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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - HABILITAÇÃO EM
PRODUÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA

MÚSICA ALTERNATIVA E INDÚSTRIA CULTURAL FONOGRÁFICA


As interconexões e paradoxos na carreira de Raul Seixas 1965 - 1975

Eduardo Santos Mafra

Salvador/BA
2009
MÚSICA ALTERNATIVA E INDÚSTRIA CULTURAL
FONOGRÁFICA

As interconexões e paradoxos na carreira de Raul Seixas 1965 – 1975

Eduardo Santos Mafra*

Resumo

Artigo sobre indústria cultural, focando especificamente na indústria fonográfica e nas


relações relativas próprias, geradas pela relação de tensão permanente entre o mercado e
a arte, além da própria revisão do conceito de arte após o surgimento da indústria
cultural. Análise da validade do discurso do alternativo e reflexão das ações vistas como
de contestação. Raul Seixas e sua relação com a indústria fonográfica, com seus
paradoxos e interconexões, através do seu discurso da música alternativa e de crítica
social.

Palavras-chave:

Indústria cultural, indústria fonográfica, valor de arte, arte alternativa, música, rock,
Raul Seixas.

Abstract

Article on the cultural industry, focusing specifically on the music industry and the
relationships for themselves generated by the relationship of permanent tension between
the market and art, beyond the review of the concept of art after the rise of cultural
industries. Analysis of the validity of the discourse of alternative thinking and actions
seen as the defense. Raul Seixas and its relationship with the music industry, with its
paradoxes and interconnections through its discourse of alternative music and social
criticism.

Keywords:

Cultural industry, music industry, value of art, alternative art, music, rock, Raul Seixas.

*
Graduando do curso Comunicação Social – Produção em Comunicação e Cultura da
Universidade Federal da Bahia

2
Introdução

Reconhecidamente, Raul Santos Seixas, nascido em Salvador, Bahia, no dia 28 de junho


de 1945, na casa número 108 da Avenida Sete de Setembro, é um ícone musical e
cultural brasileiro, e nisto, torna-se dispensável qualquer narrativa que objetive defender
o que já é aceito. Imortalizado ao, em 1973, tratar ironicamente o Milagre Brasileiro
como um reles Ouro de Tolo, auto-afirmado como Maluco Beleza e Metamorfose
Ambulante, visto como um Cowboy Fora da Lei. Indivíduo tão rico, complexo e
representativo, vivenciou, mais especificamente na gênese da sua carreira, desde 1965,
quando começou a figurar em shows do Cine Roma1, até o seu apogeu no período 1974-
1975, com os discos Gita (1974) e Novo Aeon (1975), algumas exemplificações de ações
e reflexos da indústria cultural direcionada para a produção musical, denominada
indústria fonográfica.

Isto foi determinante para os rumos de sua carreira, que passou de músico rejeitado
pelas grandes gravadoras a produtor musical e músico de estúdio da CBS (atual Sony
Music), e só a partir de 1973, com o sucesso do álbum Krig-Há Bandolo, rock star.
Sendo então, a análise de contextos específicos de Raul Seixas nesse período
relacionados com a indústria cultural fonográfica o enfoque deste artigo, fundamentado
nas conceituações sobre indústria cultural de Adorno e Horkheimer (1985) e levadas
adiante, mais especificamente no ramo musical, através de Dias (2000). A análise da
música como meio de comunicação de massa e sua conseqüente relação com o meio
comercial de McQuail (2003) na sua obra Teoria da Comunicação de Massas também é
de grande valia.

O artigo objetiva analisar aspectos diversos e desdobramentos da indústria cultural na


seleção de artistas, composição, gravação, produção e difusão de bens culturais
musicais, fazendo uso de uma figura iconográfica e iconoclasta como Raul Seixas no
Brasil, que, mesmo, para a visão do senso-comum, avesso a instituições, dogmas e
sistemas, fez uso e participou efetivamente do processo fabril, de montagem, da música.
O estudo da indústria cultural é fundamental para a compreensão do nosso modelo de
sociedade liberal, democrática e capitalista, e a exemplificação focada em algo próximo

1
Espaço cultural e cinema de Salvador, inaugurado em 1948. Abrigava shows de diversos artistas como
Roberto Carlos, Jerry Adriani, Wanderléa, Renato e Seus Blue Caps, Ângela Maria, Caubi Peixoto,
Marlene, Quarteto em Cy, Emilinha Borba e o próprio Raul Seixas, com seu grupo Os Panteras. Deixou
de funcionar no fim da década de 70.

3
do que é vivenciado, experienciado de fato, eleva substancialmente a compreensão e o
interesse no tema, apesar de isto não ser fundamentalmente o essencial para o estudo. O
entendimento do ambiente social na civilização ocidental capitalista passa pela
apreensão e análise do advento da indústria de bens com valor simbólico, e Raul Seixas,
no âmbito brasileiro, auxilia a compreender melhor a realidade brasileira no seu prisma
de óticas e acontecimentos, o que abarca certamente a mercantilização da música.

A indústria cultural e o valor de arte

Para compreender a própria relação tensiva entre a arte alternativa e a indústria cultural,
a tensão entre o underground e o mainstream, seja ela efetivamente válida ou não, é
preciso fundamentar e explicar a significância social da indústria de bens simbólicos.
Termo cunhado na clássica obra dos parceiros Adorno e Horkheimer, Dialética do
Esclarecimento, a indústria cultural foi definida como um fruto inevitável do modo de
produção capitalista, direcionada à aceitação plena do sistema vigente, e para isto, a
forma mais eficiente seria o estímulo à alienação política e apatia (de acordo com as
tendências claramente marxistas da Escola de Frankfurt), através da criação industrial
de bens providos de teor simbólico, na transformação da arte em produto, através de um
processo de montagem e reprodução.

O próprio valor de arte dos produtos da indústria cultural foi questionado por Adorno e
Horkheimer, pela montagem arquetípica de produtos, voltados para o consumo em
grande escala, irradiando para muitos receptores através de poucos pólos emissivos, o
que reafirma segundo os autores a intenção real de coesão social:

Os interessados inclinam-se a dar uma explicação tecnológica da


indústria cultural. O fato de que milhões de pessoas participam dessa
indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam
inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de
necessidades iguais. O contraste técnico entre poucos centros de
produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o
planejamento pela direção. Os padrões teriam resultado
originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que são
aceitos sem resistência. De fato, o que o explica é o círculo da
manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do
sistema se torna cada vez mais coesa. (ADORNO; HORKHEIMER,
1985, p.114)

4
Para outro representante da Escola de Frankfurt, Benjamin (1985), - avançando mais no
valor artístico em si das obras -, todos os produtos da era da reprodutibilidade técnica2,
tinham como foco o valor de exposição3, pelo caráter predominantemente massivo das
produções culturais das novas formas de criação artística, entre eles o cinema e a
fotografia, em detrimento do valor de culto4, e este valor de culto, liga-se diretamente
ao conceito de aura5, conceito este que confere à arte o seu próprio valor como arte, no
sentido de experiência estética decorrente de uma produção humana. A aura, na
definição de Benjamin é algo ritual, além do físico, e ao afirmar que “À medida que as
obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam
expostas” (BENJAMIN, 1985, p.173) – num pequeno apanhado histórico da arte -, os
produtos da era da reprodutibilidade técnica têm seu valor como arte, questionado:

Com efeito, assim como na pré-história a preponderância absoluta do


valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro
lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte,
do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor
de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a
“artística”, a única de que temos consciência, talvez se revele mais
tarde como secundária (BENJAMIN, 1985, p.173)

Seguindo então, os produtos da era da reprodutibilidade técnica, para Benjamin (1985),


teriam seu valor como arte, questionado. Para Adorno e Horkheimer (1985), tais
produtos, na sua totalidade de variantes, sequer poderiam ser considerados arte, pela
falta de experiência estética em produtos totalmente montados em modelos desprovidos
de criação artística – além do viés mercadológico das produções, o que para eles 6 feria
completamente o valor artístico -, pelo menos na idéia original anterior do que viria a
ser arte. Este raciocínio se torna bem evidente no seguinte trecho:

2
O texto de Benjamin é anterior à criação do termo indústria cultural, por isso a utilização do termo
reprodutibilidade técnica. Benjamin via os produtos da referida indústria como reprodutíveis em grande
escala e montáveis.
3
Valor de exposição, na conceituação de Benjamin, é o que arte tem de expositivo, no sentido do público
direcionado em valores quantitativos. As obras da reprodutibilidade técnica seriam fundamentalmente
focadas no valor de exposição.
4
Valor de culto na obra de arte, segundo Benjamin, é o que torna arte em arte, é o valor transcendental da
obra, derivado basicamente da aura.
5
Aura é segundo Benjamin, o que vai além do aspecto material da obra. É o que é etéreo. Por diversas
vezes a aura decorre de um valor atribuído histórico através da própria classe artística.
6
Idéia dotada de grande força ainda atualmente no meio artístico.

5
O caráter de montagem da indústria cultural, a fabricação sintética e
dirigida dos seus produtos, que é industrial não apenas no estúdio
cinematográfico, mas também (pelo menos virtualmente) na
compilação das biografias baratas, romances-reportagem e canções
de sucesso, já que estão adaptados de antemão à publicidade: na
medida em que cada elemento se torna separável, fungível e também
alienado à totalidade significativa, ele se presta a finalidades
exteriores à obra. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.153)

Atualização de conceitos, arte alternativa e indústria fonográfica

Entretanto, num ângulo mais atual acerca dos desdobramentos sócio-culturais, é


possível vislumbrar gradações no valor artístico nos produtos da indústria cultural. E
mais especificamente, a música, mesmo com a indústria fonográfica7 abarcando quase
que completamente a produção musical em grande escala, obteve manifestações de
contestação, mesmo que partisse diretamente do âmago da própria indústria
fonográfica, ou mesmo que isto representasse apenas uma imagem mercadológica não-
autêntica, com o intuito de arregimentar determinado público tencionado a consumir
produtos com essa imagem, ou ainda que tal produção musical fizesse uso da inevitável
máquina de divulgação para que justamente pudesse combatê-la. Eis a relação
permanentemente tensiva entre o viés mercadológico e o viés artístico, em diversas
vezes difusa e diluída entre uma tendência e outra, relação verificável também no
contexto musical (JANOTTI JÚNIOR, 2003).

Tal análise é compartilhada por McQuail (2003), na sua definição da música gravada
como meio de comunicação de massa, em que em certo ponto do raciocínio, toca a
relação entre a criação musical e indústria fonográfica, ao descrever o papel subversor
da música (e nisto atribuir importância da música nas transformações sociais) e sua
faceta que age em confluência com os interesses mercadológicos (o que é demonstrado
pela desconfiança pela qual os produtos podem ser recebidos e decodificados no seu
teor) e a própria mescla entre estas duas lógicas:

Desde o surgimento da indústria baseada nos jovens, nos anos 60, a


música popular de massas tem sido ligada ao idealismo juvenil, às
suas preocupações políticas, à suposta degeneração e hedonismo, ao

7
Braço da indústria cultural na música.

6
consumo de drogas, à violência e a atitudes anti-sociais. A música
desempenhou também um papel em movimentos nacionalistas de
independência (por exemplo, na Irlanda e na Estônia). Embora nunca
tenha sido fácil regulamentar o conteúdo da música, a sua
distribuição tem estado sobretudo nas mãos de instituições
estabelecidas e as suas tendências desviantes sujeitas a algumas
sanções. Aparte isto, a maior parte da música popular tem
continuado a expressar e a responder a sólidos valores convencionais
e a necessidades pessoais. (MCQUAIL, 2003, p. 28)

Portanto, o rock, também não consegue escapar dessa relação dual entre a aceitação do
mercado e o genuinamente artístico desvinculado de alguma relação capitalista, apesar
de, fundamentalmente, o rock, como representação social além do estilo musical
apenas, trazer para si o discurso do alternativo (JANOTTI JÚNIOR, 2003), o que pode
ser analisado como apenas uma falsa segmentação, uma pseudo-individualização
própria da indústria fonográfica, direcionada apenas para uma aceitação plena e efetiva
dos, ainda assim, produtos idênticos na sua montagem (DIAS, 2000):

O esquematismo da produção da indústria cultural e sua


subordinação ao planejamento econômico promovem a fabricação de
mercadorias culturais idênticas; pequenos detalhes atuam sempre no
sentido de conferir-lhes uma ilusória aura de distinção. A obra de
arte, que era anteriormente veículo de idéia, foi completamente
dominada pelo detalhe técnico, pelo efeito, substituída pela fórmula
(DIAS, 2000, p.27).

Contudo, mesmo havendo de fato montagem nas mais variadas etapas da produção
musical, não é possível afirmar de maneira tão radical que não há distinção entre as
obras e que não há um contexto social fundamentando as expressões culturais
hodiernas, logo ligadas à instituição da indústria cultural, e avançando mais há a
conclusão da impossibilidade de criação e difusão efetiva de produtos sem passar pelo
processo de mediação da indústria cultural, no caso da música, pelo crivo das grandes
gravadoras e de toda a estrutura mercadológica relacionada à música, além do próprio
ganho técnico que representa a utilização do aparato tecnológico próprios das

7
organizações de produção de entretenimento, inacessível em qualidade aceitável para
produções independentes8 (JANOTTI JÚNIOR, 2003).

Raulzito e os Panteras

De uso destes conceitos, atualizações e análises, Raul Seixas, exemplifica muito bem
toda essa discussão, pelo seu caráter paradoxal na carreira, auto-intitulado como
Metamorfose Ambulante, com inúmeras interseções na relação artista musical –
indústria fonográfica. Para efeito de exemplificação e análise, o período do início da
sua carreira até o período de 1975 foi escolhido por ser bem rico nessas relações –
harmônicas ou desarmônicas -, extremamente úteis para visualização efetiva empírica
das análises da indústria cultural e do próprio panorama histórico-político-social do
Brasil.

Como já explanado na introdução, a profissionalização de Raul Seixas se deu no


período em que tocava com o grupo The Panthers, posteriormente rebatizado de
Raulzito e os Panteras. Em Salvador ganhou notoriedade nos diversos shows no Cine
Roma, um show destes, inclusive, como banda de apoio de Roberto Carlos. Porém, em
1967 resolveu tentar a sorte no Sul Maravilha, onde, de fato, concentrava-se a
efervescência econômica e musical – pelo menos a institucionalizada pelo mercado- do
país. Consegue gravar um LP: Raulzito e os Panteras9, porém, o disco fracassa
comercialmente, e o grupo se torna banda de apoio de Jerry Adriani. Após isso a
dissolução foi inevitável.

O disco tratava de temas complexos, segundo citação do próprio Raul (PASSOS, 2007,
p.44), como o agnosticismo10, o que teria contribuído para o insucesso do álbum, além
da escassa divulgação. Houve choque com os produtores justamente por causa da
temática das músicas, vistas como pouco “comerciáveis”. O poderio da gravadora,

8
O exemplo mais evidente da necessidade de uma aparelhagem específica e de um aporte financeiro
considerável é o cinema, porém, o fonograma, na produção, na difusão, no uso de recursos audiovisuais
alheios a priori à música em si dependem fundamentalmente da estrutura industrial para que efetivamente
a divulgação em grande escala – e direcionada estrategicamente também – ocorra.
9
Disco lançado em 1968.
10
Posicionamento filosófico de não-dogmatismo, da idéia de ausência de verdade absoluta e conseqüente
impossibilidade de comprovação legítima desta.

8
Odeon, e sua seletividade baseada através do caráter mercadológico de uma obra,
tornou-se evidente, além da confluência com a tendência do mais aceito acerca de como
deve ser o formato padrão de sucesso da música, isto, evidentemente, dá um caráter
meramente montável à música através de paradigmas consagrados, cristalizados de uma
canção. Arte, como experiência estética decorrente de uma produção humana, fica
seriamente comprometida a partir do momento em que um modelo completamente
assimilado e idêntico sem qualquer alteração essencial além da máscara da pseudo-
individualização, para conferir um ar de distinção (DIAS, 2000).

Raul produtor musical

Após não ter logrado êxito no lançamento do disco e após a dissolução do seu grupo,
Raul Seixas retornou à Salvador, após “passar fome por dois anos na Cidade
Maravilhosa”, como imortalizou na canção Ouro de Tolo. Iniciou-se uma fase obscura
de reclusão na vida de Raul, a qual só foi encerrada com o convite do diretor da
gravadora CBS, Evandro Ribeiro, para que ele se tornasse produtor musical da
gravadora referida, retornando então para o Rio de Janeiro. Raul produziu e compôs
discos de sucesso, no período de um ano, para diversos artistas como Jerry Adriani,
Trio Ternura, Renato e seus Blue Caps, Tony e Frankie, Diana e Sérgio Sampaio.

O processo de montagem da indústria cultural é mais uma vez visualizado. Um


exemplo claro através da produção não do artista em si, mas de um produtor que
direciona a criação para o êxito comercial, sem a idéia de obra no sentido
tradicional11(DIAS, 2000). A tênue linha entre o artista “autêntico” e o artista
“fabricado” também é evidenciada, nas relações modernas de produção artísticas é
difícil distinguir ou mesmo encontrar algo que não tenha nenhuma relação com o
mercado transversal de bens simbólicos (JANOTTI JÚNIOR, 2003).

Porém, ir trabalhar numa grande gravadora não significou para Raul Seixas uma
traição dos ideais nem aceitação plena da música desprovida de teor crítico. Em 1971,

11
O que não necessariamente exclui a possibilidade de uma obra moldada desta forma ser arte
efetivamente. É preciso sobriedade para analisar e julgar o valor das obras, que possuem gradações no seu
teor (JANOTTI JÚNIOR, 2003).

9
”aproveitando” uma viagem do presidente da CBS, grava e lança o disco Sociedade da
Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, em parceria com Sérgio Sampaio,
Miriam Batucada e Eddy Star. Apesar de não ser o único autor do disco, Raul já
apresentava o teor crítico nas composições – destaque para as vaias ao final do disco,
em alusão aos festivais de música -, com um clima “zappiano”12 e vanguardista. Tal
ousadia custou o emprego na gravadora, e o disco foi retirado das vendas por “não fazer
a linha artística da CBS”. Vale ressaltar que o disco foi relançado pela mesma CBS em
1984, quando Raul já era um artista reconhecido nacionalmente. A situação faz a
atitude.

O festival e o estrelato

Após a sua demissão, Raul inscreve-se no VII Festival Internacional da Canção, em


1972, promovido pela TV Globo, com as músicas Let me Sing, Let me Sing e Eu sou eu,
Nicuri é o Diabo. Aí encontrou sua fórmula musical, com a mescla de músicas
regionais nordestinas e rock de Elvis Presley. As duas músicas foram classificadas e
logo após Raul assinou contrato com Philips/Phonogram.

Como o próprio já afirmava, “quando se quer entrar num buraco de rato, de rato você
tem de transar”. Fazer uso da própria estrutura midiática para criticá-la reforça a idéia
da necessidade de uso indispensável dos meios de comunicação de massa e da própria
indústria cultural para divulgação efetiva com a amplitude desejada. Obviamente há
exceções de produções independentes desvinculados das grandes organizações
comunicacionais ou de entretenimento, mas dificilmente elas irão obter a mesma
notoriedade pública de produções que atravessem estes meios. Isto também comprova a
idéia das gradações no valor artístico13 (JANOTTI JÚNIOR, 2003).

A experiência como produtor foi extremamente útil na seleção da linguagem


apropriada para alcançar o grande público, sem retirar a carga crítica e questionadora de
sua obra, pois ao entrar em contato e assimilar a linguagem da música comercial – com
seus três ou quatro minutos de duração, estrutura de introdução-verso cantado-

12
Referência ao músico iconoclasta Frank Zappa.
13
Sem se esquecer que o próprio valor passa por um reconhecimento atribuído fundamentalmente e que é
relativo a cada experiência de recepção de forma individual, de acordo com o próprio background cultural
do receptor (JANOTTI JÚNIOR, 2003).

10
refrão,linguagem simples e direta- pôde enfim alcançar o estrelato e explanar suas
idéias de forma eficiente. O compacto Ouro de Tolo consagrou-o de fato, mas ainda
assim o lançamento deste compacto não o agradou, pois este formato comercial
quebraria de forma irreparável o conjunto de sua obra idealizada no LP Krig-Há
Bandolo, numa ótica mais purista da obra como um conjunto.

Seu primeiro disco solo, com a música autobiográfica Ouro de Tolo incluída, trazia
ainda a música de incentivo Cachorro-Urubu, a questionadora Mosca na Sopa, que
definia bem a atuação dos que estavam descontentes com o contexto da ditadura de
Médici, entre outros sucessos como Al Capone e Metamorfose Ambulante, o que
exemplifica que mesmo estando “vestido de rato”, não se torna um “rato” realmente.

Raul profeta

No próprio ano de 1973, Raul conhece Paulo Coelho, que já no próximo disco
participa como letrista de algumas músicas. O envolvimento com o esoterismo também
se inicia, e a conseqüente fundação da Sociedade Alternativa14. Numa versão da época
dos dois, ambos teriam se conhecido na passagem de um disco voador na Barra da
Tijuca, porém, tratou-se de uma afirmação para “fazer gênero”, pela sua habituação
com as atitudes de qualquer participante do show business. O uso dos elementos de
fabricação de imagem pessoal, próprios da indústria fonográfica, também se aliou ao
modo de fazer música “acessível”, mesmo que bem-intencionada e dotada de teor.

O LP Gita combinava crítica social com esoterismo. Super-Heróis criticava


ironicamente os heróis montados pelo regime ditatorial como representantes da suposta
pujança esportiva e intelectual do Brasil, com seus Mequinhos, Fittipaldis e Pelés, que
animavam o circo da ditadura. Na famosa faixa-título Raul trazia versos de um livro
sagrado indiano, em que um jovem se questionava aos deuses sobre o porquê dos males
do mundo. Reflete um determinado escapismo na tendência ao orientalismo e início do
desânimo das gerações contestatórias. A música Sociedade Alternativa e doação do

14
Movimento que pregava a existência livre e solidária, baseado nos preceitos do ocultista inglês Aleister
Crowley, entre eles a principal afirmação de que: “Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei”, citada na
música Sociedade Alternativa, do álbum Gita, de 1974.

11
terreno para a fundação da Cidade das Estrelas15 acabou por ocasionar na prisão e na
tortura de Raul Seixas no Dops16 e posterior exílio nos Estados Unidos.

Raul retorna ao país devido ao enorme sucesso do disco Gita, com 600.000 cópias
vendidas. Os famosos clipes do programa Fantástico da Rede Globo, a imagem do Raul
sábio, profeta, uma ótima divulgação e o grande apelo popular, auxiliaram muito para
que o coração dos milicos fosse “enternecido”. O poderio de um símbolo midiático
musical e mais profundamente, da própria indústria cultural, conseguiu contornar as
desígnios de um regime centralizador e autoritário, que, no entanto, continuou a podar
manifestações que atentassem contra a “moral e os bons costumes”.

A pressão pelo sucesso e o Novo Aeon

Depois do sucesso estrondoso de Gita, a expectativa da Philips/Phonogram era um


sucesso ainda maior no disco em seqüência, Novo Aeon, de 1975, no mínimo se
esperava retorno igual ao do trabalho anterior, porém nas vendagens o disco fracassou
comercialmente, com apenas 40.000 cópias vendidas – pouquíssimo em comparação
com o disco anterior -, o que não permite inferir baixa qualidade artística ou letras
desprovidas de um certo teor refinado no sentido de inquietude e análise social.

Nas letras, não há mais tanto um viés doutrinário místico, e as mensagens de ânimo à
luta na música Tente Outra Vez retornam, além da reafirmação do caráter dionisíaco - e
alheio à ordem social vigente - do rock, em Rock do Diabo e da cáustica crítica ao
consumismo em É Fim de Mês. Este disco encerrou, para alguns críticos a fase mais
criativa da carreira de Raul Seixas.

Enquanto a gravadora aguardava um novo êxito, de preferência ainda maior, Raul


produziu um disco que para ele seria um reflexo da sua própria vivência, já um tanto
desiludida do esoterismo e recheada de dúvidas e afirmações. Demonstra então
autonomia em relação ao interesse mercadológico e separação, nem sempre obrigatória,

15
Seria a representação terrena da Sociedade Alternativa.
16
Departamento de Ordem Política e Social. Criado durante o Estado Novo para reprimir movimentos
contrários ao regime. Utilizado efetivamente na Ditadura Militar. Ainda existente em algumas cidades.

12
entre sucesso e qualidade da obra, e o próprio caráter inconstante e dificilmente
possível de mensurar de uma criação artística (JANOTTI JÚNIOR, 2003).

Conclusão

Assim, é possível concluir que vai muito além a análise das relações e as conseqüências
da indústria cultural, e que o valor de arte altera-se juntamente com o advento dela.
Com a análise realizada, chega-se no consenso da alteração de valor da arte, e não a
destruição da arte, como foi previsto pela Escola de Frankfurt, além da quebra da
análise um tanto extremada da inexistência de valor em obras reprodutíveis, que por
ferir a idéia da unicidade alteraria irremediavelmente a aura, que é o que torna arte em
arte. O novo valor está na concepção da idéia, exatamente como foi montado o produto,
e mesmo que siga um modelo de narrativa – tomando como exemplo uma obra dotada
de narrativa -, a própria inovação no pré-concebido consegue agregar valor simbólico
estético.

A pseudo-individualização também é questionada, e há sim validade em determinados


fenômenos sociais que perpassem pelo âmago da indústria cultural, entre eles, em
alguns casos, a música, e em determinadas ocasiões, o rock com seu ímpeto contestador
juvenil também consegue trazer para si e referendar seu discurso, mesmo com a tensão
permanente entre os posicionamentos e a própria pouca nitidez na separação entre o que
é comercial e o que é arte, lembrando ainda da própria reformulação do próprio
conceito da arte.

E mesmo o artista alternativo, como Raul Seixas, faz uso e se inter-relaciona com os
meios de massa, e as relações avançam mais ainda ao perceber que Raul de fato
participou de dentro das próprias gravadoras, ainda que, com certas contradições –
como é possível ver na sua imagem criada -, sustente a legitimidade e o próprio
raciocínio de atacar fazendo parte da própria estrutura, o que é comprovado também,
porém sem idealizações ou posicionamentos extremados nem de um lado nem do outro,
por fim, fugindo do maniqueísmo simplório.

13
Referências bibliográficas

PASSOS, Sylvio (org.). Raul Seixas: por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 2007.

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:


fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

BENJAMIN, Walter; ROUANET, Sérgio Paulo (org.). Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

JANOTTI JÚNIOR, Jéder. Aumenta que isso aí é rock and roll: mídia, gênero musical
e identidade. Rio de Janeiro: E-papers, 2003.

MCQUAIL, Denis. Teoria da comunicação de massas. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, Serviço de Educação e Bolsas, 2003.

DIAS, Márcia Tosta. Os Donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização


da cultura. São Paulo: Editora Boitempo, 2000.

14

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