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Diário de Notícias 22 de fevereiro de 2023

Entrevista a António Nóvoa

Reimagining our Futures Together é o terceiro relatório da UNESCO, datado de 2021, dedicado
ao futuro da educação. Na abertura do documento é salientada a necessidade de "um novo
contrato social para a educação que possa reparar as injustiças enquanto transforma o
futuro". A que injustiças alude o documento e que propostas apresenta para as reparar?

Estamos a viver a maior transformação de que há memória na história da educação. O


contrato social celebrado no século XIX tinha dois grandes pilares: a obrigatoriedade escolar
para a infância e um modelo escolar normalizado em torno da sala de aula. A escola pública
tornou-se uma instituição central, talvez mesmo, como escreve Darcy Ribeiro, "a maior
invenção do mundo". Este contrato cumpriu o seu papel, mas já não é suficiente. A educação
tem de se renovar, valorizando a relação entre gerações e novos ambientes educativos. Trata-
se de pensar a educação para além da escola, em todas as idades, tempos e lugares. No espaço
público da cidade. E, na escola, construir ambientes para todos e onde todos aprendam. Só
assim poderemos reparar exclusões e injustiças do passado. Para ser transformadora, a escola
tem ela própria de se transformar.

Num tempo de desinformação e retrocesso em matéria de confiança na ciência, os currículos


escolares estão à altura de promover o compromisso de defender a verdade?

É inquestionável a importância da ciência e da educação científica. Os alunos devem adquirir


conhecimentos, mas também compreender o modo como as diferentes disciplinas se
organizam e produzem conhecimento. É isso que lhes permitirá um olhar crítico, esclarecido,
sobre as "inverdades" que circulam a um ritmo alucinante. Frequentemente, o problema não
está nos currículos, mas na pedagogia. Há duas ideias centrais: a convergência entre disciplinas
e a pedagogia do trabalho. A revolução da convergência, título de um relatório do MIT, alerta-
nos para a necessidade de uma educação construída em torno de temas e problemas, com
base em projetos de investigação, produção e criação dos alunos. Por isso, o mais importante é
sempre o trabalho dos alunos, a forma como estudam, procuram, criam, resolvem problemas,
individual e coletivamente. Ninguém se educa sozinho. Precisamos dos outros para nos
educarmos. A pedagogia é tudo menos facilitismo. É conseguir que os alunos trabalhem mais,
e não menos, mas que o façam com sentido, emoção e curiosidade.

"O lugar da Escola vem sendo discutido com ardor e entusiasmo. Após um século de enormes
progressos, surgem sinais claros de insatisfação e de mal-estar (...) Há cada vez mais alunos
que abandonam a escola privados de tudo: sem um mínimo de conhecimentos e de cultura,
sem o domínio das regras básicas da comunicação e da ciência, sem qualquer qualificação
profissional". O professor deixou estas palavras na Revista Saber e Educar, em 2006. Volvidos
17 anos, que análise faz desta mesma realidade?

A realidade está pior. A pandemia cavou novas e profundas desigualdades. Segundo a


UNESCO, no mundo, metade dos alunos terminam a escola sem terem aprendido
praticamente nada. É inaceitável. Muitos, consideram que é preciso investir mais na educação.
Têm razão. Mas não basta. É preciso também que haja uma metamorfose da escola, uma
mudança da forma e da configuração da escola. Não vale a pena esperar por uma novidade
extraordinária, que venha de uma lei, de uma reforma, de um método ou de uma tecnologia. A
novidade está naquilo que, hoje, já se faz em tantas escolas e que precisamos de conhecer,
estudar, repertoriar e partilhar. É a partir destas experiências que podemos, em conjunto,
pensar e construir novas formas de educar.

Associa às métricas dominantes para avaliar as universidades e os universitários àquilo que


são, nas suas palavras "duas tendências particularmente negativas: a hiperespecialização ["os
instruídos incultos e os cultos ignorantes"] e o híper produtivismo ["universidades como
fábricas de artigos"]. Quer aprofundar, alertando para os riscos que impõem estas duas
tendências?

A essência de uma universidade está na diferença. A universidade é um lugar único, marcado


pela relação intergeracional e pelo diálogo entre todas as formas de conhecimento. Quando
procura copiar as lógicas de funcionamento e as métricas das outras instituições, a
universidade empobrece-se e torna-se irrelevante. Na sua tomada de posse, em 2007, disse a
Reitora de Harvard: "A universidade é responsável perante o passado e perante o futuro - não
só, nem sequer primordialmente, perante o presente". Com estas palavras, abre uma crítica a
duas tendências. Por um lado, a hiperespecialização que, segundo Michel Serres, conduz à
formação de duas populações de imbecis: os instruídos incultos, cientistas que não querem
saber nada da cultura geral, humanística; e os cultos ignorantes, letrados que ignoram
totalmente a matemática, a física ou a biologia. Por outro lado, o híper produtivismo que está
a transformar as universidades em fábricas de artigos, autores sem leitores, produções sem
sentido, com riscos sérios para a integridade e a originalidade do trabalho científico. Medir é
preciso, mas a razão de ser de uma universidade está muito para além do que se pode medir
no imediato.

Hoje vivemos um tempo breve de crises e de urgências. A pandemia é disso exemplo; a crise
climática também o é. Estas crises obrigam a políticas públicas também elas urgentes. É um
tempo compaginável com o tempo ponderado que exige a ciência, a investigação e a produção
de conhecimento?

A universidade existe no tempo longo, não no tempo breve das "crises" e das "urgências". A
sua maior utilidade está em cultivar o que não parece ter "utilidade imediata" e, no fim, se
revela a coisa mais útil. A tecnologia tem, hoje, uma base científica. Mas a ciência vai muito
para além da tecnologia. É nesse sentido que o filósofo italiano Nuccio Ordine faz o "elogio do
tempo perdido", chegando mesmo a citar a oitava sátira de Juvenal para alertar as
universidades de que não podem, para salvar a vida, perder a razão de viver. Numa sociedade
híper acelerada, permanentemente ocupada, 24 horas/7 dias, espera-se da universidade um
processo de desaceleração, uma forma diferente de pensar e de agir para, assim, ser "útil" às
sociedades. É preciso dar tempo ao tempo, devolver o tempo às universidades. E à ciência.
"Não há pressa. Um grande poema pode esperar 500 anos, sem que ninguém o leia ou
compreenda", diz-nos Walter Benjamin.

Vai levar à conferência uma questão de suma importância, a da Ciência Aberta. Quer
enquadrar-nos o conceito e resumir o seu contributo para aquilo a que chamamos o "bem
público", de um "bem comum" e de como pode esbater as desigualdades no mundo, entre o
Sul e o Norte?

O conceito de Ciência Aberta refere-se a um conjunto de tendências que procuram afirmar a


importância da partilha do conhecimento, da colaboração entre cientistas e de uma maior
presença da ciência na sociedade. Há três temas centrais. O primeiro, e mais óbvio, é o acesso
aberto. O segundo prende-se com a cultura científica e uma ciência ligada ao exercício da
cidadania. O terceiro diz respeito à importância da ciência para a nossa vida coletiva,
nomeadamente no domínio das políticas públicas. A pandemia do coronavírus tornou nítida a
importância da ciência como bem público e comum. Sabemos que os indicadores de educação
continuam a ser aqueles que melhor explicam as desigualdades entre indivíduos, mas sabemos
também que os indicadores de ciência são aqueles que melhor explicam as desigualdades
entre países e regiões. Reforçar o Sul Global é, acima de tudo, reforçar as suas capacidades
científicas, de produção de conhecimento e de tecnologia. Sem isso, como assegurar um
desenvolvimento sustentável?

Vivemos maravilhados com a inteligência artificial, com a biotecnologia, com os avanços na


ciência que prometem catapultar a vida humana muito além dos limites concebíveis há cem
anos.

Hoje, tudo parece ao alcance da ciência. Mas nem tudo é desejável. Mais do que nunca
precisamos de estabelecer limites. Não se trata de censurar, mas de estabelecer padrões
éticos e transparentes através do debate público. É impossível evitar ambições desmedidas.
Mas é possível controlá-las através da consciência crítica, pública, assente em princípios e
instrumentos internacionais. Sobre a inteligência artificial, ainda esta semana a ONU alertou
para avanços recentes que representam uma ameaça real aos direitos humanos. Não é ficção
científica, diz-nos António Guterres, "os nossos dados estão a ser usados, sem a nossa
autorização, para fins que desconhecemos", condicionando as nossas decisões e
comportamentos. Também aqui precisamos de desenvolver possibilidades e ferramentas
digitais, abertas, que permitam transformar a esfera digital num bem público e comum.
Em todo este contexto, ainda pensamos com humanidade a ciência, a educação e o
conhecimento?

Este ano celebra-se o 75.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Devemos estar mais atentos à ligação entre direitos humanos e ciência, e dedicar uma grande
atenção aos temas do digital - e da inteligência artificial. Sempre com o olhar numa ciência que
também é arte. À maneira de Almada: "Arte e ciência não podem deixar de estar
estreitamente ligadas entre si. É a íntima união do sentimento com o conhecimento humanos,
formando o entendimento da humanidade". No tempo de transição que estamos a viver,
transição de que temos consciência, mas que não conseguimos ainda alcançar com a vista, é
bom pensar com humanidade a ciência, a educação e o conhecimento. Com humanidade e
com humanismo.

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