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Antonio Dias/Arquivo/O Lugar do Trabalho

Chapter · March 2023

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Gustavo Motta
University of São Paulo
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A história é feita de camadas. Mas as camadas não estão empilhadas
em ordem. A força disruptiva do presente pressiona o passado, espa-
lhando seus pedaços por lugares inesperados. Ninguém possui esses
pedaços. Pensar que alguém os possui seria permitir que categorias da
propriedade privada invadissem um terreno comum compartilhado em
que as leis de patrimônio excludente não se aplicam. [...]
O que sobrevive nos arquivos faz isso por acaso. O desaparecimento é
a regra. [...] Indo mais fundo nos vestígios históricos, abaixo do nível da
lenda oficial, fica claro que “nosso” passado não é, e nunca foi, nosso.
Os objetos sobrevivem através das mãos dos negociantes. Os livros se
movem e prosperam na diáspora. Textos e artefatos seguem as rotas
das peregrinações, das tropas militares e do comércio. [...]
O passado ricocheteia no presente e se espalha em território inimigo.
Os fragmentos históricos são o resto de uma explosão. Liberados pela
explosão da memória oficial, os fragmentos da história são preservados
em imagens. Eles retêm a proximidade da experiência original e, com
ela, a ambiguidade. Seu significado é liberado somente em uma cons-
telação com o presente. Eles trazem guardado um aviso de perigo. O
presente do passado é um cavalo de Tróia. A gente acha que sabe de
onde ele vem e a quem pertence. Mas a dádiva é para outros [...].
— Susan Buck-Morss, The gift of the past 1

arquivo / o lugar do trabalho


Como um fio vermelho, o princípio da refuncionalização perpassa a produ- gustavo motta
ção artística de Antonio Dias (1944-2018) desde sua entrada, no imediato
pós-1964, no debate coletivo da vanguarda artística brasileira, tendo “na li-
nha de frente internacional” – como constatou Mario Pedrosa – “seu posto
de combate”.2 De fato, trata-se de combate, já que refuncionalizar pressu-
põe a tomada de um objeto (coisa, ideia, linguagem). Além disso, possui aí
um sentido preciso: o de inverter seu funcionamento original, nos moldes
de uma sabotagem. Na trajetória artística de Dias, premissas estéticas,
consensos, relações sociais estabelecidas, materiais, procedimentos, for-
mas, signos e estilos foram sistematicamente apropriados e dotados de
novas funções, sempre em conflito aberto com as usuais.
A dinâmica conflitiva dessa produção – condenada a jamais apazi-
guar-se – acentua ainda seu caráter dialógico e processual, marcado pela
reconfiguração constante das ideias, formas, materiais, linguagens, rela-
ções sociais e condições históricas que energicamente irrompem em cada
obra de arte específica tanto quanto no conjunto da obra. Nessa rearticu-
lação sistemática, que mobiliza a irrupção contínua desses diversos “tra-
ços residuais da vida” [pág. 62], os trabalhos individuais constituem apenas
momentos de um processo maior, ao qual eles dão expressão particular
– embora decisiva. Dentro desse processo, poroso à intervenção externa
e à contingência, também as obras individuais pregressas podem ser to-
madas como fontes de signos e materiais a serem reaproveitados, e que
reaparecem refuncionalizados conforme a nova situação exige.

1 Susan Buck-Morss, O presente do passado [2011], trad. Ana Luiza Andrade e Adriana Varandas, Desterro, Cultura e Barbárie,
2018, pp. 5, 18 e 28.
2 Mario Pedrosa, “Do pop americano ao sertanejo Dias”, Correio da Manhã, Quarto Caderno, p. 1, Rio de Janeiro, 29/10/1967.

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Bastaria essa constatação para se depreender a importância estraté-
gica presente do arquivo de trabalho do artista – recém-confiado, numa
atitude generosa e de sensibilidade histórica exemplar, ao Instituto de Arte
Contemporânea para conservação, catalogação e pesquisa.
Como parte indissociável dessas tarefas, o IAC trouxe a público, em
2021, a exposição Antonio Dias / Arquivo / O Lugar do Trabalho, focada
nos materiais e obras produzidas no período em que o artista viveu no
exílio (entre fins de 1966 e meados de 1977).
Teve aí particular interesse a observação dos passos iniciais de elabo-
ração do Project-book [pág. 90-96], idealizado por Antonio Dias com Hélio
Oiticica e Rogério Duarte em 1968-69, e sua progressiva metamorfose, no
correr da década de 1970, até materializar-se em Trama [pág. 76-79], álbum
de xilogravuras produzido junto a artesãos papeleiros, xilógrafos e im-
pressores no Nepal, em 1977. Entre um polo e outro, a exposição também
buscou mapear o processo no qual os paradoxos interpretativos propos-
tos nos enormes quadros-diagrama [pág. 38-41] e no ambiente/instalação
Do It Yourself: Freedom Territory [pág. 2-3], de 1968, abriram espaço para
o colapso da geometria estrutural do quadro – cuja configuração emble-
mática é a de um contraditório “retângulo incompleto”, ao qual falta uma
sexta parte. (Veja-se a série de modelos de The Illustration of Art, 1973-75
[pág. 61; 86]; a bandeira de O País Inventado, 1975-6 [pág. 76-77]; e a planta
da galeria, delineada em ouro, de O Lugar do Trabalho, 1977 [pág. 112-113].)

Os documentos apresentados (notas, cartas, fotografias, publicações,


projetos, obras, matrizes, esboços, cadernos e recortes) são operados
aqui como índices materiais do processo de trabalho (prático e reflexivo)
do artista, e buscam inscrevê-lo historicamente. Com isso sugerem – de
modo fragmentário mas contundente – novos ângulos para o olhar e para
a interpretação dessas e de outras obras-chave da produção de Dias.
Com tal propósito, esses documentos foram dispostos em três sa-
las expositivas, registradas nas três seções homólogas que compõem o
presente catálogo (e apresentadas sumariamente adiante, nas três subse-
ções anexas a esta introdução):
1. penso numa arte subversiva / arte negativa [pág. 20-49]
2. desmascarando uma ideologia da moldura / a ilustração da arte [pág. 50-73]
3. a arte do real / project-book—trama [pág. 74-113]
[FIG. A] To the Police [Para a Polícia], 1968,
3 peças de bronze (original em 4 peças de

cimento e placa de alumínio), Ø 14 cm cada Como se verá, as conexões entre as diferentes obras e documentos não
[3 bronze pieces (original in 4 pieces of cement
and aluminum plate), Ø 14 cm each] estão sempre dadas. Por esse motivo, não se adotou um critério cronoló-
Foto [photo] Roberto Cecato gico ou temático restrito, mas sim critérios lógicos porém cambiantes de
Col. [Coll.] Daros Latinamerica, Zurique [Zurich]
aproximação, mais sensíveis aos ritmos do tempo histórico (com suas ace-
lerações inesperadas, interrupções bruscas e viravoltas vertiginosas) e à di-
mensão reflexiva da experiência estético-participativa. Contou-se, na expo-
sição, portanto, com um visitante interessado, assim como confia-se aqui
no interesse ativo do leitor de percorrer investigativamente estas páginas.
Neste ponto, cabe um questionamento, crucial para os dias de hoje: a
produção artística de Dias antes pressuporia um observador ativo – quem
sabe engajado – ou, ao contrário, configuraria-se como um espaço espe-
cializado – quem sabe pedagógico – para a produção desse observador-
-participante?

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Tanto uma como outra hipótese se entrecruzam, não por acaso, com os
marcos históricos relativos ao endurecimento do regime ditatorial no fim
dos anos 1960 e às promessas posteriores de “distensão” no fim da dé-
cada seguinte (cujos ecos sobre a situação presente não passarão em
branco para o leitor-observador interessado).
De fato, a experiência formativa do artista (orgânica e fundante de
sua poética) no cenário cultural brasileiro, politizado à esquerda no pós-
-1964, em meio ao debate da “participação do espectador” (que incluía,
desde a mostra Opinião 65, a interlocução com um grupo de passistas da
Mangueira e o novo público estudantil do MAM-Rio), dá lastro à ideia de
que haveria então um público predisposto às demandas de participação e
engajamento presentes em suas proposições artísticas (bem como capaz
de reconhecer os signos e fragmentos da realidade histórica que as inva-
dem). E se for necessário confirmação, o mesmo vale para suas conexões
radicais em Paris antes e durante o maio de 1968 (que alegadamente lhe
valeram dificuldades para a renovação do visto na França); para a interlo-
cução, mediada por Hélio Oiticica, com as cenas underground locais nas
passagens por Londres (1969) e Nova York (1971-72); e, ao menos em
parte, para o ambiente convulsionado da Itália (entre 1968 e o “movimento
de 1977”), em particular em Milão (ao mesmo tempo capital do rico mer-
cado da moda, design e arte do Norte italiano, e celeiro de grupos operá-
rios e estudantis radicais), onde Dias estabeleceu residência entre 1968 e
1977 (até o retorno temporário ao Brasil, entre 1977 e 1981).3
A segunda sugestão, a de que a audiência engajada não está dada,
ou, mais precisamente, de que sua postura ativa não está garantida de
antemão – de modo que a produção artística e crítica seria ela própria
responsável pela formação de seu público –, também possui fundamento
na realidade histórica. Por um lado, esse desencontro do trabalho artístico
com o público é, em parte, constitutivo da experiência moderna, onde
as aspirações libertárias da criação artística são mediadas pelo consumo
cultural e se desdobram contra o pano de fundo da opressão desenfreada,
de modo que a pretensa autonomia artística é sempre relativa e está em
ininterrupta relação dialética com a desigualdade e com a ausência geral,
na sociedade, de autonomia e liberdade. Mas há também experiências
históricas específicas desse desencontro, que se desdobra politicamente:
uma delas, momentosa, aparece abertamente tematizada na capa de dois
catálogos realizados em papel jornal logo após o retorno de Dias ao Brasil,
no segundo semestre de 1977, no contexto da assim chamada abertura
do regime, encabeçada pela cúpula militar “moderada”, processo dentro do
qual a atuação da Funarte teve um papel importante na mobilização da
opinião pública e na cooptação dos intelectuais e artistas opositores. [FIG. B] Capa do catálogo Política: ele não
Um desses catálogos, Política: ele não acha mais graça no público das acha mais graça no público das próprias
graças, João Pessoa-PB, NAC-UFPB, 1979,
próprias graças [FIG. B], foi produzido em condições experimentais, como offset sobre papel jornal, encadernação
uma espécie de livro de artista, com apoio da Funarte, no contexto do oriental, 29,8 x 21,5 cm, 44 p.
envolvimento de Antonio Dias, junto ao crítico Paulo Sergio Duarte, na [Catalogue cover Politics: he no longer finds
fun in the audience of his own funnies, offset on
constituição do Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal newsprint, oriental binding]
da Paraíba – em que reverbera o caráter pedagógico-formativo aludido Espólio [Estate] Antonio Dias

3 Para uma cronologia detalhada, ver Ileana Pradilla, “Antonio Dias – uma cronologia”, em Antonio Dias, textos de Achille Bonito Oliva
e Paulo Sergio Duarte, São Paulo, Cosac Naify/APC, 2015, especialmente pp. 64, 100, 204 e 222.

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anteriormente. (Cabe apontar que nesse catálogo-jornal apresenta-se, ao
modo de um ensaio visual, uma versão em português do álbum Trama e,
entremeadas com esta e outras obras, inumeráveis referências cifradas ao
processo de distensão “lenta, segura e gradual” da ditadura.)
O outro catálogo em papel jornal, “Nenhuma redução pode conter a di-
ferença” [PÁG. 16], que apresentava a série A Ilustração da Arte à audiência lo-
cal, dá testemunho histórico do outro grupo de agentes ascendente na cena
artística brasileira da “abertura”: o dos operadores de um mercado profissio-
nalizado – tomado ontologicamente como novo “representante do ‘real’ para
assuntos de arte”,4 em contraste com os atores políticos da década prece-
dente. Tratava-se, de fato, da substituição do espectador-participante pelo
colecionador, participante ele também – ainda que no jogo do mercado.5
Como aponta o crítico Paulo Sergio Duarte, no texto desse mesmo catálogo:
[...] terminado o percurso, o apelo é direto: o que se encontra por cima
é a camada em ouro. [...] O vigor de Antonio Dias repousa na preo-
cupação de nitidez. Este procedimento, no entanto, mantém acesa a
dimensão ambígua da arte contemporânea e convida à reflexão sobre
a experiência do artista no ato da produção. É uma questão de aprendi-
zado, e se a ambivalência e os atalhos existem é porque são condição
de acesso crítico para aquele que se encontra do outro lado da barreira,
exposto aos mitos e aos mistificadores: o consumidor.6

Fundem-se aí a instância pedagógica e um diagnóstico sobre a genera-


lização de uma relação social, aquela mediada pela mercadoria. No que
se refere à questão do público, o uso do papel jornal como suporte tem
função estratégica: opera como signo de consumo rápido, massivo, e por-
tanto disseminado, e ao modo de uma sabotagem, como antítese do ma-
terial luxuoso esperado – de fato, desejado – num ambiente (expositivo ou
editorial) de arte.7 O efeito não é distinto daquele causado originalmente
pela aparente rusticidade e “subdesenvolvimento” terceiro-mundista, peri-
férico, dos papéis nepaleses utilizados em Trama, 1977; do papel prensado
indiano dos “serviços de mesa”, em Cavalo de Troia, 1976; ou do papel de
arroz, em A Ilustração da Arte / Dazibao / A Forma do Poder, 1972:
Voyeur, crítico de serviço, colecionador, na cena da exposição, encon-
tram o trabalho. Cabe a este desmascarar sua construção, sem misté-
rios, com nuances, sutileza, ironia.8

Com negatividade, nossos tempos duros exigiriam dizer.

4 Ronaldo Brito, “As ideologias construtivas no ambiente cultural brasileiro”, em Aracy Amaral (org.), Projeto Construtivo Brasileiro
na Arte, São Paulo / Rio de Janeiro, Pinacoteca do Estado / MAM-Rio, 1977, p. 308.
5 Ver Luiz Renato Martins, “International Benefit Society of Friends of Form and Bulletin on the Brazilian Division”, The Long Roots
of Formalism in Brazil, trad. Renato Rezende, Leiden, Brill/Historical Materialism Series, 2018, pp. 237-85.
6 Paulo Sergio Duarte, “Sobre A Ilustração da Arte, ainda”, catálogo Antonio Dias, textos de P. S. Duarte e Gabriele Usberti, Rio de
Janeiro, Galeria Saramenha, 1979, p. 13. Grifos meus. No contexto, o crítico refere-se à série A Ilustração da Arte / Um & Três /
Gerador, 1974, mas o juízo pode ser transposto sem perda para O Lugar do Trabalho, 1977, pp. 112-13, adiante.
7 Sobre o uso do jornal como índice de politização na arte brasileira, ver Gustavo Motta, “A arte moderna vai às bancas – jornal e
politização da forma no Brasil desenvolvimentista”, Angelus Novus, 3, São Paulo, FFLCH-USP, 2012.
8 Paulo Sergio Duarte, “Sobre A Ilustração da Arte, ainda”, cit., 1979, p. 13. Para os papéis “importados do Terceiro Mundo”, ver
idem, “A trilha da trama”, Antonio Dias, col. Arte Brasileira Contemporânea, Rio de Janeiro, MEC/Funarte, 1979, p. 26.

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16 catálogo de exposição, galeria saramenha, rio de janeiro, 1979

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sala 1
Desde o início, ou, especificamente, a partir da mostra Opinião 65,
realizada no MAM-Rio como parte da florescente e politizada cul-
tura artística de oposição à ditadura empresarial-militar, os qua-
“penso numa dros-objetos de Antonio Dias tiveram enorme impacto no cenário artístico
arte subversiva” / local. Dias operava então um sequestro e uma deglutição da pop art ame-
ricana, submetendo os materiais visuais apropriados da indústria cultural,
arte negativa
convertidos em signos convencionalizados pela arte pop, a um violento
processo de expropriação e inversão (como se pode vislumbrar no regis-
tro fotográfico de O Herói Nu [fig. c]).9
Como reconheceu Hélio Oiticica ao historicizar e refletir sobre a es-
pecificidade da produção artística brasileira do período, a obra de Dias
constituiu paradigmaticamente um ponto de virada no debate mais geral,
sob o signo da “participação do espectador”. Segundo Oiticica, as pro-
postas de participação do espectador (originadas no debate entre concre-
tos e neoconcretos no final da década de 1950) ganhavam aí uma nova
dimensão – “político-social” e “semântica” – sem abrir mão dos avanços
“estético-estruturais” dos movimentos geométricos anteriores.10
No exílio desde fins de 1966, a obra de Dias passava a processar
criticamente tanto o endurecimento do regime brasileiro (que preparava o
AI-5) como os impasses políticos mais amplos que se seguiram aos vários
“Maios de 68” no mundo. Deu-se aí a consolidação dessa dinâmica de se-
questro e deglutição da linguagem alheia – onde a experiência social pe-
riférica sistematicamente ilumina, de modo crítico, as dinâmicas centrais.
Duas obras assinalam a mudança do alvo específico: Do It Yourself:
Freedom Territory [pág. 2-3; 34] e Anywhere Is My Land [pág. 39], ambas de
1968. Opera-se aí uma apropriação sardônica, também ela metódica, da
linguagem analítica do minimalismo e logo a seguir da arte conceitual de
extração anglo-saxã (bem como, perifericamente, do concretismo brasi-
leiro) – linguagens que, aliás, o artista brasileiro aproxima, farejando um ar
de família, à do design gráfico comercial e à imagem publicitária.11
[FIG. C] Fotografia de Antonio Dias, da obra É notável que, a partir de então, nas “enormes pinturas completamente
The Naked Hero [O Herói Nu], 1966, 9 × 9 cm
pretas”, que o artista descreveu em um caderno como uma “arte negativa
[The Naked Hero, photograph by Antonio Dias]
Fundo [Fund] Antonio Dias para um país negativo” [pág. 45],12 o campo visual tenha se agigantado
Instituto de Arte Contemporânea justamente para tornar mais impactante a sensação de ausência ou falta
visual. Figuração e abstração se subsumem uma à outra, na medida em
que a palavra escrita – contrabandeada do título para dentro do quadro
– exige uma nova relação (imaginativa) do observador com o mundo das
imagens, simplificadas a ponto de se tornarem funestos diagramas.

9 Ver, nesse sentido, Mario Pedrosa, “Do pop americano ao sertanejo Dias”, cit., 1967; e Luiz Renato Martins, “A Nova Figuração
como negação”, Ars, n. 8, São Paulo, PPGAV-ECA-USP, 2006, pp. 62-71.
10 Hélio Oiticica, “Esquema Geral da Nova Objetividade”, no catálogo da exposição Nova Objetividade Brasileira, Rio de Janeiro,
Museu de Arte Moderna, 1967, s.p. Ver também Gustavo Motta, No Fio da Navalha: diagramas da arte brasileira – do programa
ambiental à economia do modelo, dissertação de mestrado, São Paulo, PPGAV-ECA-USP, 2011, pp. 46-112. Sobre a questão
do espectador, ver o item “d” do documento na p. 48 deste catálogo e os § 4 e 5 da carta reproduzida na p. 88.
11 Ver Paulo Sergio Duarte, “A trilha da trama”, cit., 1979, pp. 23-24; e Gustavo Motta, “Diagramação sertaneja”, No Fio da Navalha,
cit., 2011, pp. 122-130.
12 A relevância dessa anotação foi primeiramente sublinhada por Paulo Miyada no catálogo AI-5 50 anos: ainda não terminou de
acabar, São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, 2019, p. 240. O referido caderno (1967/69) sucede e faz par com o caderno “Fragile”,
de fins de 1966, parcialmente reproduzido em Serrote, n. 16, São Paulo, IMS, 16 março 2014, pp. 128-60.

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sala 2
O enunciado The Illustration of Art [A Ilustração da Arte]
aparece na obra de Antonio Dias em 1971 – em meio ao
exílio, no pior momento da repressão política no Brasil.
Inicialmente, nomeia uma série de filmes em super-8 [pág. 8-11] e, logo a se- “desmascarando uma
guir, uma investigação sobre a pintura, com trípticos e polípticos que figuram
ideologia da moldura”/
um sistema tautológico de unidades, medidas e demonstrações geométri-
cas elementares.13 O jogo representacional, em que figuração e abstração
a ilustração da arte
são convencionalmente tidos como polos opostos, entra em curto-circuito.
É a partir de 1973 – quando, no Brasil, as ilusões acerca do “milagre
econômico” do regime empresarial-militar já haviam derretido, e, em es-
cala internacional, a sucessão de “choques” (o de Nixon, o de Pinochet
e o do petróleo) estabelecia uma “doutrina do choque”, reconfigurando
inteiramente a economia e a política mundiais – que A Ilustração da Arte
ganha um complemento: o uso da palavra Modelo. Assim, A Ilustração da
Arte / Arte / Modelo [fig. d] é complementado e superado por A Ilustração
da Arte / Sociedade / Modelo [fig. e], por Arte & Sociedade / Modelo [pág. 61],
ou ainda por O Significado da Produção / Modelo [pág. 86].
A alusão textual aos diferentes “modelos” tem uma contraparte visual:
na geometria que constitui o suporte da pintura, o próprio quadro parece
ter um pedaço arrancado. Atrás da tinta aparece a tela em branco, e atrás
da tela, a parede da galeria, onde a arte circula: os descompassos e a
entre o “modelo da arte” e o “modelo da sociedade” são enfatizados.14 A
reiteração dessa forma colapsada, impossível de se completar, sistema-
tiza uma experiência mais ampla – uma “totalidade” que, nas palavras do
artista, “existe fora do quadro, e que de lá o invade”.15
A origem desse “pedaço que falta” pode ser retraçada ao ano de 1968,
com a prancha Area for / the beggining / the end [Área para / o começo /
o fim], do Project-book, e a inscrição “Isolation” [isolamento] na parede,
no lugar de um quadro faltante em Alphaomega Biografia. A mesma falta é
dada a ver por meio de uma incisão de facto no suporte de um dos quadros
que formam o díptico The Idea of Reality [A Ideia de Realidade], de 1971.
Essa ausência contundente marca ainda a transformação de uma ban- [FIG. D; E] Esquemas de montagem para as
deira completa, mas apenas imaginada, em Projeto para Bandeira do Povo instalações A Ilustração da Arte / Arte / Modelo
e A Ilustração da Arte / Sociedade / Modelo
– concebida em fevereiro de 1972, para a sonhada inauguração do Museo (1973, acrílica sobre tela), 29,7 × 21 cm cada
de la Solidariedad, capitaneado por Mario Pedrosa no Chile de Salvador [Assembly instructions for The Illustration of Art /
Allende [pág. 66; 69] – na bandeira de fato hasteada (mas incompleta) de O Art / Model; and The Illustration of Art / Society /
Model installations (1973, acrylic on canvas)]
País Inventado (Dias-de-Deus-Dará), 1975-76, presente na foto de Gabriele Fichário [Binder] Work in Progress
Basilico [pág. 71; 76-77] e na serigrafia Campo Nepal [pág. 100]. Não há, nos ar- Fundo [Fund] Antonio Dias
quivos, documentos que registrem especificamente a perda desse pedaço. Instituto de Arte Contemporânea

Há, todavia, a experiência histórica: La Moneda, 11 de setembro de 1973.16

13 Para reproduções, ver Antonio Dias, textos de A. B. Oliva e Paulo Sergio Duarte, cit., 2015, pp.141-57. Para um dos trabalhos inau-
gurais da série, e a refuncionalização da linguagem da pintura analítica italiana (ou pittura pittura) do período, ver Sérgio Martins, “Arte
como projeto, projeto como arte”, Ars, 42, São Paulo, PPGAV-USP, 2021, pp. 372-80. Ver também, do mesmo autor, Arte negativa
para um país negativo (São Paulo, Ubu, prev.: 2023), para uma leitura abrangente do período 1966-75.
14 “O ‘modelo da arte’ obedece ao esquema circular de seis telas iguais. O ‘modelo da sociedade’ mantém a circularidade, mas
se fechando pela produção de um excedente, a sétima tela completamente negra onde a geometria [...é completada pelas seis]
partes não pintadas das seis primeiras telas”, Paulo Sergio Duarte, “A trilha da trama”, cit., 1979, p. 25.
15 Nadja von Tilinsky + Antonio Dias, “Em conversação”, Antonio Dias: Trabalhos, Arbeiten, Works 1967-1994, Darmstadt / São Paulo,
Cantz Verlag / Paço das Artes, 1994, p. 54.
16 Para contextualização e desdobramentos posteriores da proposta para o Museo de la Solidariedad, ver Izabela Pucu, “Estas,
aquelas e outras bandeiras”, em Paulo Miyada, AI-5 50 anos, cit., 2019, pp. 486-87.

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sala 3
Na trajetória artística de Antonio Dias, a importância reservada a
publicações, edições e, em geral, à gráfica e à reprodução técnica
da imagem não pode ser subestimada – como atesta a prolifera-
“a arte do real” / ção, em seu arquivo de trabalho, de artes-finais feitas à mão pelo artista
project-book — trama (que trabalhou sistematicamente como designer gráfico) e provas de im-
pressão de livros, catálogos, folders, cartazes, cartões-postais e outros
papéis relacionados [pág. 8-9; 34; 61; 66].
O Livro-Projeto – 10 planos para projetos abertos marca o lugar privi-
legiado dos meios gráficos em seu processo de trabalho. Idealizado em
1968-69, o livro sistematizava os diagramas ligados às enormes pinturas
completamente pretas. A publicação também apresentaria uma série de
proposições participativas [pág. 94] atribuídas a cada uma das pranchas
[pág. 90] – além de um texto crítico por Hélio Oiticica. Apesar da tentati-
va de retomada em 1972, durante a estadia em Nova Iorque, esse pro-
jeto editorial só foi materializado numa viagem do artista ao Nepal, em
1977 – quando, no Brasil, a ditadura tramava sua abertura “lenta, segura
e gradual”, vetando a participação popular e anistiando também os tor-
turadores; e o horizonte político mundial estreitava-se diante da cantilena
thatcherista (“não há alternativa”).
O livro tornou-se um álbum de xilogravuras – Trama [pág. 78-79; 102-104]
– no qual as antigas proposições deram lugar a inscrições epigramáti-
cas, lacunares, que reconfiguravam o lugar da participação do espectador
(também refuncionalizando a poesia concreta) e davam testemunho do
colapso histórico do ciclo participativo na arte brasileira. Reconfigurava-
se também, para o bem e para o mal, o lugar do trabalho na produção
artística (mantendo um olho na escala global da sociedade, onde a des-
territorialização das cadeias produtivas se anunciava) – com a mobilização
de um campo de produção de papel [pág. 99], em condições “pré-capita-
listas”, e a incorporação da técnica meticulosa mas não mecânica dos
xilógrafos e do impressor nepaleses [pág. 104-111].17
Nas estampas individuais (impressas sobre papel nepalês) e no modo
de exposição (sobre as paredes de uma galeria de arte), o álbum literal-
mente cita e refuncionaliza materiais e obras anteriores – invertendo-lhes
os sentidos cristalizados. Assim, os fragmentos textuais – slogans, asser-
tivas ou interrogações curtas – citam proposições participativas feitas ao
espectador. A remissão a estruturas espaciais – projetos ou plantas arqui-
tetônicas para monumentos e ambientes, traçados de áreas e territórios
– cita o “programa ambiental” da vanguarda brasileira dos anos 1960/70.
Os módulos geométricos citam a arte concreta e a minimal art. A ênfase
na dimensão reflexiva, que determina o modo de fruição do trabalho, cita
a arte conceitual. A ida do artista ao Nepal cita a subida do morro de Hélio
Oiticica, treze anos antes. O uso da xilogravura cita o sistema técnico tra-
dicional das artes. O suporte de papel artesanal cita o trabalho produtivo.
O painel incompleto cita a parte perdida de A Ilustração da Arte.
Trama: o título – curto, polissêmico, eficaz – é uma fórmula, uma estru-
tura sintética, que define a unidade tensa que esta coleção de clichês e cita-
ções apresenta. Um conjunto de fios cruzados, uma rede, uma urdidura, um
complô e uma condensação de nexos históricos – que enredam o ato de ver.

17 Para uma leitura detalhada, ver Gustavo Motta, “A Abertura da Trama (1976-77)”, No Fio da Navalha, cit., 2011, pp. 220-88.

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Antonio Dias / Arquivo / O Lugar do Trabalho Exposição [Exhibition] Agradecimentos [Acknowledgments]
[Antonio Dias / Archive / The Place of Work] Adele Motta
1 set [sep] — 18 dez [dec] 2021 Realização [Presented by] Angélica Pimenta
Instituto de Arte Contemporânea Carmela Gross
Clarissa Diniz
Curadoria [Curatorship] Coleção Moraes-Barbosa
Gustavo Motta Daros Latinamerica Collection
Espólio Antonio Dias
Produção executiva Galeria Nara Roesler
[Executive production] Jacopo Crivelli Visconti
Instituto de Arte Contemporânea Itze Escalona
Gustavo Motta Crítico e historiador da arte, Mestre e Doutor em Luiz Renato Martins
História, Crítica e Teoria da Arte pela Universidade de São Paulo Expografia [Exhibition design] Max Perlingeiro
(USP), com pesquisas sobre a obra de Antonio Dias e sobre o Deyson Gilbert Museu de Arte Contemporânea de
Niterói
desenvolvimento da curadoria de arte contemporânea no Brasil
Produção visual [Visual production] Museu de Arte Moderna de São Paulo
desde a 24ª Bienal de São Paulo. Foi professor de cursos de Arte Estúdio Cori Nina Dias
Conceitual no SESC-Pompeia e em disciplinas de história da arte Paola Chieregato
na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Foi editor Maquete [Model] Paulo Myada
Pontogor Paulo Sergio Duarte
da revista dazibao – crítica de arte. Possui textos publicados em Patrícia Yamamoto
livros e catálogos como Arte Contemporânea Brasileira 2000-2020 Conservação e laudos técnicos Raquel Arnaud
(org. Renato Rezende, Ed. Circuito), Imagine Brazil (Astrup [Conservation and technical guidance] Rara Dias
Fearnley Museet, Oslo) e MAC Essencial (MAC-USP). Atualmente Rys conservação de obras de arte
Débora Reina Esta exposição integrou a rede de
leciona no curso de Artes Visuais da Universidade Federal de parcerias da 34ª Bienal d  e São Paulo
Pernambuco (UFPE). Montagem [Exhibition setup] [This exhibition is part of the 34th Bienal
Instituto de Arte Contemporânea de São Paulo partnership network]
Zang Artesania Industriosa
Critic and art historian, Master and Doctor in History, Criticism and
Caio Netto dos Santos
Art Theory at the University of São Paulo (USP), with research on Cayo Kobayashi WEBinário [Webinar]
the work of Antonio Dias and on the development of contemporary 14 / 21 nov 2021
art curatorship in Brazil since the 24th Biennial of São Paulo. He Pintura [Painting execution]
Reginaldo da Silva Souza Debora Faccion Grodzki
was a professor of Conceptual Art courses at SESC-Pompeia and
Agnaldo Ferreira da Cruz Gustavo Motta
in art history disciplines at the State University of Santa Catarina Izabela Pucu
(UDESC). He was editor of the journal dazibao – crítica de arte. He Assessoria de imprensa [Press relations] Paulo Miyada
has published articles and essays in books and catalogues such as Pool de Comunicação Sérgio Bruno Martins
Arte Contemporânea Brasileira 2000-2020 (org. Renato Rezende, Transportadora [Transportation]
Ed. Circuito), Imagine Brazil (Astrup Fearnley Museet, Oslo) and MAC Art Quality Catálogo [Catalogue]
Essencial (MAC-USP). He currently teaches in the Visual Arts course
at the Federal University of Pernambuco (UFPE). Seguradora [Insurance] Realização [Presented by]
Axa Corporate Solutions Seguros S.A. Instituto de Arte Contemporânea
Finarte Corretora de Seguros
Edição, texto crítico, projeto gráfico
Molduras [Frames] e traduções para o português
Modular Quadros e Molduras [Edition, critical essay, graphic design
and Portuguese translations]
Digitalização e fac-símile Gustavo Motta
[Digitalization and facsimile]
Estúdio OCA Produção gráfica e tratamento de
Laranja Print Impressão D  igital imagens [Graphic production and
image processing]
Impressão [Print] Carolina Caliento
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Next Soluções Gráficas
Tradução para o inglês
M921a Motta, Gustavo Plotagem [Plotting] [English translation]
O Mamulti Sticks Kevin Kraus
Antonio Dias / Arquivo / O lugar do trabalho [Antonio Dias / Archive / The Laranja Print Impressão D
 igital
Place of Work] / Gustavo Motta (curadoria e texto) ; apresentação de Raquel
Arnaud ; fotografia de Romulo Fialdini ; tradução de Kevin Kraus. – São Paulo : Revisão [Proofreading]
Instituto de Arte Contemporânea – IAC, 2022. Voluntários [Volunteers] Regina Araki
128 p. : il. ; 27 x 21,5 cm Ana Luiza Robazzi Mussolin
Carolina de Almeida Martins Ferreira Digitalização [Digitization]
Catálogo de exposição realizada no Instituto de Arte Contemporânea – Rebeca Felipe Pelegrino Instituto de Arte Contemporânea
IAC, de 1º de setembro a 18 de dezembro de 2021 Júlia Pereira Hallal
ISBN: 978-65-00-56733-5 Giovanna Marangoni Ferrara C  amargo Fotografia [Photography]
Helena Del Mercato Romulo Fialdini
1. Arte brasileira. 2. Antonio Dias (1944-2018). 3. Arte – Século XX. I. Arnaud, Victor Santana Dantas C avalcante
Raquel. II. Fialdini, Romulo. III. Kraus, Kevin. V. Título. Impressão [Printing]
Agradecimento especial Ipsis
CDD: 709.04(81)
CDU: B7.036 [Special acknowledgment]
Geyze Diniz Impresso em [printed in] offset 120 g/m2
André Queiroz – CRB-4/2242 Rose e Alfredo Egydio Setubal / masterblank linho 270 g/m2

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Instituto de Arte Contemporânea
Avenida Dr. Arnaldo, 126
cep 01246-000 | São Paulo-SP
+ 55 11 3129-4898 / 3129-4973
https://www.iacbrasil.org.br/

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