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O soldado romano, a rapariga celta e outros escândalos

Vamos então viajar no tempo, à procura da origem da nossa língua. A nossa primeira paragem será
nesses tempos em que ainda não havia romanos na nossa península. Já por cá tinham passado fenícios,
gregos e todos os outros povos de que ouvimos falar na escola – mas romanos? Ainda não.
Nesse tempo, ali na zona noroeste da Península Ibérica, onde hoje encontramos a Galiza e o Norte
de Portugal, viviam povos celtas, que falavam línguas que hoje não conseguimos reconstruir. Talvez a melhor
forma de ter uma vaga ideia de como seriam esses falares seja olhar para as línguas celtas que ainda hoje
existem, por exemplo na Irlanda, no País de Gales e na Escócia.
Talvez. Porque, para dizer a verdade, a única certeza que temos é que essas línguas desapareceram –
não sem deixar alguns vestígios…
O Império Romano chega ao fim do mundo
Queria agora que imaginassem uma família celta em particular: os Kontebria – ou Contreiras. Muitos
séculos depois, alguns deles ainda vivem na mesma zona, em redor de Braga, entre Guimarães e Tui.
No século antes do ano 1, esses Kontebria eram celtas, da tribo dos Galécios, em território onde o
Império Romano ainda não chegara.
Ana e Rui Contreiras – perdoem-me o anacronismo dos nomes, mas é mais fácil contar a história
assim – são um jovem casal, que se conheceu num mercado ao pé de Braga. Vivem em Citânia de Briteiros e
são muito celtas, muito jovens e muito ruivos – como era comum entre os Galécios. Têm uma religião antiga,
que os cristãos viriam a chamar pagã. Aquele casal, luminoso e um pouco malandro, prefere adorar o deus
Lug, o deus do Sol, que lhes ilumina a pele enquanto se beijam, entre juras de amor na sua língua, ao pé dum
riacho qualquer ali para os lados de Guimarães.
Um dia, chegam à aldeia os primeiros rumores das legiões romanas a rondar a zona. Ana está grávida
do primeiro filho e, como todas as mães, fica um pouco preocupada. Ouvem-se rumores, é certo – mas será
só quando, três anos depois, já têm dois filhos em casa que o brilho das armaduras imperiais surge nas ruas
daquela terra. Estamos a falar do fim do mundo, dos cantos mais recônditos da Europa. O Império demorou
a chegar a estes recantos – mas chegou.
A população passa por tempos duros de saques e violações: guerra é guerra, mesmo para os
civilizados Romanos. Ana, Rui e os filhos escapam ao pior. Ficam escondidos uns tempos na casa duns
primos, perto do que viria a ser Braga.
Quando voltam, já o Império se instalou, para não mais dali sair durante muitos séculos.
Os Romanos trazem com eles documentos escritos numa língua que os Celtas não compreendem: o
latim da escrita. Ora, este é um latim que nem os soldados falam. Como sabem, o latim clássico tinha
palavras como equus, enquanto o latim popular tinha palavras como caballum. Eram duas línguas próximas,

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mas não exatamente iguais. A verdade é que não foi o refinado latim dos escritores romanos que deu origem
à nossa língua. Foi, pelo contrário, a língua dos soldados e do povo, uma língua que ninguém escrevia e
muitos desprezavam.
Foi desse falar pouco sofisticado que surgiu o português – mas tenhamos calma que o caminho ainda
será longo.
A língua de casa e a língua da rua
Dois anos depois da chegada das primeiras tropas, com Ana a amamentar um terceiro filho, a
população da terra já se desenrasca a comunicar com os invasores.
Os Romanos dizem umas palavras em celta só para se fazerem entender e os Galécios aprendem a
falar esse latim de rua – primeiro só umas palavras, depois frases inteiras e, em breve, já conversam sem
muita dificuldade.
Tudo é natural: se pensarem bem, os seres humanos comunicam com mais facilidade do que
julgamos – para aprender a falar uma língua, não é preciso aulas formais e muitos anos: a melhor maneira é
mesmo ter necessidade ou muita vontade. E gente com quem conversar, claro está. Vejamos, agora, o que
acontecia na casa de Ana e Rui. Falam todos, entre eles, na língua de sempre, que hoje já não conhecemos: a
tal língua celta sem nome.
Na rua, todos falam cada vez mais latim. Não só os soldados e os colonos, mas os próprios celtas,
quando, por exemplo, compram e vendem alguma coisa. Afinal, os soldados e colonos ricos são bons
clientes.
A população torna-se bilingue sem dificuldade.
Uma má notícia: o terceiro filho de Ana e Rui acabou por morrer, como era tão normal nesses
tempos. A família junta-se toda ao pé da porta do casal. Chegam-se dois soldados romanos.
– O que é que estes querem? – pergunta o pai de Rui ao filho, que chora abraçado a Ana.
– Tem calma, pai! – O que se passa aqui? – grita Cláudio, um oficial romano que vem a liderar a
ronda de três homens.
Marta, uma tia de Ana, diz-lhe: – Meu senhor, morreu um bebé, o mais lindo que já vi. O oficial
romano resmunga qualquer coisa, mas sente um aperto no coração, a pensar no seu filho, que ficara na sua
terra, uma aldeia perto de Roma. Como estaria ele?
– Os meus sentimentos, minha senhora. Peço apenas que não perturbem tanto a rua.
– Assim faremos. Esta conversa foi em duas línguas: os celtas falaram na sua língua entre todos, a
bichanar contra esses invasores, com a hostilidade espicaçada pela tristeza do que acontecera, e Marta falou
num latim esforçado ao oficial romano. Choravam em celta, explicavam-se em latim.
A tudo isto assistiam Artur e Inês, os irmãos do bebé que morreu.
Como conquistar uma celta

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Estas duas crianças já aprendem as duas línguas, como acontece em qualquer família de emigrantes
de hoje em dia – e, tal e qual como nas famílias de emigrantes, a língua dos pais é a menos importante
socialmente: é a língua que falam em casa e não usam para mais nada.
Sim, é verdade: nesses primeiros anos depois da invasão, os celtas do Noroeste da Península são
como emigrantes na sua própria terra.
Artur e Inês, a viver agora no seio maternal do Império, sabem que o latim é a língua do futuro.
Ainda compreendem a língua dos pais e usam-na para falar com eles. No entanto, com os filhos que hão de
nascer, já só falarão no latim popular que usam no dia-a-dia.
Ou seja, os netos de Ana e Rui serão já latinos sem tirar nem pôr.
Agora, reparem: tal como acontece quando aprendemos uma língua estrangeira, falamo-la com o
sotaque da nossa língua materna. Também Ana e Rui começaram a falar latim com o sotaque próprio da sua
língua celta. Foi com esse sotaque que os filhos, Artur e Inês, aprenderam latim. Ou seja, o latim foi
aprendido pelas populações ibéricas, mas não sem que as línguas anteriores influenciassem a forma de falar
e de aprender esse mesmo latim. Afinal, não havia escolas para todos nem professores de bom latim: havia o
dia-a-dia e a língua aprendida na rua.
Artur e Inês falam, então, um latim com sotaque, mas este latim com sotaque é a língua nativa deles.
Em breve, o que era uma língua estrangeira, trazida pelos soldados, passou a ser a língua nativa da
população da região.
O latim popular com sotaque celta falado na Galécia, há quase 2000 anos, é a semente da nossa
língua.
Deixem-me agora contar uma história curiosa, que se passou com Inês Contreiras, a filha de Ana e
Rui.Durante a adolescência, sem a memória das invasões, Inês e o irmão tornaram-se muito amigos de
alguns soldados e colonos romanos.
Esta proximidade não era bem-vista pelas gentes da terra – mas os jovens já não queriam saber:
tinham vivido desde sempre com os Romanos e estes não lhes metiam medo.
Também os romanos já tinham perdido algum do desprezo pela população nativa, que não parece
assim tão primitiva a estes colonos que mal se lembram de Roma – afinal, agora, os celtas até já falam latim.
Com mais ou menos preconceitos, viviam naturalmente uns com os outros.
Um dos amigos romanos de Inês chamava-se Pedro. Era um soldado que tinha sido destacado para a
zona ainda com os seus quinze anos. Agora, já achava que aquela região era a sua terra. Uma região de
cavalos selvagens a correr por entre as árvores das florestas, à beira dum mar revolto que entrava pela terra
adentro nas belas rias galegas. Sim, esta era a sua terra sem tirar nem pôr – até porque estava apaixonado
por Inês.

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Pedro não sabia como se aproximar daquela mulher linda, de olhos azuis, e sempre um pouco
distante, como todas as celtas. Sabia que não se podia precipitar. Nem os seus amigos romanos gostavam
daquela situação, nem a família dela iria aceitar tudo aquilo sem pestanejar. Qualquer passo em falso e
perderia todas as hipóteses.
Nas suas longas conversas ao fim do dia, o soldado brincava com o sotaque de Inês. Inês fingia-se
irritada, mas não se importava. Era muito bom ter aquela atenção do romano. Falavam sempre em latim,
claro, embora Inês ainda falasse em celta com os seus pais – o celta era a língua da casa, da família, dos mais
próximos.
Pois, um dia, Pedro chega-se ao pé de Inês e diz-lhe:
– Bore da! [1]
Ou seja, «bom dia» na língua celta. Tinha uma pronúncia um pouco difícil, mas bem perceptível.
Inês fica parada, de boca aberta. Pedro sorri e começa a conversar nessa língua desprezada pelos Romanos.
Diz-lhe que esteve a aprender durante muito tempo, com uns amigos da terra, para poder saber como falar
na língua em que ela sonhava.
Ela continua de boca aberta e ele fala cada vez mais depressa. Está nervoso. Não sabe se fez bem.
No fim, ela manda-o calar-se, dá-lhe um beijo e quando terminam diz-lhe:
– Rwy’n dy garu di!
Casaram-se algum tempo depois, segundo a religião celta, mas respeitando também os ritos
romanos.
O sotaque da Galécia nas ruas de Roma
Anos depois, Pedro levou Inês, numa viagem de meses, a visitar Roma. Depois de abraçar a mãe, que
não o via há muito tempo, ouviu a senhora, ainda a olhar de lado para a estranha mulher que vinha com o
filho, a dizer:
– Mas que sotaque é esse, meu filho? Ficou admiradíssimo por saber que, orgulhoso soldado do
Império, já falava com sotaque galécio.
Inês riu-se muito, nesse dia – e aproveitou para dizer que estava grávida.
O primeiro filho nasceu em casa dos pais dele e a viagem de regresso foi adiada alguns meses, para
que o bebé crescesse um pouco.
Voltaram, então, à Galécia. Os filhos de ambos já só aprenderam latim, embora ainda ouvissem os
pais a falar celta em certas noites – para dizer a verdade, ainda aprenderam umas quantas palavras da boca
dos avós – e, entre os amigos, ainda circulavam velhos palavrões, que os pais não sabiam que os filhos
também conheciam.

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Os primos, filhos de Artur, que se casara com uma celta como ele, também já só falavam latim.
Houve famílias em que tudo isto demorou mais tempo, mas poucas gerações depois já a língua celta estava
quase esquecida.
Muitos anciãos criticavam os jovens por desistirem tão facilmente da velha língua dos deuses celtas
– os jovens encolhiam os ombros e brincavam em latim.
Houve ali, se virem bem, uma espécie de traição linguística. Mas todos os povos, mais tarde ou mais
cedo, passam por isso. As línguas são vítimas de traição, mas não nos esqueçamos que as línguas não
existem por si, fora das pessoas que as falam – e a essas pessoas, às vezes, interessa mudar de língua. Foi
assim com os Celtas – e foi assim com muitos outros povos ao longo dos milénios.
Apesar dessa «traição», a língua celta do povo da Galécia não ficou totalmente esquecida. Há quem
diga que foi essa língua que levou a que, em galego e em português, as palavras que, em latim, começavam
por «pl», «cl» e «fl» se tenham transformado em palavras começadas por «ch». Exemplos? A «pluvia» latina
deu a nossa «chuva». O verbo «clamare» deu o nosso «chamar». A «flama» latina veio a desembocar na
nossa «chama».
É difícil saber quais, mas a verdade é que esses falares celtas já perdidos deixaram alguns traços e,
ainda hoje, quando falamos o nosso português, bem latino e bem moderno, ouvimos ecos já muito sumidos
do que diziam os celtas nesse dealbar do primeiro milénio.
Quem diria a esses jovens, a falar latim com o estranho sotaque da Galécia, sob o olhar reprovador
dos velhos celtas, que a sua nova língua ainda viria a ecoar noutros continentes, mas com uns travos da
língua dos seus avós?
O nascimento da nossa língua
Gallaecia
Será então que foi assim que nasceu a nossa língua? Tudo depende da forma como queremos dividir
a história das línguas. Estes celtas falavam línguas anteriores, os romanos falavam latim – ninguém se
lembrou um dia de inventar uma língua de raiz.
Mas julgo ser natural olhar para este encontro do latim com as florestas da Galécia como a origem
distante da língua que falamos. Foi aí que o latim popular – a matéria-prima de que é feito, em grande parte,
o português – deu de caras com o primeiro molde que lhe veio a esculpir as feições: as línguas dos povos que
já por cá andavam.
Essa matéria-prima ainda há de passar por muitos outros moldes e será ainda salpicada de muitas
outras matérias até chegar à forma que tem hoje – forma essa que continua a mudar, pois nunca chegamos
ao ponto onde podemos dizer que uma língua está acabada. Continua sempre a mudar, sempre a
surpreender-nos.

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Ora, mas a verdade é que, nesses primeiros séculos, por entre as rias e as florestas do Noroeste da
Península, já falávamos um latim diferente, ao jeito da Galécia.
A nossa língua dava os primeiros passos.

(1) Sei que não é o ideal, mas usei o galês como substituto da língua celta desta gente ibérica de há
muitos séculos. Digamos que foi o celta que tinha mais à mão.
Cenas dos próximos capítulos
A história secreta da língua mal começou: nos capítulos seguintes, veremos como um dos descendentes dos
Contreiras vai levar uma mensagem de D. Afonso Henriques até um amigo perdido em Al-Uxbuna; um dos
netos conhecerá D. Dinis, outro será inimigo de Gil Vicente — e ainda veremos Camões à bulha por Lisboa,
um brasileiro a viver o Grande Terramoto, Eça à conversa na Póvoa… E, por fim, chegaremos a estes tempos
de blogues e mensagens electrónicas, em que ainda falamos essa língua que deu os primeiros passos nessas
conversas entre soldados e celtas, no início do primeiro milénio.

Tudo isto está no livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa (Guerra e Paz, 2017).

Texto disponível em https://certaspalavras.pt/historia-secreta-da-lingua-portuguesa-1/

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