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Mario Avelar Poesia e Artes Visuais Conf
Mario Avelar Poesia e Artes Visuais Conf
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infinita” (p. 27) envolvendo o diálogo entre a palavra e a imagem: um diálogo pensável
sobretudo nos termos de um solo entre e de um olhar entre, i.e., de um in betweenness
que o autor elege como conceito operatório nuclear para, em seu próprio benefício
crítico, se permitir interrogar visões dicotómicas mais rígidas, como aquela que, desde o
século XVIII, veio a opor, pela pena do escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing, as
‘artes do espaço’ às ‘artes do tempo’.
A Lessing, ao seu histórico Laokoon e à discussão dessa mesma dicotomia,
considerando a importante alteração de paradigmas estéticos que a interferência de
novos meios mecânicos, associados a discursos artísticos emergentes — com destaque
para a fotografia e para o cinema —, veio introduzir no pensamento e na paisagem
artística da modernidade se dedica, aliás, o segundo dos quatro capítulos do volume. Ao
assimilar uma poderosa dimensão visual trazida por discursos exógenos, que já não
apenas o pictórico, a escrita poética descobre novas formas, híbridas, de diálogo com a
imagem, pondo em causa uma anterior noção de ‘pureza’ artística em moldes que, para
pensadores como Rudolph Arnheim, seriam ainda desconcertantes. Recapitulando
contributos teórico-filosóficos centrais para a compreensão da modernidade estética,
como os de Arnheim e os de Walter Benjamin, ao mesmo tempo que vai assinalando as
repercussões dessa profunda rutura de paradigmas no pensamento e na obra de alguns
dos nossos founding fathers como Baudelaire e Walt Whitman, responsável este último
por uma importação do daguerreótipo para o universo literário que revolucionou a
própria conceção de livro e de escrita poética. A partir dessa revisão histórico-crítica o
autor prossegue pensando a relação cambiante da poesia com o cinema e inspecionar
modalidades e subgéneros contemporâneos de écfrase cinematográfica, e.g. a de poema-
guião, onde a hibridez enunciativa decorrente da absorção de estratégias narrativas
fílmicas se afigura mais ou menos radical.
Mantendo-se fiel à intenção pedagógica que enforma o volume, Avelar faz,
porém, anteceder esta sua primeira incursão pelos destinos modernos da ekphrasis de
uma primeira secção em que se passam criteriosamente em revista os principais loci
classici da teorização e da prática ecfrásticas. Começando pela canónica descrição
homérica do escudo de Aquiles, na Ilíada, objeto de uma leitura crítica meticulosa e
tecnicamente informada no que respeita os requisitos retóricos e as estratégias
discursivas do exercício ecfrástico, outros géneros, além da poesia épica (como a poesia
pastoral ou a epigramática), e outros poetas gregos e romanos, além de Homero,
(Sófocles, Virgílio, Catulo, Lucrécio, Ovídio), são aqui convocados, tomando parte da
construção de uma tradição literária inseparável, nas suas origens, de um modelo
mimético de representação do real fundada, como demonstra com demora o ensaísta,
nos textos filosóficos e nas artes poéticas antigas: de Platão a Horácio, a quem se deve o
consagrado aforismo ‘ut pictura poesis’ que serviria de base argumentativa a vários
séculos de pensamento analógico, irmanando pintura e poesia.
O longo périplo que Mário Avelar enceta, nos restantes capítulos do volume,
pelos rumos modernos desta tradição ecfrástica, retomando a revisitação erudita da
memória cultural ocidental mais recente, reflete bem a extraordinária fertilidade deste
registo poético que se alicerçou tradicionalmente numa intransigente epistemologia
visualista, ainda que, no caso português, as ‘meditações’ de Jorge de Sena — um autor
inevitavelmente lembrado e argutamente relido pelo ensaísta — tenham oferecido,
como se sabe, um terreno semiótico mais alargado ao exercício da écfrase, ampliando-o
a linguagens desvinculadas da imagem, como a música. A viagem proposta neste livro
não se faz, contudo, sem derivas. A uma ilustração abundante de casos poéticos
colhidos dentro da esfera preferencial da literatura anglo-saxónica, mas estendendo-se
com idêntica desenvoltura à hispano-americana, à italiana, à russa, à brasileira, à
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portuguesa, acompanhada de abundantes citações, parciais ou integrais, dos textos lidos
(além de um anexo final de 38 figuras aos quais remetem), acrescentam-se frequentes
interrupções digressivas, assinaladas amiúde pelo próprio ensaísta, apontando linhas
complementares de leitura, sugerindo confluências, desenhando convergências. E assim
implicando passo a passo o leitor num interminável “desafio dialogante sobre a criação”
(p. 564), repetindo, com Mário Avelar, a luminosa síntese de Vasco Graça-Moura, poeta
ao qual, com boas razões, várias vezes regressa e com o qual vem a concluir esse seu
longo périplo. Num certo sentido, Poesia e Artes Visuais, enquanto obra e arquitetura
ensaística, assemelha-se a um museu imaginário, ao mesmo tempo individual e coletivo,
de meditações ecfrásticas critica e metacriticamente revisitadas que franqueia a sua
entrada aos leitores disponíveis para acompanharem o trajeto e lhes propõe uma
experiência a um tempo imersiva e polifónica.
Na verdade, o Museu constitui um dos grandes temas agregadores da reflexão de
Avelar neste volume e aquele a que é dedicado o capítulo mais longo, o terceiro.
Invocando Malraux e sinalizando a relevância do espaço museológico não só na criação
de uma ideia moderna de arte, como também no impacto criativo que exerce sobre
artistas e poetas, bem como na educação estética do público, o ensaísta recua uma vez
mais aos momentos iniciais de implantação dessa nova presença no quotidiano social
para analisar os seus efeitos nos poetas românticos ingleses. Poetas que, na esteira da
exemplar “Ode on a Grecian Urn” de Keats, inauguram uma modalidade especulativa
de escrita ecfrástica, de particular ressonância na literatura posterior, articulando
identidade e memória, descrição e simulacro, reflexão estética e meditação ontológica.
Para lá das inúmeras realizações ecfrásticas aqui examinadas com grande agudeza
crítica (enumerando, sem preocupações ordenadoras, da abrangente galeria de poetas
revisitados: Auden, Melville, Yeats, William Carlos Williams, Wallace Stevens, Eliot,
Pound, Robert Browning, R. S. Thomas, O’Hara, Ashbery, Sylvia Plath, Dante Gabriel
Rossetti , Tarkovsky, Kavafis, Yves Bonnefoy, Narcís Comadira, Eucanãa Ferraz...ou
ainda, no caso nacional e para lá dos nomes já mencionados, Fernando Guerreiro,
Fátima Maldonado, Ana Gastão, Adília Lopes, Joaquim Manuel Magalhães, João
Miguel Fernandes Jorge, entre tantos outros) a partir de uma original e produtiva
seleção de tópicos (o retrato, o detalhe, a paisagem, o sagrado), um destaque particular é
reservado às antologias promovidas pelas próprias instituições museológicas, de
especial relevância pela ampla montra que exibem de consciente reformulação poética
— quando não de inversão ou sabotagem — das tradições ecfrásticas na literatura do
século XX.
Sobre esta fundamental dimensão autorreflexiva da arte moderna, em que
ganham relevo as práticas experimentais das Vanguardas, se debruça o último capítulo
do ensaio. A sistemática reflexão sobre as linguagens, as formas e os processos
artísticos então iniciada, indissociável da emergência da pintura abstrata, repercute-se
no estatuto e na ontologia da imagem que passa a incorporar dinâmicas temporais
resultantes de releituras acumuladas da história. Recorrendo a conceitos como o de
transmemória ou o de anacronia, propostos por Vítor Serrão e Georges Didi-Huberman
respetivamente, Mário Avelar interroga-se (e interroga-nos) sobre o destino da écfrase
perante esse ‘objeto temporalmente impuro’ (Didi-Huberman) ou puramente abstrato
que passou a ser a imagem. Não só aqui, mas também ao longo de todo o volume, na
verdade, as reflexões do ensaísta vão sendo acompanhadas quer de remissões para
outras leituras críticas, quer de regulares achegas teóricas (de particular interesse para a
investigação neste domínio é a bibliografia apensa ao texto): ora relativas a uma
categorização de variantes ecfrásticas; ora distinguindo o processo ecfrástico de
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categorias retóricas afins, como a hipotipose; ora discorrendo em torno de dispositivos
típicos da enunciação ecfrástica, em particular o monólogo dramático.
É precisamente nesse jogo entre o próprio e o outro, o reconhecimento e a
alteridade, nessa articulação hermenêuticamente investigada entre confessionalismo e
écfrase, tomando o confessionalismo não no sentido da mera exposição psicológica,
mas sim pela via que o aproxima de uma espécie de “autobiografia... intelectual” (p.
515) — de uma ‘experiência incorporada’, como Graça-Moura dizia ser para si a écfrase
—, que me parece residir o contributo talvez mais fecundo e original do presente ensaio
de Mário Avelar, talvez também o que mais instiga o próprio autor. Parece significativo,
com efeito, que no epílogo do volume se enuncie, deixando-o em aberto para futura
cogitação, um conjunto de interrogações sobre a obra do poeta e pintor português, tão
pouco lembrado, Moita Macedo, em particular na sua vertente não figurativa, na sua
parcela de mistério e não-dito e no que nela se configura como a construção de uma
identidade ambígua.
São razões que fazem de Poesia e Artes Visuais. Confessionalismo e Écfrase
uma obra exigente, correndo o risco de gerar resistências, quiçá extravios, por parte de
alguns. Em contrapartida, a obra de Mário Avelar poderá, com maior probabilidade,
atrair outros leitores para os benefícios das leituras e dos ‘olhares’ comparativistas,
comprometendo-os, intelectual e emocionalmente, numa meditação partilhada e
transhistórica sobre a Humanidade.
Eunice Ribeiro