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Sermão de Santo António (aos Peixes)

de Padre António Vieira

Padre António foi um grande mestre da oratória e é essa condição que iremos explorar quando
se fala do seu estilo literário. A obra é um Sermão e obedece assim a três principais objetivos:

1. Docere - Educar ou Ensinar →Vieira aposta numa abordagem pedagógica utilizando


referências respeitadas como a Bíblia.
2. Delectare - Agradar →Existe uma apresentação do conteúdo que atrai e cativa a
audiência, normalmente é conseguida através de recursos expressivos ou de mudanças no tom
de voz e no próprio ritmo do discurso.
3. Movere - Persuadir → É o culminar de todo o processo, o orador persuade a audiência a
fazer um exercício de pensamento crítico sobre as ações que toma e convence os demais a
mudar os seus hábitos.

A estrutura do sermão é extremamente simples e é uma ajuda a quem está a analisar, é então
composta por:

. Exórdio (capítulo I) - Apresentação do tema e do motivo que o leva a fazer este sermão, é
uma forma de cativar o público. Este capítulo tem como objetivo principal cativar a audiência
ao mesmo tempo que introduz qual é a motivação para tal sermão.

. Exposição e Confirmação (capítulo II a V) - Apresentação da sua argumentação e da sua


tese. Nesta parte da obra fazem-se louvores e repreensões aos peixes (indiretamente falando
dos Homens). Primeiro salientam-se os louvores em geral e depois em peixes particulares, as
repreensões seguirão a mesma estrutura.

Peroração (capitulo VI) - Conclusão do assunto desenvolvido. Esta última parte da obra utiliza
um desfecho forte e motivo para impressionar a audiência.

*Capítulo 1* (Exórdio)
Vieira inicia o sermão comparando os peixes, que não entendem a linguagem humana, aos
homens que ignoram os ensinamentos morais. Ele usa essa metáfora para criticar a sociedade
da época.
Padre António Vieira utiliza um jogo metafórico de forma a cumprir esta dupla tarefa
utilizando o conceito predicável:

"Vos estis sal terrae"


.Metáfora para pregadores .Metáfora para ouvintes

Os pregadores eram muito importantes na sociedade da época, pois eram donos da


transmissão da palavra e tinham imenso poder na medida em que influenciavam as
mentalidades e culturas da época. Vieira associa então os pregadores ao sal, pois ele impede
que os alimentos se estraguem, ou seja, impede que o Homem seja corrompido.
A Terra está corrupta, porquê?

"O sal não salga"

● O pregador não faz o seu trabalho


● Não pregam a verdadeira doutrina ou dizem uma corsa e fazem outra
● Pregam-se a si e não a Cristo

"A terra não se deixa salgar"

● Os ouvintes não ouvem o que lhes é pregado


● Os ouvintes querem imitar os pregadores e não fazer o que lhes dizem
● A doutrina é verdadeira, mas os ouvintes não a ouvem
● Em vez de servirem Cristo, os ouvintes servem-se a si mesmos

Vendo que a "terra" despreza completamente as doutrinas que ele tenta passar, Vieira segue o
seu mentor, Santo António, e decide voltar-se de costas para a terra e direcionar o seu sermão
para o mar, para os peixes. Assim vai utilizar diferentes peixes para criticar e salientar as
atitudes que quer ver alteradas.

Concluindo, António Vieira dirige-se à "terra" com intuito de revelar as falhas do sistema
religioso e como forma de mudar mentalidades, vai utilizar estes tópicos para desenvolver a sua
tese
.
*Capítulo 2* (louvores em geral)
António Vieira relembra a importância dos seus sermões: louvar o bem ("para o conservar") e
repreender o mal ("para preservar dele"). Reaviva ainda que os peixes são de facto excelentes
ouvintes, pois ouvem atentamente e não falam. O orador vai então enumerar as qualidades e
virtudes dos peixes em geral em oposição aos defeitos dos homens:

● Qualidades dos Peixes: São obedientes; São excelentes ouvintes; Respeitam e prestam
culto à palavra de Deus; Estão isolados da humanidade, ou seja, não se deixam
corromper pela sociedade humana; São dos poucos animais que não se deixam
domesticar, mais uma vez distanciam-se dos Humanos.

● Defeitos dos Homens: Deslumbram-se facilmente com qualquer lisonjeio; São


presunçosos e egocêntricos; Despertam a violência e a obstinação. Têm na sua natureza
uma crueldade irracional; São vaidosos e exibicionistas, vivendo a custa das aparências.

Neste capítulo, Vieira destaca a corrupção na sociedade, usando a imagem do "peixe grande"
que devora os pequenos. Isso simboliza a exploração social e econômica que ocorre.

*Capítulo 3* (louvores em particular)


A vaidade é o foco do terceiro capítulo, onde Vieira compara os peixes que se gabam de sua
beleza aos humanos que se orgulham de suas realizações externas. Ele critica a busca excessiva
por reconhecimento.
● O Peixe de Tobias: É um animal que é protagonista de um episódio bíblico, em que as
suas entranhas têm o poder de curar a cegueira dos homens e o coração afugenta o mal.
○ Analogia: Santo António "abria a boca contra os hereges" curando a cegueira e
expulsando os demónios das casas dos Homens.

● A Rémora: Peixe de pequenas dimensões que, através de uma ventosa, se agarra ao


casco dos navios servindo de leme, guiando as naus a bom porto e fora de maus
caminhos.
○ Analogia: Santo António faria exatamente o mesmo, mas com os homens,
guiando- os pela vida através da sua palavra, corrigindo os Homens. "Se alguma
rémora houve na terra, foi a lingua de Santo António."

● O Torpedo: Peixe que possui a capacidade de produzir descargas elétricas que


impedem o pescador de o apanhar, pois "tremelga" -lhes o braço ao a agarrar.
○ Analogia: As palavras de St. António têm um efeito semelhante para aqueles que
extorquem o que não lhes pertence, abaulando-os de forma que se transformem
e se arrependam. A descarga elétrica simboliza a palavra de Deus que deveria
abalar a consciência dos Homens

● O quatro-olhos: Devido à sua anatomia, o quatro olhos, consegue ter uma visão do céu
e da terra e assim proteger-se de outros peixes, mas também de aves.
○ Analogia: Existe aqui uma relação entre a forma como o peixe olha tanto para
cima e para baixo e entre a consciência que o ser humano tem de ter acerca do
Céu, mas também do Inferno. Os cristãos teriam de olhar para o Céu, mas
sempre com noção que existe o Inferno.

*Capítulo 4* (repreensão em geral)


Novamente procede-se a uma exposição de repreensões aos peixes como modo de voltar a
criticar os humanos. As repreensões prendem-se com dois principais aspetos:

I. Os peixes comem-se uns aos outros, os grandes comem os pequenos


● Existe uma crítica à opressão dos mais pequenos, pois os grandes "se alimentam do
sacrifício dos mais pequenos tal como os peixes". A apreensão é transposta para os
humanos:
● Também os homens se "comem" uns aos outros, os mais poderosos exploram os mais
fracos e esta situação agrava-se quando em ambiente de sociedade; "Comem-nos os
herdeiros (...) enfim, ainda o podre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda
a terra".
● Existe um apelo generalizado de Vieira a todos os peixes de forma que não se comam e
não sigam o exemplo humano. Dá o exemplo do episódio da Arca de Noé como atitude
de benevolência e tolerância que os animais deveriam seguir para sobreviver.
● Num tom final, repreende ainda os peixes por se deixarem enganar por um mísero
"retalho de pano" quando são pescados, demonstrando ignorância e cegueira -
exemplificando a situação dos homens do Maranhão que se endividaram perdendo
tudo o que ganharam num ano.

II. Os peixes são ignorantes e cegos


Os peixes são facilmente enganados e por isso são punidos com a morte. São ignorantes por
não saberem o significado do isco que lhes lançam e são completamente cegos porque se
atiram sem hesitar e ficam presos.

Esta crítica aparece invariavelmente associada aos homens do Maranhão, utilizando -os como
meio de comparação com os peixes: os homens "bonitos, ou os que o querem parecer" não são
diferentes dos peixes pois são levados pela aparência e vaidade das coisas, ficam então
"engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, de uma safra para outra safra, e lá
vai uma vida" à semelhança dos peixes.

Santo António surge sempre como exemplo a seguir, pois este "pescou muitos homens", mas
para um percurso de vida mais estável e digno.

*Capítulo 5* (repreensão em particular)


Procede-se então a uma confirmação dos factos relatados anteriormente, utilizando exemplos
concretos de peixes com defeitos que se assemelham à realidade humana:

● O Roncador: Peixe pequeno que emite um som bastante forte, como se de uma
autopromoção à procura de atenção se tratasse; "quem tem muita espada, tem pouca
lingua".
○ Analogia: Santo António, apesar de ser um mítico símbolo e um exemplo, nunca
se "gabou" nem se vangloriou de forma vaidosa da sua condição e capacidade.

● O Pegador: É um peixe parasita que se apega ao seu hospedeiro e se aproveita


inteiramente do mesmo.
○ Analogia: Crítica ao sistema colonial português, pela forma como os
governadores nunca partem para conquistas ou conflitos sem uma larga
comitiva. Os preguiçosos acabam como o pegador, quando o hospedeiro é
"pescado" o parasita é arrastado sem qualquer forma de defesa.

● O Voador: Morfologicamente, o voador possui barbatanas maiores que a maioria,


conferindo a possibilidade de voar curtas distâncias em saltos imersos imitando as aves.
○ Analogia: Aqui existe uma crítica à ganância e ambição que, tal como o voador,
os humanos têm e em relação à inconformidade em relação aquilo que têm.
Querem sempre mais e mais, isso leva a que muitos sejam apanhados pelas
redes, nå se contentando com o que têm.
● O Polvo: Não existe apenas uma abordagem negativa em relação ao polvo, é visto como
o culminar de imensos aspetos negativos: aparenta santidade, beleza, uma certa
mansidão; no entanto, não passa de hipocrisia e dissimulação. É um animal de pura
aparência e traição, utiliza-a para seu proveito de predação.
○ Analogia: A relação entre as características do polvo e de um homem corrupto
são claras e justas. Santo António, pelo contrário, foi "o mais puro exemplar da
candura, sinceridade, e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou
engano".

*Capítulo 6* (peroração)
Padre António Vieira compara o modo como os peixes chegam a Deus, comparando-os a
outros animais. Enquanto os outros animais chegam vivos ao sacrifício os peixes geralmente já
chegam mortos.
Ainda existe uma comparação entre os peixes e o orador feito pelo mesmo:
● Embora os peixes sejam irracionais, não ofendem Deus tal como Vieira ofende, e ainda
cumprem a missão que Ele lhes deu, enquanto o orador não cumpriu: "Eu espero que O
hei de ver (...) não cesso de O ofender (...) Vós não haveis de ver a Deus, e podereis
aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não ofendestes" .
● Realiza um hino de louvor: "Louvai, peixes a Deus", pois Deus fê-los numerosos, belos e
diversos; porque na água vivem e multiplicam-se e porque ainda escolheram os
pescadores (Apóstolos) para com Ele privarem.
● Como os peixes não são capazes de Glória nem de Graça, Vieira acaba o sermão num
tom irónico dizendo: "Como não fois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o
vosso Sermão em Graça e Glória".

DISCURSO FIGURATIVO
Para conferir vivacidade e para tornar o Sermão cativante e persuasivo, António Vieira, utiliza
vários recursos expressivos, entre tantos salientarei os fundamentais:

Alegoria: Expressão de uma ideia abstrata através da sua materialização.


"Os peixes, no Sermão de Santo António, representam os vícios e as virtudes dos seres
humanos."

Metáfora: Aproximação de duas realidades que, à partida, não representam semelhanças


evidentes entre si.
"No mar pescam as canas, na terra, pescam as varas (...), pescam as bengalas, pescam os bastões
e até os cetros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros."

Comparação: Relação de semelhança estabelecida pela conjunção "como", por expressões


equivalentes ou por verbos.
"E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvilas vivos, que
experimentá-las depois de mortos.”

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