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Carmen Margarida Oliveira Alveal

Carmen Margarida
Leonardo Oliveira
Cândido RolimAlveal
Leonardo Cândido Rolim
Soraya Genorrazo
Soraya Genorrazo Araújo
Araújo
Thiago
Thiago Alves Dias
Dias
(Orgs.)
(Orgs.)

ANAIS
VII EIHC
Espaços coloniais:
domínios, poderes e
representações

Natal/RN - 5 a 8 de setembro de 2018

Carmen Margarida Oliveira Alveal


Leonardo Cândido Rolim
Soraya Genorrazo Araújo
Thiago Alves Dias
(Orgs.)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
Reitora
Ângela Maria Paiva Cruz
Vice-Reitor
José Daniel Diniz Melo

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE


Reitor
Pedro Fernandes Ribeiro Neto
Vice-Reitor
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Diretora de Sistema Integrado de Bibliotecas
Jocelânia Marinho Maia de Oliveira
Chefe da Editora Universitária – EDUERN
Anairam de Medeiros e Silva

CONSELHO EDITORIAL DAS EDIÇÕES UERN


Emanoel Márcio Nunes
Isabela Pinheiro Cavalcante Lima
Diego Nathan do Nascimento Souza
Jean Henrique Costa
José Cezinaldo Rocha Bessa
José Elesbão de Almeida
Ellany Gurgel Cosme do Nascimento
Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho
Wellignton Vieira Mendes

Catalogação da Publicação na Fonte.


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

Anais do VII Encontro Internacional de História Colonial. / Carmen


Margarida Oliveira Alveal et al. (orgs.). - Mossoró – RN: EDUERN,
2018.
2349 p.
(e-book).
ISBN: 978-85- 7621-245-4
1. História do Brasil. 2. História do Brasil Colônia 3. História Co-
lonial. I. Alveal, Carmen Margarida Oliveira. II. Universidade do Es-
tado do Rio Grande do
Norte. III. Título.
UERN/BC CDD 981.01

Bibliotecária: Rayssa Ritha Marques Gondim Fernandes CRB 15 / 812


558 A presença de São Benedito nos conventos franciscanos do nordeste no Brasil
Colonial.
Ivan Cavalcanti Filho

581 Repercussões da arte colonial no conjunto arquitetônico religioso do Senhor do


Bon- fim de Chorrochó
Jadilson Pimentel dos Santos

593 A narrativa plástica dos quinze mistérios do rosário no forro da nave da capela de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila de São José, MG (c. 1820)
Luciana Braga Giovannini

616 Nascimento e conversão de São Francisco de Assis em azulejos


Sílvia Barbosa Guimarães Borges

629 SIMPÓSIO TEMÁTICO 09


Representações da África e do Oriente: formas de ler e pensar os domínios
portu- gueses do colonial ao pós-colonial.

“Para favorecer a cristandade”: As iniciativas de conversão aos “meninos” em Goa


629
(1540-1606)
Camila Domingos dos Anjos

641 Nos paradigmas do pensamento pós-colonial: abordagens e desafios das inter-


disciplinaridades em África e em Ásia no ensino de História
Jorge Lúzio

652 Lunyu e a Representação jesuítica de Confúcio para a Europa.


Renan Morim Pastor

665 Os Japoneses no Pensamento Racial de Alessandro Valignano, SJ (1539-1606)


Rômulo da Silva Ehalt

679 SIMPÓSIO TEMÁTICO 10


Cultura Escrita no mundo ibérico colonial: manuscritos e impressos.

679 Usos de The HistoryofAmerica (1777), de William Robertson, nas memórias de


Alexandre Rodrigues Ferreira escritas durante a Viagem Filosófica (1783-1792)
Breno Ferraz Leal Ferreira
Os Japoneses no Pensamento Racial de Alessandro Valignano, SJ (1539-1606)
Rômulo da Silva Ehalt89

O professor Jorge Cañizarres-Esguerra, palestrante de encerramento do Encontro Internacio-


nal de História Colonial de 2018 em Natal, foi autor de um influente artigo defendendo que a ciência
da raça tem em suas origens os debates de humanistas e teólogos da nova escolástica no Novo Mundo.
Na América hispânica, estes debates tiveram como foco a classificação das nações de acordo com
fatores como a existência de cidades, o conhecimento da construção de arcos, a organização em hie-
rarquias sociais, a criação de sistemas de escrita, a prática de religiões e rituais de maneira “correta”,
o conhecimento de códigos de vestimenta, e a compreensão de leis naturais alimentares e sexuais.90
Seguindo os passos de Cañizarres-Esguerra, o presente trabalho aborda uma das muitas taxonomias
raciais criadas no oriente português: a teoria racial de Alessandro Valignano. Especificamente, fala
sobre como as suas ideias a respeito dos japoneses se desenvolveram de acordo tanto com a sua expe-
riência com o Japão quanto com as necessidades da missão jesuíta no Extremo Oriente.91

Valignano nasceu em 1539 na cidade italiana de Chieti, no Reino de Nápoles, então sob domí-
nio espanhol.92 Em 1574, o jesuíta chega a Goa como visitador das missões da ordem na Ásia. A partir
daí até o final do século XVI, Valignano escreve diversos relatórios, sempre tentando esclarecer as di-
ficuldades e os desafios enfrentados pelos missionários, bem como apresentar aos superiores o estado
“real” das missões. Um dos primeiros esforços neste sentido é envidado em 1577, quando Valignano
escreve o seu Summarium Indicum, uma longa descrição da província jesuíta da Índia, que na época
abarcava todas as missões asiáticas. O relatório foi escrito com menos de dois meses de experiência
na Península Malaia, entre os dias 22 de novembro e 8 de dezembro. É aqui que o visitador começa a
desenvolver suas ideias sobre as raças asiáticas.

O primeiro passo do visitador é dividir a Ásia em duas grandes porções: de um lado, Japão e
China, e do outro, o resto. Esta primeira classificação é feita com base na cor da pele dos asiáticos e o
seu entendimento da religião. Valignano registra que os povos da Ásia são, em sua maior parte, negros

89 Professor contratado da Faculdade de Direito da Universidade Keio, em Tóquio, e da Universidade Inter-


nacional Josai, em Chiba, Japão. Este texto é parte revisada da minha tese, “Jesuits and the problem of slavery
in early modern Japan”, entregue em setembro de 2017 e defendida em fevereiro de 2018 na Universidade de
Estudos Estrangeiros de Tóquio, Japão. A parte inicial da pesquisa recebeu financiamento da Japan Society for
the Promotion of Science, entre 2011 e 2014 (research fellow, categoria DC-1). Todas as traduções são de minha
inteira responsabilidade, exceto quando indicado em contrário.
90 CAÑIZARRES-ESGUERRA, Jorge. New World, New Stars: Patriotic Astrology and the Invention of Indian
and Creole Bodies in Colonial Spanish America, 1600-1650. The American Historical Review, Oxford Univer-
sity Press em nome da American Historical Association Stable, v. 104, n. 1, p. 66-67, fev. 1999.
91 Recentemente, dois autores se debruçaram sobre o lugar dos japoneses no pensamento racial europeu: KEE-
VAK, Michael. Becoming Yellow: A Short History of Racial Thinking. 1. ed. Princeton: Princeton University
Press, 2011; e KOWNER, Rotem. From White to Yellow: The Japanese in Europe Racial Thought, 1300-1735. 1.
ed. Québec: McGill-Queen’s University Press, 2014.
92 Detalhe sempre lembrado por Giuseppe Marino em seus trabalhos. Ver, por exemplo, MARINO, Giuseppe.
La transmisión del Renacimiento cultural europeo en China. Un itinerario por las cartas de Alessandro Valig-
nano (1575-1606). Studia Aurea, Girona e Barcelona, Espanha, v. 11, p. 397, 2017.

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[è tutta di color negra], enquanto japoneses e chineses teriam a pele branca como a dos europeus [è
Bianca como la nostra di Europa].93 Neste momento, Valignano também entende que os japoneses
teriam uma capacidade mais aguçada para entender a religião, acreditando ser suficiente para explicar
os resultados mais positivos obtidos pelos missionários no Japão.94

Valignano chega ao Japão em 1579, onde começa a trabalhar numa revisão do seu Summarium
Indicum. É no arquipélago japonês que o visitador tem a sua primeira revelação: ele percebe que a
realidade apresentada nas cartas de seus companheiros nem sempre correspondia ao que ele pôde
verificar pessoalmente no Japão. Assim, Valignano nota o quão pouco sabia sobre os japoneses.

Em uma carta escrita no final de 1579 a Everardo Mercuriano, superior-geral da companhia,


Valignano aponta quatro fatores que contribuiriam para a falsa percepção da realidade a respeito da
missão japonesa: primeiro, a falta de conhecimento do idioma e dos hábitos japoneses fazia com que
os missionários se deixassem levar pelo comportamento aparente dos locais, acreditando que estes
refletiam suas crenças e maquinações internas; segundo, alguns missionários exageravam ou maquia-
vam a realidade em seus textos, com o objetivo de escrever cartas consideradas boas; terceiro, outros
jesuítas escreviam como se tudo fosse movido por um espírito puro dos japoneses, ignorando aqueles
que tinham interesse somente nas vantagens comerciais da conversão; e, quarto, alguns missionários
descreviam pequenas vitórias pessoais como se refletissem tudo que se passava no Japão, dando uma
falsa impressão do resultado geral da missão.95

Assim, fatores políticos, linguísticos e culturais seriam os responsáveis por criar uma barreira
dificultando para aqueles fora do Japão a compreensão do que se passava na missão. Deste modo, a
revisão que Valignano se propunha fazer do Summarium Indicum no Japão não tinha somente como
objetivo agregar fatos novos, mas sim corrigir o que ele considerava uma imagem distorcida transmi-
tida por colegas a respeito da realidade da missão japonesa.

Munido agora do argumento da experiência a seu favor, Valignano mantem em seu texto a
divisão entre asiáticos brancos e negros, mas apura a sua descrição dos japoneses e da sociedade japo-
nesa de acordo com as dificuldades que ele encontra nas relações sociais no Japão. Valignano passa a
descrever os japoneses como corteses, dizendo que seriam tão polidos que excederiam todos os outros
povos, e possuidores de grande engenhosidade, ainda que não tivessem “ciência”. Como herdeiro da
leitura de Aristóteles através da Segunda Escolástica, muito provavelmente o que Valignano quis dizer

93 WICKI, Josef (Coord.). Documenta Indica XIII. 1. ed. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu, 1975. p.
5. Ver também a discussão de Keevak. KEEVAK, Michael. Op. cit., p. 26-42.
94 Neste momento, a missão jesuíta na China ainda não havia sido retomada, o que só viria a acontecer em
1582. WICKI, Josef. Op. cit., p. 9-10. Paolo Aranha também indica que esta diferença é usada por Valignano
para explicar porque o método da adaptação cultural não poderia ser usado em outras partes da Ásia. ARA-
NHA, Paolo. Gerarchie Razziali e Adattamento Culturale: La ‘Ipotesi’ Valignano. In: TAMBURELLO, Adolfo;
ÜÇERLER, Antoni; DI RUSSO, Marisa (Org.). Alessandro Valignano S.I. – Uomo del Rinascimento: Ponte tra
Oriente e Occidente. Rome: Institutum Historicum Societatis Iesu, 2008. p. 86-88.
95 VALIGNANO, Alessandro (aut.); WICKI, Josef (ed.). Historia del Principio y Progresso de la Compañia de
Jesús en las Indias Orientales (1542-64). Roma: Institutum Historicum S.I., 1944. p. 481-482. Schütte acredita
que a carta foi escrita em dezembro daquele ano. Ver SCHÜTTE, Josef Franz. Valignanos Missionsgrundsätze
für Japan. Erster Band 1573-1582, Erster Teil 1573-1580. Rome: Edizioni di Stori e Letteratura, 1951, p. XXXIV.

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com ciência foi o arranjo organizado e a demonstração de sequências de verdades em uma área parti-
cular de acordo com princípios relevantes àquela área. Assim, ele não somente excluiu os japoneses da
ciência como considerou impossível o aprendizado e a discussão de conhecimentos produzidos pelos
japoneses. A justificativa desta incapacidade viria de outra característica apontada por Valignano, a
violência dos japoneses, tidos como “la más belicosa gente y dada a guerra de quantas en el mundo
hai.”96

A caracterização dos japoneses como povo belicoso teria um profundo impacto na avaliação
do visitador sobre o modo como se davam as relações políticas no Japão. Para Valignano, o cenário
político japonês era marcado pela insegurança e inconstância. O jesuíta faz assim uma referência ao
fenômeno conhecido na história japonesa como Gekokujō, uma espécie de motim militar onde
súditos ou “vassalos” matam o senhor para assumir a sua posição. Ao mesmo tempo, Valignano en-
tende que a vida humana tinha muito pouco valor para senhores japoneses, e explica que súditos e
familiares podiam ser facilmente condenados à morte por seus senhores e patriarcas. A constante
ameaça de revoltas e traições, aliada ao pouco valor que os japoneses dariam à vida humana, fazem
com que o jesuíta determine que o Japão vivia em um estado de extrema insegurança política. Este
ponto é apresentado por Valignano como crucial para não somente mostrar como as relações políticas
se davam no Japão como também provar a impossibilidade de que, dada tamanha volatilidade, supe-
riores em Roma ou na Índia fossem capazes de responder às demandas missioneiras em tempo hábil.97
Em outras palavras, perguntava-se uma coisa e quando a resposta chegava a situação já era outra. De
fato, poucos anos antes da chegada de Valignano ao Japão, o senhor Oda Nobunaga expulsou o então
xogum Ashikaga Yoshiaki de Kyoto, colocando-se no topo da administração militar do Japão e pondo
fim aos quase dois séculos e meio de poder do regime conhecido como Muromachi Bakufu.

Em seu texto, o visitador nota ainda que os senhores gastavam pouco dinheiro e eram impres-
sionantemente pobres; mesmo assim, estes senhores faziam questão de muitas formalidades e códigos
de conduta. Quando os europeus, inclusive os missionários, não sabiam como dialogar de acordo com
estes códigos, acabavam sendo tratados como crianças, que tinham que aprender como comer, como
se sentar, como falar, como se vestir e como realizar todas as formalidades.98 Portanto, outro fator que
tornava a dependência de instruções vindas de fora perigosa para os missionários no Japão era que a
falta de conhecimento a respeito das linguagens políticas locais tornaria impossível para jesuítas na
Índia e na Europa entenderem o que era esperado dos missionários no Japão e como orientar exter-
namente a missão.

Ainda na revisão do seu Summarium Indicum de 1579, Valignano aponta alguns aspectos
negativos sobre os japoneses. Por exemplo, ele condena os hábitos nefandos praticados pelos monges
budistas e por pais em relação às crianças, incluindo homossexualidade, pedofilia e infanticídio. Além
disso, o jesuíta diz que toda a legislação japonesa era injusta e contrária à razão natural. Isto dificultava
não apenas a conversão dos japoneses mas também a sua obediência às leis cristãs. Caso os jesuítas
96 WICKI, Josef (Coord.). Documenta Indica XIII. 1. ed. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu, 1975.
p. 202-203.
97Idem, pp. 203-4.
98Idem, pp. 205-6.

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fossem bem-sucedidos, o visitador previa bons frutos com base na opinião de que os japoneses seriam
a gente “…más apta para ser cultivada y tomar bien las cosas de nuestra ley, y salir la major chrystan-
dad de todo el Oriente” [mais apta para ser cultivada e tomar bem as coisas da nossa lei, e tornar-se a
maior cristandade de todo o oriente]99.

Neste período, Valignano mostra um interesse particular em entender os códigos comporta-


mentais e linguagens políticas do Japão. O resultado deste interesse é a escrita entre 1581 e 1584 do
manual Advertimentos e Avisos acerca dos Costumes e Catangues de Jappão.100 Tratava-se de um
manual para os missionários saberem como se portar no Japão e aprenderem o peso político não so-
mente de suas palavras como de suas ações. O título dá uma boa indicação do modo como Valignano
compreendia essa diferença. A palavra catangue aparece traduzida no dicionário Nippo Jisho de 1603
como costume; mas o dicionário trilíngue elaborado pelos missionários em 1595 traduz o termo como
“conversação” ou “amizade”. Isto não apenas mostra como as regras descritas tinham como alvo as
relações com os japoneses, mas a inclusão de ambos os termos catangue e costume no título reitera a
diferença entre os hábitos europeus e os japoneses. Podemos dizer que ambos são apresentados por
Valignano como conceitos semelhantes mas diferentes, sendo duas faces de uma mesma moeda de
normas sociais.

Valignano elabora então um manual que não somente ensina como os missionários deveriam
agir perante os japoneses, mas também como não agir para que não fossem vistos como inferiores.101
A observância das regras japonesas deveria ser adotada inclusive dentro das casas jesuítas, para que
não houvesse discrepância entre com o seu comportamento porta afora.102103

De volta à Índia, Valignano dedicou boa parte do ano de 1583 a escrever a sua Historia del
Principio y Progresso de la Compañia de Jesús en las Indias Orientales. Cobrindo o período de 1542 a
1564, a história havia sido comissionada pelo geral Everardo Mercuriano em 1574, e foi escrita a partir
tanto de fontes escritas quanto de relatos testemunhais de padres como Henrique Henriques e Fran-
cisco Peres, experientes missionários atuantes desde a época de Xavier na Ásia. O manuscrito chegou
inclusive a ser usado no processo de canonização de Francisco Xavier.104

Valignano descreve os japoneses reiterando suas capacidades e adequação à conversão. Mas,


complementando textos anteriores, o visitador traça uma linha entre as características naturais dos ja-
poneses e suas práticas sociais, elogiando mais as primeiras do que as segundas. É aqui que ele defende

99Idem, p. 207.
100 Publicado e traduzido por Josef Franz Schütte e Michaela Catto. VALIGNANO, Alexandro (aut.); SCHÜT-
TE, Josef Franz (ed.); CATTO, Michela (ed.). Il Cerimoniali per I Missionari del Giappone. Roma: Edizioni di
Storia e Letteratura, 2011. Ver ainda SCHÜTTE, Josef Franz. Valignanos Missionsgrundsätze für Japan. Erster
Band 1573-1582, Erster Teil 1573-1580. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 1951, p. XXXVI; e BOXER,
Charles Ralph. The Christian Century in Japan, 1549-1650. Berkeley, Los Angeles e Londres: University of Ca-
lifornia Press, Cambridge University Press, 1951, p. 478.
101 VALIGNANO; SCHÜTTE; CATTO. Op. cit., p. 146.
102 VALIGNANO; SCHÜTTE; CATTO. Op. cit., p. 242.
103 VALIGNANO; SCHÜTTE; CATTO. Op. cit., p. 272-274.
104 WICKI, Josef. Der Zweite Teil Der Historia Indica Valignano’s. In: Archivum Historicum Societatis Iesu,
Roma: Societatis Iesu, n. 7, p. 277-278, jan. 1938.

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a necessidade da intervenção jesuíta no Japão para salvar os japoneses.

Valignano compara os japoneses a outros asiáticos, contrastando especificamente os japoneses


com os hindus. Ao falar dos hindus, o visitador diz que:
“...cuentan tantas cosas ridículas y fabulosas, repugnantes a todo sentido y
razón, y tantas historias y transformaciones suzias y deshonestas, que exceden a las
que cuenta Ovidio en su Methamorphoseos, de manera que paresce cosa imposible
hombres de razón y discurso poder creer cosas tan impossibles y monstruosas como
ellos creen. En lo qual por cierto se echa mucho de ver quán grande es la gracia y luz
que los christianos recebimos de Dios, sin la qual es averiguado que semejantes men-
tiras se encaxarían como verdades en nuestros entendimientos, assí como encaxaron
en los griegos y en los romanos, que eran tan discretos y sabios, y agora son creydas
de los japones, chinas y otras muchas naciones de grande entendimiento y juyzio
natural.”105

Valignano faz uma clara distinção entre mitologia e razão crista. Usando a obra Metamorfose,
de Ovídio, ele faz um paralelo entre os japoneses e os gregos e romanos da antiguidade, uma estraté-
gia retórica muito comum entre os defensores da missão japonesa. Movidos por inspiração divina, os
povos da antiguidade abandonaram suas crenças anteriores em prol da fé cristã. Valignano sublinha,
contudo, que os mitos dos hindus haviam ultrapassado em absurdo aqueles dos gregos e dos romanos.
Para o jesuíta, os hindus estariam em um ponto sem retorno, para além da sua salvação. O visitador
classifica então três grupos de acordo com suas crenças: os hindus, cujo absurdo de seus mitos dificul-
tava a sua salvação; os romanos e os gregos, que abandonaram seus mitos e se salvaram; e os japoneses
e chineses que, tendo o mesmo potencial dos gregos e dos romanos, podiam ser orientados para o
caminho da iluminação cristão. Com estes argumentos, Valignano defende a importância das missões
do Extremo Oriente. O visitador lembra as descrições dos japoneses feitas por mercadores que acaba-
ram levando Xavier a ir ao arquipélago em 1549:
“se encendió el Pe M. Francisco en un vivo desseo de yr a manifestar el nom-
bre y Evangelio de Jesú Christo nuestro Señor en aquellas partes, paresciéndole que,
siendo tal la gente y tan diferente de toda la gente negra, se haría en ella más fructo y
más sevicio de nuestro Señor.”106

Valignano dedica três capítulos de sua História para descrever o Japão antes da chegada de
Xavier em 1549. Aqui ele reitera a cortesia e os códigos de conduta do Japão, chegando a afirmar que
eles seriam mais polidos do que todos os povos da Ásia, e talvez mais do que os próprios Europeus.
Sua capacidade de entendimento é explicada pelo alto grau de alfabetização mesmo entre o que ele
chama de “gente baixa”, e que mesmo o mais rude dos japoneses não era tão rude e incapaz quanto os
rudes europeus.

Valignano explica novamente o extremo poder da autoridade paternal sobre a vida e morte de
súditos e familiares, mas agora faz distinção entre diferentes camadas sociais.107 Em seguida, faz uma
breve exposição sobre a belicosidade dos japoneses, e descreve em linhas gerais as punições legais usa-
das no Japão. Ele explica que não havia prisões, e que as punições se restringem a exílio, pena capital,

105 VALIGNANO; WICKI. Op. cit., p. 34.


106Idem, p. 111.
107Idem, p. 126-130.

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confisco de terras e crucificação.108

A seguir, Valignano descreve o que ele classifica de “estranhos costumes” dos japoneses. Aqui
ele os caracteriza como um povo de contradições: por um lado, tinham características superiores aos
europeus, mas de outro compartilhavam hábitos e costumes com outras nações gentias. Mesmo que
fossem um povo racional e de entendimento, Valignano lembra que eles eram, acima de tudo, gentios.
Por isso, eram sujeitos a leis nefastas, grandes vícios, guerras contínuas e outros maus hábitos que
contribuíam para corromper suas boas qualidades. E era exatamente pelo fato de suas boas qualidades
ainda existirem mesmo que tantos hábitos ruins é que Valignano acredita que eles eram aptos à fé
cristã. Valignano chega a firmar que: “(...) entre ellos no hay blasphemias, ni juramentos, ni murmu-
raciones, ni detractiones, ni palabras injuriosas, ni hurtos, sacando los que se hazen con especie de
guerra, o de arrendadores, o de alguns piratas de la mar (...).109

A natureza dos japoneses, com algumas exceções, era então descrita como honrada e justa,
apesar de suas leis e práticas gentias. Valignano descreve então as cinco qualidades ruins dos Japone-
ses: vícios pecaminosos, deslealdade com seus senhores, mentira, desrespeito pela vida humana e con-
sumo exagerado de álcool.110 Ao final, o visitador conclui que eram tantas diferenças entre europeus e
japoneses que “no se podia escrebir todo en pequeño volumen.”111

No último capítulo dedicado ao Japão antes da chegada de Xavier, Valignano descreve as reli-
giões japonesas – como elas chegaram ao arquipélago a como foram usadas para subjugar os japoneses
ao domínio dos monges. Ele compara a doutrina religiosa do Japão com a doutrina de Lutero, ambas
ensinadas pelo demônio (“el demonio, padre de ambos”).112

Os três capítulos da História seriam revisados e incluídos no começo de um outro manuscrito


dedicado inteiramente ao Japão: o Sumário de Japón, completado no final do ano de 1583 durante a
estadia do visitador em Cochim e poucos meses antes de ter escrito a História.113. O Sumário apresenta
uma visão aprofundada de como o trabalho missionário deveria ser organizado no Japão, e foi elabo-
rado durante o tempo em que Valignano passou no sul da Índia preparando os embaixadores japone-
ses da missão Tenshō para ir à Europa. O objetivo do sumário era auxiliar os superiores da ordem em
Roma a tomar decisões relativas ao Japão e reiterar a necessidade de maior autonomia. As atitudes e
hábitos que os missionários jesuítas assumiram no oriente em detrimento de seus votos originais de
pobreza são explicados como necessidade para que os padres fossem respeitados tanto pelos conver-
sos quanto pelos japoneses em geral.

O Sumário se apresenta como uma peça fundamental para o argumento do exotismo da mis-
são japonesa. Sobre a singularidade dos japoneses, Valignano escreve:
108Idem, p. 130-132.
109Idem, p. 136-138.
110Idem, p. 138-142.
111Idem, p. 142-154.
112Idem, p. 161.
113 Para uma discussão sobre a data do manuscrito e as revisões feitas por Valignano dos três capítulos, ver AL-
VAREZ-TALADRIZ, José Luis. Sumario de las Cosas de Japon (1583), Adiciones del Sumario de Japon, Tomo
I. Tóquio: Sophia University, 1954, p. 178*-190*.

670
“...es porque las cualidades, costumbres y modos de proceder de los japones
son del todo tan contrario y incógnitos a los de India y de Europa, que esa poca co-
municación que se puede tener no sé cuando podrá ser provechosa, porque lo que se
pasa en Japón, a mi juicio, no se puede bien entender si no es por los que por vista y
experiencia lo saben, y parece que no se puede dar a entender ni personalmente por
los que saben mucho de Japón, cuanto menos por cartas (...)”114

Para o visitador, não valia a pena esperar por respostas de superiores em Roma e Goa dada a
natureza distinta do trabalho missionário no Japão. Valignano chega a declarar que não importava o
modo como os prelados e padres na Europa vissem a situação no Japão, eles jamais seriam capazes
de entender as idiossincrasias da missão japonesa. Assim, o visitador defende que a missão precisava
ser capaz de tomar decisões por conta própria seguindo sempre as constituições da ordem e outros
dogmas católicos.115 Isto se aplicaria também às dificuldades morais enfrentadas na missão japonesa,
que nem sempre poderiam esperar por decisões enviadas da Europa. No capítulo 20 do seu Sumário,
Valignano descreve alguns dos desafios da missão:
“… las costumbre, leyes y casos de Japón son tan extraños y tan nuevos, que
en la decisión y determinación de ellos no se puede hombre en ninguna manera guiar
por las resoluciones de Cayetano ni de Navarro ni de otros sumistas de Europa, mas
allende de las letras es necesario un gran discurso y prudencia en Japón para juzgar,
adquiridos con mucha experiencia de las costumbres, gobierno y modo de proceder
de Japón, con la cual, aplicando las reglas universales y naturales a los casos parti-
culares de Japón, venga a determinar lo que se ha de seguir en casos tan dificultosos
y nuevos; y como en éstos se incluyan muertes, cautiverios, destierros, pérdidas de
hacienda y aun casos tocantes a la religión, acerca de lo que pueden o no pueden con
los cristianos hacer acerca del obedecer a sus señores gentiles en lo que mandan que
parece contener algún culto y servicio de sus ídolos, en los cuales permitiéndoles lo
que de razón no se puede se hace[r] contra la religión, y prohibiendo (...) lo que no se
puede permitir corren peligro muy grande los cristianos de ser muertos y desterrados
y de perder sus haciendas, bien se entiende también cuán gravemente en todo esto se
puede errar.”116

Estas dificuldades são continuamente repetidas por todo o texto, levando o visitador a classi-
ficar o Japão como uma das “mayores, más importantes y más dificultosas y peligrosas provincias que
la Compañia tiene.”117 Como exemplo, Valignano menciona o modo como os conversos eram tratados
no Japão em comparação com o que viu em outras missões:
“El modo de su gobierno es libre porque no tenemos en Japón ninguna juris-
dicción ni los podemos compeler a más que a lo que ellos quieren hacer persuadidos
de los Padres, y de la razón movidos, ni admiten palmatoadas ni azotes ni cárceles
ni otras cosas que se usan comúnmente con los demás cristianos de Oriente (...)”118

Deixando de lado o fato de que os jesuítas considerariam normal tratar a palmadas e com
açoites conversos em outras regiões, percebe-se que a relação entre os padres e os conversos também
é apresentada como única. Assim, Valignano mostra o quanto a experiência da missão era importante
para se conhecer os meandros das relações sociais e políticas na sociedade japonesa:

114Idem, p. 135.
115Idem, p. 223.
116Idem, p. 220-221.
117Idem, p. 223.
118Idem, p. 168.

671
“La segunda cosa no menos necesaria es la experiencia de la tierra porque,
como está dicho, son las costumbres, negocios, modo de proceder y todo lo demás
tan contrarios a los nuestros, que aunque los hombres sean de mucha capacidad y
prudencia y muy acostumbrados a gobernar en otras provincias, en Japón se hallan
muy nuevos, embarazados y como ciegos hasta que tengan por mucho tiempo la ex-
periencia de las cualidades y costumbres de la tierra (...).”119

As diferenças de hábitos e costumes geravam uma enorme gama de desafios para a aplicação
da teologia moral e sua casuística no Japão. Na prática, Valignano sugere que os missionários preci-
savam ter autoridade para permitir dispensações eclesiásticas e aceitar casos excepcionais quando
necessário.120 O visitador acreditava que as obras de autoridades teológicas como Caetano e Navarro
eram incapazes de oferecer soluções viáveis para a frágil situação política dos missionários no Japão,
sendo assim necessário considerar soluções específicas e capacitar jesuítas no Extremo Oriente para
que escrevessem seus próprios manuais e tomar suas próprias decisões.

Em 1590, o colégio jesuíta de Macau imprime a obra De missionum legatorum Iaponensium


ad Romanam curiam, ou Diálogo dos Embaixadores Japoneses à Cúria Romana, que descreve as ex-
periências dos quatro japoneses enviados à Europa em 1582. O trabalho foi escrito em espanhol por
Valignano com base em diários e anotações dos embaixadores, e posteriormente foi traduzido para o
latim pelo padre português Duarte de Sande em Macau.121 Composto como um longo diálogo entre
os quatro jovens depois de voltar ao Japão e dois japoneses que não foram à Europa, trata-se de um
trabalho de ficção que foi escrito entre 1588 e 1589, a tempo de coincidir com a chegada da missão
no arquipélago em 1590. Recentemente, o historiador Rotem Kowner classificou esta obra como uma
dissertação de mão-única sobre a superioridade europeia, cristã e mesmo do Japão sobre a China, e
portanto um dos mais importantes tratados sobre raças do período.122

A historiadora Nina Chordas explica que diálogos modernos eram um gênero de semificção,
no sentido de que insistiam em serem aceitos como uma entidade “com alguma agência sobre o mun-
do real e material”. Como gênero literário, o diálogo era resultado de um ambiente de “desconfiança

119Idem, p. 224.
120Idem, p. 226.
121De missionum legatorum Iaponensium ad Romanam curiam, rebusq, in Europa, ac toto itinere animaduer-
sis dialogus. 1. ed. Macau: Societatis Iesu, 1590 (doravante referido como DMLI). Segundo o site da Laures
Rare Book Database, “There are a good many copies of known and probably many more not made known to
scholars. The only copy in [Japan] in the Collection of the late Professor Kōda Shigetomo  was donated
to the Keiō University , which again donated it to the Tenri Central Library . Other copies are
known to be in the "Pei-t'ang Library ", in Beijing , in the "Biblioteca da Ajuda", in the "Biblioteca de
Évora", in the archives of "Torre do Tombo", two in the "Biblioteca Nacional de Lisboa", one incomplete copy
dated 1589, as we saw, in the "Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra", one in the University of Seville,
one in the "Oliveira Lima Library" of the Catholic University of America, Washington, and one in the Public
Library of Paris.” É mencionada ainda uma reedição de 1593, mas aparentemente não há cópias preservadas
desta segunda edição. Aurelio Vargas Díaz-Toledo menciona ainda outras três cópias, no Porto, em Londres e
Madri, totalizando treze exemplares. DÍAZ-TOLEDO, Aurelio Vargas. Uma primeira aproximação do corpus
dos Diálogos Portugueses dos séculos XVI-XVII. In: Criticón, n. 117, 2013, p. 77-78. Sobre a autoria do livro,
ver MORAN, J.F. The real author of de missione legatorum Iaponensium ad Romanam curiam... dialogus – A
Reconsideration. In: Bulletin of Portuguese - Japanese Studies, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, n. 2, p.
7-21, 2001.
122 KOWNER. Op.cit., p. 131.

672
generalizada sobre a literatura ficcional” neste período, oferecendo-se então como alternativa à mente
racional.123 Tais textos jamais seriam, como indicado por Jon R. Snyder, “transcrições de conversas
ou debates realmente ocorridos (...); não há quaisquer traços de oralidade no diálogo, com exceção
de ilusões cuidadosamente manufaturadas.”124 Os diálogos não apenas eram ferramentas didáticas de
transmissão de ideias ou exposição de matérias, mas também veículos para a apresentação de perso-
nagens ideais e das virtudes necessárias para se imitar tais personagens ideais.

Como trabalho de transcrição de uma espontaneidade artificial, o diálogo propunha uma co-
nexão intermediada entre as impressões dos embaixadores e o que os jesuítas desejavam que seus
seminaristas soubessem sobre a Europa.

O diálogo apresenta uma teoria geral das raças e sua gênese como características definidoras
do papel cumprido por cada grupo humano, sumarizando as ideias de Valignano.125 É neste texto que
o jesuíta explica como entendia a origem das raças e os fatores que determinavam este processo, dis-
tinguindo-se então de textos anteriores por ir além da descrição. Herdando ideias apresentadas pelo
visitador em trabalhos anteriores, o tópico começa a ser discutido com a descrição da raça dos por-
tugueses. Um dos personagens questiona a relação entre raça e escravidão, dizendo: “Vidimus enim
multo nauibus ad nos vehi nigros illos quidem, sed mercatorum seruos, & audiuimus, in hoc Lusita-
norum genere nobiles candido colore, obscuro loco natos nigros esse velut ad seruitutem genitos.”126
[Vemos muitos daqueles negros trazidos até nós em navios, mas eles são escravos dos mercadores, e
também ouvimos dizer que entre os portugueses os nobres são brancos, mas os nascidos humildes são
negros, como se nascidos para a escravidão.]

Esta afirmação reflete diretamente a ideia aristotélica da servidão natural, mas a resposta dada
por um dos embaixadores é que todos os portugueses eram brancos, e que não tinham nem rostos
negros, nem distorcidos, nem irregulares – vel nigris facem sunt, vel distorta, vel pravis lineame[n]
tis – e que na verdade eram um povo de belas faces, com uma compleição física apropriada e de cores
suaves e outros dons notáveis de natureza e criatividade – “egregiam faciem, aptam membrorum com-
positionem cum quadam coloris suavitate, aliaque infignia naturae & artis dona in ecce certum est”. O
embaixador explica então que as raças não eram definidas por nobreza ou humildade, mas sim pelo
ambiente e por seu país. Portanto, os negros vistos pelos japoneses eram escravos trazidos de muitos
reinos do oriente – servi sunt ex varijs Orientis regnis coempti.127 Aqui, fica claro que Valignano aban-
dona a certeza de uma origem bíblica como o único fator para a diferenciação racial em prol da dúvida
e da ambiguidade. Além disso, ao determinar que as raças não se definiam por características como
nobreza ou humildade, o que Valignano diz é que a escravidão não era natural, mas sim resultado de
outros fatores.

123 CHORDAS, Nina. Forms in Early Modern Utopia: The Ethnography of Perfection. 1. ed. Surrey, Reino
Unido e Burlington, Estados Unidos: Ashgate, 2010, p. 17-18.
124 SNYDER, Jon R. Writing the Scene of Speaking: Theories of Dialogue in the Late Italian Renaissance. 1. ed.
Stanford: Stanford University Press, 1989, p. 17.
125 Este discurso foi analisado recentemente por Rotem Kowner. KOWNER. Op.cit.
126 DMLI, p. 17.
127 DMLI, p. 17.

673
Isto fica claro na sua explicação para a origem da negritude. Um dos ouvintes japoneses levan-
ta a questão:
“Dubitatio non parua se mihi offere circa istarum: gentium colorem si enim
omnes homines à primis parentibus Adamo, & Eva originem habent, & illi, ut certum
videtur, candido, & pulchro colore nati sunt, qui fieri potuit, ut tam multae gentes
paulatim nigrum colorem induerent?”128

[Para mim, existe uma grande questão sobre a cor das pessoas: se todos os
homens vêm de Adão e Eva, e se eles, como parece ser, nasceram brancos e belos,
como foi que muitas pessoas gradualmente se tornaram negras?]

Em resposta, os embaixadores listam os diversos fatores que contribuíram para o enegreci-


mento de parte da humanidade e consequentemente o surgimento das raças. Em primeiro lugar, eles
comentam a ideia do excesso de calor como uma das causas para a negritude. Esta seria uma ideia
defendida por geógrafos e filósofos com base na asserção de que as pessoas que viviam na chamada
zona tórrida estariam expostas ao intenso calor do sol, ficando assim enegrecidas. Contudo, o texto
lança dúvidas sobre esta explicação com base na experiência portuguesa, lembrando que alguns po-
vos malaios eram mais claros do que habitantes do Cabo da Boa Esperança, apesar de viverem mais
próximo do equador. Portanto, o calor não seria capaz de explicar totalmente a origem da negritude.
O embaixador sugere então que a negritude seria resultado também de características hereditárias,
dado que pessoas negras ainda produzem outras pessoas negras mesmo em locais frios. Assim, um
segundo argumento para a negritude é apresentado: a semente e a natureza dos pais. Após mencionar
a miscigenação e mulatos, o texto aponta que “Unde prorsus fit, non calori sed genitali alicui causae
colorem esse ascribendum” – “ao que parece, a cor não deve ser atribuída somente ao calor (…)”.

O diálogo menciona a maldição de Cam, segundo a qual os negros seriam oriundos dos des-
cendentes deste filho de Noé. O texto menciona que a maldição não está na Bíblia, mas que seria
apenas mais um dos muitos eventos que ocorreram historicamente mas não são registrados nas escri-
turas. Como argumento a favor da teoria da maldição como origem da negritude, o texto fala da ex-
pressão distorcida dos africanos, uma expressão triste, com uma natureza rude e ignorante, inclinada
à desumanidade e a ferocidade. Mas um dos personagens do diálogo suspeita da explicação, e diz que
a maldição poderia ser oriunda de outro evento distinto, dado que o único fato que a comprova é a
fisionomia dos negros. Portanto, os embaixadores concluem que a negritude tinha como origem uma
combinação dos três argumentos: o calor excessivo, a semente dos pais, e algum tipo de maldição.

Esta hesitação que o autor demonstra em relação a tomar partido de alguma das explicações é
um argumento necessário para que assim ele possa incluir os asiáticos brancos na sua história. Assim,
o reconhecimento de uma causa oculta na determinação das raças permite que se apele a este argu-
mento para explicar as diferenças fisionômicas entre japoneses e chineses quando comparados com
brancos europeus.129

Mas mesmo que japoneses e chineses fossem considerados asiáticos brancos, eles não eram
vistos como iguais, mas sim similares: “Iaponia namq[ue] nostra, si fructuum, carnium, pisciumq[ue]
128 DMLI, p. 37.
129 DMLI, p. 37-43.

674
vis ad corpora alenda consideretur, deinde gentis nostrae acumen, & vrbanitas, nobilitatisq[ue] gra-
dus, Europa[m] aliqua ex parte imitatur.”130 [Se considerarmos o potencial das lavouras, as carnes,
os peixes etc. para nutrir o corpo, e também a inteligência, a civilidade e o grau de nobreza do nosso
povo, o Japão é até certo ponto semelhante à Europa.]

O diálogo explica que os japoneses e chineses eram semelhantes, mas que em uma “escala das
nações” eles estariam em uma posição superior aos chineses, mais próxima dos europeus.131 A taxono-
mia racial de Valignano surge então como uma classificação com três ou quatro camadas, baseada na
cor da pele, na civilização e na fé.132 E tal como na explicação sobre a origem da negritude, o visitador
considera que o ambiente é um dos fatores importantes na diferenciação entre japoneses e chineses.

Ainda assim, o ambiente japonês não é considerado tão rico quanto o europeu. Quando os
embaixadores falam sobre sua passagem pela Europa eles explicam as diferenças entre a comida euro-
peia e a comida japonesa, atribuindo o sabor de cada uma à qualidade do solo, considerado mais fértil
e fecundo no Velho Mundo.133 Como resultado, os portugueses são então descritos como europeus
brancos caracterizados pela lealdade, nobreza, poder, riqueza e habilidade militar. O diálogo confere
três virtudes básicas aos portugueses: lealdade ao rei, uma coragem imbatível e profunda dedicação à
religião cristã.134

Por outro lado, negros africanos e asiáticos são acusados de serem naturalmente propensos
aos vícios e de pouca inteligência.135Citando Salústio, o diálogo aponta que os negros eram sujeitos a
ímpetos naturais e a fome, tais como bestas de carga, e acreditavam em fábulas falsas e cultos baseados
em delírios. Asiáticos negros, especificamente indianos, são apresentados como uma raça de espírito
abjeto, ainda que não tivessem características faciais desagradáveis.136

130 DMLI, p. 403-404.


131 Em outros trechos, contudo, Valignano declara o oposto, dizendo que os japoneses eram os melhores de
todo o oriente, com exceção dos chineses. Ver KOWNER. Op. cit., p. 129.
132 Kowner resume a hierarquia racial de Valignano como um sistema de três ou quatro escalas, baseado em
cor da pele, civilização e fé. Ele também descreve a divisão que o visitador faz da humanidade em: africanos ne-
gros e incivilizados; asiáticos do Sul e do Sudeste Asiático e Ameríndios levemente menos negros e naturalmen-
te pouco refinados; asiáticos brancos do leste, essencialmente japoneses e chineses; e finalmente os europeus.
Kowner afirma que, sem dúvida, a pele branca significava muito para Valignano, não apenas porque seria a cor
dos povos mais avançados e civilizados, mas porque também era natural e esteticamente agradável. No entanto,
a religião era o fator mais importante na diferenciação entre brancos, civilizados e outros.Ver KOWNER. Op.
cit., p. 131.
133 DMLI, p. 98.
134 DMLI, pp. 25-7, 31.
135 DMLI, pp. 24-5.
136 DMLI, pp. 36 e 43-4. Ver ainda SANDE, Duarte de (aut.); RAMALHO, Américo da Costa (trad.). Diálogo
Sobre a Missão dos Embaixadores Japoneses à Cúria Romana. 1. ed. Macau: Comissão Territorial de Macau
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses and Fundação Oriente, 1997, p. 61. A referência a
Salústio é explicada por Américo da Costa Ramalho, que aponta para o texto Catilinae Coniurato, I: “Omnis
homines, qui sese student praestare ceteris animalibus, summa ope niti decet, ne vitam silentio transeant veluti
pecora, quae natura prona atque ventri oboedientia finxit” [Todos os homens que desejarem se distinguir das
outras criaturas viventes devem se empenhar ao máximo, ou passarão suas vidas na obscuridade como bestas
de carga, que a natureza fez voltadas para o chão e escravas de seus estômagos]. A noção aristotélica da escra-
vidão natural pode ser encontrada em Política, livro 1, capítulo 5.

675
As religiões são apresentadas como falsas em contraste com a verdadeira luz oferecida pelo
cristianismo. Enquanto os pagãos viviam dispersos e divididos, os cristãos se reuniam em torno de
uma única religião, inspirada não por sua inteligência mas pelo esplendor divino.137 O cristianismo,
aliás, surge então defendido em todo o texto como uma panaceia política, que se aplicada ao Japão
apaziguaria os espíritos dos japoneses e permitiria que eles vivessem bem. Valignano chega a escrever
que a religião traria uma “paz dourada” ao conectar os fieis entre si e fazê-los respeitar seus senhores,
reprimindo a cobiça e garantindo o direito à propriedade.138

Em suma, vemos que para o desenvolvimento do pensamento racial de Valignano a experiên-


cia foi um fator crucial. O próprio visitador entende o peso da experiência pessoal no entendimento
da realidade das missões asiáticas, como ele mesmo reitera em seus documentos. Ao que tudo indica,
a descrição dos japoneses e da situação vivida pelos missionários no Extremo Oriente é baseada em
um projeto político visando incrementar a autonomia da missão, para que pudesse tomar decisões
por conta própria. Por este viés, as descrições etnográficas do jesuíta passam a atender a uma agenda
política, onde a singularidade e o exótico. Aliados ao alegado talento natural dos japoneses para a fé
cristã, estes fatores foram fundamentais para o projeto político de Valignano. O modo como o jesuíta
entendia a determinação e a origem das raças surge no momento em que ele se vê obrigado a expli-
car a um público não-europeu – seminaristas japoneses – o mundo externo ao arquipélago japonês.
Usando da autoridade que a narrativa da experiência dos embaixadores japoneses aferia ao seu texto,
Valignano elabora então uma gramática civilizacional e histórica, que evidencia o modo como ele li-
dava com a incerteza do mundo e usa do argumento do mistério para explicar o lugar ocupado pelos
próprios japoneses na ordem natural do universo cristão.

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De missionum legatorum Iaponensium ad Romanam curiam, rebusq, in Europa, ac toto itinere animaduersis
dialogus. 1. ed. Macau: Societatis Iesu, 1590

137 DMLI, p. 44.


138 DMLI, p. 32.

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