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Carmen Margarida
Leonardo Oliveira
Cândido RolimAlveal
Leonardo Cândido Rolim
Soraya Genorrazo
Soraya Genorrazo Araújo
Araújo
Thiago
Thiago Alves Dias
Dias
(Orgs.)
(Orgs.)
ANAIS
VII EIHC
Espaços coloniais:
domínios, poderes e
representações
593 A narrativa plástica dos quinze mistérios do rosário no forro da nave da capela de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila de São José, MG (c. 1820)
Luciana Braga Giovannini
Valignano nasceu em 1539 na cidade italiana de Chieti, no Reino de Nápoles, então sob domí-
nio espanhol.92 Em 1574, o jesuíta chega a Goa como visitador das missões da ordem na Ásia. A partir
daí até o final do século XVI, Valignano escreve diversos relatórios, sempre tentando esclarecer as di-
ficuldades e os desafios enfrentados pelos missionários, bem como apresentar aos superiores o estado
“real” das missões. Um dos primeiros esforços neste sentido é envidado em 1577, quando Valignano
escreve o seu Summarium Indicum, uma longa descrição da província jesuíta da Índia, que na época
abarcava todas as missões asiáticas. O relatório foi escrito com menos de dois meses de experiência
na Península Malaia, entre os dias 22 de novembro e 8 de dezembro. É aqui que o visitador começa a
desenvolver suas ideias sobre as raças asiáticas.
O primeiro passo do visitador é dividir a Ásia em duas grandes porções: de um lado, Japão e
China, e do outro, o resto. Esta primeira classificação é feita com base na cor da pele dos asiáticos e o
seu entendimento da religião. Valignano registra que os povos da Ásia são, em sua maior parte, negros
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[è tutta di color negra], enquanto japoneses e chineses teriam a pele branca como a dos europeus [è
Bianca como la nostra di Europa].93 Neste momento, Valignano também entende que os japoneses
teriam uma capacidade mais aguçada para entender a religião, acreditando ser suficiente para explicar
os resultados mais positivos obtidos pelos missionários no Japão.94
Valignano chega ao Japão em 1579, onde começa a trabalhar numa revisão do seu Summarium
Indicum. É no arquipélago japonês que o visitador tem a sua primeira revelação: ele percebe que a
realidade apresentada nas cartas de seus companheiros nem sempre correspondia ao que ele pôde
verificar pessoalmente no Japão. Assim, Valignano nota o quão pouco sabia sobre os japoneses.
Assim, fatores políticos, linguísticos e culturais seriam os responsáveis por criar uma barreira
dificultando para aqueles fora do Japão a compreensão do que se passava na missão. Deste modo, a
revisão que Valignano se propunha fazer do Summarium Indicum no Japão não tinha somente como
objetivo agregar fatos novos, mas sim corrigir o que ele considerava uma imagem distorcida transmi-
tida por colegas a respeito da realidade da missão japonesa.
Munido agora do argumento da experiência a seu favor, Valignano mantem em seu texto a
divisão entre asiáticos brancos e negros, mas apura a sua descrição dos japoneses e da sociedade japo-
nesa de acordo com as dificuldades que ele encontra nas relações sociais no Japão. Valignano passa a
descrever os japoneses como corteses, dizendo que seriam tão polidos que excederiam todos os outros
povos, e possuidores de grande engenhosidade, ainda que não tivessem “ciência”. Como herdeiro da
leitura de Aristóteles através da Segunda Escolástica, muito provavelmente o que Valignano quis dizer
93 WICKI, Josef (Coord.). Documenta Indica XIII. 1. ed. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu, 1975. p.
5. Ver também a discussão de Keevak. KEEVAK, Michael. Op. cit., p. 26-42.
94 Neste momento, a missão jesuíta na China ainda não havia sido retomada, o que só viria a acontecer em
1582. WICKI, Josef. Op. cit., p. 9-10. Paolo Aranha também indica que esta diferença é usada por Valignano
para explicar porque o método da adaptação cultural não poderia ser usado em outras partes da Ásia. ARA-
NHA, Paolo. Gerarchie Razziali e Adattamento Culturale: La ‘Ipotesi’ Valignano. In: TAMBURELLO, Adolfo;
ÜÇERLER, Antoni; DI RUSSO, Marisa (Org.). Alessandro Valignano S.I. – Uomo del Rinascimento: Ponte tra
Oriente e Occidente. Rome: Institutum Historicum Societatis Iesu, 2008. p. 86-88.
95 VALIGNANO, Alessandro (aut.); WICKI, Josef (ed.). Historia del Principio y Progresso de la Compañia de
Jesús en las Indias Orientales (1542-64). Roma: Institutum Historicum S.I., 1944. p. 481-482. Schütte acredita
que a carta foi escrita em dezembro daquele ano. Ver SCHÜTTE, Josef Franz. Valignanos Missionsgrundsätze
für Japan. Erster Band 1573-1582, Erster Teil 1573-1580. Rome: Edizioni di Stori e Letteratura, 1951, p. XXXIV.
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com ciência foi o arranjo organizado e a demonstração de sequências de verdades em uma área parti-
cular de acordo com princípios relevantes àquela área. Assim, ele não somente excluiu os japoneses da
ciência como considerou impossível o aprendizado e a discussão de conhecimentos produzidos pelos
japoneses. A justificativa desta incapacidade viria de outra característica apontada por Valignano, a
violência dos japoneses, tidos como “la más belicosa gente y dada a guerra de quantas en el mundo
hai.”96
A caracterização dos japoneses como povo belicoso teria um profundo impacto na avaliação
do visitador sobre o modo como se davam as relações políticas no Japão. Para Valignano, o cenário
político japonês era marcado pela insegurança e inconstância. O jesuíta faz assim uma referência ao
fenômeno conhecido na história japonesa como Gekokujō, uma espécie de motim militar onde
súditos ou “vassalos” matam o senhor para assumir a sua posição. Ao mesmo tempo, Valignano en-
tende que a vida humana tinha muito pouco valor para senhores japoneses, e explica que súditos e
familiares podiam ser facilmente condenados à morte por seus senhores e patriarcas. A constante
ameaça de revoltas e traições, aliada ao pouco valor que os japoneses dariam à vida humana, fazem
com que o jesuíta determine que o Japão vivia em um estado de extrema insegurança política. Este
ponto é apresentado por Valignano como crucial para não somente mostrar como as relações políticas
se davam no Japão como também provar a impossibilidade de que, dada tamanha volatilidade, supe-
riores em Roma ou na Índia fossem capazes de responder às demandas missioneiras em tempo hábil.97
Em outras palavras, perguntava-se uma coisa e quando a resposta chegava a situação já era outra. De
fato, poucos anos antes da chegada de Valignano ao Japão, o senhor Oda Nobunaga expulsou o então
xogum Ashikaga Yoshiaki de Kyoto, colocando-se no topo da administração militar do Japão e pondo
fim aos quase dois séculos e meio de poder do regime conhecido como Muromachi Bakufu.
Em seu texto, o visitador nota ainda que os senhores gastavam pouco dinheiro e eram impres-
sionantemente pobres; mesmo assim, estes senhores faziam questão de muitas formalidades e códigos
de conduta. Quando os europeus, inclusive os missionários, não sabiam como dialogar de acordo com
estes códigos, acabavam sendo tratados como crianças, que tinham que aprender como comer, como
se sentar, como falar, como se vestir e como realizar todas as formalidades.98 Portanto, outro fator que
tornava a dependência de instruções vindas de fora perigosa para os missionários no Japão era que a
falta de conhecimento a respeito das linguagens políticas locais tornaria impossível para jesuítas na
Índia e na Europa entenderem o que era esperado dos missionários no Japão e como orientar exter-
namente a missão.
Ainda na revisão do seu Summarium Indicum de 1579, Valignano aponta alguns aspectos
negativos sobre os japoneses. Por exemplo, ele condena os hábitos nefandos praticados pelos monges
budistas e por pais em relação às crianças, incluindo homossexualidade, pedofilia e infanticídio. Além
disso, o jesuíta diz que toda a legislação japonesa era injusta e contrária à razão natural. Isto dificultava
não apenas a conversão dos japoneses mas também a sua obediência às leis cristãs. Caso os jesuítas
96 WICKI, Josef (Coord.). Documenta Indica XIII. 1. ed. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu, 1975.
p. 202-203.
97Idem, pp. 203-4.
98Idem, pp. 205-6.
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fossem bem-sucedidos, o visitador previa bons frutos com base na opinião de que os japoneses seriam
a gente “…más apta para ser cultivada y tomar bien las cosas de nuestra ley, y salir la major chrystan-
dad de todo el Oriente” [mais apta para ser cultivada e tomar bem as coisas da nossa lei, e tornar-se a
maior cristandade de todo o oriente]99.
Valignano elabora então um manual que não somente ensina como os missionários deveriam
agir perante os japoneses, mas também como não agir para que não fossem vistos como inferiores.101
A observância das regras japonesas deveria ser adotada inclusive dentro das casas jesuítas, para que
não houvesse discrepância entre com o seu comportamento porta afora.102103
De volta à Índia, Valignano dedicou boa parte do ano de 1583 a escrever a sua Historia del
Principio y Progresso de la Compañia de Jesús en las Indias Orientales. Cobrindo o período de 1542 a
1564, a história havia sido comissionada pelo geral Everardo Mercuriano em 1574, e foi escrita a partir
tanto de fontes escritas quanto de relatos testemunhais de padres como Henrique Henriques e Fran-
cisco Peres, experientes missionários atuantes desde a época de Xavier na Ásia. O manuscrito chegou
inclusive a ser usado no processo de canonização de Francisco Xavier.104
99Idem, p. 207.
100 Publicado e traduzido por Josef Franz Schütte e Michaela Catto. VALIGNANO, Alexandro (aut.); SCHÜT-
TE, Josef Franz (ed.); CATTO, Michela (ed.). Il Cerimoniali per I Missionari del Giappone. Roma: Edizioni di
Storia e Letteratura, 2011. Ver ainda SCHÜTTE, Josef Franz. Valignanos Missionsgrundsätze für Japan. Erster
Band 1573-1582, Erster Teil 1573-1580. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 1951, p. XXXVI; e BOXER,
Charles Ralph. The Christian Century in Japan, 1549-1650. Berkeley, Los Angeles e Londres: University of Ca-
lifornia Press, Cambridge University Press, 1951, p. 478.
101 VALIGNANO; SCHÜTTE; CATTO. Op. cit., p. 146.
102 VALIGNANO; SCHÜTTE; CATTO. Op. cit., p. 242.
103 VALIGNANO; SCHÜTTE; CATTO. Op. cit., p. 272-274.
104 WICKI, Josef. Der Zweite Teil Der Historia Indica Valignano’s. In: Archivum Historicum Societatis Iesu,
Roma: Societatis Iesu, n. 7, p. 277-278, jan. 1938.
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a necessidade da intervenção jesuíta no Japão para salvar os japoneses.
Valignano faz uma clara distinção entre mitologia e razão crista. Usando a obra Metamorfose,
de Ovídio, ele faz um paralelo entre os japoneses e os gregos e romanos da antiguidade, uma estraté-
gia retórica muito comum entre os defensores da missão japonesa. Movidos por inspiração divina, os
povos da antiguidade abandonaram suas crenças anteriores em prol da fé cristã. Valignano sublinha,
contudo, que os mitos dos hindus haviam ultrapassado em absurdo aqueles dos gregos e dos romanos.
Para o jesuíta, os hindus estariam em um ponto sem retorno, para além da sua salvação. O visitador
classifica então três grupos de acordo com suas crenças: os hindus, cujo absurdo de seus mitos dificul-
tava a sua salvação; os romanos e os gregos, que abandonaram seus mitos e se salvaram; e os japoneses
e chineses que, tendo o mesmo potencial dos gregos e dos romanos, podiam ser orientados para o
caminho da iluminação cristão. Com estes argumentos, Valignano defende a importância das missões
do Extremo Oriente. O visitador lembra as descrições dos japoneses feitas por mercadores que acaba-
ram levando Xavier a ir ao arquipélago em 1549:
“se encendió el Pe M. Francisco en un vivo desseo de yr a manifestar el nom-
bre y Evangelio de Jesú Christo nuestro Señor en aquellas partes, paresciéndole que,
siendo tal la gente y tan diferente de toda la gente negra, se haría en ella más fructo y
más sevicio de nuestro Señor.”106
Valignano dedica três capítulos de sua História para descrever o Japão antes da chegada de
Xavier em 1549. Aqui ele reitera a cortesia e os códigos de conduta do Japão, chegando a afirmar que
eles seriam mais polidos do que todos os povos da Ásia, e talvez mais do que os próprios Europeus.
Sua capacidade de entendimento é explicada pelo alto grau de alfabetização mesmo entre o que ele
chama de “gente baixa”, e que mesmo o mais rude dos japoneses não era tão rude e incapaz quanto os
rudes europeus.
Valignano explica novamente o extremo poder da autoridade paternal sobre a vida e morte de
súditos e familiares, mas agora faz distinção entre diferentes camadas sociais.107 Em seguida, faz uma
breve exposição sobre a belicosidade dos japoneses, e descreve em linhas gerais as punições legais usa-
das no Japão. Ele explica que não havia prisões, e que as punições se restringem a exílio, pena capital,
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confisco de terras e crucificação.108
A seguir, Valignano descreve o que ele classifica de “estranhos costumes” dos japoneses. Aqui
ele os caracteriza como um povo de contradições: por um lado, tinham características superiores aos
europeus, mas de outro compartilhavam hábitos e costumes com outras nações gentias. Mesmo que
fossem um povo racional e de entendimento, Valignano lembra que eles eram, acima de tudo, gentios.
Por isso, eram sujeitos a leis nefastas, grandes vícios, guerras contínuas e outros maus hábitos que
contribuíam para corromper suas boas qualidades. E era exatamente pelo fato de suas boas qualidades
ainda existirem mesmo que tantos hábitos ruins é que Valignano acredita que eles eram aptos à fé
cristã. Valignano chega a firmar que: “(...) entre ellos no hay blasphemias, ni juramentos, ni murmu-
raciones, ni detractiones, ni palabras injuriosas, ni hurtos, sacando los que se hazen con especie de
guerra, o de arrendadores, o de alguns piratas de la mar (...).109
A natureza dos japoneses, com algumas exceções, era então descrita como honrada e justa,
apesar de suas leis e práticas gentias. Valignano descreve então as cinco qualidades ruins dos Japone-
ses: vícios pecaminosos, deslealdade com seus senhores, mentira, desrespeito pela vida humana e con-
sumo exagerado de álcool.110 Ao final, o visitador conclui que eram tantas diferenças entre europeus e
japoneses que “no se podia escrebir todo en pequeño volumen.”111
No último capítulo dedicado ao Japão antes da chegada de Xavier, Valignano descreve as reli-
giões japonesas – como elas chegaram ao arquipélago a como foram usadas para subjugar os japoneses
ao domínio dos monges. Ele compara a doutrina religiosa do Japão com a doutrina de Lutero, ambas
ensinadas pelo demônio (“el demonio, padre de ambos”).112
O Sumário se apresenta como uma peça fundamental para o argumento do exotismo da mis-
são japonesa. Sobre a singularidade dos japoneses, Valignano escreve:
108Idem, p. 130-132.
109Idem, p. 136-138.
110Idem, p. 138-142.
111Idem, p. 142-154.
112Idem, p. 161.
113 Para uma discussão sobre a data do manuscrito e as revisões feitas por Valignano dos três capítulos, ver AL-
VAREZ-TALADRIZ, José Luis. Sumario de las Cosas de Japon (1583), Adiciones del Sumario de Japon, Tomo
I. Tóquio: Sophia University, 1954, p. 178*-190*.
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“...es porque las cualidades, costumbres y modos de proceder de los japones
son del todo tan contrario y incógnitos a los de India y de Europa, que esa poca co-
municación que se puede tener no sé cuando podrá ser provechosa, porque lo que se
pasa en Japón, a mi juicio, no se puede bien entender si no es por los que por vista y
experiencia lo saben, y parece que no se puede dar a entender ni personalmente por
los que saben mucho de Japón, cuanto menos por cartas (...)”114
Para o visitador, não valia a pena esperar por respostas de superiores em Roma e Goa dada a
natureza distinta do trabalho missionário no Japão. Valignano chega a declarar que não importava o
modo como os prelados e padres na Europa vissem a situação no Japão, eles jamais seriam capazes
de entender as idiossincrasias da missão japonesa. Assim, o visitador defende que a missão precisava
ser capaz de tomar decisões por conta própria seguindo sempre as constituições da ordem e outros
dogmas católicos.115 Isto se aplicaria também às dificuldades morais enfrentadas na missão japonesa,
que nem sempre poderiam esperar por decisões enviadas da Europa. No capítulo 20 do seu Sumário,
Valignano descreve alguns dos desafios da missão:
“… las costumbre, leyes y casos de Japón son tan extraños y tan nuevos, que
en la decisión y determinación de ellos no se puede hombre en ninguna manera guiar
por las resoluciones de Cayetano ni de Navarro ni de otros sumistas de Europa, mas
allende de las letras es necesario un gran discurso y prudencia en Japón para juzgar,
adquiridos con mucha experiencia de las costumbres, gobierno y modo de proceder
de Japón, con la cual, aplicando las reglas universales y naturales a los casos parti-
culares de Japón, venga a determinar lo que se ha de seguir en casos tan dificultosos
y nuevos; y como en éstos se incluyan muertes, cautiverios, destierros, pérdidas de
hacienda y aun casos tocantes a la religión, acerca de lo que pueden o no pueden con
los cristianos hacer acerca del obedecer a sus señores gentiles en lo que mandan que
parece contener algún culto y servicio de sus ídolos, en los cuales permitiéndoles lo
que de razón no se puede se hace[r] contra la religión, y prohibiendo (...) lo que no se
puede permitir corren peligro muy grande los cristianos de ser muertos y desterrados
y de perder sus haciendas, bien se entiende también cuán gravemente en todo esto se
puede errar.”116
Estas dificuldades são continuamente repetidas por todo o texto, levando o visitador a classi-
ficar o Japão como uma das “mayores, más importantes y más dificultosas y peligrosas provincias que
la Compañia tiene.”117 Como exemplo, Valignano menciona o modo como os conversos eram tratados
no Japão em comparação com o que viu em outras missões:
“El modo de su gobierno es libre porque no tenemos en Japón ninguna juris-
dicción ni los podemos compeler a más que a lo que ellos quieren hacer persuadidos
de los Padres, y de la razón movidos, ni admiten palmatoadas ni azotes ni cárceles
ni otras cosas que se usan comúnmente con los demás cristianos de Oriente (...)”118
Deixando de lado o fato de que os jesuítas considerariam normal tratar a palmadas e com
açoites conversos em outras regiões, percebe-se que a relação entre os padres e os conversos também
é apresentada como única. Assim, Valignano mostra o quanto a experiência da missão era importante
para se conhecer os meandros das relações sociais e políticas na sociedade japonesa:
114Idem, p. 135.
115Idem, p. 223.
116Idem, p. 220-221.
117Idem, p. 223.
118Idem, p. 168.
671
“La segunda cosa no menos necesaria es la experiencia de la tierra porque,
como está dicho, son las costumbres, negocios, modo de proceder y todo lo demás
tan contrarios a los nuestros, que aunque los hombres sean de mucha capacidad y
prudencia y muy acostumbrados a gobernar en otras provincias, en Japón se hallan
muy nuevos, embarazados y como ciegos hasta que tengan por mucho tiempo la ex-
periencia de las cualidades y costumbres de la tierra (...).”119
As diferenças de hábitos e costumes geravam uma enorme gama de desafios para a aplicação
da teologia moral e sua casuística no Japão. Na prática, Valignano sugere que os missionários preci-
savam ter autoridade para permitir dispensações eclesiásticas e aceitar casos excepcionais quando
necessário.120 O visitador acreditava que as obras de autoridades teológicas como Caetano e Navarro
eram incapazes de oferecer soluções viáveis para a frágil situação política dos missionários no Japão,
sendo assim necessário considerar soluções específicas e capacitar jesuítas no Extremo Oriente para
que escrevessem seus próprios manuais e tomar suas próprias decisões.
A historiadora Nina Chordas explica que diálogos modernos eram um gênero de semificção,
no sentido de que insistiam em serem aceitos como uma entidade “com alguma agência sobre o mun-
do real e material”. Como gênero literário, o diálogo era resultado de um ambiente de “desconfiança
119Idem, p. 224.
120Idem, p. 226.
121De missionum legatorum Iaponensium ad Romanam curiam, rebusq, in Europa, ac toto itinere animaduer-
sis dialogus. 1. ed. Macau: Societatis Iesu, 1590 (doravante referido como DMLI). Segundo o site da Laures
Rare Book Database, “There are a good many copies of known and probably many more not made known to
scholars. The only copy in [Japan] in the Collection of the late Professor Kōda Shigetomo was donated
to the Keiō University , which again donated it to the Tenri Central Library . Other copies are
known to be in the "Pei-t'ang Library ", in Beijing , in the "Biblioteca da Ajuda", in the "Biblioteca de
Évora", in the archives of "Torre do Tombo", two in the "Biblioteca Nacional de Lisboa", one incomplete copy
dated 1589, as we saw, in the "Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra", one in the University of Seville,
one in the "Oliveira Lima Library" of the Catholic University of America, Washington, and one in the Public
Library of Paris.” É mencionada ainda uma reedição de 1593, mas aparentemente não há cópias preservadas
desta segunda edição. Aurelio Vargas Díaz-Toledo menciona ainda outras três cópias, no Porto, em Londres e
Madri, totalizando treze exemplares. DÍAZ-TOLEDO, Aurelio Vargas. Uma primeira aproximação do corpus
dos Diálogos Portugueses dos séculos XVI-XVII. In: Criticón, n. 117, 2013, p. 77-78. Sobre a autoria do livro,
ver MORAN, J.F. The real author of de missione legatorum Iaponensium ad Romanam curiam... dialogus – A
Reconsideration. In: Bulletin of Portuguese - Japanese Studies, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, n. 2, p.
7-21, 2001.
122 KOWNER. Op.cit., p. 131.
672
generalizada sobre a literatura ficcional” neste período, oferecendo-se então como alternativa à mente
racional.123 Tais textos jamais seriam, como indicado por Jon R. Snyder, “transcrições de conversas
ou debates realmente ocorridos (...); não há quaisquer traços de oralidade no diálogo, com exceção
de ilusões cuidadosamente manufaturadas.”124 Os diálogos não apenas eram ferramentas didáticas de
transmissão de ideias ou exposição de matérias, mas também veículos para a apresentação de perso-
nagens ideais e das virtudes necessárias para se imitar tais personagens ideais.
Como trabalho de transcrição de uma espontaneidade artificial, o diálogo propunha uma co-
nexão intermediada entre as impressões dos embaixadores e o que os jesuítas desejavam que seus
seminaristas soubessem sobre a Europa.
O diálogo apresenta uma teoria geral das raças e sua gênese como características definidoras
do papel cumprido por cada grupo humano, sumarizando as ideias de Valignano.125 É neste texto que
o jesuíta explica como entendia a origem das raças e os fatores que determinavam este processo, dis-
tinguindo-se então de textos anteriores por ir além da descrição. Herdando ideias apresentadas pelo
visitador em trabalhos anteriores, o tópico começa a ser discutido com a descrição da raça dos por-
tugueses. Um dos personagens questiona a relação entre raça e escravidão, dizendo: “Vidimus enim
multo nauibus ad nos vehi nigros illos quidem, sed mercatorum seruos, & audiuimus, in hoc Lusita-
norum genere nobiles candido colore, obscuro loco natos nigros esse velut ad seruitutem genitos.”126
[Vemos muitos daqueles negros trazidos até nós em navios, mas eles são escravos dos mercadores, e
também ouvimos dizer que entre os portugueses os nobres são brancos, mas os nascidos humildes são
negros, como se nascidos para a escravidão.]
Esta afirmação reflete diretamente a ideia aristotélica da servidão natural, mas a resposta dada
por um dos embaixadores é que todos os portugueses eram brancos, e que não tinham nem rostos
negros, nem distorcidos, nem irregulares – vel nigris facem sunt, vel distorta, vel pravis lineame[n]
tis – e que na verdade eram um povo de belas faces, com uma compleição física apropriada e de cores
suaves e outros dons notáveis de natureza e criatividade – “egregiam faciem, aptam membrorum com-
positionem cum quadam coloris suavitate, aliaque infignia naturae & artis dona in ecce certum est”. O
embaixador explica então que as raças não eram definidas por nobreza ou humildade, mas sim pelo
ambiente e por seu país. Portanto, os negros vistos pelos japoneses eram escravos trazidos de muitos
reinos do oriente – servi sunt ex varijs Orientis regnis coempti.127 Aqui, fica claro que Valignano aban-
dona a certeza de uma origem bíblica como o único fator para a diferenciação racial em prol da dúvida
e da ambiguidade. Além disso, ao determinar que as raças não se definiam por características como
nobreza ou humildade, o que Valignano diz é que a escravidão não era natural, mas sim resultado de
outros fatores.
123 CHORDAS, Nina. Forms in Early Modern Utopia: The Ethnography of Perfection. 1. ed. Surrey, Reino
Unido e Burlington, Estados Unidos: Ashgate, 2010, p. 17-18.
124 SNYDER, Jon R. Writing the Scene of Speaking: Theories of Dialogue in the Late Italian Renaissance. 1. ed.
Stanford: Stanford University Press, 1989, p. 17.
125 Este discurso foi analisado recentemente por Rotem Kowner. KOWNER. Op.cit.
126 DMLI, p. 17.
127 DMLI, p. 17.
673
Isto fica claro na sua explicação para a origem da negritude. Um dos ouvintes japoneses levan-
ta a questão:
“Dubitatio non parua se mihi offere circa istarum: gentium colorem si enim
omnes homines à primis parentibus Adamo, & Eva originem habent, & illi, ut certum
videtur, candido, & pulchro colore nati sunt, qui fieri potuit, ut tam multae gentes
paulatim nigrum colorem induerent?”128
[Para mim, existe uma grande questão sobre a cor das pessoas: se todos os
homens vêm de Adão e Eva, e se eles, como parece ser, nasceram brancos e belos,
como foi que muitas pessoas gradualmente se tornaram negras?]
O diálogo menciona a maldição de Cam, segundo a qual os negros seriam oriundos dos des-
cendentes deste filho de Noé. O texto menciona que a maldição não está na Bíblia, mas que seria
apenas mais um dos muitos eventos que ocorreram historicamente mas não são registrados nas escri-
turas. Como argumento a favor da teoria da maldição como origem da negritude, o texto fala da ex-
pressão distorcida dos africanos, uma expressão triste, com uma natureza rude e ignorante, inclinada
à desumanidade e a ferocidade. Mas um dos personagens do diálogo suspeita da explicação, e diz que
a maldição poderia ser oriunda de outro evento distinto, dado que o único fato que a comprova é a
fisionomia dos negros. Portanto, os embaixadores concluem que a negritude tinha como origem uma
combinação dos três argumentos: o calor excessivo, a semente dos pais, e algum tipo de maldição.
Esta hesitação que o autor demonstra em relação a tomar partido de alguma das explicações é
um argumento necessário para que assim ele possa incluir os asiáticos brancos na sua história. Assim,
o reconhecimento de uma causa oculta na determinação das raças permite que se apele a este argu-
mento para explicar as diferenças fisionômicas entre japoneses e chineses quando comparados com
brancos europeus.129
Mas mesmo que japoneses e chineses fossem considerados asiáticos brancos, eles não eram
vistos como iguais, mas sim similares: “Iaponia namq[ue] nostra, si fructuum, carnium, pisciumq[ue]
128 DMLI, p. 37.
129 DMLI, p. 37-43.
674
vis ad corpora alenda consideretur, deinde gentis nostrae acumen, & vrbanitas, nobilitatisq[ue] gra-
dus, Europa[m] aliqua ex parte imitatur.”130 [Se considerarmos o potencial das lavouras, as carnes,
os peixes etc. para nutrir o corpo, e também a inteligência, a civilidade e o grau de nobreza do nosso
povo, o Japão é até certo ponto semelhante à Europa.]
O diálogo explica que os japoneses e chineses eram semelhantes, mas que em uma “escala das
nações” eles estariam em uma posição superior aos chineses, mais próxima dos europeus.131 A taxono-
mia racial de Valignano surge então como uma classificação com três ou quatro camadas, baseada na
cor da pele, na civilização e na fé.132 E tal como na explicação sobre a origem da negritude, o visitador
considera que o ambiente é um dos fatores importantes na diferenciação entre japoneses e chineses.
Ainda assim, o ambiente japonês não é considerado tão rico quanto o europeu. Quando os
embaixadores falam sobre sua passagem pela Europa eles explicam as diferenças entre a comida euro-
peia e a comida japonesa, atribuindo o sabor de cada uma à qualidade do solo, considerado mais fértil
e fecundo no Velho Mundo.133 Como resultado, os portugueses são então descritos como europeus
brancos caracterizados pela lealdade, nobreza, poder, riqueza e habilidade militar. O diálogo confere
três virtudes básicas aos portugueses: lealdade ao rei, uma coragem imbatível e profunda dedicação à
religião cristã.134
Por outro lado, negros africanos e asiáticos são acusados de serem naturalmente propensos
aos vícios e de pouca inteligência.135Citando Salústio, o diálogo aponta que os negros eram sujeitos a
ímpetos naturais e a fome, tais como bestas de carga, e acreditavam em fábulas falsas e cultos baseados
em delírios. Asiáticos negros, especificamente indianos, são apresentados como uma raça de espírito
abjeto, ainda que não tivessem características faciais desagradáveis.136
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As religiões são apresentadas como falsas em contraste com a verdadeira luz oferecida pelo
cristianismo. Enquanto os pagãos viviam dispersos e divididos, os cristãos se reuniam em torno de
uma única religião, inspirada não por sua inteligência mas pelo esplendor divino.137 O cristianismo,
aliás, surge então defendido em todo o texto como uma panaceia política, que se aplicada ao Japão
apaziguaria os espíritos dos japoneses e permitiria que eles vivessem bem. Valignano chega a escrever
que a religião traria uma “paz dourada” ao conectar os fieis entre si e fazê-los respeitar seus senhores,
reprimindo a cobiça e garantindo o direito à propriedade.138
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