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O IDIOTA
FIÓDOR DOSTOIÉVSKI
Ed. 34
O cachecol no pescoço
Por um rosário trocou
A máscara de aço do rosto
P’ra ninguém jamais tirou.
Aglaia Iepántchina”
P.S.: Espero que você não mostre esse bilhete a ninguém. Embora
eu sinta vergonha de lhe escrever semelhante conselho, julguei que
você o merece e escrevi—corando de vergonha por sua índole
engraçada.
PP.SS.: É aquele mesmo banco verde que há pouco lhe mostrei.
Você é acanhado! Fui forçada a escrever isso também.”
Mas crede, crede, gente ingênua, que até nessa estrofe bem-
educada, nessa bênção acadêmica ao mundo em versos franceses há
reunido tanto fel oculto, tanta raiva inconciliável, autodeliciada em
rimas, que é possível que até o próprio poeta tenha dado um passo
em falso, tomada essa raiva por lágrimas de enternecimento e assim
morrido; descanse em paz! Sabem, existe um limite para a desonra
na consciência da própria insignificância e fraqueza, além do qual o
homem já não pode ir e a partir do qual começa a sentir em sua
desonra um imenso prazer! Bem, é claro, a humildade é uma força
imensa neste sentido, eu o admito—ainda que não seja no sentido
em que a religião toma a humildade por força.
Religião! Eu admito a vida eterna e talvez a tenha admitido
sempre. Vamos que a consciência seja inflamada pela vontade de
uma força superior, que a consciência olhe para o mundo e diga: ‘Eu
existo’—e que de repente essa força superior lhe tenha prescrito
destruir-se, porque lá isso é muito necessário para algo—e até sem
explicação para quê—,que eu admito tudo isso, no entanto lá vem
outra vez a eterna pergunta: neste caso, para que se faz necessária
minha resignação? Será que não podem simplesmente me devorar,
sem exigir de mim o elogio àquele que me devorou? Será que lá
alguém realmente irá ofender-se com o fato de que eu não quero
esperar duas semanas? Não acredito nisso; e já é bem mais certo
supor que aí simplesmente é necessária minha vida insignificante,
vida de um átomo, para preencher alguma harmonia universal em
seu conjunto, para algum mais e menos, para algum contraste etc.
etc., exatamente como se precisa diariamente sacrificar a vida de
uma infinidade de seres sem cuja morte o resto do mundo não pode
permanecer de pé (embora caiba observar que essa não é uma ideia
em si muito generosa). Vá lá que seja! Concordo que de outra
maneira, isto é, sem uma devoração permanente de uns pelos outros
seria absolutamente impossível construir o mundo; eu concordo até
em admitir que não entendo nada dessa construção; mas, em
compensação, eis o que eu sei ao certo: se uma vez me fizeram saber
que ‘eu existo’, então que me importa se o mundo foi construído
com erros e de que de outro modo ele não consegue permanecer de
pé? Quem e por que irá me julgar depois disso? Como queiram, tudo
isso é impossível e injusto.
Entretanto, a despeito de toda a minha vontade, nunca pude
imaginar que não existe vida futura nem providência. Ou melhor,
que tudo isso existe mas que nada entendemos da vida futura e das
suas leis. Mas se é tão difícil e totalmente impossível compreender
isso, então será que eu vou responder pelo fato de que não tive
condição de compreender o inconcebível? Eles dizem, é verdade e, é
claro, com eles o príncipe, que aí se precisa de obediência, que é
necessário obedecer sem julgar, apenas por boa educação, e que por
minha submissão eu serei recompensado sem falta no outro mundo.
Nós humilhamos demasiadamente a providência, atribuindo-lhe os
nossos conceitos, movidos pelo despeito de não podermos
compreendê-la. Porém, se ademais é impossível compreendê-la,
então, repito, também é difícil responder por aquilo que não é dado
ao homem compreender. Sendo assim, de que jeito me irão julgar
pelo fato de que eu não pude compreender a verdadeira vontade e
as leis da providência? Não, o melhor é deixarmos para lá a religião.
Mas basta. Quando eu chegar a essas linhas, certamente o sol
sairá e ‘ressoará no céu’, e se derramará a força imensa e inumerável
sobre tudo o que está abaixo do sol. Tomara! Eu morrerei olhando
diretamente para a fonte de força e vida e não vou querer essa vida!
Se eu tivesse o poder de não nascer, certamente não aceitaria a
existência nessas condições escarnecedoras. Mas ainda tenho o poder
de morrer, ainda que eu entregue o que já foi composto. Não é
grande o poder, tampouco é grande a rebeldia.
Uma última explicação: não estou morrendo de maneira alguma
por estar sem condições de suportar essas três semanas; oh, eu teria
forças, e se quisesse já ficaria bastante consolado com a simples
consciência da ofensa que me foi causada; mas eu não sou poeta
francês e dispenso tais consolações. Por fim, também as tentações: a
natureza limitou a tal ponto minha atividade com as suas três
semanas de sentença que o suicídio talvez seja a única coisa que eu
ainda tenha tempo de começar e terminar por minha própria
vontade. Então, será que eu quero mesmo aproveitar a última chance
do caso? Às vezes o protesto também não é pouca coisa...”
Aia, onde está o teu túmulo (“Aia, onde estará teu túmulo/ Na
muralha de um mosteiro?”. Citação da terceira parte do poema
“Humor” de N. P. Ogariov (1813-1877), publicado no almanaque
Polyárnaia Zviezdá (Estrela Polar) em novembro de 1868. O capítulo
IV da última parte de O idiota saiu originalmente em dezembro de
1869 na revista Rússkii Viéstnik. (N. da E.))?