Você está na página 1de 142

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

A UNIDADE DIALÉCTICA DO TODO


Estudo em torno da ontologia de Nicolau de Cusa

Raoul Marian

Tese orientada pela Prof.ª Dra. Filipa Afonso, especialmente elaborada para a obtenção
do grau de Mestre em Filosofia.

2022
Resumo: Tendo como objectivo principal mostrar a unidade dialéctica do todo, que
poderá, igualmente, designar-se de identidade dialéctica entre uno e múltiplo, a presente
dissertação foi dividida em dois momentos. O primeiro momento, que diz respeito a
primeira parte da dissertação, tem o objectivo de mostrar, através de várias problemáticas,
a necessidade da unidade entre deus e criatura ou entre o ser e o existente. Uma negação
de tal necessidade, tal como ao longo das páginas desta primeira parte é possível verificar,
implicará uma afirmação de uma dualidade ontológica das substâncias pela colocação do
ente finito no mesmo patamar que o próprio ser. Assim, ao ser absoluto, infinito, estaria
posto enquanto contra-posto o próprio ente finito que, deste modo, acabará por se tornar
ele próprio infinito. Daqui resultaria uma negação do ser enquanto absoluto, uma
relativização e limitação do mesmo pelo finito. No segundo momento, relativo à segunda
parte da dissertação, procuramos mostrar, em primeiro lugar e de um modo geral, o
movimento (unitário) manifestativo do Absoluto. Para tal foi levada a cabo uma
investigação em torno dos conceitos de complicatio e explicativo, bem como, das
temáticas da descida e da emanação do Absoluto no e enquanto finito. Por fim, no último
capítulo, este movimento manifestativo, inicialmente analisado de um ponto de vista
geral, passa a ser investigado naquilo que, a meu ver, constitui a sua essência e que diz
respeito ao movimento dialéctico. Assim, a investigação da dialéctica da unidade e a
unidade dialéctica do todo fecham este nosso percurso pela ontologia de Nicolau de Cusa.

Palavras-chave: Nicolau de Cusa, ontologia, panteísmo, dialéctica, uno.

Abstract: With the main objective of showing the dialectical unity of the whole, which
could also be called the dialectical identity between one and multiple, this dissertation
was divided into two moments.The first moment, which concerns the first part of the
dissertation, aims to show, through various topics, the necessary unity between god and
creature or between being and existent. A denial of such necessity, as it is possible to
verify throughout the pages of this first part, will imply an affirmation of an ontological
duality of substances by placing the finite entity on the same level as the being itself.
Thus, to the absolute, infinite being, there would be posited, as opposed, the finite being
itself, which, in this way, will end up becoming infinite itself. This would result in a
negation of being as absolute, a relativization and limitation of the same by the finite. In
the second moment, related to the second part of the dissertation, we tried to show, firstly
and from a general point of view, the manifestative (unitary) movement of the Absolute.
For this, an investigation was carried out around the concepts of complicatio and
explicatio, as well as the themes of the descent and emanation of the Absolute in and as
finite. Finally, in the last chapter, this manifestative movement, initially analyzed from a
general point of view, is now investigated in what, in my view, constitutes its essence and
which is the dialectical movement. Thus, the investigation of the dialectic of unity and
the dialectic unity of the whole close our journey through the ontology of Nicholas of
Cusa.

Keywords: Nicholas of Cusa, ontology, pantheism, dialectics, one.


ÍNDICE
Introdução.................................................................................................................................... 1

PARTE I—ACERCA DA NECESSIDADE DA IDENTIDADE ENTRE DEUS E MUNDO


....................................................................................................................................................... 6

1. Que é aquilo que é? O ser infinito. ..................................................................................... 6

2. Authypostaton ..................................................................................................................... 21

3. A existência necessária do Absoluto: causa sui e essência absoluta de todo o existente. A


dependência ontológica dos entes finitos e a consequente identidade com o Absoluto. ...... 33

4. Absoluto como ratio, logos ou medida de todas as coisas. A questão da criação ex nihilo.
39

PARTE II—DESCIDA DO ABSOLUTO NO FINITO.ACERCA DA UNIDADE


DIALÉTICA DO TODO. ......................................................................................................... 54

1. Complicatio – Explicatio: um problema de relação. Acerca da complicatio. ................ 54

2. Explicatio, descida, emanação: acerca dos traços gerais da manifestação sensível do


Absoluto. .................................................................................................................................... 65

3. O fazer do Mundo. Porquê? A partir de quê? Matéria, forma e a relação entre ambas.
83

4. A unidade dialética do todo. ........................................................................................... 101

5. Em jeito de conclusão: uma posição crítica acerca da proposta cusana. .................... 126

BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 128


SIGLAS E ANOTAÇÕES
De modo a simplificar a referência das obras de Nicolau de Cusa foram atribuídas
as seguintes siglas:
DI — De docta ignorantia
DC — De conjecturis
DA — De deo abscondito
QD — De querendo deum
FD — De filiatione dei
DPL — De dato patris luminum
DG — De Genesi
IL — De ignota litteratura
Ap — Apologia doctae ignorantiae
DS — De Sapientia
DM — De Mente
VD — De visione dei
DB — De beryllo
DAe — De aequalitate
DP — De Principio
DPo — De Possest
NA — De non-aliud
LG — De ludo globi
VS — De Venatione Sapientiae
COM — Compendium
AP — De apice theoriae
As referências das obras de Nicolau de Cusa não terão indicado o nome do autor
e seguirão o seguinte critério: nome da obra, livro da obra em notação romana (nos casos
em que a obra é escrita em vários livros), número do capítulo em notação romana, número
da secção em notação árabe (por exemplo: DI, II, III, 107). Nos casos em que a obra não
apresenta uma divisão por livros ou capítulos, o critério permanecerá o mesmo, com a
excepção das respectivas indicações.
AGRADECIMENTOS
Invocando uma estrutura piramidal, gostaria de deixar algumas palavras àqueles
que, ao longo deste demorado e difícil percurso, constituíram, cada um a sua maneira, as
condições materiais de possibilidade do mesmo.
Assim, começo por agradecer à professora Filipa Afonso que entusiasmadamente
aceitou orientar esta tese. Serei sempre grato pela sua total disponibilidade, pela sua muito
rigorosa leitura das várias formulações desta tese, pelas enriquecedoras sugestões que
robusteceram o texto e, por fim, pelas inúmeras amigáveis conversas que impulsionaram,
nos momentos mais difíceis, o andamento da escrita.
Um incomensurável agradecimento ao José Barata-Moura. O título de professor,
parece-me diminuir a grandeza do, porventura, o maior filósofo português de todos os
tempos e, com certeza, um dos, senão o, maior filósofo da actualidade. Como ele próprio
nos disse numa aula, cada época demora a perceber os génios que tem diante de si. Penso
ser este exactamente o seu caso. Com as portas do seu escritório sempre abertas, com a
sua poltrona sempre desejosa de receber um convidado, recebeu-me, sempre que
necessário, com os braços abertos e uma palavra amiga. A tudo aquilo que fez por mim,
tanto no que diz respeito a presente tese, como no que diz respeito a minha formação
enquanto filósofo, um eterno obrigado.
Aos meus amigos, Sara Romão, Afonso Andrade e Luís Martinho que ao longo
destes anos, com infinita paciência, ouviram-me falar sobre o “meu amigo” Nicolau de
Cusa, ajudando-me a esclarecer ideias e posições e, espero eu, aproveitando também os
meus devaneios para reter alguma coisa da sua obra.
À minha família,
Aos meus pais, pelo incondicional apoio oferecido desde o início desta caminhada
pela Filosofia. Com esta tese espero poder retribuir em palavras todo o esforço deles ao
longo destes anos, pois mais que tudo, são eles que representam a verdadeira condição
material do meu percurso.
Ao meu irmão, pelas conversas filosóficas que tivemos e especialmente pelas suas
perguntas simples que, por vezes, me fizeram entender que não tinha entendido nada.
À minha avó, pelas conversas diárias que, apesar de virtualmente realizadas,
representaram sempre um momento de tranquilidade no meio das turbulências da
investigação.
À minha Sara, que pacientemente atorou as minhas insónias, os meus maus dias,
os meus monólogos intermináveis acerca da dialéctica à hora de jantar e todas as outras
coisas que ela bem sabe. Muito e para sempre.
Por fim, uma pequena homenagem aos meus três amigos que, ao longo desta
jornada, partiram para sítios melhores que este: N, M e, principalmente, o meu eterno
camarada, Aztec.
NOTA ACERCA DAS TRADUÇÕES

As traduções que foram feitas ao longo da presente tese, tanto de latim, como de
inglês, espanhol, italiano e romeno são minhas.

No caso das obras originais de Nicolau de Cusa, procurei sempre cruzar as


traduções inglesa, portuguesa e romena entre si de modo a obter o mais fiel resultado.
Introdução

Toda a jornada venatória demanda uma preparação prévia: um mapeamento da


zona que se pretende ocupar, a determinação do alvo a abater e, por fim, uma estratégia
de ataque.
O mapeamento da zona de caça deve ser rigorosamente feito de modo a conhecer
todos os recantos e possíveis perigos que podem constituir obstáculos na execução do
plano.
Assim sendo, para nós, caçadores da sabedoria (1) e, nomeadamente, da sabedoria
que Nicolau de Cusa nos procura transmitir, o mapeamento da zona de combate passou
pela leitura e pelo estudo da obra completa do autor. Um estudo que nos permitiu
sustentar, com total segurança e certeza (subjectivas), a nossa tese e, por conseguinte,
atingir a meta proposta.
Permite-nos igualmente sustentar que, ao longo da sua obra, Nicolau de Cusa não
opera nenhuma mudança radical no conteúdo das suas posições. Aquilo que muda é
apenas a forma de apresentação desse mesmo conteúdo. Mais concretamente, a alteração
dá-se ao nível das diferentes ferramentas conceptuais, mais precisamente, dos diferentes
«nomes divinos», através das quais, nesta incansável busca de expressão e compreensão
intelectual (2) de aquilo que é, o cardeal cusano emprega de modo a realçar uma ou outra
vertente, um ou outro atributo do Absoluto.

(1) Cf, VS, I, onde Nicolau de Cusa chama o filosofar uma «caça da sabedoria» sendo
implicitamente os filósofos os «caçadores da sabedoria».
(2) É muito importante, de modo a perceber com profundeza o pensamento do cusano (e de maneira
a surpreender as leituras menos rigorosas feitas por vários comentadores devido a incompreensão desta
distinção, como será possível ver nas páginas seguintes.), esclarecer desde já a distinção entre o
conhecimento intelectual e a visão intelectual ou, se quisermos, entre o conceber de deus e o ver de deus.
O conhecimento intelectual representa o nível mais elevado do conhecimento conceptual. Ao
contrário do conhecimento racional — que formula os seus conceitos partindo do plano sensível, com base
no princípio da não-contradição através do qual consegue distinguir as diferentes coisas sensíveis que, na
experiência sensível se nos deparam e, devido ao qual, é incapaz de superar as contradições das quais dá
conta neste processo —, o conhecimento intelectual, livre da influência do sensível, formula os seus
conceitos a partir de si próprio. É assim que, pelo conhecimento intelectual, se afirma de deus que é uno,
que é o todo, que é a igualdade ou a verdade. A filosofia situa-se neste plano. Trata-se de um conhecimento
conceptual de aquilo que é.
Por outro lado, a visão intelectual é a apreensão de deus enquanto infinito e, por conseguinte,
enquanto inapreensível. É a visão intelectual que coloca as bases da docta ignorantia, pois é por intermédio
dela que compreendemos que nada podemos compreende acerca do Absoluto, uma vez que todo o
conhecimento se torna limitativo perante aquilo que é infinito.
Penso que o seguinte trecho de De apice theoriae resume perfeitamente esta distinção: «Mas o
Poder em si é visto de maneira mais verdadeira acima de todo o poder cognitivo — visto, todavia, por meio
do poder inteligível —, quando é visto exceder toda a capacidade do poder inteligível. Aquilo que o
intelecto apreende, entende. Portanto, quando a mente, pelo seu poder, vê que o próprio poder, não pode
ser apreendido devido a sua excelência, então por meio desta visão, vê para além da sua capacidade […]

1
Assim, a leitura e interpretação hermenêutica destas obras permitiu-nos não
apenas sustentar uma linearidade no e do pensamento de Nicolau de Cusa, mas também,
uma homogeneidade, na medida em que foi possível conciliar as aparentes teses
contraditórias com as quais, ao longo das páginas, nos fomos confrontando, levando a
cabo o conselho do próprio cardeal alemão: «em quaisquer estudos dos livros, toma como
a tua tarefa principal atingir uma interpretação das palavras que está perto da mente do
escritor e facilmente apreenderás todas as coisas e harmonizarás os escritos que te
pareciam contradizer[em-se]» (3).

Todo este esforço e toda esta exigência têm o objectivo de mostrar o modo como
Nicolau de Cusa, a partir de um patamar ontológico, pensa a unidade dialéctica do todo.
Isto é, mostrar como, para Nicolau de Cusa, o real é pensado nos termos de uma
totalidade, uma totalidade que dialecticamente se vai manifestando e mantendo a sua
identidade na diferença, a sua unidade na multiplicidade. Podemos colocar o problema
noutros termos e afirmar que aquilo que está em jogo é descortinar o panteísmo dialéctico
expresso por Nicolau de Cusa ao longo das suas obras.
De modo a evitar possíveis desentendimentos há que esclarecer, desde já, os
conceitos de «dialéctica» e «panteísmo» que ao longo deste escrito irão ser usados.
Utilizar uma definição de manual, pelo menos no caso da dialéctica, seria redutor
e, até mesmo, sem sentido. As definições encontradas num manual, num dicionário
filosófica, numa enciclopédia, são meros resumos de vários empregos do termo,
historicamente analisados. Desde Platão até Marx encontramos uma infinita enumeração
de sentidos. Porém, escolher uma definição e aplicar, sem mais, ao pensamento cusano,
é muito pouco rigoroso. Afirmar que aquilo que está em jogo, no caso de Nicolau de Cusa,
é aquele movimento contraditório e aquela unidade dos opostos que pode se encontrada,
categorialmente determinada e doutrinariamente cristalizada, em Hegel, seria pôr
palavras a mais na boca do cardeal cusano. As categorias cunhadas e todo o

Portanto, o poder de ver da mente excede o seu poder de compreender» — «Sed in se posse ipsum supra
omnem potentiam cognitivam, medio tamen intelligibilis posse, videtur verius, quando videtur excellere
omnem vim capacitatis intelligibilis posse. Id quod intellectus capit intelligit. Quando igitur mens in posse
suo videt posse ipsum ob suam excellentiam capi non posse, tunc visu supra suam capacitatem videt […].
Posse igitur videre mentis excellit posse comprehendere» AP, 10. A visão intelectual ultrapassa o poder
cognitivo conceptual do próprio intelecto, indo para além da sua capacidade, e vendo que o Absoluto não
pode ser visto, entende que não se pode entender.
(3) «Et ad hoc in omni studio librorum principalem operam adhibeas, ut interpretationem
vocabulorum iuxta mentem scribentis attingas, et cuncta facile apprehendes scripturasque concordabis,
quas sibi contradicere putabas», COM, X, 28.

2
desenvolvimento levado a cabo por Hegel são, a meu ver, muito mais profundas e muito
mais estruturadas do que aquilo que podemos encontrar em Nicolau de Cusa. No entanto,
apontar esta similitude entre ambos não seria um completo disparate.
De facto, aquilo que encontramos em Nicolau de Cusa é:
por um lado, o esforço de explicar o movimento dialéctico, isto é, o movimento,
de um determinado modo de ser, para um outro, levado a cabo por meio da negação, tanto
ao nível do Absoluto, como ao nível dos entes finitos. Um movimento de si para si mesmo
por meio do outro.
por outro lado, a constante preocupação em realçar a unidade dialéctica do todo.
Uma unidade que, simultaneamente, é tudo aquilo que pode ser, não se podendo
identificar em absoluto com aquilo que é. Uma identidade relativa entre aquilo que é e
aquilo que existe, sendo tudo aquilo que existe, aquilo que é, sem, todavia, ser aquilo que
é, tudo aquilo que existe.
Esta divisão não aponta para «duas dialécticas». Nem para dois modos diferentes
de ver a dialéctica. A análise deste conceito impõe tal divisão (que, num contexto mais
alargado e num plano ontológico diferente, se poderia estender em outras direcções,
nomeadamente, aos vários patamares onde se encontra este movimento e esta unidade
dialéctica: ontológico, epistemológico e prático). Porém, aquilo que verdadeiramente está
em causa é um movimento uno, um movimento dialéctico da própria unidade dialéctica.
Quanto ao panteísmo, a tarefa nos é facilitada pelas várias definições abrangentes
que podemos encontrar em várias fontes secundárias.
Ao esclarecimento do conceito de panteísmo julgo ser necessário — de modo a
clarificar a escolha deste conceito em detrimento de outros, mas também para evitar
possíveis contraposições a esta minha escolha — acrescentar o esclarecimento do
conceito de «panenteísmo».
Assim, começando pelo panteísmo, devemos, primeiramente, ir à etimologia da
palavra. Panteísmo é um vocábulo composto por dois termos gregos: pan (tudo) e theos
(deus). Apenas pela etimologia podemos apreender o significado do conceito: tudo é
deus; deus é tudo aquilo que existe ou há uma identidade entre deus e mundo (4).

(4) Na enciclopédia Verbo a definição que nos é oferecida é a seguinte: «De παν-θεός, e que quer
dizer tudo é Deus», p.1326, entrada «panteísmo». Em The cambridge dictionary of philosophy a definição
apresentada é a seguinte: «panteísmo, a visão de que Deus é idêntico com tudo» — «pantheism, the view
that God is identical with everything», p.556. Na Standford Encyclopedia of Phislosophy deparamo-nos
com uma definição semelhante: no seu sentido mais geral, panteísmo pode ser entendido positivamente
enquanto a visão de que Deus é idêntico com o cosmos, a visão de que não há nada fora de Deus, ou
negativamente como a rejeição de qualquer visão que considera Deus como distincto do universo» —«At

3
Chamo a atenção para o facto de tudo ser deus não querer dizer que cada um dos
entes é um deus, mas sim, que tudo aquilo que é e pode ser — na sua singularidade e no
seu todo —, é deus.
Repare-se igualmente que esta definição não aponta para uma identidade absoluta
entre deus e mundo, para uma identidade pensada em termos de mesmidade. Esta
observação será uma mais-valia na compreensão do panteísmo dialéctico proposto por
Nicolau de Cusa.
No que diz respeito ao conceito de «panenteísmo», derivado do grego πᾶν-ἐν-
Θεός, isto é, tudo em deus, aponta para o facto de tudo estar em deus, sendo deus muito
mais do que aquilo que está nele, nomeadamente o universo.
Torna-se evidente, uma vez posta a definição de panenteísmo, que este conceito
fica aquém da doutrina do cusano, uma vez que, Nicolau de Cusa, recorrendo aos
conceitos de complicatio e explicatio afirma que tudo está em deus, mas também, que
deus está em tudo. O panenteísmo responderá, deste modo, apenas à uma parte do
problema.
Este esclarecimento deve-se mais ao diálogo que estabeleço com vários
especialistas, do que propriamente uma opção própria. Da minha parte, penso que é mais
importante perceber aquilo que Nicolau de Cusa apresenta e o modo de pensar empregue
para tal do que propriamente a rotulagem que de fora se aplica a sua filosofia.
Expomos o mapeamento da zona de combate. Identificamos o objectivo do
mesmo. Resta-nos agora expor, passo a passo, a estratégia segundo a qual o objectivo será
atacado.
Assim, a nossa jornada divide-se, desde logo, em duas grandes partes.
A primeira parte do escrito procurará, por intermédio de vários núcleos temáticos,
assinalar a necessidade da unidade e identidade ontológicas entre deus e mundo.
A segunda parte dirá respeito ao modo como esta identidade entre deus e mundo
é pensada por Nicolau de Cusa, encontrando-se no último capítulo deste escrito o ponto
mais alto da investigação.

Qualquer livro tem duas grandes audiências: aqueles que conhecem o tema e
aqueles que não.

its most general, pantheism may be understood positively as the view that God is identical with the cosmos,
the view that there exists nothing which is outside of God, or else negatively as the rejection of any view
that considers God as distinct from the universe»

4
Quanto aos últimos, sugeriria, antes da leitura deste escrito, a leitura prévia das
obras de Nicolau de Cusa. Uma primeira leitura da própria obra, não contaminada pelas
posições de ninguém, é imprescindível para a formação de uma posição própria. Apenas
após este duro trabalho deve o leitor ler este escrito e, com base na sua própria
interpretação de Nicolau de Cusa, avaliar a sua pertinência.
Os conhecedores do pensamento de Nicolau de Cusa e, especialmente, aqueles
leitores que sustentam uma tese contrária àquela que aqui proponho, são mais que
convidados a apontar as falhas deste escrito. Se esta tese não levar o leitor a ponderar,
pelo menos um instante, a sua posição quanto ao pensamento de Nicolau de Cusa, então
este escrito não alcançou o seu objectivo.
Dito isto, comecemos então.

5
PARTE I—ACERCA DA NECESSIDADE DA IDENTIDADE ENTRE DEUS E
MUNDO

1. Que é aquilo que é? O ser infinito.

Que é aquilo que é?


A questão é antiga.
Desde a Antiguidade Grega até aos nossos dias, naquilo que diz respeito a um solo
ontológico e metafísico de interrogação, a pergunta por aquilo que é afigura-se-nos como
estruturante. E isto na medida em que sublinha uma problemática comum: a interrogação
pelo ser, pela existência absoluta, por aquilo que verdadeiramente é e sub-jaz à toda a
multiplicidade diversa, conferindo-lhe, desta maneira, unidade. Perguntar por aquilo que
é significa perguntar pela realidade última das coisas.
Em torno desta problemática, o pensar, nesta demanda de elucidação do problema
mais profundo da filosofia, foi girando e abrindo caminhos que acabaram por desaguar
numa pluralidade de respostas que doutrinariamente se foram cristalizando. Desde a
Φύσις dos jónicos e as posições materialistas dos pré-socráticos, às Ideias platónicas e à
οὐσία aristotélica, do Uno neoplatónico e do deus da teologia, passando, por exemplo,
pela Substância spinozana, pelo Eu fichteano, o Espírito hegeliano e a matéria de Marx,
Engels, Lenin e Barata-Moura, todos eles procuram, por nomes diferentes, em registos
ontológicos distintos, por mecanismos e ferramentas operacionais diversos, pensar sobre
e responder à mesma problemática (5).

De modo a surpreender esta problemática filosófica comum e, de certo modo,


levar a cabo aquilo que se pretende ser um estudo filosófico rigoroso, é necessário colocar
de lado as roupagens sob as quais, imediatamente, estas teorias se nos apresentam.
No nosso caso concreto, aquilo que está em jogo é o vocabulário teológico que
reveste as posições filosóficas de Nicolau de Cusa. Com isto não pretendo anular o
quadro teológico-cristão de dentro do qual o pensamento de Nicolau de Cusa se
desenvolve, mas sim, suspendê-lo de modo a compreender, nas suas mais profundas

(5) A problemática ser comum não significa que as respostas se equivalem ou que são conciliáveis.
O tabuleiro ontológico em que a problemática assenta, ganha raízes e se desenvolve é crucial para aquilo
que é, a meu ver, a grande divisão de toda a filosofia em idealismo e materialismo. E mesmo num campo
ontológico comum — tanto do idealismo, como do materialismo —, as diferenças constitutivas de cada
teoria impedem um tal anulamento da diversidade.

6
implicações, as suas posições filosóficas — sem os pré-conceitos atrelados à doutrina
cristã que podem cegar certas leituras, desviando-as, por causas exteriores à obra em
análise, daquilo que é o verdadeiro alcance filosófico da mesma (6).
Este trabalho é indispensável pois, quando entendidas as obras com critério, na
maioria dos casos, o seu enquadramento e registo teológico esbate-se, revelando um
profundíssimo alcance filosófico e a possibilidade de abertura a interpretações que, tendo
em vista os autores e o âmbito do desenvolvimento da problemática, nos podem
surpreender.
Quanto a estes pontos, a posição de Barata-Moura parece-me lapidar:

«A referência tutelar à divindade poderia, na generalidade destes contextos de


problematização, ser sem dificuldade substituída pela referência ao Todo englobante e ao
Uno. Em todas estas matérias, a determinação teológica afecta, de facto, mais os
elementos lexicais, a maneira de expressar, e o horizonte temático de enquadramento, do
que propriamente a substância de aquilo que (filosoficamente) é pensado, do que os
problemas que (efectivamente) são levantados e que se procura enfrentar.
O leitor e o estudioso do pensamento destes autores têm, pois, de ser capazes de levar a
cabo e de detectar este desdobramento de planos de análise, o que corresponde, de resto,
à passagem de um ponto de vista meramente exterior e formal sobre os textos em causa a
uma perspectiva em que a sua estrutura e significação íntimas, de origem sistemática ou
de resposta a determinados problemas, possam ser postas em destaque.
Por outro lado, sem a realização desta operação metodológica — em simultâneo, de des-
centramento e re-centramento —, torna-se, por vezes, difícil chegarmo-nos a aperceber
da riqueza de conteúdo e de implicações de um texto filosófico» (7)

Há que proceder a um afastamento metodológico, sem perder de vista, todavia,


aquele que é o contexto originário da perspectiva em causa.
Usando este apontamento como bússola na nossa investigação, entremos no
conteúdo concreto do pensamento de Nicolau de Cusa, começando por «enfrentar a
natureza da própria maximidade» (8).

Ainda que, nas palavras do cardeal cusano, se deva observar «de que modo toda a
teologia [é] circular e está posta em círculo, de tal modo que os termos que exprimem os

(6) Sem pôr em questão a fé de Nicolau de Cusa — que me parece, de facto, inabalável —, não
posso deixar de apontar como o cardeal cusano, naquilo que diz respeito a uma investigação filosófica
daquilo que deus representa, opera ele próprio esse afastamento, por exemplo, quando, de certo modo,
prefere o nome de «máximo» a «deus», procurando assim aproximar-se ainda mais daquilo que
verdadeiramente está em causa: «Esse máximo, que na fé de todos os povos se crê, sem dúvida, ser deus
[…]» — «Hoc maximum, quod et deus omnium nationum fide indubie creditur», DI, I, II, 5.
(7) BARATA-MOURA, José, Totalidade e contradição. Acerca da dialéctica (doravante:
Totalidade e contradição), pp.45-46.
(8) «ipsius maximitatis naturam agreddi» DI, I, II, 5.

7
atributos se verificam circularmente uns aos outros […]» (9), há que destacar também o
facto de toda a circularidade depender, necessariamente, de um centro em torno do qual
se construa.
Assim, a obra de Nicolau de Cusa — singular manifestação de uma incessante e
incansável procura, por intermédio de uma pluralidade de «nomes divinos» que ao longo
da obra se vão apurando de modo a pensar e exprimir, numa linguagem finita que é a
humana, aquilo que é —, encontra no ser infinito o seu centro. De salientar que o infinito
não representa um atributo do ser; não é seu predicado. O verdadeiro ser é o próprio
infinito; é o Absoluto.
Ora, como a circularidade traz consigo a indiferença do ponto de partida (uma vez
que, de qualquer das formas, acabamos sempre por dar a volta) comecemos a nossa
investigação da resposta cusana à pergunta por aquilo que é pela famosa descrição do
Máximo:

«Chamo máximo àquilo relativamente ao qual nada pode ser maior. Mas a plenitude
[abundantia] convém ao uno. Coincide, portanto, a unidade, que é também a entidade,
com a maximidade, pois se uma tal unidade é desligada universalmente de qualquer
referência e contracção, então, porque é a maximidade absoluta, é claro que nada se lhe
opõe. Portanto, o máximo absoluto é o uno absoluto porque é tudo, e nele [está] tudo
porque [é] o máximo. E porque nada se lhe opõe, com ele coincide simultaneamente o
mínimo» (10)

Paremos a caravana da investigação na estação marcada pela primeira frase. O


Máximo, diz-nos Nicolau de Cusa, é «aquilo relativamente ao qual nada pode ser maior».
A afirmação, na imediata aparência que reveste, parece não colocar nenhum problema.
Porém, assim que o interrogar crítico começa a pôr-se em marcha, toda uma série de
questões começa a surgir.
Antes de mais, a pergunta pelo significado desta definição — isto é, em que
sentido, o Máximo é aquilo relativamente ao qual nada pode ser maior? — penso ter toda
a pertinência.

(9) DI, I, XXI, 66. «quomodo omnis teologia circularis et in circulo posita exsistit, adeo etiam quod
vocabula attributorum de se invicem verificentur circulariter»
(10) «Maximum autem hoc dico, quo nihil maius esse potest. Abundantia vero uni convenit.
Coincidit itaque maximitati unitas, quae est et entitas, quod, si ipsa talis unitas ab omni respectu et
contractione universaliter est absoluta, nihil sibi opponi manifestum est, cum sit maximitas absoluta.
Maximum itaque absoluto unum est quod est omnia; in quo omnia, quia maximum. Et quoniam nihil sibi
opponitur, secum simul coincidit minimum» DI, I, II, 5.

8
Ora, uma primeira resposta será de a que esta definição aponta precisamente para
o facto de o Máximo ser o infinito, como algumas linhas mais adiante o próprio Nicolau
de Cusa esclarece: «Mas o máximo como tal é, necessariamente, infinito» 11. Todavia,
esta resposta é insatisfatória dado o leque de possíveis leituras que deixa em aberto quanto
àquilo que pelo infinito se pode entender.
Assim, por exemplo, o Máximo não é o infinito, não é aquilo relativamente ao
qual nada pode ser maior, no sentido de uma infinita extensão. Também não o é no sentido
de uma infinita sequência de diferentes elementos (quanto à este ponto, acrescentaremos
algumas considerações na segunda parte deste escrito).
O problema que em torno do infinito gravita é colocado por Nicolau de Cusa num
profundo patamar ontológico, estabelecendo a raiz do infinito numa identidade dialéctica:
o Máximo é o Infinito na medida em que é o Absoluto, na medida em que é tudo aquilo
que é possível ser. Nas palavras do cardeal alemão: «E porque [é] absoluto, é então em
acto todo o ser possível»12

Será precisamente esta concepção do infinito que estará na base da famosa


doutrina cusana da coincidentia oppositorum. A indicação é esboçada no trecho
supracitado, mas o seu núcleo é assente na já celebre passagem do capítulo IV da De
docta ignorantia:

«E tal como maior não pode haver, pela mesma razão [não pode haver] mais pequeno
porque é tudo aquilo que pode ser. Mas o mínimo é aquilo [em relação ao qual nada] pode
ser mais pequeno. E porque o máximo é deste modo, é claro que o mínimo coincide com
o máximo» (13)

Observamos que a razão indicada por Nicolau de Cusa neste trecho como
constituindo o fundamento da coincidência do Máximo e do Mínimo é a razão pela qual
não pode haver nada maior do que o Máximo, que corresponde ao facto de ele ser tudo
aquilo que é possível ser. Ora, sendo tudo o que pode ser, é claro que o Máximo é também
o Mínimo.

(11) «Maximum vero tale necessario est infinitum» DI, I, III, 9.


(12) «Et quia absolutum, tunc est actu omne possibile esse». DI, I, II, 5.
(13) «Et sicut non potest esse maius, eadem ratione nec minus, cum sit omne id quod esse
potest.Minimum autem est, quo minus esse non potest. Et quoniam maximum est huiusmodi, manifestum
est minimum máximo coincidere», DI, I, IV, 11.

9
Pondo em marcha a caravana da investigação, passemos para as seguintes
afirmações de Nicolau de Cusa: a plenitude convém à unidade absoluta, sendo esta
unidade coincidente com o Ser.
Começando pelo segundo ponto, a identificação do Uno com o Ser estabelecida
por Nicolau de Cusa tem por base uma suposta filiação etimológica do vocábulo latino
unitas com o vocábulo grego ὠντας. Segundo esta via, conclui o autor de De docta
ignorantia que: «A unidade diz-se como ὠντας, a partir do grego ὠν, que em latim se diz
ens. E a unidade é como que [quasi] a entidade» (14).
Esta ideia ganha muito mais interesse quando ligada ao primeiro ponto: a
plenitude convém ao uno.
A plenitude que aqui está em causa é precisamente a noção de infinito pensado
enquanto ser tudo aquilo que pode ser, em outras palavras, do infinito pensado enquanto
Totalidade. Como o excerto citado nos mostra, para Nicolau de Cusa, este é o
denominador comum que possibilita a identificação entre o Máximo, a Unidade e o Ser:
todos são o mesmo por assinalarem, por vias diferentes, o facto de o Absoluto ser tudo
aquilo que pode ser, isto é, por ser o Todo.
Nicolau de Cusa remata o trecho que nos serve de base com uma formulação que
antecipa a já célebre parelha conceptual complicatio-explicatio — que nos diz que:
«Portanto, Deus, [enquanto] aquele que complica [complicans] é todas as coisas pelo
facto de todas as coisas [estarem] nele. Explicando, [deus] é todas as coisas pelo facto de
ele próprio [estar] em todas as coisas» (15) —, referindo que o Máximo é tudo (dado que
tudo está nele), bem como, está em tudo, (sendo aquilo que a coisa é). Este tema será
aprofundado na segunda parte deste escrito.
Do parágrafo inicialmente citado restam ainda duas ideias de extrema
importância. Por um lado, que o Absoluto, pelo facto de ser tudo aquilo que pode ser, está
desligado de qualquer referência e nada se lhe opõe ou, por outro lado, como também
menciona noutras passagens, nada há fora dele, teses que podem ser verificadas nos
seguintes trechos:

«Por essa razão [por ser infinito], nada é outro ou diverso ou adverso em relação a ti. Pois
a infinidade não é compatível com a alteridade, porque, uma vez que é a infinidade, nada

(14) «Unitas dicitur quase ὠντας ab ὠν Greco, quod Latine “ens” dicitur. E est unitas quasi entitas»,
DI, I, VIII, 22.
(15) «Deus ergo est omnia complicans in hoc, quod omnia in eo. Est omnia explicans in hoc, quod
ipse in omnibus» DI, II, III, 107.

10
há fora dela. Na verdade, a infinidade absoluta tudo inclui e tudo abarca. Assim, se fosse
infinidade e houvesse algo fora dela, não seria infinidade nem outra coisa qualquer» (16)

Mas também: «Por isso, nada é fora dela [da infinidade]. Portanto, a não ser que
incluísse em si todo o ser, a infinidade não seria infinidade» (17).
Não tem nenhuma referência, nada há exterior a ela, nada lhe é contra-posto, nada
é outro ou diverso em relação a ela porque, se assim fosse, conclui Nicolau de Cusa, a
infinidade não seria infinidade. A compreensão de tais afirmações, bem como das suas
implicações, torna-se imperativa para poder compreender, por fim, a conclusão do cardeal
cusano.
Assim, devemos começar por perguntar qual é o significado dessas afirmações.
Ora, afirmar a existência de um outro, diverso de e exterior ao Absoluto, posto enquanto
contra-posto ao mesmo, representando, por este motivo, uma referência, um relativo, um
par do Absoluto, significa postular a existência de uma alteridade ontologicamente
independente do Absoluto do ponto de vista do seu fundamento ôntico.
Isto é, afirma-se um outro ser existente por si, um outro Absoluto, um outro
infinito, o que acarreta consigo a consequência da instauração de um dualismo ontológico,
um dualismo das substâncias (18).
De que modo este dualismo coloca em perigo a concepção do Absoluto ou
infinito?
Pois bem, o infinito é infinito ou o Absoluto é Absoluto na medida em que é tudo
aquilo que pode ser. Admitir uma existência outra, diferente do Absoluto ou infinito
pressupõe a implícita admissão de que o inicial Absoluto ou infinito não é tudo aquilo
que pode ser, visto que haveria algo que não poderia ser (precisamente por esta alteridade
«segunda» possuir uma existência independente dele). Assim, colocar-se-iam de pé dois

(16) «Ideo nihil est tibi alterum vel diversum vel adversum. Infinitas enim non compatitur secum
alteritatem, quia, cum sit infinitas, nihil est extra eam. Omnia enim includit et omnia ambit infinitas
absoluta. Ideo, quando foret infinitas et aliud extra ipsam, non foret infinitas neque aliud» VD, XIII, 54.
(17) «Nihil igitur est extra eam. Nisi enim omne esse includeret in se infinitas, non esset infinitas»,
VD, XIII, 55.
(18) São essas as consequências com as quais tem de lidar aquele que, ao mesmo tempo que
defende, no pensamento de Nicolau de Cusa, a imanência de deus no mundo, refere igualmente, como o
faz Eusebio Colomer, uma polaridade entre deus e mundo pela afirmação da exterioridade, entenda-se,
transcendência, de deus face ao mundo. Nas palavras de Eusebio Colomer: «debaixo do conceito de
universo compendia ele [Nicolau de Cusa] tudo o que não é Deus. O universo é portanto o «tudo», como
explícita exclusão do Único», COLOMER, Eusebio, Nicolau de Cusa (1401-1464), p.50. De facto, algumas
páginas adiante, ao procurar explicar a relação entre deus, mundo e homem, o autor acaba por referir
explicitamente esta distância diametral entre deus e mundo: «Se o mundo é compreendido por Nicolau de
Cusa na sua relação de polaridade com Deus, o homem é-o na sua dupla polaridade com Deus e com o
universo», ibidem, p.53.

11
absolutos que acabariam por se relativizar um ao outro. Dois infinitos que acabariam por
se limitar, finitizar mutuamente. Como, aliás, o próprio Nicolau de Cusa conclui ao
afirmar que «admito, igualmente, este ponto uma vez que [se houvesse duas coisas
alegadamente infinitas] uma seria finita [finitum] em relação a outra» (19). Assim, deitar-
se-ia abaixo toda a concepção do Absoluto.
Esta é a razão pela qual Nicolau de Cusa nega qualquer alteridade existente fora
do Absoluto ou, o que é o mesmo, pela qual nega a exclusão de qualquer coisa do infinito.
Atendendo ao passo com que o autor da De docta ignorantia fecha o trecho inicialmente
referido, observamos que deus é tudo precisamente pelo facto de tudo estar nele enquanto
ele próprio. Assim, uma existência fora do Absoluto não significaria apenas uma
alteridade situada numa exterioridade alheia a este último, mas também, (e, na verdade,
sobretudo), uma existência colocada num patamar ontológico diferente.
Colocando o problema em termos positivos, é necessário, pelas razões acima
esboçadas, que tudo seja no Absoluto e, neste sentido, tudo seja o próprio Absoluto (20);
é necessário que, para o espanto de muitos, a criatura seja o próprio deus, o infinito seja
o próprio finito. Se assim não fosse, se deus fosse absolutamente transcendente a criatura,
a própria criatura, ainda que finita, seria transformada num absoluto, estaria em pé de
igualdade com deus, seria, por assim dizer, transformada num outro deus.
Se o objectivo é pensar o Absoluto, o infinito, então deus e criatura, infinito e
finito têm, necessariamente, de coincidir.

Esta necessidade da coincidência entre infinito e finito é sublinhada igualmente


por meio dos argumentos que têm em mira destruir as concepções unilaterais, absolutas,
isto é, não-dialécticas, do Absoluto.
Quanto à posição de Nicolau de Cusa face a estas concepções unilaterais, é
ilustrativa a passagem do capítulo XXV do livro I da De docta ignorantia dedicado à
análise do modo como os gentios pensavam deus:

«Os antigos pagãos riam-se dos judeus que adoravam um deus único e infinito que
ignoravam. Todavia, era a ele que também eles veneravam, mas nas suas explicações, ou
seja, onde viam as suas obras divinas. Foi esta, então a diferença entre os homens: todos
acreditavam num deus uno e máximo, maior do que o qual nada pode haver; mas alguns,

(19) «Et hoc ipsum fateor, quoniam alterum foret in altero finitum», DM, II, 60.
(20) O leitor perspicaz de certeza antecipou o bicudo problema que esta afirmação traz consigo: se
isto é assim, então, a própria explicação do universo dá-se pelo próprio deus em si mesmo. Ou seja, não há
nenhuma ex-plicação para fora de deus. Atendemos este problema no seu devido lugar, deixando-o, por
enquanto, sob a presente forma de apontamento.

12
como os judeus e os sissénios, veneravam-no na sua unidade simplicíssima, como
complicação de todas as coisas; Outros, porém, veneravam-no nas coisas em que viam
uma explicação da divindade, tomando o que era conhecido pelos sentidos como guia
para a causa e para o princípio. E por esta última via foram seduzidos os simples do povo,
que não usaram a explicação como imagem, mas como verdade. Deste modo, a idolatria
é introduzida no vulgo […]» (21)

De um modo geral, as abordagens unilaterais da temática do Absoluto pecam —


ainda que o propósito de tal tratamento e o caminho para lá chegarem sejam diferentes —
, pela mesma razão: a redução do Absoluto, do infinito, ao finito.
Centrando-nos na passagem supracitada, utilizando o par categorial complicatio—
explicatio de modo a assinalar as duas maneiras unilaterais de considerar o Absoluto, por
um lado, tomando os judeus e os «sissénios» (22) como exemplo, Nicolau de Cusa destaca
a consideração do Absoluto apenas enquanto complicatio, isto é, apenas enquanto
«unidade simplicíssima» de todas as coisas, deixando-se de lado a multiplicidade, os entes
finitos determinados.
Por outro lado, desta vez tomando os pagãos como exemplo, Nicolau de Cusa
sublinha a segunda consideração unilateral: a veneração de deus apenas enquanto
explicatio, enquanto multiplicidade contraidamente explicada, enquanto criatura;
consideração essa que, entre «os simples do povo» instaurou a idolatria.

Neste passo julgo ser necessário chamar a atenção para um ponto crucial no que
diz respeito ao futuro desenvolvimento deste trabalho e de qualquer defesa da identidade
entre Absoluto e os entes determinados, nos escritos cusanos.
A meu ver, para Nicolau de Cusa, a idolatria possui um sentido muito preciso e
muito estrito. A idolatria não visa, de uma maneira geral, toda e qualquer identificação
operada entre deus e a criatura. A idolatria representa a consideração do Absoluto apenas
como explicatio, ou seja, representa a identificação unilateral, absoluta, porque não

(21) Deridebant veteres pagani Iudaeos, qui deum unum infinitum quem ignorabant adorarunt.
Quem tamen ipsi in explicationibus venerabantur, ipsum scilicet ibi venerantes, ubi divina sua opera
conspiciebant. Et ista inter omnes homines differentia tunc fuit, ut omnes deum unum maximum, quo maius
esse non posset, crederent. Quem alii, ut Iudaei et Sissennii, in sua simplicíssima unitate, ut est rerum
omnium complicatio, colebant, alii vero in his colebant, ubi explicationem divinitas reperiebant, recipiendo
notum sensibiliter pro manuductione ad causam et principium. Et in hac ultima via seducti sunt símplices
populares, qui non sunt usi explicatione ut imagine, sed ut veritate. Ex qua re idolatria introducta est in
vulgum […]», DI, I, XXV, 84.
(22) Trata-se, na verdade, do grupo judaico dos essénios. Ao que tudo indica, Nicolau de Cusa, ou
a fonte de onde retirou esta informação, terá trocado a obra de Marcus Terentius Varro Antiquitates com a
obra de Flavius Josephus Antiquitates Iudaicae. Cf., JOÃO MARIA ANDRÉ, nota de página 13 da tradução
portuguesa de De Docta Ignorantia, mas também, HOPKINS, Jasper, nota 38 da tradução inglesa da mesma
obra.

13
dialéctica, do infinito com o finito; representa o confinamento do Absoluto à mera
determinação finita, do ser ao existente, daquilo que é tudo o que pode ser, àquilo que é
(23).
Do lado dos primeiros — na tentativa de defender a «verdadeira doutrina cristã»
(24) contra «as posições heréticas» (25) defendidas no livro De Docta Ignorantia pelo

(23) Será precisamente em torno desta questão, de modo a evitar uma queda na idolatria, que nasce
a necessidade de uma teologia negativa que clarifique e regule as posições da teologia afirmativa. Situando-
se no plano racional e tendo como ponto de partida as criaturas — «É por isso que qualquer coisa que se
diga sobre deus na teologia afirmativa funda-se na consideração das criaturas, mesmo no que diz respeito
aos santíssimos nomes em que se escondem os maiores mistérios do conhecimento divino» —, Quare
quidquid per theologiam affirmationis de deo dicitur, in respectu creaturarum fundatur, etiam quoad illa
sanctissima nomina, in quibus maxima latent mysteria cognitionis divinae», DI, I, XXIV, 82. —, a teologia
afirmativa busca, por meio de nomes e afirmações, positivas e determinantes, pensar aquilo que deus é.
Pelo facto de os nomes «sensíveis» facilitarem, por um lado, a explicação e a nomeação, numa
linguagem acessível a todos os homens, daquilo que, na sua verdadeira natureza, é inexplicável e
inominável e, por outro lado, a própria adesão dos homens aos ensinamentos proferidos pelos mais sábios
(esta é a leitura que Nicolau de Cusa faz de certas afirmações de Moisés relativas a criação do mundo. Veja-
se, por exemplo, DG, II, 159.), numa só palavra, por permitirem uma fácil difusão e apreensão das doutrinas
teológicas, a teologia afirmativa situa-se na base de todo o culto e louvor de deus: «Porque o culto de deus,
que deve ser adorado [adorandus] “em espírito e em verdade”, se funda necessariamente em proposições
positivas que o afirmam, toda a religião ascende necessariamente ao seu culto por intermédio da teologia
afirmativa […]» — «Quoniam autem cultura dei, qui adorandus est «in spiritu et veritate», necessario se
fundat in positivis deum affirmantibus, hinc omnis religio in sua cultura necessario per theologiam
affirmativam ascendit», DI, I, XXVI, 86.
Não obstante esta vertente positiva, a teologia afirmativa não deixa de mostrar as suas lacunas,
nomeadamente no tocante à desadequação dos nomes à verdadeira natureza de deus e ao risco de idolatria
que lhe é inerente.
Quanto ao primeiro ponto, dada a imposição dos nomes por um movimento — regido pelo
princípio da não-contradição —, da razão — que, no quadro doutrinal do cardeal cusano, somente dá conta
dos contrários, não tendo a capacidade de os conciliar e, neste sentido, superar, cf. por exemplo DI, I, IV,
12, —, todos os nomes divinos não deixam de encontrar o seu oposto, o que entra directamente em conflito
com a concepção de deus enquanto Absoluto, enquanto infinito, enquanto coincidentia oppositorum.
No que toca ao segundo ponto, dado o uso de nomes «sensíveis» para descrever deus, Nicolau de
Cusa teme uma possível caída na idolatria ao ser louvada a coisa mesma em vez de deus. Como o próprio
descreve: «Portanto, idolatria, por meio do qual um louvor divino é dado a uma criatura» sendo
caracterizada como «a loucura de uma mente infirme, cega e seduzida [seductae mentis]» — «Idolatria
igitur, qua creaturae divinae laudes dantur, insania est infirmae, caecae et seductae mentis», VS, XIX, 54.
Por esta razão, «a teologia negativa é tão necessária à teologia positiva que sem ela deus não seria
adorado como infinito, mas antes como criatura» —, «Et ita teologia negationis adeo necessaria est quoad
aliam affirmationis, ut sine illa deus non coleretur ut deus infinitus, sed potius ut creatura», DI, XXVI, 86.
A teologia negativa procura superar o patamar positivo e determinante da teologia afirmativa e, neste
sentido, travar os possíveis deslizes por esta possibilitados em direcção à idolatria. Situada no plano
intelectual, a teologia negativa possui o papel de pensar, explicar e difundir a concepção de deus enquanto
infinito, uma vez que «e não se encontra em deus, segundo a teologia negativa, outro que o infinito» —,
«et non reperitur in deo secundum theologiam negationis aliud quam infinitas», DI, I, XXVI, 88 —
aproximando-se da sua verdadeira natureza.
(24) Wenck encara com frontalidade esta tarefa e determina desde logo este seu objectivo ao abrir
a sua De Ignota Litteratura: «Irei refutar certas afirmações da Docta Ignorantia — [refutá-las] como sendo
incompatíveis com a nossa fé, ofensivas para as mentes devotas, e afastando-se em vão da obediência a
Deus», WENCK, Johann, De Ignota Litteratura (doravante: IL), 19.
(25) Cf. ibidem, 32. Bem entendida esta acusação de heresia percebe-se que o seu alcance se estende
não apenas até a identidade estabelecida por Nicolau de Cusa entre deus e a criatura, mas também, para o
facto de Nicolau de Cusa não seguir os escritos sagrados, mas os princípios estabelecidos na De docta
ignorantia; um verdadeiro ataque ao pensar livre e um elogio da doutrinação.

14
«falso apóstolo» (26) Nicolau de Cusa —, encontra-se o seu contemporâneo Johann
Wenck.
Procurando desmascarar o panteísmo de Nicolau de Cusa fundado no princípio da
coincidentia oppositorum (27), que nega o princípio de toda a ciência e conhecimento (28)
— o princípio da não-contradição —, com base numa passagem da Bíblia, Wenck busca
mostrar como, segundo a Escritura, deus tem de ser considerado apenas como Absoluto,
completamente separado da criatura.
Toda a argumentação de Wenck constrói-se em torno do seguinte fragmento
bíblico: «Esvazia-te [vacate] e vê que eu sou deus» (29), onde «esvazia-te» significa
«[dirigir] a nossa visão para aquele que é verdadeiramente deus» (30), explicando que
aquilo que deve ser visto é a identidade de deus consigo mesmo e o seu estatuto totalmente
transcendente à criatura, como deixa bem patente ao escrever que: «aqui “eu” singulariza
e exclui abertamente toda a criatura da natureza divina — distinguindo deus de toda a
criatura, uma vez que deus é criador, não criatura» (31).
A resposta de Nicolau de Cusa a esta ofensiva de Wenck reveste-se de uma forma
subtil, ao mesmo tempo que revela uma maneira extremamente profunda de pensar este
problema.
Passadas por um pente finito, percebe-se que as respostas de Nicolau de Cusa às
várias críticas de Wenck — ao contrário daquilo que muitos dos intérpretes de Nicolau
de Cusa pensam, nomeadamente, que as suas respostas representam uma clara negação

(26) Ibidem, 41.


(27) «Agora, ele diz que a sua própria fundação é o seguinte [princípio]: a saber, de acordo com o
mais simples e mais abstracto entendimento todas as coisas são uma», ibidem, 22.
(28)«Além disto, tais ensinamentos como os de este autor destroem o princípio fundamental de
todo o conhecimento: isto é, o princípio de que é impossível ao mesmo tempo ser e não ser a mesma coisa,
[como lemos] na Metafísica IV», ibidem, 21-22. Sobre o mesmo ponto cf., também ibidem, 29.
A coincidentia oppositorum enquanto princípio interpretativo do Absoluto, não anula o princípio
da não-contradição (de facto, aqui está a demarcação feita por Nicolau de Cusa entre uma contradição
lógica e uma contradição ontológica). A validade deste último não só é mantida como é requerida no campo
racional das ciências naturais e matemáticas, bem como do conhecimento sensível. A condenação do
princípio da não-contradição por parte de Nicolau de Cusa visa tão só o seu uso no plano filosófico e
teológico, uma vez que não é capaz de dar conta da profunda natureza infinita do Absoluto. A seguinte
passagem da Apologia ilustra de forma nítida estas ideias: «Portanto, nem da coincidência dos opostos no
Máximo se segue este veneno de erro e falsidade, como o nosso adversário infere a saber: a destruição da
semente da ciência, do primeiro princípio [o princípio da não-contradição]. Pois aquele princípio é primeiro
com respeito ao raciocínio discursivo, mas nem por isso com respeito ao entendimento intuitivo» — «Nec
sequitur ex coincidentia etiam oppositorum in maximo hoc “venenum erroris et perfidiae”, scilicet
destructio seminis scientiarum, primi principii, ut impugnator elicit. Nam illud principium est quoad
rationem discurrentem primum, sed nequaquam quoad intellectum videntem», Ap, 28.
(29) WENCK, Johann, IL, 20, p.425.
(30) Ibidem, 20, p.426.
(31) Idem. Sobre a mesma ideia, confere-se ainda da mesma obra o parágrafo 21.

15
do panteísmo —, não negam, sem mais, a identidade entre deus e criatura. Aquilo que, de
facto, Nicolau de Cusa procura negar pelas suas respostas é a identidade absoluta,
imediata, entre o Absoluto e o finito — se quisermos, procura negar um panteísmo pobre,
um panteísmo em que a identidade é pensada em termos de mesmidade, em que A=A.
Pondo o problema nos termos contrários, o cardeal alemão esforça-se por pensar e
preservar uma identidade dialéctica entre Absoluto e finito.

Quanto à posição de Wenck, Nicolau de Cusa não hesita em caracterizá-la como


uma «visão bastante infantil»:

«Mas quando [Wenck] acrescenta que por meio do pronome “eu” o profeta singularizou
deus e o excluiu e distinguiu de toda a criatura — de onde diz que o seu propósito tem
sido consolidado], parece fundar a sua visão de maneira bastante infantil [pueriliter satis].
Pois ninguém foi alguma vez tão tolo [desipuit] para sustentar que deus, que forma todas
as coisas, é outro de que aquilo relativamente ao qual nada pode ser maior» (32)

A profundidade da resposta de Nicolau de Cusa pode ser surpreendida na


consequência que este retira da posição de Wenck.
Primeiro, repare-se que a ingenuidade da tese de Wenck, segundo Nicolau de
Cusa, reside na singularização, na absolutização de um lado da equação, nomeadamente,
de deus, do Absoluto, da unidade segundo a lógica que, infelizmente, ainda se encontra
muito difundida entre os amantes da sabedoria: a unidade é unidade apenas se não se
misturar com a multiplicidade (33).
A ingenuidade de tal tese consiste no facto de, ao operar tal absolutização de modo
a salvaguardar a unidade absoluta de uma possível mistura com a multiplicidade, Wenck
está, na verdade, a instaurar um dualismo das substâncias, na medida em que, ao
absolutizar o Absoluto, colocando-o numa relação diametral perante o múltiplo, deixa
implicitamente de «fora» o finito; por conseguinte, absolutiza-se o próprio finito o que,

(32) «Ubi autem adicit prophetam per pronomen “ego” singularizasse Deum et exclusisse et
distinxisse ab omni creatura, in quo ait propositum suum solidari, pueriliter satis se fundare videtur. Nemo
enim umquam adeo desipuit, ut deum aliud affirmaret quam id, quo maius concipi nequit, qui est formans
omnia», Ap, 8.
(33) A bofetada que Barata-Moura dá nestas posições merece toda a nossa atenção, pois revela um
profundo entendimento daquilo que, verdadeiramente, está em jogo: «Falar da unidade do real e da
totalidade que ele constitui implica, necessariamente, falar da multiplicidade que o habita e imediatamente
se nos revela, caso se não pretenda permanecer pelo plano abstracto das tentações logísticas de uma
imperturbável unidade monolítica desconhecedora de qualquer mudança, a qual, aliás, e de acordo com
essa pretensa “coerência”, acabaria por deitar irremediavelmente a perder, em termos de concreção, todo o
seu estatuto ou intenção de unidade», BARATA-MOURA, José, Totalidade e contradição, p.83.

16
por sua vez, leva a aniquilação de qualquer Absoluto ou infinito, visto que haveria dois
absolutos que se limitam mutuamente (tal como verificamos algumas páginas atrás).
Na minha leitura, é precisamente para isto que Nicolau de Cusa aponta na última
frase do excerto citado: pensar o Absoluto separado do finito, é pensá-lo enquanto outro,
enquanto diferente daquele relativamente ao qual nada pode ser maior, isto é, do infinito.
Por outras palavras, pensar o Absoluto separado do finito implica negar o seu estatuto de
infinito, implica limitar, tornar finito o infinito ou, o que é o mesmo, tornar infinito o
finito (34).

Fechando estes parenteses e retomando o nosso raciocínio, uma vez criticadas as


posições unilaterais, poderíamos neste passo perguntar o seguinte: qual é, então, a
proposta de Nicolau de Cusa?
Ora, Nicolau de Cusa, no seu intento de pensar e exprimir o Absoluto, aponta para
uma visão muito mais profunda do real.
O real não é apenas a unidade complicante.
O real não é apenas a multiplicidade contraidamente explicada.
Como incansavelmente o próprio cusano refere: deus é tanto a complicação como a
explicação. O que isto revela é uma profundíssima compreensão dialéctica do real
enquanto totalidade; uma totalidade na qual a unidade e a multiplicidade, dialecticamente,
coincidem. O real, o Absoluto é o todo.
Quanto à isto, as afirmações de Nicolau de Cusa são claríssimas:

«[…] [deus] deve ser interpretado como “uno e tudo”, ou melhor, “tudo dum modo uno”.
Assim, descobrimos anteriormente a unidade máxima que é o mesmo que “tudo de um

(34) Não posso deixar de chamar à conversa as reflexões hegelianas acerca da relação do finito e
do infinito que dão conta precisamente daquilo que acabamos de referir (reflexões essas que, tal como as
reflexões sobre a má infinitude e o verdadeiro infinito, estão latentes — como teremos a oportunidade de
verificar —, no pensamento de Nicolau de Cusa). Escreve Hegel numa passagem da Enciclopédia: «O
dualismo, que torna insuperável a oposição do finito e do infinito, não faz a simples consideração de que
assim o infinito é só um dos dois, que assim se torna apenas particular, em relação ao qual o finito é o outro
particular. Um tal infinito, que é unicamente um particular, que está ao lado do finito e neste tem justamente
o seu limite, a sua fronteira, não é o que deve ser; não é o infinito, mas somente finito. Em tal relação, em
que o finito está aquém e o infinito além, o primeiro do lado de cá, o outro do lado de lá, é atribuída ao
finito a mesma dignidade de consistência e independência, que ao infinito se outorga; o ser do finito
transforma-se em ser absoluto» HEGEL, G.W.F, Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome
(doravante: Enciclopédia), vol. I, parte I, secção I, A, §95, pp.177-178. Para um estudo acerca do infinito
e, especialmente, da dupla negação em Nicolau de Cusa e Hegel, cf., FERRER, Diogo, A dupla negação
em Nicolau de Cusa e Hegel, in Coincidência dos opostos e concórdia: caminhos do pensamento em
Nicolau de Cusa, pp.187-199 Faculdade de Letras Coimbra, 2001.

17
modo uno”. Mais ainda, “unidade” parece ser um nome mais apropriado e mais
conveniente que “tudo de um modo uno”» (35)
Sendo que, como alguns parágrafos mais a frente acrescenta: «sendo unidade, é
tudo» (36).
Neste ponto gostaria de destacar e analisar as duas ideias chave presentes nestes
excertos: por um lado, a ideia de que o Todo é uno; por outro lado a ideia de que o Uno é
tudo.
O Todo é uno. O Todo é ele próprio uma unidade, uma unidade absolutamente
abrangente. Uma totalidade que, porém, não deve ser entendida enquanto a total soma
dos diferentes fragmentos, dos infinitos entes finitos; os entes finitos não estão nele como
num saco, constituindo uma unidade apenas por estarem circunscritos neste.
A unidade característica da totalidade deve ser apreendida em termos de
identidade entre os infinitos entes finitos. O Todo é uno porque ele próprio é tudo aquilo
que é e pode ser; é uno porque, sendo aquilo que sub-jaz a todo o existente, confere
unidade a tudo aquilo que, na quotidiana experiência sensível, se nos depara sob a forma
da dispersa multiplicidade variada e contraditória (37).

O Uno é o todo. Quando falamos do Uno não abordamos uma qualquer unidade.
O Uno representa a unidade última, a unidade absoluta de tudo aquilo que é. Neste
sentido, o Uno não é uma unidade lógico-abstracta, vazia de conteúdo. O Uno não se situa
numa relação diametral com a multiplicidade. O Uno não se identifica apenas com a
unidade, a essência, a complicatio. Enquanto unidade absoluta, este se relaciona, engloba
e, em última instância, se identifica com a multiplicidade, o fenómeno, a explicatio.

(35)«interpretari debet “unus et omnia” sive “omnia uniter”, quod melius est. Et ita nos repperimus
superius unitatem maximam, quae idem est quod “omnia uniter”. Immo adhuc videtur nomen propinquius
et convenientius “unitas” quam “omnia uniter”» DI, I, XXIV, 75.
(36) «sit unitas, est omnia», DI, I, XXIV, 77.
(37) Ao debruçar-se sobre o tema da coincidentia oppositorum e os temas adjacentes a este,
destacando justamente o tema da «unidade do real» e da necessidade de pensar esta unidade «em termos
de totalidade», aos olhos de Barata-Moura uma unidade totalizante representa o plano último de
confluência e diluição do «espetáculo exuberante» da imediata fragmentação sob a qual o real se nos
apresenta: «A multiplicidade imediatamente aparecente ao nível da experiencia não pode quedar-se pelo
espetáculo exuberante da sua dispersão fragmentar; tem que ser capaz, para que sua própria inteligibilidade
possa vir à luz, de encontrar uma unidade totalizante, susceptível de “diluir” a aparente intratabilidade das
suas diferenças ou, melhor, de mostrar a sua final identidade, ou constitutiva pertença, a um âmbito mais
vasto que as englobe», confluência e diluição essas que, não obstante a identidade para que apontam, não
aniquilam a especificidade e a individualidade de cada coisa: «Na unidade suprema do real, a contradição
inerente à multiplicidade e ao seu estatuto imediato —que, do mesmo passo, não é evacuada —, não pode
deixar de ver-se resolvida, assim, numa congruência ou identidade últimas que, todavia, a não aniquilam
na sua especificidade», BARATA-MOURA, José, Totalidade e Contradição, p.80 e 81, respectivamente.

18
O Uno representa, na verdade, uma totalidade. Uma totalidade dentro da qual a
unidade e a multiplicidade dialeticamente se relacionam e acabam por coincidir. De facto,
o próprio Nicolau de Cusa esforça-se por expressar esta ideia quando refere que «a
unidade, com efeito, não é senão trindade, pois exprime indivisão, diferenciação e
conexão» (38).
Repare-se como a unidade é pensada neste trecho em termos de totalidade que
compreende a unidade, a multiplicidade e a conexão entre ambas. Assim, de um modo
geral, uma totalidade comporta:
por um lado, enquanto diferenciação, um conteúdo múltiplo e diferenciado. (É
muito importante perceber que esta ideia não se aplica somente no caso da unidade
absoluta — que, como veremos, comporta ela própria um conteúdo pré-determinado
desde a eternidade sob a forma do verbo ou Mundo. Aplica-se igualmente nos outros
patamares da realidade, como por exemplo, no caso dos entes finitos que, enquanto
totalidades, são constituídos por uma multiplicidade: a matéria e a forma)
por outro lado, enquanto indivisão, uma unidade subjacente a toda a
multiplicidade contraditória e diversa.
por fim, e dado que, para compreender a totalidade não basta apenas dar conta da
unidade e a multiplicidade, é necessário ainda (e, na verdade, sobretudo) pensar a conexão
(39), a dinâmica que, tanto permite a expressão da unidade na forma do múltiplo, como
confere à unidade um plano último de identidade sem, contudo, apagar a singularidade e
individualidade que lhe é especifica.
Alicerçado nestas ideias — antecipando o afamado dito presente no prefácio da
Fenomenologia do Espírito, «O verdadeiro é o todo» (40) —, Nicolau de Cusa não hesita
em afirmar que a «verdade absoluta» é precisamente esta noção de unidade
trinitariamente pensada, esta noção de unidade enquanto totalidade: «Une, pois, a um
nível que lhes seja anterior estas coisas que parecem opostas [trata-se da indistinção e

(38) DI, I, X, 28. «unitas enim non nissi trinitas est, nam dicit indivisionem, discretionem et
conexionem»
(39) Para Barata-Moura, este tema constitui o amago da problemática ontológica do uno e do
múltiplo. Como o próprio escreve no capítulo especialmente dedicado ao Nicolau de Cusa e Giordano
Bruno em torno da temática da coincidentia oppositorum: «O problema autêntico a que urge dar resposta
não é tanto, ou não é tão-só, o da vigência ou existência da unidade e da multiplicidade. É, sim, e numa
perspectiva mais funda, o da articulação ou da relação, em termos de inteligibilidade ou de compreensão,
dessa unidade e da diversidade que de pronto na experiência se nos impõe. A determinação do modo
concreto dessa relação do uno e do múltiplo, e da sua mediação, é aquilo que, na verdade, importa»,
BARATA-MOURA, José, Totalidade e contradição, p.83.
(40) HEGEL, G.W.F, Fenomenologia do Espírito, Prefácio, p.31.

19
distinção], como atrás disse, e não terás o um e o três ou o contrário, mas o uni-trino ou
o tri-uno. E esta é a verdade absoluta» (41).
Se o verdadeiro, o Absoluto, o real, é o todo, torna-se clara a impossibilidade da
identificação de deus apenas com a unidade.
Igualmente claro se torna também o facto de o Todo ou o verdadeiro não ser
colocado no âmbito do estático, do imóvel, do inalterável. (De facto, e a profundidade de
todo este problema reside aqui, o todo é e não é, concomitantemente, estático e dinâmico,
imutável e mutável, infinito e finito. O que importa perceber — de modo a não cair
naquilo que poderia ser designada por, seguindo os conceitos de Nicolau de Cusa,
interpretação racional, que se queda na mera identificação e no cuidadoso registo, em
jeito de lista telefónica, destas parelhas de contrários características do Absoluto, cujo
resultado é a estupefacção perante tamanhos mistérios intransponíveis —, é o modo
dialéctico em que isto acontece. De facto, dar conta dos contrários ou quedar-se pela
afirmação da sua coincidência sem perceber, todavia, de que modo esta coincidência se
dá, significa, a meu ver, ficar aquém de uma real e profunda compreensão, não apenas
dos ditos de Nicolau de Cusa mas, em geral, deste problema fundamental da filosofia).
O todo assume assim a figura de uma processualidade dialéctica na qual se joga a
identidade entre unidade e multiplicidade, entre o mesmo e o outro.

(41) «Coniuge igitur ista, quae videntur opposita, antecedenter, ut praedixi, et non habebis unum et
tria vel e converso, sed unitrinum seu triunum. Et ista est veritas absoluta.», DI, I, XIX, 58.

20
2. Authypostaton

Uma outra lente pela qual podemos verificar a identidade entre o Absoluto e o
finito é a temática do authypostaton — aquele que é por si existente —, que se encontra
tematizada por Nicolau de Cusa no escrito De Principio.
A investigação acerca do authypostaton gira em torno de dois pilares
estruturantes:
Primeiro, a definição dos requisitos a preencher para que algo seja existente por
si mesmo e, por conseguinte, o princípio ou o fundamento de todas as coisas;
Segundo, esclarecer o porquê da singularidade (essencial) do authypostaton.
Noutros termos, esclarecer por que razão há apenas um ser que é por si existente; por que
razão há apenas um princípio?

Começando pelo primeiro pilar, a definição daquele que existe por si gira,
novamente, em torno do conceito de infinito. Aquele que existe por si, segundo Nicolau
de Cusa, é o infinito, o Absoluto, uma vez que ele é o único que é indivisível e nada se
lhe pode acrescentar, dado que é tudo aquilo que pode ser. Nas palavras do cardeal
alemão: «A partir disto é evidente que apenas o infinito e eterno é authypostaton, isto é,
é existente por si, pois apenas ele é indivisível e é aquele ao qual nada se pode
acrescentar» (42)

Penso que podemos, com toda a pertinência, perguntar em que medida a


divisibilidade e a possibilidade de acréscimo podem entrar em conflito com o infinito?
Vejamos então as considerações pelas quais a afirmação acima citada se torna evidente.
Começando pela divisibilidade, teremos, primeiramente, de inspecionar o início
deste escrito no qual Nicolau de Cusa — recorrendo ao comentário de Proclo ao
Parménides de Platão —, explica por que motivo as coisas divisíveis não podem ser
existentes por si. A sua explicação diz o seguinte:

«[…] este mundo veio ao ser a partir de uma causa anterior [seniori, literalmente, mais
velha], na medida em que o divisível não pode existir por si; pois, aquilo que existe por
si é [tudo] aquilo que pode ser. Porém, dado que o divisível pode ser dividido, pode não

(42) «Patet ex his quod solum infinitum et aeternum est authypostaton sive per se exsistens, cum
illud solum sit impartibile et cui nihil adici potest», DP, 5.

21
ser. Portanto, uma vez que, quanto à si [ao divisível], pode ser dividido e pode não ser, é
claro que não é existente por si ou authypostaton» (43)

Segundo a explicação de Nicolau de Cusa, o divisível não pode existir por si


porque pode ser dividido e, ao ser dividido, pode não ser, o que faz com que o divisível
não seja tudo aquilo que possa ser e não preencha as condições para ser authypostaton.
Qual é, todavia, o significado profundo desta divisibilidade? Para que é que aponta
o divisível? O que significa o divisível ter a capacidade de ser dividido?
No meu entendimento, a divisibilidade está profundamente vinculada com a
alteridade, com o ser outro ou poder ser outro. Deste modo, o divisível, assim como o
fragmento acima citado o refere, é aquilo que foi criado (no sentido de ex-plicado), é o
finito ou, como também nos é dito pelo Cusano, é um outro.
Ser um divisível significa ser um outro. Ser divisível significa poder ser outro
daquilo que se é. Por agora, quedamo-nos pela primeira parte: ser um divisível significa
ser um outro, mas o que é o «outro»?
Ora, a definição do «outro», enquanto categoria filosófica, oferecida por Nicolau
de Cusa no De Principio diz o seguinte:
«Pois, quando dizemos que o que é diferente é diferente, dizemos que o que é diferente é
o mesmo que ele próprio. Pois, o que é diferente pode ser diferente apenas pelo Mesmo
Absoluto, através do qual tudo o que é, é tanto o mesmo que ele e outro de outro. Mas,
seja o que for o mesmo que ele próprio e outro do outro não é o Mesmo Absoluto, que
não é nem o mesmo [que outro], nem diferente [de outro]» (44)

A mesma linha de raciocínio persiste na definição presente no De Non Aliud onde


o Cusano anota o seguinte: «Pois, uma vez que o outro é não outro que o outro, pressupõe
precisamente o Não-Outro, sem o qual não seria outro» (45) continuando por referir que:

(43) «hunc mundum ex seniori causa in esse prodiisse, nam partibile non potest per se subsistere;
quod enim per se subsistit, hoc est quod esse potest. Partibile autem, cum possit partiri, potest non esse.
Unde cum, quantum est de se, possit partiri et non esse, patet quod non est per se subsistens sive
authypostaton», DP, 2.
(44) «Nam cum dicimus diversum esse diversum, affirmamus diversum esse sibi ipsi idem. Non
enim potest diversum esse diversum nisi per idem absolutum, per quod omne quod est est idem sibi ipsi et
alteri aliud. Sed omne, quod est sibi idem et alteri aliud, non est idem absolutum, quod alteri nec idem nec
diversum», DG, I, 146. Esta é a definição do finito: identidade consigo mesmo e diferente dos outros.
Aquilo que é igual a si próprio e diferente do outro não é o Mesmo Absoluto: isto implicaria um outro
diferente do Absoluto ou, ainda melhor, um outro Absoluto. O Absoluto não é nem o mesmo que o finito
nem diferente dele. A identidade e a separação são relativas.
(45) «Aliud enim cum sit non aliud quam aliud, utique non-aliud praesupponit, sine quo non foret
aliud», NA, II, 7.

22
«Pois, é necessário que todo o outro seja outro de outro, uma vez que apenas o Não-Outro
é não outro de qualquer outro» (46).
Às duas descrições encontramos subjacentes as mesmas ideias: o outro é outro na
medida em que é idêntico a si mesmo — sendo o «Mesmo» ou «Não-Outro», isto é, sendo
o Absoluto o princípio de identidade do finito—, e diferente dos outros, — sendo
precisamente pela identidade fundada na determinidade que lhe é característica que se
distingue de outro (47). Por fim, temos a ideia de que o Absoluto não é aquilo que por
«outro» se pretende definir, pelo facto de não ser diferente de nenhum outro.
Observa-se como a própria natureza do «outro» impossibilita a sua existência
independente. Se aquilo que existe por si é tudo aquilo que pode ser, e dado que o
divisível, o finito, o outro — pela singularidade e unicidade que lhes são características
—, difere dos outros entes finitos, é claro que não preenche a condição de ser tudo aquilo
que pode ser e, por conseguinte, não é existente por si.
Julguei necessário este apontamento de modo a verificar como a própria noção de
«outro», tal como pensada por Nicolau de Cusa, impossibilita a sua existência
independente. Todavia, no fragmento que constitui a base desta nossa análise, a linha
argumentativa seguida por Nicolau de Cusa é distinta.
A argumentação do cardeal cusano incide no facto de o finito ou divisível ter a
capacidade de se dividir que, a meu ver, deve ser lida da seguinte forma: o outro ou o
finito poder ser ou poder tornar-se ainda outro do que aquilo que determinadamente é.
Assim, o finito poder ser dividido significa que o finito pode ser outro em relação
àquilo que determinadamente é num certo estádio de desenvolvimento: «Pois, para
qualquer [coisa] que se aponte deus não é [aquela coisa], porque esta [coisa] pode ser
feita outra» (48).

(46) «Oportet enim omne aliud ab alio esse aliud, cum solum ‘non aliud’ sit non aliud ab omni
alio», NA, Proposições, 123.
(47) Para Nicolau de Cusa, a distinção entre os entes finitos dá-se, em primeiro lugar, segundo a
essência determinada de cada um, para depois, em segundo lugar, de dentro desse âmbito já restrito com
base na essência determinada, a distinção ser alicerçada nos acidentes: «Portanto, as coisas distinguem-se
sobretudo pela substância [entenda-se aqui por «substâncias», «essências determinadas»]; e as substâncias
[distinguem-se] em termos de quantidade, qualidade e outros acidentes, que estão complicados nos nove
géneros de acidentes» — «Res autem maxime per substantiam discernuntur, et substantiae per quantitatem,
qualitatem et alia accidentia, quae in novem generibus accidentium complicantur. LG, II, 76, sendo
precisamente «os acidentes que fazem o singular [ser] assim e assim» — «accidens ad singulare, quod facit
tale et tale singulare», VS, XXII, 66.
(48) «Nam quocumque demonstrato hoc deus non est, quia hoc potest fieri aliud», VS, XIII, 35.
Nicolau de Cusa pensa esta possibilidade de ser outro de forma ambivalente: a primeira leitura diz respeito
àquela que acabamos de assinalar e que visa o movimento natural de transformação das coisas; a segunda
leitura, visa a omnipotência de deus que pode transformar o finito, a qualquer altura, em outra coisa. Na
passagem que acabamos de citar é esta de facto a leitura que Nicolau de Cusa tem em mente. Sobre esta

23
De facto, é neste sentido que deve ser lida a afirmação de que o finito, ao poder
ser dividido ou ao poder ser outro, pode não ser, ou seja, no sentido em que o finito deixa
de ser aquilo que era, ao passar a ser outro.
Por outras palavras, utilizando uma outra formulação do cardeal cusano, o finito
pode ser o que não é. «Portanto, toda a criatura pode ser aquilo que não é. Apenas o
Princípio — porque é o próprio Poder-Ser — não pode ser aquilo que não é» (49).
Esta capacidade ou poder do finito que, à primeira vista, parece surpreender uma
vertente positiva, supõe, na verdade, uma lacuna, uma falta, uma incompletude, inscrita
no próprio finito. O finito pode ser outro, pode não ser ou pode ser aquilo que não é,
precisamente por não ser tudo aquilo que pode ser.
Colocando o problema ao contrário, o Absoluto nem pode ser outro, nem pode ser o
que não é nem, por fim, pode não ser, justamente pelo facto de ser tudo aquilo que pode
ser, não podendo ser outro por ser tudo.
Se o Absoluto pudesse ser outro significaria que o Absoluto poderia ter criado,
feito, explicado, algo ontologicamente diferente de si mesmo, o que, como já vimos, é
impossível.
De igual modo, se pudesse ser o que não é significaria que o Absoluto não seria
tudo aquilo que pode ser, sendo possível tornar-se algo de diferente de aquilo que
(essencialmente) ele é, o que, novamente, é impossível na medida em que o Absoluto é
infinito e é tudo aquilo que pode ser.
Também não poderia não ser, porque, ao não ser, o Absoluto seria o próprio não-
ser, como veremos em breve.

Procurando aprofundar este tema, poderíamos perguntar neste ponto qual é a razão
pela qual o finito, ao contrário do Absoluto, possui esta capacidade?
A chave da compreensão deste problema reside em perceber o modo como, no
finito e no Absoluto, se dá a relação entre potência e acto, entre o poder e o ser. Quanto a
isto, no De Possest, Nicolau de Cusa escreve o seguinte:

segunda visão veja-se também, por exemplo, a seguinte passagem: «[deus] é capaz de fazer um homem a
partir de uma pedra e aumentar ou diminuir a quantidade de cada coisa e, em geral, de tornar cada coisa
criada em qualquer outra coisa criada» — «possit de lapide suscitare hominem et adicere seu diminuere
cuiusque quantitatem et generaliter omnem creaturam in aliam et aliam vertere», DPo, 8.
(49) «Quare omnis creatura potest esse quod non est. Solum principium quia est ipsum possest, non
potest esse quod non est» DPo, 27. O Absoluto não pode ser aquilo que não é, uma vez que nada há que ele
não seja ou, ao contrário, porque é tudo. O Verdadeiro é tudo aquilo que pode ser, não podendo ser outro
porque é tudo.

24
«Mas todas as coisas que existem depois dele [de deus] existem com a distinção [entre]
potência e acto. Assim, uma vez que apenas Deus é aquilo que pode ser; mas nenhuma
criatura [é aquilo que pode ser], uma vez que a potência e o acto não são idênticos a não
ser no Princípio» (50)

As coisas podem tornar-se outras ou podem ser aquilo que não são, por terem a
possibilidade e actualidade distintas. A não identificação da possibilidade da coisa com a
sua actualidade significa que a coisa não pode ser em acto, de uma só vez, tudo aquilo
que ela pode ser, ao contrário do Absoluto que, sendo a identidade da potência e acto
absolutos, do poder e ser absolutos, sendo o possest, é em acto tudo aquilo que é possível
ser (51).

(50) «Omnia autem quae post ipsum sunt cum distinctione potentiae et actus, ita ut solus deus id sit
quod esse potest, nequaquam autem quaecumque creatura, cum potentia et actus non sint idem nisi in
principio», DPo, 7.
(51) Esta é, a meu ver, a melhor tradução e interpretação das expressões que apontam para a
identidade entre a potência ou o poder absoluto e o acto ou ser absoluto, como por exemplo: «omne id, quod
esse possit», DI, I, IV, 11, ou «ita ut solus deus id sit quod esse potest» DPo, 7. Mais do que a tradução é a
interpretação daquilo que por estas expressões (e outras semelhantes) Nicolau de Cusa pretende transmitir-
nos que está em jogo.
Assim, dependendo da tradução e interpretação, as frases acima mencionadas poderão ser lidas
como: deus é «tudo aquilo que pode ser» ou «tudo aquilo que [ele] pode ser» e «e apenas deus é aquilo que
pode ser» ou «e apenas deus é aquilo que [ele] pode ser», respectivamente.
João Maria André opta, no meu entendimento, correctamente, pela tradução mais abrangente no que diz
respeito à passagem de De docta ignorantia. Sobre a explicação desta sua escolha veja-se JOÃO MARIA
ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação no discurso filosófico de Nicolau de Cusa (doravante:
Sentido, simbolismo e interpretação), pp.150-151.
No polo oposto situa-se a tradução romena de Mihnea Moroianu que, tal como é deixado bem
patente no estudo introdutório desta edição de «escritos menores», opta pela tradução mais restrita. Cf.,
Coincidentia oppositorum (doravante CO), tradução e notas por Mihnea Moroianu, Polirom, 2008, Iasi,
vol. I, pp.45-46.
A tradução inglesa de Hopkins, no que diz respeito a primeira passagem, segue a via mais
abrangente, sendo que, no tocante à segunda passagem e para muitas outras semelhantes presentes no De
Possest, se opta ou decisivamente pela segunda, ou por deixar em aberta a questão. Acerca da explicação
de Hopkins relativamente a sua escolha veja-se De possest, nota 12, p.957 da tradução inglesa do próprio.
Eusebio Colomer segue igualmente a interpretação mais abrangente, como se pode verificar quando escreve
que «Deus é tudo o que pode ser», Nicolau de Cusa (1401-1464). Um pensador na fronteira de dois mundos,
p.23.
A meu ver, a tradução e interpretação mais adequadas, tendo em vista todo o aparato doutrinário
de Nicolau de Cusa, é a via mais abrangente: deus é tudo aquilo que, em geral, pode ser. Se é Absoluto, se
é infinito, é óbvio que ele é tudo aquilo que pode ser e não apenas aquilo que ele pode ser. Na verdade, o
próprio cusano esclarece e reforça esta ideia quando explica em que sentido é dito que deus é aquilo que
pode ser: «Falo nos absolutos e mais gerais termos — como se dissesse: “uma vez que a potência e o acto
são idênticas em deus, então deus é em acto tudo aquilo de que “pode ser” se pode verificar» — «Loquor
in absolutis et generalissimis terminis, quasi dicerem: Cum potentia et actus sint idem in deo, tunc deus
omne id est actu, de quo posse esse potest verificari», DPo, 8.
A segunda opção tem por base, na minha leitura, uma imposição doutrinária exterior à obra, que
busca resgatar, de certo modo, Nicolau de Cusa da afirmação da identidade entre deus e criatura. Assim
sendo, deus seria apenas aquilo que ele pode ser, a sua actualidade diria respeito somente à sua
possibilidade, colocando de lado a possibilidade ou potencialidade de uma «outra» coisa. Deste modo, deus
não seria aquilo que, por exemplo, uma semente poderia ser. Porém, este tipo de posição, na tentativa de
salvaguardar a transcendência divina face à criatura, acarreta consigo trágicas consequências a nível
ontológico, uma vez que instaura uma dualidade ontológica: deus não é aquilo que a semente pode ser, ou
seja, existe algo diferente e contraposto à deus.

25
Aproveitando o caminho que até aqui viemos abrindo, poderíamos levantar ainda
algumas questões:
Primeiro, qual é o âmbito de possibilidades do finito? Numa outra formulação, o
que pode o finito ser (já que não pode ser tudo aquilo que pode ser)?
Segundo, em que sentido deve ser entendida esta sucessão entre os vários outros?
Dependendo da resposta a esta pergunta, responderemos igualmente à pergunta pela
relação entre os vários outros que se vão sucedendo.
Quanto àquilo que a coisa finita pode ser, numa primeira instância, comparando o
caso do Absoluto com o caso do Sol, enquanto exemplo de um ente finito, Nicolau de
Cusa escreve o seguinte:

«Cardeal: Quanto ao Sol [acontece] de outro modo. Pois, ainda que o Sol seja em acto
aquilo que é, não é aquilo que pode ser. Pois pode ser de outro modo de que é em acto.
Bernardo: Continua, pai. Pois, certamente, nenhuma criatura é em acto tudo aquilo que
pode ser» (52)
Acrescentando, algumas páginas adiante, numa formulação à primeira vista
contraditória, que: «[…] tudo aquilo que é, não é senão aquilo que pode ser […]» (53)
Na verdade, não há nenhuma oposição entre as duas formulações. Na primeira
passagem, aquilo que é negado do ente finito é a sua possibilidade ou o seu poder de ser
tudo aquilo que pode ser. Contudo, se assim for, como se explica a segunda citação onde
nos é dito que todas as coisas que existem, todo o finito, é aquilo que pode ser?
De modo a resolver este aparente problema, penso que devemos ter em conta
aquilo que Nicolau de Cusa escreve acerca da potencialidade de cada finito: «[…] em
todas estas coisas há um incomensurável poder e potência contraído de acordo com o seu
[das coisas] género […]» (54). Ou seja, cada coisa finita é aquilo que pode ser, de acordo
com as suas potencialidades próprias. Atenção, isto não é sinónimo de a coisa ser em acto,
simultaneamente, tudo aquilo que ela pode ser. As coisas finitas não são em acto nem, a
totalidade das possibilidades, nem a totalidade das suas específicas possibilidades.
Aquilo que nesta segunda passagem nos é transmitido é que as coisas são, em cada
momento da sua existência, aquilo que o seu estádio de desenvolvimento lhe permite ser
naquele determinado patamar, de acordo com o seu determinado leque de

(52) «Secus de sole. Nam licet sol sit actu id quod est, non tamen id quod esse potest. Aliter enim
esse potest quam actu sit. Bernardus: Prosequere, pater. Nam certum est nullam creaturam esse actu omne
id quod esse potest», DPo, 8.
(53) «omne quod est non sit nisi id quod potest esse», DPo, 51.
(54) «in ipsis omnibus est virtus et potentia immensurabilis secundum genus suum contracta», QD,
III, 46.

26
potencialidades. Seguindo este raciocínio, o ente finito torna-se outro ou pode ser aquilo
que não é, na medida em que actualiza uma das potencialidades determinadas que lhe são
próprias (a semente torna-se outra ao transformar-se numa planta e numa flor porque
fazem parte do seu âmbito de possibilidades; a semente não se pode transformar numa
lâmpada).

Tendo estabelecido o âmbito de transformação do finito, importa perguntar pelo


modo como esta sucessão de finitos deve ser entendida.
Ainda que nunca tenha desenvolvido esta ideia de modo coeso, penso que
podemos encontrar no pensamento de Nicolau de Cusa três leituras diferentes dessa
sucessão. Chamo a atenção para o facto de estas três visões diferentes não serem três
maneiras que Nicolau de Cusa tem para pensar este problema. Aquilo que
verdadeiramente está em causa — e a profundidade do pensamento do nosso autor brilha
aqui em todo o seu esplendor —, é a busca do cardeal alemão de surpreender e interpretar
o mesmo movimento a partir de três planos distintos: a partir do plano sensível-racional,
do plano intelectual focado no movimento do finito e do plano intelectual focado no
movimento do infinito. Por enquanto, fiquemos pela investigação dos primeiros dois.

No plano da finitude analisado pela lente racional (tendo em mente a definição do


«outro»), o outro tornar-se outro significa que o finito inicial deixa de ser, dando lugar ao
outro finito, instaurando entre os dois uma diferença absoluta (A deixa de ser A para dar
lugar ao B, sendo A diferente em absoluto de B).
É extremamente importante perceber que este tipo de leitura opera segundo aquele
que é o princípio próprio deste âmbito de investigação: o princípio da não-contradição.
Ao contrário do patamar intelectual onde a sua aplicabilidade é interdita, o princípio da
não-contradição tem validade operacional no plano da multiplicidade, como Nicolau de
Cusa deixa transparecer ao afirmar que: «Portanto, nenhuma coisa pode em igual medida
ser e não ser. Por conseguinte, dois contraditórios não se podem verificar em igual medida
do mesmo» (55).
Assim, o A não pode ser também B. A tem de deixar de ser A para dar lugar ao B.
Trata-se de um movimento que assinala a mera negação do finito e a sua reiteração ao

(55) «Nihil igitur ex omnibus aequaliter potest esse et non esse; quare duo contradictoria non
possunt aeque de eodem verificari», DP, 36.

27
infinito. A substituição de um finito por um outro finito. Uma série infinita de finitos: A
—> B —>C —>D etc. (56).
Esta julgo ser a leitura que Nicolau de Cusa tem por base ao sustentar a tese de
que o outro pode tornar-se outro, uma vez que somente neste patamar e por este tipo de
leitura podemos afirmar que o outro se torna diferente em absoluto daquilo que antes era.
Não obstante esta leitura, penso que podemos encontrar no pensamento do cardeal
alemão certas diretrizes que, apesar de se centrarem no finito, operam segundo uma lógica
diferente, que procura penetrar mais fundo no tecido do real no seu patamar finito. Refiro-
me ao intento de Nicolau de Cusa de pensar aquilo que poderia ser designado por
movimento dialéctico do finito ou da Natureza.
Não esquecendo aquilo que antes foi dito acerca da potencialidade do finito como
constituindo um infinito poder determinado ao género de cada finito, um primeiro indício
deste tipo de leitura dialética pode ser encontrado na seguinte passagem de De Quaerendo
Deum:
«Pois quando reparamos num pequeno grão de mostarda e vemos o seu poder e potência
com o olho do intelecto, encontramos um vestígio [de Deus], assim que nos levantamos
na admiração do nosso deus. Pois, apesar de o grão ser tão pequeno enquanto corpo, não
obstante o seu poder é sem fim [sine termino]. Neste grão está presente uma grande árvore
com folhas e ramos e muitos outros grãos nos quais, semelhantemente, está esse mesmo
poder acima de toda a numeração» (57)

Desde logo observe-se a mudança da abordagem: apesar do objecto da


investigação ser o finito, a investigação deste é feita a partir do patamar intelectual, o que
implica, à partida, a superação do princípio da não-contradição.
Repare-se igualmente que — e o ponto central desta ideia reside aqui —, os vários
outros que na visão racional se encontram separados em unidades isoladas, encontram-se

(56) Chamando-o de novo à conversa, para Hegel esta é a definição daquilo que no seu vocabulário
técnico é designado por «má infinitude»: «o processo até ao infinito, ou a má infinidade», Propedêutica
Filosófica, Enciclopédia Filosófica para a classe superior (1808), parte I, secção I, B, §30, p.22, sendo
descrita nos parágrafos 93 e 94 da Enciclopédia como a reiteração ao infinito do finito, na medida em que
o finito ou o algo é negado para se posto novamente como finito, nada mais de que a negação do finito ao
infinito: «Algo torna-se noutro, mas o outro é também um algo; por conseguinte, torna-se igualmente num
outro e assim até ao infinito» e também: «Esta infinidade é a infinidade falsa ou negativa, porque nada mais
é do que a negação do finito, o qual, porém, nasce de novo e, por conseguinte, não está ainda superado —
ou esta infinidade exprime apenas o dever ser da superação do finito. O progresso até ao infinito detém-se
na declaração da contradição que o finito contém, a saber, que ele é tanto algo como o seu outro, e é o
prosseguimento perene da alternância destas determinações, que se produzem uma à outra», HEGEL,
G.W.F, Enciclopédia, volume I, parte I, secção I, A, §93 e §94, respectivamente, p.117.
(57) «Dum enim advertimus ad granum minimum sinapis et eius virtutem et potentiam eius oculo
intellectus intuemur, vestigium reperimus, ut excitemur in admirationem dei nostri. Nam cum tam parvum
sit corpore, vis tamen eius est sine termino. In eo granulo est arbor magna cum foliis et ramusculis et alia
grana multa, in quibus similiter eadem est virtus supra omnem numerum», QD, III, 44.

28
aqui unidos, constituindo um único poder, uma única potencialidade que, ao longo do
tempo, consoante o próprio movimento interno, mas também, as mais variadas
condicionalidades exteriores (58), se vão actualizando e determinando de acordo com o
estádio de desenvolvimento de cada finito.
De modo a reforçar ainda mais esta leitura cusana da dialética da Natureza,
convocaria duas passagens que me parecem cruciais para a compreensão do modo preciso
de transformação do finito.
Em primeiro lugar, vejamos a passagem de De Coniecturis que resume a sua
explicação acerca da «progressão em sete» (59): «Desta maneira vês como um esforço
estimula e guia o outro para que haja uma continuação da geração e corrupção e para que a geração
de um seja a corrupção de outro» (60).

A progressão em sete ou a progressão das coisas naturais traduz justamente o


movimento dialéctico do finito: o movimento constituído pela posição ou, como Nicolau
de Cusa escreve, da geração de algo pela corrupção, isto é, pela negação de uma posição
anterior. Repare-se que o que está em causa não são dois movimentos diferentes, mas
sim, um só movimento: a negação de uma posição, de um estado de ser das coisas
constitui, concomitantemente, a afirmação de uma nova posição ou novo estado de ser
das coisas.
Em segundo lugar, não podemos deixar de assinalar a origem deste movimento.
Nicolau de Cusa debruça-se sobre esta ideia ao falar dos homens que, devido ao

(58) As «condicionalidades exteriores» de desenvolvimento constituem um facto determinante no


desenvolvimento, quantitativa e qualitativamente, das coisas, como explicita Nicolau de Cusa ao escrever
que: «O número [pluralitas, literalmente, a pluralidade] das sementes [produzidas], bem como a sua
perfeição, é determinado especificamente de acordo com a natureza da árvore, a sua localização e as suas
circunstâncias» — «Specificatur […] secundum arboris, loci et circumstantiarum naturam pluralitas
seminum eorumque perfectio», DC, II, VII, 111.
Apesar de ser claro que a qualidade e quantidade das coisas variam com estas condições objectivas
que lhe permitem ou não o desenvolvimento, não encontramos nesta passagem nenhum indício da relação
entre a mudança quantitativa e qualitativa. Todavia, tal indício julgo estar presente no seguinte trecho da
mesma obra: «Consequentemente, vemos que em solo fértil e por meio de excelente nutrição, certos tipos
de grãos produzem espécies mais perfeitas de que eles próprios, […] e, ao contrário, vemos que o melhor
grão em solo estéril produz frutos de baixa qualidade» — «Unde grana quaedam in pingui solo et propter
nobile nutrimentum perfectiora se ipsis producere videmus grana, […] E converso optima grana in sterili
agro ignobilem fructum producere conspicimus», DC, II, VII, 115.
Penso que não seria forçar a interpretação ao afirmar que nesta passagem podemos ver, ainda que
embrionariamente, a ideia (hegeliana e, posteriormente, ao ser colocada num tabuleiro ontológico diverso,
marxista) de que as mudanças quantitativas (como por exemplo, o aumento da quantidade de nutrientes que
a planta recebe dependendo do solo em que está plantada) podem provocar saltos qualitativos (aumentar a
qualidade das sementes).
(59) Cf., DC, II, VII, 107-111.
(60) «Ita conspicis quomodo unus appetitus stimulat atque ducit alium, ut sit continuatio
generationis et corruptionis atque quod generatio unius corruptio sit alterius» DC, II, VII, 110.

29
«prolongado exercício do intelecto» têm a capacidade de, por meio de um único princípio,
entender e explicar muitas e diferentes coisas ao mesmo tempo:

«por meio de uma representação [speciem] que ele chama movimento, pensa uma
variedade de [eventos] naturais, uma vez que viu que nada acontece sem o movimento e
que o movimento natural é distinguido do movimento forçado. Consequentemente,
[entende] que um movimento natural não é a partir de um princípio extrínseco, assim
como o forçado, mas intrínseco à coisa» (61)

Deste modo, observamos como o movimento dialético não tem uma origem
exterior ao finito, mas sim, é-lhe intrínseco.
O finito tem em si mesmo o poder, a capacidade, de transitar de si para si mesmo
por meio dos relativos outros que vão mediando este movimento. De facto, e para retomar
algumas ideias dos trechos analisados, a infinitude do finito está precisamente neste
movimento de si para si mesmo, sendo a sua finitude determinada pela circunscrição deste
movimento ao âmbito do género de cada finito. Esta circunscrição representa o motivo
pelo qual Nicolau de Cusa vê este poder como sendo apenas um vestígio do Absoluto.
A partir deste plano de análise não podemos continuar a defender a visão que foi
sustentada pelo primeiro tipo de leitura, isto é, que o outro pode tornar-se outro, em
sentido absoluto, ou que o outro pode ser aquilo que não é, porque esse mesmo outro,
esse finito, comporta já em si tudo aquilo que ele pode ser, sendo o novo outro posto por
meio deste movimento dialéctico a manifestação das potencialidades nele inscritas.
Assim, segundo esta última interpretação, a diferença entre os vários patamares
ou vários estádios de desenvolvimento do finito já não é absoluta, mas sim, relativa, uma
vez que se esbate num solo comum: a infinita potencialidade finita. Repare-se que não se
trata de dois movimentos distintos, mas sim, de dois modos de compreender — um mais
profundo que outro —, o mesmo movimento identitário do finito (que, na verdade, visto
do plano do Absoluto, não é senão o movimento do Absoluto de si para si mesmo por
meio de outro, como será possível verificar no último capítulo deste escrito).
Todavia, voltando ao tópico chave deste capítulo, mesmo tendo esta leitura por
base — que nos mostra que o finito ou o outro, de facto, não se torna num outro
absolutamente diferente do primeiro —, não podemos argumentar que o finito pode ser

(61) «Puta varietatem naturalium per speciem, quam motum appellet, quando sine motu nihil fieri
atque naturalem motum a violento distingui videret, ideo motum naturae non esse a principio extrinseco,
sicut in violento, sed intrinseco rei», COM, VII, 19.

30
existente por si mesmo, uma vez que, ainda não preenche o requisito chave desta posição,
o ser tudo aquilo que é possível ser.

Transitemos agora para a segunda condição do authypostaton: a impossibilidade


de qualquer adição.
Pretendendo sublinhar que apenas deus tem o poder de acrescentar ou retirar algo,
sendo o objecto desta operação o finito, Nicolau de Cusa dá-nos um indício daquilo que
se deve entender por este acréscimo ao escrever que: «pois, aquele que existe a partir de
uma causa, não pode acrescentar [algo] para que o seu ser seja melhor» (62).
Assim, algo poder sofrer um acréscimo pressupõe, em primeiro lugar, a ideia de
que aquele que sofre o acréscimo é incompleto ou im-perfeito (quantitativa ou
qualitativamente), sendo passível de um aumento ou aperfeiçoamento. Por outros termos,
de uma ou de outra maneira, não é tudo aquilo que pode ser.
Não obstante isto, penso que podemos encontrar uma segunda pressuposição: para
que aquele que sofre o acréscimo possa ser maior ou melhor, aquilo que lhe for
acrescentado tem de ser essencialmente diferente dele.
Por estas razões, apenas o finito, por não ser tudo aquilo que pode ser, é passível
de sofrer acréscimos por parte de deus: «Porém, não repugna que, a todo o finito se pode
acrescentar ou subtrair [algo]» (63).
Sabendo que apenas o Absoluto pode ser o authypostaton percebemos o porquê
desta impossibilidade: como pode ser maior ou melhor algo que é Máximo? De igual
modo, como se lhe pode acrescentar algo se o Absoluto já é tudo aquilo que é possível
ser?
Bem lidas as coisas, estes dois requisitos até agora investigados, surpreendem a
negação de um duplo movimento que põe em perigo o estatuto do Absoluto.
Primeiro, negam um movimento de dentro para fora, um movimento em que o
Absoluto se divide, se torna um outro contraposto àquilo que se pretende primeiro, eterno
e absoluto.
Segundo, negam um movimento de fora para dentro, um movimento no qual, ao
Absoluto, se acrescenta algo exterior, algo que não era contido por este, algo outro e
diferente.

(62) «Qui enim est a causa, ille non potest adicere, ut esse suum sit maius», DP, 5.
(63) «Omni autem finito addi vel subtrahi posse non repugnat», DP, 5.

31
Tanto o primeiro, como o segundo movimento, se fossem possíveis, colocariam
em causa o estatuto do Absoluto pela afirmação — através da «criação» de uma existência
igualmente absoluta ou, pela adição de algo ao Absoluto que, à partida, é distinto deste
—, de uma segunda substância, de um segundo Absoluto. Isto é, criar-se-ia um dualismo
ontológico das substâncias que, como já vimos, aniquila qualquer pretensão de pensar o
infinito.

32
3. A existência necessária do Absoluto: causa sui e essência absoluta de todo o
existente. A dependência ontológica dos entes finitos e a consequente
identidade com o Absoluto.

A problemática da necessidade absoluta, o que é o mesmo do que a existência


necessária do Absoluto, surge no pensamento do cardeal cusano desdobrada em dois
planos distintos:
por um lado, aponta para a existência necessária em si e para si do Absoluto ou,
utilizando a expressão spinozana, aponta para o Absoluto enquanto causa sui;
por outro lado, a existência do Absoluto é necessária para outro, isto é, é
necessária para a existência dos próprios entes finitos (sendo precisamente este segundo
ponto que nos permitirá mostrar, por uma outra via, a identidade entre o finito e o
Absoluto).
No que respeita ao primeiro plano, aquilo que se encontra na base da necessidade
da existência do Absoluto é a sua impossibilidade de não ser (64).
No capítulo VI da De docta ignorantia onde Nicolau de Cusa se debruça sobre a
necessidade absoluta, a explicação da impossibilidade do Absoluto não ser é alicerçada
na coincidência do Mínimo e do Máximo e é-nos apresentada sob a forma da seguinte
pergunta retórica: «Portanto, de que modo se pode entender que o máximo possa não ser,
se o ser de modo mínimo é o ser de modo máximo?» (65). A conclusão da impossibilidade
da não existência do Absoluto funda-se no facto de o ser mínimo, isto é, o não ser, o nada,
ser, de facto, coincidente com o ser máximo, com a existência absoluta, com o próprio
Absoluto.
No De Possest aposta-se na própria categoria de Poder-Ser para o mesmo
propósito: «Se, portanto, o Princípio pudesse não ser, não seria, uma vez que é aquilo que pode
ser [ou seja, se ele pudesse não ser ele seria o não-ser]. João: Portanto, é a necessidade absoluta,
uma vez que não pode não ser» (66).

(64) Na celebre formulação de Spinoza correspondente a primeira definição da Ética: «Por causa
sui entendo aquilo, cuja essência envolve existência ou aquilo cuja natureza não pode ser concebida a não
ser enquanto existente» — «Per causam sui intelligo id, cuius essentia involvit existentiam, sive id, cuius
natura non potest concipi nisi existens», SPINOZA, Baruch, ETHICA, primeira parte, definições, I.
(65) «quomodo igitur inteligi potest maximum non esse posse, cum minime esse sit máxime esse?»,
DI, I, VI, 15.
(66) «Bernardus: […] Si enim principium posset non esse, non esset, cum sit quod esse potest.
Iohannes: Est igitur absoluta necessitas, cum non possit non esse», DPo, 27.

33
Se o Absoluto é tudo aquilo que pode ser, pode ser precisamente o não-ser, o que
se traduz na plena confirmação da impossibilidade da sua inexistência, uma vez que, não
sendo, é também ou, numa outra formulação, ao não ser é o próprio não-ser.
Como já referido, a necessidade da existência do Absoluto não se resume ao
âmbito do em si, mas estende-se ao plano do outro, no sentido em que sem este nada
poderia existir.
Se pensarmos bem, esta ideia é uma decorrência necessária daquilo que vimos
acerca do Absoluto. Se ele é a única, a verdadeira existência possível, pelo facto de ser o
único que existe por si, ou seja, pelo facto de ser o único cuja existência não depende de
uma condição prévia de possibilidade, é claro que os entes finitos situar-se-ão numa
relação de dependência ontológica face ao Absoluto.
Esta tese aparece desde logo esboçada no mesmo capítulo VI de De Docta
Ignorantia como o revelam os seguintes trechos: «Além disso, nada poderia ser se não
fosse o máximo simples» (67), mas também, do mesmo capítulo, «E também nada pode
ser entendido que seja, sem o ser. O ser absoluto não pode, todavia, ser outro que o
máximo em sentido absoluto. Por isso, nada pode ser entendido que seja sem o máximo»
(68).
A esta tese junta-se uma segunda cujo objectivo é assinalar que, se fosse possível
remover deus, nada permaneceria, como pode ser lido, por exemplo, na seguinte
passagem do De Possest: «Se deus fosse removido, o mundo cessaria completamente [de
ser]» (69).
Ambas destacam a dependência dos entes finitos de Absoluto.
Há que perguntar agora em que sentido os entes dependem ontologicamente do
Absoluto, e mais, há que perguntar pelo estatuto ontológico que eles possuem, dado que
há apenas uma existência verdadeira que é o Absoluto.
Ora, em que sentido deve esta dependência ontológica ser lida e o que representa
de facto?
Quanto ao modo de interpretação desta dependência ontológica, uma possível
solução poderia passar pelo esboço de uma topografia vertical, de cima para baixo, na

(67) «Praeterea nihil esse posset, si maximum simpliciter non esset», DI, I, VI, 15.
(68) «Neque quidquam inteligi potest esse sine esse. Absolutum autem esse non potest esse aliud
quam maximum absoluta. Nihil igitur potest inteligi esse sine maximo.» DI, I, VI, 16.
(69) «sic deo sublato mundus penitus desineret», DPo, 57. Deve-se mencionar que estas ocorrências
não são singulares na obra de Nicolau de Cusa. Sem a pretensão de ser exaustivo, acerca destas duas teses
veja-se igualmente, por exemplo: DP, 7; NA, III, 9 e V, 15, ou ainda VS, XIV, 40 e XXI, 59.

34
qual o finito causado dependesse da causa infinita, sendo interditada qualquer mistura
entre a causa e o causado. Neste sentido, segundo esta linha argumentativa, sem a causa
primeira, nada daquilo que lhe fosse «posterior» e representasse os seus efeitos, poderia
existir.
De facto, tais expressões que apontam para uma leitura vertical e sequencial, bem
como para a diferença demarcada entre a causa e o causado, marcam presença no
pensamento de Nicolau de Cusa, como se pode verificar ao ler a seguinte passagem: «o
princípio do ser não é nenhum dos seres, uma vez que um princípio não é nenhuma das
coisas originadas [por ele] [...]» (70).
Porém, não obstante a presença de tais afirmações, penso que vale a pena cavar
mais fundo e perceber as razões destas teses, uma vez que facilmente encontramos, ao
longo da obra de Nicolau de Cusa, afirmações que vão no sentido contrário e afirmam
que, na verdade, o causado coincide com a causa. A ideia não é destacar ambas as teses e
sustentar que Nicolau de Cusa defende tanto uma tese, como o seu contrário. É preciso
descobrir e perceber o modo de pensar estas teses de maneira que sejam conciliáveis. Sob
que ângulo Nicolau de Cusa afirma a identidade entre a causa e o causado, infinito e finito
e sob que ângulo nega essa mesma identidade, de dentro de uma leitura dialética da
identidade, veremos na segunda parte deste escrito.
Em resposta àqueles que pensam a relação de dependência entre deus e a criatura
ou entre o infinito e o finito, em Nicolau de Cusa, segundo um raciocínio causal, e mais,
em resposta àqueles que pensam que tal leitura elimina, de uma vez por todas, qualquer
dúvida quanto ao facto de Nicolau de Cusa rejeitar em absoluto a identificação de deus
com a criatura, do absoluto com o finito, gostaria de citar um trecho do texto De Venatione
Sapientiae que julgo deitar abaixo este argumento. Nas palavras do próprio Nicolau de
Cusa: «Pois, nada é de deus [dei], que não [seja] o próprio deus» (71). Tudo aquilo de que
deus seja causa ou, pondo a questão ao contrário, tudo aquilo que seja efeito de deus é,
na verdade, o próprio deus: a criação de deus, o filho de deus, o verbo de deus. Isto não
apenas põe de lado esta leitura de tipo causal, na qual a causa é distinta do causado, como
também destaca a identidade entre deus e as coisas por ele causadas.

Na verdade, é esta identidade entre Absoluto e finito que nos permite perceber
aquela que, na minha leitura, é a verdadeira dependência ontológica das coisas finitas.

(70) «principium entis nihil entium sit, cum principium nihil sit principiati», DP, 18.
(71) «Nihil enim est dei, quod non ipse deus», VS, IX, 23, p.1294.

35
Isto é, os entes são dependentes de e nada são sem o Absoluto, porque o Absoluto, o único
ser possível, a existência absoluta, é, na verdade, o ser de tudo aquilo que existe. Tudo
aquilo que existe é, em última instância, o próprio deus, o Ser.
Isto representa o miolo das teses cusanas que sustentam deus enquanto a «essência
absoluta» ou a «forma das formas». Ser a essência absoluta ou a forma das formas não
quer dizer outra coisa senão que o Absoluto é o ser de tudo aquilo que existe. A árvore, o
sol, a terra, antes de serem árvore, sol e terra, são simplesmente. Antes de serem uma
existência determinada, simplesmente existem e nesta medida são o próprio Absoluto.
É importante perceber que ao afirmar o Absoluto enquanto o ser de tudo aquilo
que existe não se anula a existência particular ou a individualidade dos entes finitos. Entre
muitas outras, esta foi uma das acusações levantadas por Johann Wenck contra Nicolau
de Cusa. Ao analisar o segundo corolário que descreve o Absoluto enquanto essência
absoluta de todas as coisas, Wenck conclui que: «Este corolário é o mais abominável
porque tanto confunde as quididades das coisas, como declara que deus é a quididade de
todas as coisas» (72). A esta conclusão Nicolau de Cusa não tarda em responder
declarando que:

«Este homem não entende nada. Pois deus é a quididade de todas as quididades e é a
quididade absoluta de todas as coisas — como também é o ser absoluto dos seres […]
Dizer isto não confunde nem destrói as quididades [singulares e determinadas] das coisas,
mas as constrói, como um sábio entende» (73)

Para Nicolau de Cusa, sustentar que o Absoluto é o ser de tudo aquilo que existe,
que é a essência absoluta de tudo aquilo que determinadamente é, que é a única coisa que
há, não representa uma aniquilação da multiplicidade ou da singularidade particular de
cada coisa. Esforçando-se por pensar a unidade do real sem, todavia, anular a

(72) WENCK, Johann, IL, 36. Esta é igualmente a posição que Vincent Martin sustenta quando
escreve que: «Não apenas reduz todas as naturezas a uma ratio superior na predicação, identificando esta
ratio com Deus; ele [Nicolau de Cusa] também nega a própria diversidade das rationes ao identificá-las
formalmente com a essência divina» — «Not only does he [Nicolau de Cusa] reduce all natures to a highest
ratio in predication, identifying this ratio with God; he also denies the very diversity of these rationes by
formally identifying them with the divine essence», MARTIN, Vincent, The dialectical process in the
philosophy of Nicholas of Cusa, p.230. Todavia, tal como o cardeal cusano refere, isto não anula as coisas
individuais, mas as constitui enquanto aquilo que determinadamente são. Além disto, há de perceber que a
identidade que Nicolau de Cusa procura pensar por estas posições não apaga a multiplicidade
determinadamente explicada, mas confere-lhe um plano último de unidade.
(73) «Nihil penitus intelligit homo ille. Nam Deus est quidditas omnium quidditatum et absoluta
omnium quidditas sicut absoluta entitas entium […] Nec hoc dicere est confundere aut destruere quidditates
rerum, sed construere, ut intelligunt sapientes», Ap, 33. Alguns parágrafos antes do fragmento citado,
Nicolau de Cusa tem o cuidado de explicar que apesar de sustentar que «deus coincide com o ser» — «
Deum cum esse coincidere», Ap, 26., acrescenta de imediato que «todavia, a existência das coisas nas suas
próprias formas não é, por isso, destruída» — «Per hoc tamen non tolluntur subsistentiae rerum in suis
propriis formis», Ap, 37.

36
multiplicidade sob a qual se nos apresenta, Nicolau de Cusa defende que afirmar deus
enquanto a única coisa existente significa «estabelecer» as coisas singulares, isto é,
conferir-lhes um suporte sobre o qual se possa construir a sua identidade, individualidade
e singularidade. E isto na medida em que, para que o ente finito seja isto ou aquilo
necessita, mormente, de ser. Não se trata de diluir a pluralidade e a riqueza do real numa
unidade abstracta. Trata-se de conferir à multiplicidade uma base última de unidade.
Na posse destas ferramentas estamos habilitados a compreender várias afirmações
de Nicolau de Cusa sobre a criatura ser um ser dependente (74), a criatura ser nada (75) ou
não existir em acto por comparação com o Absoluto (76), nada ter a partir de si (77) ou
nada acrescentar ao Absoluto (78).

Todas estas expressões representam modos diferentes de assinalar o mesmo: a


falta de fundamento ôntico próprio, isto é, o facto de os entes finitos não serem existentes
por si, não terem uma existência independente face ao Absoluto (79).
Deste modo, não podemos falar da «existência da coisa» porque aquilo a que
chamamos «sua existência» não é, de facto, sua, mas «dele», é a existência do Absoluto
ou, para ser mais preciso, é a existência Absoluta manifestada daquela forma específica.

(74) Cf., DI, II, III, 110.


(75) «E se, como criatura, ela não tem sequer tanto de ser como o acidente, mas é totalmente nada
[…]» — «Et si ut creatura non habet etiam tantum entitatis sicut accidens, sed est penitus nihil» DI, II, III,
111. ou «Uma vez que a criatura é nada e tem todo o seu ser da causa, a verdade está no princípio» —
«Creatura, cum nihil sit et totum esse suum habeat a causa, in principio est veritas», DP, 37.
(76) «Pois, vejo que todas as coisas existentes em acto [são] manifestações ou imagens do seu
exemplar, por comparação com o qual nem existem em acto» — «Video enim omnia quae sunt actu
imaginem illius sui exemplaris praeferre, in cuius comparatione nec actu sunt», VS, XXXVIII, 111.
(77) «todo o causado é inteiramente pela causa e nada tem a partir de si» — «Cum autem causatum
sit penitus a causa et a se nihil», DI, II, Prólogo, 90.
(78) «Aquelas coisas que pressupõem o primeiro nada conferem à sua perfeição» — «quae ipsum
primum praesupponunt, ad eius nihil conferant perfectionem», NA, V, 18, ou «Assim, [a criatura] nada
acrescenta a Deus, como o acidente à substância» — «Nihil enim confert deo, sicut accidens substantiae»,
DI, II, III, 110.
(79) De outra opinião é Jasper Hopkins que, tendo por base o facto de os entes terem um ser
determinado e o facto de deus ser um ser absoluto, conclui que, em primeiro lugar, as criaturas têm um ser
próprio e que, em segundo lugar, esse mesmo ser próprio é diferente do ser de deus: «Estes seres — já
vimos isto —, têm o seu próprio ser; e o seu próprio ser não é o ser de Deus, embora derive totalmente de
Deus» — «These beings — we have already seen — have their own being; and their own being is not God’s
being, though it derives totally from God», HOPKINS, Jasper, Nicholas’s of Cusa metaphysic of
contraction, p.48.
Hopkins pensa que, ao ser afirmado que cada ente possui o seu ser determinado, pode-se
igualmente afirmar que este mesmo ente tem um ser próprio, se quisermos, em si, que é diferente do ser de
deus. A conclusão que tal posição implica é clara: um dualismo ontológico entre deus e criatura
implementado na tentativa de preservar a transcendência divina.

37
Assim, podemos ir mais longe e afirmar que, na verdade, a criatura não existe (já
que aquilo que existe é apenas o Absoluto), mas subsiste; subsiste em deus e por deus. É
neste sentido que nos é dito que ela não existe em acto. A sua existência em acto,
comparada com a verdadeira existência, nada é.
Pelas mesmas razões, a criatura não tem nada a partir de si, porque tudo aquilo
que ela é, tudo aquilo que ela tem — o seu ser e ser determinado enquanto isto ou aquilo
—, vêm do Absoluto, são o Absoluto.
Se a criatura é o próprio Absoluto manifestado sob aquela determinada forma, fica
igualmente claro que a criatura nada pode acrescentar ao Absoluto, dado que tudo aquilo
que ela tem, tem-no dele.

38
4. Absoluto como ratio, logos ou medida de todas as coisas. A questão da
criação ex nihilo.

Podemos destacar ainda um núcleo temático que sirva de exemplo para aquilo
que, até aqui, sob diferentes ângulos, fomos abordando: a identidade entre o Absoluto e
o finito. Este núcleo temático gravita em torno do conceito de igualdade, fundado no
próprio conceito de infinito.
A partir deste ponto comum, abrir-se-ão duas problemáticas distintas: por um
lado, a problemática da ratio ou do logos de todas as coisas; por outro lado, a problemática
da criação ex nihilo. Ainda que por vias diferentes, ambas darão conta daquele que é o
nosso objectivo primordial: assinalar a identidade entre Absoluto e finito. Sem mais
delongas, comecemos pela primeira questão.

Antes de prosseguirmos para o porquê e o como de o Absoluto ser a medida de


todas as coisas, penso ser importante interrogarmo-nos sobre o próprio significado de
ratio, logos ou medida.
Ser a medida, a ratio ou o logos de todas as coisas significa ser o princípio de
proporcionalidade. Uma proporcionalidade que:
Em primeiro lugar, constitui o locus da forma (80). Ser a proporcionalidade o locus
da forma significa que a forma determinada dos entes está na proporcionalidade, depende
dela. Esclarecendo melhor, para que algo tenha uma forma determinada, isto é, para que
um ente seja aquilo que é, necessita de uma proporção adequada que lhe permita ser
aquilo que é ou aquilo que pode ser e não outra coisa. Como Nicolau de Cusa explica
pelas palavras do idiota utilizando a forma da colher como exemplo:

«E a proporção é o locus da forma, pois sem uma proporção que seja adequada a forma e
congruente com ela, a forma não pode brilhar — tal como disse que, se a proporção que
é adequada para uma colher for destruída, não pode a forma [da colher] permanecer,
porque não teria lugar [locum]» (81)

A forma determinada vai muito além da forma visual, sensível da coisa; a forma
determinada diz respeito à essência determinada da coisa. Assim, a ratio permite in-

(80) Como nos diz Nicolau de Cusa no De Mente: «a proporção é o locus da espera ou a região da
forma e a matéria é o locus da proporção» — «proportio est locus orbis seu regio formae et locus
proportionis matéria», DM, VI, 88. Sobre a relação entre a forma determinada e a matéria diremos algumas
coisas na segunda parte.
(81) «Et proportio est locus formae; sine enim proportione apta et congrua formae forma
resplendere nequit, uti dixi proportione apta cocleari rupta non posse formam manere, quia non habet
locum», DM, VI, 92.

39
formar cada coisa segundo uma determinada razão e proporção, fazendo-a ser aquilo que
ela é, nada mais, nada menos.
Em segundo lugar, possibilita e fundamenta a harmonia e a ordem entre aquilo
que existe, o que acaba por desaguar num princípio estético, já que a proporcionalidade
«confere beleza ao sujeito» tornando-o «deleitável» e «agradável» para todos os sentidos
que o percepcionam (82).
No caso de desadequação entre a proporção e a forma, os entes tornar-se-iam
disformes, em si mesmos e no seu conjunto, perderiam a sua beleza e a sua ordem (83)
No que diz respeito à ausência total de proporção, esta seria impossível, dado que
nada existe sem proporção, o que é claro se considerarmos que a ratio possibilita a forma
determinada, isto é, o ser determinado de cada coisa. Quanto a este ponto, Nicolau de
Cusa investe pela vertente estética, afirmando que aquilo que não é harmónico e belo
simplesmente não pode existir: «que retirada [a ordem], então nada permanece, uma vez
que o que carece de ordem e beleza não pode existir» (84).
Na verdade, conclui o cardeal alemão, falar de coisas existentes sem ratio é uma
blasfémia: «Se, sem logos, algo que teria sido feito por deus, ou será feito por deus, não
será razoavelmente feito. E dizer isto do mais sábio deus seria uma blasfémia» (85).
Ser feito sem razão não aponta apenas para a falta da medida ou da proporção,
mas também e sobretudo — sendo isto a causa da blasfémia —, para a irracionalidade
de que uma tal criação seria indício: o intelecto criador, «o mais sábio deus», teria feito o
mundo de modo irracional.

(82) «Pois, a condição ou a proporcionalidade é incorruptível e pode ser dita ser uma forma
específica [species], que não admite mais ou menos e que confere forma ou beleza ao sujeito, assim como
a proporção adorna coisas belas. E, de facto, uma semelhança da razão eterna ou do divino intelecto criador,
brilha numa harmónica e concordante proporção. E nós experienciamos isto, uma vez que aquela proporção
é deleitável e agradável a todos os sentidos quando é percepcionada» — «Habitudo enim sive
proportionabilitas est incorruptibilis et dici potest species, quae non recipit magis neque minus, et dat
speciem sive pulchritudinem subiecto, sicut proportio ornat pulchra. Similitudo etenim rationis aeternae
seu divini conditoris intellectus resplendet in proportione harmonica seu concordante. Et hoc experimur,
quoniam proportio illa delectabilis et grata est omni sensui, dum sentitur», DB, 62. Esta ideia é surpreendida
igualmente no seguinte excerto do De Mente: «Este facto [que o número é o primeiro exemplar na mente
divina] é evidenciado pelo deleite e pela beleza presente em todas as coisas e que consiste na proporção»
— «Hoc ostendit delectatio et pulchritudo, quae omnibus rebus inest, quae in proportione consistit», DM,
VI, 94.
(83) «E assim, a mente divina determinou, de modo mais sábio, todas as coisas, para que nenhuma
carecesse de uma razão para existir [assim] e não de outro modo. E se [a coisa fosse outra], carecessem de
tal razão], todas as coisas [seriam] confusas» — «Et ita omnia mens divina determinavit sapientissime, ita
quod nihil caret ratione cur sic et non aliter; et si aliter, omnia confusa», VS, XXVIII, 83.
(84) «Quo sublato nihil manet, cum expers ordinis et pulchritudinis esse nequeat», VS, XXXI, 92.
(85) «Si aliquid a deo factum esset aut foret sine logo, non esset illud rationabiliter factum; et hoc
de deo sapientissimo dici blasphemia esset», DAe, 45.

40
Transitando agora para o como e o porquê de o Absoluto ser a medida de todas as
coisas, podemos começar por perguntar em que medida o Absoluto é a ratio de todas as
coisas?
O Absoluto é a ratio de todas as coisas na medida em que há uma perfeita
congruência, uma adaptação exacta entre a medida e o medido. Ora, isto é possível apenas
na medida em que a ratio é a própria igualdade, na medida em que o Absoluto é igual a
todas as coisas, o que, por sua vez, é possível apenas pelo facto de o Absoluto ser infinito,
pois somente o infinito não é nem menor, nem maior que nada, sendo assim a medida
perfeita de tudo:

«A infinidade não é maior, nem menor, nem igual a nada. Mas, enquanto considero que
a infinidade não é maior nem ou menor que qualquer coisa dada, digo que ela é a medida
de todas as coisas, não sendo maior nem menor. E assim a concebo como igualdade de
ser» (86)

A questão que importa colocar agora visa perceber o que significa o Absoluto ser
igual a todas as coisas, o que requer, primeiramente, entender o modo como Nicolau de
Cusa pensa a igualdade.
Segundo Nicolau de Cusa, a igualdade não se dá no plano do finito, do múltiplo,
do diverso. Aí, aquilo que há é uma semelhança baseada na proporcionalidade entre as
coisas finitas, de modo que «a igualdade é gradual» não sendo possível «encontrar duas
ou mais coisas tão semelhantes e iguais que não seja possível encontrar outras ainda mais
semelhantes», o que desemboca na conclusão de que «por mais iguais que sejam,
permanecem sempre diferentes» (87).
Se quisermos, a igualdade não é estabelecida em termos relacionais; não
representa a cópula entre dois pólos distintos; a igualdade não se formula nos termos de

(86) «Infinitas nulli est maior nec minor nec aequalis. Sed, dum infinitatem considero non esse
maiorem vel minorem cuicumque dabili, dico ipsam esse mensuram omnium, cum nec sit maior nec minor.
Et sic concipio eam aequalitatem essendi» VD, XIII, 56. Encontramos essa mesma ideia em De Docta
Ignorantia: «O Máximo, pois, ao qual não se opõe o mínimo, é necessariamente a medida mais adequada
de todas as coisas, não [sendo] maior porque é o mínimo, nem mais pequeno porque é máximo» —
«Maximum enim, cui non opponitur minimum, necessario omnium est adaequatissima mensura, non maior
quia minimum, non minor quia maximum», DI, I, XVI, 45, mas também em De Sapientia: «Portanto, o
exemplar absoluto — que não admite mais ou menos, dado que é a precisão e a verdade —, não pode ser
nem mais nem menos de que aquilo que exemplifica. Aquilo que não pode ser mais pequeno, chamamos
mínimo e é maximamente pequeno. Aquilo que não pode ser maior chamamos máximo e é maximamente
grande […]. mas, aquilo que não é nem maior nem menor chamamos igual. Portanto, o exemplar absoluto
é a igualdade, a precisão, a medida […]» — «Quapropter absolutum exemplar, quod nec magis nec minus
recipit, cum sit praecisio et veritas, non potest esse nec maius nec minus exemplato. Id enim, quod non
potest esse minus, minimum dicimus, et hoc est maxime parvum. Id, quod non potest esse maius, maximum
dicimus, et hoc est maxime magnum […] Id autem, quod non est nec maius nec minus, vocamus aequale.
Est igitur absolutum exemplar aequalitas, praecisio, mensura», DS, II, 40-41.
(87) Cf., DI, I, III, 9.

41
A é igual a B. Porquê? Porque a multiplicidade (enquanto multiplicidade) é
multiplicidade por não ser igualdade, por ser, precisamente, desigual, variada. Nas
palavras de Nicolau de Cusa: «Portanto, uma multiplicidade de coisas não pode ser
precisamente igual. Pois, então, não seriam uma multiplicidade, mas a própria igualdade»
(88).
A igualdade exprime, nos termos em que Nicolau de Cusa coloca o problema, uma
identidade. O Absoluto é a medida de tudo aquilo que é por ser igual a tudo aquilo que é,
ou seja, por ser idêntico a tudo aquilo que é, por ser os próprios entes dos quais é medida.
Como taxativamente nos diz: «Assim, dizemos que o máximo simples, sendo a medida
de todas as coisas, é ele próprio essas coisas sem as quais não entendemos que ele próprio
possa ser o metro de todas as coisas» (89).
Ora, a identidade entre o Absoluto e os entes finitos, pensada por meio do conceito
de igualdade, torna-se ainda mais nítida quando esclarecida a noção de criação.
Colocando sempre em primeiro lugar o conteúdo e a clareza da explicação do
mesmo, por vezes, os escritos de Nicolau de Cusa, infelizmente, pecam pela falta de rigor
ou, se preferirmos, por uma certa volatilidade, conceptual. Por entre os muitos exemplos
onde esta ausência de rigor se pode verificar (90), encontra-se também o uso bastante livre
de o conceito «criar» ou «criação».
Todavia, no De Venatione Sapientiae, ao investigar a origem do poder-ser-feito
ou da matéria, Nicolau de Cusa esboça uma diferença — a meu ver, crucial para bem
compreender o alcance destes dois conceitos —, entre creatum e factum, que nos
permitirá estabelecer uma distinção entre aquilo que significa criar o Mundo e fazer o
Mundo (91).

(88) «Non possunt igitur plura esse praecise aequalia. Non enim tunc plura essent, sed ipsum
aequale»,VS, XXIII, 68.
(89) «Ita maximum simpliciter cum sit omnium mensura, ipsum illa esse dicimus, sine quibus
ipsum omnium metru posse esse non inteligimus», DI, I, XX, 61.
(90) Esta liberdade no uso dos conceitos vem assinalada pelo próprio Nicolau de Cusa no De Mente,
VIII, 111, quando, após explicitar e explicar a distinção entre os poderes da mente, a disciplina e o intelecto,
é confrontado pelo filósofo com o seguinte problema: «O poder que [chamas] disciplina é chamado por
alguns outros inteligência e este, que tu chamas inteligência, eles chamam inteligibilidade» — «Legi per
aliquos vim, quam tu doctrinam, intelligentiam, et illam, quam tu intelligentiam, illi intellectibilitatem
nominari», respondendo o idiota de seguida que também tais nomes são adequados para descrever estes
poderes: «Isto não desagrada, porque lhes podem, convenientemente, chamar assim » — «Non displicet,
quia et sic convenienter vocari possunt. De facto, após o inicial pedido de esclarecimento destes poderes
feito pelo filósofo, o idiota deixou claro que não presta muita atenção à terminologia aplicada: «Eu, que
sou um idiota, não presto muita atenção às palavras» — «Ego, qui sum idiota, non multum ad verba atendo».
(91) É importante mencionar que esta distinção não receberá, por parte de Nicolau de Cusa, um
tratamento rigoroso, sendo objecto da mesma volatilidade conceptual. Não obstante, trata-se de uma
ferramenta imprescindível para uma correcta compreensão daquilo que está em causa. Por esta razão, ao
longo deste escrito, esta diferenciação conceptual receberá um uso rigoroso da nossa parte.

42
Chamo a atenção para o facto de não se tratar de uma mudança teórica, mas sim,
de um apuramento linguístico; a mudança é formal e não de conteúdo. De facto, partindo
desta distinção, lendo retrospetivamente as passagens nas quais o tema da criação
encontra-se abordado, podemos facilmente perceber onde o conceito é usado no sentido
estrito desta distinção posterior ou, onde o conceito está a ser usado para descrever o fazer
das coisas, do Mundo.
Dando finalmente a palavra ao autor, Nicolau de Cusa esclarece esta distinção nas
seguintes palavras: «Portanto, dizemos que o poder-ser-feito foi criado a partir de nada,
uma vez que foi produzido pelo Poder-Fazer, mas não foi feito» (92).
Em primeiro lugar, verifique-se como criar aponta para um criar a partir de nada.
Criar é sempre criação ex-nihilo. Em segundo lugar, veja-se como este criar não se deve
confundir com o fazer que, telegraficamente apontando, é sempre um fazer a partir de
algo, nomeadamente, da matéria.
Assim, criar o Mundo aponta para a sua criação ex-nihilo. Por outro lado, fazer o
Mundo representa, antecipando um pouco o rumo das coisas, a sua ex-plicação por meio
da matéria, tema que será desenvolvido na segunda parte deste escrito.

Focando agora a nossa análise na temática da criação, esta encontra, em Nicolau


de Cusa, as suas mais profundas raízes no solo teológico-cristão, mais precisamente, na
problemática da trindade e da «geração eterna» do filho pelo pai.
No contexto da problemática da trindade, filosoficamente desenvolvida, — pois o
vocabulário teológico das Escrituras é reprimido pelo cardeal alemão por ser
fundamentado nas criaturas e por se afastar mais da verdade do que os conceitos
filosóficos (93) —, para Nicolau de Cusa, a unidade absoluta (que, tal como já visto,
coincide com o Ser) gera, desde a eternidade e na eternidade, por si e em si mesma, por
uma única repetição sua, a igualdade da unidade ou a igualdade de ser. Ora, tratando-se
de uma repetição da mesma natureza, da mesma essência, da única existência possível,

(92) «De nihilo igitur posse fieri, cum sit per posse facere productum et non factum, creatum
dicimus», VS, XXXIX, 116.
(93) «Mas, aqueles que nomeiam a trindade pai, filho e espírito santo, aproximam-se com menor
precisão [da verdade], todavia, usam estes nomes congruentemente por causa da sua harmonia com as
Escrituras. Mas aqueles que chamam a trindade unidade, igualdade e união aproximam-se mais, se esses
termos forem encontrados inseridos nas sagradas Escrituras» — «Sed qui Patrem et Filium et Spiritum
sanctum Trinitatem nominant, minus praecise quidem appropinquant, congrue tamen nominibus illis
utuntur propter scripturarum convenientiam. Qui vero unitatem, aequalitatem et nexum Trinitatem
nuncupant propius accederent, si termini illi sacris in litteris reperirentur inserti», NA, V, 19.

43
Nicolau de Cusa conclui que a unidade absoluta e a igualdade da unidade são co-
substanciais e representam uma única coisa eterna (94).
A ligação deste tema com o tema da criação consiste no seguinte: para o cusano, a
geração da igualdade da unidade pela unidade absoluta — ou, utilizando as categorias
cristãs, a geração eterna do filho ou do verbo pelo pai —, representa a criação de todas
as coisas, a criação do Mundo, nessa ou, ainda melhor, enquanto essa igualdade de ser.
Como escreve o próprio Nicolau de Cusa:
«Por isso, se considerares subtilmente que o pai gera o filho significa o mesmo que
cria tudo no verbo» (95).

(94) Cf., por exemplo, DI, I, VII, 21.


(95) «Quare, si subtilius consideras, patrem filium gignere, hoc fuit omnia in verbo creare», DI, I,
XXIV, 80. Em De Dato Patris Luminum é-nos oferecida uma explicação ainda mais esclarecedora: no
verbo, deus criou tudo aquilo que será explicado, que será manifestado pela descida do próprio Absoluto
ao Mundo: «Nesta luz, que é o verbo, o primeiro filho gerado e a manifestação suprema do pai, o pai das
luzes gerou livremente toda as manifestações descendentes» — «In hoc lumine, quod et verbum et filius
primogenitus et suprema apparitio patris, omnes apparitiones descendentes pater luminum voluntarie
genuit», DPL, IV, 110.
Aproveitando este mesmo trecho, gostaria de chamar à discussão um outro tema interessantíssimo
e que diz respeito precisamente à liberdade com que deus, num primeiro patamar, criou o Mundo e, num
segundo patamar, fez ou explicou o Mundo. Nomeadamente, qual é o significado desta liberdade com que
deus cria e até mesmo explica o Mundo?
Penso que uma boa explicação daquilo que Nicolau de Cusa entende por livre criação pode ser
encontrada em De Venatione Sapientiae onde, a dado passo, o cardeal alemão escreve o seguinte acerca
deste tema: «Pois, não antecedeu a mente divina uma outra mente que a determinou a criar este mundo.
Mas, porque a eterna mente é livre de criar ou não criar, deste ou daquele modo, determinou, como desejou
a partir de si e desde a eternidade, o seu poder omnipotente» — «Non enim praecessit ipsam mentem
divinam alia mens, quae ipsam determinaret ad creandum hunc mundum. Sed quia ipsa mens aeterna libera
ad creandum et non creandum vel sic vel aliter, suam omnipotentiam, ut voluit, intra se ab aeterno
determinavit», VS, XXVII, 82.
A colocação da liberdade numa relação diametral com a determinação não representa, de todo, o
ponto central da discussão. Repare-se que, na verdade, a liberdade não é pensada por oposição à
determinação, mas sim, juntamente com esta. Assim, o ponto central desta problemática passa a ser a
compreensão da origem desta determinação e, por conseguinte, a sua possível relação com um acto livre.
Ora, segundo o excerto citado, percebemos que se a determinação da criação tivesse tido origem numa
imposição externa, se ela tivesse sido coagida se, empregando o vocabulário cunhado por Kant, a
determinação fosse heterónoma, então a criação não teria sido livre Não obstante, entendemos que se a
origem desta determinação for interna, isto é, auto-imposta, então ela é livre. De facto, é isto que, no excerto
acima citado: deus está determinado a criar por uma auto-imposição, por uma auto-determinação, desde a
eternidade. Como a determinação é, na verdade, uma auto-determinação, a criação é um acto livre. Todavia,
este não é ainda o ponto problemático do pensamento do cardeal cusano. Aquilo que realmente importa
perceber é se esta auto-determinação é imposta por um acto da vontade ou se faz parte da essência do
próprio Absoluto. O Absoluto criou porque quis ou porque, segundo a sua natureza, não pode não criar?
Segundo o excerto citado Nicolau de Cusa parece indicar que a criação se dá segundo a livre vontade de
deus.
Porém, a questão torna-se mais complicada quando abordado o tema da explicação do Mundo e
dos argumentos através dos quais Nicolau de Cusa procura pensar o acto manifestativo do Absoluto como
livre. A meu ver, apesar de se tratar de um patamar diferente de argumentação, penso que estes argumentos
podem servir igualmente para a questão da criação. Vejamos o que Nicolau de Cusa tem a dizer a respeito
deste ponto.
São várias as passagens onde Nicolau de Cusa refere o facto de o fazer do Mundo ser um acto
livre. De um modo indirecto, encontramos esta tese no DI, 80 quando refere que: «Assim, é evidente que é
filho a partir dele [ex eo] pelo facto de ser igualdade da entidade das coisas que deus podia fazer, embora

44
De assinalar que a expressão «criar tudo no verbo» — como se o verbo ou, em
termos filosóficos, essa igualdade da unidade fosse, ao jeito de um recipiente, algo no
qual de fora se põem coisas outras dele —, parece-me infeliz, pois oculta a ideia chave

possa não vir a fazê-las, mas se não as pudesse fazer, deus não seria pai, filho, espírito santo, nem seria
mesmo deus» — «Ita videlicet quod est filius ex eo, quod est aequalitas entitatis rerum, quas deus facere
poterat, licet eas etiam facturus non esset, quas si facere non posset, nec deus pater vel filius vel spiritus
sanctus, immo nec deus esset». Claramente, o Mundo poderia ou não ter sido feito segundo a vontade,
segundo o querer de deus; o Mundo foi feito porque deus quis que ele fosse feito.
De um modo mais expresso, no De Ludo Globi 19, é-nos dito o seguinte: «A partir disto vemos
que deus criou [no sentido de fazer] o Mundo tal como quis. Portanto, o Mundo [foi feito como]
excedentemente perfeito porque foi feito segundo a completamente livre vontade de deus» — «Ex hoc
videtur deum mundum ut voluit creasse; quare perfectus valde, quia secundum dei optimi liberrimam factus
est voluntatem».
Em De Venatione Sapientiae, por meio de uma analogia com a mente de Aristóteles que escreve
os livros porque assim o desejou, Nicolau de Cusa exprime a ideia do fazer livre do mundo escrevendo que:
«Além disso, a sua mente [de Aristóteles] não foi forçada a produzir os livros, pois a sua livre e nobre mente
desejou manifestar-se. De modo semelhante, a própria Possibilidade [manifestou-se] em todas as coisas».
Tudo parece apontar para o facto de o fazer do mundo, da sua manifestação sensível, ter tido por
base a livre vontade de deus: deus quis manifestar-se sensivelmente, então manifestou-se.
Porém, duas linhas presentes em De Conjecturis, 144 destroem esta harmonia: «é uma condição
da unidade explicar seres a partir de si (pois unidade é ser, que complica seres na sua simplicidade».
Ora, aquilo que Nicolau de Cusa nos transmite nestas linhas é que, por natureza, devido a sua
condição original ou essencial, a Unidade, o Absoluto, deus, tem de se manifestar, sem alguma menção a
livre vontade.
É impossível, a meu ver, estas linhas não fazerem ecoar as palavras de Spinoza quando na
definição VII da Ética esclarece o significado de ser e agir livremente: «Diz-se uma coisa livre o que existe
exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado a agir; mas, [dir-se-á] necessário,
ou mais propriamente, coagido, o que é determinado por outro a existir e a operar de certa e determinada
maneira» — «Ea res libera dicetur, quae ex sola suae naturae necessitate existit et a se sola ad agendum
determinatur: necessaria autem, vel potius coacta , quae ab alio determinatur ad existendum et operandum
certa ac determinata ratione», SPINOZA, Baruch, Ethica, parte I, definições, VII.
Esta posição — que Nicolau de Cusa parece partilhar no excerto citado de De Coniecturis —, é
inconciliável com a sua tese de uma livre criação fundada na vontade divina. O próprio Spinoza, na carta
(LVIII) ao G. H. Schuller, explica que tal posição vai contra uma criação segundo a vontade divina: «Assim
vês que coloco a liberdade, não na livre decisão, mas na livre necessidade» — «So you see that I place
freedom, not in free decision, but in free necessity», SPINOZA, Baruch, Carta LVII ao G. H. Schuller.
A sua liberdade não seria fundada na livre vontade, mas no facto de esta sua determinação
corresponder ou estar inscrita na sua própria natureza. Neste sentido, deus cria, deus se manifesta
sensivelmente, porque a sua natureza assim o dita e, neste sentido, não sendo coagido de fora, mas
determinado internamente pela sua própria natureza, ele permanece livre.
Todavia, em DB nº38 encontramos uma posição que, aparentemente, se afigura como contrária a
esta passagem de DC. Ao criticar Platão e Aristóteles por «ambos acreditarem que o intelecto criador [o
verbo] fez todas as coisas devido a necessidade da sua natureza» Nicolau de Cusa esclarece que, apesar de
«o criador ser visto agir por meio da sua essência», ele não age do mesmo modo como a Natureza, isto é,
«determinado por uma ordem superior», mas sim, que ele age «por meio da sua livre vontade [liberam
voluntatem], que é também a sua essência».
Chamo a atenção para o facto de a crítica de Nicolau de Cusa não tocar na necessidade de agir
segundo a natureza, mas sim, tal como foi explicado no que diz respeito à criação do Mundo, no facto de
esta necessidade poder ter sido imposta por uma outra entidade, tal como acontece com a Natureza que age
de acordo com a sua natureza, sendo esta, todavia, determinada por deus a ser tal como é e agir tal como
age. Este é o ponto central: para se ser livre não se pode ser determinado por outrem. Assim, o ponto chave
consiste em saber se a liberdade consiste numa acção segundo a necessidade da sua natureza ou numa livre
vontade, numa livre escolha de criar ou não criar, de explicar ou não explicar o Mundo.
Uma coisa é certa, não podemos negar que ambas as ideias aparecem nos escritos de Nicolau de
Cusa. O que não é tão certo é o modo como estas duas posições se articulam ou se podem articular de dentro
do seu pensamento.

45
desta posição: que o verbo, o filho de deus, a igualdade da identidade, coincide com o
Mundo. Assim, na verdade, «criar o mundo no verbo» significa «criar o mundo enquanto
verbo», como se pode verificar, por exemplo, no seguinte trecho, no qual Nicolau de Cusa
afina esta ideia:

«Antes da sua constituição [constitutionem] [isto é, antes da ex-plicatio, do fazer das


cosias], no princípio, o mundo era o verbo; enquanto constituido, o mundo constituido pelo
verbo é constituído [ou seja, através da ex-plicação do verbo, da ex-plicação do mundo
enquanto presente em deus se fez o mundo sensível, material]» (96)

Bem vistas as coisas, a criação do Mundo é uma pré-determinação por parte do


Absoluto, em si mesmo e desde a eternidade, de tudo aquilo que pode existir, enquanto
Verbo, enquanto si mesmo. Como nos é dado a conhecer em De Venatione Sapientiae:
«Portanto, todas as coisas, a partir da [pré-]determinação da mente [divina] em si mesma,
receberam a delimitação do seu modo de ser assim e assim» (97).
Isto permite-nos compreender o profundíssimo modo de pensar a unidade de
Nicolau de Cusa. Mesmo antes de se explicar no Mundo enquanto Mundo, a unidade
absoluta comporta em si mesma a multiplicidade. As coisas são formalmente, desde a
eternidade, pré-determinadas em deus e, sendo em deus são o próprio deus. Isto não quer

(96) «Mundus ante constitutionem in principio verbum erat, et mundus constitutus per ipsum est
constitutus» DP, 38.
(97) «Omnia igitur ex determinatione mentis in se ipsa suum terminum sic et sic essendi
receperunt», VS, XXVII, 82.
Neste passo, gostaria de assinalar a interpretação que Jasper Hopkins faz da problemática da
criação.
Em primeiro lugar é de destacar que, para Hopkins, a criação não diz respeito a criação do Mundo,
desde a eternidade, no e enquanto o próprio absoluto ou deus. Segundo o autor, a criação coincide com a
explicação. Como o próprio escreve: «E quando todas as coisas são ditas emanadas ou explicadas de Deus,
Nicolau expressa a doutrina da criação ex nihilo. Antes da sua criação, as coisas criadas existem apenas em
Deus — mas em Deus apenas qua Deus» — «And when all created things are said to emanate or unfold
from God, Nicholas is expressing the doctrine of creation ex nihilo. Before their creation, created things
exist only in God —but in God only qua God» HOPKINS, Jasper, A concise introduction, p.28.
De salientar igualmente que Hopkins não interpreta a unidade como comportando e unificando a
pluralidade. A passagem a que me refiro é a seguinte, onde Hopkins escreve que: «Semelhantemente, se
em deus todas as coisas são Deus, é enganoso continuar a referi-las de modo plural como todas as coisas;
pois em Deus é dito não haver composição. Em Deus nada é pensado como permanecendo individuado
como si mesmo» — «Similarly, if in God all things are God, it is misleading to continue to refer to them
plurally as all things; for in God there is said to be no composition. In God nothing is thought to remain
individuated as itself. —ibidem, 28.
Se em deus tudo é deus isto não significa que tudo se dilui numa mistura homogénea. Por esta sua
posição, Hopkins coloca de lado, com alguma facilidade, a complexa e profunda maneira cusana de pensar
a unidade, que nunca é uma unidade separada da multiplicidade, mas sempre uma totalidade na qual uno e
múltiplo se ligam e formam um todo.

46
dizer que há várias formas enquanto arquétipos das coisas; mas sim, que há uma única
forma que se pré-determina de infinitos modos (98).
Trata-se de, por intermédio de uma outra via, assinalar que a unidade absoluta não
deve ser pensada nos termos de uma identidade absoluta, abstracta, vazia, de um A=A.
Mesmo nesse patamar, por assim dizer, originário, a diversidade é constitutiva da
unidade.

Poderíamos perguntar neste ponto em que se baseia, na verdade, esta identidade


entre o Mundo e o verbo? Respondendo com um trecho do próprio cusano diríamos que:
«É, pois, filho pelo facto de ser igualdade de ser das coisas, além da qual ou aquém da
qual as coisas não poderiam ser» (99). A igualdade da unidade é todas as coisas porque as
coisas não podem ser além ou aquém desta igualdade de ser. Por outras palavras, as coisas
não podem ser uma existência distinta, de ponto de vista ôntico, desta igualdade de ser.
Ainda em outros termos, as coisas não podem ser se o seu ser for desigual, outro, diferente
do ser desta igualdade absoluta e, implicitamente, da própria unidade absoluta.
A relevância, para aquilo que é o nosso objectivo central, da identificação do
Mundo com a igualdade da unidade reside no facto de, com base na co-substancialidade
da igualdade da unidade com a unidade absoluta, podermos concluir a identidade entre o
Mundo e o próprio Absoluto.
Posto isto, podemos concluir que o Mundo foi, desde sempre, em deus, o próprio
deus. Como nos indica Nicolau de Cusa: «Portanto, todas as coisas que têm sido feitas
foram nele [em deus], necessariamente, desde a eternidade. Pois, aquilo que foi feito, foi
sempre no Poder-Ser, sem o qual nada foi feito» (100).

(98) Sobre este tema, cf. DI, II, IX, 148, 150. Veja-se também DI, II, 3, 108 onde Nicolau de Cusa
escreve sobre o modo como a mente divina compreende, deste a eternidade, uma coisa de um modo e outra
coisa de outro modo, não obstante esta pluralidade seja nele unidade, e, portanto, seja ele próprio.
(99) «Ex hoc enim est filius, quod est aequalitas essendi res, ultra quam vel infra res esse non
possent», DI, I, XXIV, 80
(100) «Omnia igitur quae facta sunt in ipso ab aeterno necesse est fuisse. Quod enim factum est, in
posse esse semper fuit, sine quo factum est nihil», DPo, 16. Ainda numa outra formulação, que aponta
precisamente para a mesma ideia, escreve Nicolau de Cusa: «Portanto, antes do mundo ser feito, no próprio
antes, o mundo é visto como não feito [e], consequentemente, como existindo por si» — «In ipso igitur
ante, antequam mundus fieret, videtur mundus non factus, ideo per se subsistens», DP, 23.
Por outras palavras, podemos dizer que deus não é sem o mundo, dado que o mundo é nele, desde
a eternidade, ele próprio. Walter Schulz, comentando a questão da criação em Nicolau de Cusa, acaba por
concluir justamente que: «a imagem visível [entenda-se, o mundo] está, pois, desde sempre, mas invisível,
no imaginador originário que imagina; e ao contrário: a imagem originária invisível é conservada ainda,
mas como algo que se tem feito visível, na imagem. Se se toma a sério esta relação dialéctica entre Deus e
o ente, vê-se que o Deus de Nicolau de Cusa não é sem mundo. O Cusano não conhece um ser-para-si de
um deus separado do mundo» — «La imagen visible está pues desde siempre, pero invisible, en el
imaginador originário imaginante; y a la inversa: la imagen originaria invisible es conservada aún, pero
como algo que se ha hecho visible, en la imagen. Si se toma en serio esta relación dialéctica entre Dios y el

47
Portanto, o Mundo, no que diz respeito à sua criação, sendo uma criação desde a
eternidade e na eternidade, não teve um começo, não é temporal (101), porque na
eternidade é a própria eternidade.
Isto permite-nos entender as teses do cardeal cusano que defendem que «porque
deus é, todas as coisas são» (102). Numa leitura que considere a criação posterior ao seu
princípio, esta afirmação seria falsa, uma vez que teria havido um momento em que deus
teria sido e a criatura não.
De facto, Alberto, o interlocutor de Nicolau de Cusa no De ludo globi, coloca em
cima da mesa precisamente esta ideia quando refere que: «Seria agradável a sua conclusão
[daquele que defende que, “porque deus é, todas as coisas são”] se não fosse a oposição
de que deus existiu desde a eternidade, enquanto que as criaturas tiveram um princípio»,
respondendo Nicolau de Cusa de imediato:

«Estás enganado. Pois imaginas que antes da criação [entenda-se aqui por criar o fazer]
do mundo, deus existiu e a criatura não. Mas quando prestas atenção ao facto de sempre
que for verdade dizer que deus foi, foi também verdade dizer que a criatura foi, verás que
não podemos propriamente dizer que deus foi antes das criaturas» (103)

ente, se verá que el Dios de Nicolás de Cusa no es sin mundo. El Cusano no conoce un ser-para-sí de un
Dios separado del mundo», SCHULZ, Walter, El dios de la metafísica moderna, 1, p.17.
Alicerçando a sua posição na tese cusana que defende que «se consideras as coisas sem ele [deus],
então são nada, como o número sem a unidade» — «Si consideras res sine eo, ita nihil sunt sicut numerus
sine unitate DI, II, III, 110, João Maria André declara, expressamente contra a interpretação feita por
Schulz, o seguinte: «Parece-nos, por isso, abusivo afirmar que o Deus de Nicolau de Cusa não é sem o
mundo, na medida em que esse Deus já é, por sua própria natureza, um Deus-para-si, independentemente
do mundo em que a dinâmica criadora do Logos acaba por se exteriorizar por sua omnipotente vontade»,
JOÃO MARIA ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação, p.179. Também contra esta afirmação de
Schulz nos é dito o mesmo por Hopkins em Nicholas’s of Cusa metaphysic of contraction, pp.26-27 (A não
ser a leitura que Hopkins faz deste ponto específico com a qual discordamos, todas as críticas que levanta
contra a interpretação de Walter Schulz — que pretende encontrar em Nicolau de Cusa as raízes da teoria
moderna da subjectividade absoluta —, me parece mais que acertadas. Para um aprofundamento desta
polémica veja-se HOPKINS, ibidem, pp. 17-32).
A meu ver, aquilo para o qual a afirmação cusana, tida por base por João Maria André, aponta é a
subsistência ontológica do mundo já explicado. Isto é, o mundo contraidamente explicado, não pode ser
sem o próprio ser que assim se manifesta. Todavia, isto não quer dizer, como a afirmação de João Maria
André (e também de Hopkins) deixa em aberto, que deus pode ser sem o mundo, uma vez que o próprio
mundo está nele, enquanto ele mesmo, desde a eternidade. Ou, se quisermos, uma vez que não há um mundo
separado e diferente de deus.
(101) Como sublinha Nicolau de Cusa no De Ludo Globi: «Pois, o mundo não começou no tempo»
— «Mundus enim non incepit in tempore», LG, I, 18.
(102) «quia deus est, omnia sunt», VS, XII, 31. Cf., igualmente, LG, II, 87.
(103) «Tu deciperis. Imaginaris enim ante mundi creationem deum fuisse et non creaturas. Sed dum
attendis quod numquam verum fuit dicere deum fuisse quin et creaturae essent, “vides deum ante creaturas
non proprie dici fuisse”», LG, II, 87.

48
Por esta posição, Nicolau de Cusa nega o facto de, antes de ter sido feito, o Mundo
não ter sido. O Mundo era mesmo antes de ter sido feito, mesmo antes de ter tido ex-
istência temporal.
Chamo a atenção para o facto de a afirmação «sempre que foi verdade dizer que
deus é, foi igualmente verdade dizer que a coisa foi» ou, simplificando, para o facto de
essa identidade entre Absoluto e finito ou deus e Mundo não se verificar somente neste
patamar, por assim dizer, originário, pré-explicatio, de um Absoluto ainda não expresso
na multiplicidade. Esta identidade persistirá igualmente no Mundo contraidamente
explicado na diversidade (tema que será desenvolvido na segunda parte deste escrito).
É interessantíssimo observar como estas categorias — nomeadamente, Absoluto,
verbo, igualdade, Mundo, ratio —, se entrecruzam e, na verdade, acabam por coincidir.
O próprio Nicolau de Cusa taxativamente sustenta esta identificação quando escreve que:
«E o logos é o verbo co-substancial ou ratio do pai definido que se define a si mesmo»
(104), esclarecendo de imediato que o logos — tal como em outras instâncias nos foi dito
usando a categoria de «verbo» —, «complica em si todo o definível [tudo aquilo que será
ex-plicado], uma vez que nenhuma coisa pode ser definida sem a ratio da única [coisa]
necessária» (105).

(104) «Et logon est consubstantiale verbum seu ratio diffiniti patris se diffinientis», DP, 9.
(105) «In se omne diffinibile complicans, cum nihil sine ratione unius necessarii diffiniri possit»,
DP, 9. Não posso deixar de assinalar o tema que Nicolau de Cusa introduz neste mesmo passo do De
Principio e que diz respeito ao auto-conhecimento do próprio Absoluto, bem como ao conhecimento das
coisas pelo Absoluto. Escreve Nicolau de Cusa: «Não podemos negar que [deus] se entende, uma vez que
ele é melhor de que aquele que se entende. E assim, gera a partir de si próprio a sua própria ratio, ou
definição ou logos. Esta definição é a ratio pela qual a única coisa necessária entende tanto a si próprio,
[como tudo aquilo que] é unido pela unidade e que pode ser feito» — «Et non possumus negare, quin se
intelligat, cum melius sit se intelligente. Et ideo rationem sui seu diffinitionem seu logon de se generat.
Quae diffinitio est ratio, in qua se unum necessarium intelligit et omnia, quae unitate constringuntur et fieri
possunt», DP, 9.
Esta passagem não é solitária na obra do Cusano. Anterior ao De Principio, no escrito sobre a
igualdade, revestida sob uma formulação distinta, deparamo-nos com a mesma tese: «No verbo o pai
conhece-se e conhece todas as coisas, porque ele é o pai do verbo. O verbo conhece-se e conhece todas as
coisas porque [ele é] o verbo do pai» «Pater se et omnia cognoscit in verbo, quia pater verbi; verbum se et
omnia cognoscit, quia verbum patris», DAe, 32.
Também encontramos a mesma referência numa das últimas obras de Nicolau de Cusa,
Compendium: «Ele [deus] conhece-se a partir do Verbo originado a partir de si» — «Quodque ipse in verbo
de se genito se cognoscit», COM, VII, 21.
Penso que o conhecimento de deus, através do verbo, de si mesmo, não se deve resumir ao
conhecimento do facto de ser o pai do verbo ou o criador do Mundo. Julgo haver uma camada ainda mais
profunda deste autoconhecimento. Penso que este auto-conhecimento de deus através do verbo refere-se à
mostração, explicitação, definição, por si mesmo, em si mesmo e para si mesmo, de si mesmo, daquilo que
ele é. O Absoluto define-se, determina-se, pelo ou, para ser ainda mais precisos, como o verbo, obtendo
assim a sua definição. Assim, o Absoluto conhece que ele é tudo aquilo que ele define; tendo o poder de
definir tudo aquilo que pode ser, então deus conhece-se como sendo tudo aquilo que pode ser. É neste
sentido também que, pelo verbo conhece todas as coisas. Conhece as coisas enquanto aquilo que
verdadeiramente elas são: ele próprio, o próprio Absoluto.

49
Vimos que para o Absoluto ser a ratio de todas as coisas é necessário ser igual a
todas as coisas. De seguida, entendemos que a igualdade aponta, de facto, para uma
identidade. Assim, o Absoluto ser a ratio das coisas significa que o Absoluto tem de ser
as próprias coisas. Percebemos ainda melhor que assim o é quando analisamos o conceito
de igualdade de ser e compreendemos que este coincide com o Verbo — que é co-
substancial com deus —, que, por sua vez, coincidem com o mundo, com as próprias
coisas (106).

Analisámos, até agora, apenas uma parte da equação. Resta perceber em que
consiste ou o que é, na verdade, a criação ex nihilo, compreensão que passa,
necessariamente, pelo escrutínio do significado do próprio nada ou não-ser.
Comecemos por inquirir a origem do nada. Sobre esta, em De deo abscondito,
Nicolau de Cusa diz-nos o seguinte: «mas, o não-ser não tem um princípio de não-ser,
mas tem apenas um princípio de ser. Pois o não-ser necessita de um princípio para ser.
Portanto, assim, [deus é] o princípio do não-ser, porque o não-ser, sem ele, não é» (107).
Em primeiro lugar, Nicolau de Cusa esclarece que o nada ou o não-ser é, o que
põe de lado qualquer leitura do não-ser ou do nada enquanto um vazio, ou uma
inexistência absoluta.
Em segundo lugar, é-nos dito que, para que o nada seja é necessário que o próprio
Absoluto seja o seu princípio. Ora, o nada ter um princípio não deve ser confundido com
o nada ter sido criado, no sentido em que acima foi analisado. E isto porque o nada ter
sido criado implicaria:
por um lado, que o nada teria sido criado a partir de si mesmo — dado que toda a
criação é a partir de nada —, o que implicaria, por conseguinte, que o nada já era antes

(106) Penso que podemos encontrar um resumo perfeito daquilo que até aqui viemos discutir num
trecho da De Aequalitate que dá conta não apenas da identidade entre ratio, verbo, logos ou conceito, mas
também da identidade destes com o próprio Absoluto com base na co-substancialidade e, implicitamente,
como vimos do Mundo com o Absoluto: «Pois no princípio, antes de qualquer coisa que deus o pai fez,
teve de haver aquilo sem o qual nada foi feito. Ora, sem o logos, ou conceito, ou verbo nada foi feito pelo
mais sábio deus, o pai e o criador de todas as coisas. Portanto, no princípio, antes de deus pai ter criado
algo, houve o logos, e não era a não ser junto de deus. E porque [no princípio] não havia nenhum outro, o
verbo não esteve com deus como se [fosse] um outro, mas era idêntico a deus. Portanto, como é evidente,
foi necessário que deus o pai e o criador tenha um verbo racional, não outro, mas [um verbo] que fosse co-
substancial com ele» — «Nam in principio, antequam quidquam deus pater faceret, oportebat illud esse,
sine quo nihil factum est, sed nihil a sapientissimo deo patre et creatore omnium sine logo, ratione sive
verbo factum est; erat igitur in principio, antequam quidquam faceret logos, et non erat nisi apud deum. Et
quia non erat aliud, hinc etiam non erat sic apud deum quasi aliud, sed erat idem deus verbum. Unde patet
quod necesse fuit deum patrem creatorem habere verbum rationale non alterum, sed consubstantiale
suiipsius, scilicet consubstantiale verbum», DAe, 44.
(107) «Sed non-esse non habet principium non-essendi, sed essendi. Indiget enim non-esse
principio, ut sit. Ita igitur est principium non-essendi, quia non-esse sine ipso non est», DA, 11.

50
de ter sido criado, o que é impossível. Para ser, o nada pressupõe o ser: «O próprio não-
ser não [poderia ter-se criado a si mesmo], uma vez que não pressuporia o ser, do qual
fosse trazido [ao ser]» (108).
por outro lado, o nada poder existir em acto, isto é, existir enquanto algo
determinado, algo finito o que, como teremos a oportunidade de perceber, é impossível.
Sobre isto, Nicolau de Cusa escreve o seguinte: «Pois, certamente, toda a criatura
existente em acto [actu exsistens] pode existir; pois, o que não pode existir, não existe.
Portanto, o não-ser não é uma criatura. Pois, se fosse uma criatura, com certeza existiria»
(109).
Em que sentido, então, encontra o nada, no Absoluto, o seu princípio? Ou, como
também nos é dito pelo cardeal cusano no De Possest, em que sentido o nada pressupõe
o ser? (110)
No meu entendimento, o nada tem um princípio ou pressupõe um princípio, do
mesmo modo como na trindade o filho pressupõe o pai ou, nas categorias do cardeal
alemão, a igualdade da unidade pressupõe a unidade, ou a possibilidade pressupõe o acto.
Ora, esta tese da pressuposição é deixada bem patente por Nicolau de Cusa quando
se debruça sobre a diferença entre o pai e o filho, escrevendo que há uma diferença entre
ambos: «porque o Ser pressupõe o Poder, uma vez que nada é a não ser que haja [o poder],
a partir do qual seja, mas o poder nada pressupõe, uma vez que é a eternidade» (111) sendo,
neste contexto, o pai identificado com o Poder, com a Possibilidade e o filho com o Ser
ou o Acto, como no parágrafo imediatamente anterior ao supra citado é esclarecido: «Mas,
uma vez que os cristãos distinguem as seguintes pessoas: a pessoa do próprio Poder
Absoluto que chamamos o omnipotente pai e outra do próprio Ser que, por ser do próprio
Poder, chamamos o filho do pai, […]» (112).
Assim, do mesmo modo como o filho pressupõe o pai, tal como o Ser pressupõe
o Poder ou a Potência pressupõe o Acto, do mesmo modo o nada pressupõe o Ser.
Traslado esta tese fundada no tema da trindade para a questão que visa a origem
do nada, com base na definição do não-ser oferecida por Nicolau de Cusa no De Possest:

(108) «Non ipsum non-esse, quando non praesupponeret esse a quo produceretur», DPo, 67.
(109) «Omnis enim creatura actu exsistens utique esse potest. Quod enim esse non potest, non est.
Unde non-esse non est creatura. Si enim est creatura, utique est», DPo, 5.
(110) Cf., DPo, 66.
(111) «Quia esse praesupponit posse, cum nihil sit nisi possit a quo est, posse vero nihil
praesupponit, cum posse sit aeternitas», DPO, 49.
(112) «Sed cum Christiani dicant aliam esse personam ipsius absoluti posse, quam nominamus
patrem omnipotentem, et aliam ipsius esse, quam quia est ipsius posse nominamus filium patris», DPo, 48.

51
«Portanto, nele [em deus] o não-ser é tudo aquilo que pode ser» (113). Repare-se como o
nada é definido enquanto a própria Possibilidade Absoluta que, como nos é dito no De
Possest pressupõe o Acto Absoluto sem o qual não poderia ser, dado que a possibilidade
necessita de um acto para ser. Na verdade, e atendendo ao fragmento inicial do De Possest
no qual é estabelecida a fundação da categoria de possest, repare-se que esta
pressuposição, do Ser pelo nada, do Poder pelo Ser, da Possibilidade pelo Acto, é, de
facto, recíproca:
«Portanto, uma vez que a actualidade é em acto, seguramente ela também pode ser, uma
vez [o que é] impossível ser não é. Nem a possibilidade absoluta pode ser outra de que a
possibilidade, assim como nem a actualidade absoluta pode ser outra que actualidade.
Nem pode, esta mesma possibilidade que foi mencionada, ser antes da actualidade, do
modo que dizemos que alguma potência particular precede o acto. Pois como poderia [a
possibilidade absoluta] tornar-se em acto a não ser pela actualidade? Pois, se o poder-ser-
feito [posse-fieri] a si mesmo se trouxesse ao acto, existiria em acto antes de existir em
acto. Portanto, a possibilidade absoluta, da qual estamos a falar e pela qual estas coisas
que são em acto, podem ser em acto, não precede o act, em sucede o acto. Pois como
poderia o acto ser se a possibilidade não fosse? Portanto, a potência e o acto absolutos e
o nexo entre ambas são co-eternas. Não são mais de que uma coisa eterna; mas, são
eternas de tal modo que são a própria Eternidade» (114)

A Possibilidade Absoluta, a Potência Absoluta, o Poder Absoluto, pressupõem o


Acto Absoluto, o Ser, para serem, dado que, sem estes últimos, não poderiam ser. Se
pudessem ser sem o Acto, seriam antes de ser, o que é impossível. Neste caso, parece que
o Acto antecede a Possibilidade.
Do mesmo modo, o Acto ou o Ser Absoluto não pode ser sem a possibilidade,
uma vez que, somente na medida em que algo pode ser, é. Assim, acontece que, segundo
esta vertente, a Possibilidade antecede o Acto.
Dada esta mútua pressuposição conclui Nicolau de Cusa que o Poder e o Ser, o
Acto e a Potência, o Ser e o não-ser, coincidem com a única substância eterna que é o
Absoluto, como categoricamente afirma no escrito De Genesi: «De facto, é necessário
que no Mesmo Absoluto, ser e não-ser sejam o Mesmo Absoluto» (115).

(113) «In ipso igitur non-esse est omne quod esse potest», DPo, 73.
(114) «Cum igitur actualitas sit actu, utique et ipsa potest esse, cum impossibile esse non sit. Nec
potest ipsa absoluta possibilitas aliud esse a posse, sicut nec absoluta actualitas aliud ab actu. Nec potest
ipsa iam dicta possibilitas prior esse actualitate quemadmodum dicimus aliquam potentiam praecedere
actum. Nam quomodo prodisset in actum nisi per actualitatem? Posse enim fieri si se ipsum ad actum
produceret, esset actu antequam actu esset. Possibilitas ergo absoluta, de qua loquimur, per quam ea quae
actu sunt actu esse possunt, non praecedit actualitatem neque etiam sequitur. Quomodo enim actualitas esse
posset possibilitate non exsistente? Coaeterna ergo sunt absoluta potentia et actus et utriusque nexus. Neque
plura sunt aeterna, sed sic sunt aeterna quod ipsa aeternitas», DPo, 6.
(115) «Immo esse et non-esse in idem absoluto idem ipsum esse necesse est», DG, I, 145.

52
Posto isto, é fácil concluir que o nada é o próprio Absoluto (sendo justamente por
esta razão que o nada não pode existir em acto, isto é, não se pode identificar, sem mais
e de imediato, com o existente) o que, retomando o fio conduto deste capítulo, nos leva a
uma interessantíssima conclusão quanto à criação ex nihilo.
A criação a partir de nada não é uma criação de deus a partir de uma entidade
outra. A criação ex nihilo é uma criação de deus a partir de si mesmo, na medida em que
é tudo aquilo que pode ser, não podendo, assim, criar a partir de um outro: «Portanto, ele
[deus] não cria a partir de nenhum outro, mas a partir de si mesmo, uma vez que é tudo o
que pode ser» (116).
Assim, a criação do mundo a partir de nada poder-se-ia traduzir como a criação
de deus, em si mesmo, por si mesmo, enquanto mundo; como o seu tornar-se mundo em
si e por si mesmo. Resta-nos agora perceber como se dá o tornar-se mundo de deus no
próprio mundo.

(116) «Ideo de nullo alio creat, sed ex se, cum sit omne quod esse potest», DPo, 73. Analisando
retrospetivamente, observamos como esta ideia já se encontrava presente na geração da igualdade da
unidade pela unidade, que apontava precisamente para esta criação a partir de si mesmo.
É digno de nota o facto de, para Hopkins, a criação ex-nihilo não ser uma criação a partir de deus,
mas sim, literalmente a partir de coisa alguma: «Nicolau afirma a doutrina da creatio ex nihilo — i.e., a
criação [que não é] nem a partir da substância de Deus, nem a partir de um material pré-existente» —
«Nicholas affirms the doctrine of creatio ex nihilo—i.e., creation neither out of the substance of God nor
from any pre-existing material» VS, tradução inglesa de Hopkins, nota 327.

53
PARTE II—DESCIDA DO ABSOLUTO NO FINITO.ACERCA DA UNIDADE
DIALÉTICA DO TODO.

1. Complicatio – Explicatio: um problema de relação. Acerca da complicatio.

Comecemos esta segunda parte da nossa jornada com um dos núcleos temáticos
centrais do pensamento do cardeal cusano: a parelha categorial complicatio-explicatio,
que nos ajudara a compreender a maneira segundo a qual o cardeal alemão pensa a
identidade entre a unidade e a multiplicidade.
Não obstante as curtas redações e aparentemente simples formulações das
explicações do significado destes conceitos, encontramo-nos perante um problema
bicudo. Não apenas devido ao profundo e complexo significado impresso em cada um
destes conceitos, mas também e, porventura, sobretudo, devido à relação que entre ambos
é estabelecida por Nicolau de Cusa.
Indo às célebres formulações da De docta ignorantia, Nicolau de Cusa define,
num primeiro momento, os conceitos de complicatio e explicatio nas seguintes palavras:
«Portanto, deus, [enquanto] aquele que complica, é todas as coisas, por todas as coisas
[estarem] nele. Explicando, é todas as coisas por ele próprio [estar] em todas as coisas»
(117)
E, em segundo lugar, a passagem onde é esclarecida a implicação desta presença
das coisas em deus e vice-versa: «[…] deus é a complicação e a explicação de todas as
coisas e — enquanto complicação —, todas as coisas em si, são ele próprio — enquanto
explicação— ele próprio, em todas as coisas, é aquilo que estas são, tal como a verdade
na imagem» (118)
Tendo por base estes dois excertos, construiremos a nossa análise em torno de
dois grandes vértices de cujo esclarecimento e clarificação depende uma boa

(117) «Deus ergo est omnia complicans in hoc, quod omnia in eo; est omnia explicans in hoc, quod
ipse in omnibus», DI, II, III, 107.
(118) «Deum omnium rerum complicationem et explicationem, et – ut est complicatio – omnia in
ipso esse ipse, et – ut est explicatio – ipsum in omnibus esse id quod sunt», DI, II, III, 111.
Mesmo depois desta claríssima explicação de Nicolau de Cusa de que deus, enquanto explicatio,
está nas coisas enquanto as próprias coisas, opondo-se a uma citação de Klaus Jacobi, Jasper Hopkins
escreve o seguinte: «Todavia, embora esta passagem ensine que o Máximo Absoluto está presente no
máximo contraído (i.e., o universo), não ensina que o Máximo Absoluto por isso se torna contraído» —
«However, though this passage teaches that the Absolute Maximum is presente in the contracter maximum
(viz., the universe), it does not teache that the Absolute Maximum thereby becomes contracted»,
HOPKINS, Jasper, Nicholas’s of Cusa metaphysic of contraction, p.53.
A explicatio não se resume a afirmação da presença de deus nas coisas; indica também, e,
porventura, sobretudo, por causa dessa mesma presença, a identificação com essa mesma coisa
determinada.

54
compreensão deste tema e, consequentemente, da identidade entre o Absoluto e o finito
tal como pensada por Nicolau de Cusa através destas categorias (119).

Assim, em primeiro lugar, impõe-se deixar claro que os conceitos de complicatio


e explicatio não procuram ser sinónimos dos conceitos de unidade e multiplicidade, ou
deus e mundo, respectivamente — como se a unidade não comportasse a multiplicidade
e a multiplicidade não fosse una.
A complicatio não é simplesmente a unidade absoluta, não é simplesmente
sinónimo de deus, assim como nem a explicatio coincide, sem mais, com a multiplicidade
ou o Mundo — contrapondo-se, deste modo, a complicação à explicação, tal como se
pretende contrapor deus ao Mundo ou a unidade à multiplicidade. A complicatio e a
explicatio não representam entidades, mas sim, movimentos — para dentro e para «fora»,
—, e relações — entre múltiplo e uno e uno e múltiplo, respectivamente.
Pode-se dizer que os conceitos de complicatio e explicatio representam duas vias
distintas para pensar o mesmo, nomeadamente, a relação ontológica existente entre a
unidade e a multiplicidade, por outras palavras, a totalidade, partindo de patamares de
análise diferentes. Mais precisamente, a identidade patente entre ambos, sendo a
designação desta identidade relativa ao tabuleiro no qual é colocada. Se quisermos, ainda
por outras palavras: cada conceito visa analisar e expressar, de pontos de vista diferentes,
a totalidade que o real é.
Analisando os trechos acima citados, podemos começar por esclarecer que a com-
plicatio, no que toca ao movimento que retrata, assinala, literalmente, a dobragem para
dentro, para a unidade, da multiplicidade. No que se refere à relação que busca traduzir,
partindo do plano da unidade, a complicatio dá conta da presença e pertença do múltiplo
no uno e, por esta razão, da consequente identidade do múltiplo com o uno.

(119) Hopkins, ao debruçar-se sobre as relações explicitadas pelas categorias de complicatio e


explicatio acrescenta que, por estas ideias, o cardeal alemão não tenciona sustentar que deus é a soma de
todas as coisas evitando, por conseguinte, o panteísmo. Nas palavras de Hopkins: «No entanto, Nicolau
também declara que Deus é todas as coisas e que em Deus todas as coisas são Deus. Por esta formulação,
todavia, ele não quer dizer que Deus é idêntico com a soma total dos objectos que constituem o mundo
criado. (De facto, como referido antes, ele consegue evitar o panteísmo) — «Yet Nicholas also declares
that God is all things and that in God all things are God. By this formula, however, he does not mean that
God is identical with the sum total of objects which constitute the created world. (Indeed, as stated earlier,
he manages to avoid pantheism)», HOPKINS, Jasper, A concise introduction, p.28. A questão que importa
levantar neste ponto é saber se o panteísmo pode ser reduzido a esta definição. Isto é, deus coincide com o
mundo apenas na medida em que é a soma morta de todos os elementos constituintes do mundo? O pan-
teismo, o facto de deus ser tudo, não pode, a meu ver, ser circunscrito a esta leitura, podendo ser apresentado
sob outras formulações, porventura mais ricas e complexas do que aquela que, nesta passagem, Hopkins
nos apresenta.

55
Por seu turno, a ex-plicatio¸ em termos do movimento que descreve, aponta
literalmente para a dobragem para «fora», a des-dobragem ou a ex-posição da unidade
numa multiplicidade. Quanto à relação de que é sinal, partindo do plano da
multiplicidade, a explicatio tem o objectivo de definir a presença e pertença do uno no
múltiplo — na sua totalidade e nas suas partes individualmente determinadas —, e, por
conseguinte, a identidade do uno com o múltiplo.
Numa formulação sucinta, mas que surpreende o núcleo deste par conceptual,
escreve Barata-Moura que a complicatio e a explicatio, enquanto indício de «um intento
dialéctico de abordagem do real na sua unidade e concreção», visam «proporcionar um
esquema de inteligibilidade, a um tempo, para a unificação do múltiplo e para a
desmultiplicação do uno» (120).
Assim, o Todo, que a relação de identidade entre o uno e o múltiplo constitui, é
pensada, ora como deus — se o plano de análise subjacente for a unidade —, ora como
Mundo — se o ponto de partida for a multiplicidade. É o mesmo pensado de duas formas
diferentes, partindo de dois planos de análise distintos.
O próprio Nicolau de Cusa assinala isto quando escreve que: «Todas as coisas,
complicadamente em deus, são deus, assim como explicitamente nas criaturas do mundo,
são mundo» (121), ou, numa formulação, porventura, ainda mais esclarecedora:

«Portanto, comunica-se sem diminuição [indiminute]. Portanto, parece que é o mesmo


deus e a criatura, segundo o modo do doador deus, e segundo o modo do dado, a criatura.
Portanto, não será senão uma única coisa, que segundo o modo da diversidade receberá
vários nomes. Portanto, esta única coisa será eterna segundo o modo do doador e temporal
segundo o modo do dado; e será tanto o criador como o criado, e assim por diante» (122)

(120) BARATA-MOURA, José, Totalidade e contradição, p.80.


(121) «omnia illa complicite in deo esse deus sicut explicite in creatura mundi sunt mundus», DPo,
9.
(122) «Communicat igitur se indiminute. Videtur igitur quod idem ipsum sit deus et creatura,
secundum modum datoris deus, secundum modum dati creatura. Non erit igitur nisi unum, quod secundum
modi diversitatem varia sortitur nomina. Erit igitur id ipsum aeternum secundum modum datoris et
temporale secundum modum dati eritque id ipsum factor et factum, et ita de reliquis», DPL, II, 97.
Esta é, segundo a leitura de Hopkins, a passagem chave na interpretação de Kalus Jacobi, contra a
qual o Hopkins levanta a seguinte objecção: «Claro está, Jacobi sabe que Nicolau afirma explicitamente:
“Sem dúvida, à maneira de falar acima referida falta precisão”; mas Jacobi aparentemente considera,
todavia, Nicolau como acreditando no seu coração que a maneira acima referida de falar é verdadeiramente
mais ou menos precisa» — «Of course, Jacobi knows that Nicholas explicitly says “Without doubt the
forgoing manner of speaking lacks precision”; but Jacobi apparently regards Nicholas as nonetheless
believing in his heart that the foregoing manner of speaking really is more or less precise», HOPKINS,
Jasper, Nicholas’s of Cusa metafphysic of contraction, p.44.
Ora, de salientar que Hopkins não cita a passagem completa, deixando de fora o resto da frase:
ainda que a maneira de falar referida carece de precisão, todavia, ela nos ajuda a olhar intelectualmente
para o problema em causa.
Aquilo que, a meu ver, está aqui em jogo é a incompreensão de Hopkins do plano em que o
discurso de Nicolau de Cusa se situa. A tese que Jacobi tem por base e que nós igualmente utilizamos é

56
Acrescentando de imediato o cardeal alemão que «sem dúvida, este modo de falar carece
de precisão; mas nos [deixa] investigar o entendimento da verdade» (123).
Deste modo, dependendo do referencial que temos por base, a totalidade é vista
ora de uma maneira, ora de outra (124).

uma maneira intelectual de exprimir a complexidade da totalidade que, ora é pensada como deus, ora é
pensada como mundo, dependendo do plano de análise a partir do qual se consideram as relações entre o
uno e o múltiplo, subjacentes a esta totalidade.
Um outro argumento levantado por Hopkins contra esta posição é o facto de não ser levada a sério
a expressão «videtur igitur», ou seja, «portanto, parece que». Isto é, segundo Hopkins, Nicolau de Cusa não
afirma a sua tese com toda a convicção, mas avança, como que, uma ilustração ou uma metáfora. Há,
todavia, um problema: a afirmação cusana representa uma tese conceptual e intelectualmente formulada,
pelo que é e será sempre uma afirmação aproximada, uma conjectura, acerca do Absoluto, do infinito. Por
outros termos, parece que as coisas são assim na medida em que, humana e intelectualmente, não podemos
ir mais longe no conhecimento conceptual divino; parece que é assim porque, pela intuição intelectual, pela
visão de deus enquanto o próprio infinito, sabemos que nada sabemos ou que não podemos saber nada
acerca dele por ser infinito, sendo as nossas afirmações acerca dele sempre aproximações, infinitamente
distantes daquilo que é o infinito. As mesmas posições de Hopkins podem ser igualmente encontradas em
Miscellany on Nicholas of Cusa, cap. I Nicholas of Cusa and John Wenck’s Twentieth-Century
counterparts, (doravante Wenck’s counterparts) p.10-11.
Repare-se ainda como, no seu Nicholas of Cusa on learned ignorance, Hopkins se opõe à ideia de
Nicolau de Cusa que acabamos de referir escrevendo o seguinte: «Todavia, há que deixar claro que Nicolau
não subscreve a uma teoria de duplo aspecto, segundo a qual o mundo e Deus, ainda que idênticos, podem
ser vistos, de acordo com um aspecto, como mundo, de acordo com outro, como Deus. Esta doutrina foi
reservada para Spinoza lançar num período mais tardio da história da filosofia. Nicolau ensina algo mais
tradicional: o mundo não é idêntico com Deus, mas é apenas uma imagem de Deus» —«Nonetheless, let it
be clear that Nicholas is not subscribing to a double aspect theory, in terms of which the world and God,
though identical, may be viewed according to one aspect as world, according to another as God. This
doctrine was reserved for Spinoza to set forth at a later period in the history of philosophy. Nicholas himself
teaches something more traditional: the world is not identical with God but is only an image of God.
HOPKINS, Jasper, Nicholas of Cusa on learned ignorance, p.23-24.
Como pode Hopkins afirmar que Nicolau de Cusa não defende uma teoria que sustenta uma, por
assim dizer, dupla visão ou uma visão de dois pontos de vista, da totalidade que é o real se, como acabamos
de ver, o cardeal cusano expõe muito claramente esta tese no fragmento que acabamos de citar?
(123) «Indubie hic dicendi modus praecisione caret, sed intelligentiam veritatis inquiramos», DPL,
II, 98. Ou seja, ainda que lhe falte precisão, ajuda-nos a ver e entender correctamente esta questão. Falta-
lhe precisão pois é um modo intelectual de apreensão de aquilo que é e, neste sentido, é um modo ainda
determinado.
(124) Com base na admissão concomitante, expressa por Nicolau de Cusa, da identidade e da
diferença entre deus e mundo, Beierwaltes escreve que: «Uma vez que o Cusano nunca concebeu a
proposição Deus est omnia isolada da proposição de que Deus está acima de tudo ou é nada de tudo, ele
subtrai-se à suspeita de panteísmo que com ligeireza alguém expressou. No mundo Deus não é à maneira
do mundo» — «Poiché Cusano non ha mai concepito la proposizione «Deus est omnia» isolata dalla
proposizione che Dio é sopra tutto o il nulla di tutto, egli si sotrae al sospetto di panteismo che con
leggerezza qualcuno ha espresso. Nel mondo Dio non è al modo del mondo», BEIERWALTES, Werner,
Identitá e differenza, p.154. É, desde logo, questionável a afirmação de que, pelo facto de a identidade entre
deus e mundo não ser pensada à luz da mesmidade, Nicolau de Cusa se «subtrai» ao panteísmo. Definir o
panteísmo à luz desta ideia é redutor. Quanto à última afirmação de Beierwaltes há que dizer que, no mundo,
deus é o próprio mundo, ainda que não se reduza àquilo que o mundo é, mas sim, sendo tudo aquilo que,
em geral, pode ser. Esta observação poder-se-ia facilmente aplicar a uma outra afirmação de Beierwaltes
que nos diz o seguinte: «o não-outro, todavia, não é num outro, outro de si mesmo. É e permanece o mesmo,
ainda que se manifeste em todas as coisas de diferentes maneiras. Apesar de ser tudo em tudo, ele
permanece, portanto, o mesmo, apenas quando é nada de tudo, portanto nada singular, definido ou: não é
algo do modo que este algo é» — «il non-altro non è tuttavia in un altro, un altro como se stesso. è e rimane
stesso, anche se si manifesta in tutte le cose in modo diferente. Sebbene sia tutto in tutto, è e rimane, dunque,
se stesso solo quando è niente di tutto, quindo niente di singolo, di determinato, o: non è qualcosa nel modo
di cui questo stesso qualcosa è», BEIERWALTES, Werner op. cit., p.156. Segundo o autor, no finito, o

57
Numa cristalina formulação, ao pronunciar-se acerca desta questão, Barata-Moura
resume esta relação nas seguintes palavras: «A relação de alteridade ôntica entre “deus”
e o “mundo” converte-se, deste modo, numa relação de diferença quanto ao tabuleiro em
que o uno e múltiplo passam a ser encarados» (125).
Por conseguinte, a dicotomia deus-mundo, que marcava a diferença ôntica entre
duas entidades opostas, sinaliza agora dois caminhos diferentes de pensar o mesmo: a
totalidade que constitui a identidade entre o uno e múltiplo. É considerada como deus se
o múltiplo for pensado como estando no uno e identificando-se com este; é encarada como
mundo se o uno for pensado como estando no uno e coincidindo com este.

Se a primeira questão visava esclarecer as relações subjacentes a cada um dos


conceitos, a segunda questão que importa clarificar tem em mira a relação entre os
próprios conceitos de complicatio e explicatio.
Torna-se imperativo compreender que a relação entre a complicatio e a explicatio
não é uma relação sequencial e muito menos linear. Este é o fruto da leitura habitual da
relação entre a complicatio e explicatio que esboça um movimento vertical, unidirecional
de cima para baixo, no qual a complicatio constitui a estação de partida e a explicatio a
de chegada (126).
A meu ver, ainda que esta leitura não seja incorrecta é, sem dúvidas, incompleta,
revelando alguma superficialidade e simplismo no tratamento deste complexo e profundo
movimento que Nicolau de Cusa procura pensar por estas dois conceitos.

absoluto não é diferente de si mesmo, isto é, continua a ser absoluto, sendo que isto é possível apenas na
medida em que não se identifica com aquilo que determinada e singularmente aquele ente é.
(125) BARATA-MOURA, José, Totalidade e contradição, 10, p.80. Vincent Martin parece apontar
para o mesmo quando escreve que:
«De acordo com esta concepção, Deus deve ser considerado como tendo dois estados de ser: um,
com privação; o outro, sem privação. Deus sem privação é Deus como Ele é em si mesmo; Deus com
privação é Deus como Ele é nas criaturas […] Esta concepção envolve a teoria de que, na criação, Deus, de
algum modo, assume a privação — que Ele, de algum modo, se torna criatura […] O constituinte positivo,
o ser positivo, da criatura seria a própria divindade» — «According to this conception, God must be
considered as having two states of being: one, with privation; the other, without privation. God without
privation is God as He is in Himself; God with privation is God as He is in the creatures […] This conception
entails the theory that, in creating, God somehow takes on privation — that He somehow becomes the
creatures […] The positive constituent, the positive being, of the creature would be divinity itself»
MARTIN, Vincent, The dialectical process in the philosophy of Nicholas of Cusa, p.257. Subscrevo a
leitura de Vincent Martin, com excepção da divisão estabelecida entre deus enquanto em si e deus enquanto
mundo. Penso que, de modo a sermos mais rigorosos, aquilo que está em causa é a totalidade do real vista
ora enquanto deus, ora enquanto mundo dependendo do plano a partir do qual se faz a «interpretação»
daquilo que é e da respectiva relação entre uno e múltiplo.
(126) Cf. nota 134.

58
O problema desta leitura passa pela interpretação e identificação, directa e
imediata, da complicatio e explicatio com momentos ou estações de um movimento
linear, como se estes momentos representassem a definição destes conceitos. Na verdade,
e a profundidade desta questão reside neste ponto, eles representam, com certeza, estações
de um movimento, mas apenas na medida em que têm por base uma relação que
possibilita a sua identificação com estes momentos.
Pondo a questão em outros termos, a complicatio e a explicatio representam
primeiramente relações, devendo os momentos que através deles são igualmente
representados, serem lidos à luz destas relações. Os momentos que representam estão
subordinados à relação que os fundamenta.
Unicamente com base nesta leitura se torna possível desvendar a enigmática e algo
deslocada (relativamente ao conteúdo do respectivo capítulo) definição da relação entre
complicatio e explicatio presente na De docta ignorantia, que nos revela a verdadeira
conexão entre estes momentos e que nos diz o seguinte: «Com efeito, posta a
complicação, não é posta a coisa complicada, mas posta a explicação é posta a
complicação» (127).
A relação entre a complicatio e explicatio é desdobrada por Nicolau de Cusa, nesta
passagem, em dois momentos distinctos:
Por um lado, o momento originário no qual todas as coisas estão na unidade,
enquanto essa mesma unidade, antes da sua sensível manifestação. Aí, a complicação é
posta, isto é, verifica-se a relação de presença da multiplicidade na unidade e a sua
consequente identidade. Todavia, neste momento originário, como é óbvio, não é dada a
explicação, uma vez que ainda não houve a manifestação sensível do conteúdo da unidade
(poderíamos dizer que o conteúdo da explicatio está presente, mas que ainda não está
explicado, contraído, sensível e materialmente determinado).
Por outro lado, um segundo momento em que a explicação é posta, isto é, o
momento no qual a multiplicação é sensível e contraidamente explicada, estando o uno
no múltiplo e identificando-se com este.
O passo crucial dado por Nicolau de Cusa na direcção de uma leitura mais
profunda deste movimento consiste na afirmação de que, não obstante a explicação seja
posta, não obstante o uno esteja no múltiplo enquanto múltiplo ou deus esteja no mundo

(127) «Nam posita complicatione non ponitur res complicata, sed posita explicatione ponitur
complicatio», DI, I, XXII, 69.

59
enquanto mundo, é posta igualmente a complicação, isto é, a multiplicidade ou o Mundo
continuam a estar em deus e, por isso, continuam a ser o próprio deus (128).
Em outros termos, a explicação do conteúdo que a unidade originária encerra em
si desde a eternidade não se dá para fora ou para além desta unidade, dando origem, assim,
a uma alteridade ontologicamente diferente dela. Dá-se sim nela própria, sendo a
multiplicidade explicada, unitariamente complicada na unidade enquanto a própria
unidade.
Com base nesta ideia percebemos que, na verdade, não estamos perante um
movimento linearmente sequencial, mas sim, perante uma trajectória helicoidal: da
unidade que compreende a multiplicidade não determinada sensivelmente, para a
multiplicidade determinada que contém a unidade, para a unidade complicante dessa
mesma multiplicidade determinada. Um movimento em espiral no qual a explicatio e
complicatio acabam por se dar simultaneamente: uma unidade múltipla e uma
multiplicidade una.

(128) Ora, Hopkins, pelas explicações que nos oferece da complicatio e explicatio, negligencia esta
tese e, por conseguinte, negligencia o facto de a existência dos entes explicados em deus implicar a sua
identidade com este, como pode ser corroborado pelas seguintes passagens:
«Assim sendo, podemos ver as coisas criadas em dois sentidos diferentes: (1) como totalmente
derivando, num sentido último, do poder de Deus (i.e., como complicadas em Deus); (2) como sendo partes
de um continuou processo do mundo em que uma coisa está interrelacionada com outras coisas e em que
estas são causas secundárias da existência e da mudança (i.e., como explicadas de Deus). Do primeiro ponto
de vista, todas as coisas podem ser ditas ser no poder de deus e ser — no poder de Deus —, Deus sem
diferenciação […] do segundo ponto de vista, podem ser ditas existentes de acordo com a sua finitude e
distinctas de Deus e uma da outra. Porém, mesmo enquanto distinctas de Deus e explicadas a partir de deus
elas continuam a existir, num certo sentido, em Deus. Mas o sentido é agora diferente. Pois, uma vez que
no primeiro sentido elas existiam em Deus enquanto Deus, no segundo sentido elas existem como elas
próprias em Deus. O primeiro sentido está de acordo com o modo como as coisas existem em Deus enquanto
complicadas-em-Deus; o segundo sentido está de acordo com o modo como elas continuam a existir em
Deus enquanto existindo como explicadas- de- deus» — «Accordingly, we may view created things in two
different ways: (1) as totally deriving, in an ultimate sense, from God's power (i.e. as enfolded in God); (2)
as being parts of an on-going world process in which one thing is interrelated to other things and in which
there are secondary causes of existence and change (i.e., as unfolded from God). From the first point of
view, all things may be said to be in God's power and to be—in God's power—God without differentiation
[…] From the second point of view, they may be said to exist according to their finitude and as distinct
from God and from one another. Yet, even as distinct from God and unfolded from God they still exist, in
some sense, in God. But the sense is now different. For whereas in the first sense they exist in God as God,
in the second sense they exist as themselves in God. The first sense accords with the way things exist in
God as enfolded-in-God; the second sense accords with the way they continue to exist in God while existing
as unfolded-from-God» HOPKINS, Jasper, Nicholas of Cusa on learned ignorance, pp.22-23,
acrescentando que: «vista, portanto, como complicada absolutamente em Deus, cada coisa é Deus; pois lá
não é o seu ser finite. Vista como explicada de deus, nenhuma coisa é Deus; pois aqui ela é o seu ser
contraído e finito e participa em ( na semelhança de) Deus, mais do que ser Deus» — «Viewed, then, as
enfolded absolutely in God, each thing is God; for there it is not its finite self. Viewed as unfolded from
God, no thing is God; for here it is its finite, contracted self and is said to participate in (the likeness of)
God rather than to be God» HOPKINS, Jasper, Nicholas of Cusa on learned ignorance, p.23.

60
Compreendemos igualmente que o movimento descrito por Nicolau de Cusa não
é um movimento circular, dado que não retorna exactamente ao mesmo ponto de partida.
Não se trata de um movimento de A para A, passando por B, mas sim, de um movimento
dialéctico de A, através de B, para A’; da unidade indeterminada (ou determinada apenas
formalmente) para a multiplicidade sensivelmente ou materialmente determinada que,
não obstante, constitui uma unidade concreta.
Assim, no seguimento das linhas mestres traçadas desde há muito por Heraclito e
Proclo (129), justamente com o intuito de assinalar esta simultaneidade, vêm as afirmações
de Nicolau de Cusa que fazem coincidir a saída e a entrada (130), a progressão e o regresso
(131), a descida e subida (132), das criaturas, de deus e em deus respectivamente,
culminando na afirmação de que «deus estar no mundo não é outra coisa que o mundo
estar em deus» (133).
É importante compreender que a descida e a subida, a saída de, a permanência na
e o regresso à, unidade da multiplicidade não se dão apenas no plano gnosiológico —
onde, partindo do conhecimento do mundo sensível, passando para o autoconhecimento
de si e, subsequentemente, atingindo o conhecimento de deus, se completa, deste modo,
o caminho de regresso. Este movimento do uno para o múltiplo, a relação de presença e
pertença do uno no múltiplo e vice-versa e a consequente relação de identidade entre
ambos, estabelece-se, antes de tudo, no plano ontológico.

(129) Lembrando o famoso fragmento B10 de Heraclito: «de todas as coisas, o uno; e do uno, todas
as coisas» tradução de José Barata-Moura de Die Fragmente der Vorsokratiker, ed. Hermann Diels e Walter
Kranz, Berlin, Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1956 8, vol. I, p.153 in Ontologia e Política. Estudos
em torno de Marx – II, p.426, mas também, a famosa passagem de Proclo que nos transmite o seguinte:
«Todo o causado tanto permanece na causa dele, como procede dela, como retorna a ela», tradução de José
Barata-Moura de Elementos de Teologia, n.35; ed. Eric Robertson Dodds, Exford, Clarendon Press, 1963 2,
p.38 in IDEM.
(130) «Pois, a criatura sair de ti é a criatura entrar e explicar é complicar» — «Exire enim creaturae
a te est creaturam intrare, et explicare est complicare», VD, XI, 46.
(131) Vejam-se, por exemplo, as seguintes passagens de De Conjecturis: «A unidade progridindo
na alteridade, e a alteridade regredindo na unidade» — «unitate in alteritatem progrediente atque alteritate
in unitatem regrediente», DC, I, IX, 37, mas também: «Mas, a unidade progredir na alteridade é,
simultaneamente, a alteridade voltar na unidade, e assim, diligentemente verás, se intelectualmente quererás
intuir a unidade na alteridade» — «Unitatem autem in alteritatem progredi est simul alteritatem regredi in
unitatem, et hoc diligentissime adverte, si intellectualiter unitatem in alteritate intueri volueris», DC ,I, X,
53, ou ainda: «Pois, por meio de um simples acto do entendimento, concebe a progressão [progressionem]
copulada com o regresso [regressione], se quiseres chegar àquelas [verdades] escondidas que se atingem
mais verdadeiramente acima da razão, que distingue a progressão do regresso, pelo intelecto, que [os]
complica numa única [unidade]» — «Simplici enim intellectu progressionem cum regressione copulatam
concipito, si ad arcana illa curas pervenire, quae supra rationem, disiungentem progressionem a regressione,
solo intellectu in unum opposita complicante verius attinguntur», DC,I, X, 53.
(132) «Portanto, com agudeza [acumine] intelectual junta [copula] a subida e a descida, para que
conjectures mais verdadeiramente» — «Intellectuali igitur acumine ascensum descensui copula, ut verius
coniectureris», DC, II, VII, 107.
(133) «Non enim aliud est deum esse in mundo quam mundum in deo», DC, II, VII, 107.

61
Postas estas observações acerca da relação entre a complicatio e a explicatio,
foquemos agora a nossa atenção no conceito de complicatio. Tendo por base aquilo que
até aqui foi dito, entende-se que a complicatio, enquanto unidade da multiplicidade, não
representa apenas o princípio que antecede a posterior explicatio desta unidade numa
multiplicidade sensivelmente determinada e, por sua vez, una. A complicatio não se deve
identificar apenas com o embrionário momento em que todas as coisas estão em deus,
enquanto deus, antes da sua sensível manifestação para «fora», no Mundo, enquanto
Mundo (134).
Por outros termos ainda, as coisas ou o Mundo não estão em deus apenas na
originária unidade enquanto, apenas, formalmente determinados. Estão igualmente em
deus após a sua manifestação enquanto sensível ou materialmente determinados.
Resta agora perceber o fundamento desta tese que, a meu ver, passa pela
compreensão do fundamento da relação que a complicatio representa. Isto é, se a
complicação representa o estar em deus ou na unidade, do Mundo ou da multiplicidade
e, por esta razão, constitui a unificação da multiplicidade, importa questionar o que
significa, de facto, esse «estar em»? o que possibilita e sustenta esta unificação da
multiplicidade?
Penso que os seguintes fragmentos trazem de imediato luz sobre este problema.
Nas palavras do cardeal cusano: «toda a existência existe tanto em acto quanto é em acto
no próprio infinito» (135) ou, numa outra formulação: «todo o existente em acto é em deus,
porque ele é o acto de todas as coisas» (136).
Toda a multiplicidade está na unidade e, neste sentido, toda a multiplicidade é una
porque, antes de ser determinadamente aquilo que é, antes de ser um isto ou aquilo, a

(134) Parece ser essa a posição sustentada por Mihnea Moroianu quando, no estudo introdutório da
já referida edição romena das obras menores de Nicolau de Cusa, escreve que «A complicação significa a
unidade absolutamente simples, acima ou anterior aos contrários da explicação» — «Complicarea însemană
unitate absolută simplă, deasupra sau anterioară contrariilor explicării», ou ainda, na mesma página, «O
seu contrário [da explicatio], a complicação, tal como foi visto, tem o sentido de estádio inicial ou germinal
[…]» — «Opusul ei, complicația, așa cum am văzut, are sensul de stadiu inițial sau germinal […]»,
MOROIANU, Mihnea, CO, vol. I, p.48.
Eusebio Colomer parece seguir o mesmo caminho ao considerar o Absoluto a unidade ou a
identidade dos opostos anterior ou transcendente ao mundo e aos entes contraída e contraditoriamente
explicados: «na ordem ontológica Deus é o Absoluto, que se pressupõe em todo o relativo, e a Identidade,
que está antes de toda a alteridade […]»,COLOMER, Eusebio, Nicolau de Cusa (1401-1464), p.37, mas
também: «Com a sua ideia da coincidência acentuou sobretudo a absoluta transcendência do Ser divino»,
ibidem, p.49.
(135) «omnis existentia pro tanto existit actu, pro quanto in ipso infinito actu est» DI, I, XXIII, 70.
(136) «Omne autem actu existens in Deo est, quia ipse est actus omnium», DI, II, V, 118.

62
multiplicidade, simplesmente, é. Numa formulação diferente poderíamos dizer que as
coisas múltiplas, na medida em que são, estão na unidade e, portanto, são esta mesma
unidade (137).

(137) Com isto em mente, vejamos o seguinte apontamento de Dermot Moran que nos ajudará a
melhor perceber esta relação:
«Logo depois da primeira condenação de Almericus pelo Sínodo parisiense de 1210, Alexandro
de Hales fez uma distinção entre a afirmação herética de que todas as coisas são idênticas com a essência
divina (“omnia sunt divina essentia”) e a visão ortodoxa de que em Deus todas as coisas são idênticas com
a divina essência (“omnia sunt ipsa divina essentia”), e de facto, o Cusanu é sempre empático com o facto
de em Deus todas as coisas serem Deus» — «Very soon after the first condemnation of Almericus by the
Parisian Synod of 1210, Alexander of Hales made a distinction between the heretical statement that all
things are identical with the divine essence (“omnia sunt divina essentia”) and the orthodox view that in
God all things are identical with the divine essence (“omnia sunt ipsa divina essentia), and indeed Cusanus
is always emphatic that in God all things are God» MORAN, Dermot, Pantheism from John Scottus
Eriugena to Nicholas of Cusa, p.135. É muito importante perceber que, apesar de, como Moran
acertadamente escreve, Nicolau de Cusa afirmar que em deus, todas as coisas são o próprio deus, por isso
não se deve entender que as coisas são o próprio deus apenas antes da sua criação temporal, isto é, a
identidade entre deus e as coisas não deve ser pensada apenas na inicial unidade complicante.
Como referimos, a complicatio não representa apenas a embrionária unidade, mas também a unidade da
multiplicidade, isto é, as coisas são em deus enquanto deus também após a sua explicação contraidamente
dada. E isto apenas na medida em que deus é a própria essência de cada um dos entes. Em outros termos, a
ortodoxa afirmação exige, no pensamento de Nicolau de Cusa, a posição herética: apenas na medida em
que deus é a essência de tudo é possível afirmar que tudo está em deus enquanto deus.
A mesma linha argumentativa aplica-se igualmente a seguinte passagem:
«Entre a possibilidade que Deus complica está, com certeza, a mundo criado existente em acto.
Este mundo tem, então, como se fosse, uma dupla existência — existe maximamente e não contraidamente
em Deus e tem também uma existência em si, contraída, relativa e não completamente actualizada. E quanto
as coisas particulares — pedras, homens e assim por diante? Como puras possibilidades existentes em Deus
— isto é, Deus pode conceber delas, mesmo se nunca existirão neste mundo. Todavia, em Deus, elas estão
completamente em acto, e por esta razão mesmo a pedra é em deus uma coincidentia dos opostos (no caso
da possibilidade e da actualidade), e é também una com Deus. Portanto, em Deus há uma certa legitimidade
em dizer que uma pedra é Deus, ou que Deus é uma pedra. Dizer que Deus é uma pedra e também que Deus
é um homem, é também dizer que uma pedra e um homem são, de algum modo, idênticos. Portanto, a
essência absoluta (ou o leque de possibilidades) de uma pedra não é outro da essência de um homem,
sustenta o Cusano em De li non aliud» — «Among the possible which God enfolds is of course the actualy
existent created world. This world then has, as it were, a double existence — it exists maximally and
uncontractedly in God and it also has a contracted, relative, not fully actualized existence in itself. What of
particular things — stones, humans an so on? As pure possibilities they exist in God — that is, God can
conceive of them, even if they never exist on this earth. Nevertheless, in God they are wholly actual, and
for this reason even a stone is in God a coincidence of opposites (in this case possibility and actuality), and
is also one with God. Thus, in God there is a certain legitimacy in saying that a stone is God, or that God is
a stone. To say that God is a stone and also that God is a man, is also to say that a stone and man are
identical in some way. Thus, the absolute essence (or set of possibilities) of a stone is not other than the
essence of a man, Cusanus maintains in De li non aliud», MORAN, Dermot, op. cit., p.145.Assim, segundo
Moran, a identidade entre criador e criatura pode ser estabelecida e afirmada com «legitimidade» apenas
na inicial unidade. Nesta unidade inicial, tudo está «plenamente em acto» e, por isso, coincide com deus,
sendo por esta razão coincidente com todas as outras coisas. Ora, tal como vimos, esta identidade entre
absoluto e finito não é restringida apenas ao âmbito da inicial unidade complicante, mas aplica-se
igualmente à explicação contraidamente dada e isto na medida em que, como já referimos, tudo aquilo que
existe de forma determinada é em acto, e sendo em acto está em deus enquanto o próprio deus. É por essa
razão também que a coincidentia oppositorum mantém-se também após a explicação e não se perde com
esta. Ou seja, a pedra e o homem, na medida em que são, coincidem, permitindo assim uma unidade do
múltiplo sem, todavia, anular a sua especificidade e riqueza particular.

63
Assim, podemos falar de uma multiplicidade explicada que está na unidade,
porque a multiplicidade explicada das coisas é e, nesta medida, está na unidade sendo a
própria unidade. É esta a tese do cusano que me levou anteriormente a afirmar que a
descida e a subida ou a presença do causado na causa e a sua identificação com esta se
situam, primeiramente, num plano ontológico.
Esta é, a meu ver, a correcta e mais profunda interpretação da relação entre
complicatio e explicatio, bem como do sentido singular da complicatio.

64
2. Explicatio, descida, emanação: acerca dos traços gerais da manifestação
sensível do Absoluto.

Uma vez expostas e investigadas as complexidades da categoria de complicatio, é


a vez da explicatio receber um tratamento similar.
Indo a especulação de Nicolau de Cusa muito além — em termos ilustrativo-
exemplificativos —, da explicatio na tentativa de explicitar e elucidar o tema mais
abrangente da qual esta vem a ser expressão — a manifestação sensível do Absoluto ou,
colocando o problema em outros termos, o fazer do mundo —, decidi fazer jus ao seu
esforço intelectual e explorar igualmente — naquilo que constituem os seus traços gerais
—, as restantes duas vias que o cardeal alemão utilizou ao longo das suas obras para lidar
com esta problemática: a via da descida e a via da emanação.
Comecemos pelo tema já iniciado da explicatio. Retomando o breve apontamento
deixado no capítulo anterior no qual ficou anotado que a explicatio indica, por um lado,
a relação de presença e pertença do uno no múltiplo e, portanto, de identidade do uno com
o múltiplo e, por outro lado, um movimento manifestativo através do des-dobramento,
ex-posição, isto é, do pôr para «fora» do conteúdo que a unidade comporta desde a
eternidade.
Antes de mais, é importante assinalar que este des-dobramento ou esta ex-posição
da unidade se dá através da multiplicidade. Aliás, segundo Nicolau de Cusa «explicar a
unidade significa que tudo é na pluralidade» (138).
Por que razão não pode a unidade dar-se tal como é? Porque necessita da mediação
da multiplicidade? Por que motivo, utilizando as palavras de Nicolau de Cusa, a verdade
se apresenta por imagens e símbolos?
Ora, porque nenhuma coisa pode estar num outro tal como é em si mesma. Este é
o princípio — cujo alcance ultrapassa o âmbito ontológico, estendendo-se assim a uma
variedade de outros campos de investigação —, que desde o De conjecturis (139) perpassa
as obras do cardeal alemão quando é tratada a questão da participação — a qual, segundo
a minha leitura, não difere em nada da explicação nos diversos modos de ser (140). O

(138) «unitatem explicare, omnia scilicet in pluralitate esse» DI, II, III, 108.
(139) Em De coniecturis o princípio aparece esboçado da seguinte maneira: «Pois, assim como no
seu próprio ser todo o ente está presente tal como é, assim num outro [ente está presente] de uma maneira
outra [de que é em si próprio]» — «Sicut enim omne ens in propria sua entitate est, uti est, ita in alia aliter»,
DC, I, XI, 54.
(140) Deve esclarecer-se desde já — de modo a evitar futuras confusões terminológicas —, que o
uso do conceito platónico de «participação» em nada adultera a ideia de explicatio. Na verdade, dizer que
a criatura participa variadamente e contraidamente do absoluto não é mais de que afirmar que o absoluto,

65
Absoluto, ao explicar-se, nunca se pode explicar tal como é e, visto que representa a
unidade absoluta, a sua explicação deve dar-se numa multiplicidade diversa.
Ainda que nos ajude a compreender a ideia geral que Nicolau de Cusa tem em
mente, este princípio não responde totalmente à questão que inicialmente colocamos.
Na verdade, a resposta a esta questão passa por aquilo que no seguinte trecho
Nicolau de Cusa procura assinalar:
«Pois, a unidade é na alteridade de outro modo a não ser por meio de uma queda
de precisão e igualdade. Porque, de outro modo [isto é, se a alteridade fosse igualdade
precisa], a alteridade não seria alteridade» (141), mas sim, a própria igualdade, a própria
unidade, o próprio Absoluto (142).

variadamente e contraidamente, se dá nas criaturas. Os diversos modos de ser participarem o Ser é o mesmo
que o Ser explicar-se nos diversos modos de ser.
(141) «Unitas enim non aliter in alteritate quam cum casu a praecisione et aequalitate reperibilis est.
Aliter enim non esset alteritas, si esset praecisa aequalitas», DC, II, XVI, 168.
(142) Estas ideias são, segundo João Maria André, o indicador decisivo da rejeição por parte de
Nicolau de Cusa de qualquer panteísmo: «a própria base expressionista da teoria da “explicatio” permite
claramente rejeitar uma interpretação panteísta» justificando esta sua afirmação com o seguinte exemplo:
«com efeito, o facto de o saber de um mestre se “explicar” nas suas teorias, nos seus pensamentos e nas
suas frases, não quer dizer que qualquer dessas ,teorias, dessas frases e desses pensamentos sejam em si o
próprio pensamento do mestre ou se identifique com o seu intelecto», JOÃO MARIA ANDRÉ, Sentido,
simbolismo e interpretação, p.196.
É claro que não pode haver uma identidade perfeita, absoluta entre o absoluto e o finito. De facto,
e para sermos ainda mais rigorosos, a identidade destes não se pode identificar ou confundir com a
mesmidade. Se houvesse uma identidade perfeita, não haveria de todo qualquer explicatio, não se sairia do
mesmo sítio. A identidade que Nicolau de Cusa procura pensar é uma identidade que se define pelo e no
outro, outro esse que nunca é diferente de, apesar de nunca ser absolutamente igual ao absoluto.
A interpretação não-dialéctica desta identidade ou, porventura de um modo mais correcto, o não
surpreender da identidade dialéctica por parte de João Maria André reflecte-se igualmente numa outra
passagem da mesma página já citada onde o autor afirma claramente que não pode haver nenhuma
«confusão» entre deus e a criatura: «no mesmo texto em que se considera a criatura como uma espécie de
Deus ocasionado reafirma-se a infinita distância entre Deus e a criatura, que impede qualquer possibilidade
de mistura ou confusão (tanto em termos cognoscitivos como em termos ontológicos) entre aquela e esta.
Mas se Deus é todas as coisas, esta afirmação não pode ser desligada do seu reverso: nenhuma delas é o
próprio deus» JOÃO MARIA ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação, p.196.
De facto, trata-se de afirmações do próprio Nicolau de Cusa. Ora, perante tais afirmações
aparentemente contraditórias, a posição de João Maria André consiste em apontar para o facto de as
categorias tradicionais de teísmo e panteísmo serem desadequadas para a caracterização do pensamento
cusano — a conclusão que o autor tira é que «em última análise, a clássica oposição entre teísmo e
panteísmo não encontra lugar nem resolução no pensamento cusano se for colocada nos termos alternativos
em que a transcendência divina exclui a imanência e a imanência exclui a transcendência», JOÃO MARIA
ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação, p.197. A mesma posição é sustentada pelo autor na
introdução da sua tradução portuguesa de De Non-Aliud, cf., JOÃO MARIA ANDRÉ, introdução à
tradução portuguesa de O Não-outro, p.39 —, remetendo a resolução da profundíssima questão ontológica
da identidade, que através dos conceitos complicatio-explicatio nos é apresentada, para o plano da douta
ignorância enquanto plano último de resposta, visto que apenas sabemos que deus é a complicatio e
explicatio apesar de não sabermos como — «Daí que a penetração cognitiva do verdadeiro conteúdo da
teoria da “complicatio-explicatio” seja inevitavelmente atingida pelo princípio da “douta ignorantia” Só à
luz deste princípio e, precisamente, nas múltiplas dimensões que, como se viu no capítulo anterior, lhe são
inerentes, é que se pode atingir a “complicatio”, a “explicatio” e a articulação entre a “complicatio” e a
“explicatio”» JOÃO MARIA ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação, p.197.

66
Com a desadequação da categoria de panteísmo de modo a determinar o pensamento de Nicolau
de Cusa está igualmente de acordo Knut Alfsvåg ao escrever que a relação entre deus e mundo desaparece
se for pensada à luz do panteísmo. Nas suas palavras: «O problema é estabelecer tanto a conexão como a
diferença entre os dois de um modo consistente e significativo, se não, encontrar-nos-emos na
unilateralidade ou da posição ateísta ou da posição panteísta (ou o mundo é tudo aquilo que é, ou Deus é o
mundo são idênticos) e, a relação entre os dois desaparece» — «The problem is to establish both the
connection and the difference between the two in a consistent and meaningful way, if not, one will find
oneself landed in the one-sidedness of either an atheist or pantheist position (either the world is all there is,
or God and the world are identical) and, the relation between the two disappears» ALFSVÅG, Knut,
Explicatio and complicatio: On the understanding of the relationship between God and the world in the
work of Nicholas Cusanus, p.1. Quanto ao ateísmo, esta conclusão é, claramente, acertada, uma vez que
um dos lados da equação é eliminado e, consequentemente, a própria relação. Porém, qual é a razão pela
qual a identidade entre deus e mundo defendida pelo panteísmo anularia a relação entre deus e mundo? De
facto, o panteísmo, na sua acepção mais geral, é justamente a tese que sustenta a relação de identidade,
seja qual for o modo como esta identidade é pensada, entre deus e mundo.
Pensando o panteísmo como um monismo absoluto em que deus é o mesmo que o mundo e o
dualismo enquanto separação absoluta entre deus e a criatura, Nancy Hudson entra neste debate defendendo
que Nicolau de Cusa não é nem um monista absoluto, nem um dualista absoluto, pois tais posições
anulariam qualquer possibilidade de pensar a relação deus-mundo. Ao olhar de Nancy Hudson, Nicolau de
Cusa sustenta uma «mística» (cf. HUDSON, Nancy, Divine immanence: Nicholas of Cusa’s understanding
of theophany and the retrieval of a “new” model of God, p.451) e «paradoxal» (cf. ibidem, p.464) visão
que afirma, concomitantemente, a imanência de deus — que o afasta das acusações de dualismo —, e a
transcendência de deus — que afastam as suspeitas de monismo, panteísmo:
«Portanto é evidente da sua insistência na divina imanência que o Cusano não é um dualista absoluto,
Nicolau tem sido acusado tanto por dualismo, como por monismo. Estas são acusações sérias porque tanto
o sistema monista absoluto, como o dualista absoluto perdem a possibilidade da relação entre Deus e o
mundo. No caso extremo do primeiro, ambos sao identificados e o pré-requisito da autonomia dos termos
relativos está ausente. No caso do segundo, a separação absoluta de ambos os termos envolve a falta de
comunhão, também uma exigência da relação. Uma construção metafísica na qual Deus é absolutamente
diferente da ordem criada estabelece o mundo contra ele e nega a possibilidade e razão do movimento de
cada termo em direcção ao outro, levando, portanto, para todos os fins práticos, para um estado de total
isolação ou ateísmo. Em ambos os casos, o objectivo teológico tradicional de descobrir o modo em que
Deus lida com a ordem criada e o modo em que as criaturas devem reagir a deus está minado. O conceito
de teofania de Nicolau inclui o conceito de divina imanência que protege o seu pensamento contra o
dualismo. Mais, ele sustenta firmemente a divina transcendência, resultando numa acentuada diferença
entre a ordem criada e divina. Tal diferença é, com certeza, a chave para argumentar contra as acusações
de monismo. Há aqui em jogo mais do que a mera especulação teológica. O problema é que a negligência
de um dos lados da equação, absoluta identidade ou absoluta diferença, põe em perigo a identidade consigo
mesmo de Deus ou da criação ou de ambos. Deus não seria infinito e absoluto, isto é, não seria ele próprio,
se o mundo existisse completamente separado dele. E a ordem criada não teria a sua própria existência se
fosse absorvida num sistema monista» — «Though it is evident from his insistence on divine immanence
that Cusanus is not an absolute dualist, Nicholas has been charged with both dualism and monism. These
are serious charges because both totally monistic and absolutely dualistic systems lose the possibility of
relationship between God and the world. In the case of extreme versions of the former, the two are identified
and the prerequisite autonomy of relating terms is absent. In the case of the latter, the absolute separation
of the two terms entails a lack of commonality, also a requirement for relationship. A metaphysical
construct in which God is absolutely different from the created order sets the world against him and negates
the possibility and reason for the movement of each term towards the other, thus leading, for all practical
purposes, to a state of total isolation or atheism. In both cases, the traditional theological goal of discovering
the manner in which God deals with the created order and the way in which creatures should react to God
is undermined. Nicholas's concept of theophany includes the concept of a divine immanence that protects
his thought against dualism. In addition, he strongly maintains divine transcendence, resulting in a sharp
difference between the created and divine orders. Such difference is, of course, the key to arguing against
charges of monism. There is more at stake here than mere theological speculation. The problem is that the
neglect of either side of the equation, absolute identity or absolute difference, threatens either the self-
identity of God or of creation or both. God would not be infinite and absolute, that is, would not be himself,
if the world existed utterly apart from him. And the created order would not have its own being if it were
absorbed into a monist system» HUDSON, Nancy Divine immanence: Nicholas of Cusa’s understanding
of theophany and the retrieval of a “new” model of God, p.460.

67
Ou seja, aquilo que, a meu ver, está em causa é deixar claro que, se o Absoluto se
manifestasse tal como em si mesmo é ou, utilizando a terminologia platónica igualmente
empregue por Nicolau de Cusa, se a participação fosse completa, isto é, se a coisa
participasse perfeita e completamente do Absoluto, não haveria manifestação alguma.
Tudo se resumiria a uma tautologia vazia, um A=A. Não haveria movimento ex-plicativo
algum. Não se sairia do mesmo sítio. O desdobrar da unidade na multiplicidade é a
condição necessária para que essa se manifeste.
Percebido o modo como a unidade explica o conteúdo que comporta, resta
perceber o modo como a unidade está neste conteúdo agora explicado.
Ora, no vocabulário do Cusano, tecnicamente falando, o Absoluto explica-se na
multiplicidade de modo contraído, sendo que a «contracção diz, relativamente a uma
coisa, ser isto ou aquilo» (143).

Ao sublinhar que, para Nicolau de Cusa, o Absoluto não é identificável, directa e absolutamente,
com a criatura, bem como, que uma diferença ontológica entre absoluto e os entes finitos é insustentável,
Nancy Hudson parece dar conta da complexidade do pensamento do Cusano. Todavia, a explicação por
esta oferecida não é, a meu ver, satisfatória. Ao mesmo tempo que explica (correctamente) que o ser da
criatura é o ser de deus, escrevendo que a criatura «reivindica o ser de Deus como o seu próprio ser» —
«claims the being of God as its own being» ( HUDSON, Nancy, op. cit., p.455), mostrando assim o
fundamento da imanência de deus no mundo, a autora justifica a transcendência de deus face ao mundo
sublinhando a diferença entre «criador» e «criatura» e, nomeadamente, a diferença entre a independência
de deus e a dependência da criatura: «Isto não significa , todavia, que a linguagem do Não-Outro indica
monismo. Mas embebida nela há uma forte defesa contra tal interpretação: o fundante papel que o Não-
Outro joga para toda a criação […] Deus, portanto, é definitório para toda a criação, isto é, é fundamental
para a definição e o ser de todas as coisas» — «This does not mean, however, that the language of Not-
other alone indicates monism. Rather, embedded within it is a strong defence against such an interpretation:
the foundational role that Not-other plays for all of creation […] God, therefore, is definitive for all of
creation, that is, is fundamental to the definition and being of all things», HUDSON, Nancy Divine
immanence: Nicholas of Cusa’s understanding of theophany and the retrieval of a “new” model of God,
p.461. Cf, ainda: ibidem, p.467.
A diferença sublinhada pela Nancy Hudson não toca, todavia, o nível ontológico. Dizer que deus
funda a criatura não significa, por princípio, que deus e criatura representam duas entidades diferentes.
Deus define o ser das criaturas pela sua própria definição. Em outros termos, a afirmação do ser determinado
das criaturas não é senão a negação e, por conseguinte, a posição de deus enquanto determinado
(permanecendo, como já foi possível verificar, justamente por esta razão, absoluto).
Por outro lado, quanto ao facto de não haver monismo por deus ser, de ponto de vista ontológico,
independente e a criatura ser dependente, há que questionar se não será justamente este o ponto fundamental
para afirmar, utilizando a linguagem de Nancy Hudson, o monismo, isto é, a identidade entre deus e a
criatura, na medida em que a dependência da criatura prende-se precisamente com a presença de deus em
cada um dos entes finitos? Ideia essa que a própria autora sustenta algumas linhas mais abaixo da mesma
página 467 ao afirmar que «a ordem criada na sua totalidade é Deus explicado […] Portanto o mundo não
tem ser separado de Deus […]» — «the created order in its entirety is God unfolded […] Though the world
has no being apart from God […]».
(143) «contractio dicit ad aliquid, ut ad essendum hoc vel illud», DI, II, IV, 116. Uma das teses mais
fervorosamente defendidas por Jasper Hopkins e uma das grandes críticas levantadas, no seu Nicholas’s of
Cusa metaphysic of contractio, contra Klaus Jacobi e a sua tese de que o Absoluto se contrai, é a tese que
afirma que Deus é apenas absoluto. Cf. HOPKINS, Jasper, Nicholas’s of Cusa metaphysic of contraction,
p.40. Sobre a mesma tese veja-se ainda ibidem, p.46 e p.101, HOPKINS, Jasper, Nicholas of Cusa on
learned ignorance, p.20, 26, 28 ou, como escreve em Nicholas of Cusa’s Dialectical Mysticism –
Interpretative study of De Visione Dei na página 61: «Pois Nicolau ensina que Deus não é de todo contraído
e não pode tornar-se tal; pelo contrário, tudo o que é outro de Deus é contraído e não pode perder a sua

68
Em outros termos, o Absoluto, ao explicar-se, determina-se na e enquanto a
multiplicidade, no seu todo e nas suas partes (144).

contractabilidade» — «For Nicholas teaches that God is not at all contracted and cannot become so; by
contrast, everything other than God is contracted and cannot lose its contractibility».
Todavia, e ainda que se trate, de facto, de uma tese cusana, há que percebê-la nas suas mais
profundas implicações. Para tal, há que perguntar como pode o Absoluto continuar a ser absoluto se não se
identificar com o finito — que é, na verdade, a posição de Hopkins.
É justamente nesta afirmação do Absoluto separado do finito que consiste o erro de Hopkins.
Como já várias vezes referimos, é apenas na medida em que ele é também o finito que, então, ele é tudo
aquilo que é possível ser e, neste sentido, Absoluto. A questão do absoluto não pode ser pensada como
separada da contracção ou da finitude. Ele é absoluto precisamente porque, ao contrair-se no e enquanto
finito, permanece absoluto. Ainda em outros termos, ele contrai-se, torna-se finito justamente para não ser
algo contraído, finito, ao ser contra-posto aquilo que por ele é posto como finito.
144
Não obstante defenda que a contracção é uma determinação do absoluto, é interessante ver
como Vincent Martin pensa esta contracção. Nas suas palavras:
«ser um mais ou menos de Deus que é máximo e mínimo, a criatura é uma limitação, uma
participação, uma contração de Deus […] A pedra no mundo sensível é a pedra contraída, enquanto que
Deus é a pedra absoluta — tal como ele é o sol ou a lua absolutos. Numa palavra, a ideia base da criatura é
de que ela é um mais ou menos do máximo ou do mínimo, ou uma contração do absoluto» — «being a
more or less of God who is the maximum and minimum, the creature is a limitation, a participation, or a
contraction of God. […] The stone in the sensible world is contracted stone, whereas God is absolute stone
— just as He is the absolute sun or moon. In a word, the basic note of the creature is that it is a more or less
of the maximum or minimum, or a contraction of the absolute» MARTIN, Vincent, The dialectical process
in the philosophy of Nicholas of Cusa, p.249.
Embora a sua explicação geral do significado da contracção como sendo uma limitação ou
determinação de deus vá ao encontro da nossa posição, a sua explicação detalhada, a meu ver, afasta-se da
doutrina de Nicolau de Cusa. Ora, deus não é a pedra absoluta. Não há uma «pedra absoluta» que se contraí
e se determina materialmente. Aquilo que há, uma vez removida toda a determinação daquilo que é e
denominamos como «pedra», é um puro e absoluto ser que é deus. Neste sentido, a contracção não deve
ser entendida como a objectivação, determinação, materialização de uma pura forma, por exemplo, da
pedra, mas sim, como a objectivação, determinação ou materialização da única forma, do único ser,
enquanto aquele ente determinado.
Para Vincent Martin, uma doutrina tal como a do Cusano que sustenta uma finitização de deus é
uma doutrina que coloca deus no patamar da criatura: «Longe de salvaguardar a transcendência de Deus,
tal doutrina reduz realmente Deus ao nível da criatura» — «Far from safeguarding the transcendence of
God, such doctrine really reduces God to the level of the creature» ibidem, pp.268. Tal afirmação parece-
me excessiva pois, ainda que haja uma identidade entre deus e a criatura, não podemos afirmar que Nicolau
de Cusa reduza deus à criatura, o ser ao ente, como iremos aprofundar mais adiante.
De igual interesse é a posição de Knut Alfsvåg que, expondo a categoria de explicatio, diz-nos o
seguinte: «Pela participação do finito no infinito, Deus enquanto a própria entidade ou unidade é explicado
ou desdobrado enquanto a entidade indefinível de todas as entidades. Cusanus pode também descrever isto
como contracção, porque enquanto desdobrado no mundo, a unidade é contraída e limitada pela matéria,
mas sem perder a sua indefinibilidade […] Na terminologia do Cusanus explicatio ( ou desdobramento) e
contractio são sinónimos» — «Through the participation of the finite in the infinite, God as entity or
oneness itself is explicated or unfolded as the undefinable entity of all finite entities. Cusanus can also
describe this as contraction, because as unfolded in the world, oneness is contracted or limited by matter,
but without losing its indefinability […] In Cusanus’s terminology, explicatio (uncoiling or unfolding) and
contractio are synonyms» ALFSVÅG, Knut, Explicatio and complicatio: On the understanding of the
relationship between God and the world in the work of Nicholas Cusanus, (doravante: Explicatio and
complicatio), p.5.
Há dois pontos que gostaria de apontar quanto a esta perspectiva de Alfsvåg.
Em primeiro lugar, o que será que Alfsvåg pretende afirmar pela contracção do Absoluto na
matéria sem, todavia, perder a sua indefinibilidade? Será que, tal como procuro mostrar também, pretende
sustentar que é justamente pela sua contracção no e enquanto finito que o Absoluto mantém o seu caracter
absoluto? Ou, pelo contrário, procura apontar para um Absoluto, absolutamente transcendente, que se
manifesta no sensível sem com este se identificar? O texto não nos responde a estas questões.
Em segundo lugar, penso não ser muito rigoroso identificar a explicatio com a contractio. A
explicatio, enquanto movimento, aponta para um des-dobramento da unidade na multiplicidade,

69
desdobramento este que pode ser levado a cabo apenas pela contractio, isto é, pela determinação sensível
da inicial unidade. A explicatio não é a contractio, mas sim, a explicatio requer ou implica a contractio.
Igualmente interessante é a posição de Moran: «O mecanismo do Cusano para ultrapassar o
panteísmo é o conceito de contracção. A contracção é uma condição das criaturas que não é o mesmo que
dizer que Deus activamente se contrai para produzir as criaturas. Todas as coisas outras de Deus existem
contraidamente» — «Cusanus’ mechanism to overcome pantheism is the concept of contraction.
Contraction is a condition of creatures which is not to say that God actively contracts himself in order to
produce the creatures. All things other than God exist as contracted» MORAN, Dermot, Pantheism from
John Scottus Eriugena to Nicholas of Cusa, p.146.
Gostaria de salientar, em primeiro lugar, que aquilo que Moran acaba de fazer é uma distinção
entre «coisas contraídas» e «deus absoluto» que, no meu entendimento, acaba por entrar em conflito com
a seguinte afirmação, com a qual concordo por completo: «em geral, como temos visto, a criação e o Criador
são dois modos de ver, não duas realidades ontológicas distinctas» — «in general as we have seen,
creaturehood and Creator are two modes of viewing, not two distinct ontological realities», ibidem, p.143.
Em outros termos, enquanto, na primeira passagem aqui citada, Moran parece apontar, ao afirmar
que as coisas são outras de deus, para deus e as criaturas enquanto entidades ontologicamente diferentes,
na última passagem mencionada, sustenta uma única entidade, uma única realidade que, segundo pontos de
vista diferentes, pode ser vista ora como deus, ora como mundo.
Em segundo lugar, há que perguntar pelo modo como Moran interpreta a noção de contractio.
Segundo este, a contractio é o modo através do qual a criatura experiencia a infinita manifestação divina,
é uma condição das criaturas: «a contractio é o modo em que a criatura experiencia a divina explicação»
— «contractio is the manner in which the creature experiences the divine explicatio», ibidem, p.148.
porque, segundo o autor, do ponto de vista de deus a manifestação é infinita, enquanto que do ponto de
vista da criatura a manifestação é limitada.
A meu ver, este «experienciar da manifestação divina» mereceria um esclarecimento adicional por
parte de Moran. A explicação que oferece parece apontar para um plano epistemológico em que há dois
pontos de vista a partir dos quais a manifestação pode ser entendida: o ponto de vista do infinito — através
do qual a manifestação é vista ela própria como infinita — e outro da contracção — pela qual a manifestação
é percebida apenas como limitada, finita, determinada. Em outros termos, a contractio, segundo Moran,
parece ser uma via epistemológica para entender a manifestação divina. Como o próprio afirma:
«Repetidamente a táctica do Cusano está em afirmar o mais largo abismo entre dois modos de
entender (absolute e contracte) e, mesmo assim, argumentar que há apenas um Ser de todas as coisas» —
«Repeatedly Cusanus’s tactic is to assert the widest gulf between the two modes of understanding (absolute
and contracte) and yet argue that there is only one Being of all things», idem.
Ora, a contracção não é um modo de entender aquilo que é, mas sim, é um modo de manifestação,
um modo de ser daquilo que é. O Absoluto não é entendido contraidamente do ponto de vista da criatura.
O Absoluto é contraído no plano da criatura identificando-se com esta.
Mais, é interessante ver ainda como Moran continua a sua linha de pensamento após esta
explicação. Interroga-se Moran:
«como se conjuga isto com a visão ortodoxa cristã (metafisicamente expressão por Aquinas e
Wenck) de que cada coisa tem o seu ser que é diferente (por uma participação em) do divino ser?» — «how
does this square with the orthodox Christian view (metaphysical expressed by Aquinas and Wenck) that
each thing has its own being which is different from (though a participation in) the divine being?» idem,
lembrando que Wenck, justamente por Nicolau de Cusa defender que deus é a essência de todas as coisas,
o acusou de ter destruído a existência individual dos entes
«Portanto, Wenck acusa o Cusano de afirmar que Deus é a quididade (ou essência) absoluta das
coisas. Isto, por sua vez, produz uma confusão entre as criaturas, uma vez que, se todas as criaturas têm
uma essência idêntica (i.e., Deus) então elas não são diferentes uma da outra» — «Thus Wenck accuses
Cusanus of asserting that God is the absolute quiddity (or essence) of things. This in turn produces a
confusion between creatures, since if all creatures have an identical essence (i.e., God) then they are not
different from each other”, ibidem, p.149.
A esta interrogação, Moran responde que: «O Cusano distingue dois modos de existência da coisa
— e, com estes, duas essências ou quidiades diferentes. Tudo tem uma natureza restrita ou uma quididade
contraída (quidditas contracta) que lhe é própria e a faz ser o que é neste universo contraído. Então, neste
universo podemos falar de uma diferença de quididades entre o sol e a lua. Por outro lado, Deus é a essência
absoluta ou quididade de todas as coisas (quidditas absoluta) tal que Deus é a essência absoluta do sol e da
lua» — «Cusanus distinguishes two modes of existence of the thing — and, with these, two different
essences or quiddities. Everything has a restricted nature or contracted quiddity (quidditas contracta) which
is its own and makes it what it is in this contracted universe. In this universe then we can speak of a

70
Neste passo julgo ser necessário ir mais além dos traços gerais acima invocados e
entrar em algumas nuances cujo esclarecimento considero representar uma mais-valia
neste nosso percurso.
Aquilo que fundamenta este desvio é a chamada de atenção para o facto de a
explicação contraidamente dada do Absoluto enquanto pluralidade — em De docta
ignorantia, numa descrição que pode ser considerada mais detalhada —, não ser directa,
mas sim, gradual e mediada. O Absoluto não se dá directamente nos entes finitos, mas é
mediado por intermédio do Universo e da sua respectiva gradual descida nos entes finitos
singulares.
Deste modo, o Absoluto explica-se contraidamente, em primeiro lugar, enquanto
Universo — que, enquanto infinito privativo (145), passará a representar o primeiro

difference of quiddity between the sun and the moon. On the other hand God is the absolute essence or
quiddity of all things (quidditas absoluta) such that God is the absolute essence of sun and moon», ibidem,
pp.149-150.
Há que interrogar neste passo a consistência do pensamento do Moran. Inicialmente defende que
a contractio é um modo de entender a manifestação divina, não se podendo afirmar que deus se contrai. De
seguida, sustenta que, para o Cusano, há dois modos de ser das coisas e, portanto, dois tipos diferentes de
essências (podemos afirmar que, esta última afirmação é algo imprecisa, na medida em que, aquilo que há
são dois modos de entender a única essência, ora enquanto absoluta, una e única, ora enquanto múltipla e
diversa) absoluta e contraída, o que acaba por criar um certo atrito entre as duas posições.
(145) Nicolau de Cusa estabelece em De Docta Ignorantia uma diferença entre o infinito
negativamente e o infinito privativamente que é expressa nos seguintes termos: «Só, pois, o máximo
absoluto é infinito negativamente. Portanto, só ele é aquilo que pode ser com toda a potência. Mas, como o
universo abarca tudo o que não é Deus, não pode ser infinito negativamente, ainda que seja sem termo e,
assim, infinito privativamente. E, com base nestas considerações, não é finito nem infinito. Pois não pode
ser maior do que é. Isto, certamente, acontece por defeito. Pois, a possibilidade ou a matéria não se estende
para além de si» —, «Solum igitur absolute maximum est negative infinitum. Quam solum illud est id, quod
esse potest omni potentia. Universo vero cum omnia complectatur, quae deus non sunt, non potest esse
negative infinitum, licet sit sine termino et ita privative infinitum. Et hac consideratione nec finitum nem
infinitum est. Non enim potest esse maius quam est. Hoc quidem ex defectu evenit. Possibilitas enim sive
matéria ultra se non extendit». DI, II, I, 97.
Antes de mais há que esclarecer a expressão «tudo o que não é deus». Tem de ficar claro que por
esta expressão não se sustenta nenhuma diferença ontológica entre deus e mundo o que, como já múltiplas
vezes referimos, coloca de pé um dualismo ontológico que põe fim a qualquer pretensão de pensar o
Absoluto. Por «tudo aquilo que não é deus» deve-se entender tudo aquilo que não é absoluto, ou seja, tudo
aquilo que é contraído. Como vimos no capítulo anterior, o próprio Absoluto, enquanto mundo, é mundo
e não Absoluto.
Percebemos que Nicolau de Cusa diferencia entre o infinito negativo, o infinito que não é
determinado por nada ou, como o próprio refere na secção 96 do livro segundo da De Docta Ignorantia, o
infinito cuja potencialidade não é por nada delimitada, o Máximo Absoluto, deus, e o infinito privativo, o
Máximo Contraído, aquele infinito que sofre uma limitação, não em termos de grandeza, pois, como fica
claro no excerto supracitado, nada há, de entre as coisas contraídas, que lhe coloque um fim — sendo
precisamente por isso Máximo Contraído como, aliás, é reforçado logo a seguir ao fragmento citado:
«portanto, ainda que com respeito à potência infinita de deus, que é interminável, o universo possa ser
maior, todavia, [dada] a resistência da possibilidade de ser, ou matéria, que não é extensível até ao infinito
em acto, o universo não pode ser maior. E assim [é] sem termo, uma vez que não há [nada] que possa ser
dado em acto maior do que ele, [face] ao qual [tivesse] um termo» —, «Quare licet in respectu infinitae dei
potentiae, quae est interminabilis, universum posset esse maius, tamen resistente possibilitate essendi aut
matéria, quae in infinitum non est actu extendibilis, universum maius esse nequit. Et ita interminatum, cum
actu maius eo dabile non sit, ad quod terminetur», DI, II, I, 97. —, mas sim, no que diz respeito àquilo que

71
contraído (146) —, sendo que, para Nicolau de Cusa, o «universo significa universalidade,
ou seja, unidade de muitas coisas» (147), claro está, a universalidade ou a totalidade das
coisas contraidamente explicadas, sendo justamente por esta razão considerado como
contraído na e dependente da multiplicidade, como clarifica o cardeal alemão:

«assim também, a unidade universal de ser [deriva] daquela que é dita máxima por
[provir] do absoluto e que existe, por isso, contraidamente, enquanto universo. A sua
unidade está contraída na pluralidade, sem a qual não pode ser. Este máximo, ainda que
abarque na sua unidade universal todas as coisas, de tal maneira que, todas as coisas que
são do absoluto, sejam nele e ele próprio seja em todas as coisas, não tem, porém,
subsistência fora da pluralidade na qual é, não existindo sem contracção, da qual se não
pode libertar»148
Por sua vez, o Universo contrai-se de forma gradual, dando-se primeiro nos
géneros, depois nas espécies e, por fim, nos entes individuais (149).

é e pode ser. O Máximo Contraído, o Universo, sendo determinado pela matéria — assunto do qual nos
ocuparemos no seguinte capítulo —, não é tudo aquilo que pode ser, mas apenas aquilo que, dentro das
suas possibilidades determinadas pode ser.
É justamente com base nesta ideia que Nicolau de Cusa, ao reflectir sobre a perfeição do mundo,
refere que, apesar de não ser o melhor dos mundos possíveis ao jeito de um Leibniz é, não obstante, perfeito.
E isto na medida em que a perfeição não é pensada por Nicolau de Cusa como o patamar último a atingir
por todas as coisas, mas sim, enquanto ser o melhor que pode ser, ainda que, em comparação com uma
outra coisa seja menos perfeito. Assim, o mundo é perfeito na medida em que não pode ser melhor de que
aquilo que é ou, em outros termos, na medida em que é o melhor que pode ser em acto. Quanto a este tema
veja-se De Ludo Globi, secções 15-16 onde este tema é abordado por meio de uma analogia com a forma
redonda do mundo.
(146)«o universo é o primeiro contraído» — «universum esse primum contractum», DI, II, IV, 116.
(147) DI, II, IV, 115. A unidade do múltiplo de que o Universo vem a ser expressão não é de todo
uma unidade estática. Não obstante o quase inexistente desenvolvimento deste tema, Nicolau de Cusa não
deixa de dar indício de um profundo pensamento da relacionalidade que tece e entretece a trama que
constitui a unidade do Universo, como por exemplo a seguinte passagem onde se dá conta da inter-
relacionalidade, bem como, da inter-dependência de cada uma das coisas das restantes naquilo que vem a
ser o seu «movimento» em direcção ao seu individual aperfeiçoamento, constituindo esta inder-
dependência e relacionalidade a unidade do Universo: «Pois, enquanto todas as coisas se movem
singularmente a fim de serem o que são do melhor modo e nenhuma igual a outra, no entanto, o movimento
de qualquer coisa contrai a seu modo o movimento de qualquer outra e participa nele mediata ou
imediatamente […] para que seja uno o universo» — «Nam dum omnia moventur singulariter, ut sint hoc
quod sunt meliori modo, et nullum sicut aliud aequaliter, tamen motum cuiuslibet quodlibet suo modo
contrahit et participat mediate aut immediate […] ut sit unum universum» DI, II, X, 154.
(148) «ita et universalis unitas essendi ab illa quae maximum dicitur ab absoluto, et hinc contracte
existens uti universum. Cuius quidem unitas in pluralitate contracta est, sine qua esse nequit. Quod quidem
maximum, etsi in sua universal unitate omnia complectatur, ut omnia, quase sunt ab absoluto, sint in eo et
ipsum in omnibus, non tamen habet extra pluralitatem in qua est subsistentiam, cum sine contractione, a
quo absolvi nequit, non exsistat», DI, I, II, 6.
(149) Como escreve, por exemplo, no De docta ignorantia: «E assim descobrimos as três unidades
universais [universo, géneros e espécies] descendo gradualmente ao particular, no qual se contraem para
que sejam, em acto, esse mesmo particular» — «Et ita reperimus três universales unitates gradualiter
descendentes ad particulare, in quo contrahuntur, ut sicut actu ipsum», DI, II, VI, 124.
De acrescentar que, à semelhança de Aristóteles, também para Nicolau de Cusa os universais, para
além de serem entes da razão extraídos das coisas por abstracção — quanto a isto veja-se, por exemplo, DI,
II, VI, nº125-126 ou DC, I, II, XIII, nº 134. —, possuem ser apenas enquanto contraídos num ente particular,
como taxativamente o afirma ao escrever que: «através destas considerações vê-se de que modo os
universais não são senão contraidamente em acto. E [é] por isso que os peripatéticos dizem, com verdade,
que os universais não são em acto fora das coisas. Pois, apenas o singular é em acto e nele os universais

72
De salientar que esta gradação não é uma ordenação ontológica ou sucessão
temporal, já que nos é dito por Nicolau de Cusa que, ao contrário de outros filósofos que
sustentam uma contracção gradual, a sua posição sustenta que «todos os entes, que são
partes do universo, sem as quais o universo, enquanto contraído, não poderia ser uno,
todo e perfeito, vieram simultaneamente ao ser com o universo» (150).
Não obstante isto, tal como «na intenção do artífice está primeiro o todo» e não a
parte «assim dizemos, porque todas as coisas vieram da intenção de deus ao ser, que então
o universo veio primeiro e todas as coisas na sequência dele, e sem elas não poderia ser
nem universo, nem perfeito» (151).
Deste modo, julgo tratar-se de uma hierarquização baseada na dignidade ou na
perfeição, que coloca o universo «acima» ou «antes» do ente singularmente dado. Porém,
de ponto de vista ontológico, a explicação simultânea do Universo e dos entes singulares
parece-me ser a resposta consequente, já que, como vimos, o Universo não é senão uma
totalidade contraída e dependente da própria multiplicidade, pelo que seria impossível
existir sem aquilo que o constitui.
Todavia, esta mediação do Universo, à qual são dedicadas longas páginas em De
docta ignorantia, vai perdendo a sua relevância em textos mais tardios, como por exemplo
De Non-Aliud ou De Dato Patris Luminum, nos quais o tema da contracção do Absoluto
no finito incide na directa determinação do Absoluto enquanto finito (152).

são ele próprio de modo contraído» — «Et in ista consideratione videtur quomodo universalia non sunt nisi
contracte actu. Et eo quidem modo verum dicunt Peripatetici universalia extra res non esse actu. Solum
enim singulare actu est, in quo universalia sunt contracte ipsum» DI, II, VI, 125.
Quanto à relação ontológico-epistemológica dos universais, Nicolau de Cusa afirma
categoricamente que estes existem nos entes singulares mesmo não havendo nenhuma mente que os possa
de lá abstrair e conceptualizar: «Pois, os cães e os outros animais da mesma espécie estão unidos pela
natureza comum específica que está neles. E esta natureza específica também estaria contraída neles se o
intelecto de Platão não produzisse a espécie por comparação das semelhanças entre si» — «Canes, enim et
cetera animalia eiusdem speciei uniuntur naturam communem specificam quae in eis est. Quae etiam in
ipsis contracta esset, si Platonis intellectus species ex comparatione similitudinem sibi non fabricaret»,
concluindo de imediato, numa formulação mais abstracta que: «Vem, portanto, o entender depois do ser e
do viver quanto à sua actividade, porque pela sua actividade não pode dar ser, nem viver, nem entender»
— «Sequit igitur intelligere esse et vivere, quoad operationem suam, quoniam per operatione suam nec
potest dar esse nem vivere nem intelligere», DI, II, VI, 126.
(150) «Omnia autem entia, quae sunt partes universi, sine quibus universum, cum sit contractum,
unum, totum et perfectum esse non posset, simult cum universo in esse prodierunt», DI, II, IV, 116.
(151) «Ita dicimus, quia ex intentione dei omnia in esse prodierunt, quod hins univerum prius prodiit
et in eius consequentiam omnia, sine quibus nec universum nec perfectum esse posset», DI, II, IV, 116.
(152) Penso podermos encontrar, já em De docta ignorantia, um indício deste papel, como que
secundário, do Universo naquilo que visa a descida do Absoluto no finito quando Nicolau de Cusa escreve
que deus é como que mediante o Universo nas coisas: «e assim pode entender-se de que modo deus, que é
a unidade simplicíssima, existindo no universo uno, é, consequentemente, como que [quasi] mediante o
universo, em todas as coisas, e a pluralidade das coisas é, mediante o universo, em deus» — «Et ita intelligi,
quomodo deus, qui est unitas simplicíssima, exsistendo in uno universo est quase ex consequente mediate
universo in omnibus, et pluralitas rerum mediante uno universo in deo», DI, II, IV, 116.

73
Posto este apontamento e retomando o nosso raciocínio, importa agora esclarecer
o que significa o Absoluto determinar-se enquanto finito. Ora, o Absoluto determinar-se
enquanto multiplicidade significa que o próprio Absoluto se torna esta multiplicidade —
na sua totalidade enquanto Universo, ou nas suas partes como entes singularmente
determinados. Isto é, no Universo é o próprio Universo e em cada coisa finita é aquilo
que aquela coisa é.
Procurando aprofundar este tema, é imperativo convocar à conversa a frutífera
discussão em torno da ideia de que «qualquer coisa está em qualquer coisa » e «tudo está
em tudo» que é introduzida por Nicolau de Cusa no capítulo V da De docta ignorantia
nas seguintes palavras: «Se consideras com agudeza o que já foi dito, não te será difícil
ver o fundamento de verdade daquela frase de Anaxágoras “qualquer coisa é em qualquer
coisa”, talvez mais profunda do que o próprio Anaxágoras pensou» sendo esta
consideração de imediato explicada:

«com efeito, sendo manifesto, segundo o primeiro livro, que deus é em todas as coisas de
um modo tal que todas são nele, e constando agora que deus é em todas as coisas como
que mediante o universo, daí resulta que tudo é em tudo e qualquer coisa é em qualquer
coisa» (153)

É importante clarificar que qualquer coisa não é todas as coisas — se assim fosse,
seria deus (154) —, mas que todas as coisas são aquela própria coisa. A totalidade das
coisas — pensada ou como totalidade absoluta enquanto deus ou como totalidade
contraída enquanto universo —, determina-se em cada uma das coisas enquanto aquela
própria coisa (155), como explica Nicolau de Cusa em De docta ignorantia recorrendo a
gradual contracção:

«Pois em qualquer criatura o universo é a própria criatura e assim qualquer coisa recebe
todas as coisas para que nela própria sejam ela de modo contraído. Como qualquer coisa

(153) «Si acute iam dictes attendis, non erit tibi difficile videm Veritatis illius Anaxagorici
“quodlibet esse in quodlibet” fundamentum fortassis altius Anaxagoras. Nam cum manifestum sit ex primo
libro deum ita esse in omnibus quod omnia sunt in ipso, et nunc constet deum quasi mediante universo esse
in omnibus, hinc omnia in omnibus esse constat et quodlibet in quolibet», DI, II, V, 117.
(154) «pois como qualquer coisa não pode ser em acto todas as coisas — porque seria deus […]»
— «Nam cum quaelibet res actu omnia esse non potuit — quia fuisset deus», DI, II, V, 120.
(155) Sobre a questão da contractio, João Maria André escreve o seguinte: «a razão fundamental
reside no facto de o conceito de “contractio” se aplicar à finitude, não havendo qualquer base para o aplicar
a Deus: “contractio” exprime o modo como Deus se “explica” no universo e, através do universo, na
multiplicidade dos entes» JOÃO MARIA ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação, p.351. Em que
sentido não podemos aplicar o conceito de contractio à deus? Nicolau de Cusa afirma expressamente que
Deus se contrai. Além disto, o que é o ente senão deus contraído enquanto aquele ente? O que, de facto,
podemos afirmar é que deus não é, utilizando um termo hegeliano, enquanto aquilo que concretamente é
algo contraído, ainda que no contraído deus seja contraído enquanto tal.

74
não pode ser em acto todas as coisas, uma vez que é de modo contraído, contrai todas as
coisas para que sejam ela própria» (156)

Ou, numa formulação algo mais simples e utilizando um exemplo sensível: «na
verdade, todas as coisas são pedra na pedra» (157).
Há aqui um duplo movimento que permite a Nicolau de Cusa concluir que tudo
está em tudo. O movimento que acabamos de descrever aponta apenas para a presença do
Absoluto nas coisas enquanto as coisas mesmas, mas não para a presença das coisas em
deus.
Apesar de já termos tratado este tópico, julgo ser importante rever esta questão
enquadrada neste tema. Assim, aquilo que sustenta esta tese defendida por Nicolau de
Cusa de que tudo está em tudo é o seguinte: na medida em que deus se contrai na coisa,
tornando-se a coisa mesma, deus está na coisa, deus está explicado na coisa. Na medida
em que a coisa, fazendo abstracção do seu ser determinado, é, na medida em que a coisa
existe em acto, como já vimos, ela está em deus, a coisa está complicada em deus.
É este movimento simultâneo de descida e subida, de explicação e complicação,
que permite ao Nicolau de Cusa afirmar que tudo está em tudo. Como o próprio cardeal
alemão o refere: «Dai que, como o universo é contraído em qualquer coisa existente em
acto, vê-se que deus, que é no universo, é em qualquer coisa e que qualquer coisa
existindo em acto é imediatamente em deus, assim como no universo» (158).
É digno ainda de interesse perguntar em que sentido a sua tese é mais profunda
que a tese de Anaxágoras. Lembramos que Anaxágoras no fragmento 6 (159) e sobretudo
no fragmento 11 (160) escreve que em cada coisa há uma porção de cada coisa.

(156) «In qualibet enim creatura universum est ipsa creatura, et ita quodlibet receipt omnia, ut in
ipso sint ipsum contracte. Cum quodlibet no possit esse actu omnia, cum sit contractum, contrahit omnia,
ut, ut sint ipsum» DI, II, V, 117.
(157) «Nam omnia in lapide lápis», DI, II, V, 119.
(158) «Unde, cum universum in quolibet actu existenti sit contractum, patet deum, qui est in
universo, esse in quolibet et quodlibet actu existens immediate in Deo, sicut universum. DI, II, V, 118.
Ainda do mesmo parágrafo pode-se ver: «O universo não é nas coisas a não ser de modo contraído e toda
a coisa que existe em acto contrai tudo de modo a que sejam em acto aquilo que ela é. Tudo o que existe
em acto é em deus porque ele é o acto de todas as coisas» — «Non est autem universum nisi contracte in
rebus, et omnia res actu exsistens contrahit universum, ut sint actu id quod est. Omne autem actu exsistens
in deo est, quia ipse est actus omnium».
(159) «E visto as porções do grande e do pequeno serem iguais em número assim também todas as
coisas estariam contidas em tudo. Nem é possível haver nada de isolado, mas todas as coisas têm uma parte
no todo. Como o mínimo não pode existir, nada se pode dividir nem formar por si, mas, tal como
inicialmente, também agora tem de estar tudo junto», KIRK, RAVEN, SCHOFIELD, Os Filósofos Pré-
Socráticos, 481-482, p.385.
(160) «Em todas as coisas há uma porção de tudo, excepto no Espírito; e há algumas em que também
existe Espírito», idem.

75
A meu ver, a diferença que Nicolau de Cusa surpreende entre a sua posição e a
posição de Anaxágoras que o leva a sustentar que o seu modo de ver esta questão é,
porventura, mais profundo do que aquilo que Anaxágoras defende, reside no modo como
a totalidade das coisas está em cada coisa.
Enquanto, para Anaxágoras, cada coisa é um composto de proporções diferentes
de cada coisa, para Nicolau de Cusa, o que está em jogo é a integralidade da presença de
todas as coisas em cada uma das coisas, enquanto aquela coisa. Não se trata de porções,
partes ou fragmentos, mas sim, da presença total, integral, da totalidade das coisas em
cada coisa, enquanto aquela própria coisa (161).
Fechando este ponto, como já referimos, o tema da manifestação sensível do
Absoluto ou, o que é o mesmo, o tema do fazer do mundo, não se esgota na categoria de
explicatio, mas é igualmente ilustrado pelo tema da descida ou queda do Absoluto no
finito, a cujo demorado tratamento Nicolau de Cusa dedica as páginas de De dato patris
luminum — A dádiva do pai das luzes.
Antes de mais, fazendo uma ponte com o tema da criação sobre o qual nos
debruçámos na primeira parte deste escrito, repare-se no modo através do qual Nicolau
de Cusa descreve tanto a criação, como o fazer do mundo, a sua manifestação sensível,
por meio da descida.
A criação sinaliza, segundo a linguagem cunhada em De dato patris luminum,
uma primeira descida do pai no filho: «portanto, a recepção [receptio] por via de uma
descida [descensu], da aparição [ostensionis] do pai no verbo [que] traz o começo das
criaturas» (162).

(161) Há quem defenda que a tese de quodlibet in quodlibet pretende assinalar apenas a presença
do universo em todas as coisas, como é o caso de Hopkins. Vincent Martin, numa primeira formulação,
parece apontar para a mesma ideia, referindo que:
«Porque em cada coisa todas as coisas são em acto aquela coisa, todo o universo é pedra na pedra,
na alma vegetativa como alma vegetativa, na visão como visão, no intelecto como intelecto, em Deus como
Deus» — «Because in each thing all things are actually that thing, all the universe is in stone as stone, in
the vegetative soul as vegetative soul, in sight as sight, in intellect as intellect, in God as God» The
dialectical process in the philosophy of Nicholas of Cusa, p.263. Porém, numa formulação posterior parece
aproximar-se mais da nossa visão ao escrever que: «Porque Deus e a criação são uno em essência e natureza,
há um universal quodlibet in quolibet: toda a realidade é cada ente de acordo com o modo daquele ente»
— «Because God and creation are one in essence and nature, there is a universal quodlibet in quolibet: all
reality is each being according to the mode of that being» The dialectical process in the philosophy of
Nicholas of Cusa, p.266.
(162) «Receptio igitur ostensionis patris in verbo in descensu praestat initium creaturae», DPL, IV,
111.

76
Neste passo há, a meu ver, a necessidade de recorrer à uma clarificação conceptual
para uma maior clareza na leitura e interpretação dos excertos deste texto. Os conceitos
cujo significado merecem uma explicação são:
por um lado, o conceito de «descida» que traduz a multiplicação e a contracção
do Absoluto, tanto formal, como acontece no excerto acima citado onde deus se determina
no verbo apenas formalmente, bem como materialmente, na sua manifestação sensível;
por outro lado, os conceitos de «doação» e «recepção» cujo objectivo é designar
a manifestação.
Com isto, percebemos que aquilo que está em causa no trecho anteriormente
citado é a manifestação de deus, por meio de uma determinação, no e enquanto Verbo, o
que corresponde, como vimos, com a geração por deus, em deus, enquanto deus (verbo),
do próprio mundo.
Esta inicial descida é seguida por uma segunda que consiste na manifestação
sensível do mundo, enquanto aparição ou ex-posição do verbo ou do mundo criado
através de uma queda na multiplicidade e determinidade (material), como dá conta o
seguinte trecho: «mas toda a criatura é uma mostração do pai [que] participa variada
[varie] e contraidamente [contracte] da mostração do filho» (163).
Repare-se como, seguindo uma via explicativa diferente, Nicolau de Cusa
recupera as mesmas ideias chave que foram enunciadas no tratamento da explicatio: a
necessária multiplicação do Absoluto, bem como a sua igualmente necessária contracção.
Do mesmo modo que a explicatio implica a contracção e a multiplicação, do mesmo modo
a doação e a recepção implicam uma descida e, por conseguinte, uma necessária
manifestação do Absoluto de maneira outra do que, em si mesmo, é.

Aproveitando os dois excertos acima citados, gostaria de sublinhar o modo como


a ideia anteriormente explicitada, que visava o facto de a explicatio constituir um pôr
para «fora» da multiplicidade comportada pela inicial unidade e não propriamente uma
multiplicação da unidade, volta a aparecer. Repare-se que aquilo que está em jogo no
segundo parágrafo transcrito é uma ex-posição, um pôr para «fora» do mundo criado,
presente em deus desde a eternidade pela geração eterna correspondente à primeira
descida.

(163) «Sed omnis creatura est ostensio patris participans ostensionem filii varie et contracte», DPL,
IV, 111.

77
De facto, em De dato patris luminum, Nicolau de Cusa taxativamente afirma esta
tese, por exemplo, quando refere que «portanto, toda a dádiva esteve eternamente com o
pai, do qual desce quando é recebida» (164), ou seja, — esclarecendo que o conceito de
dádiva, que neste texto possui um significado peculiar, significa aquilo que é dado pelo
«pai das luzes» e representa as próprias criaturas, as próprias luzes ou, como também são
designadas, as teofanias do único deus, como deixa claro o cardeal cusano: «essas dádivas
são luzes ou teofanias»(165) —, toda a criatura, o mundo, esteve desde sempre em deus,
enquanto deus, e manifestou-se sensivelmente quando se contraiu materialmente.
Neste sentido, como também esclarece Nicolau de Cusa, quanto ao mundo criado
e ao mundo sensivelmente manifestado, trata-se do mesmo mundo, ora visto na eternidade
enquanto eterno, ora visto na temporalidade e finitude enquanto mundo temporal e finito:
«Não há um mundo que junto do pai é eterno e um outro que, através da descida do pai,
é um mundo criado. Mas, o mesmo mundo é sem princípio e principiado, por meio de
uma descida, [é] recebido no seu próprio ser» (166).
Seguindo esta linha de pensamento, e lembrando que o mundo criado coincide
com o verbo e, portanto, com o próprio deus, podemos perceber que, na verdade, aquilo
que é dado por deus, as dádivas, as luzes, as teofanias, não são senão ele próprio. Deus,
contrai-se, determina-se, finitiza-se, de modo a manifestar-se sensivelmente sob
diferentes formas, sob diversos modos de ser. Numa formulação que penso captar aquilo
que realmente está em jogo, devemos perceber, não que deus dá as luzes, as teofanias, as
dádivas, as criaturas, como se desse algo diferente de si, mas sim, que deus se dá enquanto
luzes, teofanias, dádivas, criaturas.
É justamente para esta ideia que Nicolau de Cusa aponta desde o início deste
escrito quando sustenta que «o doador das formas não dá algo outro do que ele […]» —
sendo precisamente por esta razão que o cardeal alemão não deixa de referir ao longo das
suas obras que as criaturas são como um infinito finito ou um deus criado, como o faz,
por exemplo, em De docta ignorantia ao afirmar que «porque a própria forma infinita não
é recebida senão finitamente, de maneira que toda a criatura seja como que uma infinitude

(164) «Fuit igitur omne datum in aeternitate apud patrem, a quo, dum recipitur, descendit», DPL,
III, 104. Esclarecendo de imediato que tal descida representa a determinação temporal e, por conseguinte,
o começo do mundo contraidamente dado: «portanto, tal descida é uma contracção da eternidade na duração
que tem um começo» — «Descensus autem talis est contractio aeternitatis in durationem initium
habentem», DPL, III, 104.
(165) «quae dona sunt lumina seu theophaniae», DPL, I, 94.
(166) «neque est alius mundus, qui apud patrem est aeternus, et alius, qui per descensum a patre est
factus, sed idem ipse mundus sine principio et principiative per descensum in esse proprio suo receptus»,
DPL, III, 106.

78
finita ou um deus criado […]» (167) —, continuando por explicar que esta doação de si
«não pode ser recebida tal como é dada porque a recepção da dádiva ocorre de uma
maneira descendente. Portanto, o infinito é recebido finitamente, o universal,
particularmente, e o absoluto, contraidamente» (168) e, acrescentaria eu, a unidade é
recebida de forma múltipla.

(167) «Quoniam ipsa forma infinita non est nisi finite recepta, ut omnis creatura sit quasi infinitas
finita aut deus creatus», DI, II, II, 104 ou ainda, da mesma passagem, «Quem pode entender de que modo
todas as coisas são imagem daquela única [e] infinita forma, tendo da contingência [da matéria] a
diversidade, como se a criatura fosse deus ocasionado?» — «Quis ista intelligere posset, quomodo omnia
illius unicae infinitae formae sunt imago, diversitatem ex contingenti habendo, quase creatura sit deus
occasionatus»
Jasper Hopkins não apoia a mesma tese, sendo a sua resposta contra esta posição inteiramente
insatisfatória e, na verdade, revelando uma profunda incompreensão da dialéctica. Nas suas palavras:
«Um outro exemplo de uma passagem frequentemente mal compreendida é II, 2(101:1-3): “Mas
uma vez que a criação foi criada pelo ser do Máximo e uma vez que — no Máximo— ser, fazer e criar são
a mesma coisa: criar parece não ser outro de Deus ser todas as coisas”» — «Another example of a passage
frequently misunderstood is II, 2 (101:1-3): “But since the creation was created through the being of the
Maximum and since—in the Maximum—being, making, and creating are the same thing: creating seems
to be not other than God's being all things”» HOPKINS, Jasper, Nicholas of Cusa on learned ignorance,
p.13.
Dirigindo-se contra a posição de Vincent Martin, com a qual concordamos, Hopkins refere que:
«Alguns interpretes têm suposto que Nicolau está aqui, de algum modo, identificando Deus e a Sua criação.
Nicolau é apresentado como ensinando que “na criação, Deus, de algum modo, assume a privação — que
Ele, de algum modo, se torna as criaturas”. Porém, O ponto de Nicolau é demasiado dialéctico para ser
acomodado por tal interpretação insensível» — «Some interpreters have supposed that Nicholas is here in
some way identifying God and His creation. Nicholas is presented as teaching that “in creating, God
somehow takes on privation—that He somehow becomes the creatures.” Yet, Nicholas's point is much too
dialectical to be accommodated by such an insensitive interpretation», ibidem, pp.13-14.
Escusa-se dizer que o ataque de Hopkins baseado no facto de o pensamento de Nicolau de Cusa
ser dialéctico não é de todo fundamentado, dado que é justamente pelo facto de as teses de Nicolau de Cusa
serem dialécticas, e pelo facto de o cardeal cusano procurar pensar a dialéctica do próprio real (ainda que
num quadro ontológico profundamente embebido na doutrina cristã) que se deve admitir e sustentar que
deus se contrai enquanto mundo e enquanto cada ente.
Por estas afirmações, segundo Hopkins, Nicolau de Cusa procura afirmar que os entes são como
deus apenas por serem perfeitos, na medida em que receberam o máximo de ser e perfeição quando puderam
receber ou, em outras palavras, porque não podem ser melhores de que aquilo que são: «Portanto, quando
Nicolau afirma cada criatura como um deus criado ou deus manqué, faz isto para enfatizar que Deus não
foi mesquinho ou invejoso ao criar: Ele transmitiu tanto ser e perfeição quanto pude ser recebido» — «So
when Nicholas terms each creature a created god or a god manqué, he does so in order to emphasize that
God was not niggardly or envious in creating: He imparted as much being and perfection as could be
received», ibidem, p.21. Não obstante represente uma interpretação interessante, penso que Hopkins acaba,
por esta via, transportar um tema claramente ontológico para um plano axiológico.
(168) «sed non potest recipi ut datur, quia receptio dati fit descensive. Recipitur igitur infinitum
finite et universale particulariter et absolutum contracte», DPL, II, 99. Repara-se como o princípio
anteriormente analisado de que nada se dá tal como em si mesmo é reiterado neste fragmento, sendo que,
neste mesmo parágrafo, Nicolau de Cusa oferece uma formulação geral do mesmo: «então, [uma coisa] não
pode ser recebida [isto é, manifestada] numa outra coisa a não ser de maneira diferente [de que é em si
mesma]» — «Nam non potest in alio nisi aliter recipi» DPL, II, 99.
Comentando justamente esta mesma passagem de De dato patris luminum, Hopkins escreve o
seguinte: «aquilo que Deus dá é a Sua bondade, que é também o Seu Ser. Mas aquilo que é recebido é a
bondade e o ser — não a Sua bondade e o Seu Ser. Pois a Sua dádiva “não pode ser recebida tal como é
dada, porque a recepção da dádiva ocorre de um modo descendente» — What God imparts is His goodness,
which is also His Being. But what is received is goodness or being — not His goodness or His Being. For
His gift “cannot be received as it is given, because the receiving of the gift occurs in a descending manner”»
HOPKINS, Jasper, Nicholas of Cusa and John Wenck’s Twentieth-Century counterparts, p.14.

79
Essa manifestação múltipla do Absoluto é necessária, não apenas na medida em
que não pode haver manifestação se não houver multiplicação, mas também para melhor
e de um modo mais perfeito explicar ou ilustrar o infinito que é o Absoluto.
Desde De Genesis, onde nos é dito que «quanto mais o inatingível for explicado
na variedade das coisas, tanto mais o mesmo brilha em diversas coisas» (169), passando
por De Sapientia, onde nos é explicado que «a infinitude não-multiplicável é melhor
explicada por uma variada recepção, pois uma grande diversidade exprime melhor a não-
multiplicabilidade» (170) e De visione dei, onde igualmente nos é transmitido que «porque
o próprio uno não é multiplicável, multiplica-se, pelo menos, do modo que pode fazer na
semelhança mais próxima. Faz, no entanto, muitas figuras, porque a semelhança do seu
poder infinito não pode explicar-se de modo mais perfeito senão em muitas figuras» (171)
Nicolau de Cusa vai reforçar esta ideia.
Como pode o não-multiplicável, isto é, o infinito, o absoluto, manifestar-se de
melhor modo a não ser por uma infinitude de finitos, por uma pluralidade incontável de
entes. Assim, quanto mais diversa e múltipla for a sua manifestação, tanto mais rica e
mais próxima será a sua manifestação daquilo que verdadeiramente em si mesmo o
Absoluto é.

A emanação (172) representa uma terceira via que Nicolau de Cusa encontra para
ilustrar a manifestação sensível do Absoluto.
Por meio desta via, o Absoluto é pensado nos termos de uma fonte ou um tesauro
no qual se encontram, desde a eternidade, os diferentes modos de ser e do qual todos eles
emanam enquanto manifestações suas, como explica na seguinte passagem do De
Possest: «é em acto o tesauro [thesaurus] de ser a partir do qual todas as coias que são

A explicação que nos oferece no final do trecho citado é categoricamente insatisfatória. Do facto
de o Absoluto não se dar tal como é não se pode concluir que aquilo que é dado não é ele próprio, mas sim,
que ele se dá de um modo diferente daquilo que em si mesmo é.
(169) «cum tanto plus idem in ipsis resplendeat, quanto magis inattingibilitas in varietate imaginum
explicatur», DG, I, 151.
(170) «immultiplicabilis infinitas in varia receptione melius explicatur, magna enim diversitas
immultiplicabilitatem melius exprimit», DS, I, 25.
(171) «cum ipse unus sit immultiplicabilis, saltem modo, quo fieri potest, in propinquíssima
similitudine multiplicetur. Multas autem figuras facit, quia virtutis suae infinitae similitudo non potest nisi
in multis perfectiori modo explicari», VD, XXV, 117.
(172) O reconhecimento de Platão enquanto criador desta via explicativa fica patente em várias
passagens, como por exemplo, NA, 38 e 97.

80
emanam — assim como da eternidade foram concebidas ou colocadas no tesauro da
sabedoria» (173).
Podemos observar como, apesar da mudança na via explicativa, os princípios
norteadores da sua doutrina continuam a ser os mesmos: há, inicialmente, uma unidade
complicante que comporta em si, desde a eternidade, por via da geração eterna, da criação,
da primeira descida, o verbo, a multiplicidade, o mundo que, posteriormente, por via de
explicação, da segunda descida, da emanação se dá na e enquanto multiplicidade ou
mundo sensivelmente contraído, criatura, deus explicado.
De facto, para Nicolau de Cusa, apenas nesta medida, isto é, apenas na medida em
que a multiplicidade, o mundo, se encontra já presente na inicial unidade complicante, é
possível falar do Absoluto enquanto uma fonte manante e da criatura enquanto emanando
deste, como deixa bem claro o cardeal cusano ao escrever que: «Não é, pois, possível
entender a criatura ter emanado do criador, a não ser que seja vista [como] tendo estado
eternamente no poder invisível dele [do criador]» (174).
É por esta razão que, em De docta ignorantia, nos é dito que o universo vem ao
ser por uma simples emanação do Máximo Absoluto: «vê-se como, por meio da simples
emanação do máximo contraído a partir do máximo absoluto, todo o universo vem ao
ser» (175).
A via da emanação parece apresentar, todavia, um problema, nomeadamente, a
possível e aparente oposição à tese que em vários passos da sua obra Nicolau de Cusa
defende e que diz respeito à criação livre ou segundo a livre vontade de deus, do mundo.
Jasper Hopkins, ao longo da sua tradução das obras cusanas, procura sempre
clarificar que a criação segundo a livre vontade de deus não entra em conflito com o tema
da emanação.
Sem procurar ser exaustivo, assinalando apenas a título ilustrativo, veja-se, por
exemplo, a explicação dada por Hopkins na nota 55 da sua tradução de De ludo globi —
referente a uma passagem onde Nicolau de Cusa sustenta a criação do mundo segundo a
livre vontade de deus —, onde refere que: «Esta visão não está em desacordo com outras
afirmações suas, em De docta ignorantia e outros lugares, no sentido de o mundo (criado)

(173) «est actu ipse essendi thesaurus a quo emanant omnia quae sunt, quemad- modum ipsa ab
aeterno in thesauro sapientiae concepta vel reposita sunt», DPo, 64.
(174) «Non est enim possibile creaturam intelligi emanasse a creatore, nisi videatur in invisibili
virtute seu potestate eius ipsam aeternaliter fuisse» DPo, 73.
(175) «patet quomodo per simplicem emanationem maximi contracti a maximo absoluto totum
universum prodiit in esse», DI, II, IV, 116.

81
ter emanado de deus» (176), mas também a explicação da nota 52 do livro segundo da De
docta ignorantia onde refere que: «Nicolau não hesita em usar a palavra “emanatio”, uma
vez que a sua versão de emanação não entra em conflito com a doutrina da criação ex
nihilo» (177)
A meu ver, sem a problemática passagem de De Conjecturis analisada na primeira
parte deste escrito (178) que apontava para uma necessidade inscrita na natureza do próprio
Absoluto em manifestar-se, seria perfeitamente compreensível o modo como a emanação,
que parece apontar para uma determinação da criação, se poderia conjugar com a livre
criação: ainda que haja uma necessidade de criar é uma necessidade interna, uma auto-
imposição de deus, que assinalasse a sua autonomia face a qualquer causa externa. Não
se trataria de uma imposição externa, mas sim, de uma auto-determinação. Todavia, na
existência daquela passagem, penso que o problema é mais difícil do que à primeira vista
pode parecer.

(176) «Está visão está em desacordo com outras das suas afirmações, em DI e outros sítios, ao ponto
de o mundo (criado) emanar a partir de Deus» — «This view is not at odds with other of his statements, in
DI and elsewhere, to the effect that the (created) world emanated from God», LG, tradução inglesa Hopkins,
nota 55, p.1257.
(177) «Nicolau nao hesite em usar a palavra “emanatio” uma vez que a sua versão de emanação não
entre em conflito com a doutrina da criação ex nihilo» — «Nicholas does not hesitate to use the word
“emanatio” since his version of emanation does not conflict with the doctrine of creation ex nihilo», DI,
tradução inglesa de Hopkins, nota 52, p.106.
(178) Cf. nota 94.

82
3. O fazer do Mundo. Porquê? A partir de quê? Matéria, forma e a relação entre
ambas.

Esboçadas as linhas gerais da manifestação do Absoluto, para uma compreensão


mais profunda e completa deste processo, é necessário ainda colocar algumas questões de
pormenor: por que razão se manifesta ou, o que é o mesmo, qual é o motivo pelo qual o
Mundo é feito? A partir de que se dá faz o Mundo? Qual é o papel e a relação entre a
matéria e a forma nas coisas sensíveis?
Com estas interrogações em mente, buscando dar continuação às linhas finais do
capítulo anterior onde nos debruçamos sobre a questão manifestação do Absoluto,
nomeadamente, saber se esta manifestação ou o fazer do mundo tem sido um acto da livre
vontade divina ou não — mais uma vez, a questão central não é se a manifestação foi
livre ou não; tanto num caso como no outro, a manifestação é livre; o problema fulcral
reside em saber se a criação foi uma escolha, uma opção de deus ou se, pelo contrário,
foi uma consequência da sua natureza —, iniciemos este novo capítulo pela primeira
pergunta gravada no título: porquê? Por que razão há o mundo? Simplesmente porque
deus quis que houvesse mundo (e, neste sentido, a tese da livre vontade de deus parece
prevalecer sobre a sua opositora)? Ou, porventura, será que há igualmente outras razões?
A estas perguntas Nicolau de Cusa oferece-nos três respostas que se encontram
espalhadas ao longo da sua obra.
Uma das razões da manifestação do Absoluto que Nicolau de Cusa sublinha está
ligada com o deleite. Deus manifesta-se enquanto mundo para se deleitar nessa sua
imagem, para apreciar o seu poder. Tanto em De beryllo (179) como em De visione dei
(180) esta tese marca presença.
Uma outra motivação assinalada por Nicolau de Cusa está vinculada com o desejo
de ser visto. Com esta ideia somos interpelados no Compendium (181).

(179) «Do intelecto [divino] a partir do qual todas as coisas vêm a existência para que o intelecto se
manifeste. Pois, deleita-se ao manifestar e comunicar a luz da sua própria inteligência» — «intellectus, a
quo omnia in esse prodeunt, ut se ipsum manifestet. Intellectus enim lucem suae intelligentiae delectatur
ostendere et communicare», DB, 4.
(180) «Tu, senhor, que operas todas as coisas por ti próprio, criaste este universo por meio da
natureza intelectual, como um pintor, que tempera as diversas cores para que se possa pintar a si próprio,
para que tenha uma imagem de si na qual se deleite e repousa a sua arte» — « Tu, domine, qui omnia
propter temet ipsum operaris, universum hunc mundum creasti propter intellectualem naturam, quasi pictor,
qui diversos temperat colores, ut demum se ipsum depingere possit ad finem, ut habeat sui ipsius imaginem,
in qua delicietur et quiescat ars sua», VD, XXV, 116.
(181) Nas palavras do cardeal alemão: «portanto, porque o próprio Poder, de que nada é mais
poderoso, deseja poder ser visto, todas as coisas [são]» — «Quia igitur ipsum posse, quo nihil potentius,
vult posse videri, hinc ob hoc omnia.», COM, Epilogo, 47.

83
Vinculada à esta segunda motivação, a terceira razão da manifestação de deus
prende-se, mais uma vez, com o desejo de deus de ser conhecido. Deus manifesta-se
sensivelmente de modo a poder ser conhecido. A tese é categoricamente afirmada no De
beryllo na seguinte passagem: «portanto, sobre qualquer coisa, duvidas porque é deste ou
daquele modo ou porque é do modo em que é, há uma resposta, isto é, porque o intelecto
divino quis manifestar-se ao conhecimento sensível para que seja conhecido
sensivelmente» (182). Igualmente categórico é o trecho de De Possest onde Nicolau de
Cusa transmite-nos a mesma ideia: «Portanto, o mundo revela o seu criador para que seja
conhecido, ou melhor, o deus desconhecido revela-se de modo cognoscível ao mundo na
figuração e simbolismo» (183).
Bem vistas as coisas, e respondendo às questões acima colocadas, à multiplicidade
de motivações que levam a manifestação de deus subjaz, todavia, uma razão comum que,
por conseguinte, as torna secundárias: o desejo ou a vontade divina de se manifestar. Deus
quer deleitar-se na sua obra. Deus quer ser visto. Deus quer ser conhecido. As múltiplas
motivações convergem numa motivação base: a vontade divina.
De facto, em De Beryllo, Nicolau de Cusa incide muitíssimo neste tema,
sublinhando, em várias ocasiões, que a criatura é a intenção de deus, residindo nisto a sua
verdadeira essência, ou seja, antes da essência da coisa apontar para aquilo que a coisa
determinadamente é, aponta para o facto de ela ser a intenção de deus (184).
Posto isto, coloca-se, novamente, em cima da mesa, a questão da livre
manifestação de deus.
A questão é realmente muito complicada. Na grande maioria dos trechos
analisados a tese predominante é a da livre criação. Nessa mesma maioria dos trechos, o
tema é tratado do ponto de vista da teologia cristã, é sempre ou quase sempre deus que
deseja manifestar-se. Porém, quando a discussão é travada num plano filosófico, como é
o caso do «problemático» excerto de De Coniecturis, a unidade é condicionada a
manifestar-se.

(182) «Si igitur dubitas de quacumque re, cur hoc sic vel sic sit vel sic se habeat, est una responsio,
quia sensitivae cognitioni se divinus intellectus manifestare voluit, ut sensitive cognosceretur», DB, 66
(183) «Mundus igitur revelat suum creatorem, ut cognoscatur, immo incognoscibilis deus se mundo
in speculo et aenigmate cognoscibiliter ostendit», DPo, 72.
(184) Por exemplo, quando escreve que «a criatura é a intenção do criador e consideremos intenção
ser a quididade mais verdadeira da criatura» — «creatura est intentio conditoris, et consideremus
intentionem esse verissimam quiditatem eius», DB, 54, mas também quando nos diz que «A intenção é a
manifestação de deus o criador» — «est intentio ipsius dei creatoris manifestatio», DB, 66.

84
Reconheço, de facto, a minha incapacidade em oferecer uma resposta concreta a
esta pergunta. Resumo-me a sublinhar que a fé de Nicolau de Cusa nunca pode ser posta
em causa. Aquilo que, a meu ver, pode ser posto em causa e que, porventura, pode estar
na base destas afirmações, por assim dizer, mais polémicas ou problemáticas, por
comparação com a doutrina cristã, é uma cega obediência ou mecânica repetição daquilo
que se poderia chamar uma ordem de ideias estabelecida (185). Por outras palavras, o
pensamento filosófico do cusano, na tentativa de responder às questões mais profundas
que diante dele se levantam, pode surpreender-nos por vezes com afirmações deste tipo.

Qualquer que seja a resposta à questão anterior é imprescindível perguntar através


de quê é possível esta manifestação. Se o mundo é criado a partir de nada, de que é, então,
o mundo feito?
Acerca deste tema, gostaria de convocar à discussão uma passagem que,
indirectamente, sublinha a ideia em torno da qual gravitarão as seguintes páginas: «pois,
expressar é falar para fora um conceito interior por meio de palavras ou outros signos
figurativos» (186).
O trecho citado parece situar-se mais num plano linguístico do que propriamente
ontológico. Porém, leiamos com atenção. Expressar não é mais de que manifestar, um
pôr para fora de algo, neste caso um conceito interior, um conceito mental. Esta
externalização do conceito requer um meio material para ser levada a cabo: a voz, as
palavras.
Translademos este raciocínio para a mente divina. A mente divina cria um
conceito seu, o verbo. Seguindo o raciocínio analisado, a ex-teriorização, a ex-plicação
deste conceito mental requererá igualmente um meio material para poder ser concluída.

(185) Um aspecto que, numa leitura mais rápida dos textos, pode passar despercebido e que se
prende precisamente com esta questão da obediência às doutrinas «oficiais» e que, no caso de Nicolau de
Cusa, inclino-me a achar que está relacionado com uma certa pressão exercida de fora para esse efeito, é a
alteração operada pelo cardeal alemão na sua visão cosmológica, nomeadamente, quanto à posição que a
Terra ocupa no Universo.
Se, por um lado, em 1440 em De docta ignornatia, nos corolários acerca do movimento, Nicolau
de Cusa afirma veemente que «a terra não é o centro do mundo» — «sicut igitur terra non est centrum
mundi», DI, II, XI, 157, misteriosamente, no texto de 1462-1463 De Venatione Sapientia, o cardeal cusano
muda a sua visão afirmando que a divina sabedoria « colocou a terra no centro, determinou que a terra fosse
pesada e fosse movida em direcção ao centro do mundo para que exista [subsisteret] sempre no centro e
não se desvie, nem lateralmente, nem para cima» — «Posuit terram in medio, quam gravem esse et ad
centrum mundi moveri determinavit, ut sic sempre in medio subsisteret et neque sursum neque lateraliter
declinaret.», VS, XXVIII, 83.
(186) «Effari enim est conceptum intrinsecum ad extra fari vocalibus aut aliis figuralibus signis»,
QD, I, 19.

85
Ou seja, aquilo que indirectamente podemos perceber é que, se a criação do
mundo, isto é, se a geração eterna do verbo, do filho de deus, dá-se a partir de nada, o
fazer do mundo, a sua manifestação sensível, requer um meio material (como veremos, é
justamente neste sentido que, em certas passagens, Nicolau de Cusa defende a tese de que
de nada, nada pode ser feito).
É com isto em mente que, em De filiatione dei, Nicolau de Cusa escreve que deus
«criou a matéria para ser como que a sua voz, através da qual fez a sua palavra mental
brilhar em diversas maneiras» (187). Será precisamente a matéria ou, como igualmente é
chamada por Nicolau de Cusa, o poder-ser-feito ou a possibilidade, o meio através do
qual a sua manifestação sensível poderá ser levada a cabo. Se tudo é criado a partir de
nada, tudo é feito a partir da matéria, como indica o cardeal alemão: «todas as coisas que
são depois dele [poder-ser-feito] têm sido feitas pelo criador a partir do poder-ser-feito
[posse fieri]» (188).

Neste ponto, toda uma série de questões se levanta perante a nossa investigação:
o que é a matéria? qual é a origem da matéria? qual é o seu estatuto ontológico? qual é a
sua relação com deus? e com a forma?
Começando pela primeira questão, tendo por base a resposta à questão pelo meio
através do qual o Absoluto se manifesta, podemos afirmar, num primeiro momento, que
a matéria representa justamente o meio material da manifestação sensível do Absoluto.
Assim, a matéria representa o substrato, o sujeito de toda a determinação formal
determinação essa sem a qual nada poderia existir em acto, nem ser conhecido. Aliás, é
essa mesma determinação formal que possibilita o conhecimento da matéria, bem como,
a sua designação positiva, isto é, a atribuição de um nome. Como explica Nicolau de
Cusa:
«portanto, é necessário considerares, semelhantemente, que tudo o que deve ser em acto,
ou sensivelmente ou inteligivelmente, pressupõe algo sem o qual não é; que por si não é
nem sensível nem inteligível. E porque esta [coisa pressuposta] carece de uma forma
sensível ou inteligível, não pode ser conhecida, a não ser que se torne formada; e não tem
nome. Todavia, é chamada hyle, matéria, caos, possibilidade, poder-ser-feito ou sujeito e
outros nomes» (189)

(187) «creavit […] materiam eius quasi vocem, in qua mentale verbum varie fecit resplendere», FD,
IV, 76.
(188) «Omnia igitur quae post ipsum sunt, a creatore de ipso posse fieri producta sunt»VS, III, 8.
(189) «Oportet igitur, ut similiter consideres omne, quod actu esse debet, sive sensibile sive intelli-
gibile, praesupponere aliquid, sine quo non est; quod per se nec est sensibile nec intelligibile. Et quia illud
forma sensibili aut intelligibili caret, nosci nequit, nisi formetur, et non habet nomen. Dicitur tamen hyle,
materia, chaos, possibilitas sive posse fieri seu subiectum et aliis nominibus», COM, VII, 19. Ora, se é fácil

86
Todavia, esta não é a única resposta ou a única vertente segundo a qual Nicolau
de Cusa pensa a matéria.
De salientar que Nicolau de Cusa reconhece a dificuldade em atribuir uma
definição positiva à matéria, chegando a comparar o conceito de matéria com o conceito
de deus afirmando que «assim como o conceito de deus excede toda a concepção, assim
o da matéria foge a toda à concepção» (190).
Toda a definição é uma circunscrição, uma limitação. Neste sentido, deus excede
toda a definição, toda a concepção, isto é, toda a tentativa de ser conceptualizado, na
medida em que todos estes esforços ficam aquém da sua natureza infinita. Definir ou
conceptualizar o infinito traduz-se numa limitação do mesmo e, portanto, numa
compreensão ou apreensão parcial daquilo que verdadeiramente está em causa.
O mesmo acontece no caso da matéria. Não porque esta seja absoluta. Mas porque procura
traduzir, segundo Nicolau de Cusa, a possibilidade de ser, um poder ser algo ou, como
escreve em De beryllo, um ser ainda-não-existente (191). Assim, qualquer definição
positiva da matéria implicaria ir contra a sua própria natureza.

entender que a existência em acto de uma coisa pressupõe um meio material, não tão fácil é perceber a
razão pela qual a mesma exigência é aplicada àquilo que é inteligível. Julgo que aquilo que está em causa
neste contexto são os conceitos inteligíveis humanos. Ora, segundo Nicolau de Cusa, que neste aspecto
segue a via aristotélica, não existem conceitos inatos ou, se quisermos, a priori. A mente humana é, neste
sentido, uma tabula rasa. Como escreve Nicolau de Cusa em De Mente: «Sem dúvida, a nossa mente foi
posta neste corpo por deus para o seu próprio desenvolvimento. Portanto, é necessário que a mente tenha
de deus tudo aquilo sem o qual a mente não pode atingir [este] desenvolvimento. Portanto, não devemos
acreditar há conceitos conaturais da alma, que a alma esqueceu no corpo; mas, [devemos acreditar que]
porque a alma tem necessidade do corpo para que o seu poder conatural possa proceder em direcção a sua
actualização» — «Indubie mens nostra in hoc corpus a deo posita est ad sui profectum. Oportet igitur ipsam
a deo habere omne id, sine quo profectum acquirere nequit. Non est igitur credendum animae fuisse
notiones concreatas, quas in corpore perdidit, sed quia opus habet corpore, ut vis concreata ad actum
pergat», DM, IV, 77.
Não obstante a sua inicial pobreza conceptual, a sua incrível capacidade plástica permite-lhe
assimilar-se às coisas da realidade criando, por abstracção, conceitos das e sobre as mesmas como, por
exemplo, é possível ver na seguinte passagem: «e nesta assimilação se considera a mente, como se a
absoluta maleabilidade [flexibilitas] (i.e., a maleabilidade livre da cera, do barro, do metal e todos [os
materiais] maleáveis) fosse viva com uma vida mental, para que, por si mesma, pudesse assimilar-se a todas
as formas como existem em si e não em nenhum material. Pois tal mente verá que pelo facto de poder
conformar-se a todas elas, os conceitos de todas as coisas estarão presentes no poder da sua própria
maleabilidade viva, isto é, estarão presentes na própria mente» — «Et in hac assimilatione se habet mens,
ac si flexibilitas absoluta a cera, luto, metallo et omnibus flexibilibus foret viva vita mentali, ut ipsa per se
ipsam se omnibus figuris, ut in se et non in materia subsistunt, assimilare possit. Talis enim in vi suae
flexibilitatis vivae, hoc est in se, notiones omnium, quoniam omnibus se conformare posset, esse
conspiceret», DM, VII, 104.
Ora, precisamente na medida em que a mente humana, de modo a formar os conceitos das coisas
por meio da abstracção, necessita da coisa mesma, implicitamente, necessita igualmente da matéria através
da qual essa mesma coisa se dá em acto. Resumindo, a coisa inteligível, enquanto conceito humano, não
pode existir sem uma coisa materialmente dada a partir do qual esse seja abstraída.
(190) «Sicut enim conceptus de deo omnem excellit conceptum, sic de materia omnem fugit
conceptum», LG, I, 47.
(191) Cf. DB, 44.

87
Para o aprofundamento daquilo que a matéria é ou, de modo a ser mais concreto,
para perceber melhor que tipo de possibilidade ou poder, a matéria é, torna-se
incontornável o adiantamento da exposição das teses do cusano quanto ao facto de a
matéria, a forma e o nexo representarem o resultado da descida ou queda da possibilidade
ou potência absoluta, da forma ou do acto absoluto e do nexo absoluto, respectivamente
(192) — isto é, por outras palavras, uma descida ou queda da trindade. Sendo que, enquanto
resultado de uma descida, a matéria, a forma e o nexo não podem ser nas coisas sensíveis
senão de modo contraído, determinado.
Esta ideia é fundamental para perceber que a matéria, enquanto possibilidade, não
é a possibilidade absoluta, mas que representa uma possibilidade contraída, determinada.
Ou seja, a matéria não pode ser tudo aquilo que pode ser — e, neste sentido, a matéria
não se pode identificar com deus que é a possibilidade absoluta —, mas apenas aquilo
que ela pode ser.
Indo ao encontro dos argumentos presente em De docta ignorantia, a matéria,
percebemos que, enquanto presente nas coisas sensíveis, a matéria não pode ser
identificada com a possibilidade absoluta, uma vez que, se assim fosse, chegar-se-ia ao
máximo na própria coisa finita, como escreve o Cusano: «mas nós, pela douta ignorância,
descobrimos que a possibilidade absoluta é impossível [nas coisas contraídas]» pois, se
fosse possível, «chegar-se-ia assim ao mínimo e ao máximo nas coisas susceptíveis de
mais e de menos, o que é impossível» (193), o que seria o mesmo que dizer que, cada coisa
finita é em acto tudo aquilo que é possível ser, o que é impossível.
Por esta razão, Nicolau de Cusa conclui que toda a matéria, nas coisas finitas, é
determinada pela forma:

«toda a possibilidade [isto é, toda a matéria] é contraída. Mas é contraída pelo acto [ou
seja, pela forma]. Assim não se encontra a pura possibilidade, completamente
indeterminada por qualquer acto. E a aptidão da possibilidade não pode ser infinita,
absoluta e privada [carens] de toda a contracção» (194)

(192) Como explica Nicolau de Cusa em De Docta ignornatia, a matéria ou «a contraibilidade


significa uma certa possibilidade e ela procede descensivamente da unidade geradora na divindade», de
modo semelhante a forma ou o «contraente, na medida em que delimita a possibilidade do contraível,
procede descensivamente da igualdade da unidade» e, por fim, o nexo que «procede descensivamente do
espirito santo, que é o nexo infinito» — «Ipsum autem contrahens cum terminet possibilitatem contrahibilis,
ab aequalitate unitatis descendit» DI, II, VII, 129, «a Spiritu sancto, qui est nexus infinitus, descendere»
DI, II, VII, 130.
(193) «Nos autem per doctam ignorantiam reperimus impossibile fore possibilitatem absolutam esse
[…] hinc ad minimum deveniretur atque ad maximum in recipientibus magis et minus, quod est
impossibile», DI, II, VIII, 136.
(194) «Omnis igitur possibilitas contracta est. Per actum autem contrahitur. Quare non reperitur
pura possibilitas, penitus indeterminata per quemcumque actum. Neque aptitudo possibilitas potest esse
infinita et absoluta omni carens contractione» DI, II, VIII, 137. Quanto ao modo como a possibilidade ou a

88
A determinação da matéria pela forma não aponta somente para a determinação
daquilo que a matéria é em acto, isto é, a determinação daquilo que ela é. Trata-se também
de determinar, isto é, limitar, restringir, circunscrever a sua aptidão, isto é, as suas
potencialidades, aquilo que ela pode ser.
Assim, a matéria é vista por Nicolau de Cusa como representando uma
possibilidade determinada, ora enquanto determinada em acto, ora representando um
leque de potencialidades restrito a um âmbito bem definido de acordo com o modo de ser
de cada ente.
De salientar que a possibilidade estar determinada ou circunscrita a um âmbito
bem delimitado de potencialidades significa, a meu ver, que a matéria está pré-
determinada a possuir tal e tal formas ou, ainda melhor, que na matéria estão pré-
determinadas as formas que essa poderá ter, o que equivale a dizer que a matéria possui
de maneira pré-determinada os seus diferentes modos de ser.
Esta tese pode ser sustentada por três referências explícitas de Nicolau de Cusa. A
primeira encontra-se, desde logo, em De docta ignorantia quando nos é dito que as formas
estão «ocultas na matéria»:

«Que esse mundo derivasse racionalmente da possibilidade foi necessário, porque a


possibilidade teve aptidão para ser apenas este mundo. Por isso, a aptidão da possibilidade
foi contraída e não absoluta. [Foi] assim também no caso da terra e do sol, e das outras
coisas que se não estivessem ocultas na matéria [latitassent in materia] segundo uma certa
possibilidade contraída não haveria maior razão para se tornarem acto do que para não se
tornarem» (195)
A segunda, em De beryllo onde nos é transmitido que a forma está
«profundamente submersa» na matéria: «[…] a matéria tem ser pela forma que está
profundamente submersa nela e que devêm muito material […]» (196)
E, por fim, em De venatione sapientiae onde é directamente afirmado que na
matéria todas as coisas foram pré-determinadas: «Portanto, no poder-ser-feito [posse

matéria é determinada pelo acto ou forma diremos algo mais adiante. Queria chamar a atenção para o
seguinte: nestas passagens, Nicolau de Cusa não nega, em absoluto, a existência da possibilidade absoluta;
aquilo que o cardeal cusano rejeita é a existência, nas coisas contraídas, no mundo sensível, da possibilidade
absoluta.
(195) «Quod enim hic mundus prodiit rationaliter ex possibilitate, ex eo necessario fuit, quia
possibilitas ad essendum mundum istum tantum aptitudinem habuit. Contracta igitur et non absoluta fui
aptitudo possibilitatis. Ita de terra et sole et cetersi, quae nisi quadem contracta possibilitate latitassent in
materia, non maior ratio fuisset, cur ad actum potius quam non prodiissent», DI, II, VIII, 138.
(196) «est ens per formam, quae se ei valde immergit et fit multum materialis», DB, 44.

89
fieri] criado, todas as coisas criadas são predeterminadas, para que este mundo belo
podesse ser feito como é» (197).
Todavia, em De ludo globi, quando o seu interlocutor João interroga se as formas
estão escondidas na matéria, como a bola estava escondida na madeira, Nicolau de Cusa
responde que não:

«de nenhum modo, pois uma vez que o operador de torno [tornator] faz a bola aparando
partes da madeira até alcançar à forma de uma bola, a possibilidade que o operador de
torno viu na madeira, passou — quando a possibilidade se conforma com a bola que tem
na sua mente —, de um modo possível de ser ao existir em acto» (198)

Não obstante a aparente incongruência que envolve a relação entre as primeiras


três citações e a última, a verdade é que as duas posições nelas esboçadas são compatíveis.
A explicação passa pela compreensão do modo como Nicolau de Cusa pensa a presença
da forma na matéria.
Ora, esta explicação pode ser encontrada em De docta ignorantia aquando da
comparação levada a cabo por Nicolau de Cusa entre a posição dos estóicos e dos
peripatéticos (199). Enquanto, segundo Nicolau de Cusa, os estóicos defendem a presença
em acto da forma na matéria, os peripatéticos defendem a presença em potência da forma
na matéria. Assim, a causa eficiente — que em ambos os casos é indispensáveis para
trazer à luz a forma oculta na matéria — segundo os estoicos, descobre a forma já presente
em acto na matéria, enquanto que para os peripatéticos actualiza a forma que estava em
potência na matéria.
Com isto em mente, aquilo que, a meu ver, é negado por Nicolau de Cusa em De
ludo globi, é a presença em acto das formas na matéria, até porque, o alvo da sua
explicação é o facto de a forma potencial presente na madeira ter sido actualizada (200).

(197) «Quare in posse fieri creato omnia create sunt praedeterminata, ut hic mundus pulcher, uti est,
fieret», VS, III, 8.
(198) «Nequaquam. Nam cum tornator globum facit abscindendo partes ligni usque quo perveniat
ad formam globi, possibilitas, quam vidit tornator in ligno, quando se conformat cum globo mentis, transivit
de possibili modo essendi ad actu esse», LG, I, 48.
(199) Cf. DI, II, VIII, 134-135.
(200) A actualização da possibilidade ou da determinação da matéria em acto, segundo Nicolau de
Cusa, nunca é um feito do homem, mas sim, de deus. As afirmações que constam em De Venatione
Sapientiae são mais que explícitas quanto a esta posição: «Agora devemos tomar máxima atenção como o
poder-ser-feito não poder ser delimitado por outro que lhe [seja] subsequente ou que pode ser feito», —
«Patet iam maxime notandum, quomodo posse fieri non potest terminari per aliquid, quod ipsum sequitur
seu fieri potest», VS, VII, 18, ou ainda, «que o poder-ser-feito é delimitado, quando o que foi possível ser
feito assim é feito em acto assim. E esta determinação é do criador do poder-ser-feito. Uma vez que, sendo
omnipotente, apenas ele tem o poder de determinar que o poder-ser-feito seja feito assim ou assim», —
«quam posse fieri contractum ad id quod fit, in quo terminatur ipsum posse fieri, quando fit actu tale, quod
tale fieri potuit. Et haec determinatio est creatoris ipsius posse fieri, qui cum sit omnipotens, solus
determinare habet, quod posse fieri sic aut sic fiat», VS, XXXVIII, 114. As citações feitas pelo Cusano de

90
A negação desta tese, atribuída pelo cardeal alemão aos estóicos, segundo aqueles
que são os princípios chave do seu pensamento, está relacionada, a meu ver, com o facto
de tal posição admitir a existência de uma forma em acto não determinada pela matéria
que, segundo o cusano, é impossível, uma vez que, por um lado, apenas deus é
incontraível e, por outro lado, toda a forma nas coisas sensíveis tem de ser
necessariamente contraída.
Fazendo um ponto da situação, segundo Nicolau de Cusa, a matéria representa o
meio material através do qual deus se manifesta sensivelmente, bem como, uma
possibilidade ou um poder pré-determinado pelas formas que contém em si e determinado
em acto pela forma específica que, em determinado momento, vem à superfície.

Passando à segunda questão que diz respeito à origem da matéria, podemos


começar por perguntar se a matéria existiu desde sempre. Esta pergunta, desde logo, abre
uma bifurcação no caminho a percorrer: ou a matéria foi algo pré-existente a partir do
qual deus fez o mundo ou, a matéria existiu desde sempre por ser o próprio deus. Vejamos
as respostas do cusano.
Em De ludo globi¸ ao ser interpelado pelo seu interlocutor com a primeira
alternativa apontada por nós — «Entendes por poder-ser-feito ou por possibilidade ou por
matéria algo [pré-existente] a partir do qual o mundo foi feito, como uma bola é feita a
partir da madeira?» (201) —, Nicolau de Cusa não hesita em dar uma resposta negativa,
afirmando que, se ela fosse algo pré-existente a partir do qual deus criasse o mundo, deus
não seria omnipotente, visto que faria as coisas apenas a partir de algo previamente dado:
«pois a mente divina não seria omnipotente se não pudesse fazer algo senão a partir de
algo outro, algo que uma mente criada, que não é de todo omnipotente, faz todos os dias»
(202).

Cristo e Paulo em De Principio — respectivamente, «Quem entre vós, pensando, pode acrescentar a sua
altura um único côvado?» e «Nem aquele que planta, nem aquele que rega é alguma coisa, mas deus que
dá o cresimento» — «“Quis vestrum cogitans potest adicere ad staturam suam cubitum unum?”», «“Neque
qui plantat est aliquid aut qui rigat, sed qui incrementum dat, deus”» respectivamente, DP, 5 —, apontam
para a mesma ideia: a causa eficiente da actualização ou da determinação da possibilidade nunca é o
homem, mas apenas deus.
Ora, pensando que toda a determinação de uma possibilidade é um dar ser à uma outra coisa, então
torna-se claro porque apenas deus pode determinar a matéria. Todavia, uma pergunta que fica por responder
e para a qual penso que não podemos encontrar uma resposta concreta nas obras do cusano é qual é o papel
do homem nestas transformações.
(201) «Intelligisne per posse fieri, possibilitatem seu materiam, aliquid, de quo factus est mundus,
ut de ligno globus?» LG, I, 46.
(202) «Non enim foret mens divina omnipotens, si non nisi de aliquo aliquid facere posset; quod
mens creata nequaquam omnipotens quotidie facit», LG, I, 46.

91
Um outro argumento que poderia ser levantado conta esta questão diz respeito,
mais uma vez, à instauração de um dualismo das substâncias e, por conseguinte, à
finitização e relativização do Absoluto, pela admissão da matéria enquanto existente em
si e por si. Porém, Nicolau de Cusa não segue esta via.
No que diz respeito à segunda alternativa, nomeadamente, à identificação da
matéria com o próprio deus, Nicolau de Cusa oferece-nos, novamente, uma resposta
negativa.
A primeira razão apontada por Nicolau de Cusa pela qual a matéria não pode ser
o próprio Absoluto consiste no facto de este último ser tudo aquilo que pode ser, isto é,
uma possibilidade absoluta: «não pode ser dito que [a matéria] é a eternidade, porque a
eternidade é deus, que é tudo aquilo que pode ser» (203). Ora, sendo a matéria uma
possibilidade determinada é claro que não pode ser tudo aquilo que é possível ser, mas
apenas aquilo que ela pode ser de acordo com a sua determinação específica.
Um outro argumento contra a identificação de deus com a matéria tem por base o
poder da própria possibilidade que cada um representa. Assim, a possibilidade absoluta
representada por deus é uma possibilidade activa, é um possest, uma possibilidade ou um
poder(-ser) que é, uma possibilidade determinante capaz de se auto-determinar. Por outro
lado, a matéria representa apenas um poder passivo (204), uma possibilidade determinável,
no qual, a partir de fora, por intermédio do poder divino, é inscrita a sua determinação e
o seu poder(-ser) determinado.
Por fim, a última tese que se opõe à ideia da identificação de deus com a matéria
tem por base o facto de a matéria, enquanto poder passivo, não se poder criar a si própria:
«e porque o poder-ser-feito [isto é, a matéria] não se pode fazer a si mesmo em acto, o
poder-ser-feito não é, portanto, o princípio eterno» (205). A ideia subjacente visa apontar
que, uma vez que trazer ao acto implica algo em acto que actualiza algo passivo, é
impossível que a potência passiva, por si, se actualize, pois, assim, deixaria de ser passiva
e passaria a activa o que, como já vimos, apenas deus — enquanto possest —, pode ser.

(203) «Non potest dici quod sit aeternitas, quia aeternitas deus est, qui est omne id quod esse potest»,
LG, I, 46.
(204) Cf., VS, VII, 17. A noção de «potência passiva», segundo a indicação prestada por Hopkins
na nota 43, da página 1361 da sua tradução de De Venatione Sapientiae, parece ter sido emprestada por
Nicolau de Cusa de Tomas de Aquino, nomeadamente, da obra De aeternitate mundi.
(205) «Et quia posse fieri non potest se ipsum in actum producere […] non est igitur posse fieri
aeternum principium», VS, VII, 17.

92
Ora, se a matéria não existe desde sempre (206), significa que ela, ou foi criada, ou
foi feita por deus.
Começando por investigar se a matéria foi feita por deus deparamo-nos, de
imediato, com a resposta negativa de Nicolau de Cusa que diz o seguinte: «[a matéria]
também não é uma feitura [factura, algo feito, um produto] da eternidade. Pois se a
matéria fosse feita, poderia ter sido feita. Então, o poder-ser-feito, isto é, a matéria, seria
feita de matéria e, portanto, seria feita de si própria, algo que é impossível» (207).
Repare-se que a afirmação da matéria enquanto feita por deus enfrenta dois
problemas:
Por um lado — esclarecendo a afirmação cusana da impossibilidade de a matéria
criar-se a partir de si própria—, afirmar a sua existência em acto enquanto algo
determinado implicaria que ela teria sido feita a partir de si própria — dado que tudo
aquilo que é feito é feito a partir da matéria —, o que levaria à inaceitável conclusão de
que a matéria existia antes de existir.
Por outro lado, se a matéria — que, como já vimos, segundo Nicolau de Cusa,
representa uma possibilidade —, fosse uma coisa em acto, deixaria de ser possibilidade
para ser algo concreto em acto, o que contradiz a sua própria definição de possibilidade.
Ela representa um poder-ser, uma possibilidade de ser, e não o ser concretizado,
actualizado.
Estas teses acabam por colocar Nicolau de Cusa numa situação delicada quanto
ao estatuto ontológico da matéria. Se a matéria não é algo, visto que não foi feita por
deus, então ela parece não-ser ou ser o próprio nada. A resposta do cardeal cusano a esta
ofensiva funda-se na ideia de que de nada, nada pode ser feito, sendo por esta razão que
a matéria não pode ser nada (208), como se pode comprovar pelo seguinte trecho: «negas
que o poder-ser-feito, ainda que não seja algo, é o poder-ser-feito-algo. Portanto, não é
totalmente nada, uma vez que a partir de nada, nada pode ser feito» (209). A insatisfatória

(206) É muito interessante observar o apontamento de Nicolau de Cusa quando a duração da


matéria. Segundo este, apesar da matéria não ser eterna porque teve um princípio é, não obstante, perpétua
porque não tem um fim: «portanto, [apesar de] o poder-ser-feito ter sido iniciado no tempo, permanece e é
perpétuo» — «Posse fieri igitur initiatum in aevum manet et perpetuum est», VS, III, 7.
(207) «Nec aeternitatis factura. Nam si facta esset, fieri potuisset. Tunc fieri posse, scilicet materia,
de materia facta esset et sic de seipsa, quod est impossibile», LG, I, 46.
(208) Pensando a questão ainda mais profundo e tendo em conta que, tal como vimos na primeira
parte deste escrito, o nada representa a própria possibilidade absoluta, podemos facilmente perceber as
outras razões pelas quais a matéria não pode ser o próprio nada, razões estas que, aliás, já foram acima
expostas através da argumentação que visa negar a identificação da matéria com deus.
(209) «Non negas posse fieri, licet non sit aliquid, esse posse fieri aliquid. Non est igitur penitus
nihil, cum de nihilo nihil fiat», LG, I, 47.

93
resposta do cusano funda-se na já reconhecida dificuldade em definir conceptualmente a
matéria justamente por não ser algo em acto, por não ser uma coisa mas uma
possibilidade ou um poder de ser-coisa.
Posto isto, torna-se evidente que nos resta uma única alternativa: a matéria foi
criada por deus. Tendo sido criada, à semelhança das restantes coisas criadas, foi criada
a partir de nada. Retomando a passagem anteriormente citada onde Nicolau de Cusa
cuidadosamente distingue entre criar e fazer: «portanto, dizemos que o poder-ser-feito
foi criado a partir do nada, uma vez que foi produzido pelo poder-fazer, mas não foi feito»
(210). Ou também, dessa mesma passagem da De venatione sapientia, um trecho que dá
conta da ordenação entre deus, o nada e a matéria e da respectiva criação da matéria a
partir de nada: «Mas, antes do poder-ser-feito não há nada a não ser o poder-fazer [posse-
facere, isto é, deus]. Portanto, o poder-ser-feito é dito ser feito a partir de nada. Portanto,
dizemos que o poder-fazer antecede o nada, mas não [que] o poder-ser-feito [antecede o
nada]» (211).
Trazendo à memória o facto de a criação a partir de nada ser, na verdade, criação
a partir do próprio deus, podemos concluir que a criação da matéria a partir de nada não
é senão a partir do próprio deus (212).

À necessidade da matéria, enquanto suporte ou sujeito dos diferentes modos de


ser, junta-se a necessidade dos próprios modos de ser ou das formas de ser que, enquanto
moldes, irão (pre)determinar a matéria a ser isto ou aquilo.
Assim como a matéria, enquanto possibilidade determinada, não se identifica com
a possibilidade absoluta, mas representa uma queda desta última, o mesmo acontece com
as formas, que não se identificam com a forma.

(210) «De nihilo igitur posse fieri, cum sit per posse facere productum et non factum, creatum
dicimus», VS, XXXIX, 116. Veja-se igualmente, ainda de VS, III, 7 e 8, mas também, LG, I, 47.
(211) «sed ante posse fieri nihil est nisi posse facere. De nihilo igitur dicitur posse fieri factum. Sic
dicimus posse facere praecedere nihil, sed non posse fieri»,VS, XXXIX, 116.
(212) Não posso deixar de assinalar a tese de Hopkins apresentada na nota 22 da página 1359 da
sua tradução de De Venatione Sapientiae, onde, erroneamente, escreve o seguinte: «A possibilidade-de-ser-
feito (posse-fieri) é ela mesma algo criado e finito. Mas não é feita por Deus a partir de si mesmo. Todas
as coisas existentes em acto foram criadas por Deus a partir do posse-fieri; mas posse-fieri foi criado por
deus ex nihilo» —, «The possibility-of-being-made (posse-fieri) is itself something created and finite. But
it is not made by God from itself. All actualy existing things were created by God from posse-fieri; but
posse-fieri was created by God ex nihilo».
Anteriormente, aquando da criação ex nihilo verificamos como Nicolau de Cusa taxativamente
afirma que deus não cria a partir de nenhum outro, mas apenas a partir de si mesmo o que, textualmente,
refuta esta posição de Hopkins, que parece apontar para o nada enquanto algo diferente do próprio deus.

94
Segundo Nicolau de Cusa, há apenas uma única forma infinita que é deus filho ou
verbo que, por meio de uma descida, se manifesta numa pluralidade de formas
singularmente contraídas. Como o cardeal cusano nos dá conta em De dato patris
luminum: «deus é a forma universal de ser de todas as formas, que as formas específicas
recebem por meio de uma descida não universalmente e absolutamente, como é e como
se dá, mas [com] uma contracção específica» (213). Por outras palavras, a multiplicidade
das formas determinadas é a única forma infinita manifestada daquele modo.
Ora, esta tese constitui o argumento do Cusano contra aqueles que seguem a via
platónica e defendem uma pluralidade de formas autónomas que servem de mediador
entre o absoluto e o contraído, como é o caso de:

(213) «deus est universalis essendi forma omnium formarum, quam formae specificae in descensu
non universaliter et absolute, uti ipsa est et se dat, recipiunt sed contractione specifica», DPL, II, 102. Ou
como nos é dito em De docta ignorantia: «Não há senão uma só infinita forma das formas, da qual todas
as formas são imagens» — «non est nisi una infinita forma formarum, cuius omnes formae sunt imagines»
DI, II, IX, 149.
Quanto à tese que sustenta o facto de deus ser a forma das formas, julgo relevante o ponto que
Dermot Moran levanta no seu escrito Pantheism from John Scottus Eriugena to Nicholas of Cusa quando,
discutindo a condenação de Eriúgena e Almericus de Bène — por terem sustentado que deus é a forma de
todas as coisas —, e de David de Dinant — por ter defendido que deus é a matéria de todas as coisas —
escreve que «apesar de se distanciar de Almericus na Apologia doctae ignorantiae, Cusanus frequentemente
chama deus a forma omnium ou forma formarum […]» MORAN, Dermot, Pantheism from John Scottus
Eriugena to Nicholas of Cusa, nota 5, pp.133-134, apontando igualmente para a defesa e a recomendação
de David de Dinant, por parte de Nicolau de Cusa, IDEM, p.134.
Devemos, neste passo, questionar o porquê desta posição de Nicolau de Cusa. Sem esta explicação,
ficamos sem uma resposta para três questões fundamentais que esta posição de Nicolau de Cusa levanta:
Qual é o motivo pelo qual Nicolau de Cusa se opõe à posição de Almericus, onde reside a crucial diferença
entre as duas teses que motive tal afastamento se, à primeira vista, parecem sustentar a mesma ideia? Por
que razão defende Nicolau de Cusa a posição de David de Dinant, bem sabendo que foi rotulada como
herética e o seu autor censurado e condenado?
Indo directamente aos textos encontramos, de facto, na obra Apologia doctae ignorantiae, a
censura de Almericus de Bène. Segundo o Cusano, este foi «correctamente condenado» uma vez que «não
entende correctamente que deus é todas as coisas apenas como complicação» estando na base da sua falha
a ausência da douta ignorância. Cf., Ap, 29.
Com base nesta curta explicação dada pelo cardeal cusano, podemos perceber que, na sua leitura,
Almericus de Bène entendia a identidade entre deus e a criatura apenas enquanto explicatio. Isto é, deus
seria apenas a forma de cada ente determinado, se quisermos, deus seria apenas aquilo que
determinadamente cada ente é. Como vimos, para Nicolau de Cusa, tais afirmações não passam de posições
heréticas uma vez que aquilo que é tudo o que pode ser é identificado com aquilo que existe. Assim, apesar
de utilizarem a mesma fórmula, Nicolau de Cusa demarca-se da posição de Americus de Bène pela
afirmação de deus não apenas enquanto aquilo que existe, mas sim, enquanto aquilo que é tudo aquilo que
pode ser, não o identificando com a imediatez existente, mas com o ser absoluto que tudo é e pode ser. Por
outras palavras, Nicolau de Cusa opõe-se à posição de Americus pois esta acaba por tornar finito o próprio
Absoluto, daí também a referência do Cusano à ausência da douta ignorância na investigação de Americus;
é a douta ignorância que nos leva a compreender que deus é infinito e, por conseguinte, não se pode
identificar absolutamente com a criatura, com o finito.
Por outro lado, como poderia Nicolau de Cusa não defender a posição de David de Dinant se ele
próprio chega a afirmar que deus é a causa material de tudo aquilo que é? E isto não porque deus é material,
mas porque é a partir de deus, enquanto nada, enquanto absoluta possibilidade, que tudo vem ao ser, pelo
seu próprio acto. Poderíamos ir mais longe ainda e afirmar que a própria matéria sensível não pode ser outra
coisa senão deus, pois como poderia ela ser diferente de deus, diferente daquele que é tudo aquilo que pode
ser, sem que com isto se instaurasse um dualismo ontológico, sem que com isto se aniquilasse o absoluto?

95
«muitos dos cristãos [que] concordam com esta via platónica. Em particular devido ao
facto de que uma é a razão da pedra, outra a do homem, e em deus não há lugar para a
distinção e para o diferente, julgaram necessário estas razões distintas, segundo as quais
são distintas as coisas, depois de deus e antes das coisas, uma vez que a razão precede a
coisa […]» (214).

Quanto à existência de uma pluralidade de formas, consideradas enquanto


existentes por si, Nicolau de Cusa afirma a impossibilidade da co-existência de uma
pluralidade de princípios, de máximos, de várias verdades ou razões das coisas. Esta
pluralidade deve ser reconduzida a um único princípio que os complique a todos:

«Portanto, não é possível que haja muitos exemplares distinctos. Pois qualquer um seria
o máximo e o mais verdadeiro relativamente àquilo de que seria exemplar. Mas não é
possível que haja muitos máximos e muitas coisas sumamente verdadeiras. Pois só um
exemplar infinito é suficiente e necessário, no qual todas as coisas são como que
ordenadas numa ordem e ele complica de modo sumamente adequado todas as razões das
coisas e por muito distintas que sejam, de tal maneira que é a própria razão mais
verdadeira» (215).

Por outro lado, quanto àqueles que procuram defender esta posição com base na
diversidade e pluralidade das formas que encontramos no mundo, Nicolau de Cusa refere
que, na verdade, estes atendem apenas à manifestação sensível da única forma possível
que é deus, posição que é defendida pelo cardeal cusano desde De docta ignorantia,
quando nos diz que: «as formas das coisas não são distinctas a não ser enquanto são de
modo contraído. Enquanto são de modo absoluto são uma só [forma] indistinta que é o
verbo na divindade» (216), até ao seu último escrito De Apice Theoriae no qual declara
que: «aqueles que afirmam uma pluralidade de formas específicas olham nos modos-de-
ser específicos da manifestação do Poder» (217).
No tocante à mediação entre absoluto e contraído defendida pelos platónicos e por
«muitos de entre os cristãos», se pensarmos no facto de cada forma contraída particular
ser o próprio deus enquanto forma absoluta e única manifestada daquele modo

(214) «Multi Christianorum illi viae Platonica acquieverunt. Ex eo praesertim cum alia sit ratio
lapidis, alia hominis, et in deo non cada distinctio et alietas, necessarium putabant has rationes distinctas
secundum quas res distinctae sunt post deum et ante res esse, cum ratio rem precedat» DI, II, IX, 146.
(215) «non est igitur possibile plura distincta exemplaria esse. Quodlibet enim ad sua exemplata
esset maximum atque verissimum. Sed hoc non est possibile, ut plura maxima et verissima sint. Unum enim
infinitum exemplar tantum est sufficiens et necessarium, in quo omnia sunt ut ordinata in ordine, omnes
quantumcumque distinctas rerum rationes adaequatissime complicans, ita quo ipsa infinita ratio est
verissima ratio», DI, II, IX, 148.
(216) «formae rerum non sunt distinctae, nisi ut sunt contracte. Ut sunt absolute, sunt una
indistincta, quae est verbum in divinis», DI, II, IX, 148.
(217) «qui plures dicunt specificas formas, ad specificos essendi modos apparitionis ipsius posse
attendunt», AP, 15. Ou, como também escreve em De docta ignorantia: «por isso, quando se diz que deus
criou por uma razão o homem, por outra a pedra, é verdade tendo em conta as coisas, não o criador […]»,
II, IX, 149.

96
determinado como, por exemplo, nos é dito pelo Cusano em De Aequalitate quando
escreve que «a forma das coisas é tanto [a forma] universal de todas as coisas que é
[também] a forma particular de todas as coisas» (218), entendemos que a contracção do
absoluto no finito não é mediada por nenhuma instância terceira, mas sim, que é uma
auto-determinação do próprio Absoluto. Representando uma auto-determinação, uma
queda, uma transformação do próprio Absoluto, por si mesmo, enquanto finito contraído,
Nicolau de Cusa conclui que «deste modo, não há meio termo entre o absoluto e o
contraído, como imaginaram aqueles que consideraram a alma do mundo uma mente
depois de deus e antes da contracção do mundo» (219).
No que diz respeito ao papel desempenhado pela forma, ficou já referido que ela
determina a matéria, sendo esta determinação, segundo Nicolau de Cusa, uma doação de
ser e, nomeadamente, de ser determinado, bem como, por esta razão, de um nome
específico: «toda a forma que vem a matéria dá-lhe tanto ser como um nome» (220).
Todavia, esta doação de ser às coisas não deve ser entendida como se as coisas já
existissem antes de receberem da forma o seu ser determinado. Isto implicaria que as
coisas existissem antes de existir, o que é impossível. Nicolau de Cusa tem muito cuidado
com esta possível leitura e chama a atenção para a mesma, afirmando que:

«os filósofos disseram que é a forma que dá ser à uma coisa. Mas esta afirmação carece
de precisão; pois, não há [primeiramente] uma coisa à qual [depois] uma forma dá ser,
uma vez que nada é a não ser pela forma. Portanto, a coisa não é ao tirar o ser a partir da
forma; pois, [se assim fosse], existia antes de existir» (221)

acrescentando e esclarecendo de imediato que aquilo que está em causa é a


afirmação da forma enquanto o próprio ser da coisa. Por outras palavras, a forma não dá
ser, mas é o ser das coisas: «mas a forma dá ser à coisa, isto é: em cada coisa que existe
a forma é o próprio ser, para que toda a forma que dá ser seja o ser que é dado a coisa»
(222).

(218) «ipsam rerum rationem esse sic universalem quod est et particularis omnium», Dae, 23.
(219) nec cadit eo modo medium inter absolutum et contractum, ut illi imaginati sunt, qui animam
mundi mentem putarunt post deum et ante contractionem mundi», DI, II, IX, 150.
(220)«Omnis enim forma adveniens materiae dat ei esse et nomen», DPo, 64.
(221) «Aiunt philosophi formam esse, quae dat esse rei. Hoc dictum praecisione caret. Nam non est
res, cui forma det esse, cum nihil sit nisi per formam. Non est igitur res a forma esse capiens. Esset enim,
antequam esset», DPL, II, 98.
(222) «Sed forma dat esse rei, hoc est: forma est ipsum esse in omni re quae est, ut esse datum rei
sit forma ipsa dans esse», DPL, II, 98.

97
Referimos anteriormente que a matéria, a forma e o nexo entre ambas não podem
ser senão de forma contraída nas coisas sensíveis, representando elas uma queda da
possibilidade, forma e nexo absolutos, isto é, da trindade.
Para além desta aspecto, é importante sublinhar, neste passo, que enquanto
contraídas, ao contrário daquilo que é observado no caso da trindade absoluta na qual
cada «elemento» está ele próprio em acto, ao mesmo tempo que forma, em acto, uma só
unidade ou, melhor ainda, uma unidade trina, a matéria, a forma e o nexo não podem ser
em acto a não ser de modo conjunto numa unidade contraída (223). Deste modo, a tri-
unidade ou a uni-trindade continua presente nas coisas sensíveis apenas com a mudança
assinalada. Como escreve Nicolau de Cusa: «Todavia, vejo que este Princípio brilha em
todas as coisas, uma vez que nada do que é originado não [é senão] unitrino» (224).
Isto é, aquilo que verdadeiramente há no universo e em cada ente singular é ou,
de um modo mais preciso, aquilo que o universo no seu todo e cada ente singular na sua
individualidade é, não é senão matéria e forma, como nos diz Nicolau de Cusa ao escrever
que toda a contracção depende da matéria, forma e do nexo entre as ambas: «a contracção
não pode ser sem o contraível o contraente e o nexo que se perfaz no acto comum a
ambos» (225). Uma mútua determinação — que não deixa nem a matéria, nem a forma,
serem absolutos em acto (226) —, entre matéria e forma que permite a Nicolau de Cusa
afirmar que o mundo é «necessariamente contraído pela contingência» (227). Qual é a
razão desta afirmação?
Ora, segundo o cardeal alemão, a determinação da matéria pela forma é
necessária, dado que a forma, o acto, provém directamente de deus que é o acto ou a
forma absoluta.

(223) «Na divindade […] a própria unidade é trindade. […] Mas no universo não pode ser assim.
Por causa disso aquelas três correlações, que na divindade se chamam pessoas, não têm ser em acto a não
ser simultaneamente na unidade» — «In divinis unitas […] ipsa unitas est trinitas. […] In universo ver non
potest ita esse. Propter hoc tres illae correlationes quae in divinis personae vocantur, non habent esse actu
nisi in unitate simult», DI, II, VII, 127.
(224) «Hoc autem principium in omnibus relucere video, cum nullum sit principiatum non
unitrinum.», DPo, 48.
(225) «Non potest enim contractio esse sine contrahibili, contraente et nexu, qui per communem
actum utriusque perficitur», DI, II, VII, 128. Numa formulação menos abstracta e que dá conta da trindade
nas coisas finitas: «Filósofo: […] como estes, que são em acto, existem trinitariamente./Idiota: Será-te fácil
ver se reparas que todas as coisas, enquanto existem em acto, existem em termos de matéria, forma e a sua
união» — «Philosophus: […] quomodo ea, quae actu sunt, triniter sunt./Idiota: Facile erit tibi videre, si
attendis omnia, ut actu sunt, in materia, forma et conexione esse», DM, XI, 137 —, ou ainda, «na
substâncias perceptíveis são habitualmente chamados forma, matéria e composto» — « in sensibili
substantia communiter nominantur forma, materia et compositum», DB, 39.
(226) Cf., DI, II, VIII, 137.
(227) «necessario contractus ex contingenti», DI, II, VIII, 139.

98
Por outro lado, representando a matéria uma contingência na medida em que
deriva da necessidade absoluta que é deus, a determinação da forma pela matéria é
contingente.
Esta diferenciação é importante na medida em que permitirá a Nicolau de Cusa
afirmar que o mundo é racional. Lembrando a passagem já citada de De docta ignorantia
(DI, II, VIII, 138), repare-se que, segundo Nicolau de Cusa, o facto de a possibilidade
estar necessariamente (pré)determinada, o facto de a matéria comportar
(pré)determinadamente as formas que marcam os seus diferentes modos de ser, é a razão
pela qual o mundo é racional. Porquê? Porque, desde modo, aquilo que pode ser, na sua
singularidade e na sua relação com os outros, está harmónica e ordenadamente (pré-
)determinado. Em outros termos, aquilo que pode ser pode ser segundo uma ratio pré-
determinada.
Devido à necessária (pré)determinação da matéria pela forma, é eliminada
qualquer possibilidade de uma explicação fortuita do mundo (228) ou de uma desordem
entre as coisas feitas.

Ultrapassando a analítica apresentação deste tema e procurando oferecer uma


visão global e integradora de todos os elementos analisados, não posso deixar de apontar
que aquilo perante o qual estas teses de Nicolau de Cusa nos colocam é uma descrição
daquilo que poderíamos denominar de materialização da divindade, do Absoluto, pela
descida dos seus «constituintes», pela sua necessária conexão e mútua determinação de
modo a serem em acto. O poder-ser absoluto determina-se para se poder manifestar
enquanto algo sensível. Determina as suas possibilidades bem como o seu ser. Já não
pode ser tudo aquilo que é possível ser. Já não é tudo aquilo que é. É apenas aquilo que
pode ser em cada momento determinado, limitado por toda uma rede de
condicionalidades, bem como pela sua potencialidade agora limitada.
Em cada momento, o existente em acto é aquilo que ele pode ser de acordo com
as suas potencialidades próprias, não diferindo a sua potência ou aquilo que ele pode ser,
do seu acto, daquilo que é. Ainda que nas coisas sensíveis a potência não seja o acto, nem
vice-versa, tal como acontece na unidade absoluta, aquilo que existe em acto não difere
daquilo que foi potencial, como explica Nicolau de Cusa:

(228) Cf. DI, II, VIII, 138, onde Nicolau de Cusa opõe-se a posição de Epicuro que sustentava uma
explicação ao acaso do mundo.

99
«mas, em todas as coisas que têm sido feitas, o poder-ser-feito é a coisa que foi feita, pois
nada é feito em acto, a não ser aquilo que pode ser feito, mas num modo de ser diferente:
de um modo mais imperfeito em potência e de um modo mais perfeito em acto. Portanto,
o poder-ser-feito e o poder-feito não são diferentes em essência» (229)

Assim, trata-se de uma passagem de um modo de ser «menos perfeito» para um


modo de ser «mais perfeito» tal como acontece com «a rosa, que está em potência na
roseira no inverno e em acto no verão, passou do modo de ser da possibilidade ao modo
de ser determinado em acto» (230), mas também, transição essa de que é igualmente alvo
o próprio Universo. Nas palavras do Cusano: «mas, o mundo passou do modo que é
chamado poder-ser-feito ou capacidade-de-ser-feito ou matéria para o modo chamado
existente em acto» (231).

(229) «Sed posse fieri est in omnibus quae facta sunt id quod factum est, nam nihil factum est actu
nisi id quod fieri potuit; sed alio essendi modo: imperfectiori modo in potentia et perfectiori in actu. Non
igitur posse fieri et posse factum in essentia sunt differentia»VS, XXXIX, 116. Veja-se também o seguinte
exemplo que aponta para a mesma ideia: «A rosa em potência e a rosa em acto e a rosa em potência que
está em acto são a mesma [rosa] e não outras e diversas, ainda que potência, acto e a sua união não se
verificam mutuamente, como [se verificam] da rosa» — «Rosa in potentia et rosa in actu et rosa in potentia
et actu est eadem et non alia et diversa, licet posse et actus et nexus non verificentur de se invicem sicut de
rosa», DPo, 47.
Saindo do campo de pensamento de Nicolau de Cusa, há que dizer que o potencial e o alcance
desta sua posição é, a meu ver, incomensurável. Numa perspectiva que não é a do Cusano, poderíamos
retirar desta sua posição o seguinte: toda a possibilidade real, pelo manejo dos instrumentos certos, pode
tornar-se realidade objectiva. É escusado referir que o campo de aplicação deste princípio é extremamente
vasto, desde os problemas do dia-a-dia até aos problemas mais importantes e preocupantes da sociedade e
da política. A dificuldade, todavia, residirá na identificação da ou das possibilidades reais pelas quais vale
a pena lutar e dos meios que podem levar esta luta a bom porto.
(230) «rosa, quae est in rosario in potentia in hieme et in actu in aestate, transivit de uno modo
essendi possibilitatis ad determinatum actu», DI, II, VII, 131.
(231) «Sed quod mundus de modo, qui possibilitas seu posse fieri aut materia dicitur, ad modum,
qui actu esse dicitur, transivit», LG, I, 46.

100
4. A unidade dialética do todo.

Chegamos, por fim, à última estação desta nossa viagem.


Se ao longo do percurso até aqui realizado foi possível verificar que o Absoluto
coincide com o finito, mas também, porquê esta coincidência ou identidade é, aos olhos
de Nicolau de Cusa, necessária, o objectivo desta última paragem será precisamente
explicar o modo como esta identidade entre Absoluto e finito, deus e criatura, é possível.
Esta explicação não passará apenas pela mera exposição de alguns trechos que
dão conta desta tese. De modo a atingir a sua meta, ela terá de ter em conta e conciliar as
afirmações do cardeal cusano que, ao contrário daquilo que até aqui foi verificado,
sustentam:
a indivisibilidade ou a imutabilidade do Absoluto como, por exemplo, deixa bem
patente no De venatione sapientiae: «Nem pode ser corrupto, nem alterado ou
multiplicado uma vez que ele antecede o poder-ser-feito e é tudo aquilo que pode ser»
(232);
a sua incontraibilidade, como afirma em De docta ignorantia: «No primeiro livro
mostrou-se como o uno, máximo de modo absoluto, incomunicável, não imersível,
incontraível a ser isto ou aquilo, em si persiste eternamente, igualmente e de modo imóvel,
idêntico a si próprio (233);
ou até, em situações mais radicais, a sua não identidade com a criatura ou com o
finito como, à título ilustrativo, refere em De beryllo: «O princípio não é nenhuma das
coisas originadas [a partir dele]» (234).
A tarefa inicial torna-se ainda mais complexa. A resposta ao como da identidade
entre Absoluto e finito terá de passar pela resposta a um leque muito mais amplo de
questões:
Como compreender a manifestação enquanto finito do infinito?
Como explicar a multiplicação da unidade que se pretende não multiplicável?

(232) «Neque potest corrumpi nec alterari nec multiplicari, cum praecedat posse fieri et sit omne
quod esse potest», VS, XXI, 61. Veja-se também, por exemplo, DC, I, XI, 54: «Uma vez que, para a unidade
ser unidade é para ela existir precisamente e tal como é, vês adequadamente e muito claro que a unidade é
a própria identidade incomunicável, inexplicável [inexplicabilem], e inatingível, tal como é em si» —
«Quoniam unitatem unitatem esse est ipsam praecise atque, uti est, esse, satis tibi atque clarissime constat
unitatem esse ipsam identitatem incommunicabilem, inexplicabilem atque, uti est, inattingibilem».
(233) «Primo libelo ostenditur unum absolute maximum incommunicabile, immersibile et
incontrahibile ad hoc vel illud in se aeternaliter et immobiliter idem ipsum persistere», DI, III, I, 182.
(234) «Principium enim nihil est omnium principiatorum», DB, 46. A mesma ideia pode ser
encontrada, por exemplo, em DI, II, II, 102: «Quem pode, por fim, entender que Deus é a forma de ser e
que, no entanto, não se mistura com a criatura?» — «Quis denique intelligere potest deum esse essendi
formam nec tamen immisceri creaturae?».

101
Como entender a contracção daquele que se diz absoluto?
Como compreender, por um lado, a sua identidade com a criatura e, por outro
lado, a sua não identificação com a mesma? Em que sentido deus é a criatura e em que
sentido não o é?

Ora, de um modo muito abstracto, a todas estas perguntas a resposta é a mesma:


dialecticamente. É dialecticamente que o Absoluto se manifesta enquanto finito. É
dialecticamente que ele se multiplica e contrai no finito. É dialecticamente que ele se
identifica com o finito.
Posto isto, tornou-se claro para o leitor que se encontra perante um capítulo que
facilmente pode ser considerado, de acordo com as leituras ortodoxas de Nicolau de Cusa,
polémico, dado que alberga duas teses controversas: em primeiro lugar, a defesa da
identidade entre deus e a criatura e, consequentemente, a afirmação de um panteísmo no
pensamento de Nicolau de Cusa; em segundo lugar, a sustentação desta tese por algo que,
à primeira vista, é alheio ao pensamento do cardeal cusano: a dialéctica.
Quanto ao último ponto, uma série interminável de oposições é expectável. Por
exemplo: ou que se está a introduzir de fora um tema que não existe em Nicolau de Cusa,
ou que se está a hegelianizar (235) o Cusano (crítica esta com que, de facto, ao longo do
desenvolvimento deste escrito, me deparei frequentemente) ao usar a dialéctica e as suas
categorias fundamentais enquanto chave interpretativa dos temas por este abordados e
dos (aparentes) problemas nos quais o mesmo se enreda.
De modo a antecipar tais possíveis contra-posições, mas também e, na verdade,
sobretudo, para clarificar certos aspectos que em torno da problemática da dialéctica e da
sua presença no pensamento do cardeal cusano se levantam, considero imperativo
proceder a alguns esclarecimentos preliminares.
Como eixo norteador destes esclarecimentos selecionei a seguinte passagem da
obra Totalidade e Contradição, já aqui referida anteriormente, onde Barata-Moura
descreve as «duas ordens de horizontes de tratamento e de investigação para esta questão
da dialéctica» (236): «O primeiro horizonte diz respeito à vigência e ao grau de

(235) Procurando cortar desde a raiz esta possível contra-posição há que deixar bem claro que Hegel
não inventou a dialéctica. Ela não é um produto do génio do autor alemão. Hegel, isso sim, determinou
conceptualmente, aprofundou e sistematizou as categorias fundamentais da dialéctica. Ora, aplicar estas
categorias a um pensamento que é ele próprio dialéctico de modo a torná-lo mais claro e a explicar aquilo
que de mais profundo reside nele, não pode ser de todo, a meu ver, considerado como uma hegelianização
do Cusano.
(236) BARATA-MOURA, José, Totalidade e Contradição, I, 5, p.30.

102
aprofundamento de uma dada conceptualização filosófica do tópico em apreço; o segundo
concerne o emprego da própria palavra “dialéctica”, ou de um seu equivalente semântico»
(237).
O estudo da dialéctica, segundo esta descrição geral oferecida por Barata-Moura,
num primeiro momento, pode passar por: por um lado, um plano de estudo do
desenvolvimento e do aprofundamento temático; por outro lado, por um plano em que se
verifica a presença do conceito «dialéctica».
A partir desta primeira ramificação, num segundo momento, percebemos que toda
uma complexa trama de interligações entre estes dois planos pode ser estabelecida (238).
E isto uma vez que, ao longo da história da filosofia, é possível encontrar exemplos onde
a dialéctica (seja qual for o sentido em que esteja a ser usado o conceito) se encontra
tematizada, fazendo-se uso do próprio vocábulo para a definir (239). Por outro lado,
encontramos igualmente exemplos do uso do vocábulo sem, todavia, ter por detrás um
aprofundamento temático consequente. Ou ainda, deparamo-nos com instâncias em que
se constata a clara ausência do conceito, não obstante a óbvia conceptualização e o
evidente aprofundamento filosófico da problemática em causa (240).
Daí resulta claro que, como escreve Barata-Moura, «não podemos reduzir o
tratamento do tema da dialéctica — muito em particular, quando nos colocamos de um
ponto de vista histórico — aos casos em que o uso comprovado do vocábulo ocorre»241
(ideia essa que, como veremos, será de suma relevância para o nosso estudo). Munidos
de uma posição crítica indispensável, afigura-se-nos incontornável uma interpretação que
vá além do imediato.
Com estas orientações metodológicas de investigação por base, nascem,
incontornavelmente, duas fundamentais interrogações: a primeira visa o sentido de
dialéctica empregue por nós; a segunda, o modo em que a dialéctica, enquanto conceito
ou enquanto temática, marca presença no pensamento de Nicolau de Cusa.

(237) BARATA-MOURA, José, op.cit., pp.31-32.


(238) Como, aliás, Barata-Moura dá imediatamente conta ao escrever que: «o entrecruzamento
constatável, e constatado, destas diferentes possibilidades significativas é deveras assaz complexo,
sobremaneira, no leque de articulações a que dá azo», Totalidade e Contradição, I, 5, 31. Para o
aprofundamento que Barata-Moura confere a este tópico veja-se as páginas 31-33 da mesma obra.
(239) Quanto aos exemplos concretos deste caso particular poderíamos facilmente apontar, por
exemplo, para Platão, Kant e Marx, onde a tematização da dialéctica, bem como o uso explícito do conceito
são notórios, não obstante a diversidade dos sentidos que o conceito possui e a diferença quanto ao alvo
que a tematização, em cada um destes autores, tem em mira.
(240) Heraclito, por exemplo, representa um exemplo perfeito deste caso.
(241) BARATA-MOURA, José, Totaldiade e Contradição, I, 5, p.31.

103
Procurando resumir em algumas linhas o conceito de dialéctica por nós empregue,
diria que este diz respeito:
por um lado, à dialéctica da unidade, isto é, ao real movimento de transformação
de aquilo que é, propulsionado pela negação;
por outro lado, à unidade dialéctica do Todo que, precisamente por ser dialéctica,
representa uma identidade — e, neste sentido, uma totalidade —, (deveniente) do mesmo
e do outro, contraposta às concepções unilaterais e, por conseguinte, absolutizantes, nas
quais a unidade ou identidade são pensadas em termos de mesmidade.

Quanto ao modo como a dialéctica marca presença no pensamento de Nicolau de


Cusa — enquanto conceito ou enquanto temática —, e quanto ao sentido desta no seu
pensamento, começaria por dizer que, no que diz respeito à presença do conceito, existem
três ocorrências deste nas obras de Nicolau de Cusa.
Em De coniecturis deparamo-nos com duas ocorrências. A primeira ocorrência do
vocábulo adjectivado — «dialéctico» —, surge para descrever o curso lógico-racional das
ciências (242). Todavia, ainda que o tema encontre ao longo das obras de Nicolau de Cusa
um desenvolvimento profundo — nomeadamente no que diz respeito à colocação das
ciências no âmbito da razão regido pelo princípio lógico da não-contradição —, o uso em
si do conceito para descrever o desenvolvimento ou procedimento científico é singular,
não se verificando em mais alguma instância.
Ainda em De Coniecturis, ao descrever as múltiplas diferenças entre os povos do
mundo, o conceito é novamente usano e remete para a dialéctica, enquanto arte dialógica
(243).
Por fim, a terceira e última ocorrência pode ser encontrada em Apologia doctae
ignorantiae e insere-se numa ladainha de Ambrósio citada por Nicolau de Cusa: «“dos
dialécticos, livrai-nos Senhor”» (244), no seguimento da qual Nicolau de Cusa acrescenta
que: «uma lógica faladora [garrula] prejudica mais do que beneficia uma teologia muito
sagrada» (245).
De certo modo, por este esclarecimento final prestado por Nicolau de Cusa,
estabelece-se uma ligação com o sentido lógico-racional da primeira ocorrência, levando

(242) Cf., DC, II, 2, 84.


(243) Cf., DC, II, 15, 150.
(244) «“A dialecticis libera nos, Domine”», Ap, 21.
(245) «garrula logica sacratissimae theologiae potius obest quam conferat», idem.

104
à conclusão de que os dialécticos usam a lógica e, nomeadamente, o princípio da não-
contradição, como ferramenta para pensar e resolver as questões teológicas. Tendo em
conta o princípio da coincidentia oppositorum que rege a filosofia e as posições teológicas
do Cusano, a «encomenda ao Senhor» faz, assim, todo o sentido.
Não obstante a presença do conceito na obra de Nicolau de Cusa, repare-se que
este não aponta para o sentido anteriormente delineado por nós assim como não apresenta
uma aplicação e aprofundamento sistemático, sendo o seu emprego esporádico e o seu
sentido volátil. Por outros termos, podemos dizer que o conceito está presente em Nicolau
de Cusa, apesar de não possuir desenvolvimento filosófico algum.
Todavia, isto não quer dizer que a própria problemática da dialéctica, nos termos
anteriormente delineados, ainda que não designada como tal — e, de facto, carecendo de
qualquer designação particular —, não esteja presente no pensamento de Nicolau de Cusa.
Na verdade, é possível encontrar nos escritos de Nicolau de Cusa um sério e
profundo intento de pensar (dialecticamente) a dialéctica.
Com o objectivo de descortinar e ex-pôr o pensamento cusano sobre a unidade
dialéctica do todo, recuperemos as duas vertentes anteriormente assinaladas (separações
lógicas indispensáveis para uma análise concreta e profunda do movimento uno que
constituem no original plano ontológico à qual pertencem): a dialéctica da unidade e a
unidade dialéctica que passarão a constituir o trajecto deste nosso último percurso.
Assim, o primeiro momento deste último capítulo dirá respeito ao desdobramento
e à análise do movimento explicativo do Absoluto, de modo a surpreender e compreender
a dinâmica dialéctica que o envolve.
Num segundo momento, fazendo uso das várias vias explicativas, mais ou menos
directas, propostas por Nicolau de Cusa, será aprofundada a relação dialéctica de
identidade entre o absoluto e o finito, entre deus e criatura o que, em outras palavras, se
poderia traduzir como o descortinar da unidade dialéctica do todo.

Começando pelo movimento manifestativo do Absoluto, foi possível observar no


capítulo anterior dedicado a este tema que a sua manifestação, explicação, descida,
emanação, não representam senão uma determinação de si mesmo por meio da qual se
põe a si próprio como finito. Por outras palavras, o movimento explicativo do Absoluto é
um movimento de auto-determinação e auto-posição de si mesmo enquanto outro.

105
Sendo o objectivo desta primeira parte deste capítulo perceber justamente como
se dá esta manifestação e por que motivo ela é dialéctica, importa questionar pelo motor,
pela condição de possibilidade desta auto-determinação e auto-posição.
Ora, em todo o movimento dialéctico, a força interna e própria que possibilita a
determinação e a posição é a negação (246). Assim, de um modo geral, a transformação e
o desenvolvimento dialéctico dão-se segundo uma helicoidal série de negações e
posições. Uma dada posição — isto é, de um determinado estado de coisas, estádio de
desenvolvimento, uma determinada configuração —, é negada, dando origem a uma nova
e diferente posição que, por sua vez, será novamente negada (negação da negação) e
substituída por uma nova (247).
Chamo a atenção para o facto de, contrariamente àquilo que poderíamos designar
por negação metafísica, a negação dialéctica não representa uma completa destruição,
uma absoluta aniquilação da posição em causa. A negação dialéctica é um elo mediador
entre o antigo estado de coisas - que, apesar de negado, é igualmente conservado e
transformado -, e a nova posição.
Assim sendo, repare-se que a negação desempenha duas funções cruciais no
movimento dialéctico:
por um lado, uma função negativa, na medida em que nega o antigo estado de
coisas,
por outro lado, uma função determinante e afirmativa, visto que a negação de um
dado estado de coisas corresponde, concomitantemente, com a determinação, afirmação
e posição de um estado de coisas novo.
Assim, e lembrando a célebre tese spinozana, é possível observar que neste
movimento dialéctico toda a determinação é uma negação.
A determinação é uma negação não no sentido em que se encontra numa relação
de oposição com outra determinação, sendo qualquer determinação a negação de qualquer
outra por ser diferente dela. Mas sim, num sentido dinâmico e dialéctico, em que toda a

(246) Em rigor e num plano mais desenvolvido e profundo da problematização da dialéctica - que,
infelizmente, não se verifica no pensamento do Cusano -, as negações, ao mesmo tempo que representam
mediações entre diferentes estádios de desenvolvimento, são elas próprias mediadas por intermédio das
contradições internas, isto é, pela luta dos elementos, configurações, estados de coisas contraditórios.
Assim, a momentânea vitória de um lado da oposição sobre o outro representa igualmente a negação do
estado de coisas em causa.
(247) Não posso deixar de sublinhar que, não obstante esta descrição, ao contrário daquilo que
podemos encontrar em Hegel e, num plano ontológico completamente distincto, em Marx e Engels, onde
este movimento dialéctico de negação e superação implica concomitantemente uma progressão para um
estádio de desenvolvimento mais rico, mais concreto, em Nicolau de Cusa, a meu ver, tal não pode ser
identificado.

106
determinação é o resultado de uma negação ou, se quisermos, no sentido em que a
negação representa ela mesma uma determinação248, na medida em que a negação de uma
dada determinidade corresponde à determinação e posição de uma nova determinidade.
Com isto, numa linguagem mais abstracta, poderíamos sustentar que o movimento
explicativo do Absoluto é um movimento, mediado pela negação, de si para si mesmo
por meio do outro, no qual o «outro» que é posto não é diferente daquele que põe.
É devido a este movimento que o Absoluto permanece Absoluto mesmo contraindo-se,
pois o contraído não é diferente dele, mas é o próprio Absoluto (249).

Entrando agora no pensamento concreto de Nicolau de Cusa, é justamente nestes


termos que, em De Non-Aliud, o cardeal cusano descreve o movimento de manifestação
do Não-Outro enquanto outro - isto é, do Absoluto como finito -, e a relação entre ambos.
Repare-se que, segundo o Cusano, tal como já vimos anteriormente, o Absoluto
determina-se enquanto finito. Toda a finitude, toda a determinidade é o próprio Absoluto
determinado e manifestado naquele modo de ser concreto, questão que, aliás, é deixada
bem nítida também em De Non-Aliud quando escreve que:

«Quem vê porque o próprio Não-Outro é a definição e o definido de si e de todas as


coisas, em todas as coisas que vê não vê senão o Não-Outro a definir-se a si próprio. Na
verdade, que vê no outro senão o Não-outro definindo-se a si mesmo? Que outra coisa vê
no céu que o Não-Outro definindo-se a si próprio?» (250)

A novidade presente em De Non-Aliud consiste na afirmação da negação enquanto


impulsionadora desta determinação, que pode ser encontrada na décima quarta
proposição onde o Cusano escreve que: «quem vê no outro o Não-outro [enquanto] outro
vê na afirmação ser afirmada a negação» (251). Não se trata de um jogo de palavras - onde

(248) É esta a leitura que o próprio Hegel faz desta passagem spinozana. Na formulação da Ciência
da Lógica: «A determinação é a negação posta como afirmativa; tal é a proposição de Spinoza: omnis
determinatio est negatio» — «La determinación es la negación puesta como afirmativa; tal es la proposición
de Spinoza: omnis determinatio est negatio», HEGEL, G.W.F, livro I, cap. II, A, b, nota 1.
(249) Apesar de não nos oferecer uma explicação para esta tese cusana, Moran capta, todavia, esta
ideia, ao afirmar que: «Claramente Cusanus está actualmente a afirmar que Deus é “pedra na pedra” e,
portanto, segue directamente a tradição dos pensadores condenados pelos julgamentos de 1225, ainda que,
ao mesmo tmepo, nega que Deus é, de algum modo, limitado por ser a essência de cada coisa individual»
— «Clearly Cusanus is actually assertin that God is “lapis in lapide” and thus following directly in the
tradition of thinkers condemned by the judgments of 1225, and yet at the same time denying that God is
somehow limited by being the essence of each individual thing» MORAN, Dermot, Pantheism from John
Scottus Eriugena to Nicholas of Cusa, p.151.
(250) «Qui videt, quoniam ipsum non-aliud sui et omnium est definitio et definitum, ille in omnibus,
quae videt, non nisi non-aliud videt se ipsum definiens. Nam quid videt in aliud nisi non-aliud sese
definiens? Quid aliud in caelo quam non-aliud se ipsum definiens?», NA, 118.
(251) «Qui videt in alio non-aliud aliud, is videt in affirmatione negationem affirmari», NA, 119.

107
o outro é apresentado como resultante da negação do não-outro. Trata-se sim de uma
profunda tese ontológica.
Aquilo que, a meu ver, Nicolau de Cusa procura transmitir-nos nesta passagem é
o facto de que aquilo que existe, o positivo, o posto, o afirmativo, ser o resultado de uma
negação, nomeadamente, da negação do próprio Absoluto.
O Absoluto nega o seu carácter indeterminado (ou apenas formalmente
determinado) de modo a levar a cabo a sua determinação e implícita manifestação
sensível.
Repare-se que, ao mesmo tempo que a negação do Absoluto aponta para a sua
determinação, esta determinação ou, melhor dizendo, esta auto-determinação
corresponde simultaneamente com a determinação de todas as coisas, como deixa bem
patente Nicolau de Cusa ao escrever que «o próprio Não-Outro, definindo-se, define
tudo» (252).
Por esta ordem de ideias percebe-se igualmente que a sua consequente ex-posição,
a sua auto-posição enquanto determinado não será senão a posição do finito, do “outro”
ou, sendo ainda mais preciso, a sua auto-posição enquanto finito (253).

Com base nestas ideias julgo estarmos habilitados a compreender a questão da


multiplicação. Está claro que nos encontramos perante um problema bicudo. Por um lado,
temos um Absoluto que, por natureza, é indivisível por ser infinito. Por outro lado, somos
confrontados com uma multiplicidade determinada de entes finitos, multiplicidade esta
que é o próprio deus manifestado sob diferentes modos de ser. O próprio Nicolau de Cusa
tem consciência e não deixa de assinalar este problema:

«[...] parece que deus, que é a unidade, está multiplicado nas coisas, visto que o seu
entender é ser. E, no entanto, entendes que não é possível que essa unidade, que é infinita
e máxima, se multiplique. Por isso, como entendes a pluralidade cujo ser é devido ao uno
sem multiplicação? Ou, como entendes a multiplicação da unidade sem multiplicação?»
(254)

(252) «ipsum non-aliud se definiendo omnia definit», NA, 118.


(253) Transportando estas ideias para um plano diferente de análise observamos que a inicial
unidade complicante indeterminada, de modo a manifestar-se, nega-se, transformando-se numa
multiplicidade explicada e determinada que, todavia, corresponde ainda à uma unidade complicante de uma
multiplicidade explicada.
(254) «videtur, quasi deus, qui est unitas, sit in rebus multiplicatus, postquam intelligere eius est
esse. Et tamen inteligis non esse possibile illam unitatem, quae est infinita et maxima, multiplicari.
Quomodo igitur inteligis pluralitatem, cuius esse est ab uno absque unius multiplicatione? Aut quomodo
intelligis multiplicationem unitatis absque multiplicatione?», DI, II, III, 109.

108
Chamo a atenção para o facto de a questão central não ser a negação da existência
da multiplicidade. Aquilo que está em jogo é perceber o modo como o Absoluto se
manifesta na multiplicidade diversa e contraditória sem, todavia, ele mesmo se
multiplicar.
Há que entender que a multiplicação que Nicolau de Cusa tem em mente não é um
estilhaçar de uma inicial unidade em infinitos fragmentos, cuja única relação com a
anterior unidade é serem partes daquela. A multiplicidade não é uma amálgama de
fragmentos cuja soma recompõe a unidade perdida, da qual, enquanto fragmentos, todos
se distinguem.
A multiplicação também não deve ser entendida como a criação de infinitos outros
seres a partir do Ser absoluto, havendo assim uma série de seres contrapostos uns aos
outros.
A chave da compreensão deste problema reside precisamente na compreensão
daquilo que a multiplicidade é, que, tal como referimos, não é senão o Absoluto
manifestado sob diferentes modos de ser.
Assim, em cada ente é sempre o mesmo que está presente, não obstante a
configuração determinada sob a qual se apresenta naquele preciso momento.
Pondo o problema em outros termos, aquilo que há é uma multiplicação ou uma
multiplicidade da única coisa que verdadeiramente é. É sempre o mesmo ser que sob
diferentes formas determinadas se mostra como existente. Posto isto, percebe-se como,
na verdade, não há multiplicação alguma do Absoluto, uma vez que é sempre ele próprio,
é sempre o mesmo ser que está presente em cada ente.
Aquando deste problema, os exemplos matemáticos oferecidos por Nicolau de
Cusa representam uma mais-valia. A simples unidade, invariável e não-multiplicável na
sua natureza, dá origem à infinitude dos números finitos por uma repetição, em diversas
proporções, de si mesma e não por uma multiplicação de si, isto é, a unidade não se divide
ela mesma, nem origina outras unidades iguais a si, como escreve o cardeal alemão em
De Visione Dei:

«como quando alguém diz, um, um, um, diz um três vezes, não diz três, mas um e este
um três vezes. Portanto, não pode dizer um três vezes sem três, ainda que não diga três.
Então, uma vez que diz um três vezes, repete o mesmo e não numera [multiplica]. Pois
numerar é alterar o um, mas repetir o um é o mesmo três vezes e multiplicar sem número.

109
Daí que a pluralidade que por mim é vista em ti, deus meu, é alteridade sem alteridade,
porque é uma alteridade enquanto identidade» (255)

Transportando o exemplo matemático da repetição da unidade em diferentes


proporções enquanto originadora de uma multiplicidade infinita de finitos para o plano
ontológico, percebemos que este procura traduzir como o mesmo ser adquire diferentes
configurações ou se apresenta sob diferentes modos de ser.
Por ser sempre o mesmo - com a diferença no modo de ser sob o qual aparece,
que está presente em toda a multiplicidade -, percebemos que não há, de facto,
multiplicação alguma do Absoluto, não obstante as diversas manifestações sob o qual este
sensivelmente aparece, como sustenta o Cusano em De filiatione Dei, recorrendo
novamente à um exemplo matemático:

«E porque o número seis não é o número sete, esses dois números serão diferentes, ainda
que a unidade no seis não seja diferente da unidade no sete. Pois nestes [dois números
diferentes] é encontrada apenas uma única unidade numa variedade [de modos]» (256)

Ou como refere em De docta ignorantia : «assim como no número que explica a


unidade não se encontra senão a unidade, assim em todas as coisas que são não se encontra
senão o máximo» (257).
Como ponto de trânsito para a segunda parte deste capítulo, gostaria de retomar
um ponto deixado na primeira parte deste escrito, nomeadamente, a questão da relação
entre finito e infinito e da má infinitude, usando os termos hegelianos. Lembremos que,
uma consideração diametral na qual ao infinito se contrapõe o finito levará,
incontornavelmente, à finitização do absoluto ou a absolutização do finito, o que, em
suma, acaba por ter o mesmo resultado: a limitação e relativização daquele que se
pretende absoluto. De assinalar que a manifestação não pode ser entendida enquanto
reiteração do finito ao infinito, reiteração esta na qual os outros postos não têm nenhuma
relação entre si, nem com aquele que põe. Em outros termos, a manifestação do absoluto
não se pode identificar com o movimento característico da má infinitude.

(255) «quasi quis dicat unum, unum, unum; dicit ter unum, non dicit tria sed unum, et hoc unum
ter. Non potest autem dicere unum ter sine tribus, licet non dicat tria. Nam cum dicit unum ter, replicat idem
et non numerat. Numerare enim est unum alterare, sed unum et idem triniter replicare est plurificare sine
numero. Unde pluralitas, quae in te deo meo per me videtur, est alteritas sine alteritate, quia est alteritas
quae identitas», VD, XVII, 74-75.
(256) «Et quia senarius non est septenarius, erunt hi duo numeri diversi, licet non sit alia monas
senarii et alia monas septenarii. Non enim in ipsis nisi monas una in varietate reperitur», FD, IV, 72.
(257) «sicut in numero explicante unitatem non reperitur nisi unitas, ita in omnibus quae sunt non
nisi maximum reperitur», DI, II, III, 105.

110
Repare-se que, de facto, Nicolau de Cusa tem em conta todos estes aspectos. A
única maneira de preservar o absoluto, o infinito, é assumir que este coincide com o finito.
Se o absoluto, o infinito, é tudo aquilo que pode ser, tem, necessariamente, de modo a
continuar a ser absoluto e infinito, tem de ser o próprio finito (258). O movimento de si
para si mesmo do Absoluto nesta dinâmica dialéctica de manifestação, na qual a posição
do outro corresponde, na verdade, à posição do próprio infinito enquanto finito representa
precisamente a verdadeira infinitude.

Passemos de seguida à investigação da unidade dialéctica entre absoluto e o finito


ou deus e criatura, isto é, da unidade dialéctica do todo.
«O que caracteriza, de um modo geral, uma unidade ou identidade dialéctica?»
poderia constituir uma das primeiras questões a colocar nesta nossa investigação.
Sem procurar ser exaustivo na explicação, podemos afirmar que uma unidade
dialéctica representa, em primeiro lugar, uma identidade que não exclui a diferença, mas
que, pelo contrário, a envolve e preserva. Quanto a este ponto, encontramos em Nicolau
de Cusa a categórica afirmação desta posição quando, a dado passo da De docta
ignorantia o cardeal cusano escreve que «não há senão um só máximo com o qual
coincide o mínimo, em que a diversidade explicada não se opõe à identidade
complicante» (259).

(258) Seguindo uma leitura e interpretação não dialéctica, João Maria André acaba por afirmar que
o infinito tem de estar no finito, mas sem se identificar com este: «o finito não é o infinito, mas o infinito
tem que estar necessariamente presente no finito, sem que com ele se identifique», JOÃO MARIA ANDRÉ,
Sentido, simbolismo e interpretação, p.204.
A tese necessita de uma clarificação: como está o infinito no finito sem coincidir com este? Uma
solução seria dizer que está neste como uma moeda está no bolso. Com esta solução, o dualismo ontológico
fica, de imediato, patente. Pode-se igualmente ficar na boquiaberta posição de espanto perante a «mística»
sabedoria do cardeal cusano que em contraditórias afirmações revela o inefável. Mais não seria de que
quedarmo-nos, utilizando a linguagem cusana, no plano da razão, apenas surpreendendo os dois pólos
contraditórios da equação sem, porém, os articular e resolver numa unidade.
De facto, indo ao encontro de uma outra passagem na qual a questão da presença do absoluto no
finito é abordada, reparamos uma certa hesitação apresentada por João Maria André ao definir o modo
como o infinito está presente no finito: «o Não-outro não pode ser dito outro de qualquer outro e, por isso,
está de alguma forma presente em todos os outros. O outro é devido à presença, em si, do Não-Outro»,
JOÃO MARIA ANDRÉ, introdução à tradução portuguesa de O Não-outro, p.36.
A meu ver, este «estar de alguma forma» tem de ser clarificado. O Não-Outro está no outro, de maneira a
ser não outro deste mesmo outro, enquanto o puro ser do outro (sendo o absoluto, como já vimos, também
o próprio outro na sua determinidade específica). É por este motivo que, em várias passagens, Nicolau de
Cusa refere que se o absoluto for retirado da criatura nada permaneceria, dado que lhe seria retirado o ser e
não como refere João Maria André que, na tentativa de evitar a questão do panteísmo, coloca no facto de o
absoluto ser a causa do finito o fundamento desta tese cusana: «Por ser princípio de ser de todas as coisas
é que, uma vez retirado o Não-Outro, todas as coisas cessariam», JOÃO MARIA ANDRÉ, Introdução à
tradução portuguesa de O Não-outro, p.39.
(259) «non est nisi unum maximum, cum quo coincidit minimum, ubi diversitas explicata identitati
complicante non opponitur», DI, II, III, 107. Cf., também DI, I, XXI, 63.

111
Neste sentido e por esta razão, a identidade ou unidade dialéctica demarca-se por
completo da unidade pensada enquanto mesmidade (de um A=A), de uma identidade que,
por se pretender e procurar salvaguardar como absoluta, acaba por se tornar unilateral,
relativa, finita, por colocar de lado o outro.
Como o próprio título deste capítulo indica, trata-se da unidade ou identidade
dialéctica do todo, todo este que comporta toda uma multiplicidade diversa e contraditória
que, necessariamente, tem de encontrar um plano último de unidade.

De modo a compreender esta unidade ou identidade dialéctica do todo é


necessário compreender aquilo que, em De Non-Aliud aparece descrito como um segredo
sem par, e que estará na base desta nossa investigação:

«Quem vê como a partir de o Não-Outro se definir a si próprio, o próprio Não-Outro é


não outro do próprio Não-Outro e como a partir de definir todas e cada uma das coisas, é
tudo em todas as coisas e cada uma em cada uma delas, esse vê que o próprio Não-Outro
é outro do próprio outro e vê que o Não-Outro se não opõe ao próprio outro, o que é
segredo, não havendo coisa semelhante a isso» (260)

Há que destacar deste trecho os seguintes pontos:


Primeiro ponto, repare-se que há dois modos de o Absoluto ou deus estar no
próprio finito: por um lado enquanto «tudo», por outro lado, enquanto a própria coisa
finita.
Segundo ponto, é descrita uma relação aparentemente paradoxal entre o Absoluto
e o finito na qual o Absoluto, por um lado, é afirmado enquanto outro, isto é, enquanto
diferente do próprio finito e, por outro lado, é considerado como não outro, isto é, como

(260) «Qui videt, quomodo ex eo, quod non-aliud se ipsum definit, ipsum non-aliud est non aliud
ipsius non-aliud, et quomodo ex eo etiam, quod omnia definit et singula, est in omnibus omnia et in singulis
singula: ille quidem videt ipsum non-aliud esse aliud ipsius aliud et videt non-aliud ipsi aliud non opponi,
quod est secretum, cuius non est simile», NA, 115. Visando a questão da presença de qualquer coisa em
qualquer coisa, João Maria André escreve o seguinte: «deus está em tudo e tudo está em deus. Deus está
em tudo como quididade absoluta de cada coisa e tudo está em deus na sua absoluta simplicidade e unidade
anteriores a qualquer oposição», JOÃO MARIA ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação, p.351.
Existem, nesta passagem, dois pontos que gostaria de salientar:
Primeiro ponto, e fazendo ligação com a interpretação que faço da complicatio, repare-se que João
Maria André pensa a complicatio apenas como a unidade inicial, sendo apenas nesta unidade inicial,
anterior a qualquer oposição—, que podemos afirmar que as coisas estão em deus. Por esta posição, parece
igualmente que, para o autor, a coincidentia oppositorum identifica-se apenas com a inicial unidade.
Segundo ponto, João Maria André sustenta nesta passagem o facto de deus estar em tudo enquanto
quididade absoluta, não fazendo referência ao segundo modo em que este pode estar em cada uma das
coisas. Foi possível ver nas páginas anteriores que, quando Nicolau de Cusa refere que deus está em tudo,
procurando exprimir por isso o conceito de explicatio, quer dizer que deus está em cada ente determinado
enquanto este mesmo ente.

112
idêntico ou coincidente com esse mesmo finito. Em outros termos, o Absoluto é e não é,
coincide e não coincide, concomitantemente, com o finito (261).

(261) De salientar que a tese de que o Absoluto não é outro do finito, mas também não é o mesmo
não representa uma tese circunscrita à obra De Non-Aliud. De facto, esta encontra-se presente ao longo de
toda a vida filosófica de Nicolau de Cusa o que, a meu ver, não é senão a tradução de um esforço
especulativo tremendo na tentativa de perceber este «segredo» da unidade do múltiplo e multiplicação da
unidade. Assim, mais de que uma lista telefónica, a seguinte enumeração, que não se pretende de todo
exaustiva, procura realçar como, em diferentes obras, cujo alvo é sempre distincto, sob diferentes
formulações, Nicolau de Cusa não se cansa de afirmar esta relação identitária entre o absoluto e o finito.
Assim, encontramos desde a De docta ignorantia afirmações como: «Apreendes, assim, pelo intelecto como
o máximo não é idêntico a nada, nem de nada é diferente e como tudo é nele, a partir dele e por ele» —
«Apprehendis itaque per intellectum quomodo maximum cum null est idem neque diversum, et quomodo
omnia in ipso, ex ipso et per ipsum», DI, I, XXI, 65.
Também em De Genesis, em duas passagens distinctas, deparamo-nos com a mesma tese:«
Portanto, o mesmo inefável, em que todas as coisas são o mesmo, de nada é o mesmo ou diverso.» — «Nulli
igitur alteri est idem aut diversum ineffabile idem, in quo omnia idem», DG, I, 145, bem como «Entendi
que querias dizer que de todos os seres não há nenhum que não seja o mesmo que ele próprio e outro de
outro, e que o mesmo absoluto não é um tal ser, ainda que não é diferente de nada que é tanto o mesmo que
si próprio e diferente de outro» — «Intelligo te velle nihil omnium entium esse, quod non sit idem sibi ipsi
et alteri aliud et hinc nullum tale esse idem absolutum, licet cum nullo sibi ipsi idem et alteri diversum idem
absolutum sit diversum», DG, I, 146.
Igualmente em De Visione Dei na seguinte formulação: «Não é, pois, contraível a igualdade das
coisas finitas, embora não seja desigual em relação a nenhuma delas» «Non est igitur contrahibile ad
aequali- tatem finiti, licet non sit alicui inaequale», VD, XIII, 56. No De Princípio é-nos dito do mesmo
modo que «Portanto, o Princípio de todas as coisas não é nem algo outro, nem o mesmo com respeito às
suas criaturas» — « igitur principium universorum non esse neque aliud neque idem respectu creaturarum
suarum» DP, 38, assim como em De Possest é-nos relembrado o mesmo:«Portanto, [deus não é] outro que
ou diferente de nada, ainda que nada possa aproximar-se da igualdade com ele, uma vez que todo o outro é
outro e finito» — «Ideo nulli alter vel diversus, licet nihil ad eius aequalitatem accedere possit, cum omnia
alia sint altera et finita» DPo, 59.
E, por fim, num das suas últimas obras Venatione Sapientiae: «Portanto, ainda que deus se designe
“Não-Outro”, por ser não outro de qualquer outro, ele não é por isso o mesmo[idem] que qualquer outro.
Pois, assim como não é outro do céu, assim não é o mesmo que o céu» — «Ideo etsi deus nominetur non
aliud, quia ipse est non aliud ab alio quocumque, — sed propterea non est idem cum aliquo. Sicut enim non
est aliud a caelo, ita non est idem cum caelo» VS, XIV, 41.
A interpretação feita por Hopkins desta relação entre o Absoluto e o finito é questionável. Partindo
do facto (por si já questionável pois, como já vimos, o Absoluto contrai-se em cada ente enquanto este ente
determinado) de o Absoluto ser o Ser e não um ser, isto é, um ente finito, Hopkins conclui que aquilo que
Nicolau de Cusa pretende dizer quando sustenta que o Absoluto nem é idêntico com, nem diferente de
nenhum ente finito (não é, de facto, uma profunda relação dialéctica que aponta para uma unidade pensada
nos termos de uma totalidade) é que o Absoluto, na medida em que não é um ente, não pode ser comparado
com estes; por outras palavras, o Absoluto não possui nenhum referencial para que possa ser comparado,
ora enquanto idêntico com, ora enquanto diferente de, os entes. Ele não é idêntico nem é diferente dos entes
porque, diz Hopkins, os dois polos são incomparáveis: «Assim como o Máximo Absoluto precede a
distinção entre unidade e não-unidade, assim precede todos os contraditórios. Uma maneira equivalente de
expressar este ponto seria dizer que o Máximo Absoluto não é um ser mas é incondicionalmente o próprio
Ser. Assim sendo, o Máximo Absoluto não admite comparação com os seres. Não é diferente deles; nem é
outro de que aquilo que eles são, pois não é um outro ser» — «Just as the Absolute Maximum precedes the
distinction between oneness and not-oneness, so it precedes all contradictories. Na equivalente way of
expressing this point would be to say that the Absolute Maximum is not a being but is undifferentiated
Being itself. Accordingly, the Absolute Maximum does not admit of comparison with beings, ti is not
different from them; nor is it other than what they are, for it is not another being» HOPKINS, Jasper,
Nicholas’s of Cusa metaphysic of contraction, p.90.
Para além do dualismo ontológico que esta posição implica — pois coloca o Absoluto num patamar
de transcendência absoluto face as criaturas, posição esta que, algumas linhas adiante, Hopkins acaba por
explicitar: «Pois ele [o Absoluto] os une [aos entes] por ser, transcendentalmente e incondicionalmente,
aquilo a partir do qual eles derivam, para que sejam unidos como na sua Causa, que os precede
ontologicamente, não cronologicamente» — «For it unites them by being, transcendently and

113
De facto, a correlação entre estes dois pontos é crucial para compreender em que
medida, ou sob que ângulo se dá ou não a coincidência do Absoluto com o finito (se
quisermos, em que medida o Absoluto é não outro que outro, ainda que não seja o mesmo
que este), por que motivo existe esta dupla relação e como esta relação identitária relativa
constitui, na verdade, a unidade dialéctica do todo.
Bem vistas as coisas, os dois pontos acima assinalados e, sobretudo, a correlação
de cada uma das suas partes leva-nos, novamente, ao par categorial complicatio-
explicatio.
Para além de, no quadro geral explicativo da manifestação sensível do absoluto,
estes conceitos representarem ferramentas incontornáveis na compreensão do movimento
do Absoluto, estes conceitos constituem igualmente e, sobretudo, tal como já
anteriormente foi realçado, categorias fundamentais para assinalar a relação identitária
ora de deus com a criatura, ora da criatura com deus. De sublinhar que este sentido bi-
direccional desta identidade não é de todo aleatório ou sem importância, como iremos de
seguida verificar.
Posto isto, clarifiquemos o sentido das afirmações cusanas acima esboçadas. Ora,
o Absoluto, deus, o ser, estar no finito, na criatura, no existente como «tudo» significa
estar nele como ou, para ser ainda mais rigoroso, ser o puro e simples ser daquele ente
(262).

undifferentiatedly, that from which they derive, so that they are united as in their Cause, which precedes
them ontologically, not chronologically» ibidem, p.90 —, parece-me ir completamente contra a intenção
que Nicolau de Cusa tem ao afirmar tal relação que, na verdade, esboça a relação de identidade e diferença
existente entre o Absoluto e o finito, principalmente, mas não exclusivamente, tendo em conta as passagens
vistas do De Non-Aliud onde todo o diálogo gira em torno da identidade, mas também da diferença
subjacente a relação entre o Não-Outro e outro.
Quanto a Knut Alfsvåg, este limita-se a expor o pensamento de Nicolau de Cusa sem criticamente
perguntar como uma relação deste género é possível. É claro que, em várias instâncias, o cardeal alemão
ensina-nos que tal relação é incompreensível. Não obstante, a sua demanda de uma explicação intelectual
de tal relação é omnipresente na sua obra. Nas palavras de Knut Alfsvåg: «Deus está presente em tudo
aquilo que é, mas a sua presença eterna nao é, todavia, identica com nenhuma coisa definível» — «God is
presente in all there is, but his eternal presence is still not identical with anything definable» ALFSVÅG,
Knut, Explicatio and complicatio: On the understanding of the relationship between God and the world in
the work of Nicholas Cusanus, p.5. Veja-se igualmente IDEM, p.16.
(262) Outra posição é sustentada por Hopkins que, indo contra as posições de Rombach, afirma o
seguinte: «Nicolau em nenhum lugar diz que nas criaturas não está contida outra coisa senão o próprio
Deus» — «Nicholas nowhere says that in creatures is contained nothing other than God Himself» —
HOPKINS, Jasper, Nicholas’s of Cusa metaphysic of contraction, p.72.
A afirmação de Hopkins pode causar alguma estranheza, uma vez que, em De ludo globi, Nicolau
de Cusa afirma categoricamente que em cada ente finito está o próprio ser: «então, uma vez que não há
nenhum ser [finito] a não ser que estseja nele o ser ele mesmo, vês certamente que deus, pelo facto de ser
o próprio ser no ser [finito], está presente em todas as coisas » — «Tunc, cum nullum ens sit, nisi in ipso
sit entitas, certissimum esse vides deum eo ipso, quod entitas est in ente, esse in omnibus», LG, II, 87, ou,
como algumas linhas mais adiante escreve também: «E dizer que deus está presente em todas as coisas é
dizer nada mais que aquele próprio Ser, que complica todas as coisas, está presente no ser [finito] [quod

114
Assim, sob este ângulo de análise, tudo aquilo que é, na medida em que pura e
simplesmente é, é em deus o próprio deus — o que corresponde, de facto, à já referida
relação que a complicatio pretende manifestar. Portanto, a partir deste patamar de análise,
podemos afirmar que deus é tudo, ou que a criatura é deus, pelo facto de tudo ser (263).
Por outro lado, afirmar que o Absoluto, em qualquer coisa, é a própria coisa aponta
para uma identificação do Absoluto com o próprio ser determinado, finito, imediato — o
que, neste caso, corresponde à relação explicitada pela explicatio. Se quisermos, esta
relação assinala a identidade entre deus e criatura: deus é a criatura. Neste sentido, tudo
aquilo que é, é o próprio deus determinado daquele modo específico.
Ora, parece que, mesmo sob este ângulo de análise, deus continua a ser tudo. De
facto, a afirmação é verdadeira. Deus é tudo aquilo que é, é tudo aquilo que, naquele
momento determinado, naquele estádio específico de desenvolvimento, naquela precisa
configuração se manifesta naquele tempo e espaço preciso. Ou seja, deus é tudo, mas de
um modo restrito, limitado, circunscrito ao imediato, à positividade daquilo que de pronto
se da num determinado instante. Neste sentido, deus não é aquilo que verdadeiramente é,

entitas est in ente]» — «nec aliud est dicere deum esse in omnibus, quam quod entitas est in ente omnia
complicante», IDEM.
Para além desta referência, comentando a passage da DI, I, 17 Hopkins escreve que «esta passagem
não ensina que cada coisa no seu ser é Deus, que se nós, imaginariamente, removemos os atributos de um
dado ente finito, chegaremos ao simples Ser em si, que é, como se fosse, o “núcleo” próprio, desta coisa»
— «This passage does not teach that each thing in its being is God, that if we imaginatively strip away the
attributes of some given finite being, we will arrive at simple Being itself, which is the proper “core,” as it
were, of this thing» HOPKINS, Jasper, Nicholas of Cusa on learned ignorance, p.13. Acrescentando de
imediato que, na verdade, aquilo que o cardeal cusano procurava por aquela passagem transmitir era que:
«Todos os entes participam no Ser. Remover a participação no Ser de qualquer ente é remover o ente ( i.e.,
remover a sua existência). Se a participação fosse removida de todos os entes, então permanece apenas o
Ser, i.e., o Ser que foi participado» — «All beings participate in Being. To remove any being's participation
in Being is to remove that being (i.e., to remove its existence). If participation is removed from all beings,
then there remains only Being, i.e., Being itself, which was participated in», IDEM.
O ponto fundamental desta argumentação reside na interpretação daquilo que por participação é
pretendido transmitir. A posição (que coincide com a leitura que faço desta passagem) contra a qual
Hopkins levanta a sua tese interpreta a participação enquanto determinação, na medida em que todo o ser
que participa é um ser determinado, sendo justamente por esta determinação mais ou menos precisa que a
sua participação é igualmente mais ou menos precisa. Por outro lado, Hopkins entende a participação como
apontando para a existência do próprio ente finito. Assim, segundo Hopkins, chega-se ao próprio Ser não
pelo exercício mental de eliminação da determinação do ente, mas pela eliminação do próprio ente
determinado, restando assim apenas o Ser no qual este participava. Repara-se como, subjacente a esta leitura
continua latente o dualismo ontológico que Hopkins tacitamente defende. Repare-se igualmente como esta
posição vai de mão dada com a sua outra posição que refere que a dependência dos entes de deus não se dá
porque este é o ser deles, mas porque este é a causa, o princípio, do ser finito deles.
(263) Seguindo esta linha de pensamento, Nicolau de Cusa não deixa de afirmar em várias obras
aquilo que poderíamos chamar de presença integral de deus em tudo aquilo que é. Como escreve, por
exemplo, em De ludo globi: «Pois, em igual medida, todas as coisas têm ser, uma vez que um ser não é
mais ser nem menos ser de que outro. Em todo e cada um dos seres, o ser como todo está presente em igual
medida» — «Aequaliter enim omnia entitatem habent, cum unum ens non sit neque plus neque minus ens
quam aliud. In quibus omnibus et singulis tota entitas est in aequalitate», LG, II, 82. Sobre a mesma tese,
veja-se também, por exemplo, DPo, 19.

115
isto é, tudo aquilo que pode ser, mas simplesmente aquilo que, aqui e agora, é, deste ou
daquele modo (264).
O par categorial complicatio-explicatio não é a única via explicativa desta relação.
A temática da essência absoluta e da essência determinada constitui um outro caminho
explicativo destas mesmas relações. Vejamos com isto acontece.
De modo a enquadrar esta problemática julgo ser pertinente lembrar aquilo que
foi dito no capítulo terceiro da primeira parte, isto é, que, segundo Nicolau de Cusa,
afirmar que deus é a essência absoluta dos entes significa afirmá-lo enquanto pura e
simplesmente o ser destes. Todavia, como o próprio cardeal cusano reconhece, «é muito

(264) João Maria André assinala igualmente esta necessidade de não identificar imediatamente o
absoluto com o finito, não obstante a sua intenção seja resgatar as teses cusanas de qualquer interpretação
panteísta: «é porque o “Não-outro” é o ser absoluto que todos os outros são no “Não-Outro” o “Não-outro”,
mas na medida em que são entes determinados, o “Não-outro” é como “Não-outro” em cada ente outro o
seu ser sob a forma específica de outro. Apesar da necessidade de evitar qualquer dualismo, não se deve,
todavia, identificar pura e simplesmente o “Não-outro” com o outro. No respectivo modo de ser se inscreve
a distância e a diferença que retira ao pensamento do autor qualquer carga exclusivamente imanentista»
JOÃO MARIA ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação, p.246.
Assim, ao mesmo tempo que assinalo um ponto de convergência com João Maria André no facto
de o absoluto não se dever identificar, sem mais, com o ente determinado, assinalo igualmente um ponto
divergente e que diz respeito à justificação que sustenta esta posição. De facto, o absoluto não se deve
identificar de imediato com o existente pelas razões já esboçadas. Todavia, esta não identificação imediata
não visa um afastamento da imanência do absoluto no finito, mas sim, de uma identificação do absoluto
com uma figura imediata, finita, fixa. Neste sentido, penso que a «exclusiva imanência» à qual João Maria
André faz referência pode facilmente ser substituída por «exclusiva positividade». O Absoluto não é apenas
aquilo que positiva e imediatamente é dado enquanto existente, mas, e agora sim, transcende no sentido em
que é mais de que aquilo que é, não obstante a sua imanência em e identidade com aquilo que é.
Concluindo o capítulo dedicado ao Não-Outro, João Maria André escreve o seguinte: «Com efeito,
o “Não-outro” é, por tudo o que foi dito, aquele que de si exclui toda a alteridade, estando, por isso, acima
de tudo o que é outro enquanto é outro: ele é “Não-outro”. Como tal, parece diferenciar-se e demarcar-se
de todas as coisas, não sendo nenhuma delas especificamente. Daí resulta a sua dimensão de radical
alteridade em relação a toda a alteridade. Pareceria, com isso, que, mais do que “Não-outro”, aquilo que
por ele é tematizado deveria ser designado “o outro absoluto dos outros”, ou “completamente outro”. Isso,
no entanto, não corresponderia à concepção de Deus de Nicolau de Cusa, pensada a partir da relação entre
princípio e principiado. Por esse motivo, se o “Não-outro” significa a exclusão de toda a alteridade, significa
simultaneamente a sua imanência a todos os outros, a sua não oposição a nenhum outro concreto, significa
no fundo, a sua não alteridade em relação a nada: ele é o “Não-outro”» JOÃO MARIA ANDRÉ, Sentido,
simbolismo e interpretação, pp.251-252.
Neste passo, João Maria André dá conta, mais uma vez, dos dois pólos da equação. Entende que
não pode ficar nem na absoluta transcendência, nem na identificação absoluta entre infinito e finito.
Todavia, a meu ver, queda-se na afirmação concomitante destas duas posições, não apresentando uma
resposta conciliadora, claro está, que possa brotar do seio do pensamento cusano, para a questão em causa.
A solução que João Maria André encontra para o problema da relação entre a identidade e a
diferença é, tal como o título da sua obra sugere, a sua articulação com a problemática do sentido sendo,
segundo o autor a única via «verdadeiramente fecunda» e «superadora» das antinomias que as outras
alternativas — nomeadamente a identificação absoluta do absoluto com o ente e, por outro lado, a afirmação
da transcendência absoluta de deus, pensando-o como algo absolutamente diferente do outro —, deixam
em aberto, veja-se JOÃO MARIA ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação, pp.299-301. Novamente,
aquilo que é deixado de lado nesta análise e discriminação racional entre as diferentes modalidades de
pensar e solucionar as «enigmáticas» afirmações de Nicolau de Cusa é uma abordagem dialéctica que
surpreenda o pensamento dialéctico do cusano da própria dialecticidade do real.

116
difícil ver como uma coisa, que está essencialmente em todas as coisas, [é] todas as
coisas» (265).
Como pode uma só e única essência ser tudo aquilo que é? Isto é possível na
medida em que a única essência, a essência absoluta, deus, o ser, se manifesta em
múltiplas, diversas e contraditórias essências determinadas, como esclarece Nicolau de
Cusa em De Apice Theoriae quando escreve o seguinte: «e não vejas a variedade dos
entes a não ser como aparições do próprio Poder [sob] diferentes modos; mas a quididade
não pode ser múltipla [varia], porque é o próprio Poder que aparece variadamente» (266).
Resta agora compreender qual é a relação da essência absoluta e contraída com as
próprias coisas. Para isso, vejamos a já canónica passagem da De docta ignorantia onde
se estabelece a relação entre «os dois tipos» de essência e as coisas:
«Pois assim como Deus, sendo imenso, não é nem no sol nem na lua, embora neles seja
o que são de modo absoluto, assim o universo não é nem no sol nem na lua, mas neles é
o que são de modo contraído. E porque a quididade absoluta do sol não é diferente da
quididade absoluta da lua — porque é o próprio Deus que é a entidade e a quididade
absoluta de todas as coisas —, e a quididade contraída do sol é diferente da quididade
contraída da lua — porque assim como a quididade absoluta de uma coisa não é a própria
coisa, assim a quididade contraída de uma coisa não é diferente dela própria —, torna-se
então claro como o universo é uma quididade contraída, que é contraída de um modo no
sol e de outro modo na lua, então a identidade do universo existe na diversidade, tal como
a unidade na pluralidade. E, assim, embora o universo não seja nem sol nem lua, é,
todavia, sol no sol e lua na lua. Mas Deus não é sol no sol e lua na lua, mas é aquilo que
é o sol e a lua sem pluralidade e diversidade» (267)

(265) «Plurimum difficile est videre quomodo unum omnia quod essentialiter in omnibus», DPo,
58.
(266) «Et non videbis varia entia nisi apparitionis ipsius posse varios modos; quiditatem autem non
posse variam esse, quia est posse ipsum varie apparens», AP, 9. Ou como também escreve em De Principio:
«E com respeito a todas as coisas criadas por ele, o criador não é a mesma coisa que as suas criaturas, assim
como nem a causa [é a mesma coisa] que o causado. Todavia, o criador não está tão distante [da sua criação]
para que seja outro. Pois, [se assim fosse], então do criador e da sua criação, que juntos constituirão um
número [isto é, uma pluralidade], teria que haver algum princípio, uma vez que de toda a multiplicidade
uma unidade é princípio» — «Et in omnibus per ipsum constitutis creator non est idem cum sua creatura,
sicut nec causa cum causato, sed non adeo longe abest, quod sit quid alterum; oporteret enim ipsius et
creaturae, quae numerum constituerent, esse aliquod principium, cum omnis multitudinis unitas sit
principium», DP, 38. Sobre esta ideia, Vincent Martin correctamente escreve que
«Isto é, a criatura não é um ser e Deus outro ser, como se dois seres fossem envolvidos. O ser da
criatura não é algo outro do ser divino; mas, o ser da criatura é intrinsecamente constituído pelo ser divino»
— «That is, a creature is not one being and God another being, as though two beings were involved. The
being of a creature is not something other that the divine being; rather, the being of a creature is intrinsically
constituted by the divine being», MARTIN, Vincent, The dialectical process in the philosophy of Nicholas
of Cusa, p.258.
(267) «Nam sicut deus, cum sit immensus, non est nec in sole nec in luna, licet in illis sit id quod
sunt absolute, ita universum non est in sole nec luna, sed in ipsis est id quod sunt contracte. Et quia quiditas
solis absoluta non est aliud a quididate absoluta lunae — quoniam est ipse deus, qui est entitas et quiditas
absoluta omnium —, et quiditas contracta solis est alia a quiditate contacta lunae — quia ut quiditas absoluta
rei non est res ipsa, ita contracta non est aliud quam opsa —, quare patet quod, cum universum sit quiditas
contracta, quae alitere st in sole contracta et aliter in luna, hinc identitas universi est in diversitate sicut
unitas in pluralitate. Unde universum, licet non sit nec sol nec luna, est tamen in sole sol et luna luna. Deus

117
Antes de aprofundar as ideias expressas neste trecho, temos de lembrar que em
De docta ignorantia, Nicolau de Cusa considera o Universo como que um passo
intermédio na manifestação do Absoluto nas criaturas, chegando a afirmar que se deus é
a essência absoluta, então o universo é a própria essência contraída: «Efectivamente, Deus
é a quididade absoluta do mundo ou do universo. Mas o universo é a própria quididade
contraída» (268) o que, de facto, é fácil entender uma vez que o absoluto se contrai no
universo.
Todavia, tendo em conta aquilo que até aqui foi visto, nomeadamente, a identidade
entre deus e universo, de modo a melhor compreender a relação entre a essência absoluta,
a contraída e as coisas, devemos pensar deus tanto como a essência absoluta, como a
essência contraída.
Retomando o excerto citado, veja-se como a relação descrita entre deus enquanto
essência absoluta e os entes coincide com a descrição acima analisada por meio da
complicatio.
A essência absoluta não é nenhum dos entes, entenda-se por isso, nenhum dos
entes tal como determinadamente são, mas é aquilo que, de modo absoluto estes são. Isto
é, a essência absoluta é aquilo que todo o ente determinado é sem a sua determinação, um
ente, algo que é. Neste sentido, é claro que a essência absoluta é igual em todo o existente
ou, pondo a questão noutros termos, todo o existente é a própria essência absoluta, isto é,
o próprio deus.
Por outro lado, a descrição da relação entre a essência determinada e as coisas
coincide, por sua vez, com a descrição por via da explicatio: deus enquanto essência
contraída é, em cada um dos entes, o próprio ente, havendo, por conseguinte, uma
pluralidade variada de essências determinadas (269).

autem non est in sole sol et in luna luna, sed id quod est sol et luna sine pluraliter et diversitate», DI, II, IV,
115.
(268) «Est enim deus quiditas absoluta mundi seu universi. Universum ver est ipsa quiditas
contracta», DI, II, IV, 116, p.83.
(269) Jasper Hopkins, ao considerar que deus está nas coisas apenas absolutamente, isto é, apenas
enquanto o puro ser destas, deixa de lado a contracção de deus em cada coisa enquanto aquela coisa. Isto
fica patente quando escreve que: «por exemplo, Deus pode ser dito ser sol. Mas Ele não é o sol sensível
que foi criado por (isto é, explicado a partir de) Ele» — «For example, God may be said to be sun. But He
is not the sensible sun which was created by (i.e., unfolded from) Him» HOPKINS, Jasper, A concise
introduction, p.28, ou, numa outra formulação: «Portanto Deus não é o sol na medida em que o sol é
distincto da lua. Em vez disso, Ele é sol na medida em que o sol não é distincto da lua, na medida em que
é o próprio ser incondicionado» — «Thus God is not sun insofar as sun is distinct from moon. Rather, He
is sun insofar as sun is not distinct from moon, insofar as it is unqualified Being itself», idem.

118
Ora, parece que, por via destas explicações, deus coincide com os entes finitos em
ambas as situações. Qual é então a razão pela qual em tantas passagens Nicolau de Cusa,
ao mesmo tempo que defende esta identidade entre deus e a criatura, defende igualmente
a sua diferença? Em que sentido ou sob que ângulo podemos afirmar a diferença entre
deus, o absoluto o ser, e a criatura, o finito, o existente? E, claro está, por outro lado, em
que sentido, afinal, podemos sustentar a identidade entre estes?
Quanto à última questão, Nicolau de Cusa oferece-nos uma categórica resposta:
todas as coisas são deus apenas enquanto complicatio, ou, por outras palavras, deus é tudo
na medida em que é o ser de tudo.

Também quando abordada a questão do universo Hopkins mantém a mesma posição: «Em nenhum
lado ensina Nicolau que o universo é a contracção de Deus. Ainda que Deus seja maximum absolutum e o
universo seja maximum contractum, todavia, mamimum contractum não é maximum absolutum
contractum» — «Nowhere does Nicholas teach that the universe is the contraction of God. Although God
is maximum absolutum and the universe is a maximum contractum, nevertheless maximum contractum is
not maximum absolutum contractum» HOPKINS, Jasper, ibidem, p.37, ou ainda: «Mas em última análise,
ainda que o universo seja explicado a partir de Deus, ele não é Deus explicado; é uma imagem (ou
apararição) de Deus, não a essência contraída de Deus (ainda que Deus é a essência absoluta do universo)»
— «But in last analysis, even though the universe is unfolded from God, it is not God unfolded; it is the
image (or appearance) of God, not the contracted essence of God (even though God is the absolute essence
of the universe) concluindo algumas linhas adiante que: «portanto o problema com que o Nicolas ficou não
é o problema do panteísmo» — «Thus the problem Nicholas is left with is not the problem of pantheism»
ibidem, p.38.
Começaria por perguntar simplesmente como se pode afirmar isto quando, pela definição da
explicatio, nos é dito que em cada ente finito deus é aquilo que determinada e finitamente este ente é, isto
é, que deus se contraí enquanto o próprio finito? Claro que, como foi possível observar, o Absoluto não
coincide totalmente com o finito. Não obstante, esta não identificação não tem por base os argumentos
apresentados por Hopkins, uma vez que, como igualmente foi possível verificar, o próprio Nicolau de Cusa
afirma em várias passagens a contracção do Absoluto enquanto finito.
Além destas questões, queria sublinhar também o modo como a primeira formulação de Hopkins
desenha a relação absoluto-mundo ou deus-criatura de forma polarizada: deus está aqui e, a partir dele,
explica, para uma exterioridade, para um fora, as criaturas.
De facto, Hopkins vai mais longe e afirma que uma essência absoluta contraída seria uma auto-
contradição: «Mas, de facto, a expressão “essência absoluta num estado contraído” seria auto-
contradictória, tendo em conta o uso que Nicolau faz destes termos: a essência absoluta nunca está num
estado contraído» — «But, in fact, the expression "absolute essence in a state of contraction" would be self-
contradictory, as Nicholas uses these terms: absolute essence is never in a state of contraction», ibidem,
p.37. A meu ver, este tipo de leitura, procura imprimir ao discurso cusano acerca do absoluto, se quisermos,
procura imprimir ao próprio absoluto, uma matriz de pensamento completamente desadequada ao tema em
causa, que é a lógica fundada no princípio da não-contradição, na qual o Absoluto e o finito, por princípio,
se opõem e excluem mutuamente. Podemos dizer que, utilizando a terminologia de Nicolau de Cusa, esta
é uma leitura ou interpretação que segue a via racional.
Para rematar, diria que a intenção de Hopkins é preservar uma transcendência divina que, a meu
ver, se afasta das verdadeiras intenções de Nicolau de Cusa. O Cusano não pretende, tal como Hopkins por
estas linhas procura mostrar, afirmar a transcendência de deus enquanto uma colocação sua num patamar
outro, acima do Mundo ou dos entes finitos. De facto, isto levaria, como já várias vezes afirmamos, a um
dualismo ontológico. É justamente pelo facto de o Absoluto contrair-se e o mundo na sua totalidade e cada
ente na sua individualidade serem deus contraído que o Absoluto continua e pode continuar a ser chamado
Absoluto, na medida em que aquilo que é criado não é diferente de si mesmo, mas sim, é ele próprio
manifestado, ex-posto em diferentes modos de ser.

119
Esta é, aliás, a resposta que Nicolau de Cusa apresenta contra as acusações feitas
por Wenck na sua Ignota Litteratura quando refere que Nicolau de Cusa considera deus
uma criatura (270) ou que os seus princípios estabelecem a identidade entre deus e a
criatura (271).
Na concisa formulação cusana da Apologia doctae ignorantiae: «Ele [Wenck] não
entende como complicando [deus] é todas as coisas e explicando não é nenhuma das
coisas» (272) ou, como também clarifica em De Possest: «complicando, ele é todas as
coisas» (273).
Resta agora perguntar: qual é a razão pela qual Nicolau de Cusa admite a
identidade de deus com a criatura apenas como complicatio, mas não admite como
explicatio, uma vez que, tal como vimos, ele é igualmente todas as coisas enquanto
explicatio.
Antes de mais, de salientar que é justamente na rejeição da identidade de deus
com a criatura enquanto explicatio que, para alguns comentadores (274), reside a

(270) WENCK, Johann, IL, 29. «Além disto, no seu argumento de apoio ele ensina que Deus é uma
criatura»
(271) Ibidem, 37. «Este corolário faz a criatura igual ao Criador»
(272) «et non intelligit, quomodo est complicative omnia et nihil omnium explicative», Ap, 31.
Umas páginas antes deste trecho, numa formulação algo mais intrincada, Nicolau de Cusa tinha igualmente
colocado o problema. Retomando o posicionamento de Wenck quanto a sua tesa da coincidentia
oppositorum e afirmando que «o [nosso] adversário parece não entender o que querias [dizer] pela
coincidência dos contraditórios. Pois, como ouviste, ele atribui-te — ainda que falsamente — a afirmação
de que a criatura coincide com o Criador» — «Non videtur impugnator intellexisse, quid volueris per
coincidentiam contradictoriorum. Nam, ut audisti, tibi – licet falso – adscribit, quod asseras creaturam cum
creatore coincidere» Ap, 16, responde de imediato a esta acusação escrevendo que: «o amante da verdade
nega que se infira tal [doutrina] a partir dos livros da Douta Ignorância, nem qualquer [outra] coisas que
[o nosso adversário] infere deles, [o amante da verdade] admitiria do modo [como o nosso adversário] a
infere. Pois, dizer que a imagem coincide com o seu exemplar e o causado [coincide] com a sua causa, é
mais [característico] de um homem [que] não [é] inteligente [insensati] [do que] de um homem enganado.
Pois, por isso, de que todas as coisas estão em Deus como o causado na causa, não se segue que o causado
é a causa — ainda que na causa não seja senão a causa, como tens frequentemente ouvido no que diz
respeito a unidade e ao número» — «Nam tale quid ex libellis Doctae ignorantiae veritatis amator haberi
negat neque quidquam eorum, quae elicit, admitteret modo, quo elicit. Nam dicere imaginem coincidere
cum exemplari et causatum cum sua causa potius est insensati hominis quam errantis. Per hoc enim, quod
omnia sunt in Deo ut causata in causa, non sequitur causatum esse causam, – licet in causa non sint nisi
causa, sicut de unitate et numero saepe audisti», Ap, 16.
A passagem deve ser lida com muito cuidado, pois facilmente pode levar a erros interpretativos
devido a linguagem usada. A meu ver, aquilo que está em causa não é tanto um jogo entre uma interioridade
identitária e uma exterioridade fragmentadora e diferenciador, mas sim, a exposição da mesma relação que
por intermédio da complicatio e explicatio ou da essência absoluta e contraída é explicitada: enquanto estão
na causa, isto é, enquanto estão em deus, ou seja, na medida em que são, as coisas, o causado, são o próprio
deus, a causa. Todavia, vistas as coisas de um outro ponto de vista, isto é, do patamar da sua existência
contraidamente dada, o causado não se pode identificar com a causa.
(273) «Ipsum complicite esse omnia», DPo, 8.
(274) Veja-se, por exemplo, a posição de João Maria André já assinalada por nós na nota 142.

120
derradeira rejeição cusana do panteísmo e a salvaguarda de um deus transcendente,
diferente, outro, da criatura.
A meu ver, esta posição revela uma incompreensão nítida de dois problemas
fundamentais:
primeiro, que a própria coisa contraidamente explicada é deus determinado
daquele modo.
segundo e sobretudo, que pela rejeição da identidade de deus, do absoluto com o
finito nos termos da explicatio, Nicolau de Cusa procura não reduzir o ser ao existente,
aquilo que é tudo aquilo que pode ser àquilo que existe (275).
Isto é, por esta rejeição o cardeal alemão nega uma unilateral, absoluta, não-dialéctica
identidade entre o Absoluto e o finito. Isto é, o Absoluto não é apenas aquela coisa finita,
naquele momento determinado, naquela configuração precisa correspondente àquele
estádio de desenvolvimento actual. Sendo ainda mais rigoroso na expressão — e visto
que deus é também aquilo que cada ente, em cada instante, é —, o Absoluto não é apenas
aquilo que ele próprio é num momento determinado, sob uma configuração específica.
Subindo um grau, o Absoluto não se identifica com cada uma das coisas em cada
instante enquanto um somatório morto de entes finitos: deus é isto, é aquilo, é o outro.
Nicolau de Cusa rejeita este tipo de identificação estática e positiva. Aliás, e como vimos
no primeiro capítulo desta tese, é precisamente nesta «infantil» identificação do Absoluto
com o finito que consiste, para Nicolau de Cusa, a maior heresia.
Dito por outros termos, não obstante, tudo aquilo que o existente determinada e
circunscritamente — tanto na singularidade de cada ente como no conjunto ordenado e
racional que constitui enquanto universo — seja o ser, o ser não se resume àquilo que o
ente, num determinado momento e sob uma determinada configuração, é. O ser, não se
pode identificar ou confundir com o existente, apesar de tudo aquilo que o existente é ou
possa ser, seja o ser.
Porquê?

(275) Fazendo referência à censura e à condenação de que foram alvo os escritos de Eriúgena e de
Americus de Bène por terem identificado deus com a forma de todas as formas, Dupré lembra que Nicolau
de Cusa, na sua Apologia doctae ignorantiae, rejeita a posição de Americus de Bène «não porque
considerou a expressão forma omnium necessariamente errónea (ele próprio tem usado forma formarum
[“form of forms”]), mas porque Amaury falhou em distinguir o ser contraído da criatura do ser absoluto de
Deus» —«not because he considered the expresion forma omnium necessarily erroneous (he himself had
used forma formarum [“form of forms”], but because Amaury failed to distinguish the creature’s contracted
being from God’s absolute Being», DUPRÉ, Louis, The Question of pantheism from Eckhart to Cusanus,
p.75. Esta distinção entre contraído e absoluto é precisamente a distinção entre aquilo que existe e aquilo
que é. Uma identificação directa e absoluta entre as duas posições levaria a heresia.

121
Porque o ser é muito mais do que o existente. O ser transcende, o positivo, o dado,
o imediato, no sentido em que é muito mais do que aquilo que em cada instante
determinado é dado.
É esta identidade dinâmica e dialéctica que Nicolau de Cusa pretende estabelecer
(276). Uma identidade do Absoluto com o finito que não se consome numa dada
determinidade ou na imediatez de um instante, mas que perdura ao longo do tempo, que
passa por transformações e desenvolvimentos, que acompanha a mediação de e por um
outro para um outro diferente, sendo, todavia, ele mesmo que neste movimento é posto
como outro.
É para isto que, a meu ver, Nicolau de Cusa aponta numa passagem da obra De
venatione sapientiae onde explica a razão pela qual o nome «uno» é mais adequado para
descrever deus que o nome «ser»: «[o Uno] engloba tanto as coisas que são em acto, como

(276) Não deixa de ser interessante ver como justamente com base nesta diferença entre o ser e o
existente — sem, contudo, captar o seu sentido dialéctico potenciador de uma identidade dinâmica e
totalizante —, Dupré procura mostrar que a posição de Nicolau de Cusa se demarca do panteísmo.
Esboçando a meta do seu trabalho, Dupré escreve o seguinte: «Espero mostrar que o pensador cusano, por
acrescentar a distinção crucial entre conhecimento perspectival e absoluto, afasta muita da ambiguidade
que rodeava os escritos do mestre de Thuring. Nenhum deles [isto é, nem Nicolau de Cusa, nem Eckhart]
pode ser suspeitado de panteísmo se forem lidos no contexto ontológico adequado, ainda que ambos
sustentam uma posição sobre a criação que se desvia da tradicional» — «I hope to show that the Cusan
thinker, by adding the crucial distinction between perspectival and absolute knowledge, dispelled much of
the ambiguity that surrounded the Thuringian master’s writings. Neither of them can be suspected of
pantheism if read in the proper ontological context, though both of them held a position on creation that
deviated from the traditional one» DUPRÉ, Louis, The Question of pantheism from Eckhart to Cusanus,
p.75.
Pondo a questão em outros termos, Dupré coloca como objectivo do seu escrito a demonstração
de que o pensamento de Nicolau de Cusa não pode ser identificado com um pensamento panteísta uma vez
que existe sempre uma diferença, se quisermos, na participação ou uma diferença entre o modo de
manifestação de deus no mundo enquanto mundo ou nos entes enquanto entes e o modo absoluto do divino
enquanto divino. Sendo mais específicos, o ponto de Dupré, tal como é assinalado neste fragmento, consiste
em afirmar que as teses do Nicolau de Cusa não podem ser classificadas como panteístas uma vez que
existe uma distinção abismal entre a mente divina e a mente humana que «coloca a sua posição além da
suspeita de panteísmo». Veja-se ibidem, p.86.
Resta agora perguntar pelo alcance destas afirmações, ainda por mais tendo em conta a sua própria
explicação acerca do conceito de panteísmo que vinca justamente o facto de uma identificação absoluta
entre o criador e a criatura nunca ou quase nunca ser defendida? Como o próprio escreve: «uma total
ausência de distinção [entre criador e criatura] raramente ou nunca ocorre. Até Bruno e Spinoza distinguem
a natura naturans da natura naturata. Mas, além disto, os teístas requerem que a diferença entre o Absoluto
e todos os entes relativos seja concebida como uma dependência causal, traditionalmente expressa pela
noção de criação» — «A total absence of distinction seems to occur rarely, if ever. Even Bruno and Spinoza
distinguish the natura naturans from the natura naturata. But, in addition, theists require that the relation
between the Absolute and all relative being be conceived as one of causal dependence, traditionally
expressed in the notion of creation» DUPRÉ, Louis, The Question of pantheism from Eckhart to Cusanus,
p.74. Também em Nicolau de Cusa encontramos uma distinção, a identidade não é absoluta.
Haverá sempre uma diferença entre aquilo que existe e aquilo que é, na medida em que aquilo que
é, é sempre mais do que aquilo que, em cada momento ou patamar determinado no quadro de um
desenvolvimento temporal, existe. Todavia, não se deve, por isso, concluir que aquilo que existe não é, na
sua totalidade, aquilo que é, claro está, manifestado naquele modo determinado de ser. Utilizando uma
linguagem que não a do Cusano, o fenómeno não esgota a totalidade da essência ainda que a totalidade do
fenómeno não seja outra coisa que a manifestação da essência.

122
as coisas que podem ser feitas. Portanto, o Uno é mais abrangente do que o ser, que é
apenas se for em acto» (277).
O conceito de ser é rejeitado por Nicolau de Cusa por estar vinculado apenas ao
existente, àquilo que é, não tendo em conta toda a riqueza das possibilidades, daquilo que
pode vir a ser. Se quisermos, para Nicolau de Cusa, deus não é aquilo que é, mas sim,
tudo aquilo que pode ser, ganhando assim, a meu ver, e não obstante a evidente falta de
tematização por parte do cardeal cusano, uma dimensão histórica — não obstante
circunscrita à ex-posição daquilo que se encontra complicadamente pré-determinado.
É muito interessante observar que o próprio Wenck se apercebe desta dimensão
histórica da identidade entre deus e a criatura, nomeadamente quando escreve que:
«consequentemente, de tais declarações suas seguir-se-ia que não apenas as criaturas que
existem, mas também criaturas que são possíveis serão Deus — [uma conclusão que é]
contrária ao verso escolhido [como o nosso texto]: “Fique quieto e vê que Eu sou Deus»
(278).
Neste sentido, podemos afirmar que o mundo não foi feito, mas está num
constante fazer ou por fazer. O fazer do mundo não se consumou num instante; o fazer
do mundo é um processo histórico, claro está, de manifestação ou revelação daquele que
é tudo aquilo que pode ser, antecipado, de certo modo, o Geist hegeliano e o seu
movimento histórico de concretização e realização.

Chegados a este ponto, resta-nos ainda responder às questões com as quais


abrimos este último trecho da nossa jornada: como compreender a determinação do
indeterminável já que «apenas deus é absoluto e todas as outras coisas [são] contraídas»
(279)? Como compreender a mutabilidade do imutável, visto que ao manifestar-se se torna
outro? Como explicar a temporalidade daquele que é eterno?
A resposta à estas perguntas reside no movimento identitário do Absoluto—
movimento que estabelece uma identidade ou unidade concreta e uma unidade concreta
em movimento —, de si para si mesmo por intermédio do outro.

(277) «omplectitur autem tam ea quae sunt actu, quam ea quae possunt fieri. Capacius est igitur
unum quam ens, quod non est nisi actu sit», VS, XXI, 59.
(278) WENCK, Johann, IL, 32.
(279) «Solus deus est absolutus, omnia alia contracta», DI, II, IX, 150.

123
Por meio deste movimento identitário dialéctico percebemos que o Absoluto,
mesmo determinando-se nisto e naquilo, permanece absoluto, uma vez que tudo aquilo
que existe e pode existir é sempre uma e a mesma coisa: o próprio Absoluto.
Justamente por se tratar de um movimento de si para si mesmo podemos
igualmente compatibilizar a sua imutabilidade com a sua mobilidade, com a sua
alterabilidade expressa pela explicatio, por esse necessário tornar-se outro da
manifestação. Há mobilidade, há alteração porque se torna num outro; porém, visto que
esse outro é ele próprio, visto que a saída de si coincide com o regresso a si mesmo, o
movimento expresso é igualmente um repouso.
A manifestação temporal não é senão uma expressão ou explicação sensível
daquilo que, sob a forma do Mundo criado ou Verbo, esteve em deus, enquanto deus,
desde a eternidade. A temporalidade não é senão a eternidade sensivelmente explicada.
Assim, aquilo que no plano sensível chamos de «antes» e «depois» é, na verdade,
simultâneo, uma vez que tanto um, como outro, foram ao mesmo tempo criados, ainda
que a sua manifestação sensível seja dada apenas temporal ou sequencialmente (280).

É justamente esta identidade dialéctica do todo que a coincidentia oppositorum


busca assinalar.
A coincidentia oppositorum representa uma tentativa de Nicolau de Cusa de
pensar e exprimir a unidade sem colocar de lado a multiplicidade contraditória do real e,
por conseguinte, sem aniquilar a sua rica e diversa especificidade e determinidade,
diluindo-a numa unidade monolítica, abstracta e vazia, à semelhança de uma escura noite
onde todos os gatos são pardos ou todas as vacas são pretas (281).

(280) A respeito deste tema veja-se, por exemplo, VD, X-XI.


(281) Não deixa de ser interessante a posição que Jasper Hopkins tem acerca das afirmações cusanas
que ora sustentam que deus é a coincidentia oppositorum, ora que deus está para lá dessa mesma
coincidência. Realçando a «perturbante impenetrabilidade» das suas ideias que o levou a consequente
pouco efusiva recepção na «comunidade filosófica anglo-saxónica», mas sobretudo, apontando para a falta
de rigor conceptual e argumentativo de Nicolau de Cusa na exposição das suas ideias, a dado passo do seu
texto, Jasper Hopkins dá o seguinte exemplo daquilo que, a seu ver, corresponderia à uma ambiguidade ou
volatilidade das ideias do cardeal cusano: «Pois às vezes afirma que em Deus todos os opostos coincidem
(in quo coincidunt opposita) e as vezes afirma que Deus está além da coincidência dos contraditórios (ultra
coincidentiam contradictoriorum)», «For sometimes he asserts that in God all opposites coincide (in quo
coincidunt opposita) and sometimes he states that God is beyond the coincidence of contradictories (ultra
coincidentiam contradictoriorum)» HOPKINS, Jasper, A concise introduction to the philosophy of
Nicholas of Cusa, II, p.12.
Na verdade, as afirmações cusanas não são de todo ambíguas ou incoerentes. Ao longo da sua
obra, Nicolau de Cusa esboçou sempre uma diferença crucial na sua epistemologia: o conhecimento
intelectual e a visão intelectual. Ora, o conhecimento intelectual — ainda que consiga ultrapassar as
limitações impostas pela razão regida pelo princípio da não contradição que apenas consegue dar conta dos
opostos sem, todavia, os conciliar —, não obstante a sua capacidade unificadora ou conciliadora dos opostos
numa unidade, continua a ser um conhecimento conceptual. Assim, situando-nos neste patamar, podemos

124
Assim, a coincidentia oppositorum não diz respeito à uma homogénea unidade,
mas sim, à uma unidade concreta dos contrários com base num plano último de pertença
e identidade que permite ao múltiplo, enquanto exibe as suas características peculiares,
ser igualmente ou constituir igualmente uma unidade, na medida em que tudo aquilo que,
no plano sensível, se afigura como determinado, diferente ou contrário ao outro pelas suas
específicas características, partilha, não obstante, um elemento unificador: o ser.
Assim, tal como se passa com a complicatio, a coincidentia oppositorum não
representa uma unidade indeterminada inicial, na qual, não havendo determinação
alguma, tudo coincide com tudo (na verdade, como foi possível ver, para Nicolau de Cusa
nem mesmo nesta unidade inicial encontramos tal coisa, dado que todas as coisas estão
já formalmente pré-determinadas).
A riqueza e a profundidade da categoria de coincidentia oppositorum surge
quando pensada e colocada no plano da multiplicidade contraidamente explicada, desde
que essa multiplicidade não seja vista, lida, interpretada, pensada, a partir da sua
deslumbrante aparição multiforme, diversa e contraditória, mas sim, a partir da sua
subjacente unidade.

afirmar que o absoluto é coincidentia oppositorum. Porém, dando um passo para cima e colocando-nos no
degrau da visão intelectual, vemos que o absoluto é infinito e compreendemos que não o podemos
compreender, restando-nos, então, apenas dizer que, de facto, deus está além desta sua conceptual definição
enquanto coincidentia oppositorum.
A bonita metáfora do muro da coincidência dos opostos que cerca o paraíso, cuja entrada é
guardada pelo espírito da razão que, somente quando vencido, permite a entrada no muro e a posterior visão
de deus — «E descobri o lugar em que te revelas, cercado pela coincidência dos contraditórios. E este é
muro do paraíso em que habitas, cuja porta defende o espírito altíssimo da razão que, a não ser que seja
vencido, não abrirá a entrada. Por isso, é para lá da coincidência dos contraditórios que poderás ser visto e
nunca aquém dela» — «Et repperi locum in quo revelate reperieris, cinctum contradictoriorum coincidentia.
Et iste est murus paradisi, in quo habitas, cuius portam custodit spiritus altissimus rationis, qui nisi vincatur,
non patebit ingressus. Ultra igitur coincidentiam contradictoriorum videri poteris et nequaquam citra», VD,
IX, 37. Sobre esta metáfora veja-se ainda VD, X, mas também XII —, que representa um perfeito exemplo
desta importante distinção operada por Nicolau de Cusa entre os vários planos do conhecimento: racional,
intelectual e a visão intelectual. Ainda sobre o tema da coincidenta oppositorum, parece-me igualmente
problemática, pelas mesmas razões acima esboçadas, a posição de Hopkins que considera equivalente as
teses que sustentam deus ora enquanto coincidentia oppositorum, ora enquanto estando para lá desta: «Esta
doutrina [ entenda-se da coincidência dos opostos] é expressa em três formulações alternativas mas
equivalentes: (1) em deus todos os opostos coincidem; (2) deus está acima (antes) de toda a oposição; (3)
deus está para lá da coincidência dos opostos» — «This doctrine is expressed in three alternative but
equivalent formulas: (1) in God all opposites coincide; (2) God is above (prior to) all opposition; (3) God
is beyond the coincidence of opposites», HOPKINS, Jasper, A concise introduction, p.21.

125
5. Em jeito de conclusão: uma posição crítica acerca da proposta cusana.

A resposta oferecida por Nicolau de Cusa à questão da relação entre o uno e o


múltiplo é, sem dúvida alguma, profunda, complexa e rica. Uma verdadeira tentativa de
pensar a unidade dialéctica do real e a dialéctica real do mesmo, sem perder de vista a
rica e exuberante multiplicidade que na experiência sensível imediata se nos põe diante e
perante a qual a pergunta pela unidade desabrocha. Não obstante esta tentativa digna dos
mais elevados louvores, uma posição crítica perante a mesma é indispensável.
Deste modo, analisando a sua proposta de um ponto de vista exterior, igualmente
dialéctico, mas materialista, não podemos deixar de apontar para a fractura por esta
introduzida no real.
É claro que, para muitos, esta comparação será injusta ou mesmo sem sentido. Por
que comparar a doutrina cusana com o materialismo dialéctico? A razão é simples: ambas
procuram pensar o real na sua unidade e movimento dialécticos. Dito isto, não se trata de
difamar as posições de Nicolau de Cusa, mas sim, de procurar compreender —
analisando-as de um ponto de vista cuja resposta à esta demanda é, a meu ver,
consequente —, as suas consequências últimas.
Para melhor compreender esta ideia, citaria as seguintes linhas da obra Totalidade
e Contradição de Barata-Moura que tocam, sem, todavia, visar Nicolau de Cusa,
precisamente neste tema. Assim, tendo como exemplos Spinoza e Hegel, Barata-Moura
escreve o seguinte:
«A unidade que corresponde a esta estrutura de totalidade desenvolvendo-se, a diferentes
níveis e segundo diversas modalidades, não é uma unidade abstracta e transcendente,
hipostasiada como ens realissimum ou como realidade primeira, e instância
paradigmática.
Esta totalidade (materialista, e dialéctica) tão-pouco é uma unidade imanente entendida à
maneira da substantia de Spinoza, onde «deus» e a «Natureza» coincidem, ou, de uma
forma mais dinâmica e dialectizada, à maneira do Geist absoluto hegeliano, que, no seu
próprio seio, contrapõe a si a «Natureza» como momento externado da sua negação, e
«supera» este seu «estranhamento» a fim de poder reunificar-se num estádio superior de
auto-consciência» (282)

Veja-se como a unidade do real pensada enquanto totalidade, de um ponto de vista


materialista e dialéctico se demarca de propostas como à de Spinoza ou Hegel ou,
poderíamos nós acrescentar, de Nicolau de Cusa, na medida em que, nestas doutrinas, não
obstante a identidade entre a «Natureza» e a entidade primeira que opera enquanto
condição de possibilidade da sua existência, encontramos uma divisão do e no real: natura

(282) BARATA-MOURA, José, Totalidade e Contradição, pp.254-255.

126
naturante e natura naturata, Espírito e Natureza, deus e mundo. Como continua Barata-
Moura por explicar:
«Todas estas formas — relevando de uma inaugural «transcendência» decretada, ou de
um intento de recondução principial a uma esfera de «imanência» reconfigurada —
tendem, no fundo (segundo graus de acentuação diversos e ponderáveis, é certo), a
introduzir, mais ou menos timidamente, uma diferença ou uma dualidade ontológicas no
âmbito do real. Diferença ou dualidade estas que, todavia, nalguns casos, pretendem ser
conservadas — um pouco paradoxalmente, diga-se — a par com uma persistência da
proclamação do carácter uno do real […]
No entanto, as formas acima esboçadas — ora num registo de «transcendência», ora num
regime de «imanência», para a sua consideração doutrinal — é que não serão, porventura,
as mais indicadas, ou as mais correctas, no que diz respeito ao cumprimento efectivo do
desiderato almejado, particularmente, se, no desempenho da tarefa, se procura manter o
seu assentamento e decurso, uma fundação objectiva» (283)

Quanto ao caso do Nicolau de Cusa, a apresentação da totalidade, ora como deus,


ora como Mundo, dependendo do plano de análise subjacente, é um claro indício desta
maneira tímida e, diria eu, completamente contra a vontade do próprio autor, de introduzir
uma divisão no real.

A fragmentação social, cultural, étnico-racial, cada vez mais acentuada e cada vez
mais radical, que empapa a nossa vida contemporânea, torna actual a questão da unidade.
Porém, a sua demarcação não basta.
O seu estudo torna-se necessário.
Um estudo que não deve procurar a resposta num além imaginário. Um estudo
que, após encontrada uma resposta, não deve quedar no estéril contentamento.
Mas sim, um estudo da unidade a partir do real e para a transformação do real.
Não da unidade niveladora, homogeneizante, uniformizante.
Mas da unidade que, no seu seio, abarque e concilie a multiplicidade e a diferença.
Que unifique o múltiplo preservando, todavia, as suas características peculiares.
Extraída do próprio real, nos mais diversos domínios, pelos mais diversificados
meios, a concretização desta unidade torna-se imperativa.

(283) Ibidem, pp.256-257.

127
BIBLIOGRAFIA

OBRAS DE NICOLAU DE CUSA — NO ORIGINAL LATIM


NICOLAI DE CUSA, De docta ignorantia in Opera omnia iussu et auctoritate
Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita, editada por Ernest
Hoffmann e Raymond Klibansky, Felix Meiner Verlag, vol. I, Hamburg, 1959.

_________________, Apologia Doctae Ignorantiae in Opera omnia iussu et auctoritate


Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita, editada por Raymond
Klibansky, Felix Meiner Verlag, vol. II, 2007.

_________________, De Conjecturis in Opera omnia iussu et auctoritate Academiae


Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita, editada por Karl Bormann, Josef
Koch e Hans Gerhard Senger, Felix Meiner Verlag, vol. III, Hamburg, 1972.

_________________, De deo abscondito, De quaerendo deum, De filiatione dei, De dato


patris luminum, De genesi in Opera omnia iussu et auctoritate Academiae Litterarum
Heidelbergensis ad codicum fidem edita, editada por Paul Wilpert, Felix Meiner Verlag,
vol. IV, opuscula I, Hamburg, 1959.

_________________, Idiota de sapientia, de mente, de staticis experimentis in Opera


omnia iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem
edita, editada por Ludwig Baur e Renate Steiger, Felix Meiner Verlag, vol. V, Hamburg,
1983.

_________________, De visione Dei in Opera omnia iussu et auctoritate Academiae


Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita, editada por Heide Dorothea
Riemann, Felix Meiner Verlag, vol. VI, Hamburg, 2000.

_________________, Dialogus de Ludo Globi in Opera omnia iussu et auctoritate


Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita, editada por Hans
Gerhard Senger, Felix Meiner Verlag, vol. IX, Hamburg, 1998.

_________________, Tu quis es <De principio> in Opera omnia iussu et auctoritate


Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita, editada por Karl
Bormann e Heide Dorothea Riemann, Felix Meiner Verlag, vol. X-2b, opuscula II,
fasciculus II, Hamburg, 1988.

128
_________________, De Beryllo in Opera omnia iussu et auctoritate Academiae
Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita, editada por Karl Bormann e Hans
Gerhard Senger, Felix Meiner Verlag, vol. XI-1, Hamburg, 1988.

_________________, Trialogus de Possest in Opera omnia iussu et auctoritate


Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita editada por Renate
Steiger, Felix Meiner Verlag, vol XI-2, Hamburg, 1973.

_________________, Compendium in Opera omnia iussu et auctoritate Academiae


Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita editada por Karl Bormann, Felix
Meiner Verlag, vol. XI-3, Hamburg, 1964.

_________________, De venatione sapientiae, De apice theoriae in Opera omnia iussu


et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita editada por
Raymond Klibansky e Hans Gerhard Senger, Felix Meiner Verlag, vol. XII, Hamburg
1982.

_________________, De Aequalitate, ed. Paris, II, 1, consultada em: www.cusanus-


portal.de.

OBRAS DE NICOLAU DE CUSA — TRADUÇÕES

Tradução inglesa de Jasper Hopkins (disponível em: www.jasper-hopkins.info)


NICOLAU DE CUSA, De docta ignorantia trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.
Banning Press, 2ª edição, Minneapolis, 1985.

__________________, De Conjecturis, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.


Banning Press, Minneapolis, 2000.

__________________, De deo abscondito, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.
Banning Press, Minneapolis, 1994.

__________________, De quaerendo deum, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur
J. Banning Press, Minneapolis, 1994.

129
__________________, De filiatione dei, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.
Banning Press, Minneapolis, 1994.

__________________, De dato patris luminum, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The
Arthur J. Banning Press, Minneapolis, 1983.

__________________, De genesi, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J. Banning
Press, Minneapolis, 1994.

__________________, Apologia Doctae Ignorantiae, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The
Arthur J. Banning Press, Minneapolis, 1981

__________________, Idiota de sapientia, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.
Banning Press, Minneapolis, 1996.

__________________, Idiota de mente, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.
Banning Press, Minneapolis, 1996.

__________________, Idiota de staticis experimentis, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The
Arthur J. Banning Press, Minneapolis, 1996.

__________________, De visione Dei, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.
Banning Press, 3ª edição, Minneapolis.

__________________, De Beryllo, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J. Banning
Press, Minneapolis, 1998.

__________________, De Aequalitate, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.


Banning Press, Minneapolis, 1998.

__________________, De principio, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.


Banning Press, Minneapolis, 1998.

130
__________________, Trialogus de Possest, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur
J. Banning Press, Minneapolis, 1986.

__________________, De non-aliud, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.


Banning Press, Minneapolis, 1987.

__________________, Dialogus de Ludo Globi, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The
Arthur J. Banning Press, Minneapolis, 2000.

__________________, De venatione sapientiae, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The


Arthur J. Banning Press, Minneapolis, 1998.

__________________, Compendium, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.


Banning Press, Minneapolis, 1996.

__________________, De apice theoriae, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur J.
Banning Press, Minneapolis, 1998.

Tradução portuguesa de João Maria André


NICOLAU DE CUSA, De docta ignorantia, trad. pt. por João Maria André, Fundação
Calouste Gulbenkian, 3ª edição, Lisboa, 2012.

__________________, De visione dei, trad. pt. por João Maria André, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2ª edição, Lisboa, 1998.

__________________, De non aliud, trad. pt. por João Maria André, Edições
Afrontamento, edição bilingue, Porto, 2012.

Tradução portuguesa de Júlio Fragata e Alberto Alves de Sousa


NICOLAU DE CUSA, De deo abscondito, trad. pt. por Júlio Fragata e Alberto Alves de
Sousa, Faculdade de Filosofia de Braga, 1964.

131
Tradução romena de Mihnea Moroianu
NICOLAU DE CUSA, De deo abscôndito, De querendo deum, De Genesi, Idiota de
Sapientia, Idiota de Mente, trad. ro. por Mihnea Moroianu, Coincidentia Oppositorum,
vol. I, edição bilingue, Polirom, Iasi, 2008.

_____________, De pace fidei, De Beryllo, De ludo globi, trad. ro. por Mihnea Moroianu,
Coincidentia Oppositorum, vol. II, edição bilingue, Polirom, Iasi, 2008.

ESTUDOS SOBRE NICOLAU DE CUSA

ALFSVÅG, Knut, Explicatio and complicatio: On the understanding of the


relationship between God and the world in the work of Nicholas Cusanus, disponível em:
www.academia.edu/3739151/Explicatio_and_complicatio_On_the_understanding_of_t
he_relationship_between_God_and_the_world_in_the_work_of_Nicholas_Cusanus

BEIERWALTER, Werner, Identità e differenza como principio del pensiero


cusaniano in Identità e Differenza, trad. it. por Salvatore Saini, Pubblicazioni della
Università Cattolica del Sacro Cuore, parte III, cap. I, pp. 145-173, Milano, 1989.

COLOMER, Eusebio, Nicolau de Cusa (1401-1464), Faculdade de Filosofia de


Braga, 1964.

D’AMICO, Claudia, “Apofatismo y doble negación en el neoplatonismo


tardomedieval: Meister Eckhart y Nicolás de Cusa”, Neoplatonismo, mística e linguagem,
pp. 117-140, 2013.
DUPRÉ, Louis, The Question of Pantheism from Eckhart to Cusanus in Cusanus.
The legacy of learned ignorance, The Catholic University of America Press, cap.4, pp.74-
88, Washington, D.C, 2006.

FERRER, Diogo, A dupla negação em Nicolau de Cusa e Hegel, in Coincidência


dos opostos e concórdia: caminhos do pensamento em Nicolau de Cusa, pp.187-199
Faculdade de Letras Coimbra, 2001.

132
HOPKINS, Jasper, A concise introduction to the philosophy of Nicholas of Cusa,
University of Minesota Press, Minneapolis, 1978, disponível em: www.jasper-
hopkins.info.
_______________, Nicholas’s of Cusa metaphysic of contraction, The Arthur J.
Banning Press, Minneapolis, 1983, disponível em: www.jasper-hopkins.info.

_______________, Nicholas of cusa on learned ignorance. A Translation and an


Appraisal of De Docta Ignorantia, The Arthur J. Banning Press, 2ª ed, 2ª impressão,
Minneapolis, 1990, disponível em: www.jasper-hopkins.info.

______________, Nicholas of Cusa and John Wenck’s Twentieth-Century


counterparts in A Miscellany on Nicholas of Cusa, The Arthur J. Banning Press, parte I,
cap. I, pp. 3-39, Minneapolis, 1994, disponível em: www.jasper-hopkins.info

______________, Nicholas of Cusa’s Dialectical Mysticism – Interpretative study


of De Visione Dei, The Arthur J. Banning Press, 2ª edição, 2ª impressão, 1996, disponível
em: www.jasper-hopkins.info.

______________, Nicholas of Cusa metaphysical speculations, The Arthur J.


Banning Press, vol. II, part. I, Minneapolis, 2000, disponível em: www.jasper-
hopkins.info.

HUDSON, Nancy, “Divine Immanence: Nicholas of Cusa’s understanding of


theophany and the retrieval of a ‘new’ model of God”, The Journal of Theological
Studies, Oxford University Press, vol. 56, nº2, 2005.

JOÃO MARIA ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação no discurso


filosófico de Nicolau de Cusa, Fundação Calouste Gulbenkian, Braga, 1997.

MARTIN, Vincent, “The Dialectical Process in the Philosophy of Nicholas of


Cusa”, Laval théologique et philosophique, Université Laval, vol. 5, nº2, 1949,

MORAN, Dermot, “Pantheism in Eriugena and Cusa”, American Catholic


Philosophical Quarterly, vol. LXIV, nº1, 1990.

133
MOROIANU, Mihnea, “Leibnizianul de dinainte de Leibniz” — Aspecte ale vieții
şi filosofiei lui Nicolaus Cusanus in Coincidentia Oppositorum, ed. bilingue, vol. I, pp.19-
60, Polirom, Iasi, 2008.

SCHULZ, Walter El Dios de la Metafísica Moderna, trad. esp. do original alemão


Der Gott der neuzeitlichen Metaphysik por Filadelfo Linares, Fondo de Cultura
Economica, Mexico, 1961.

WENCK, Johann, De ignota literatura, trad. ing. por. Jasper Hopkins, The Arthur
J. Banning Press, 3ª edição, Minneapolis, 1988.

OUTRAS OBRAS
BARATA-MOURA, Jóse, Totalidade e Contradição. Acerca da dialéctica, Edições
Avante!, 2ª edição, Lisboa, 2012.

KIRK, RAVEN, SCHOFIELD, Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. de Carlos Alberto


Louro Fonseca, Fundação Calouste Gulbenkian, 8ª edição, Lisboa, 2013.

HEGEL, G.W.F, Ciencia de la Lógica, trad. es. por Augusta e Rodolfo Mondolfo,
Ediciones Solar, 2ª edição,1968.

_____________, Fenomenologia do Espírito, trad. port. por Paulo Meneses, Vozes, 1992.

_____________, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome, trad. port. por Artur
Morão, Edições 70, Lisboa, 2018.

____________, Propedêutica Filosófica, trad. port. por Artur Morão, Edições 70, Lisboa,
2018.

SPINOZA, Baruch, Ethica, disponível em: http://users.telenet.be/rwmeijer/spinoza/


works.

134
________________, Complete Works, trad. ing. por Samuel Shirley, Hackett Publishing
Company, Inc. Indianapolis I Cambridge, 2002.

OBRAS DE REFERÊNCIA

“Panteísmo” in: Verbo, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, ed. Verbo, Lisboa/São


Paulo, 1998, cols. 1326-1330.

“Pantheism” in The cambridge dictionary of philosophy, Cambridge University Press,


1995, pp. 556

“Pantheism” in Standford Encyclopedia of Philosophy, disponível em:


www.plato.stanford.edu/entries/pantheism/

135

Você também pode gostar