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Todos os dias, como numa oração, o céu se descortina em ragas de Bismillah Khan

enquanto eu preparo meus apetrechos para minhas aquarelas.


Um mundo de sonhos e delírios desenha meus sentimentos para mais um convívio
com as cores e os traços. Invariavelmente é como eu começo essa atividade febril,
leve, transcendente. Sua música me traz um momento inesquecível no Punjab,
quando atravessei três estados indianos numa van até Delhi para tomar um voo para
Mumbai, em Maharashtra, berço do meu Amado.
Já falei disso para você em outras correspondências perdidas nos labirintos de tanta
existência. Mas aquela parada no Punjab, naquele estacionamento onde Subah parou
para fazer sua refeição no começo da madrugada, foi o acontecimento mais lisérgico
da minha vida.
A meta da viagem já era por si extraterrestre: visitar os lugares conectados com o
advento de Meher Baba. Quando olho hoje para toda aquela viagem, vejo a mágica
das mãos do Baba trazendo todo seu arsenal de paz e outras dimensões à minha vida,
como sempre acontece com Ele.
O grande terreno cercado por um muro baixo, o galpão ao fundo onde um velho sikh
sob um turbante enorme varria o chão de terra batida agachado, com um galho de
árvore à guisa de vassoura e que surtia um efeito formidável no meio da noite
impossível. Seu olhar bondoso sem palavras que acompanhassem desnudaria
qualquer ocidental por tanta simplicidade e simbolismo. Nele tudo parecia envolto
numa única cor, o mesmo tom ocre pálido em sua roupa, seu turbante e a terra que ele
acariciava como um jardim imaculado de areia. O mistério da vida poderia se resumir
àquele gesto que tudo estaria perfeito.
Próximo, sob a única árvore do terreno, uma vela acesa junto à base do tronco. A
presença do divino em cada esquina da Índia, em cada centímetro sólido de oxigênio,
numa mensagem de elevação revelando a transcendência entre uma inspiração e uma
outra.
O dono do lugar… gentil e belo homem de estatura baixa, roupas impecavelmente
brancas, um bigodinho preto característico e olhos magnéticos de quem debulharia o
mundo inteiro numa lágrima. O tchai delicioso que ele preparou para mim e que
aceitei apenas por educação, sorvi delicadamente, já aturdido com a presença daquele
menino-fera sentado sobre a mesa comendo com as mãos num deleite de divindade
bestial ignorando completamente o que se passava ao redor.
Às vezes eu me pergunto se aquele menino era mesmo alguém em carne e osso
porque ele simplesmente parecia pairar acima de qualquer um de nós e endeusado,
permaneceu o tempo todo ali, sobre a mesa quadrada que mais parecia um altar posto
para ele que, cercado de pequenos pratos, comia parcimoniosamente como num
banquete cerimonial para o qual não sentia a mínima fome, servindo-se única e
exclusivamente por cortesia a seus devotos. Era como se definitivamente não
pertencesse àquele lugar, e ainda assim, sua presença surrealista tornava tudo repleto
de sentido.
Essa é uma das muitas ‘Canções sem Palavras’ recentes que me vêm à minha mente
quando penso em escrever para você. Por que repetir tudo isso? Eventos que
reverberam ultrapassando razão ou sentido. E são eles que permanecem cintilando
brilhos no escuro desse embaralhado de fios, saída frágil mas certeira do grande
labirinto de existir nesse tear de universo.
Ouvi muito As Canções sem Palavras de Mendelssohn no início de 1994. Traziam
uma serenidade que procurava na vastidão da noite em que meus sonhos
submergiram atolados na garganta. Não havia mesmo muito a dizer diante da busca
pelas estrelas corretas. Foi uma partida que me cortou por dentro, expulso das cores
da minha vida feito um pária. Agora as Canções de Mendelssohn emergem numa
carícia que me tinge.

Meu trabalho com Niv continua firme, agora melhor porque ele transferiu a cozinha
para Kiryat Byalik, mais perto que a antiga em Afula que exigia dois ônibus, uma
hora e meia de viagem e uma pequena caminhada. Ainda assim, não mais que três
dias na semana porque é o que me convém neste momento. Não dá para ser mais e
nem mesmo preciso. Andrea conseguiu um trabalho fixo numa unidade de saúde da
prefeitura de São Paulo e isso significa um dinheiro a mais para mim porque dava a
ela uma porcentagem dos meus aluguéis nesses anos, já que é Andrea quem cuida de
qualquer problema eventual com os dois imóveis na zona norte. E ela tem sido
admirável nesse aspecto.
Fechei duas datas com Tomer para 2023. Março e julho. A temporada de julho será
ainda maior que a deste ano.

Tenho apanhado tanto nas aquarelas, Mará! No final, tudo é um itinerário para
observar a bagagem de reações, ilusões e o quanto é fácil perder a meta. A fronteira
do tangível emite feixes de luz no rumo mais opaco. O fato de depender única e
exclusivamente de mim mesmo para pintar, aprendendo na raça do tutano mesmo, faz
com que demore mais para aprender os macetes. Aquele desenho do caminho com a
cerca que enviei para você tem um tempo já teve duas versões. E em nenhuma delas
fiquei satisfeito. Uma salvou-se do lixo por intervenção de Ora. Olhando para ela
ontem consegui me compadecer dos defeitos e até mesmo estimá-la sem muita
paixão. Algumas coisas ficaram até que bem resolvidas, como o cipreste ao fundo e o
cedro.
Está nas imagens em anexo apesar de eu morrer de vergonha de mostrar. As cores
estão mais bem resolvidas do que aparentam no link pela perda de qualidade ao
passar a foto do celular para o computador. É só para ilustrar mesmo o caminho dessa
cruz de redenção.
Passei dias frustrado, me esquecendo que um dos motivos que estabeleci para pintar é
o deleite. E era muito claro que havia frustração comigo. De vingança fiz desenhos a
lápis para não perder musculatura. Foi aí que os pastores me salvaram porque me
dava um branco tão grande que nem tinha expediente para trabalhar nenhuma das
outras imagens que tenho no gatilho. Certas coisas congelam as estribeiras.
Mas o fato de que a gente aprende muito por tabela responde sussurrando suas
dakinis. Isso é sempre surpreendente. Já tinha verificado o quanto daquela citada
paisagem tinha algo estranho que fugia demais da referência que utilizara de uma
foto. Cometi o erro de usar uma folha com um comprimento maior do que devia.
Curvas pedem um enquadramento diferente. Os retângulos favorecem e parece que o
ideal mesmo se aproxima do quadrado.
Assistindo despretensiosamente dias depois alguns documentários sobre Cézanne, ele
mesmo para minha consternação um aficionado das curvas – pintou várias – constatei
que suas telas com esse tema eram em grande maioria retângulos próximos do
quadrado. O belo converge em retalhos que depois fazem sentido quando estendidos
pela experiência e intervenção desses anjos malucos. Bingo! Gente, não era então à
toa que meus caminhos pitorescos e bucólicos transformavam-se no vodu
claustrofóbico de um estradão! E eu comendo poeira!
Tive tanta vontade de escrever sobre isso para você mas fiquei me julgando. E daí
recebo aquela mensagem com a Alessandra lendo o texto sobre a curva. É tentador
não pensar que em determinado momento a curva implica continuidade de uma reta.
Assim, meu título de um escrito ainda nos rascunhos ficou sendo: A curva das
canções sem palavras. Intervenções intrínsecas.

Numa mensagem recente você me disse que a seu modo tem feito meditação. Que
bárbaro, Mará! Gostaria de sugerir e que você pensasse a respeito: Eu poderia enviar
semanalmente um material que seria redigido passo a passo. Há certos fundamentos
que precisam ser expostos com diligência. Isso é importante para uma prática estável.
A mim parece muito interessante uma atividade assim. É também uma forma de essa
nossa literatura particular enveredar por seus muitos sertões. E seria um segredo
nosso.

Esta semana tinha retorno no urologista. Passaram-se quatro meses desde a primeira
consulta e os resultados finais dos exames que entreguei. Ele pediu sangue, urina e
ultrassom. Pelo computador já tinha checado no meu prontuário que o ultrassom dera
positivo para alguns cistos no rim direito. Os outros exames estão excelentes. Mas ele
achou que tudo estava normal e não prescreveu nenhuma medicação. Faz muita
diferença para mim tomar água durante o dia. Tenho cultivado esse hábito, me
obrigado até.
Dezembro começo um procedimento dentário que vai me ocupar e afastar um pouco
de atividades culinárias externas. Faz parte!

Como tudo se engendra eu começo a pensar em cores com maior aproximação. Vou
dando liberdade ao processo. Vejo coisas em aquarela de que gosto muito mas
continuo batalhando por uma expressão íntima e legítima. E parece que aos poucos
vai fluindo. Percebi que novos feixes de luz também alcançam os escritos. Algo novo
cintila dentro dos poros. A tangencia rege um ponto de intersecção entre a reta e a
circunferência…
Esta semana estou assistindo alguns videos de um palestrante que gosto demais, John
Walsh. A devoção contida e quieta que ele demonstra faz uma parceria adorável com
sua eloquência. Esta é uma série de quatro conferências sobre Van Gogh.
Abismado fiquei: citou uma das correspondências do pintor a seu irmão Théo em que
Vincent fala de sua paixão pelos ciprestes comparando-os a obeliscos. Comunhão de
magnitudes.
Foi a descoberta de Van Gogh que me deu ímpeto de pintar aquela tela para você. E
justamente porque vira um cartão minúsculo na mesa de vidro de um padre muito
bacana do seminário uma reprodução microscópica de uma pintura com ciprestes.
Aquele céu de espirais… tudo me moveu numa tempestade. Mas em sua tela meu
cipreste mais se parece um confeito de açúcar que as sarças ardentes de Vincent.
Hoje encontrei numa ‘playlist’ enorme de 23 hs de Ravi Shankar uma música linda
que gravara numa fita cassete há 40 anos em São José do Rio Preto e que no mesmo
dia, dançando loucamente à beira de uma piscina e ouvindo sem interrupção, a diaba
da fita enroscou-se e daí zé fini. Acabou-se a coreografia ali mesmo. Nunca esqueci a
melodia. Não fazia ideia de quem era, por isso nunca fui atrás. Que agradável
surpresa ouvir a flauta de Jean Pierre Rampal tocando aquele céu inteiro em meio a
esse punhado de ragas salvas no spotify.
Interessante assistir o processo de como as coisas crescem seu trigal de gestações.
Começo a pensar em composição e sonho com desenhos e pinturas, geralmente com
o último pesadelo a que estou me submetendo. Mostra mesmo como os sonhos são
parte da função do centro-motor, como Ouspensky ensinava.
E também a maneira de olhar com maior atenção para formas, efeitos de luz e sombra
em tudo ao meu redor e a classificação de cores em objetos que parecem não ter
nenhuma cor que se possa decifrar.
Escrevi isso num bloquinho um dia desses para não esquecer pensando em mandar
para você:
A literatura heráldica de JGR recriando um ecossistema de romance de cavalaria com
seus quixotes e redemoinhos.
a poesia maior de FP... É muito difícil escrever alguma coisa que realmente valha
depois dele.
São mais que dois magníficos escritores, são, antes, dois verdadeiros altares sagrados
cuja aproximação faz tremerem as bases daqueles que ousam persegui-los.
Todo meu Amor. Infinitamente. C.

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