autoridade;
- frases imperativas;
- forte apelo ao sentido de visão: “Vede”.

Esquema-resumo:

Exórdio Conceito predicável: “Vós sois o sal da Terra”


o sal que não salga – é inútil e desprezado

o sal que salga – evita a corrupção

O pregador é como o sal: se a palavra não chega aos ouvintes ou não produz os seus frutos é porque
alguma coisa está mal.
Invocação A Maria
Confirmação Exposição
Obrigações do sal – preservar o são e conservar do mal.

Propriedades das Pregações de Santo António – Louvar o bem “para o conservar” e repreender o mal “para
preservar dele”.

Confirmação / Argumentação e alegoria


1.Louvar as Qualidades de ouvinte: 2. Repreender os Vícios
Ouvir e Não falar a) Dos Peixes – não só se comem uns aos outros,
- obediência; como os grandes comem os pequenos; a ignorância
- “ordem, quietação e atenção”;
e cegueira.
- respeito e devoção ao ouvirem a palavra de Deus;
b) Dos Homens – antropofagia social “parasitas”,
- seu “retiro” e afastamento dos homens.
ambiciosos, hipócritas e traidores; de “falsidades,
enganos, fingimentos, embustes, cilada”.

Peroração Exclusão dos peixes dos sacrifícios consagrados a Deus;


Comparação peixes/orador
- hino de louvor final: “Louvai, Peixes, a Deus”

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