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Coleção LESTE
Fiódor Dostoiévski

Um Jogador

Tradução
Boris Schnaiderman

editora■34
Um jogador
Apontamentos de um homem moço
I
Finalmente, regressei, após duas semanas de
ausência. Havia três dias já que a nossa gente estava em
Roletenburgo. Pensei que me esperassem, sabe Deus
com que ansiedade, mas enganei-me. O general tinha
um ar muito independente, falou comigo de modo altivo
e ordenou-me que fosse ver a sua irmã. Era evidente que
haviam conseguido dinheiro em alguma parte. Tive,
mesmo, a impressão de que o general se encabulava um
pouco na minha presença. Mária Filípovna estava numa
azáfama fora do comum e falou comigo ligeiramente;
todavia, aceitou o dinheiro, conferiu-o e ouviu todo o
meu relatório. Para o jantar, esperavam Miézientzov, o
francesinho e ainda um certo inglês: como de costume,
mal se consegue dinheiro, dá-se um jantar pomposo, à
moda moscovita. Apenas me viu, Polina Aleksândrovna
perguntou por que demorara tanto a voltar e, sem
aguardar resposta, retirou-se. Naturalmente, agiu assim
de propósito. No entanto, tínhamos que nos explicar.
Muitos fatos se acumularam nesse ínterim.
Reservaram-me um cômodo pequeno, no quarto
andar do hotel. Aqui se sabe que pertenço à comitiva do
general. Tudo indica que eles já conseguiram fazer-se
conhecer. Todos consideram o general um riquíssimo
dignatário russo. Ainda antes do jantar, teve tempo de
me dar, além de outros encargos, o de trocar duas notas
de mil francos. Troquei-as no escritório do hotel. Agora,
vão olhar-nos como milionários, pelo menos uma semana
a fio. Quis levar Micha (Diminutivo de Mikhail (Miguel).
(N. do T.)) e Nádia (Diminutivo de Nadiejda (Esperança).
(N. do T.)) a um passeio, mas, quando já me achava na
escada, o general mandou chamar-me, queria saber para
onde eu os levaria. Decididamente, este homem não me
pode encarar; até gostaria de fazê-lo, mas, de cada vez,
respondo-lhe com um olhar tão fixo, isto é,
desrespeitoso, que ele parece ficar acanhado. Numa
alocação extremamente empolada, aglomerando frases
uma sobre a outra e, por fim, confundindo-se
completamente, deu-me a compreender que eu devia
passear com as crianças no parque, o mais longe
possível do cassino. Acabou mesmo por irritar-se e
acrescentou abruptamente: - Senão, é capaz de levá-los
ao cassino, à mesa da roleta. Desculpe - acrescentou -
mas eu sei que o senhor ainda é bastante leviano e,
provavelmente, capaz de ir jogar. Em todo caso, embora
eu não seja o seu mentor, e nem queira encarregar-me
de semelhante papel, de qualquer modo tenho o direito
de desejar que o senhor, por assim dizer, não me
comprometa...
- Mas eu nem tenho dinheiro - respondi calmamente. -
Para perder, é preciso ter o quê.
- O senhor vai recebê-lo imediatamente - respondeu o
general, corando um pouco, remexeu na sua
escrivaninha, consultou o livro de apontamentos e
verificou que me devia perto de 120 rublos.
- Está bem, vamos acertar as contas - disse. - É
preciso fazer uma redução a táleres. Bem, tome cem
táleres, em conta redonda; o resto, naturalmente, não se
perderá.
Tomei o dinheiro em silêncio.
- Por favor, não se ofenda com as minhas palavras, o
senhor é tão suscetível... Se lhe fiz uma observação, eu,
por assim dizer, acautelei-o e, naturalmente, tenho certo
direito a isso...
Regressando ao hotel com as crianças, antes do
jantar, encontrei uma verdadeira cavalgada. Os nossos
tinham ido ver não sei que ruínas. Duas caleças
admiráveis, cavalos magníficos! Numa das caleças, iam
Mademoiselle Blanche, Mária Filípovna e Polina; o
francesinho, o inglês e o nosso general estavam a cavalo.
Os transeuntes detinham-se para olhar; a impressão fora
produzida; todavia, o general estava perdido. Calculei
que, acrescentando-se aos quatro mil francos que eu
trouxera aquilo que eles, aparentemente, conseguiram
obter emprestado, deviam ter sete a oito mil francos; e
isso era muito pouco para Mlle. Blanche.
Mlle. Blanche hospedou-se igualmente no nosso hotel,
em companhia da mãe; o nosso francesinho também. Os
criados chamam-no de M. le Comte; a mãe de Mlle.
Blanche é Mme. la Comtesse. Bem, talvez sejam
realmente comte e comtesse.
Bem que eu sabia que M. le Comte não me
reconheceria quando nos encontrássemos ao jantar. O
general, naturalmente, não teria sequer a ideia de nos
apresentar um ao outro, ou, pelo menos, recomendar-me
a ele; quanto a M. le Comte, já esteve na Rússia e sabe
que pássaro miúdo é aquele que eles denominam
outchitel (Forma afrancesada da palavra russa utchítiel
(professor primário ou secundário) (N. do T.)). Aliás, ele
me conhece muito bem. Mas, confesso, apareci no
próprio jantar sem ser convidado; segundo parece, o
general esqueceu-se de tomar providências; senão,
certamente, teria me mandado jantar à table d’hôte
(Mesa com refeições a preço fixo. (N. do T.)). Apareci
sozinho, de modo que o general olhou-me com
desagrado. A boa Mária Filípovna indicou-me logo um
lugar; mas fui salvo pelo fato de encontrar ali Mister
Astley, e automaticamente passei a pertencer ao grupo.
Encontrara esse inglês estranho, pela primeira vez, na
Prússia, num vagão em que ficamos sentados frente a
frente, quando eu viajava no encalço de nossa gente;
depois encontrei-me com ele, inesperadamente, ao
entrar em França, e, ainda mais uma vez, na Suíça; eram
duas vezes, no decorrer das últimas duas semanas; e
agora, de repente, encontrava-o já em Roletenburgo.
Nunca encontrei pessoa mais tímida; era tímido até à
estupidez, e ele mesmo, naturalmente, sabia disso, pois
não tinha nada de estúpido. Aliás, era de gênio muito
doce e simpático. Fiz com que falasse bastante, por
ocasião do nosso encontro na Prússia. Disse-me que
estivera, naquele verão, no Cabo Norte, e que tinha
muita vontade de visitar a feira de Níjni-Novgorod (Havia
na cidade de Níjni-Novgorod uma famosa feira anual. (N.
do T.)). Não sei de que modo ele travara relações com o
general; parece-me que estava irremediavelmente
apaixonado por Polina. Quando esta entrou, ele pareceu
incendiar-se. Estava muito contente pelo fato de, à mesa,
eu me ter sentado a seu lado, e já me considerava, creio,
seu amigo íntimo.
À mesa, o francesinho estava muito arrogante, tratava
a todos com altivez e pouco caso. E em Moscou, lembro-
me, parecia também inflar de importância. Estava
discorrendo muito longamente sobre finanças e política
russa. O general ousava, de vez em quando, contradizê-
lo, mas discretamente, apenas o necessário para
salvaguardar o seu prestígio.
Eu me achava numa estranha disposição de espírito e,
naturalmente, antes que houvesse decorrido metade do
jantar, já me fizera a habitual e indefectível pergunta:
“Por que me arrasto atrás deste general e não os deixei
já há muito?”. De raro em raro, lançava um olhar a Polina
Aleksândrovna; ela absolutamente não me notava. Por
fim, fiquei irritado e resolvi fazer umas grosserias.
Comecei por intrometer-me numa conversa,
abruptamente e em voz alta. Em primeiro lugar, queria
brigar com o francesinho. Voltei-me para o general e, de
repente, observei, em voz bem nítida e, ao que parece,
interrompendo-o, que, naquele verão, os russos quase
não podiam jantar à table d’hôte. O general fixou em
mim um olhar surpreendido.
- Toda pessoa que se respeita - continuei aos
borbotões - acaba ouvindo impropérios e tem que
suportar ofensas. Em Paris e no Reno, mesmo na Suíça,
encontram-se, à table d’hôte, tantos polaquinhos e
francesinhos que simpatizam com eles, que um russo
não tem possibilidade de dizer uma palavra sequer (Na
época havia, na Europa Ocidental, muitos emigrados
políticos poloneses. (N. do T.)).
Disse isto em francês. O general olhava-me perplexo,
não sabendo se devia ficar zangado ou apenas
surpreendido pelo fato de eu ter perdido a tal ponto a
noção das conveniências.
- Quer dizer que alguém lhe deu, em alguma parte,
uma lição - disse o francesinho com displicente ar de
desprezo.
- Em Paris, comecei por brigar com um polaco -
respondi - depois, com um oficial francês que defendia o
polaco. Em seguida, porém, uma parte dos franceses
ficou do meu lado, quando lhes contei como quisera
cuspir dentro do café de um monsenhor.
- Cuspir? - perguntou o general, com expressão de
altivez e surpresa, e olhando mesmo em torno. O
francesinho examinava-me com desconfiança.
- Exatamente - respondi. - Dois dias a fio não me
abandonou a ideia de que seria preciso, talvez, ir tratar
do nosso caso, rapidamente, em Roma, e, por isso, dirigi-
me à chancelaria da Nunciatura Apostólica em Paris, a
fim de visar o meu passaporte (Roma era ainda a capital
do Estado Pontifício. (N. do T.)). Fui recebido lá por um
pequeno abade, de uns cinquenta anos, esquálido e de
feições glaciais, que me ouviu delicadamente, mas com
uma secura extrema, e me pediu que esperasse. Embora
tivesse pressa, sentei-me para esperar, desdobrei um
número de Opinion Nationale (Jornal francês liberal,
conhecido por seu apoio à causa da independência
polonesa. (N. do T.)), e pus-me a ler os maiores
impropérios contra a Rússia. Entretanto, ouvi que alguém
passava pela sala ao lado, para ser recebido por
monsenhor; vi também o meu abade fazendo saudações
com a cabeça. Dirigi-me a ele com o mesmo pedido;
disse-me então, com secura ainda maior, que esperasse
mais. Algum tempo depois, entrou ali mais um
desconhecido, para tratar de um caso; era um austríaco,
ouviram o que tinha a dizer e conduziram-no
imediatamente para cima.
Fiquei, então, profundamente despeitado; levantei-
me, acerquei-me do abade e disse-lhe, com ar decidido,
que, se monsenhor estava recebendo, podia tratar do
meu caso também. Ele deu um passo atrás,
tremendamente surpreendido. Simplesmente, não podia
compreender que um desprezível russo ousasse colocar-
se no mesmo nível das visitas de monsenhor. Mediu-me
dos pés à cabeça e exclamou, com o tom mais arrogante,
como se se alegrasse pelo fato de poder ofender-me:
“Então, o senhor pensa que monsenhor vai deixar, por
sua causa, o café que está tomando?”. Pus-me também a
gritar, mas ainda mais alto que ele: “Pois saiba que
pouco me importa o café deste seu monsenhor! Se o
senhor, neste mesmo instante, não acabar de preparar o
meu passaporte, irei à presença dele”. “Como! Ele está
com o cardeal!” - gritou o abadezinho, afastando-se de
mim horrorizado, lançou-se em direção à porta e abriu os
braços em cruz, dando a entender que preferia morrer a
deixar-me entrar ali. Respondi-lhe então que eu era
herege e bárbaro, que je suis hérétique et barbare, e que
todos aqueles arcebispos, cardeais, monsenhores etc.
etc., eram a mesma coisa para mim. Numa palavra, fiz
ver que não desistiria do caso. O abade lançou-me um
olhar de infinita raiva, arrancou-me o passaporte e levou-
o para cima. Instantes depois, já estava com visto. Aqui
está; querem ver? - Tirei o meu passaporte e mostrei o
visto romano.
- O senhor, no entanto... - começou o general.
- O senhor se salvou, declarando-se bárbaro e herege
- observou o francesinho, com um sorriso malicioso. -
Cela n’était pas si bête (“Isso até que não foi tolo”. (N. do
T.)).
- Deve-se acaso imitar os nossos patrícios? Eles ficam
sentados por aí, não ousam soltar um pio e estão
prontos, talvez, a renegar o fato de serem russos. Pelo
menos, em Paris, no hotel em que me hospedei, todos
começaram a tratar-me com maior atenção, quando
contei a minha briga com o abade. O gordo pan
(“senhor”. Em polonês no original. (N. do T.)) polaco, a
pessoa que me era mais hostil à table d’hôte, ficou
apagado, passando para um segundo plano. Os franceses
toleraram até o fato de eu contar-lhes que, uns dois anos
antes, encontrara um homem em quem um infante
francês atirara em 1812, apenas para descarregar o fuzil.
Aquele homem era então uma criança de dez anos, e a
sua família não tivera tempo de sair de Moscou.
- Isso não pode ser! - indignou-se o francesinho. - Um
soldado francês é incapaz de atirar numa criança!
- Mas isso aconteceu - respondi. - Quem me contou foi
um distinto capitão reformado, e eu mesmo vi em sua
face a cicatriz que a bala deixou.
O francês pôs-se a falar com muita volubilidade. O
general, a princípio, apoiou-o, mas eu recomendei-lhe
que lesse ao menos, por exemplo, uns trechos das
Memórias do General Pieróvski, que fora prisioneiro dos
franceses em 1812 (Segundo uma nota das Obras
completas de Dostoiévski, o general V. A. Pieróvski
(1795-1857) escreveu Memórias, um trecho das quais foi
publicado pelo Arquivo Russo (Rússki Arkhiv), em 1865.
Nele se relata como os franceses, que estavam
conduzindo uma coluna de prisioneiros de guerra russos,
em 1812, fuzilavam todos os que ficavam para trás, em
virtude de fraqueza e esgotamento. (N. do T.)). Mária
Filípovna procurou desviar o rumo da conversa. O general
estava muito descontente comigo, pois eu e o francês já
falávamos quase aos berros. Mister Astley, porém,
pareceu gostar muito da minha discussão com o francês;
levantando-se da mesa, convidou-me a tomar com ele
uma taça de vinho. À noitinha consegui, como era
preciso, falar com Polina Aleksândrovna, pelo espaço de
um quarto de hora. Mantivemos nossa conversa durante
o passeio habitual. Todos foram para o parque, em
direção do cassino. Polina sentou-se num banco, em
frente do repuxo, e deixou que Nádienka (Diminutivo de
Nadiejda. (N. do T.)) fosse brincar por perto, com
algumas crianças. Deixei também que Micha fosse até o
chafariz, e ficamos, finalmente, a sós.
A princípio, naturalmente, falamos de negócios. Polina
ficou simplesmente zangada, quando lhe entreguei
apenas setecentos táleres. Estava certa de que eu lhe
traria de Paris, depois de empenhar as suas joias, pelo
menos dois mil táleres, talvez até mais.
- Preciso de dinheiro, custe o que custar - disse ela - e
é preciso consegui-lo; senão, estou simplesmente
perdida.
Comecei a interrogá-la sobre o que tinha ocorrido na
minha ausência.
- Nada mais além de duas notícias que se receberam
de Petersburgo: em primeiro lugar, que a vovó estava
muito mal, e, dois dias depois, que ela, provavelmente, já
falecera. Essa notícia procedia de Timofiéi Pietróvitch -
acrescentou Polina - e ele é um homem preciso. Estamos
aguardando a notícia derradeira, definitiva.
- Quer dizer que estão todos à espera, aqui? -
perguntei.
- Naturalmente: todos e tudo; durante todo um
semestre foi esta a única esperança.
- É a sua esperança também? - perguntei.
- Na realidade, ela nem é minha parenta, sou apenas
enteada do general. Mas sei, com certeza, que há de se
lembrar de mim no testamento.
- Tenho a impressão de que lhe caberá uma quantia
bem graúda - disse eu, concordando.
- Sim, ela me queria bem, mas, por que você tem essa
impressão?
- Diga-me - respondi eu com uma pergunta - o nosso
marquês, ao que parece, também foi posto a par de
todos os segredos da família, não?
- E você próprio por que se interessa por isso? -
perguntou Polina, olhando-me seca e severamente.
- Pudera; se não me engano, o general já teve tempo
de conseguir com ele dinheiro emprestado.
- Você está adivinhando com muita exatidão.
- Ora, daria ele dinheiro se não soubesse da existência
da avozinha? Você observou, acaso, que à mesa, umas
três vezes, ao dizer algo sobre a vovó, ele chamou-a de
vovozinha - la baboulinka (Transcrição francesa do
diminutivo russo babúlinka. (N. do T.))? Que relações
íntimas e amistosas!
- Sim, você tem razão. Logo que ele souber que me
coube também algo da herança, há de pedir a minha
mão. Não era isto que você queria saber?
- Somente então pedirá a sua mão? Eu pensei que já o
tivesse feito há muito tempo.
- Você sabe muito bem que não! - disse Polina com
arrebatamento. - Mas onde foi que você encontrou esse
inglês? - acrescentou, depois de um momento de
silêncio.
- Bem que eu sabia que você iria logo fazer-me
perguntas sobre ele. - Contei-lhe os meus encontros
anteriores com Mister Astley, em viagem. - Ele é tímido e
apaixonável, e, naturalmente, já se apaixonou por você,
não?
- Sim, está apaixonado por mim - respondeu Polina.
- E, naturalmente, ele é dez vezes mais rico que o
francês. De mais a mais, será que este possui realmente
algo? Não há dúvida sobre isso?
- Não há, não. Ele tem não sei que château (“castelo”.
(N. do T.)). Ainda ontem, o general me falou disso com
segurança. Bem, isso basta a você?
- Em seu lugar, eu não teria dúvidas: casaria com o
inglês.
- Por quê?
- O francês é mais bonito, mas é mais ignóbil; e o
inglês, além de honesto, possui dez vezes mais -
respondi abruptamente.
- Sim, mas, em compensação, o francês é marquês e
mais inteligente - respondeu ela, com ar sobremodo
tranquilo.
- Deveras - prossegui, no mesmo tom.
- Sem dúvida alguma.
As minhas perguntas desagradavam extremamente a
Polina; verifiquei que ela queria irritar-me com o tom e a
rispidez de suas respostas, e, no mesmo instante, disse-
lhe que o percebia.
- Sim, realmente, eu me divirto quando você se irrita.
Aliás, você tem que expiar o simples fato de eu lhe
permitir fazer-me tais perguntas e suposições.
- Eu me considero no pleno direito de fazer a você
quaisquer perguntas - respondi tranquilo -, justamente
porque estou pronto a expiá-las seja com o que for, até
com a própria vida.
Polina deu uma gargalhada.
- Da última vez que falamos, foi sobre o
Schlangenberg; você me disse que, a uma simples
palavra minha, estava pronto a atirar-se de cabeça para
baixo, e parece que ali são perto de mil pés de altitude.
Algum dia, hei de dizer essa palavra, unicamente para o
ver expiar tudo e, esteja certo, hei de manter com
firmeza a minha decisão. Você me é odioso, justamente
porque lhe permiti tanto, e, mais ainda, pelo fato de me
ser tão necessário. Mas, enquanto preciso de você, tenho
que resguardá-lo.
Começou a levantar-se. Estava falando com irritação.
Nos últimos tempos, ela terminava cada conversa
comigo com um sentimento de rancor e irritação, um
rancor verdadeiro.
- Permite você que lhe pergunte o que representa
Mademoiselle Blanche? - perguntei, desejoso de não
deixá-la partir sem uma explicação.
- Você mesmo sabe o que ela representa. Desde
então, por aqui não aconteceu nada de novo.
Mademoiselle Blanche, certamente, será esposa do
general; isso, naturalmente, se se confirmar a notícia do
falecimento da avó, porque tanto Mademoiselle Blanche
como a mãe desta, e ainda o marquês, cousin (“primo”.
(N. do T.)) em terceiro grau, sabem muito bem que
estamos arruinados.
- E o general está realmente apaixonado?
- Agora não se trata disso. Ouça e não esqueça: tome
estes setecentos florins e vá jogar, ganhe para mim na
roleta o mais que puder; no momento, preciso
urgentemente de dinheiro.
Em seguida, chamou com um grito Nádienka e dirigiu-
se para o cassino, onde se juntou a todo o nosso grupo.
Tomei o primeiro atalho à esquerda, pensativo e
surpreso. Aquela ordem de ir jogar na roleta foi para mim
como uma pancada na cabeça. Coisa estranha: eu tinha
em que pensar, e, no entanto, fiquei completamente
absorto com a análise dos meus sentimentos em relação
a Polina. Na realidade, aquelas duas semanas de
ausência foram mais fáceis para mim do que o dia do
regresso, embora, em viagem, eu sentisse uma angústia
de louco, me agitasse como se me faltasse o ar, e a
visse, mesmo em sonho, continuamente diante de mim.
De uma feita, na Suíça, adormeci no trem e, segundo
parece, pus-me a conversar com Polina, e isso fez com
que todos os meus companheiros de viagem rissem. E
agora, mais uma vez, formulei a mim mesmo a pergunta:
eu a amo? E, mais uma vez, não soube responder, ou
melhor, pela centésima vez respondi que a odiava. Sim,
ela me era odiosa. Havia momentos (mais precisamente,
sempre que uma conversa nossa chegava ao fim) em
que eu teria dado metade da minha vida para poder
estrangulá-la! Juro, se fosse possível empurrar-lhe
lentamente, para dentro do peito, um punhal afiado, eu,
parece-me, agarraria o cabo com delícia. E, no entanto,
juro por tudo o que existe de sagrado que, se ela me
tivesse realmente dito, no alto de Schlangenberg, o
passeio da moda: “Atire-se de cabeça” - eu o faria no
mesmo instante, e até mesmo com deleite. Eu sabia.
Deste ou daquele modo, a situação tinha que se resolver.
Ela compreende admiravelmente tudo isso, e a ideia de
que eu tenho consciência, absolutamente exata e
distinta, da sua inacessibilidade para mim, de toda a
impossibilidade da realização dos meus devaneios, essa
ideia, tenho certeza, causa-lhe um prazer extraordinário;
de outro modo, poderia ela, que é cautelosa e
inteligente, ter comigo tais intimidades e franquezas?
Tenho a impressão de que, até agora, ela me olhou como
aquela imperatriz da antiguidade que se despia em
presença do seu escravo, não o considerando uma
pessoa. Sim, muitas vezes, ela não me considerou uma
pessoa...
No entanto, confiara-me um encargo: ganhar na
roleta, custasse o que custasse. Eu não tinha tempo de
pensar para quê, e com que rapidez, era preciso ganhar
dinheiro, e que novas considerações haviam surgido
naquele cérebro, que estava sempre calculando. Além
disso, nas duas semanas da minha ausência,
aparentemente ocorrera uma infinidade de fatos novos,
sobre os quais eu ainda não tinha qualquer noção. Era
preciso adivinhar, desvendar tudo isso, o quanto antes.
Mas, naqueles momentos, não havia tempo para isto: era
preciso ir à roleta.
II
Confesso que aquilo me era desagradável; embora eu
estivesse resolvido a jogar, não contava de modo algum
começá-lo para outrem. Isso até me confundia um pouco,
e entrei na sala de jogo com um forte sentimento de
despeito. Desde o primeiro olhar, tudo me desagradou
ali. Não suporto o espírito de servilismo que se encontra
nos folhetins de todo o mundo e, sobretudo, em nossos
jornais russos, nos quais, quase toda primavera, os
nossos folhetinistas contam dois fatos: em primeiro
lugar, a magnificência e luxo extraordinários das salas de
jogo nas cidades de roleta do Reno, e em segundo, as
montanhas de ouro que, afirmam, ficam sobre as mesas.
E esses folhetinistas não são pagos para escrever isto;
contam-no apenas por espírito serviçal e desinteressado.
Não há qualquer magnificência nessas reles salas, e o
ouro não apenas não se amontoa sobre as mesas, mas
até mal existe ali. Naturalmente, vez por outra, no
decorrer da estação, aparece, de repente, algum
excêntrico, um inglês ou um asiático, ou um turco, por
exemplo, como aconteceu este verão, e, de chofre, perde
ou ganha uma quantia muito elevada; mas todos os
demais apostam uns escassos florins, e, normalmente,
há bem pouco dinheiro sobre a mesa. Depois que entrei
na sala de jogo (a primeira vez na vida), fiquei por algum
tempo sem me decidir a jogar. Além disso, eu era
comprimido pela multidão. Mas, ainda que estivesse
sozinho, penso que iria embora quanto antes e não
começaria a jogar. Batucava-me o coração, confesso, e
meu estado não era de sangue-frio; já sabia com certeza
- há muito o decidira - que não sairia sem maiores
novidades de Roletenburgo; algo de radical e definitivo
tinha que suceder indefectivelmente em meu destino.
Era preciso, e assim seria. Por mais ridículo que fosse o
fato de eu esperar tanto da roleta, tenho a impressão de
ser ainda mais ridícula a opinião rotineira, por todos
aceita, de que é estúpido e absurdo esperar algo do jogo.
E por que há de o jogo ser pior do que qualquer outro
meio de adquirir dinheiro, como, por exemplo, o
comércio? É verdade que, em cem jogadores, ganha
apenas um. Mas que tenho eu com isso?
Em todo caso, resolvi ficar a princípio prestando
atenção, e não iniciar nada de sério naquela noite. Ainda
que sucedesse algo, seria fortuito, ligeiro - foi o que
decidi. Por outro lado, era preciso também estudar o
próprio jogo; porque, apesar dos milhares de descrições
da roleta, que eu sempre lia com grande sofreguidão,
decididamente não compreendia nada do seu
funcionamento, antes de verificá-lo pessoalmente.
Em primeiro lugar, tudo me pareceu tão sujo - sujo e
ruim, de certo modo, do ponto de vista moral. Não me
refiro, de maneira nenhuma, a esses semblantes ávidos e
inquietos que, às dezenas, às centenas mesmo,
assediam as mesas de jogo. Não vejo absolutamente
nada de sujo no desejo de ganhar o quanto antes e o
mais possível; sempre me pareceu muito estúpido o
pensamento de um moralista supernutrido e bem
provido de haveres, que, ouvindo a defesa de alguém, no
sentido de que, “na verdade, joga-se aos pouquinhos”,
respondia: “tanto pior, porque é uma cupidez miúda”.
Como se a pequena e a grande cupidez não fossem a
mesma coisa. É um caso de proporções. O que é miúdo
para Rothschild, é uma grande riqueza para mim, e,
quanto a lucros e ganhos de jogo, os homens, mesmo
fora da roleta, em toda parte não fazem outra coisa
senão tirar ou ganhar algo uns dos outros. Se são, de
modo geral, ignóbeis o ganho e o enriquecimento, é
outra questão. Mas eu não vou resolvê-la agora. Como eu
próprio estivesse, no mais alto grau, possuído do desejo
do ganho, toda essa ambição e toda essa imundície
carregada de ambição, se assim quiserem, eram para
mim, no momento em que entrei na sala, de certo modo
mais familiares. A situação mais simpática é aquela em
que as pessoas não se envergonham umas das outras,
mas agem franca e abertamente. E para que enganar-se?
É a mais vã e imprudente das ocupações! O que havia de
mais feio, ao primeiro relance, em toda aquela corja de
jogadores, era o respeito pela ocupação, a seriedade e,
mesmo, a deferência com que todos assediavam as
mesas. Eis por que ali estava demarcada nitidamente a
diferença entre o jogo chamado mauvais genre (“tipo
ruim”. (N. do T.)) e outro permissível a uma pessoa
decente. Existem dois tipos de jogo: o dos cavalheiros e o
dos plebeus - este repassado da avidez de lucro, o jogo
de todos os pulhas. Ali, isso estava rigorosamente
diferençado; mas como esta diferença é, na realidade,
ignóbil! Um cavalheiro, por exemplo, pode apostar cinco
ou dez luíses de ouro, raramente mais; aliás, pode
apostar mesmo mil francos, no caso de ser muito rico,
mas unicamente pelo jogo em si, por divertimento
apenas - em essência, para verificar o processo de
ganhos ou perdas; mas de modo nenhum se deve
interessar pelo próprio ganho. Depois de ganhar, pode,
por exemplo, rir, fazer uma observação a alguém
próximo de si; pode até apostar mais uma vez e tornar a
duplicar o ganho, mas somente por curiosidade, a fim de
observar as probabilidades do jogo e fazer os seus
cálculos - não pelo desejo plebeu de ganhar. Em suma,
deve olhar para todas as mesas de jogo, roletas e trente
et quarante (“trinta e quarenta”, um jogo de cartas. (N.
do T.)), apenas como um divertimento, criado
unicamente para o seu prazer. Não deve suspeitar sequer
dos cálculos e artimanhas em que se baseia e pelos
quais se norteia a banca. Não seria nada mau, mas nada
mau mesmo, se, por exemplo, ele tivesse a impressão de
que também os demais jogadores - toda essa canalha
que treme sobre cada florim - são outros tantos ricaços e
cavalheiros, como ele próprio, e jogam apenas por
divertimento e desfastio. Este desconhecimento
completo da realidade e um modo tão inocente de ver as
demais pessoas seriam, naturalmente, aristocráticos ao
extremo. Eu via muitas mamãezinhas empurrarem para a
frente misses inocentes e elegantes, de quinze a
dezesseis anos, suas filhas, e, dando-lhes algumas
moedas de ouro, ensinarem-lhes como jogar. A senhorita
ganhava ou perdia, com um sorriso indefectível, e
afastava-se, muito satisfeita. O nosso general acercou-se
da mesa, com majestosa importância; um criado
precipitou-se para oferecer-lhe uma cadeira, mas ele
nem sequer notou o criado; puxou lentamente o seu
porta-níqueis; com igual lentidão, retirou dele trezentos
francos-ouro, pondo-os, depois, sobre o preto, e ganhou o
lance. Não apanhou o ganho, deixando-o sobre a mesa.
Deu novamente o preto; também dessa vez não apanhou
o dinheiro, e, no terceiro lance, quando saiu o vermelho,
ele perdeu de uma só vez mil e duzentos francos.
Afastou-se com um sorriso e conseguiur controlar-se.
Estou certo de que sentia uns gatos arranharem-lhe o
coração, e, fosse a aposta duas ou três vezes maior, teria
perdido o controle, revelando perturbação. Aliás, vi um
francês ganhar e, depois, perder perto de trinta mil
francos, alegremente e sem qualquer perturbação. Um
cavalheiro de verdade não deve ficar nervoso, mesmo no
caso de perder toda a fortuna. O dinheiro deve ficar
abaixo da condição do cavalheiro, de tal forma que não
valha quase a pena preocupar-se com ele. Naturalmente,
seria muito aristocrático não perceber absolutamente a
imundície de todos aqueles pulhas e do próprio
ambiente. Todavia, às vezes, não é menos aristocrático
também o comportamento oposto, isto é, notar, prestar
atenção, mesmo examinar, com um lornhão, por
exemplo, toda aquela canalha: mas que não seja de
outro modo a não ser aceitando toda aquela multidão e
aquela imundície como uma distração de caráter
especial, uma representação urdida para entretenimento
dos cavalheiros. É admissível acotovelar-se a gente em
meio àquela multidão, desde que se olhe em torno com
absoluta convicção de que se é apenas um observador
que não faz parte do conjunto. Se bem que, apesar de
tudo, não convém observar com muita insistência; não
será conduta de cavalheiro, pois, em todo caso, aquele
espetáculo não merece uma observação prolongada e
demasiado atenta. Aliás, são poucos os espetáculos que
merecem uma observação extremamente atenta de um
cavalheiro. No entanto, tive pessoalmente a impressão
de que tudo aquilo merecia uma observação muito
atenta, principalmente no caso de alguém que chegou
ali, não para a observação em si, mas considerando-se,
sincera e conscienciosamente, como parte de toda
aquela canalha. E quanto às minhas secretíssimas
convicções morais, naturalmente, não há para elas
espaço nestas minhas reflexões. Convenhamos que
assim seja; falo para limpar a consciência. Preciso,
porém, observar o seguinte: nos últimos tempos, eu
sentia uma repugnância horrível em conciliar minhas
ações e pensamentos com qualquer critério moral. Eu
obedecia a outro impulso...
A corja, realmente, joga de modo extremamente
imundo. Estou, mesmo, propenso a crer que se cometem,
à mesa de jogo, furtos dos mais vulgares. Os crupiês que,
sentados nos extremos da mesa, fiscalizam e pagam as
apostas, têm um trabalho insano. Mas, que crápulas
esses crupiês! São, na maioria, franceses. Aliás, se estou
observando e constatanto isso, não é absolutamente
para descrever a roleta, e sim para saber como proceder
no futuro. Observei, por exemplo, que o fato mais comum
é alongar-se, de repente, o braço de alguém, para
apropriar-se daquilo que você ganhou. Uma altercação
começa, não raro há gritos, mas vá provar, mesmo com o
auxílio de testemunhas, que a parada é sua!
A princípio, tudo isso era uma algaravia para mim; eu
apenas suspeitava e com dificuldade distinguia que as
apostas podiam ser sobre números, sobre par ou ímpar e
sobre cores. Naquela noite, resolvi arriscar cem florins do
dinheiro de Polina Aleksândrovna. A ideia de que estava
me lançando no jogo por conta alheia deixava-me um
tanto confuso. Era uma sensação extremamente
desagradável, e eu quis livrar-me dela o quanto antes.
Tinha continuamente a impressão de que, iniciando o
jogo por conta de Polina, estava solapando a minha
própria sorte. Será verdade que não possamos
aproximar-nos da mesa de jogo sem que a superstição
imediatamente nos domine? Comecei tirando cinco
friedrichsdors (Friedrichsdor - moeda de ouro prussiana,
cunhada, a primeira vez, por ordem de Frederico, o
Grande. (N. do T.)), isto é, cinquenta florins, e coloquei-os
no par. A roda girou e saiu o número treze; perdi,
portanto. Presa de certa sensação mórbida, unicamente
para dar um fim a tudo aquilo e ir embora, coloquei mais
cinco friedrichsdors no vermelho. Saiu o vermelho. Repeti
a aposta com os dez friedrichsdors, e saiu novamente o
vermelho. Tendo recebido quarenta friedrichsdors,
coloquei vinte sobre os doze números centrais, sem
saber o que resultaria disso. Pagaram-me o triplo. Deste
modo, no lugar dos meus dez friedrichsdors iniciais, vi-
me, de repente, com oitenta. Tive um sentimento tão
intolerável, em consequência de não sei que sensação
incomum e estranha, que decidi retirar-me. Tive a
impressão de que teria jogado de modo completamente
diverso, se o fizesse para mim. Todavia, coloquei todos os
oitenta friedrichsdors, mais uma vez, no par. Dessa vez,
saiu o quatro; atiraram-me outros oitenta friedrichsdors,
e, apanhando todo o monte de cento e sessenta
friedrichsdors, saí à procura de Polina Aleksândrovna.
Eles estavam todos passeando em alguma parte do
parque, e só consegui vê-la à hora da ceia. Dessa vez, o
francês estava ausente, e o general expressou-se com
franqueza: entre outras coisas, achou necessário
observar-me novamente que não gostaria de me ver à
mesa de jogo. Na sua opinião, ele ficaria muito
comprometido, se eu, de algum modo, perdesse dinheiro
demais; “contudo, mesmo que o senhor ganhe muito, eu
também ficarei comprometido - acrescentou de modo
significativo. - Naturalmente, não tenho o direito de
dispor das suas ações, mas deve concordar comigo...”.
Neste ponto, como de costume, deixou a frase em
suspenso. Respondi-lhe secamente que tinha muito
pouco dinheiro e, por conseguinte, não me podia fazer
notado pelas perdas, mesmo que me pusesse a jogar.
Subindo para o meu quarto, pude entregar a Polina o
seu ganho e declarei-lhe que não ia jogar mais para ela.
- Mas por quê? - perguntou, sobressaltada.
- Porque quero jogar para mim mesmo - respondi,
examinando-a surpreendido - e isso atrapalha.
- Então, continua firmemente convicto de que a roleta
é a sua única saída e salvação? - perguntou com
sarcasmo. Respondi, muito seriamente, que sim; e,
quanto à minha convicção de ganhar infalivelmente, eu
estava de acordo em que podia ser ridícula, “mas que
me deixassem em paz”.
Polina Aleksândrovna insistiu em partilhar comigo,
meio a meio, o lucro daquela noite, e entregou-me
oitenta friedrichsdors, propondo-me continuar a jogar nas
mesmas condições. Recusei, decidida e definitivamente,
a participação nos ganhos, e declarei-lhe que não podia
jogar por conta alheia, não por má vontade, mas porque,
certamente, ia perder.
- E, no entanto, eu mesma, por mais estúpido que isto
seja, também confio quase unicamente na roleta - disse
ela, pensativa. - Por isso você deve, sem falta, continuar
o jogo de parceria comigo, meio a meio, e naturalmente
vai fazê-lo. - E, dizendo isso, afastou-se de mim, sem dar
ouvidos às minhas objeções.
III
Todavia, passou ontem o dia todo sem me dizer
palavra sobre o jogo. E, de modo geral, evitou falar
comigo. Não mudou seu modo de me tratar. Ao
encontrar-me, tinha o mesmo jeito displicente e, até,
algo hostil e desdenhoso. De modo geral, não procura,
vejo-o bem, ocultar a sua repulsa por mim. Apesar disso,
não esconde igualmente que lhe sou necessário, e que
me está reservando para algo. Estabeleceram-se entre
nós certas relações estranhas, em grande parte
incompreensíveis para mim, tomando-se em
consideração o seu orgulho e altivez em relação a todos.
Sabe, por exemplo, que a amo até a demência, permite-
me até falar-lhe da minha paixão, e, naturalmente, não
haveria um meio de expressar mais intensamente o seu
desprezo por mim do que com esta permissão de lhe
falar do meu amor, sem qualquer obstáculo ou
contenção. Era como se dissesse: “Está vendo, faço tão
pouco caso dos seus sentimentos que me é de todo
indiferente o que possa dizer-me ou sentir por mim”.
Mesmo antes, falava-me muito dos seus negócios, mas
nunca fora completamente franca. Mais ainda, em seu
desdém por mim havia, por exemplo, sutilezas desta
ordem: sabendo que eu conhecia alguma circunstância
da sua vida ou algo daquilo que a deixava
profundamente inquieta, ela mesma começava a contar-
me certas particularidades sobre o assunto, no caso de
se tornar necessário aproveitar-me, de algum modo,
para os seus objetivos, como uma espécie de escravo ou
menino de recados; sempre, porém, contava apenas o
indispensável a um empregado que se utiliza como
mensageiro, e caso me fosse desconhecida, ainda, toda a
correlação dos acontecimentos, se ela mesma me via
sofrer e inquietar-me com os seus sofrimentos e as suas
inquietações, ainda assim, nunca se dignava a
tranquilizar-me inteiramente com a sua franqueza
amistosa, embora, utilizando-me não raro em tarefas não
só trabalhosas mas que até ofereciam perigo, ela tivesse,
a meu ver, obrigação de ser franca em relação a mim.
Mas valia a pena, acaso, preocupar-se com os meus
sentimentos, com o fato de que eu também me
sobressaltava e talvez me preocupasse e torturasse com
as suas preocupações e insucessos, três vezes mais que
ela própria?!
Eu já sabia, com umas três semanas de antecedência,
da sua intenção de jogar na roleta. Chegou até a
prevenir-me de que eu precisaria fazê-lo em seu lugar,
pois isso não seria decente para ela. Pelo tom de sua voz,
já notara então que ela era presa de certa preocupação
séria, e não apenas da vontade de ganhar dinheiro. Que
lhe importava o dinheiro em si?! No caso, existe um
objetivo, há não sei que circunstâncias, que posso
adivinhar, mas que, até o presente, desconheço.
Naturalmente, a humilhação e servilismo em que ela me
mantém poderiam dar-me (e, com muita frequência,
realmente dão) a possibilidade de eu mesmo inquiri-la
direta e rudemente. Sendo eu, em relação a ela, um
escravo e bem insignificante a seus olhos, não há motivo
para que se ofenda com a minha rude curiosidade.
Todavia, se me permite fazer-lhe perguntas, não as
responde. Às vezes, nem chega a percebê-las. Eis o que
sucede entre nós!
Falou-se muito ontem, em nosso grupo, de um
telegrama, enviado a Petersburgo há quatro dias, e que
não teve resposta. O general está visivelmente inquieto e
pensativo. Trata-se, naturalmente, da avó. Também o
francês está agitado. Ontem, por exemplo, após o jantar,
passaram muito tempo numa conversa séria. O tom de
voz do francês, em relação a todos nós, é altivo e
displicente. Bem diz o provérbio: “Dá-se a ponta de um
dedo e querem logo a mão”. Mesmo em relação a Polina,
usa um tom descuidado, que chega à grosseria; aliás,
participa com prazer dos passeios em grupo pelo cassino
ou das cavalgadas e outras excursões fora da cidade. Há
muito que conheço algumas das circunstâncias que
ligaram o francês ao general: na Rússia, pretendiam abrir
uma usina em sociedade; não sei se o projeto fracassou
ou se continuam a falar dele. Além disso, fiquei sabendo,
por acaso, parte de um segredo de família: o francês
realmente salvou, no ano passado, o general de um
embaraço, fornecendo-lhe trinta mil rublos, para
completar o que faltava na caixa, antes da transmissão
do seu cargo público. E, naturalmente, o general ficou
sob o seu domínio; mas agora, exatamente agora, quem
desempenha o papel principal, apesar de tudo, é Mlle.
Blanche, e estou certo de que não erro nisso.
Quem é Mlle. Blanche? Em nosso meio, dizem que ela
é uma francesa da melhor sociedade, que vive com a
mãe e dispõe de uma fortuna imensa. Sabe-se também
que há certo grau de parentesco entre ela e o nosso
marquês, mas um parentesco bem remoto, algo como
prima em segundo grau. Conta-se que, antes da minha
viagem a Paris, o francês e Mlle. Blanche tinham entre si
relações bem mais cerimoniosas, acentuadas por uma
nota de delicadeza; atualmente, porém, a amizade e
parentesco entre eles parecem, de certo modo, mais
rudes e íntimos. É possível que os nossos negócios lhes
pareçam tão ruins, que eles nem considerem mais
necessário fazer muita cerimônia conosco e simular
diante de nós. Ainda anteontem notei como Mister Astley
estava examinando Mlle. Blanche e a mãezinha desta.
Tive a impressão de que ele as conhecia. Pareceu-me,
até, que o nosso francês também se tenha encontrado
antes com Mister Astley. Este, aliás, é a tal ponto
encabulado, tímido e silencioso, que se pode quase
confiar nele. Certamente, não levará lixo para fora de
casa. Pelo menos, o francês mal o cumprimenta e quase
não olha para ele; logo, não o teme. Isto ainda é
compreensível; mas por que Mlle. Blanche também
quase não olha para ele? Tanto mais que, ontem, o
marquês se traiu: em meio de uma conversa geral, não
me lembro a propósito do quê, disse que Mister Astley
era imensamente rico e que ele tinha certeza disso; bem
que era caso de Mlle. Blanche olhar para Mister Astley
com maior atenção. Quanto ao general, está inquieto.
Compreende-se o que pode significar para ele, agora, um
telegrama comunicando a morte da tia!
Embora eu tivesse impressão segura de que Polina
evitava falar comigo, e isto parecesse intencional, assumi
também um ar frio e indiferente: pensava que, apesar de
tudo, ela viria a mim. Em compensação, ontem e hoje,
dirigi toda a minha atenção para Mlle. Blanche. Pobre
general, está irremediavelmente perdido! Apaixonar-se
aos cinquenta e cinco anos, com tanta força, é,
naturalmente, uma infelicidade. Acrescentem-se a isto a
sua viuvez, os filhos, a propriedade rural completamente
arruinada, as dívidas e, finalmente, a mulher por quem
lhe coube apaixonar-se. Mlle. Blanche é bonita. Mas não
sei se vou ser compreendido, dizendo que ela tem um
desses rostos que podem assustar. Pelo menos, sempre
tive medo de semelhantes mulheres. Deve ter uns vinte
e cinco anos. É alta e de ombros largos, abruptos; tem
busto e pescoço magníficos; o tom da pele é moreno
amarelado, e os cabelos, negros como nanquim, tão
abundantes que dariam para dois penteados. Tem olhos
negros, de esclerótica amarela, olhar insolente, dentes
muito brancos e lábios sempre pintados; cheira a
almíscar. Veste-se com imponência e riqueza, luxo, mas
com muito gosto. Tem pés e mãos admiráveis. A voz é de
contralto, um tanto rouca. De vez em quando, solta uma
gargalhada, mostrando todos os dentes; comumente,
porém, sua expressão é quieta, mas atrevida, pelo
menos na presença de Polina e de Mária Filípovna. (Um
boato esquisito: Mária Filípovna está prestes a voltar para
a Rússia.) Mlle. Blanche, parece-me, não possui qualquer
instrução, talvez nem seja inteligente, mas em
compensação é astuta e desconfiada. Tenho a impressão
de que em sua vida não faltaram aventuras. Para dizer
tudo, é possível que o marquês não seja seu parente, e a
mãe não seja propriamente mãe. Consta, no entanto,
que, em Berlim, onde nos reunimos, ela e a mãe tinham
algumas relações importantes. Quanto ao próprio
marquês, embora eu, até o presente, ponha em dúvida
este seu título, não parece haver dúvida de que tenha
pertencido à boa sociedade, em Moscou, por exemplo, e
em algumas cidades da Alemanha. Não sei o que ele
representa em França. Dizem que tem um château.
Pensei que, nestas duas semanas, muita água ia correr,
e, no entanto, ainda não sei se já foi dito algo decisivo
entre o general e Mlle. Blanche. De modo geral, tudo
depende agora da nossa condição financeira, isto é, das
possibilidades do general em mostrar-lhes muito
dinheiro. Se, por exemplo, chegasse a notícia de que a
avó não morreu, estou certo de que Mlle. Blanche
desapareceria de imediato. Eu mesmo acho
surpreendente e ridículo o fato de me ter tornado tão
linguarudo. Oh, como tudo isso me repugna! Que delícia
não seria abandonar tudo e todos! Mas posso, acaso,
afastar-me de Polina, deixar de espionar em torno dela?
Está claro que é ignóbil espionar, mas que me importa
isso?
Também achei curioso observar Mister Astley, ontem e
hoje. Sim, tenho certeza de que está enamorado de
Polina! É curioso e ridículo quanto pode expressar, às
vezes, o olhar de uma pessoa tímida, morbidamente
pudica, atingida pelo amor, precisamente na ocasião em
que essa pessoa preferiria sumir debaixo da terra a
expressar algo, com a palavra ou com o olhar. Mister
Astley encontra-se frequentemente conosco, no decorrer
dos passeios. Então, tira o chapéu e passa por nós,
certamente morto de vontade de unir-se ao grupo. Mas,
sendo convidado, imediatamente recusa. Nos lugares de
repouso, no cassino, ao ouvir-se música ou diante do
repuxo, detém-se invariavelmente nas proximidades de
nosso banco, e, onde quer que estajamos, no parque, no
bosque ou sobre o Schlangenberg, basta mover os olhos
em redor para que se veja infalivelmente aparecer em
alguma parte, no atalho mais próximo ou atrás de um
arbusto, um pedacinho de Mister Astley. Tenho a
impressão de que está procurando a oportunidade para
uma conversa reservada comigo. Encontramo-nos hoje
de manhã e trocamos duas palavras. Às vezes, fala de
modo extremamente brusco. Sem me dizer “bom dia”,
começou: - Ah, essa Mademoiselle Blanche!... Já vi
muitas mulheres do tipo de Mademoiselle Blanche!
Calou-se, olhando-me com ar significativo. Não sei o
que pretendia dizer, porquanto, à minha pergunta sobre
o que significava aquilo, fez um aceno de cabeça, com
um sorriso astuto, e acrescentou: - Assim é.
Mademoiselle Pauline gosta muito de flores?
- Não sei, não sei absolutamente - respondi.
- Como! Não sabe isso também? - exclamou,
profundamente surpreendido.
- Não sei, não notei nada - repeti rindo.
- Hum! isto me sugere certa ideia especial. - Nesse
momento, fez um gesto com a cabeça e afastou-se.
Tinha, por sinal, um ar satisfeito. Converso com ele num
francês detestável.
IV
Hoje foi um dia ridículo, escandaloso, absurdo. São
onze da noite. Estou sentado no meu cubículo,
lembrando tudo. Para começar, de manhã não tive outro
remédio senão ir jogar na roleta, por conta de Polina
Aleksândrovna. Levei todos os seus cento e sessenta
friedrichsdors, mas com duas condições: a primeira, que
eu não queria jogar a meias, isto é, se ganhasse, nada
levaria para mim; a segunda que, de noite, Polina devia
explicar-me por que andava em tal necessidade de
ganhar, e quanto exatamente. Não posso de nenhum
modo supor que fosse simplesmente por causa de
dinheiro. No caso, sem dúvida, o dinheiro era
indispensável, e o quanto antes, para algum fim especial.
Prometeu explicar-me tudo e fui jogar. Nas salas de jogo,
havia uma horrível multidão. Como são atrevidos e
sôfregos! Abrindo caminho à força, cheguei ao centro e
fiquei bem ao lado do crupiê; em seguida, comecei a
experimentar timidamente o jogo, apostando duas ou
três moedas de cada vez. Nesse ínterim, fiquei
observando e fazendo descobertas; tive a impressão de
que, propriamente, o cálculo tem muito pouca
importância, e de modo nenhum aquela que lhe atribuem
inúmeros jogadores. Eles ficam sentados com os seus
papeizinhos divididos em colunas, observam os lances,
contam, consideram as probabilidades, fazem cálculos,
finalmente apostam e... perdem exatamente como nós
outros, simples mortais, que jogamos sem calcular. Em
compensação, cheguei a uma conclusão que parece
exata: com efeito, na sucessão dos resultados casuais,
existe não um sistema, mas uma espécie de ordem, o
que, naturalmente, é muito estranho. Por exemplo,
acontece saírem, depois dos doze números centrais, os
doze últimos; duas vezes, digamos, a sorte recai nesses
doze últimos e, depois, passa para os doze primeiros. Em
seguida, recai mais uma vez sobre os doze do meio, e
ainda três, quatro vezes consecutivas, sobre estes,
passando de novo para os doze últimos, de onde, após
duas vezes, torna aos primeiros, passa ainda para os
médios, em que dá três batidas, e assim ocorre durante
uma hora e meia ou duas. Um, três e dois, um, três e
dois. É muito divertido. Um dia, ou certa manhã, por
exemplo, acontece que o vermelho é seguido do negro, e
vice-versa, quase sem nenhuma ordem, a todo instante,
de modo que a sorte não recai mais de duas ou três
vezes seguidas sobre o vermelho ou o negro. No dia ou
na noite seguintes, acontece digamos sair apenas o
vermelho mais de vinte e duas vezes seguidas, e assim
ocorre, invariavelmente, por algum tempo, às vezes um
dia inteiro. Muitos pormenores sobre este fato me foram
explicados por Mister Astley, que passou a manhã inteira
junto às mesas de jogo, mas não fez nenhuma aposta.
Quanto a mim, perdi completamente tudo, e em bem
pouco tempo. Logo no início, apostei no par vinte
friedrichsdors e ganhei, apostei mais cinco e tornei a
ganhar, e assim mais duas ou três vezes. Creio que, em
cinco minutos, tive nas mãos perto de quatrocentos
friedrichsdors. Deveria afastar-me nesse momento, mas
nasceu então em mim certa sensação estranha, certo
desafio ao destino, um desejo de dar a este um piparote,
mostrar-lhe a língua. Arrisquei a maior quantia permitida,
quatro mil florins, e perdi. Depois, em minha excitação
apanhei tudo o que me restava, repeti o lance e tornei a
perder, afastando-me da mesa como se tivesse levado
uma pancada na cabeça. Chegar a não compreender o
que me acontecia, e foi apenas pouco antes do jantar
que relatei o sucedido a Polina Aleksândrovna. Até
aquela hora, fiquei vagando pelo parque.
No decorrer do jantar, estava novamente de ânimo
exaltado, como três dias antes. Como daquela vez,
jantavam conosco o francês e Mlle. Blanche. Aconteceu
que ela estivera de manhã nas salas de jogo e assistira
às minhas proezas. Dessa vez, começou a falar comigo
de modo mais atencioso. O francês foi mais direto e
perguntou-me simplesmente se o dinheiro que eu havia
perdido era de fato meu. Tenho a impressão de que
desconfia de Polina. Numa palavra, existe algo em tudo
isso. No mesmo instante, menti e disse que o dinheiro
era meu.
O general estava extremamente surpreendido: onde
arranjara eu tanto dinheiro? Expliquei-lhe que havia
começado com dez friedrichsdors, que seis a sete lances
felizes, a dobrar, levaram-me a ganhar cinco a seis mil
florins, e que, depois, perdi tudo em dois lances.
Naturalmente, era verossímil. Explicando-o, lancei um
olhar a Polina, mas nada pude compreender na
expressão do seu rosto. Contudo, ela me deixou mentir e
não me corrigiu; concluí disso que devia, realmente,
mentir e ocultar que tinha jogado por conta dela. Em
todo caso, pensei, deve-me uma explicação, e de manhã
prometera revelar-me algo.
Eu esperava que o general me fizesse alguma
observação, mas ele manteve-se calado; no entanto,
percebi em seu rosto intranquilidade e perturbação. Na
dura contingência em que se encontrava, talvez lhe fosse
simplesmente penoso ouvir que uma porção assim
respeitável de ouro tivesse passado, durante um quarto
de hora, pelas mãos de um imprudente imbecil como eu.
Desconfio que, ontem à noite, ele teve alguma
discussão veemente com o francês. Trancados no quarto,
passaram muito tempo a falar acaloradamente. O
francês, ao sair dali, parecia irritado, e hoje de manhã,
bem cedo, foi de novo procurar o general, provavelmente
a fim de continuar a conversa de ontem.
Ouvindo o relato das minhas perdas no jogo, o francês
observou-me de modo sarcástico, e até com rancor, que
eu devia ter sido mais prudente. Acrescentou ainda, não
sei com que intenção, que embora muitos russos joguem,
eles são, a seu ver, incompetentes até para jogar.
- Mas, na minha opinião, a roleta foi criada justamente
para os russos - disse eu, e, depois que o francês sorriu
com desdém, observei-lhe que, naturalmente, a verdade
estava do meu lado, pois, falando dos russos como
jogadores, eu os estava injuriando mais que louvando, e
que, por conseguinte, era preferível acreditar em mim.
- Mas, em que baseia a sua opinião? - perguntou o
francês.
- No fato de que, no catecismo das virtudes e méritos
do civilizado homem ocidental, entrou historicamente, e
quase na qualidade de primeira condição, a capacidade
de adquirir capitais. E, quanto ao russo, este não
somente é incapaz de adquiri-los, mas até os dilapida à
toa, de modo vil. Todavia nós, russos, também
precisamos de dinheiro - acrescentei - e, por
conseguinte, ficamos muito satisfeitos com meios como a
roleta, pelos quais temos um grande fraco, e graças aos
quais se pode enriquecer de repente, em umas duas
horas, sem trabalhar. Isso nos seduz ao extremo; e, como
jogamos à toa, sem esforço, invariavelmente perdemos!
- Isso, em parte, é justo - observou com ar
autossuficiente o francês.
- Não, isso é injusto, e o senhor devia ter vergonha de
se referir assim à sua pátria - observou o general, severa
e solenemente.
- Vejamos uma coisa - respondi. Na verdade, não se
sabe ainda o que é mais ignóbil: se a conduta horrível
dos russos ou o método alemão de acumular, por meio
de trabalho honesto.
- Que pensamento horrível! - exclamou o general.
- Que pensamento russo! - exclamou o francês.
Eu ria, tinha muita vontade de provocá-los.
- Gostaria mais de passar toda a vida como um
nômade, levando comigo uma tenda de quirguiz (Grande
parte da população da Quirguízia deixou a vida nômade
somente no século XX. (N. do T.)) - disse eu gritando - do
que inclinar-me ante o ídolo alemão.
- Que ídolo? - gritou também o general, começando já
a ficar seriamente zangado.
- O método alemão de acumulação de riqueza. Estou
aqui há pouco tempo, mas, apesar de tudo, o que já
pude notar e verificar deixa indignada a minha natureza
tártara. Juro por Deus, não desejo essas virtudes! Ontem,
já tive ocasião de andar umas dez verstas nestas
redondezas. Bem, vi exatamente o mesmo que se
encontra nos livrinhos ilustrados alemães, destinados a
pregar moral: em cada casa existe um Vater (“Pai”. Em
alemão no original. (N. do T.)), terrivelmente virtuoso e
extraordinariamente honesto. Tão honesto, que dá até
medo aproximar-se dele. Eu não suporto as pessoas
honestas das quais temos medo de nos aproximar. Cada
um desses Vaters possui uma família e, ao anoitecer,
todos eles leem em voz alta livros instrutivos. Olmos e
castanheiros farfalham sobre a casinhola. O pôr do sol,
uma cegonha no telhado, tudo é poético e tocante ao
extremo... Não se zangue, meu general, permita-me
contar tudo do modo mais comovente. Eu mesmo estou
lembrado de como o meu falecido pai lia ao anoitecer,
também sob umas tiliazinhas, em nosso jardim, para
mim e a minha mãe, livros semelhantes... Posso,
portanto, fazer sobre isso um juízo equitativo. Pois bem,
cada uma dessas famílias daqui está em completa
escravidão e dependência em relação ao Vater. Todos
trabalham como uns bois e acumulam dinheiro como
judeus. Suponhamos que o Vater já economizou certo
número de florins e conta com o filho mais velho para lhe
transmitir o ofício ou um pedacinho de terra; a fim de
que isto seja possível, deixa-se de dar um dote à filha, e
esta permanece solteirona. Com o mesmo fim, o filho
mais novo é vendido para trabalhos servis ou para ser
soldado, e acrescenta-se o dinheiro assim obtido ao
capital da família. Isto se faz aqui, realmente; tomei
informações. Tudo isso não tem outro móvel senão a
honestidade, uma honestidade extremada, a ponto de o
próprio filho mais novo acabar acreditando que foi
vendido exclusivamente por uma questão de
honestidade. E, realmente, chega-se ao ideal quando a
própria vítima se alegra por estar sendo conduzida para
a imolação. E que mais acontece? Acontece que o filho
mais velho também não se sente melhor: tem ele uma
certa Amalchen, com a qual se ligou de coração; no
entanto, o casamento é impossível, porque não se
acumulou ainda certo número de florins. Também neste
caso se espera sinceramente e com bons modos, e é
sinceramente e com um sorriso que se caminha para o
sacrifício. Amalchen tem já as faces encovadas, está
ficando ressequida. Finalmente, uns vinte anos depois, os
bens foram multiplicados, os florins acumulados honesta
e virtuosamente. O Vater abençoa o primogênito
quarentão e Amalchen, que tem agora trinta e cinco
anos, o peito seco e o nariz rubicundo... chora, prega
uma lição de moral e morre. O primogênito, por sua vez,
transforma-se num Vater virtuoso, e recomeça a história.
Uns cinquenta ou setenta anos depois, o neto do primeiro
Vater consegue, realmente, reunir um capital
considerável e transmite-o a seu filho, que o transmitirá
por sua vez, e assim após umas cinco ou seis gerações,
surge o próprio Barão Rothschild, ou então a firma Goppe
& Cia. (Famosa casa bancária em Amsterdã e Londres.
(N. do T.)) ou sabe o diabo o quê. Com efeito, tem-se um
espetáculo grandioso: transmitem-se, durante cem ou
duzentos anos, o trabalho, a paciência, a inteligência, a
honestidade, o caráter, a firmeza, o hábito de calcular
tudo, a cegonha no telhado! Que mais querem?
Realmente, não existe nada acima disso, e, a partir desse
ponto, eles começam a julgar todo mundo, e a executar
imediatamente os culpados, isto é, aqueles que não se
parecem com eles um pouco sequer. Pois bem, o caso
está no seguinte: quanto a mim, prefiro tornar-me
devasso à moda russa ou ganhar na roleta. Não quero
transformar-me em Goppe & Cia., depois de cinco
gerações. Preciso de dinheiro para mim mesmo, e não
considero toda a minha pessoa algo indispensável e
suplementar a um capital. Sei que disse uma porção de
inconveniências, mas assim seja. Tais são as minhas
convicções.
- Não sei se há muita verdade no que o senhor disse -
observou o general, com ar pensativo -, mas estou certo
de que se torna um farsante intolerável desde que lhe
deem um pouquinho de liberdade...
Como de costume, não terminou a frase. Quando o
nosso general começava a falar de algo que fosse ao
menos um pouco mais sério que a conversa habitual,
nunca chegava a concluir o que dizia. O francês estava
ouvindo com displicência, os olhos um pouco
arregalados. Não compreendeu quase nada do que eu
dissera. Polina tinha certo ar de altiva indiferença.
Parecia ter deixado de ouvir, não apenas as minhas
palavras, mas toda aquela conversa à mesa.
V
Estava extremamente pensativa, mas, apenas nos
levantamos, ordenou-me que a acompanhasse num
passeio. Chamamos as crianças e dirigimo-nos para o
parque, em direção do repuxo.
Como eu estivesse particularmente exaltado, deixei
escapar de modo estúpido e grosseiro a pergunta: por
que o nosso Marquês Des Grieux (Personagem do
romance Manon Lescaut, do Abade Prévost. (N. do T.)), o
francesinho, não somente não a estava acompanhando
então, quando ela saía para alguma parte, mas, até,
passava dias inteiros sem falar com ela?
- Porque é um canalha - respondeu-me, de modo
estranho. Até então, eu nunca ouvira dela semelhante
opinião sobre Des Grieux, e calei-me, temeroso de
compreender aquela irritação.
- Reparou que, hoje, ele não está em boas relações
com o general?
- Você quer saber do que se trata - respondeu ela, de
modo seco e irritado. - Você sabe que o general
hipotecou-lhe completamente todas as suas
propriedades e, se a avó não morrer, o francês entrará
imediatamente na posse do penhor.
- Então, é verdade mesmo que tudo está hipotecado?
Ouvi dizer, mas não sabia que se tratava realmente de
tudo.
- Como podia ser diferente?
- E, nesse caso, adeus Mademoiselle Blanche -
observei. - Não será mais generala! Sabe de uma coisa?
Tenho a impressão de que o general está apaixonado a
tal ponto que, se Mademoiselle Blanche o abandonar,
será capaz de suicidar-se. Na idade dele, é perigoso
apaixonar-se assim.
- Tenho também a impressão de que alguma coisa vai
acontecer com ele - observou Polina Aleksândrovna,
pensativa.
- É magnífico! - exclamei. - Não pode haver um modo
mais rude de se mostrar que foi unicamente por causa
de dinheiro que ela concordou em casar-se com ele. Nem
sequer se cuidou de guardar as aparências, tudo
aconteceu sem qualquer cerimônia. Que maravilha! E,
quanto à avó, o que pode haver de mais cômico e
imundo do que enviar um telegrama após outro,
perguntando: “Já morreu, já morreu?”. Hem, que acha
disso, Polina Aleksândrovna?
- Tudo isso é absurdo - disse ela com repugnância,
interrompendo-me. - Eu, ao contrário, fico admirada por
você estar assim alegre. Ficou contente como o quê?
Será porque perdeu o meu dinheiro no jogo?
- Para que me deixou perdê-lo? Eu lhe disse que não
podia jogar por conta alheia, sobretudo para você. Vou
obedecer, sejam quais forem as suas ordens; mas o
resultado não depende de mim. Avisei bem que não daria
certo. Diga-me: está muito aborrecida pelo fato de ter
perdido tanto dinheiro? Para que precisa de uma quantia
tão grande?
- Para que essas perguntas?
- Mas você mesma prometeu-me explicar... Escute:
estou plenamente convencido de que, depois de começar
a jogar por minha conta (e eu tenho doze friedrichsdors),
hei de ganhar. Então, leve quanto quiser.
Ela teve uma expressão desdenhosa.
- Não se zangue comigo - prossegui - por causa desde
oferecimento. Estou a tal ponto imbuído da convicção de
ser um zero perto de você, isto é, a seus olhos, que você
pode até levar dinheiro de mim. Não pode ofender-se
com o meu presente. Além disso, o dinheiro que perdi
era seu.
Lançou-me um olhar rápido e, percebendo que eu
estava falando com irritação e sarcasmo, tornou a
interromper-me: - Não lhe interessa de modo algum o
que sucede comigo. Se quer saber, estou simplesmente
endividada. O dinheiro foi tomado por mim de
empréstimo, e eu gostaria de devolvê-lo. Tive o
pensamento louco e estranho de que, infalivelmente, ia
ganhar dinheiro nesta cidade, à mesa do jogo. Não
compreendo por que me surgiu esse pensamento, mas
acreditei nele. Quem sabe? Talvez eu acreditasse
justamente por não me sobrar nenhuma outra
probabilidade.
- Ou porque houvesse demasiada necessidade de
ganhar. É exatamente o caso do afogado que se agarra a
uma palhinha. Deve convir comigo que, se ele não
estivesse submergindo, não tomaria a palhinha por um
galho de árvore.
Polina ficou admirada.
- Como assim? - perguntou. A sua esperança não era
do mesmo gênero? Há duas semanas, você me falou
longamente da sua certeza absoluta de ganhar aqui na
roleta e procurou convencer-me a que não o
considerasse um doido; estava, então, brincando? Mas,
lembro-me, falava com tanta seriedade que de modo
nenhum se poderia tomar aquilo por uma brincadeira.
- É verdade - respondi pensativo. - Até agora, estou
plenamente certo de ganhar. Confesso-lhe, até, que você
acaba de me sugerir a pergunta: por que a minha perda
de hoje, tão horrível e sem sentido, não deixou em mim
qualquer dúvida? Apesar de tudo, estou absolutamente
convicto de que hei de ganhar, apenas comece a jogar
por minha conta.
- Mas, por que tem essa certeza?
- Palavra que não sei como lhe responder. Sei apenas
que preciso ganhar, que é, igualmente, a única saída
para mim. Eis, talvez, por que eu tenho esta impressão
de que devo infalivelmente ganhar.
- Quer dizer que você também tem uma necessidade
demasiada, se está fanaticamente convencido do ganho?
- Sou capaz de jurar que você duvida da minha
capacidade de sentir uma necessidade séria.
- Pouco me importa isso - respondeu Polina,
tranquilamente e com indiferença. - Se quer saber: sim,
duvido que algo possa atormentá-la seriamente. É capaz
de se atormentar, mas não seriamente. Você é uma
pessoa desordenada e que não se deteve em algo. Para
que precisa de dinheiro? Em todas as razões que me
apresentou, não encontro nada de sério.
- Aliás - interrompi - você disse que precisa pagar uma
dívida. Deve ser, pois, uma bela dívida! Não será para o
francês?
- Que perguntas são essas? Hoje você está
particularmente rude. Não estará bêbado?
- Já sabe que me permito dizer tudo e, às vezes, faço
perguntas muito francas. Repito, sou seu escravo e não
se tem vergonha de um escravo: o escravo não pode
ofender a ninguém.
- Tudo isso é bobagem! E eu não suporto esta sua
teoria de “escravidão”.
- Repare que não falo da minha escravidão porque
deseje ser seu escravo, refiro-me a isto como um fato
que absolutamente não depende de mim.
- Diga-me francamente: para que precisa de dinheiro?
- E para que precisa sabê-lo?
- Como queira - respondeu ela com um movimento
altivo da cabeça.
- Não tolera a teoria da escravidão, mas exige a
condição de escravo: “Responder e não argumentar!”.
Está bem, seja. Pergunta-me para que quero dinheiro.
Como assim? O dinheiro é tudo!
- Compreendo, mas não há razão para se ficar assim
demente, só por desejá-lo! Você também está chegando
à exaltação, ao fatalismo. Nisso, existe algo, um objetivo
particular. Fale sem rodeios, eu quero.
Parecia que ela começava a zangar-se, e agradou-me
extremamente o fato de que me interrogasse com
tamanho arrebatamento.
- Está claro que há um objetivo - disse eu -, mas não
saberia explicar em que consiste. Nada mais a não ser
que, possuindo dinheiro, vou tornar-me para você
também uma outra pessoa e não um escravo.
- Como? Como vai consegui-lo?
- Como vou consegui-lo? Então não é, ao menos,
capaz de compreender que eu possa conseguir que você
não me olhe mais como a um escravo? Pois bem, é
justamente o que não quero - esses espantos e
surpresas.
- Você disse que está nessa escravidão a sua delícia.
Eu mesma também pensei assim.
- Pensou assim! - exclamei, com uma volúpia
estranha. - Ah, como é boa esta sua ingenuidade! Pois
bem, realmente, ser o seu escravo é uma delícia para
mim. No derradeiro grau da humilhação e insignificância
há um certo deleite, sim! - prossegui num delírio. - Sabe
lá o diabo se ele não se acha também na chibata quando
esta desce sobre as costas e nos dilacera a carne... Mas
eu quero, talvez, experimentar outras delícias também.
Ainda há pouco o general me deu uma lição de moral
diante de você, à mesa, por causa de setecentos rublos
por ano, e que eu talvez nem receba dele. O Marquês
Des Grieux examina-me, erguendo as sobrancelhas, e, ao
mesmo tempo, não me nota. E eu, por outro lado, talvez
deseje ardentemente puxar pelo nariz o Marquês Des
Grieux, na sua presença.
- Argumentos de fedelho. Em toda situação é possível
conduzir-se com dignidade. E havendo luta, ela há de
enobrecer, em vez de aviltar.
- Isto saiu diretamente de um caderno escolar!
Suponha, simplesmente, que eu talvez não saiba situar-
me com dignidade. Isto é, sou talvez uma pessoa digna,
mas não sei conduzir-me com dignidade. Compreende
que possa ocorrer uma situação dessas? Sim, todos os
russos são assim, mas sabe por quê? Pois bem, eles
receberam dons demasiadamente ricos e variados, para
que possam rapidamente encontrar para si uma forma
decente. O caso está exatamente na forma. Na maior
parte dos casos, nós, russos, somos tão ricamente
dotados que, para assumir uma forma decente,
precisamos da genialidade. Bem, o mais comum é não se
ter genialidade, pois, em geral, ela é rara. Unicamente
entre os franceses, e talvez entre mais alguns europeus,
a forma se delineou tão bem que se pode aparentar uma
extraordinária dignidade e ser, ao mesmo tempo, o mais
indigno dos homens. É por isso que a forma tem entre
eles tão grande significação. Um francês é capaz de
suportar uma ofensa, uma verdadeira ofensa moral, sem
uma careta; mas de modo nenhum há de tolerar um
piparote no nariz, pois isso representa uma transgressão
da forma de decência aceita por todos e consagrada
secularmente. As nossas senhoritas são suscetíveis aos
encantos de um francês, justamente por causa de sua
excelente forma. A meu ver, no entanto, não há nisso
forma alguma, mas apenas um galo, le coq gaulois (“o
galo gaulês”. É o símbolo da França. (N. do T.)). Aliás, eu
não posso compreender isso, não sou mulher. Talvez os
galos tenham o seu encanto. E de modo geral, estou
falando demais, e você não me detém. Interrompa-me
com maior frequência; quando estou falando com você,
tenho vontade de dizer tudo, tudo, tudo. Perco então
toda forma. Concordo, até, que não possuo boas
maneiras, nem também qualquer espécie de qualidades.
Declaro-lhe isso agora. Nem me preocupo, sequer, com
quaisquer qualidades. Agora, tudo se paralisou em mim.
Você mesma sabe a razão disso. Não tenho na cabeça
qualquer pensamento humano. Há muito tempo que não
sei o que está acontecendo no mundo, tanto na Rússia
como aqui. Eu passei, por exemplo, por Dresden, e não
me lembro mais como ela é. Você mesma sabe o que me
absorveu. Visto que eu não tenho nenhuma esperança e,
a seus olhos, sou um zero, digo-lhe francamente: vejo
você em toda parte, e o resto me é indiferente. Não sei
por que e de que modo eu a amo. Sabe você que talvez
nem tenha qualidades? Imagine que nem sei se é bonita
de rosto. O seu coração, certamente, é mau, e a
inteligência, destituída de nobreza; isto é muito possível.
- Talvez pretenda comprar-me com dinheiro - disse ela
- justamente por não acreditar na minha nobreza?
- Quando foi que pensei em comprá-la com dinheiro? -
gritei.
- Você ficou confuso e perdeu o fio do discurso. Se não
pensa em comprar-me, pretende adquirir com dinheiro a
minha consideração.
- Não, não é bem assim. Já lhe disse que me exprimo
com dificuldade. Você me deixa esmagado. Não se
zangue com a minha tagarelice. Compreenda por que é
que não se pode ficar zangado comigo: sou
simplesmente um louco. Aliás, é indiferente para mim,
mesmo que fique zangada. Chegando lá em cima, no
meu cubículo, basta-me lembrar e imaginar apenas o
ruído do seu vestido, e já fico em condições de morder as
mãos. E por que se zanga comigo? Porque eu digo ser
um escravo? Aproveite-se, aproveite-se da minha
escravidão, aproveite-se! Sabe que, um dia, vou matá-la?
Não será por ter deixado de amá-la ou por ciúme, mas
sem maiores motivos, simples porque, às vezes, tenho
vontade de devorá-la. Está rindo...
- Não estou rindo, absolutamente - disse ela, com
indignação. - Ordeno-lhe que se cale.
Deteve-se, quase sufocada pela cólera. Juro por Deus,
não sei se ela era bonita, mas eu gostava sempre de vê-
la parar assim diante de mim, isto me incitava a
provocar-lhe frequentemente a ira. Talvez ela o tivesse
notado e se zangasse de propósito. Eu lhe disse isto.
- Que imundície! - exclamou com repugnância.
- Para mim, é indiferente - prossegui. - E há outra
coisa a dizer-lhe: é perigoso andarmos juntos; muitas
vezes, tive uma vontade incoercível de espancá-la,
desfigurá-la, esganá-la. E que pensa? Crê que não
chegaremos a isso? Vai levar-me ao delírio. Pensa que
vou temer o escândalo? A sua ira? Que me importa a sua
ira? Amo sem esperança, e sei que, depois disso, vou
amá-la mil vezes mais. Se eu a matar um dia, terei que
me matar também; no entanto, demorarei o mais
possível em fazê-lo, para sentir sem você essa dor
intolerável. Quer saber algo inconcebível? Amo-a cada
dia mais, embora seja quase impossível. E, depois disso,
posso deixar de ser fatalista? Lembre-se, murmurei-lhe,
anteontem sobre o Schlangenberg, provocado por você:
“Diga-me uma palavra, e saltarei neste abismo”. Se
dissesse aquela palavra, eu o teria feito. Não acredita,
porventura, que o fizesse?
- Que tagarelice mais tola! - exclamou ela.
- Nada tenho a ver com o fato de que seja tola ou
inteligente - exclamei por meu turno. - Sei que, na sua
presença, preciso falar, falar, falar, e falo. Na sua
presença perco todo amor-próprio e tudo me é
indiferente.
- Para que vou fazê-lo saltar do Schlangenberg? - disse
ela seca e de modo particularmente ofensivo. - Isto me é
de todo inútil.
- Magnífico! - exclamei. - Você disse intencionamente
esse magnífico “inútil” para me esmagar. Eu a vejo de fio
a pavio. Diz que é inútil? Mas o prazer é sempre útil, e
um poderio selvagem, ilimitado, ainda que seja sobre
uma mosca, constitui também uma forma de prazer. O
homem é um déspota por natureza e gosta de fazer
sofrer. Você gosta disso ao extremo.
Lembro-me de que ela ficou a examinar-me de modo
particularmente fixo e atento; provavelmente o meu
rosto expressava então todas as minhas sensações
absurdas e incoerentes. Estou me lembrando agora de
que, realmente, a nossa conversa decorreu quase
palavra por palavra com a descrevi. Meus olhos
injetaram-se de sangue. Aparecia-me espuma nos cantos
dos lábios. E, no que se refere ao Schlangenberg, juro por
minha honra: mesmo agora, se ela me ordenasse atirar-
me no abismo, eu o faria! Ainda que o dissesse apenas
por brincadeira, ou com desprezo, ainda que cuspindo
sobre mim, mesmo então eu saltaria!
- E por que não? acredito em você - replicou Polina,
mas com uma expressão de que somente ela é capaz às
vezes, com tamanho desprezo e maldade, com tanta
altivez, que, por Deus, eu era capaz de matá-la naquele
instante. Ela estava correndo um risco. Dizendo-o, não
lhe menti nisso também.
- Você não é covarde? - perguntou-me de repente.
- Não sei, talvez o seja. Não sei... faz muito tempo que
não penso nisso.
- Se eu lhe dissesse: mate este homem, você o faria?
- A quem?
- Quem eu quisesse.
- O francês?
- Não pergunte, limite-se a responder: matará aquele
que eu lhe apontar? Quero saber se, ainda há pouco,
estava falando a sério. - Esperou tão compenetrada, com
tal impaciência, a minha resposta, que eu tive um
sentimento estranho.
- Mas, há de me dizer afinal o que está acontecendo
aqui?! - exclamei. - Acaso tem medo de mim? Eu mesmo
estou vendo todas as coisas irregulares que sucedem
aqui. Você é a enteada de um homem louco, que perdeu
a fortuna e que está contaminado de paixão por esse
demônio... Blanche; além disso, está aqui esse francês,
com a sua influência misteriosa sobre a sua pessoa, e
agora você me faz, com tanta seriedade... semelhante
pergunta. Pelo menos, devo saber do que se trata; senão
perderei o juízo e vou fazer algo. Ou é que não se digna,
por vergonha, de ser franca? Pode acaso ter vergonha de
mim?
- Estou falando com você de um assunto
absolutamente diverso. Fiz-lhe uma pergunta e estou
esperando a resposta.
- Está claro que matarei - disse eu, com um grito. -
Basta que me dê uma ordem neste sentido; mas poderia
você... irá, porventura, ordenar isto?
- E o que pensa então? Vou ter pena de você? Vou dar
a ordem e ficarei de parte. Vai suportar isto? Mas não,
não será capaz disso! É possível que mate, por ter
recebido a ordem, mas, depois, virá matar-me também,
porque ousei ordenar-lhe isto.
A essas palavras, senti como que uma pancada na
cabeça. Naturalmente, mesmo naquele instante, tomei a
sua pergunta por uma brincadeira, um desafio; em todo
caso, porém, ela dissera aquilo com ar demasiado sério.
Apesar de tudo, eu estava surpreso pelo fato de que ela
tivesse falado desse modo, de que se reservasse tal
direito sobre mim, e concordasse em ter semelhante
poderio sobre a minha pessoa, dizendo simplesmente:
“Caminha para a tua destruição; eu vou ficar de parte”.
Nessas palavras havia algo de cínico e de sincero, mas
que, a meu ver, já era demasiado. E como me olharia ela
depois? Aquilo ultrapassava os limites da escravidão e da
insignificância. Depois de semelhante olhar, uma pessoa
iguala-se à outra. E por mais absurda, por mais
inverossímil que fosse toda a nossa conversa, o meu
coração estremeceu.
De repente, ela soltou uma gargalhada. Estávamos
sentados num banco, diante das crianças que brincavam,
defronte do ponto em que se detinham as carruagens e
os passageiros desciam para a alameda, diante do
cassino.
- Está vendo aquela baronesa gorda? - exclamou ela. -
É a Baronesa Wurmerhelm. Faz apenas três dias que está
aqui. Vê também o seu marido - um prussiano comprido,
seco, de bengala na mão? Lembra-se de como nos olhou
de alto a baixo, anteontem? Vá agora mesmo ao
encontro deles, aproxime-se da baronesa, tire o chapéu e
diga-lhe qualquer coisa em francês.
- Para quê?
- Você jurou que saltaria do Schlangenberg; está
jurando que é capaz de matar alguém a uma ordem
minha. Em lugar de todos estes assassínios e tragédias,
quero apenas rir um pouco. Vá sem retrucar. Quero ver
como o barão vai espancá-lo com a sua bengala.
- Está-me desafiando; pensa que não vou fazer?
- Sim, é um desafio; vá, quero que faça isto!
- Está bem, eu vou, embora seja um capricho louco.
Mas há um ponto a considerar: não surgirá disso uma
consequência desagradável para o general, e que recaia
também sobre você? Juro por Deus, não é por mim que
me preocupo, mas por você, bem... e ainda pelo general.
Mas que capricho é este de me mandar ofender uma
mulher?
- Não, você é apenas um tagarela, estou vendo - disse
ela com desdém. - Ainda há pouco estava com os olhos
injetados de sangue, mas sem maior significação; aliás,
talvez fosse por causa do vinho que tomou no jantar.
Pensa que eu mesma não compreendo o caráter estúpido
e vulgar disto, e que o general ficará irritado? Quero
simplesmente dar risada. Ora, eu quero, e é só!
Realmente, para que precisa ofender uma mulher? Vai
ser, com certeza, espancado a bengala.
Dei meia-volta e fui, em silêncio, cumprir o encargo.
Tratava-se, evidentemente, de uma coisa estúpida, e, é
claro, eu não pude deixar de fazê-la, mas lembro-me de
que, ao aproximar-me da baronesa, fui como que
espicaçado por algo: era uma audácia de escolar. Além
disso, eu estava irritado ao extremo, como um bêbado.
VI
Já se passaram dois dias, depois daquele estúpido
incidente. E quantos gritos, barulho, comentários!
Quanta desordem, quanta confusão, estupidez e
vulgaridade! E fui eu a causa de tudo isso! Às vezes,
aliás, torna-se engraçado; para mim, pelo menos. Não
consigo atinar com o que me sucedeu - se me encontro
de fato num estado de alienação, ou simplesmente
descarrilhei e estou praticando desatinos, até que me
amarrem. Às vezes, tenho a impressão de estar perdendo
o juízo. Noutras, parece-me que ainda não estou longe da
infância, do banco escolar, e faço apenas traquinagens
grosseiras.
Foi Polina, sempre Polina! Não fosse ela, talvez nem
houvesse traquinagens. Quem sabe? - talvez eu faça
tudo isso por desespero (por mais estúpido que seja
semelhante raciocínio.) E eu não compreendo, não
compreendo o que ela tem de bom! Aliás, é bonita;
parece bonita, sim. Outros também perderam o juízo por
ela. É alta e esbelta. Apenas, muito magra. Tenho a
impressão de que se pode dar-lhe um nó ou dobrá-la em
duas. A sua pegada é fina e comprida, de causar tortura.
É isso: torturante. Os cabelos são de um matiz ruivo. Tem
verdadeiros olhos de gato, mas com que orgulho e altivez
sabe olhar com eles. Faz uns quatro meses, quando de
minha entrada para o serviço do general, uma vez, à
noitinha, ela ficou na sala, conversando longa e
ardorosamente com Des Grieux. E olhava para ele com
tal expressão... que, depois, chegando ao meu quarto
para dormir, imaginei que Polina lhe dera uma bofetada;
acabara de dá-la, e estava diante dele, olhando-o. Pois
bem, foi a partir dessa noite que a amei.
Vamos, todavia, aos fatos.
Desci, por um atalho, para a alameda, parei no meio
desta e fiquei esperando a baronesa e o barão. A uma
distância de cinco passos, tirei o chapéu e inclinei-me.
Lembro que a baronesa estava com um vestido de
seda muito rodado, cinza-claro, com falbalás, crinolina e
cauda. É baixa e extraordinariamente obesa, com um
queixo muito gordo, do qual pende uma papada,
escondendo completamente o pescoço. O rosto é
rubicundo. Os olhos, pequenos, maus, insolentes.
Caminhando, parece fazer uma honra a todos que a
veem. O barão é seco, alto. O rosto, como sói acontecer
com os alemães, é torto e com mil ruguinhas; tem
quarenta e cinco anos e usa óculos. Suas pernas ficam
implantadas quase no peito; sinal de raça fina. Orgulhoso
como um pavão. Um tanto desajeitado. Existe algo de
ovino na expressão de seu rosto, o que substitui, a seu
modo, o ar de quem tem pensamentos profundos.
Tudo isso passou por meus olhos em três segundos.
O meu cumprimento, de chapéu na mão, a princípio
mal chamou a atenção de ambos. Apenas, o barão
franziu ligeiramente o cenho. A baronesa vinha
deslizando diretamente em minha direção.
- Madame la baronne - disse eu nitidamente e em voz
alta, escandindo cada palavra - j’ai l’honneur d’être votre
esclave (“Senhora baronesa... tenho a honra de ser seu
escravo”. (N. do T.)).
A seguir, inclinei-me, pus o chapéu e passei ao lado
do barão, voltando para ele polidamente o rosto e
sorrindo.
Fora Polina quem me ordenara que tirasse o chapéu,
mas eu mesmo decidira inclinar o corpo e fazer aquela
travessura de escolar. Com os diabos, o que me tinha
impelido a fazê-lo? Foi como se eu me despencasse de
um alto.
- Hem! - gritou ou, melhor, grasnou o barão, voltando-
se para mim, surpreso e irritado.
Voltei-me e detive-me, em respeitosa expectativa,
continuando a olhar para ele e a sorrir. Ele estava
evidentemente perplexo e repuxou as sobrancelhas para
cima, até nec plus ultra (Até “o limite extremo”, em
latim. (N. do T.)). O seu rosto parecia cada vez mais
sombrio. A baronesa voltou-se também para mim e
olhou-me igualmente com uma perplexidade irada.
Diversos transeuntes começaram a prestar atenção à
cena. Alguns chegaram a parar.
- Hem! - tornou o barão, com redobrado grasnido e
redobrada cólera.
- Ja wohl (“Sim, é isso”, em alemão. (N. do T.)) -
articulei arrastadamente, continuando a encará-lo bem
nos olhos.
- Sind sie rasend (“Está louco?, em alemão. (N. do
T.))? - gritou ele, erguendo a bengala e começando,
provavelmente, a sentir um pouco de medo. O meu traje
talvez o deixasse perturbado. Eu estava vestido com
muita propriedade, com ostentação até, como uma
pessoa que pertence à melhor sociedade.
- Ja wo-o-ohl! - gritei de repente com toda a força,
arrastando o “o”, como fazem os berlinenses, que
empregam a todo momento esse “ja wohl”, prolongando,
em tais ocasiões, a letra “o”, com maior ou menor
duração, a fim de expressar diferentes tonalidades de
pensamentos e sensações.
O barão e a baronesa voltaram-se rapidamente e
quase correram de mim, assustados. Entre os
transeuntes, alguns fizeram comentários, outros
olhavam-me perplexos. Aliás, não me lembro bem.
Dei meia-volta e caminhei, com o passo habitual, em
direção de Polina Aleksândrovna. Mas, ainda a uns cem
passos do seu banco, vi que ela se erguera e dirigia-se
com as crianças para o hotel.
Alcancei-a junto à entrada.
- Executei... a traquinice - disse eu, alcançando-a.
- Bem, e então? Arranje-se agora - respondeu ela, sem
sequer me olhar, e foi subindo a escada.
Passei no parque as horas do anoitecer. Atravessei-o
depois, em seguida o bosque, e penetrei, até, num outro
principado. Numa pequena choupana, comi omelete e
tomei vinho: extorquiram-me, por este idílio, a elevada
quantia de um táler e meio.
Foi somente às onze que voltei para o hotel.
Imediatamente fui chamado à presença do general.
O nosso grupo está alojado em dois apartamentos,
num total de quatro compartimentos. O primeiro é um
salão espaçoso, com piano de cauda. Ao lado, há um
outro quarto, igualmente grande: o escritório do general.
Era ali que ele me esperava, parado no centro da sala,
numa pose de grande efeito. Des Grieux estava
refestelado no divã.
- Permita que lhe pergunte, meu caro senhor, que
espécie de embrulhada arranjou? - começou o general,
dirigindo-se a mim.
- Eu gostaria, meu general, que fosse diretamente ao
assunto - disse eu. - O senhor, provavelmente, quer falar
do meu encontro de hoje com um alemão?
- Com um alemão?! Esse alemão é o Barão
Wurmerhelm, uma pessoa importante! O senhor foi muito
grosseiro com ele e com a baronesa.
- De modo nenhum.
- Assustou-os, meu caro senhor - gritou o general.
- Absolutamente, não. Ainda em Berlim fixou-se em
meu ouvido esse “ja wohl” que eles acrescentam
invariavelmente a cada palavra, e que arrastam de modo
tão detestável. Quando me encontrei com ele, na
alameda, esse “ja wohl” veio-me de repente, não sei por
quê, à lembrança, e atuou sobre mim de modo a irritar-
me... Além disso, a baronesa, que já me havia
encontrado três vezes, tem o hábito de vir caminhando
diretamente sobre mim, como se eu fosse um verme,
que se pode esmagar com o pé. Convenhamos, também
posso ter o meu amor-próprio. Tirei o chapéu e disse
polidamente (asseguro-lhe que foi com polidez):
“Madame, j’ai l’honneur d’être votre esclave”. Quando o
barão se voltou e gritou: “Hem!” - algo me impeliu a
gritar também: “Ja wohl!”. E eu gritei duas vezes: a
primeira de modo natural; a segunda, arrastando a
palavra com toda a força. É tudo.
Confesso que eu estava satisfeito ao extremo com
aquela explicação, perfeitamente digna de um moleque.
Tinha uma vontade surpreendente de apresentar toda
aquela história do modo mais absurdo.
E isso me dava prazer cada vez maior.
- Parece que o senhor está rindo de mim - gritou o
general.
Voltou-se para Des Grieux e expôs-lhe, em francês,
que eu estava realmente procurando uma complicação.
O francês sorriu com desdém e deu de ombros.
- Oh, não pense assim, não há nada disso! - gritei para
o general. - Foi uma ação má, e eu lhe confesso isso com
toda a sinceridade. Pode-se considerá-la, até, um ato
estúpido e inconveniente de escolar, mas nada mais que
isso. E - sabe, general? - estou profundamente
arrependido. Mas existe, no caso, uma circunstância que,
aos meus olhos, quase me exime, até, do
arrependimento. Nos últimos tempos, há umas duas,
mesmo três semanas, eu não me sinto bem: estou
doente, nervoso, irritadiço, imaginativo e, em alguns
casos, chego a perder completamente o controle. Na
verdade tive, por vezes, uma vontade louca de dirigir-me
de súbito ao Marquês Des Grieux e... Aliás, não devo
dizê-lo; ele pode sentir-se ofendido. Numa palavra, são
indícios de doença. Não sei se a Baronesa Wurmerhelm
levará em consideração esta circunstância, quando eu
lhe pedir desculpas (pois pretendo fazer isto). Suponho
que não, tanto mais que, segundo eu sei, começou-se,
nos últimos tempos, a abusar desta circunstância no
mundo jurídico: nos processos criminais, os advogados
passaram a defender os criminosos, seus clientes, com a
afirmação de que se tratava de uma doença. “Matou -
dizem eles - e não se lembra de nada.” E imagine,
general, a medicina os favorece; realmente, confirmam
os médicos, existe uma doença assim, uma demência
temporária, durante a qual a pessoa não se lembra de
quase nada, ou então lembra tudo pela metade, ou por
um quarto. Mas o barão e a baronesa são gente da velha
geração e, ademais, junkers prussianos e proprietários
rurais. Provavelmente, ainda não conhecem este
progresso no mundo médico-legal, e, por isso, nem vão
aceitar as minhas explicações. O que pensa, general?
- Chega, senhor! - disse o general abruptamente e
com uma indignação contida. - Chega! Vou procurar
livrar-me para sempre do seu comportamento de escolar.
O senhor não vai desculpar-se perante o barão e a
baronesa. Quaisquer relações com o senhor, ainda que
consistissem unicamente no seu pedido de desculpas,
seriam demasiado humilhantes para eles. Informado de
que o senhor pertence a minha casa, o barão teve já um
entendimento comigo na sala de jogo e, confesso, mais
um pouco, e ele pediria a mim uma satisfação.
Compreende acaso o que me fez enfrentar, meu caro
senhor? Eu, eu tive que pedir desculpas ao barão e dei-
lhe a palavra de que, hoje mesmo, o senhor deixaria de
fazer parte de minha casa...
- Com licença, com licença, general, então foi ele
mesmo quem exigiu que eu não pertencesse mais a sua
casa, conforme o senhor se expressa?
- Não; mas eu me achei na obrigação de dar-lhe uma
satisfação, e, naturalmente, o barão a aceitou. Vamos
separar-nos, meu caro senhor. Tem ainda a receber de
mim quatro friedrichsdors e três florins, segundo o
câmbio local. Eis o dinheiro, e aqui está o papelzinho,
com o cálculo; pode verificá-lo. Adeus. A partir de agora,
somos dois estranhos. Nada tenho a agradecer-lhe,
senão aborrecimentos e cuidados. Vou chamar agora
mesmo o criado e avisá-lo de que, a partir de amanhã,
não serei mais responsável pelas suas despesas no hotel.
Tenho a honra de permanecer seu criado.
Apanhei o dinheiro, o papelzinho em que estava
escrita a lápis a conta, inclinei-me em direção do general
e disse-lhe, com muita seriedade: - O caso não pode
acabar assim, general. Lamento muito que o senhor
tivesse de suportar aborrecimentos por parte do barão,
mas, desculpe se o digo, o senhor mesmo é culpado
disso. Por que assumiu o encargo de responder por mim
ao barão? O que significa a expressão de que pertenço a
sua casa? Em sua casa exerço apenas a função de
professor, nada mais. Não sou seu filho, não estou sob a
sua tutela, e o senhor não pode responder pelos meus
atos. Sou pessoa com plena competência jurídica. Tenho
vinte e cinco anos, recebi um título universitário, sou de
condição fidalga, mas completamente estranho para o
senhor. Somente o meu respeito ilimitado pelas suas
qualidades me impede de exigir do senhor,
imediatamente, uma satisfação e maiores explicações
sobre o fato de ter assumido o direito de responder por
mim.
O general estava tão surpreso que abriu os braços;
em seguida, voltou-se de repente para o francês e disse-
lhe, apressadamente, que, um instante atrás, eu quase o
desafiara para um duelo. O francês soltou uma
gargalhada sonora.
- Todavia, não pretendo perdoar ao barão - prossegui,
com absoluto sangue-frio, não me perturbando um pouco
sequer com o riso de Monsieur Des Grieux - e visto que o
senhor, general, acedeu hoje a ouvir-lhe as queixas,
passando, desse modo, a agir no interesse dele e
colocando-se, por assim dizer, na situação de
participante em todo este caso, tenho a honra de
comunicar-lhe que, o mais tardar amanhã de manhã, vou
exigir do barão, em meu nome, uma explicação formal
das razões por que, tendo um caso a tratar comigo, se
dirigiu, em vez disso, a um terceiro, como se eu fosse
incapaz ou indigno de responder, perante ele, por meus
próprios atos.
Aconteceu justamente o que eu previra. Ouvindo essa
nova tolice, o general assustou-se tremendamente.
- Como! Então o senhor tem a intenção de continuar
com este maldito caso?! - exclamou. - Mas o que está
fazendo comigo, meu Deus? Não se atreva, não se
atreva, meu caro senhor, ou então, juro-lhe!... também
aqui existem autoridades, e eu... eu... numa palavra, de
acordo com a minha condição... e o barão também...
numa palavra, o senhor vai ser preso e expulso daqui
pela polícia, para que não faça mais desordens!
Compreende isso?! - E, embora a cólera o sufocasse,
estava tremendamente assustado.
- General - respondi com uma calma que lhe era
intolerável - não se pode prender alguém por desordem
antes do fato consumado. Ainda não comecei as minhas
explicações com o barão, e o senhor não sabe
absolutamente nada sobre o modo e os fundamentos
com que pretendo continuar este caso. Quero apenas
desmentir a suspeita, ofensiva para mim, de que eu
esteja sob a tutela de uma pessoa que teria poder sobre
a minha livre vontade. O senhor se inquieta e alarma em
vão.
- Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus, Aleksiéi
Ivânovitch, ponha de lado este seu projeto insensato! -
murmurou o general, mudando de repente do tom irado
para o da súplica, e até agarrando-me as mãos. - Veja
bem, que resultará disso? Um novo aborrecimento!
Convenha que devo portar-me aqui de modo particular,
sobretudo agora!... sobretudo agora!... Oh, o senhor não
conhece, não conhece todas as particularidades da
minha vida!... Quando partirmos daqui, estou disposto a
aceitá-lo de novo ao meu serviço. Agora, tem de ser
assim, bem, numa palavra, o senhor compreende os
motivos! - exclamou desesperado. Aleksiéi Ivânovitch,
Aleksiéi Ivânovitch!
Retirando-me em direção da porta, pedi-lhe mais uma
vez, encarecidamente, que não se preocupasse, e
prometi que tudo se passaria bem, de maneira decente,
e apressei-me a sair.
Às vezes, os russos no estrangeiro são demasiado
covardes e temem tremendamente o que se possa dizer
a seu respeito, a maneira como serão vistos, e se será
decente isto e mais aquilo; em suma, comportam-se
como se estivessem usando espartilho, e, sobretudo,
pretendem ter importância. O mais comum entre eles é
alguma forma preconcebida, aceita de uma vez por
todas, e que passam a respeitar servilmente, nos hotéis,
nos passeios, nas reuniões, em viagem... Mas o general
deixara escapar que existiam para ele, ademais, certas
circunstâncias peculiares, que ele devia portar-se de
certo “modo especial”. Foi por isso que, de repente, se
acovardou e mudou de tom comigo. Eu o percebi e levei
em consideração. E, é claro, ele poderia dirigir-se no dia
seguinte, por estupidez, a alguma autoridade, de modo
que eu precisava, realmente, agir com cuidado.
Aliás, eu não queria propriamente deixar o general
zangado; mas surgiu-me um desejo de irritar Polina. Ela
procedera com tamanha crueldade comigo, e me atirara
num caminho tão estúpido, que eu tinha uma vontade
imensa de levá-la a ponto de ela própria me pedir que
parasse. As minhas travessuras de colegial podiam, por
fim, comprometê-la também. Além disso, outras
sensações e desejos surgiram em mim; se eu, por
exemplo, me anulo perante ela, por minha própria
vontade, isso não significa de nenhum modo que eu seja,
diante das pessoas em geral, um joão-ninguém, e não
será o barão, naturalmente, que poderá “bater-me com a
bengala”. Tive ganas de rir deles e sair-me de tudo
galhardamente. Haviam de ver. Certamente, ela iria
assustar-se com o escândalo e chamar-me novamente! E,
embora não me chamasse, veria mesmo assim que não
sou um joão-ninguém...
(Uma notícia surpreendente: a babá, que encontrei na
escada, acaba de me dizer que Mária Filípovna partiu
hoje, com o trem da tarde, completamente sozinha, para
Karlsbad, a fim de se reunir a uma prima. Que significa
esta notícia? A babá diz que há muito ela pretendia fazer
isto; mas como foi que ninguém o soube? Aliás, é
possível que eu fosse o único a ignorá-lo. Conversando
comigo, a babá deixou escapar que Mária Filípovna teve
anteontem uma discussão séria com o general.
Compreendo. Certamente, trata-se de Mlle. Blanche. Sim,
algo decisivo está para acontecer em nosso meio.)
VII
De manhã, chamei o criado e disse-lhe que tirassem a
minha conta separadamente. O meu quarto não era tão
caro que eu me assustasse muito com a despesa e me
mudasse do hotel. Tinha dezesseis friedrichsdors, e
depois... depois, talvez a riqueza! Coisa estranha, eu
ainda não ganhei no jogo, mas estou agindo, sentindo e
pensando como um ricaço, e não consigo imaginar-me de
outro modo.
Apesar da hora matinal, eu pretendia ir
imediatamente procurar Mister Astley no Hôtel
d’Angleterre, a dois passos do nosso, quando Des Grieux
entrou no meu quarto. Isso nunca sucedera até então, e,
além disso, nos últimos tempos, eu tivera com esse
senhor as relações mais frias e tensas. Longe de ocultar
o seu desdém por mim, ele esforçava-se até por
manifestá-lo; e eu, por meu lado, tinha minhas próprias
razões para não o ver com bons olhos. Numa palavra,
odiava-o. Fiquei muito surpreso com a sua visita.
Compreendi no mesmo instante que sucedera algo
extraordinário.
Entrou com ar muito amável e elogiou-me pelo quarto.
Vendo que eu tinha o chapéu na mão, quis saber se,
realmente, ia sair tão cedo a passeio. Ouvindo que eu ia
tratar de um caso com Mister Astley, pensou um pouco,
chegou a alguma conclusão, e o seu rosto adquiriu um ar
extremamente preocupado.
Des Grieux era como todos os franceses, isto é, alegre
e amável, se isto se tornava necessário e vantajoso, mas
intoleravelmente cacete, quando desaparecia a
necessidade de apresentar-se amável e alegre. É raro
que um francês seja naturalmente amável; sua
amabilidade parece resultar sempre de uma ordem, de
um cálculo. Por exemplo, se ele percebe a necessidade
de se mostrar fantástico, original, fora do comum, a sua
fantasia, que é do tipo mais estúpido e antinatural,
constitui-se de formas predeterminadas e que há muito
já se tornaram vulgares. Ao natural, o francês é do mais
burguês, miúdo e cotidiano positivismo; em suma, é a
criatura mais cacete do mundo. A meu ver, apenas
novatos e sobretudo mocinhas russas ficam encantados
com os franceses. Mas todo ser honesto percebe
imediatamente e sente, como algo intolerável, o
burocratismo de formas preestabelecidas dessa
amabilidade, desenvoltura e alegria de salão.
- Venho tratar de um caso com o senhor - começou
com ar independente ao extremo, embora com
delicadeza - e não vou esconder-lhe que venho como
embaixador, ou, mais propriamente, como mediador, de
parte do general. Conhecendo muito mal o russo, não
compreendi quase nada da conversa de ontem, mas o
general explicou-me tudo com detalhes, e confesso...
- Mas ouça-me, Monsieur Des Grieux - interrompi - o
senhor se encarregou da tarefa de mediador neste caso.
Naturalmente, na minha qualidade de un outchitel, nunca
aspirei à honra de amigo próximo dessa família ou a
quaisquer outras relações de maior intimidade e, por isso
desconheço certas particularidades; mas explique-me o
seguinte: será que o senhor já se tornou, efetivamente,
membro da família? Pois, afinal, o senhor participa de tal
modo em tudo, e sempre assume, imediatamente, o
papel de mediador...
A minha pergunta não lhe agradou. Era por demais
transparente, e ele não queria de modo algum trair-se.
- Estou ligado ao general em parte por negócios, em
parte por certas circunstâncias especiais - disse com
secura. - O general mandou-me aqui, a fim de pedir ao
senhor que abandone as suas intenções de ontem. Tudo
o que o senhor inventou é, sem dúvida, muito
espirituoso; mas ele me pediu justamente para explicar-
lhe que não terá nisso qualquer êxito; ademais, o barão
não o receberá e, finalmente, ele tem, em todo caso,
meios para se livrar de novas contrariedades provocadas
pelo senhor. Quanto a isso, deve concordar comigo. Diga-
me, portanto: para que continuar? Quanto ao general,
promete, com toda a segurança, aceitá-lo de novo em
sua casa, logo que as circunstâncias o permitam, e, até
lá, conservar-lhe o seu salário, vos appointements. Um
trato bastante vantajoso, não é verdade?
Repliquei-lhe, com muita calma, que ele estava um
tanto enganado; provavelmente, eu não seria expulso da
casa do barão, mas, ao contrário, iriam ouvir-me; pedi-
lhe, então, que me confessasse: não viera apenas para
me sondar sobre o modo pelo qual eu ia abordar todo
aquele caso?
- Oh, meu Deus! Visto que o general está assim
interessado, não lhe seria agradável, compreende-se,
saber o que o senhor vai fazer? É tão natural!
Comecei a explicar o caso, e ele ficou ouvindo,
refestelado, a cabeça ligeiramente inclinada para mim,
com um reflexo não dissimulado de ironia no rosto. De
modo geral, afetava um ar sumamente altivo. Eu
procurava, com todas as forças, fingir que estava
encarando o caso do ponto de vista mais sério. Expliquei-
lhe que, levando-se em consideração que o barão se
dirigira ao general com uma queixa contra mim, como se
eu fosse um criado, privara-me, em primeiro lugar, do
meu emprego, e em segundo, tratara-me como a uma
pessoa incapaz de responder por si e com quem nem
vale a pena conversar. Naturalmente eu me sentia
ofendido e com razão; no entanto, compreendendo a
diferença de idade, posição social etc., etc. (nesse ponto,
mal consegui conter o riso), eu não queria assumir uma
nova leviandade, isto é, exigir do barão, diretamente, ou
mesmo oferecer-lhe apenas, a oportunidade de uma
satisfação. Todavia, considerava-me no pleno direito de
apresentar-lhe, e sobretudo à baronesa, as minhas
desculpas, tanto mais que, realmente, nos últimos
tempos, eu me sentia mal de saúde, um tanto
perturbado, de ânimo fantasioso etc., etc. Todavia, o
próprio barão, dirigindo-se na véspera, de modo ofensivo
para mim, ao general, insistindo com ele em que me
despedisse, colocara-me em tal situação que eu não
podia mais apresentar-lhe, bem como à baronesa, as
minhas desculpas, porque ele, sua esposa e todo mundo
iriam considerar semelhante atitude como provocada
pelo desejo de ser reintegrado no emprego. Concluía-se
de tudo isso que eu me achava obrigado a pedir ao barão
que, em primeiro lugar, se desculpasse perante mim,
usando as expressões mais moderadas, dizendo, por
exemplo, que de nenhum modo quisera ofender-me. E,
depois que o barão o fizesse, eu, por meu turno, tendo as
mãos desatadas, iria apresentar-lhe as minhas desculpas
sinceras, de todo o coração. Numa palavra - concluí - eu
pedia apenas que o barão me desatasse as mãos.
- Irra, que suscetibilidade e quanta sutileza! E para
que precisa o senhor desculpar-se? Ora, concorde
comigo, monsieur... monsieur... que o senhor está
tramando tudo isso de propósito, para exasperar o
general... ou talvez o senhor tenha algum objetivo
particular... mon cher monsieur, pardon, j’ai oublié votre
nom, Monsieur Alexis?... n’est ce pas? (“meu caro
senhor, perdão, esqueci o seu nome, Senhor Aleksiéi?...
não é mesmo?”. (N. do T.)) - Mas, permita-me que lhe
pergunte, mon cher marquis (“meu caro marquês”. (N.
do T.)), é da sua conta?
- Mais le general... (Mas o general...”. (N. do T.)) - E o
que há com o general? Ontem ele disse alguma coisa no
sentido de que precisava manter-se num certo nível... e
estava tão inquieto... mas eu não compreendi nada.
- Nisso há... existe realmente uma circunstância
especial - replicou Des Grieux num tom súplice, em que
se percebia cada vez mais nitidamente uma nota de
despeito. - O senhor conhece Mademoiselle de
Cominges?
- Isto é, Mademoiselle Blanche?
- Sim, Mademoiselle Blanche de Cominges... et
madame sa mère (“A Senhorita Blanche de Cominges... e
a senhora sua mãe...”. (N. do T.))... convenha comigo, o
general... numa palavra, o general está apaixonado e
até... é possível, mesmo que se celebre aqui um
casamento. E imagine, com isso, toda espécie de
escândalo, de histórias...
- Não vejo no caso nem escândalos, nem histórias que
se relacionem com o casamento.
- Mais le baron est si irascible, un caractère prussien,
vous savez, enfin il fera une querelle d’Allemand (“O
barão é tão irascível, um caráter prussiano, o senhor
sabe, enfim, ele fará uma tempestade num copo
d’água”. Note-se a ironia do trocadilho na expressão
querelle d’Allemand, que significa “briga sem motivo”,
“tempestade em copo d’água”. (N. do T.)).
- Nesse caso, será comigo, e não com o senhor, pois
não pertenço mais à casa... (Intencionalmente, procurei
ser o mais incoerente possível.) Mas, permita-me
perguntar-lhe: então, está decidido que Mademoiselle
Blanche se casará com o general? Nesse caso, que estão
esperando? Quero dizer: para que escondê-lo, ao menos
de nós, que somos de casa?
- Não posso dizê-lo ao senhor... Aliás, isto ainda não
está completamente... contudo... o senhor sabe, estão
esperando uma notícia da Rússia; o general precisa
arranjar os negócios...
- Ah, ah! la baboulinka!
Des Grieux olhou-me com ódio.
- Numa palavra - interrompeu-me -, confio plenamente
na sua inata amabilidade, na sua inteligência, no seu
tato... O senhor, naturalmente, há de fazer isso pela
família em que foi acolhido como um parente, em que foi
amado, respeitado...
- Perdão, fui expulso! O senhor afirma agora que foi
apenas para guardar as aparências; no entanto, se
alguém lhe disser: “Está claro que não quero puxar-lhe as
orelhas, mas, para disfarçar, permita-me que as puxe...” -
convirá comigo que o resultado é quase o mesmo, não?
- Se é assim, se nenhum pedido exerce influência
sobre o senhor - começou ele com severidade e
arrogância - permita-me assegurar-lhe que serão
tomadas algumas medidas. Existem autoridades aqui, o
senhor será deportado hoje mesmo... que diable! Un
blan-bec comme vous (“que diabo! Um fedelho como o
senhor”. (N. do T.)) quer desafiar uma pessoa como o
barão para um duelo! Pensa que será deixado em paz? E,
creia-me, ninguém o teme aqui! Se eu lhe fiz um pedido,
foi mais por minha conta, porque o senhor incomodou o
general. Pensa que o barão não mandará simplesmente
enxotá-lo de casa por um criado?
- Mas eu não irei pessoalmente - respondi, muito
tranquilo. - O senhor se engana, Monsieur Des Grieux,
tudo isso vai acontecer de modo muito mais correto do
que está pensando. Vou já conversar com Mister Astley e
pedir-lhe que seja meu padrinho, numa palavra, meu
second (“padrinho” num duelo. (N. do T.)). Ele gosta de
mim e, certamente, não se recusará. Irá à procura do
barão, e este vai recebê-lo. Se eu próprio sou um
outchitel e pareço de algum modo um subalterne, e,
ademais, indefeso, Mister Astley é sobrinho de lorde, um
lorde de verdade, o Lorde Peabroke, que se encontra
aqui. O barão, creia-me, será delicado com Mister Astley,
e vai ouvi-lo. E, se não o ouvir, Mister Astley há de
considerar isso como uma ofensa à sua própria pessoa (o
senhor sabe como os ingleses são exigentes) e mandará
um amigo seu para se entender com o barão, e ele tem
boas amizades. O resultado, como vê, talvez seja
diferente do que supõe.
O francês acovardou-se de fato; realmente, tudo
aquilo se parecia muito com a verdade, e demonstrava
que eu, em todo caso, estava em condições reais de
iniciar uma complicação.
- Mas eu lhe peço - começou ele, num tom bem
súplice - deixe tudo isso! Parece que lhe é agradável o
fato de surgir uma complicação! O que o senhor quer não
é uma satisfação, mas uma complicação dessas! Eu disse
que tudo ia sair divertido e até espirituoso, o que talvez
seja exatamente o seu objetivo, mas, em suma -
concluiu, vendo que eu me levantara e apanhava o
chapéu -, vim transmitir-lhe estas duas palavras de certa
pessoa; leia, fui encarregado de esperar pela resposta.
Em seguida, tirou do bolso e apresentou-me um
bilhete pequeno, dobrado e selado com lacre.
Estava escrito ali, com a letra de Polina:

“Tive a impressão de que você pretende


continuar com essa história. Você irritou-se e está
começando a fazer molecagens. Mas o caso
relaciona-se com certas circunstâncias especiais, e
eu talvez as explique depois a você; faça-me, pois, o
favor de parar com essas coisas e sossegar. Quanta
tolice em tudo isso! Você me é necessário e
prometeu que me obedeceria. Lembre-se do
Schlangenberg. Peço-lhe que seja obediente e, se
preciso, ordeno-lhe.

Sua, P.

P. S. - Se está zangado comigo por causa do que


sucedeu ontem, desculpe-me.”

Quando li aquelas linhas, foi como se tudo se tivesse


transtornado a meus olhos. Meus lábios ficaram brancos
e eu comecei a tremer. O maldito francês tinha um ar
extremamente discreto e desviava de mim os olhos, para
não ver minha perturbação. Seria melhor se zombasse de
mim com uma gargalhada.
- Está bem - respondi - pode dizer à Mademoiselle que
fique tranquila. Permita-me, no entanto, perguntar -
acrescentei com rudeza - por que esperou tanto tempo
para me entregar este bilhete? Em vez de tagarelar sobre
bobagens, parece-me, o senhor devia começar por aí...
se veio precisamente com este encargo.
- Oh, eu quis... De modo geral, tudo isso é tão
estranho que o senhor deve desculpar a minha natural
impaciência. Eu quis verificar pessoalmente, o quanto
antes, e por meio do senhor mesmo, quais eram as suas
intenções. Aliás, não sei o que está escrito nesse bilhete,
e pensei que não houvesse urgência em entregá-lo.
- Compreendo, o senhor recebeu simplesmente ordem
de entregá-lo apenas em último caso, e deixar de fazê-lo
se fosse possível entrar em acordo comigo,
simplesmente com uma conversa. Não é verdade? Fale
francamente, Monsieur Des Grieux.
- Peut-être (“Pode ser”. (N. do T.)) - disse ele,
assumindo uma expressão de especial reserva e
lançando-me um olhar estranho.
Apanhei o chapéu; ele cumprimentou-me com um
aceno de cabeça e saiu. Pareceu-me ver em seus lábios
um sorriso zombeteiro. No entanto, poderia ser
diferente?
- Ainda vou ajustar contas contigo, francesinho; logo
nos defrontaremos! - murmurei, descendo a escada.
Ainda não conseguia compreender nada, era como se
tivesse recebido uma pancada na cabeça. O ar livre
refrescou-me um pouco.
Instantes depois, apenas readquiri a lucidez, duas
ideias me ocorreram, com toda a nitidez. Primeiro: certas
insignificâncias, algumas ameaças inconcebíveis de
escolar, expressas na véspera, às carreiras, provocaram
um tal alarme geral! Segundo: que influência terá sobre
Polina esse francês? Uma palavra sua apenas, e Polina
executa tudo o que ele quer, escreve-me um bilhete, e
até pede. Naturalmente, as relações entre ambos foram
um enigma para mim desde que os conheci; nos últimos
dias, contudo, eu notara nela uma decidida repugnância
e, mesmo, desdém por ele, que, por sua vez, nem a
olhava e chegava a tratá-la de modo simplesmente
indelicado. Percebi isso. Polina, ela própria, falara-me de
repugnância; estavam-lhe escapando, já, confissões
extremamente significativas... Logo, ele simplesmente a
tem sob seu domínio e, de certo modo, acorrentada...
VIII
Na promenade, como se diz aqui, isto é, na alameda
dos castanheiros, encontrei o meu inglês.
- Oh, oh! - foi logo dizendo, ao ver-me. - Estou indo à
sua procura, e o senhor à minha. Então, já se separou
dos seus?
- Diga-me, em primeiro lugar, como ficou sabendo de
tudo isso - perguntei surpreendido. - Acaso já é do
conhecimento geral?
- Oh, não, de todos, não; nem vale a pena que fiquem
sabendo. Ninguém fala disso.
- Neste caso, por que o senhor sabe?
- Eu sei, isto é, tive a oportunidade de ficar sabendo.
Para onde partirá agora? Gosto do senhor e, por isso, vim
procurá-lo.
- O senhor é uma pessoa simpática, Mister Astley -
disse eu (aliás, ficara extremamente surpreso: como
sabia ele de tudo?). - Como ainda não tomei café, e o
senhor, provavelmente, o tomou às pressas, vamos ao
cassino, para o café, sentemo-nos lá, fumando, e lhe
contarei tudo, e... o senhor me contará algo também.
Era a uns cem passos. Instalamo-nos, serviram-nos
café, eu acendi um cigarro; Mister Astley não fumou, e,
fixando em mim os olhos, preparou-se para ouvir.
- Não irei a parte alguma, fico aqui mesmo - comecei.
- Eu estava certo de que o senhor ficaria - disse Mister
Astley, com ar de aprovação.
Indo à procura de Mister Astley, não era
absolutamente minha intenção falar-lhe do meu amor por
Polina. Em todos aqueles dias, quase não lhe dissera
palavra sobre o assunto. De mais a mais, ele era muito
encabulado. Desde o início, percebi que Polina lhe
causara uma impressão extraordinária; ele, todavia,
nunca pronunciava o seu nome. Mas, coisa estranha, de
repente, mal ele se sentou e fixou em mim o seu olhar
plúmbeo, surgiu em mim, por algum motivo ignorado,
uma vontade de contar-lhe tudo, isto é, todo o meu
amor, com todas as suas nuanças. Falei durante meia
hora a fio, e isso me foi extremamente agradável: era a
primeira vez que o contava a alguém! E, percebendo
que, em algumas passagens particularmente ardentes,
ele ficava constrangido, reforcei ainda mais o tom
apaixonado de meu relato. Só uma coisa eu lamento: é
possível que tenha dito algo de inconveniente sobre o
francês...
Mister Astley ficou ouvindo, imóvel à minha frente,
sem emitir palavra, um som sequer, os olhos fixos nos
meus; quando comecei, porém, a falar do francês,
interrompeu-me de repente e perguntou-me com
severidade: teria eu direito de referir-me àquela
circunstância estranha ao caso? Mister Astley usava
sempre um modo muito esquisito de formular perguntas.
- O senhor tem razão: temo que não - respondi.
- Não pode dizer nada de concreto sobre aquele
marquês e Miss Polina, além de meras suposições?
Mais uma vez fiquei surpreso com uma pergunta
assim categórica, partindo de um homem tão encabulado
como Mister Astley.
- Não, nada de positivo - respondi. - Certamente,
nada.
- Nesse caso, o senhor fez mal não só em falar disso
comigo, mas até em pensá-lo.
- Está bem, está bem! Confesso; mas, agora, não se
trata disso - interrompi, surpreso.
Neste ponto, contei-lhe o episódio da véspera com
todas as minúcias, o ato disparatado de Polina, a minha
aventura com o barão, a minha demissão, a
extraordinária covardia do general e, finalmente, a visita
de Des Grieux, com todas as suas cambiantes; para
concluir, mostrei-lhe o bilhete.
- O que deduz disso? - perguntei. - Vim justamente
para saber a sua opinião. Quanto a mim, penso que
mataria esse francesinho, e é possível que ainda o faça.
- Eu também - disse Mister Astley. - E, no que se refere
a Miss Polina... o senhor sabe, entra-se em relação
mesmo com gente que nos é odiosa, se a necessidade
nos obriga a isso. No caso, podem existir relações que o
senhor ignora, e que talvez dependam de circunstâncias
estranhas. Creio que pode ficar tranquilo; em parte bem
entendido. Quanto à ação dela, ontem, foi, naturalmente,
bastante singular, não porque ela quisesse livrar-se do
senhor, mandando-o lançar-se sob a bengala do barão
(não entendo por que ele não a usou, tendo-a à mão),
mas porque semelhante disparate é inconveniente para
uma... miss tão distinta. Ela não podia prever,
compreende-se, que o senhor executaria literalmente
aquele desejo, expresso de modo brincalhão...
- Sabe de uma coisa? - exclamei de repente, fixando
os olhos em Mister Astley. - Tenho a impressão de que o
senhor já ouviu falar de tudo isso, e - sabe de quem? - da
própria Miss Polina!
Mister Astley olhou-me surpreendido.
- O senhor está com os olhos brilhando, e eu leio neles
uma suspeita - disse, retomando no mesmo instante a
tranquilidade anterior. - No entanto, não tem qualquer
direito de expor as suas suspeitas. Não lhe posso
reconhecer tal direito e recuso-me inteiramente a
responder à sua pergunta.
- Bem, chega! Nem é preciso! - gritei, estranhamente
perturbado e sem compreender por que semelhante
ideia me assaltara. E quando, onde, como teria Polina
escolhido Mister Astley para confidente? Aliás,
ultimamente, eu quase perdera Mister Astley de vista, e,
quanto a Polina, sempre fora um enigma para mim, a tal
ponto que, por exemplo, naquele momento, depois que
me pus a contar a Mister Astley toda a história do meu
amor, fiquei surpreso, enquanto durava o meu relato,
com o fato de não conseguir dizer quase nada de preciso
sobre as minhas relações com ela. Pelo contrário, tudo
era fantástico, estranho, sem fundamento, e, mesmo,
não se parecia com nada.
- Ora, está bem, está bem; fiquei desnorteado, e,
mesmo agora, há muita coisa que não consigo
compreender - disse eu, parecendo ofegante. - Aliás, o
senhor é um homem de bem. Agora, mudemos de
assunto, e não lhe peço um conselho, mas a sua opinião.
- Fiz uma pausa e continuei: - O que acha? Por que o
general se acovardou assim? Por que a minha tão
estúpida travessura os levou todos a construir
semelhante história? Uma história tal que o próprio Des
Grieux considerou indispensável intrometer-se (e ele o
faz unicamente nos casos mais importantes), visitou-me
(que tal?), pediu-me, implorou-me - ele, Des Grieux, a
mim! Ademais, repare nesta circunstância, chegou às
nove horas, um pouco antes até, e já trazia o bilhete de
Miss Polina. Pergunto, então: quando é que foi escrito?
Talvez Miss Polina tenha sido acordada para esse fim! E
que deduzo disso? Que Miss Polina é escrava dele (pois
até a mim pede perdão!). E, por outro lado, que tem ela
com tudo isso - ela, pessoalmente? Para que se interessa
tanto pelo caso? Por que eles se assustaram com não sei
que barão? E o que há no fato de que o general se case
com Mademoiselle Blanche de Cominges? Eles dizem que
devem portar-se de certo modo especial, em
consequência desse fato; mas - concorde comigo - isto já
se torna demasiado especial! O que acha? Vejo, pelos
seus olhos, que também a respeito disto o senhor sabe
mais que eu!
Mister Astley sorriu e fez um aceno com a cabeça.
- Com efeito, parece que, também em relação a isso,
eu sei muito mais que o senhor - disse ele. - O caso todo
refere-se unicamente a certa Mademoiselle Blanche,
estou convencido de que esta é a pura verdade.
- E o que há com Mademoiselle Blanche? - exclamei
com impaciência (surgira-me de repente a esperança de
que descobriria naquele instante algo sobre
Mademoiselle Pauline).
- Parece-me que Mademoiselle Blanche tem no atual
momento um interesse especial em evitar, por todos os
meios, um encontro com o barão e a baronesa, ainda
mais um encontro desagradável, ou, o que é pior, de
caráter escandaloso.
- Ora! Ora!
- Há mais de dois anos, Mademoiselle Blanche esteve
aqui em Roletenburgo, durante a estação. Eu também
me encontrava aqui. Mademoiselle Blanche não se
chamava então Mademoiselle de Cominges, e a sua mãe,
Madame veuve de Cominges, ainda não existia. Pelo
menos, não se ouvia então esse nome. Des Grieux
também não existia. Tenho uma profunda convicção de
que eles não têm entre si qualquer grau de parentesco, e
penso, até, que se conheceram há bem pouco tempo.
Des Grieux é, igualmente, marquês de data recente;
determinada circunstância leva-me a esta convicção.
Pode-se supor, mesmo, que ele passou a chamar-se Des
Grieux há pouco tempo. Conheço aqui uma pessoa que já
o encontrou com outro nome.
- Mas, não é verdade que ele tem um círculo
importante de relações?
- Oh, isso é possível! A própria Mademoiselle Blanche
pode tê-lo também. Mas, há mais de dois anos, em
consequência de uma queixa dessa mesma baronesa,
Mademoiselle Blanche recebeu da polícia local um
convite para deixar a cidade, o que não tardou a fazer.
- Como assim?
- Ela apareceu então aqui, a princípio com um italiano,
certo príncipe de nome histórico, Barberini ou algo
parecido. Um homem com muitos anéis e brilhantes, e
que até não eram falsos. Eles andavam numa carruagem
magnífica, Mademoiselle Blanche jogava trente et
quarante, com êxito, a princípio, depois a sorte começou
a atraiçoá-la muito, segundo me lembro. Recordo-me de
que, certa noite, ela perdeu uma quantia extraordinária.
Mas o pior de tudo foi que, un beau matin (“uma bela
manhã”. (N. do T.)), o tal príncipe desapareceu; sumiram
os cavalos, a carruagem, tudo. A dívida no hotel era
imensa. Mademoiselle Zelmá (em lugar de Barberini, ela
se tornou de repente Mademoiselle Zelmá) estava no
derradeiro grau do desespero. Urrava esganiçadamente
por todo o hotel e rasgava as vestes, enfurecida. Neste
mesmo hotel, no entanto, hospedava-se um conde
polaco (todos os polacos que viajam são condes), e
Mademoiselle Zelmá, que rasgava as vestes e arranhava
o rosto como uma gata com as suas lindas mãos lavadas
em perfumes, causou-lhe certa impressão. Trocaram
algumas palavras e, à hora do jantar, ela já estava
consolada. De noite, apareceu no cassino, de braço com
o polaco. Mademoiselle Zelmá ficou rindo bem alto, como
era seu costume, e suas maneiras tornaram-se mais
desenvoltas. Ingressou imediatamente na categoria
daquelas senhoras jogadoras de roleta, que, acercando-
se da mesa, afastam com o ombro, com toda a força, um
jogador, para garantirem um lugar. Essas senhoras
consideram tal conduta, aqui, especialmente chique. O
senhor, naturalmente, as notou?
- Oh, sim!
- Mas não vale a pena. Para desgosto do público
decente, elas não desaparecem daqui, pelo menos
aquelas que trocam à mesa, diariamente, notas de mil
francos. Aliás, apenas cessam de trocar as notas, são
convidadas a deixar o estabelecimento. Mademoiselle
Zelmá continuava a trocar notas, mas era ainda mais
infeliz no jogo. Observe que estas senhoras, muitas
vezes, jogam com muita sorte; elas têm um admirável
controle sobre si. Aliás, aqui termina a minha história.
Um dia, o conde desapareceu do mesmo modo que o
príncipe. De noite, Mademoiselle Zelmá já apareceu para
jogar sozinha; desta vez não surgiu ninguém para
oferecer-lhe o braço. Em dois dias, perdeu tudo o que
possuía. Tendo apostado, e perdido, o último louis d’or,
olhou em derredor e viu perto de si o Barão Wurmerhelm,
que a estava examinando bem detidamente e com
profunda indignação. Mademoiselle Zelmá, porém, não
percebeu aquela indignação e, dirigindo-se ao barão com
o seu conhecido sorriso, pediu-lhe que apostasse por ela
dez louis d’or no vermelho. Em consequência, houve uma
queixa da baronesa e ela foi convidada, ao anoitecer, a
não aparecer mais no cassino. Se o senhor se admira
pelo fato de eu conhecer todas essas pequenas minúcias,
francamente inconvenientes, saiba que as ouvi
justamente de Mister Fieder, meu parente, que, naquela
mesma noite, conduziu Mademoiselle Zelmá, na sua
caleça, de Roletenburgo para Spa. Compreenda agora:
Mademoiselle Blanche quer tornar-se generala,
provavelmente para não receber nunca mais convites do
gênero do que lhe fez, há dois anos e pouco, a polícia do
cassino. Atualmente, ela não joga mais; mas isto se deve
ao fato de que, segundo todos os indícios, possui já um
capital, que empresta a juros aos jogadores. Isto é muito
mais prudente. Suspeito, mesmo, que o infeliz general
também lhe deve. É possível que Des Grieux seja
igualmente seu devedor. Ou talvez seu sócio. Convenha
comigo que, ao menos até o casamento, ela não gostaria
de atrair de algum modo a atenção do barão e da
baronesa. Numa palavra, na situação em que se
encontra, um escândalo é o que pode haver de menos
vantajoso. Quanto ao senhor, está ligado à casa, e os
seus atos podem provocar esse escândalo, tanto mais
que ela aparece diariamente em público de braço com o
general ou com Miss Polina. Está compreendendo, agora?
- Não, não compreendo! - gritei, batendo com toda a
força na mesa, de modo que o garçom acorreu,
assustado.
- Diga-me, Mister Astley - repeti fora de mim - uma
vez que o senhor já conhecia toda esta história, e, por
conseguinte, sabia de cor o que representa Mademoiselle
Blanche de Cominges, por que não preveniu ao menos a
mim, ao próprio general e, principalmente, a Miss Polina,
que aparecia aqui na sala de jogo, em público, de braço
com ela? É possível agir assim?
- Não havia motivo para que eu avisasse o senhor,
pois nada poderia fazer - respondeu tranquilamente
Mister Astley. - E, ademais, preveni-lo do quê? O general
talvez saiba sobre Mademoiselle Blanche ainda mais que
eu e, apesar disso, passeia com ela e com Miss Polina. É
um homem infeliz. Ontem, vi Mademoiselle Blanche
montando um cavalo magnífico, em companhia de
Monsieur Des Grieux e daquele mesmo principezinho
russo, enquanto o general trotava atrás, num cavalo
ruivo. Tinha dito de manhã que lhe doíam as pernas, mas
a sua postura era boa. E, naquele instante, veio-me de
repente a ideia de que ele era um homem
completamente perdido. Por outro lado, nada tenho a ver
com isso, e apenas há pouco tempo tive a honra de
conhecer Miss Polina. Aliás (lembrou-se de repente Mister
Astley), já lhe disse que não posso reconhecer-lhe o
direito de fazer-me certas perguntas, apesar de gostar
sinceramente do senhor...
- Isso basta - disse eu, erguendo-me. - Agora, vejo
claro como o dia que Miss Polina também já sabe tudo
sobre Mademoiselle Blanche, mas como não pode
separar-se do seu francês, decide-se a passear em
companhia dela. Acredite, nenhuma outra influência a
obrigaria a passear com Mademoiselle Blanche, nem a
implorar-me, num bilhete, que não incomodasse o barão.
Aqui devemos ver aquela influência, diante da qual tudo
se dobra! E, no entanto, foi ela mesma quem me
empurrou contra o barão! Com os diabos, isso tudo é tão
difícil de compreender!
- O senhor esquece, em primeiro lugar, que essa
Mademoiselle de Cominges é noiva do general, e, em
segundo, que Miss Polina, sua enteada, tem um irmão e
uma irmã pequenos, filhos do mesmo general, que já
foram completamente abandonados por esse homem
louco, e até, segundo parece, roubados.
- Sim, sim! É isso! Afastar-se das crianças quer dizer
abandoná-las completamente, e ficar significa defender
os interesses delas e, talvez, salvar uns pedacinhos da
propriedade. Sim, sim, tudo isso é verdade! Mas, apesar
de tudo, apesar de tudo! Oh, compreendo por que todos
eles se interessam a tal ponto, agora, pela vovozinha!
- Por quem? - perguntou Mister Astley.
- Por aquela velha bruxa de Moscou, que não morreu
ainda, e de cuja morte estão esperando a notícia, por um
telegrama.
- Oh, sim, naturalmente, todo o interesse se
concentrou na pessoa dela. Tudo está na herança! Se
esta aparecer, o general se casará; Miss Polina ficará
livre, e Des Grieux...
- Bem, e Des Grieux?
- Des Grieux há de receber, também, uma quantia; é o
que ele está esperando aqui.
- Somente isso? O senhor pensa que é isso apenas?
- Não sei de mais nada. - Mister Astley calou-se
obstinadamente.
- Mas eu sei, eu sei! - repeti enfurecido. - Ele também
está à espera da herança, porque Polina vai ter um dote
e, recebido o dinheiro, há de se atirar ao pescoço dele.
Todas as mulheres são assim! E as mais orgulhosas
dentre elas revelam-se as mais vulgares das escravas!
Polina é capaz apenas de amar com toda a paixão e mais
nada! Eis a minha opinião a seu respeito! Olhe para ela,
sobretudo quando está sentada sozinha, pensativa: é
algo predestinado, condenado, maldito! Ela é capaz de
todos os horrores da vida, de todas as paixões... ela...
ela... mas quem me está chamando? - exclamei de
repente. - Quem está gritando? Ouvi alguém gritar em
russo: “Aleksiéi Ivânovitch!”. Uma voz feminina, ouça,
ouça!
Naquele momento, estávamos chegando ao nosso
hotel. Havia muito que deixáramos o café quase sem
perceber.
- Ouvi gritos femininos, mas não sei a quem estão
chamando; é em russo; agora, estou percebendo de onde
vêm os gritos - indicou Mister Astley. - Quem grita é
aquela mulher sentada numa grande cadeira de rodas, e
que tantos criados acabam de carregar até a entrada do
edifício. Atrás, estão levando malas, quer dizer que o
trem acaba de chegar.
- Mas, por que ela me chama? Está gritando de novo;
veja, está nos fazendo sinal com a mão.
- Vejo também que está fazendo sinal - disse Mister
Astley.
- Aleksiéi Ivânovitch! Aleksiéi Ivânovitch! Ah, meu
Deus, que imbecil! - Gritos desesperados ressoavam à
entrada do hotel.
Fomos quase correndo até lá. Pisei no patamar e...
meus braços descaíram de espanto, e os pés ficaram-me
grudados ao chão de pedra.
IX
No patamar superior da ampla entrada do hotel - para
onde fora carregada numa cadeira, rodeada de seus
criados e criadas particulares e de toda a criadagem
numerosa e subserviente do hotel, diante do Oberkellner
(Chefe da criadagem, em alemão. (N. do T.)) em pessoa,
vindo ao encontro da nobre hóspede que chegara com
tamanha bulha, trazendo seus próprios criados e tantas
malas e baús - estava entronizada... a avó! Sim, era ela
mesma, temível e rica, Antonida Vassílievna
Tarassiévitcheva, proprietária rural e senhora moscovita,
de setenta e cinco anos, la baboulinka, por causa de
quem se enviavam e recebiam telegramas, que estava
morrendo, mas não morreu, e que, de repente, ali surgia
em pessoa, como que caída do céu. Aparecera, embora
sem poder andar, carregada numa cadeira de rodas,
sempre, como nos últimos cinco anos, mas, como de
costume, animada, com um ar de desafio, satisfeita
consigo mesma, ereta, gritando alto e de modo
autoritário, descompondo a todos, em suma, exatamente
como eu tivera a honra de vê-la umas duas vezes, desde
que fora admitido em casa do general, na qualidade de
preceptor. Está claro que parei diante dela feito um
estafermo, tal a minha surpresa. Ela me enxergara, com
seus olhos de lince, à distância de uns cem passos,
quando a estavam levando para cima, na sua cadeira;
reconheceu-me e chamou-me pelo nome, seguido do
patronímico (Na Rússia, constitui tratamento respeitoso
chamar alguém pelo nome, seguido do patronímico. (N.
do T.)), os quais, apenas os ouvira, guardara para
sempre, segundo seu costume. “E era uma pessoa assim
que eles esperavam ver morta e enterrada, depois de ter
deixado uma herança! - este pensamento passou-me
rápido pela cabeça. - Mas ela há de sobreviver a todos
nós e a todos no hotel! Meu Deus, o que será agora de
nossa gente, o que será do general? Ela há de virar o
hotel todo pelo avesso!”
- Bem, paizinho, por que ficas aí na minha frente, de
olhos arregalados?! - continuou a gritar comigo a avó. -
Não sabes vir cumprimentar uma pessoa, será possível?
Ou ficaste orgulhoso e não queres? Ou, talvez, não me
reconheceste? Repara, Potápitch (Corruptela de
Potápovitch. O emprego desse patronímico, sem o
primeiro nome, é sinal de familiaridade. (N. do T.)) - disse
ela dirigindo-se a um velhinho grisalho de fraque e
gravata branca, dono de uma calva rósea, seu mordomo,
que a acompanhara na viagem. - Repara, não me
reconhece! Já me enterraram! Mandavam telegrama
atrás de telegrama: já morreu ou não morreu ainda? Bem
que eu sei de tudo! Mas, podes ver, estou bem viva!
- Mas, por favor, Antonida Vassílievna, por que ia eu
desejar-lhe mal? - respondi alegre, voltando a mim. -
Fiquei apenas surpreso... E, realmente, foi tão
inesperado...
- E o que há nisto para ficares espantado? Sentei-me
no trem e parti. No vagão é bom, não sacode. Foste
passear, não?
- Sim, dei uma volta pelo cassino.
- É bom aqui - disse a avó, olhando ao redor. - Faz
calor e as árvores são magníficas. Gosto disso! A nossa
gente está no hotel? O general?
- Oh, sim, no hotel! A esta hora devem estar todos no
hotel.
- Eles também têm aqui horário certo e tudo que é
cerimônia? Apresentam-se em grande estilo! Ouvi dizer
que les seigneurs russes (“os senhores russos”. (N. do
T.)) mantêm uma carruagem! Ficaram sem nada, e
pronto, vai-se para o estrangeiro! E Praskóvia (Polina é
uma forma afrancesada do nome russo Praskóvia. O
apego da avó ao nome primitivo expressa a sua atitude
em face da imitação dos costumes ocidentais. (N. do T.))
está com ele?
- Sim, Polina Aleksândrovna está aqui também.
- E o francesinho? Bem, eu mesma vou ver todos eles;
Aleksiéi Ivânovitch, indica-me o caminho que leva
diretamente ao general. E tu estás bem aqui?
- Mais ou menos, Antonida Vassílievna.
- E tu, Potápitch, diga a este imbecil de criado que me
reservem um apartamento bom, confortável, não muito
em cima, e leve para lá as minhas coisas, agora mesmo.
E por que todo mundo se intromete para me carregar?
Para que eles estão chegando perto? Que escravos!
Quem está contigo? - disse ela, dirigindo-se novamente a
mim.
- É Mister Astley - respondi.
- Que Mister Astley?
- Ele está viajando, é um bom amigo meu; conhece
também o general.
- Inglês. Por isso é que ele fixou assim os olhos em
mim e permanece incapaz de descerrar os dentes. Aliás,
eu gosto de ingleses. Bem, carreguem-me para cima,
para o apartamento deles; onde fica?
A avó foi carregada; eu caminhava na frente, pela
escadaria ampla do hotel. O nosso desfile, realmente, era
de grande efeito. Todos os que nos encontravam se
detinham e nos fixavam de olhos arregalados. O nosso
hotel era considerado o melhor, o mais caro e o mais
aristocrático da região das águas. Na escadaria e nos
corredores, cruza-se, sempre, com senhoras magníficas e
ingleses imponentes. Muitos procuravam informações
embaixo com o Oberkellner, que estava, por sua vez,
muito impressionado. Respondia, naturalmente, a todos
os que lhe faziam perguntas, que era uma estrangeira
importante, une russe, une comtesse, grande dame
(“uma russa, condessa, senhora de alta sociedade”. (N.
do T.)), e que ocuparia os mesmos aposentos em que
estivera, uma semana antes, la grande-duchesse de N
(“a grã-duquesa de N.” (N. do T.)). A maior sensação era
provocada pelo ar imperioso, autoritário, da avó, que
estava sendo levada em sua cadeira. Encontrando
qualquer pessoa nova, examinava-a curiosamente, da
cabeça aos pés, e interrogava-me em voz alta a seu
respeito. A avó era de uma raça de gente alta, e, embora
não se erguesse da cadeira, percebia-se ter um porte
bem avantajado. Mantinha os ombros retos, como uma
tábua, e não se apoiava no espaldar. A sua cabeça
grande, grisalha, com os traços do rosto graúdos e
abruptos, ficava continuamente erguida: e via-se que
tanto o olhar como os gestos eram inteiramente naturais.
Apesar dos seus setenta e cinco anos, o rosto era
bastante fresco e mesmo os dentes não estavam muito
estragados. Trajava vestido de seda preta e uma touca
branca.
- Ela me interessa profundamente - murmurou-me ao
ouvido Mister Astley, subindo a escada a meu lado.
“Está informada sobre os telegramas - pensei - e
também sobre Des Grieux, mas, ao que parece, não sabe
muito sobre Mlle. Blanche.” Comuniquei isto, no mesmo
instante, a Mister Astley.
Pecador que sou! Mal passara a minha primeira
surpresa, e fiquei extremamente encantado com o raio
que íamos fazer cair nos aposentos do general. Algo
parecia espicaçar-me, e eu caminhava à frente, numa
grande alegria.
Nossa gente estava hospedada no terceiro andar; não
anunciei nada e não bati sequer na porta, mas
simplesmente abri-a de par em par, e a avó foi carregada
para lá em triunfo. Como que de propósito, achavam-se
todos reunidos no escritório do general. Era meio-dia e,
parece, estava-se projetando um passeio: iriam todos,
uns de caleça, outros a cavalo; alguns conhecidos foram
também convidados. Estavam no escritório o general,
Polina com as crianças, as babás, Des Grieux, Mlle.
Blanche, novamente em traje de montaria, sua mãe
Mme. veuve Cominges, o pequeno príncipe e mais certo
sábio alemão, um explorador que eu já virá ali. A cadeira
da avó foi arriada bem no centro do escritório, a três
passos do general. Meu Deus, nunca vou esquecer
aquela impressão! Antes de entrarmos, o general
contava algo e Des Grieux o corrigia. Deve-se observar
que já havia dois ou três dias que Mlle. Blanche e Des
Grieux faziam, por algum motivo, uma corte assídua ao
pequeno príncipe - à la barbe du pauvre général (“nas
barbas do pobre general”. (N. do T.)), e todo o grupo
tinha, ainda que artificialmente, o mais alegre tom de
contentamento familiar. Ao ver a avó, o general, de
repente, petrificou-se, abriu a boca, detendo-se no meio
de uma palavra. Fixou nela os olhos esbugalhados, como
se estivesse sob o encanto do olhar do basilisco
(Segundo as lendas medievais, o basilisco, animal
fabuloso, matava simplesmente com o olhar. (N. do T.)).
A avó também o olhava em silêncio, imóvel - mas, como
era triunfante, provocador e zombeteiro aquele olhar!
Ficaram olhando-se assim uns dez segundos batidos, sob
o mais profundo silêncio de todos os presentes. Des
Grieux ficou, a princípio, entorpecido, mas, pouco depois,
apareceu-lhe no rosto uma inquietação extraordinária.
Mlle. Blanche ergueu as sobrancelhas, abriu a boca e
ficou examinando a avó, com espanto. O príncipe e o
cientista contemplavam todo este quadro,
completamente estupefatos. Uma surpresa e
perplexidade extraordinárias transluziram no olhar de
Polina, mas, de repente, ficou pálida como um lenço; um
instante depois, o sangue afluiu-lhe de chofre ao rosto e
inundou-lhe as faces. Sim, era uma catástrofe para
todos! Eu corria o olhar, a todo momento, da avó para os
demais presentes e vice-versa. Mister Astley permanecia
afastado do grupo, tranquilo e digno, como de costume.
- Bem, aqui estou eu, em lugar do telegrama! -
explodiu, finalmente, a avó, rompendo o silêncio. - Então,
não me esperavam?
- Antonida Vassílievna... titia... mas, de que modo...
murmurou o infeliz general.
Se a avó passasse mais alguns segundos sem falar,
ele teria, provavelmente, um ataque.
- O quê? De que modo? Sentei-me no trem e viajei.
Para que existem, então, as estradas de ferro? E vocês já
estavam pensando que eu tinha esticado as canelas e
lhes deixara a herança? Bem que eu sei como estavas
mandando telegramas daqui. Pagaste por eles uma
fortuna, creio eu. Daqui, não é barato. E eu pus os pés
nas costas e vim para cá. É aquele o francês? Monsieur
Des Grieux, se não me engano?
- Oui, madame - replicou Des Grieux - et croyez, je
suis si enchanté... votre santé... c’est un miracle... vous
voir ici, une surprise charmante... (“Sim, minha
senhora... e acredite, estou tão encantado... a sua
saúde... é um milagre... vê-la aqui, uma surpresa
encantadora...”. (N. do T.)) - Isso, isso, charmante; eu te
conheço, palhaço, e não acredito em tinha nem isto! - e
ela mostrou-lhe o dedo mínimo. - E quem é esta? - disse,
indicando Mlle. Blanche. A vistosa francesa, em traje de
amazona e chicotinho na mão, causara-lhe, ao que
parecia, impressão profunda. - É daqui, não?
- É Mademoiselle Blanche de Cominges, e aqui está a
sua mãezinha, Madame de Cominges; estão hospedadas
neste hotel - informei.
- A filha é casada? - interrogava a avó, sem cerimônia.
- Mademoiselle de Cominges é solteira - respondi com
o tom mais respeitoso e, intencionalmente, a meia-voz.
- É alegre?
A princípio, não compreendi a pergunta.
- As pessoas não se aborrecem em sua companhia?
Ela compreende russo? Este Des Grieux, por exemplo,
aprendeu lá em Moscou a defender-se menos mal em
nossa língua.
Expliquei-lhe que Mlle. de Cominges nunca estivera na
Rússia.
- Bonjour! “Bom dia!”. (N. do T.)) - disse a avó,
dirigindo-se abruptamente a Mlle. Blanche.
- Bonjour, madame - fez Mlle. Blanche, com uma
pequena reverência, cerimoniosa e elegante, deixando
transparecer em toda a expressão de seu rosto e de sua
pessoa - e sob o disfarce de modéstia e delicadeza
extraordinárias - a surpresa extrema que lhe causavam
uma pergunta e um tratamento tão estranhos.
- Oh!, baixou os olhos, está mostrando que tem boas
maneiras, é cerimoniosa; o pássaro se conhece pelo voo;
deve ser uma espécie de atriz. Eu me instalei aqui no
hotel, embaixo - disse ela, dirigindo-se de repente ao
general. - Vou ser tua vizinha; estás contente ou não?
- Ó titia! Creia na sinceridade... do meu
contentamento - replicou o general.
Começara a recobrar a presença de espírito, e, visto
que, apresentando-se a ocasião, sabia expressar-se bem,
com ar importante e pretensão a causar algum efeito,
começou a expandir-se daquela vez também. - Ficamos
tão alarmados e impressionados com as notícias da sua
doença... Recebíamos telegramas tão desalentadores, e,
de repente...
- Ora, é mentira, é mentira! - interrompeu-o
imediatamente a avó.
- Mas, de que modo - disse o general interrompendo-a
também, e erguendo a voz, procurando não notar aquele
“é mentira” - de que modo, no entanto, a senhora se
decidiu a uma tal viagem? Concorde comigo que, na sua
idade, e com a sua saúde... pelo menos, tudo isso é tão
inesperado que a nossa surpresa torna-se bem
compreensível. Mas eu estou tão contente... e todos nós
(pôs-se a sorrir, comovido, com expressão de profunda
alegria) reuniremos as nossas forças para tornar o mais
agradável possível o tempo que vai passar aqui...
- Bem, chega; uma tagarelice inútil; uma porção de
patacoadas, como de costume; sei arranjar-me sozinha
também. Aliás, não tenho nada contra a companhia de
vocês; não guardo rancores. De que modo?, perguntas.
Porém, o que há nisso de surpreendente? Do modo mais
simples. E por que se espantam todos eles? Bom dia,
Praskóvia. O que fazes aqui?
- Bom dia, vovó - disse Polina, aproximando-se dela. -
Passou muito tempo viajando?
- Bem, esta pelo menos fez uma pergunta mais
inteligente, enquanto os outros só ficam aí: “ah!” e mais
“ah!”. Queres saber? Estava deitada, os médicos iam-me
tratando sem parar, mas, um dia, eu os mandei embora
e chamei o sacristão da igreja de São Nicolau. Ele tinha
curado da mesma doença uma mulher, aplicando-lhe
feno fermentado. Pois bem, isso foi bom para mim
também; no terceiro dia, fiquei toda suada e levantei-me.
Depois, reuniram-se de novo aqueles meus alemães,
puseram os óculos e começaram a fingir: “Agora,
disseram, se fosse para o estrangeiro, fazer uma estação
de águas, as obstruções intestinais passariam de vez”. “E
por que não?” - pensei. Os paspalhões puseram-se então
a soltar uns “ahs”: “Mas não conseguirá chegar até lá
agora!”. Que coisa! Um dia, eu me preparei para viajar,
e, na sexta-feira da semana passada, peguei uma
criadinha, o Potápitch e o criado Fiódor; mas este mandei
voltar de Berlim, pois vi que não me era necessário e eu
podia chegar ao destino até sozinha... Aluguei vagão
especial, e há carregadores em todas as estações, que,
por vinte copeques, levam as coisas da gente para onde
se quiser. Mas que apartamento vocês alugaram! -
concluiu, olhando em derredor. Com que dinheiro foi isso,
paizinho? Estás com tudo hipotecado. Só a esse
francesinho quanto não estás devendo? Bem que eu sei
de tudo, de tudo!
- Eu, titia... - começou o general, inteiramente
confuso. - Estou me admirando, titia... parece-me que
posso, mesmo sem controle de ninguém... Além disso, as
minhas despesas não excedem as minhas rendas, e nós
aqui...
- Não excedem, disseste?! Com certeza, já roubaste
das crianças o seu último copeque! Bonito tutor!
- Depois disso, depois dessas palavras... - começou o
general, indignado - eu não sei mais...
- Claro que não sabes! Certamente, não sais de perto
da roleta? Já perdeste tudo?
O general estava tão fora de si que, por pouco, não
sufocou sob o fluxo da indignação. Na roleta! Eu?! Eu!
Com a minha posição... Volte a si, titia, a senhora,
provavelmente, ainda não está boa de saúde...
- Ora, mentes, mentes; certamente, ninguém
consegue arrancar-te de lá; não paras de mentir! Hoje
mesmo, vou ver o que é essa roleta. Conta-me,
Praskóvia, o que existe por aí para se ver; Aleksiéi
Ivânovitch também vai mostrar-me, e tu, Potápitch, anota
os lugares aonde temos que ir. O que se costuma ver
aqui? - disse ela, dirigindo-se de repente, mais uma vez,
a Polina.
- Aqui, nas proximidades, há as ruínas de um castelo,
depois se vai ao Schlangenberg.
- O que é esse Schlangenberg? Algum bosque?
- Não, é uma montanha; existe lá uma pointe...
- Que pointe é essa?
- O ponto mais alto da montanha, um lugar cercado. A
vista de lá é incomparável.
- Mas, carregar a cadeira para o alto de uma
montanha? Carregariam mesmo?
- Oh, pode-se encontrar quem carregue - respondi.
Naquele momento, Fiedóssia, a babá, aproximou-se
para cumprimentar a avó, trazendo também os filhos do
general.
- Bem, nada de beijocas! Não gosto de beijar crianças:
todas as crianças são ranhentas. Bem, como vais por
aqui, Fiedóssia?
- Aqui é muito, muito bom, mãezinha Antonida
Vassílievna - respondeu Fiedóssia. - E como passou a
senhora, mãezinha? Nós aqui nos alarmamos tanto pela
senhora.
- Eu sei, tu és uma alma simples. Que é isso, vocês
têm sempre visitas? - dirigiu-se mais uma vez a Polina. -
Quem é este miudinho, de óculos?
- O Príncipe Nílski, vovó - disse-lhe ao ouvido Polina.
- Então, um russo? E eu pensei que ele não me
compreendesse! Talvez não tenha ouvido! Mister Astley
eu já encontrei. E aqui está outra vez. Bom dia! - disse de
repente, dirigindo-se a ele.
Mister Astley inclinou-se em silêncio.
- Vamos, que me diz o senhor de bom? Diga alguma
coisa! Traduza isto para ele, Polina.
Polina traduziu.
- Só posso dizer que olho para a senhora com um
grande prazer, satisfeito porque está bem de saúde -
respondeu Mister Astley, sério, mas prontamente. Suas
palavras foram traduzidas para a avó, e pareceram
agradar-lhe.
- Como os ingleses sempre respondem bem! -
observou ela. - Não sei por quê, sempre gostei dos
ingleses, não há comparação com os francesinhos!
Venha visitar-me - disse, dirigindo-se novamente a Mister
Astley. - Vou esforçar-me para não incomodá-lo demais.
Traduza isto para ele, e diga ainda que estou aqui
embaixo. Aqui embaixo, está ouvindo? Embaixo, embaixo
- ficou repetindo para Mister Astley, indicando com o
dedo o andar inferior.
Mister Astley ficou muito contente com o convite.
A avó examinou Polina da cabeça aos pés, com um
olhar atento e satisfeito.
- Eu seria capaz de te amar, Praskóvia - disse de
repente. - És uma garota simpática, melhor que eles
todos, mas tens um geniozinho - uh! É verdade que eu
também tenho gênio; dá meia-volta; não puseste aí uns
cabelos postiços?
- Não, vovó, são meus mesmo.
- Isso, não gosto dessa moda tola de agora. És muito
bonita. Se eu fosse homem, me apaixonaria por ti. Por
que não te casas? Mas já é tempo de ir-me daqui. Tenho
vontade de passear, estou enjoada daquele vagão...
Bem, o que há? - dirigiu-se ao general - contínuas
zangado?
- Que é isso, titia, deixe disso! - replicou o general,
com alvoroço e contentamento. - Eu compreendo, na sua
idade...
- Cette vieille est tombée en enfance (“Esta velha
recaiu na infância”. (N. do T.)) - murmurou para mim Des
Grieux.
- Eu quero ver tudo por aqui. Queres ceder-me Aleksiéi
Ivânovitch? - prosseguiu a avó, falando com o general.
- Oh, por quanto tempo quiser, e também eu próprio...
e Polina, e Monsieur Des Grieux... todos nós
consideraremos um prazer acompanhá-la...
- Mais, madame, cela sera un plaisir (“Mas, senhora,
isto será um prazer”. (N. do T.)) - acudiu Des Grieux, com
um sorriso encantador.
- Isso, isso, plaisir. Acho-te ridículo, paizinho. Aliás, não
te darei dinheiro - acrescentou de repente para o
general. - Bem, agora vou para o quarto: tenho que
examiná-lo, e, depois, vamos visitar todos os lugares
interessantes. Bem, levantem-me.
A avó foi novamente erguida em sua cadeira, e todos
a seguiram em tropel, escada abaixo. O general
caminhava como se lhe tivessem dado uma paulada na
cabeça. Des Grieux meditava. Mlle. Blanche, a princípio,
quisera ficar, mas, depois, por algum motivo, resolvera
acompanhar os demais. O príncipe seguiu-a
imediatamente; em cima, no apartamento do general,
ficaram apenas o alemão e Madame veuve Cominges.
X
Nas estações de águas - e, ao que parece, em toda a
Europa - os gerentes de hotel e os Oberkellners
orientam-se, na reserva dos aposentos, não tanto pelos
desejos e exigências dos hóspedes, quanto pela sua
própria opinião a respeito destes; e é preciso observar
que raramente se enganam. Mas, não se sabe por quê,
reservaram para a avó um apartamento cuja
suntuosidade passava dos limites: quatro peças
magnificamente mobiliadas, com banheiro, dependências
para empregados, um quarto especial para a camareira
etc., etc. Com efeito, uma semana antes, certa grande-
duchesse estivera naqueles aposentos, o que,
naturalmente, se anunciava de imediato a todos os
novos hóspedes, a fim de valorizar ainda mais o
apartamento. Conduziu-se, ou, melhor, rodou-se a avó
por todos os quartos, e ela examinou-os atenta e
severamente. O Oberkellner, homem já de certa idade,
calvo, acompanhou-a respeitosamente durante aquele
primeiro exame.
Não sei por quem tomaram a avó, mas, segundo
parece, por uma pessoa extremamente importante e,
sobretudo, rica. Anotaram imediatamente no livro:
“Madame la Générale, Princesse de Tarassiévitcheva”
(“Senhora Generala, Princesa Tarassiévitcheva”. (N. do
T.)), embora a avó nunca tivesse sido princesa. A
criadagem própria, um compartimento especial no
vagão, um sem-fim de tralha desnecessária, como baús,
malas e até arcas que vieram com a avó, contribuíram,
provavelmente, para aquele prestígio; e a cadeira, o
decisivo tom de sua voz, as suas perguntas excêntricas,
feitas do modo mais desembaraçado e que não
permitiam réplica, em suma, todo o vulto da avó, reto,
abrupto, autoritário, completavam os motivos para a
reverência geral que provocava. Durante o exame dos
aposentos, mandava às vezes parar de repente a
cadeira, apontava alguma coisa do mobiliário e dirigia
perguntas inesperadas ao Oberkellner, que sorria
respeitosamente, mas já estava começando a acovardar-
se. A avó fazia as suas perguntas em francês, que, diga-
se de passagem, falava muito mal, de modo que eu
habitualmente as traduzia. As respostas do Oberkellner,
na maior parte, não a satisfaziam, pareciam-lhe
insuficientes. E ela fazia todas aquelas perguntas não
como se se tratasse de um caso doméstico, mas sabe
Deus de quê. Por exemplo, deteve-se de súbito diante de
uma tela, uma cópia bastante fraca de algum quadro
famoso de tema mitológico.
- De quem é o retrato?
O Oberkellner explicou que era, provavelmente, de
alguma condessa.
- Como é que não sabes? Moras aqui e não sabes? Por
que ele está aqui? E por que é vesga?
O Oberkellner foi incapaz de responder
satisfatoriamente a todas essas perguntas e até ficou
perturbado.
- Que imbecil! - opinou a avó em russo.
Levaram-na mais adiante. O mesmo episódio se
repetiu com uma estatueta da Saxônia, que a avó
examinou longamente e, depois, mandou levar embora,
sem que se soubesse por quê. Por fim, insistiu com o
Oberkellner: quanto custaram os tapetes que havia no
quarto de dormir e onde foram tecidos? Ele prometeu
informar-se.
- Que gente burra! - resmungou a avó, e dirigiu toda a
sua atenção para a cama.
- Que baldaquino luxuoso! Desfaçam isto.
Foram desmanchando o leito.
- Mais, mais, desmanchem tudo. Retirem os
travesseiros, as fronhas, levantem o colchão de penas.
Reviraram tudo. A avó examinava atentamente.
- Ainda bem que não há percevejos. Tirem toda a
roupa de cama! Ponham aí a minha e os meus
travesseiros. Aliás, tudo isso é luxuoso demais, para que
preciso eu, velha, de um apartamento desses? Sozinha, é
cacete. Aleksiéi Ivânovitch, apareça sempre por aqui,
depois das aulas às crianças.
- Desde ontem, não estou mais a serviço do general -
respondi - e moro no hotel inteiramente por minha conta.
- Mas, por que isso?
- Há dias veio para cá, de Berlim, um alemão ilustre,
um barão, acompanhado da baronesa, sua esposa.
Ontem, durante o passeio, puxei conversa com ele em
alemão, sem me ater à pronúncia berlinense.
- Bem, e então?
- Ele considerou isso um atrevimento e queixou-se ao
general, e o general me demitiu ontem mesmo.
- Mas tu, acaso, xingaste esse barão? (Ainda que o
tivesses xingado, não haveria mal nisso!)
- Oh, não! Pelo contrário, o barão é que levantou a
bengala contra mim.
- E tu babão, tu deixaste que se tratasse assim um
preceptor a teu serviço - disse ela, dirigindo-se de
repente ao general - e ainda o demitiste do emprego!
Vocês são uns paspalhões, todos uns paspalhões, estou
vendo.
- Não se preocupe, titia - respondeu o general, num
tom algo familiar e altivo. - Eu mesmo sei tratar dos
meus negócios. Além disso, Aleksiéi Ivânovitch não lhe
transmitiu bem exatamente o sucedido.
- E tu toleraste a ofensa? - perguntou ela, dirigindo-se
a mim.
- Quis desafiar o barão para um duelo - respondi com
o tom mais tranquilo e modesto - mas o general se opôs.
- Mas, por que te opuseste? - a avó dirigiu-se
novamente ao general. - E tu, paizinho, vai embora e
volta quando alguém te chamar - disse ao Oberkellner. -
Não precisas ficar aí de boca aberta. Detesto essa
carantonha de Nurenberg! - O outro se inclinou numa
saudação e saiu, naturalmente sem compreender o
elogio da avó.
- Mas diga-me uma coisa, titia, os duelos são
possíveis? - respondeu sorrindo o general.
- E por que seriam impossíveis? Todos os homens são
galos; deveriam brigar, portanto. Estou vendo que vocês
são todos uns paspalhões mesmo, não sabem honrar a
pátria. Bem, levantem-me! Potápitch, providencia para
que haja sempre dois carregadores à minha disposição.
Combina o preço e contrata-os. Dois bastam. É preciso
carregar somente na escada, mas no plano, na rua, basta
empurrar, explica-lhes assim mesmo; e paga-lhes
adiantado, será mais distinto. Tu próprio fica sempre
perto de mim, e tu, Aleksiéi Ivânovitch, mostra-me esse
barão no passeio: quero, ao menos, ver como será esse
von-baron. Bem, onde fica essa roleta?
Expliquei-lhe que as roletas estavam instaladas nas
salas do cassino. Seguiram-se novas perguntas: eram
numerosas? Jogava-se muito? O dia inteiro? Como eram
organizadas? Acabei respondendo que o melhor seria ver
com os próprios olhos, e que descrever aquilo era
bastante difícil.
- Bem, nesse caso, levem-me diretamente para lá!
Caminha na frente, Aleksiéi Ivânovitch!
- Como, titia, será possível que nem vai descansar da
viagem? - perguntou o general, preocupado. Parecia um
tanto agitado, e, de certo modo, todos começaram a
movimentar-se, entreolhando-se. Provavelmente,
sentiam-se um tanto constrangidos, e mesmo
envergonhados, de acompanhar a avó até o cassino,
onde ela, naturalmente, podia praticar algumas
excentricidades, mas desta vez em público; no entanto,
propuseram-se todos a acompanhá-la.
- Descansar para quê? Não estou cansada; passei
cinco dias sentada. Depois, veremos que fontes e águas
de cura existem por aí, e onde ficam. E depois... como é
que se diz? Tu disseste, Praskóvia... pointe, não é
verdade?
- Pointe, vovó.
- Bem, uma pointe, que seja. E o que mais existe por
aqui?
- Há muita coisa, vovó. - Polina via-se em apuros.
- Ora, tu mesma não sabes! Marfa, irás também
comigo - disse a avó à camareira.
- E para que precisa ela ir também, titia? - preocupou-
se, de repente, o general. - Além disso, não se pode;
duvido até que deixem entrar o Potápitch no próprio
cassino.
- Ora, que absurdo! Se ela é uma criada, então deve-
se abandoná-la?! Também é gente; faz uma semana que
nos abalamos por essas estradas, e ela também tem
vontade de ver. E com quem iria, senão comigo? Sozinha,
não se atreve a pôr o nariz fora de casa.
- Mas, vovó...
- Tens vergonha de aparecer ao meu lado, não? Pois
fica em casa, ninguém te pede para ir. Isto é que é
general; também eu fui casada com um general. E,
realmente, para que irão vocês todos nos meus
calcanhares, formando uma cauda comprida? Mesmo que
vá só com Aleksiéi Ivânovitch, vou ver tudo...
Mas Des Grieux insistiu categoricamente em que
todos a acompanhassem, e pôs-se a desfiar as frases
mais amáveis, no sentido de que era um prazer
acompanhá-la, etc. O grupo todo se deslocou.
- Elle est tombée en enfance - repetia Des Grieux para
o general - seule elle fera des bêtises (“Retornou à
infância; sozinha, vai fazer asneiras”. (N. do T.))...
Não consegui ouvir mais; ele, porém, tinha,
evidentemente, certas intenções e talvez até lhe
renascesse a esperança.
Dali até o cassino era cerca de meia versta. O nosso
trajeto era feito pela alameda de castanheiros até a
praça, e, contornando-se esta, entrava-se diretamente no
cassino. O general acalmou-se um pouco, porque o nosso
préstito, embora bastante excêntrico, tinha um aspecto
digno e decente. E não havia nada de surpreendente no
fato de ter aparecido na estação de águas uma pessoa
doente e debilitada, e que não podia andar. Mas o
general temia provavelmente o cassino: por que uma
pessoa doente, paralítica, e, além disso, já velha,
precisava ir à roleta? Polina e Mlle. Blanche caminhavam
cada uma de um lado da cadeira de rodas. Mlle. Blanche
ria, mostrava-se discretamente alegre, e até, de quando
em quando, muito amável e faceira com a avó, de modo
que esta, por fim, a elogiou. Polina, do outro lado, era
obrigada a responder a inumeráveis e incessantes
perguntas da vó, mais ou menos assim: “Quem foi este
que passou? E aquela, de carruagem? É grande a cidade?
E o parque? Que árvores são essas? Como se chamam
aquelas montanhas? Existem águias por aqui? Que
telhado engraçado, aquele!”. Mister Astley caminhava a
meu lado e segredou-me ao ouvido que esperava muitos
acontecimentos naquela manhã. Potápitch e Marfa iam
logo atrás da cadeira: ele, de fraque e gravata branca,
mas de boné; ela - mulher solteira e quarentona, corada,
mas começando já a tornar-se grisalha, de touca, vestido
de chita e sapatos rangentes de couro de cabra. A avó,
com muita frequência, voltava-se na direção deles e
punha-se a conversar com ambos. Des Grieux e o
general ficaram um pouco para trás e conversavam com
animação. O general estava muito triste; Des Grieux
falava com ar decidido. É possível que estivesse
animando o general; parecia aconselhar algo. Mas a avó
já havia proferido a frase fatal: “Não te darei dinheiro”.
Para Des Grieux, esta notícia talvez parecesse
inverossímil, mas o general conhecia muito bem a tia.
Percebi que Des Grieux e Mlle. Blanche continuavam a
trocar piscadelas. Pude notar o príncipe e o viajante
alemão bem no fim da alameda: ficaram para trás e
acabaram afastando-se de nós.
Nossa chegada ao cassino foi triunfal. O porteiro e os
criados deram mostras da mesma deferência dos
servidores do hotel. Todavia, olhavam-nos com
curiosidade. A princípio, a avó mandou que a
transportassem através de todas as salas; elogiando isto,
indiferente àquilo, informou-se de tudo. Finalmente,
chegamos às salas de jogo. Atônito, o criado que estava
de sentinela, junto à porta cerrada, abriu-a de repente de
par em par.
O aparecimento da avó junto à roleta produziu uma
profunda impressão no público. Junto às mesas de roleta
e na extremidade oposta da sala, onde funcionava o
trente et quarante, aglomeravam-se talvez cento e
cinquenta ou duzentos jogadores, em algumas fileiras.
Aqueles que conseguiam abrir caminho até a mesa, em
geral mantinham-se firmes no lugar e não o cediam até
perder todo o seu dinheiro; porque não é permitido
permanecer ali como simples espectador e ocupar de
graça um lugar de jogo. Embora haja cadeiras ao redor
da mesa, poucos jogadores se sentam, sobretudo quando
há grande aglomeração de gente, pois, em pé, as
pessoas podem apertar-se mais, ganhando assim espaço,
e, além disso, podendo fazer as apostas mais facilmente.
A segunda e terceira fileiras acotovelavam-se atrás da
primeira, esperando a sua vez e observando; mas, com a
impaciência, alguns estendiam às vezes a mão, através
da primeira fileira, para fazer seus lances. Outros,
mesmo da terceira fileira, acabavam conseguindo deste
modo, com muita habilidade, empurrar para a frente as
suas apostas; em consequência disso, não se passavam
dez, e até mesmo cinco minutos, sem que , em alguma
ponta da mesa, tivesse início uma “história” por causa de
apostas em discussão. Aliás, a polícia do cassino é
bastante eficiente. Não se pode evitar o aperto, é claro;
pelo contrário, o afluxo de gente, sendo vantajoso, é
sempre bem-vindo; há, no entanto, oito crupiês, sentados
em volta da mesa, que vigiam com muita atenção as
apostas; eles mesmos fazem as contas com os jogadores
e, surgindo discussões, resolvem-nas. Nos casos
extremos, chamam a polícia, e tudo termina num
instante. Os policiais permanecem na própria sala, em
trajes civis, no meio dos espectadores, de modo que não
se pode reconhecê-los. Observam com particular atenção
os larapiozinhos e vigaristas, que são bastante
numerosos junto às roletas devido à extraordinária
facilidade do seu mister. Com efeito, nos demais lugares,
é preciso profundar bolsos ou forçar fechaduras para
roubar, e, em caso de insucesso, isto acarreta graves
contrariedades. Mas, aqui, basta chegar à roleta,
começar a jogar e, de repente, clara e abertamente,
apanhar o ganho alheio e colocá-lo no seu próprio bolso;
se, porém, se inicia uma discussão, o trapaceiro insiste
em voz alta que a aposta era dele mesmo. Se o trabalho
foi feito com habilidade e as testemunhas vacilam, o
ladrão muitas vezes chega a ficar com o dinheiro, isso,
naturalmente, no caso de não ser muito grande a
quantia. Sendo elevada a soma, o jogo é certamente
observado antes pelos crupiês ou por algum dos demais
jogadores. Mas, no caso de quantias menos
consideráveis, o verdadeiro dono, às vezes, chega
simplesmente a desistir de continuar a discussão, a fim
de evitar escândalo, e afasta-se da mesa. Mas se
conseguem apanhar o ladrão em flagrante, levam-no
para fora com escândalo.
A avó olhava para tudo aquilo de longe, com ávida
curiosidade. Agradou-lhe muito o fato de que os
larapiozinhos fossem postos para fora. O trente et
quarante despertou-lhe pouco a curiosidade; agradou-lhe
mais a roleta com a bolinha que girava. Em seguida, quis
ver o jogo mais de perto. Não compreendo como a coisa
se deu, mas criados e alguns outros agentes que se
afanavam por ali (na maior parte, polaquinhos que
haviam perdido tudo e que importunavam jogadores
afortunados e os estrangeiros em geral, oferecendo-lhes
os seus serviços) no mesmo instante encontraram e
abriram lugar para a avó, apesar de todo aquele aperto,
no próprio centro da mesa, ao lado do crupiê principal, e
empurraram até lá a sua cadeira. Muitos visitantes, que
se contentavam em observar o jogo (sobretudo ingleses,
com as respectivas famílias), logo abriram caminho, para
perto da mesa, a fim de espreitar a avó por trás dos
jogadores. Inúmeros lornhões foram assestados em sua
direção. Os crupiês criaram novas esperanças: um
jogador tão excêntrico parecia realmente prometer algo
extraordinário. Uma setuagenária paralítica, que
desejava participar do jogo, era, naturalmente, um caso
fora do comum. Abri caminho também para junto da
mesa e acomodei-me perto da avó. Potápitch e Marfa
permaneceram a distância, perdidos na multidão. O
general, Polina, Des Grieux e Mlle. Blanche ficaram
também afastados, entre os espectadores.
A avó começou por examinar os que jogavam. Fazia-
me perguntas abruptas, ríspidas, a meia-voz. Quem era
aquele? E aquela? Agradou-lhe especialmente um
homem bem moço, na extremidade da mesa, que fazia
jogo muito graúdo, apostando milhares, e que -
murmurava-se em redor - já ganhara uns quarenta mil
francos, amontoados diante dele em moedas de ouro e
papel-moeda. Estava pálido; faiscavam-lhe os olhos e
tremiam-lhe as mãos; apostava agora sem contar, aos
punhados, e, no entanto, não cessava de ganhar e de
arrebanhar dinheiro. Os criados apressuravam-se em
torno dele, colocaram junto uma poltrona, abriram
espaço à sua volta para que se sentisse mais em
liberdade e ninguém o empurrasse - tudo isso na
expectativa de generosa propina. De alegria, alguns
jogadores dão-lhes às vezes gorjetas sem contar,
igualmente aos punhados. Junto ao jovem, já se instalara
um polaquinho, que se agitava com todas as suas forças
e lhe murmurava algo, respeitosa, mas incessantemente,
dando-lhe, é provável, conselhos sobre o modo de fazer
as apostas e orientando o seu jogo, esperando também,
naturalmente, uma gratificação. Mas o jogador quase não
olhava para ele, fazia apostas ao acaso e continuava a
rebanhar tudo. Estava perdendo, evidentemente, o
controle.
A avó observou-o por alguns minutos.
- Diga-lhe - apressou-se a falar de repente, dando-me
um empurrão - diga-lhe que deixe o jogo, leve o quanto
antes o dinheiro e vá embora. Vai perder, logo vai perder
tudo! - preocupou-se, quase sufocada de emoção. - Onde
está Potápitch? Manda Potápitch falar com ele! Mas diga-
me, diga-me - e me empurrava - onde está realmente
Potápitch? Sortez, sortez! (“Saia, saia!”. (N. do T.)) - pôs-
se ela a gritar para o jovem. Inclinei-me para ela e
murmurei-lhe, em tom peremptório, que ali não era
permitido gritar, ou mesmo conversar um pouco mais
alto que o normal, porque isso dificultava os cálculos, e
nós seríamos expulsos naquele instante.
- Que tristeza! O homem está perdido! Quer dizer que
ele mesmo quer... não posso olhar para ele, sinto-me
revirar toda por dentro. Que imbecil! - e ela voltou o
rosto o quanto antes noutra direção.
Ali, à esquerda, na outra metade da mesa, entre os
jogadores, via-se uma jovem senhora e, ao lado, não sei
que anão. Não sei se era um parente seu ou se ela o
levava consigo simplesmente para chamar a atenção. Eu
também já notara antes aquela dama; aparecia todos os
dias à uma da tarde junto à mesa de jogo e ia embora às
duas em ponto; jogava diariamente durante uma hora
exata! Todos a conheciam já e imediatamente lhe
ofereciam uma poltrona. Ela tirava do bolso um pouco
de ouro, algumas notas de mil francos, e começava a
apostar tranquilamente, com sangue-frio, com cálculo,
anotando, a lápis, números num papelzinho e procurando
descobrir o sistema pelo qual as probabilidades se
agrupavam, num dado momento. Fazia apostas
consideráveis. Ganhava todos os dias mil, dois, três mil
francos, não mais, e, tendo ganho aquilo, imediatamente
se retirava. A avó passou muito tempo examinando-a.
- Bem, esta não vai perder! Realmente, não vai
perder! Que espécie de gente é ela? Não sabes?
- Francesa, deve ser uma dessas... - murmurei.
- Ah, o pássaro se conhece pelo voo. Vê-se que tem
garrazinha afiada. Explica-me agora o que significa um
giro desses e como se deve apostar.
Expliquei à avó, na medida do possível, o que
significavam aquelas numerosas combinações de lances,
rouge et noir, pair et impair, manque et passe (“vermelho
e negro, par e ímpar, falta e sobra”. (N. do T.)), e,
finalmente, as diversas sutilezas do sistema de números.
A avó escutava com atenção, guardava de memória,
fazia perguntas e decorava. Para cada sistema de lances,
podia-se apresentar imediatamente um exemplo, de
modo que muita coisa se memorizava com grande
facilidade. A avó ficou muito satisfeita.
- E o que significa zéro? O crupiê principal, esse de
cabelo crespo, gritou agora zéro. E por que ele
arrebanhou tudo o que estava na mesa? Tomou para si
todo aquele montão? O que quer dizer isso?
- Pois bem, vovó, quando sai zéro, quem ganha é a
banca. Se a bolinha acertar no zéro, tudo o que está na
mesa passa a pertencer à banca. É verdade que se dá
mais um lance, para desempate, mas a banca não paga
nada.
- Que coisa! E eu não recebo nada?
- Não, vovó, se a senhora, antes disso, apostou no
zéro, então, quando ele sair, vão pagar-lhe trinta e cinco
vezes mais.
- Como trinta e cinco vezes? E sai com muita
frequência? Neste caso, por que eles, imbecis, não fazem
essa aposta?
- São trinta e seis probabilidades contra, vovó.
- Que absurdo! Potápitch! Potápitch! Espera, eu
também trouxe dinheiro, está aqui! - Apanhou do bolso
um porta-níqueis repleto e tirou dele um friedrichsdor. -
Toma, coloca já no zéro.
- Vovó, o zéro saiu agora mesmo - disse eu. - Quer
dizer que vai agora passar muito tempo até que saia de
novo. A senhora vai perder muito; ao menos, espere um
pouco.
- Ora, não é verdade, coloca aí!
- Como queira, mas ele talvez não saia até o
anoitecer, e a senhora vai perder até mil vezes, isto já
aconteceu aqui.
- Ora, bobagem, bobagem! Quem teme o lobo não vai
à floresta. O quê? Perdeu? Coloca mais!
Perdeu-se também o segundo friedrichsdor; apostou-
se um terceiro. A avó mal conseguia ficar sentada,
mergulhando inteiramente os olhos abrasados na bolinha
que saltava pelas chanfraduras da roda em movimento.
Perdemos também o terceiro. A avó ficava fora de si, não
conseguia permanecer no lugar, deu até um soco na
mesa, quando o crupiê anunciou trente-six, no lugar do
esperado zéro.
- Que coisa! - irritava-se a avó. - Será que este zerinho
amaldiçoado não sai nunca? Não quero mais viver, se
não aparecer esse zéro! O maldito crupiezinho de cabelo
crespo é que manobra assim, e este lance nunca sai com
ele! Aleksiéi Ivânovitch, coloca duas moedas de ouro de
uma vez! Acaba-se perdendo tanto que, mesmo saindo o
zéro, não se ganha nada.
- Vovó!
- Aposta, aposta! Não é teu.
Apostei dois friedrichsdors. A bolinha voou por muito
tempo sobre a roda, por fim começou a pular sobre as
chanfraduras. A avó ficou petrificada, comprimiu-me a
mão e, de repente, bumba!
- Zéro - anunciou o crupiê.
- Estás vendo, estás vendo! - radiante, ela voltou-se
depressa para mim. - Bem que eu te disse, bem que eu
te disse! E foi o Senhor, ele mesmo, que me levou a
apostar duas moedas de ouro. Bem, quanto vou receber
agora? Por que não estão pagando? Potápitch, Marfa,
onde estão eles? Para onde foram todos os nossos?
Potápitch, Potápitch!
- Vovó, mais tarde - murmurei. - Potápitch está junto à
porta, não o deixarão entrar aqui. Veja, vovó, estão-lhe
pagando, receba!
Atiraram para a avó um pesado rolo envolto em papel
azul contendo cinquenta friedrichsdors e contaram-lhe
mais vinte, separadamente. Tudo isso eu puxei com uma
pazinha para junto da avó.
- Faites le jeu, messieurs! Faites le jeu, messieurs!
Rien ne va plus? (“Façam o jogo, senhores! Façam o jogo,
senhores! Ninguém joga mais?”. (N. do T.)) - gritava o
crupiê, convidando a apostar e preparando-se para girar
a roleta.
- Meu Deus! Ficamos atrasados! Vão fazer girar a roda
neste instante! Aposta, aposta! - afanou-se a avó. - E não
te atrases, mais depressa - estava ficando fora de si e
empurrava-me com toda a força.
- Mas apostar em quê, vovó?
- No zéro, no zéro! Mais uma vez, no zéro! Aposta o
mais que se puder! Quanto temos ao todo? Setenta
friedrichsdors? Não se deve ter pena de gastá-los, aposta
vinte de cada vez.
- Pense um pouco, vovó! Acontece deixar de sair o
zéro umas duzentas vezes seguidas! Eu lhe asseguro, vai
perder todo o capital.
- Ora, é mentira, é mentira! Aposta! Chega de dar com
a língua! Sei o que estou fazendo - a avó chegou a ficar
toda trêmula de exaltação.
- O regulamento não permite apostar mais de doze
friedrichsdors no zéro de cada vez, vovó. Bem, já fiz a
aposta.
- Como, não permite? Não estás mentindo? Mussiê!
Mussiê! - pôs-se a empurrar o crupiê sentado bem à
esquerda dela e que se preparava para lançar a bola -
Combien zéro? Douze? Douze? (“Quanto zero? Doze?
Doze?”. Em francês bem precário no original. (N. do T.))
Apressei-me a explicar a pergunta, em francês.
- Oui, madame (“Sim, senhora”. (N. do T.)) - confirmou
polidamente o crupiê. - Além disso, pelo regulamento,
cada aposta não pode ultrapassar quatro mil florins -
acrescentou, à guisa de explicação.
- Bem, tanto pior, aposta doze.
- Le jeu est fait! (“O jogo está feito!”. (N. do T.)) -
gritou o crupiê. A roda girou e saiu treze. Perdemos!
- Mais! Mais! Mais! Aposta mais! - gritava a avó. Deixei
de contradizê-la e, dando de ombros, apostei outros doze
friedrichsdors. A roda ficou girando muito tempo. A avó
tremia literalmente, acompanhando-a com os olhos.
“Mas, será que ela espera ganhar mais uma vez no
zero?” - pensei, observando-a, surpreendido. Brilhava-lhe
no rosto a certeza absoluta de ganhar, a espera infalível
de que, pouco depois, iam gritar: zéro! A bolinha pulou
para o quadrado.
- Zéro! - gritou o crupiê.
- Então?!!! - voltou-se para mim a avó, com ar
frenético de triunfo.
Naquele próprio instante, senti que eu mesmo era um
jogador. Tremiam-me as pernas e os braços, o sangue
afluiu-me à cabeça. Naturalmente, era um caso raro,
aquele de sair o zéro três vezes vezes em uns dez
lances; mas não havia nisso nada de particularmente
assombroso. Eu mesmo testemunhara, na antevéspera,
sair o zéro três vezes seguidas, e, naquela ocasião, um
dos jogadores, que anotava cuidadosamente num
papelzinho todas as batidas, observou em voz alta que,
ainda na véspera, aquele zéro saíra uma única vez em
vinte e quatro horas.
Fizeram as contas com a avó, com particular atenção
e respeito, como era devido a quem tivera o ganho mais
vultoso. Recebeu precisamente quatrocentos e vinte
friedrichsdors, isto é, quatro mil florins e vinte
friedrichsdors. Estes últimos lhe foram pagos em ouro, e
os quatro mil, em papel-moeda.
Mas, desta vez, a avó não chamava mais por
Potápitch; não era isso que a ocupava. E até nem dava
mais empurrões nem tremia externamente. Tremia por
dentro, se se pode dizer assim. Concentrara-se toda em
algo; na verdade, estava fazendo pontaria.
- Aleksiéi Ivânovitch! Ele disse que, de cada vez, se
pode apostar somente quatro mil florins? Aí está, toma,
coloca todos estes quatro mil no vermelho - decidiu a
avó.
Era inútil procurar demovê-la. A roda girou.
- Rouge! - proclamou o crupiê.
Novo ganho de quatro mil florins; eram, portanto, oito
mil ao todo.
- Passa-me quatro mil e coloca os outros quatro mil
novamente no vermelho - comandou a avó.
- Rouge! - proclamou de novo o crupiê.
- Ao todo, doze mil! Passa tudo para cá. Despeja o
ouro aqui, no porta-níqueis, e esconde as notas. Chega!
Para casa! Empurrem a cadeira!
XI
Empurrou-se a cadeira até a porta, na outra
extremidade da sala. A avó estava radiante. Todos os
nossos se apertaram imediatamente em volta dela,
felicitando-a. Por mais excêntrico que fosse o
comportamento da avó, o seu triunfo desculpava muita
coisa, e o general agora não sentia medo de se
comprometer em público, pelas suas relações de
parentesco com uma mulher tão estranha. Felicitou-a
com um sorriso condescendente em que havia
familiaridade e alegria, como alguém que procura divertir
uma criança. Aliás, parecia surpreso, como todos os
espectadores. Em volta, conversava-se, apontando a avó.
Muitos passavam por ela, a fim de examiná-la mais de
perto. Mister Astley explicava alguma coisa sobre ela, à
parte, a dois ingleses seus conhecidos. Algumas
senhoras imponentes, que faziam parte da assistência,
examinavam-na com uma perplexidade não menos
imponente, como se ela fosse algo milagroso. Des Grieux
desmanchava-se inteiramente em felicitações e sorrisos.
- Quelle victoire! (“Que vitória!”. (N. do T.)) - dizia.
- Mais, madame, c’était du feu! (“Mas, senhora, foi
uma fogueira!”. (N. do T.)) - acrescentou Mlle. Blanche,
com um sorriso provocante.
- Pois é, peguei e ganhei doze mil florins, não? Aliás,
não são apenas doze. E o ouro? Com o ouro, dá quase
treze. Quanto isso significa em nossa moeda? Não dará
uns seis mil?
Comuniquei-lhe que passara dos sete e que, pelo
câmbio do dia, talvez chegasse mesmo aos oito.
- Oito mil, não é brincadeira! E vocês ficam aí, seus
estafermos, e não fazem nada! Potápitch, Marfa, vocês
viram?
- Mãezinha, como foi que a senhora conseguiu? Oito
mil rublos! - exclamava retorcendo-se Marfa.
- Tomem, aqui têm cinco moedas de ouro para cada
um, aqui está!
Potápitch e Marfa lançaram-se a beijar-lhe as mãos.
- E que deem também um friedrichsdor a cada um dos
carregadores. Dá-lhes um de ouro, Aleksiéi Ivânovitch.
Por que este criado está-se inclinando, e o outro
também? Estão-me felicitando? Dê também um
friedrichsdor a cada.
- Madame la princesse... un pauvre expatrié... malheur
continuel... les princes russes sont si généreux...
(“Senhora princesa... um pobre expatriado... contínuas
desventuras... os príncipes russos são tão generosos...”.
(N. do T.)) - junto à cadeira movimentava-se um
personagem de redingote puído e colete de cor viva, que
usava bigode e segurava o boné afastado de si, com um
sorriso subserviente.
- Dá-lhe também um friedrichsdor. Não, dá dois; bem,
chega, senão não acabam mais. Levantem-me, levem-
me daqui! Praskóvia - dirigiu-se ela a Polina
Aleksândrovna -, amanhã vou comprar-te um corte de
vestido, também vou comprar um para essa
mademoiselle... como se chama ela? Mademoiselle
Blanche, não é verdade? Vou comprar um para ela
também. Traduza para ela, Praskóvia!
- Merci, madame - Mlle. Blanche fez uma pequena
reverência comovida, torcendo ao mesmo tempo a boca
num sorriso zombeteiro, que trocou com Des Grieux e o
general. Este ficou um tanto vexado, e estava muito
contente quando chegamos à alameda.
- A Fiedóssia, aquela Fiedóssia, penso eu, vai ficar
muito admirada agora - disse a avó, lembrando-se da
babá a serviço do general. - Tenho que presenteá-la
também com um corte de vestido. Eh, Aleksiéi
Ivânovitch, Aleksiéi Ivânovitch, dá uma esmola a este
mendigo!
Perto passava um pé-rapado qualquer, todo curvo,
olhando para nós.
- Talvez não seja um mendigo, mas simplesmente
algum vagabundo, vovó.
- Dá! Dá! Dá-lhe um florim!
Aproximei-me dele e entreguei-lhe a moeda. Olhou-
me com extrema perplexidade, mas aceitou o florim sem
uma palavra. Cheirava a bebida.
- E tu, Aleksiéi Ivânovitch, ainda não tentaste a sorte?
- Não, vovó.
- Mas bem que tinhas os olhos acesos; eu vi.
- Ainda vou tentar, vovó; sem falta, porém mais tarde.
- E coloca sem vacilar no zéro! Aí vais ver uma coisa!
A quanto monta o teu capital?
- Apenas vinte friedrichsdors, vovó.
- É pouco. Se queres, vou emprestar-te cinquenta.
Apanha este rolo mesmo; e tu, paizinho, apesar de tudo,
não esperes, não te darei nada! - disse, dirigindo-se de
repente ao general.
Foi como se o virassem do avesso; mas não disse
palavra. Des Grieux franziu o cenho.
- Que diable, c’est une terrible vieille! (“Que diabo, é
uma velha terrível!”. (N. do T.)) - murmurou entre dentes
para o general.
- Um mendigo, um mendigo, mais um mendigo! -
gritou a avó. - Aleksiéi Ivânovitch, dá um florim a este
também.
Desta vez, era um homem idoso, de cabeça branca,
com perna de madeira, usando um redingote azul
comprido e segurando uma longa bengala. Parecia um
velho soldado. Mas, quando lhe estendi um florim, deu
um passo atrás e examinou-me com ar severo.
- Was ist’s, der Teufel! (“Que diabo é isto!”, em
alemão. (N. do T.)) - gritou, acrescentando ainda uns dez
impropérios.
- Ora, um imbecil! - gritou a avó, sacudindo a mão. - A
caminho! Estou com fome! Vamos logo almoçar; em
seguida, ficarei um pouco na cama, e, depois, voltarei ao
cassino.
- A senhora quer jogar novamente, vovó? - gritei.
- E o que estás pensando? Se ficam aí parados,
criando mofo, devo também ficar assim, olhando para
vocês?
- Mais, madame - acercou-se Des Grieux. - les chances
peuvent tourner, une seule mauvaise chance et vous
perdrez tout... surtout avec votre jeu... c’était terrible!
(“Mas, senhora, a sorte pode mudar, um só lance infeliz e
perderá tudo... sobretudo com o seu jogo... era terrível!”.
(N. do T.)) - Vous perdrez absolument! (“A senhora
perderá, certamente”. (N. do T.)) - gorjeou Mlle. Blanche.
- Mas, o que têm vocês todos com isso? Não será
dinheiro de vocês que eu vou perder, é meu! E onde está
esse Mister Astley? - perguntou-me.
- Ficou no cassino, vovó.
- Pena; esse sim é uma boa pessoa.
Chegando ao hotel, a avó encontrou na escada o
Oberkellner, chamou-o e vangloriou-se do seu ganho; em
seguida, chamou Fiedóssia, presentou-a com três
friedrichsdors e mandou servir o jantar. Fiedóssia e Marfa
desmanchavam-se literalmente em atenções.
- Fico olhando para a senhora, mãezinha - tagarelava
Marfa -, e digo para Potápitch: o que será que a nossa
mãezinha quer fazer? E, sobre a mesa, havia tanto
dinheiro, mas tanto, Pai do Céu! Nunca vi tanto, em toda
a minha vida. Em volta, senhores sentados, sim, apenas
senhores se sentam ali. E de onde, Potápitch, disse eu,
vêm todos estes senhores? Pensei: que a própria Mãe de
Deus a ajude. Rezo pela senhora, mãezinha, e o meu
coração fraquejando, fraquejando, e eu trêmula, toda
trêmula. Que o Senhor a ajude, pensei, e nisso o Senhor
lhe mandou o ganho. Até agora, mãezinha, ainda estou
toda trêmula, muito trêmula.
- Aleksiéi Ivânovitch, depois do almoço, aí pelas
quatro horas, prepara-te para voltarmos lá. E agora, por
enquanto, até logo, e não te esqueças de me mandar
algum doutorzinho, preciso também beber daquelas
águas. Tu serias capaz de esquecer.
Eu parecia inebriado, ao sair do apartamento da avó.
Esforçava-me em imaginar o que seria de toda a nossa
gente e que rumo tomariam os acontecimentos. Via
claramente que eles (e sobretudo o general) ainda não
tiveram tempo de voltar a si, inclusive da primeira
impressão. O aparecimento da avó, em lugar do
telegrama anunciando-lhe a morte (e, por conseguinte, a
herança), esperado a cada momento, esfacelara a tal
ponto o sistema dos projetos e decisões por eles
tomados, que era com perplexidade completa e
verdadeiro estupor que encaravam os ulteriores feitos da
avó na roleta. Entretanto, este segundo fato era quase
mais importante que o primeiro, pois, embora a avó
tivesse repetido duas vezes que não daria dinheiro ao
general, apesar de tudo - quem sabe? - não se devia
ainda perder a esperança. Bem que não a perdia Des
Grieux, implicado em todos os negócios do general.
Estou certo de que Mlle. Blanche, bastante implicada
neles também (pudera: ser generala e receber uma
herança vultosa”), não a perderia igualmente, e usaria,
para com a avó, de todas as seduções do seu
coquetismo, em contraste com Polina, orgulhosa,
inflexível, incapaz de se aproximar das pessoas pelo
carinho. Mas agora, agora que a avó realizara tais feitos
na roleta, agora que a personalidade da avó se
manifestara diante deles de modo tão claro e típico (uma
velha obstinada, autoritária, et tombée en enfance),
agora talvez tudo estivesse perdido: pois, como uma
criança, ela estava contente de ter atingido o limite e,
segundo o costume, ia levar a breca. Meu Deus! - pensei
(e que o Senhor me perdoe, fiz isto com riso bem
maligno) - meu Deus, cada friedrichsdor que a avó
apostara pouco antes traspassava de dor o coração do
general, enfurecia Des Grieux e deixava Mlle. de
Cominges fora de si, sentindo que lhe arrancavam da
boca o petisco. E eis mais um fato: mesmo na hora do
ganho, da alegria, quando distribuía dinheiro a todo
mundo e tomava cada transeunte por um mendigo,
mesmo naquele momento a avó não conseguia deixar de
dizer ao general: “E, apesar de tudo, não te darei nada!”.
Isso significava que ela se fixara nessa ideia, firmara-se
nela, comprometera-se consigo mesma nesse sentido;
era perigoso! perigoso!
Todas essas considerações me afloravam ao espírito,
enquanto eu subia pela escadaria de gala, indo do
apartamento da avó para o meu cubículo no último
andar. Tudo isso me preocupava ao extremo; embora, é
claro, mesmo anteriormente, pudesse adivinhar os fios
principais, os mais grossos, que ligavam diante de mim
os atores, apesar de tudo eu não conhecia de modo cabal
todos os recursos e segredos desse jogo. Polina jamais
me dispensara absoluta confiança. Às vezes acontecia-
lhe abrir-me, como que a contragosto, o coração, mas eu
notei que muito amiúde, e mesmo quase sempre, ela,
depois dessas confissões, ora passava a rir do que me
revelara, ora embaralhava tudo e lhe dava,
intencionalmente, uma aparência falsa. Oh, ela
dissimulava muita coisa! Em todo caso, eu pressentia
que se aproximava o desfecho de toda essa situação
tensa e misteriosa. Mais um arranco, e tudo estaria
terminado e esclarecido. Era estranho o meu estado de
ânimo: no bolso, dispunha apenas de vinte friedrichsdors;
encontrava-me longe da pátria, sem um emprego e sem
meios de subsistência, sem uma esperança, sem
possibilidades e... não me preocupava com isso! Não
fosse a lembrança de Polina, e eu simplesmente me
entregaria ao interesse cômico pelo desfecho iminente, e
daria gargalhadas a mais não poder. Mas Polina deixava-
me perturbado; decidia-se o destino dela, isto eu
pressentia, mas, juro, não era a sua sorte que me
inquietava. Eu tinha vontade de penetrar os seus
segredos; gostaria de que ela me procurasse e dissesse:
“Bem que eu te amo”; do contrário, se esta loucura é
inconcebível, então... bem, o que desejar? Sei acaso o
que desejo? Eu mesmo estou como que desgarrado; seria
suficiente permanecer sempre perto dela, na sua
auréola, na sua luminosidade, para sempre, para toda a
vida. Não sei mais nada! E poderei eu deixá-la?
No terceiro andar, no corredor deles, tive a sensação
de um choque. Voltei-me e, a uns vinte passos ou mais,
vi Polina, que saía do apartamento. Parecia espreitar-me
e logo fez sinal para que me aproximasse.
- Polina Aleksândrovna...
- Mais baixo! - preveniu-me.
- Imagine - murmurei - ainda agora tive a sensação de
um golpe aqui do lado; olho para trás e vejo você! É
como se você desprendesse eletricidade!
- Tome esta carta - disse Polina com ar preocupado e
sombrio, certamente sem ouvir o que eu lhe dissera - e
transmita-a, sem perder tempo, a Mister Astley
pessoalmente. O quanto antes, peço-lhe. Não é preciso
resposta. Ele mesmo...
Não concluiu a frase.
- A Mister Astley? - repeti surpreendido.
Mas Polina já desaparecera atrás da porta.
“Ah, quer dizer que eles mantêm correspondência!”
Naturalmente, pus-me, no mesmo instante, à procura de
Mister Astley; em primeiro lugar, fui ao seu hotel, onde
não o encontrei, depois ao cassino, correndo todos os
salões; por fim, contrariado, quase em desespero,
quando regressava já, encontrei-o casualmente, a cavalo,
entre um grupo de não sei que ingleses e inglesas.
Chamei-o com um gesto e entreguei-lhe a carta. Não
tivemos tempo de trocar sequer um olhar. Mas eu
suspeito que Mister Astley tenha feito, intencionalmente,
correr o cavalo.
Torturava-me acaso o ciúme? O fato é que eu me
encontrava completamente abatido. Não queria sequer
informar-me sobre o assunto da correspondência entre
eles. Então ele era o seu confidente! “Que são amigos -
pensava eu - não há dúvida (e quando tivera ele tempo
de passar a essa condição?), mas há nisso amor?”
“Naturalmente não” - murmurava-me a razão. Mas,
nesses casos, a razão não é suficiente. Mesmo assim, eu
tinha que esclarecer isso também. O caso assumia um
caráter desagradavelmente complicado.
Mal tive tempo de entrar no hotel, quando o porteiro e
o Oberkellner, o qual saía do seu quarto, me
comunicaram que nossa gente estava à minha procura -
tendo já mandado por três vezes saber onde eu me
encontrava - e pediam-me que fosse o quanto antes ao
apartamento do general. Eu estava muito mal-humorado.
Além do general, encontrei, no seu gabinete, Des Grieux
e Mlle. Blanche, sem a mãe. Esta era, sem dúvida, uma
pessoa sobressalente, que se usava apenas para melhor
apresentação; quando se tratava de negócio de verdade,
Mlle. Blanche agia sozinha. E é pouco provável que a
outra soubesse algo sobre os negócios de sua pretensa
filha.
Os três conferenciavam com animação, e a porta do
gabinete estava até fechada à chave, o que jamais
acontecera. Aproximando-me, distingui o ruído de altas
vozes: a fala atrevida e sarcástica de Des Grieux, os
gritos insolentes e possessos de Mlle. Blanche e a voz
lastimosa do general, que, certamente, se defendia por
algum motivo. À minha entrada, todos pareceram
controlar-se e melhorar a postura. Des Grieux ajeitou o
cabelo, e seu rosto, passando de zangado a sorridente,
adquiriu aquele sorriso mau, oficialmente respeitoso, o
sorriso francês, que eu tanto odeio. O general,
acabrunhado e completamente confuso, endireitou o
corpo, mas de certo modo maquinal. Somente Mlle.
Blanche quase não modificou a expressão do rosto,
faiscante de furor, e apenas se calou, fixando em mim o
olhar, numa espera impaciente. Devo observar que, até
então, ela me tratara com incrível displicência, não
respondendo sequer às minhas saudações;
simplesmente, ignorava-me.
- Aleksiéi Ivânovitch - começou o general, num tom
de afetuosa censura -, permita-me dizer-lhe que eu
considero estranho, muito estranho... numa palavra, o
seu comportamento em relação a mim e à minha
família... numa palavra, é em alto grau estranho...
- Eh! ce n’est pas ça - interrompeu-o Des Grieux, com
desdenhosa irritação. (Decididamente, ele manobrava
tudo!) - Mon cher monsieur, notre cher général se trompe
(“Eh! Não é isso... Meu caro senhor, o nosso prezado
general se engana...”. (N. do T.)), assumindo esse tom
(estou traduzindo o restante do seu discurso para o
russo), mas ele queria dizer-lhe... isto é, preveni-lo, ou,
melhor, pedir-lhe do modo mais convincente que o
senhor não o destrua, sim, não o destrua! Estou
empregando precisamente esta expressão...
- Mas como, como? - interrompi-o.
- Permita que lhe diga, o senhor se encarrega do papel
de orientador (ou como dizê-lo?) dessa velha, cette
pauvre terrible vieille - o próprio Des Grieux se confundia
- mas ela, realmente, vai perder; ficará sem nada! O
senhor mesmo viu, foi testemunha de como ela joga! Se
começar a perder, não se afastará mais da mesa, por
obstinação e raiva, e jogará, jogará continuamente;
nesses casos, nunca se consegue recuperar o perdido, e
então... então...
- E então - acudiu o general - então, o senhor causará
a perda de toda a família! Eu e a minha família somos os
herdeiros, ela não tem parentes mais próximos. Vou
dizer-lhe francamente: os meus negócios vão mal, muito
mal. O senhor mesmo sabe, em parte... Se ela perder
uma soma considerável ou mesmo, talvez, toda a sua
fortuna (oh, meu Deus!), o que será então deles, dos
meus filhos?! - o general lançou um olhar a Des Grieux -
e de mim! - Olhou para Mlle. Blanche, que virou o rosto
com desdém. - Salve-nos, salve-nos, Aleksiéi Ivânovitch!
- Mas de que modo, general, diga-me, de que modo
posso eu... Que importância tenho nisso?
- Recuse-se, recuse-se, abandone-a!...
- Nesse caso, aparecerá um outro! - exclamei.
- Ce n’est pas ça, ce n’est pas ça - interrompeu-o mais
uma vez Des Grieux - que diable! (“Não é isso, não é
isso... que diabo!”. (N. do T.)) Não, não a abandone, mas,
pelo menos, convença-a, faça-lhe ver a razão, distraia-a
do jogo... Bem, enfim, não deixe que ela perca demais,
distraia-a de algum modo.
- Mas, como fazer isto? E se o senhor mesmo se
encarregasse disso, Monsieur Des Grieux? - acrescentei
com a maior ingenuidade.
Nesse momento, percebi um olhar rápido, inflamado,
interrogador, de Mlle. Blanche a Des Grieux. No rosto do
próprio Des Grieux apareceu algo peculiar, sincero, que
ele não pôde evitar.
- O caso está em que ela não me aceitaria agora! -
exclamou, com um gesto da mão. - Se... mais tarde...
Des Grieux dirigiu a Mlle. Blanche um olhar rápido e
significativo.
- Oh, mon cher monsieur Alexis, soyez si bon (“Oh,
seja bonzinho, meu caro senhor Aleksiéi!”. (N. do T.)) - e
Mlle. Blanche, ela própria, deu um passo na minha
direção, com um sorriso encantador, agarrou-me as mãos
e apertou-as com força.
Diacho, aquele demoníaco semblante sabia
transformar-se, num segundo! Nesse momento, o seu
rosto tornou-se tão súplice, tão simpático, sorria de modo
tão pueril e tinha até uma expressão brincalhona! Ao
terminar a frase, ela me piscou o olho, com jeito maroto
e sem que os outros vissem. Pretenderia seduzir-me de
vez? Não se saiu mal; no entanto, aquilo era
horrivelmente grosseiro.
O general desembestou (é a expressão mais
adequada) atrás dela:
- Desculpe, Aleksiéi Ivânovitch, se eu, ainda há pouco,
comecei daquele modo; não era nada daquilo que eu
queria dizer... Peço-lhe, imploro-lhe, curvo-me diante do
senhor, à moda russa. É a única pessoa, a única
realmente, que nos pode salvar! Eu e Mademoiselle de
Cominges imploramos-lhe. O senhor compreende, não é
verdade que compreende? - suplicava, indicando-me com
os olhos Mlle. Blanche. Era realmente digno de lástima.
Naquele instante, soaram três pancadas discretas e
respeitosas na porta; abriram: era o criado do pavimento,
e, alguns passos atrás dele, estava Potápitch. Vinham a
mando da avó, com ordem de me procurar e levar-me
imediatamente à sua presença.
- Estão zangadas (No linguajar do povo, constituía
forma de respeito referir-se a alguém na terceira pessoa
do plural. (N. do T.)) - comunicou Potápitch.
- Mas são apenas três e meia!
- Nem puderam adormecer, ficaram-se revirando na
cama, depois levantaram-se de repente, pediram a
cadeira e mandaram chamar o senhor. Estão agora na
entrada do hotel...
- Quelle mégère! (“Que megera!”. (N. do T.)) - gritou
Des Grieux.
Com efeito, encontrei a avó já na entrada do hotel,
impacientando-se porque eu não estava lá. Não
suportara esperar até as quatro.
- Bem, levantem-me! - gritou, e nos dirigimos
novamente para a roleta.
XII
A avó estava de ânimo inquieto e irritado; via-se que a
roleta tornara-se, para ela, uma obsessão. Desatenta a
tudo mais, não fez, por exemplo, perguntas durante o
trajeto, como horas antes. Vendo uma caleça riquíssima,
que passou por nós a toda velocidade, chegou a levantar
a mão e perguntou: “O que é? De quem?” - mas,
segundo parece, nem ouviu a minha resposta; bruscos
estremecimentos e outros sinais de impaciência
interrompiam-lhe amiúde a concentração mental.
Quando nos aproximávamos já do cassino e lhe mostrei
de longe o Barão e a Baronesa Wurmerhelm, ela olhou-os
distraída e disse, com absoluta indiferença: “Hem!” - e,
virando-se rapidamente para Potápitch e Marfa, que
caminhavam atrás, gritou-lhes rudemente: - Mas, por que
vocês vivem agarrados a mim? Não posso trazê-los
sempre! Vão para casa! Tu me bastas - acrescentou,
dirigindo-se a mim, logo que os outros dois se retiraram
com uma saudação apressada.
Já esperavam pela avó no cassino. Imediatamente lhe
deram o mesmo lugar, ao lado do crupiê. Tenho a
impressão de que aqueles crupiês, sempre tão
imponentes e representando o papel de simples
funcionários, com uma indiferença quase absoluta pelos
ganhos ou perdas da banca, não eram de modo algum
tão indiferentes a isso, e, naturalmente, estavam
munidos de algumas instruções sobre o modo de atrair
jogadores e assegurar o interesse do Estado, recebendo
por tal motivo determinados prêmios e gratificações. Pelo
menos, a avó já era encarada como uma pequena vítima.
Em seguida, aconteceu justamente o que os nossos
esperavam.
Eis como a coisa sucedeu.
A avó atirou-se diretamente sobre o zéro e ordenou no
mesmo instante que se apostassem doze friedrichsdors
de cada vez. Tentou-se uma, duas, três vezes: o zéro não
saía.
- Aposta, aposta! - incitava-me a avó, impaciente. Eu
obedecia.
- Perdemos quantas vezes? - perguntou finalmente,
rangendo de impaciência os dentes.
- Doze, vovó. Já perdemos cento e quarenta e quatro
friedrichsdors. Eu lhe digo, vovó, até o anoitecer, é
possível...
- Fica quieto! - interrompeu-me ela. - Aposta no zéro e,
agora mesmo, também no vermelho, mil florins. Toma,
aqui está o dinheiro.
O vermelho saiu, mas o zéro fracassou mais uma vez;
devolveram-nos os mil florins.
- Estás vendo? estás vendo? - murmurou a avó. -
Devolveram-nos quase tudo o que perdemos. Aposta
mais uma vez no zéro; vamos apostar mais uma dez
vezes, e, depois, deixamos o jogo.
No quinto lance, porém, a avó enfadou-se
completamente.
- Manda ao diabo este zerinho infame. Toma, aposta
todos os quatro mil florins do vermelho - ordenou-me.
- Vovó, é muito! Imagine se não sair o vermelho -
implorei; mas a avó quase me bateu. (Aliás, dava
empurrões que equivaliam quase a pancadas.) Não havia
remédio: apostei no vermelho os quatro mil florins
ganhos pouco antes. A roda girou. A avó estava sentada
tranquilamente, ereta e altiva, não duvidando, um
momento sequer, de que iria ganhar.
- Zéro - anunciou o crupiê.
A princípio, a avó não compreendeu, mas, vendo o
crupiê arrebanhar os seus quatro mil florins e tudo mais
que havia sobre a mesa, e sabendo que o zéro, tão
esperado e em que perdemos quase duzentos
friedrichsdors, saltara como que de propósito quando ela
acabava de xingá-lo e pô-lo de lado, soltou um “ah!” e
agitou os braços, com um gesto que abrangia todo o
salão. Em volta, começaram até a rir.
- Meu Deus! E foi agora que esse maldito saltou! -
berrava a avó. - Miserável! Miserável! Foste tu! Somente
tu! - voltou-se furiosa contra mim, empurrando-me. -
Foste tu que me convenceste a desistir.
- Vovó, falei-lhe sensatamente; mas, como posso
responsabilizar-me por todas as chances?
- Vou mostrar-te o que são chances! - resmungou,
ameaçadora. - Sai de perto de mim.
- Até à vista, vovó - virei-me, pronto para sair.
- Aleksiéi Ivânovitch, Aleksiéi Ivânovitch, fica aqui!
Aonde vais? Bem, que foi? que foi? Pronto, ficou
zangado! Que tolo! Ora, fica, fica mais; não te zangues,
eu mesma sou uma tola! Bem, diga-me o que fazer
agora!
- Eu, vovó, não vou fazer-lhe sugestões, porque,
depois, a senhora mesma vai me acusar. Jogue sozinha;
dê ordens e eu vou fazer as apostas.
- Bem, bem! Ora, coloca mais quatro mil florins no
vermelho! Aqui está a carteira, apanha o dinheiro. - Tirou
do bolso a carteira e passou-a para mim. - Bem, anda
mais depressa, há aí vinte mil rublos em dinheiro
sonante.
- Vovó - murmurei - uma bolada dessas...
- Quero morrer, se não ganhar tudo de volta. Aposta!
Apostamos e perdemos.
- Aposta, aposta todos os oito mil!
- Não se pode, vovó, o lance máximo é de quatro!...
- Bem, aposta os quatro.
Dessa vez, ganhamos. A avó animou-se.
- Estás vendo? estás vendo? - pôs-se a acotovelar-
me. - Aposta mais uma vez quatro mil!
Apostamos e perdemos; depois mais uma vez, e
tornamos a perder.
- Vovó, lá se foram todos os doze mil - comuniquei-lhe.
- Estou vendo que se foi tudo - disse ela, numa
espécie de fúria tranquila, se é possível expressar-se
assim. - Estou vendo, paizinho, estou vendo -
murmurava, olhando diante de si, imóvel e como que
pensativa. - Eh! não quero mais viver... aposta mais
quatro mil florins!
- Mas não há mais dinheiro, vovó; a carteira contém
apenas títulos russos a cinco por cento, mais umas
ordens de transferência, mas dinheiro não existe.
- E no porta-níqueis?
- Ficaram uns trocados, vovó.
- Não existem por aqui casas de câmbio? - perguntou-
me a avó com ar decidido. - Disseram-me que
poderíamos trocar todos os nossos títulos.
- Oh, quanto queira! Mas a senhora vai perder tanto
na troca que... até um judeu ficaria horrorizado!
- Bobagem! Vou ganhar tudo de volta! Leva-me para
lá. Chama esses imbecis!
Empurrei a cadeira, apareceram os carregadores, e
saímos do cassino.
- Mais depressa, mais depressa, mais depressa! -
comandava a avó. - Mostra o caminho, Aleksiéi
Ivânovitch, e que seja o mais curto... ainda está longe?
- A dois passos, vovó.
Mas, na esquina da praça com a alameda,
encontramos todo o nosso grupo: o general, Des Grieux e
Mlle. Blanche com sua mamãezinha. Não estavam com
eles Polina Aleksândrovna, nem Mister Astley.
- Ora, ora, ora! Não parem! - gritava a avó. - Bem, que
querem? Não podemos ficar aqui perdendo tempo com
vocês!
Eu caminhava atrás dela; Des Grieux deu um salto
para junto de mim.
- Perdeu tudo o que havia ganho de manhã, e ainda
liquidou os seus doze mil florins. Estamos indo para
trocar os títulos a cinco por cento - disse-lhe
apressadamente ao ouvido.
Des Grieux bateu o pé e correu a comunicar o fato ao
general. Continuávamos a empurrar a cadeira da avó.
- Parem, parem! - murmurou-me o general,
completamente fora de si.
- Experimente o senhor detê-la - murmurei em
resposta.
- Titia! - aproximou-se o general - Titia... nós agora...
nós agora... - a sua voz estava trêmula e baixava de tom
- vamos alugar uns cavalos, para um passeio fora da
cidade... Uma vista magnífica... a pointe... íamos
convidá-la.
- Vai-te embora com a tua pointe! - enxotou-o a avó,
com um gesto irritado.
- Lá existe uma aldeia... vamos tomar chá... -
prosseguiu o general, agora completamente
desesperado.
- Nous boirons du lait, sur l’herbe fraîche (“Vamos
tomar leite, sobre a relva fresca”. (N. do T.)) -
acrescentou Des Grieux com um rancor ferino.
Du lait, de l’herbe fraîche - eis o suprassumo do ideal
idílico para um burguês parisiense; nisso, como se sabe,
consiste a sua concepção de la nature et de la verité!
(“da natureza e da verdade!”. (N. do T.)) - Vai-te embora
com o teu leite! Engole-o tu sozinho; a mim, só me
provoca cólicas. E por que vocês se grudaram a mim?! -
gritou a avó. - Já lhes disse que tenho pressa!
- Chegamos, vovó! - gritei. - É aqui!
Paramos junto à casa de câmbio. Fui providenciar a
troca; a avó ficou esperando à entrada; Des Grieux, o
general e Blanche permaneceram um pouco afastados,
não sabendo o que fazer. A avó olhou-os com ira, e eles
saíram caminhando em direção do cassino.
Foi tão desvantajosa a proposta recebida dos
cambistas que não ousei aceitá-la e voltei para junto da
avó, a fim de pedir instruções.
- Ah, bandidos! - gritou, agitando os braços. - Bem,
não faz mal! Troca! - prosseguiu, com expressão
decidida. - Espera, chama o cambista para falar comigo.
- Não será melhor chamar um dos empregados, vovó?
- Bem, que venha o empregado, tanto faz. Ah,
bandidos!
Um empregado dignou-se a sair, sabendo que era
chamado por uma velha condessa doente que não podia
andar. A avó ficou muito tempo censurando-lhe,
enfurecida e em voz alta, a maroteira, e pechinchava
com ele, empregando uma mistura de russo, francês e
alemão, enquanto eu a ajudava na tradução. O
empregado de ar sério olhava-nos e balançava em
silêncio a cabeça. Ele estava examinando a avó com uma
curiosidade até demasiado insistente, e chegava a ser
indelicado; por fim, começou a sorrir.
- Bem, sai daqui! - gritou a avó. - Enforca-te com o
meu dinheiro! Faça a troca com ele, Aleksiéi Ivânovitch,
não há tempo, senão podíamos procurar outro...
- O empregado diz que outros dariam ainda menos.
Não me lembro exatamente das condições da troca,
mas foram horríveis. Recebi doze mil florins em ouro e
notas, apanhei a conta e levei-a para a avó.
- Ora! Ora! Ora! Não vamos contar - pôs-se a agitar os
braços. - Mais depressa, mais depressa, mais depressa!
- Nunca mais vou apostar nesse maldito zéro, e no
vermelho também não - disse ela, chegando ao cassino.
Desta vez, empenhei-me em convencê-la a apostar o
menos possível, assegurando-lhe que, mudando a sorte,
sempre se poderia fazer também uma aposta graúda.
Mas ela estava tão impaciente que, embora concordasse
a princípio, não houve possibilidade de contê-la no
decorrer do jogo. Mal começava a ganhar apostas de dez,
de vinte friedrichsdors, punha-se a empurrar-me: - Aí
está! Aí está! Aí está, bem que nós ganhamos; se
tivéssemos apostado quatro mil em lugar de dez,
teríamos ganho quatro mil. E agora? Foi você, sempre
você!
E, por mais que me doesse ver o jogo que ela fazia,
decidi finalmente permanecer calado e não lhe
aconselhar mais nada.
De repente, surgiu Des Grieux. Os outros três estavam
perto; notei que Mlle. Blanche permanecia um pouco
afastada, em companhia da mamãezinha, e que trocava
amabilidades com o principezinho. O general caíra
visivelmente em desgraça, quase no ostracismo. Blanche
nem queria mais olhá-lo, embora ele se desfizesse em
solicitudes para com ela. Pobre general! Empalidecia,
ficava vermelho, tremia e até nem acompanhava mais o
jogo da avó. Finalmente, Blanche e o principezinho
saíram; o general correu atrás deles.
- Madame, madame - murmurava Des Grieux para a
avó, com voz melíflua, tendo conseguido, acotovelando-
se, chegar bem junto do ouvido dela. - Madame, esta
parada é fora de propósito... não, não, não pode... - dizia
ele, assassinando a língua russa. - Não!
- Então como? Está bem, ensina-me! - disse a avó,
dirigindo-se a ele.
Des Grieux pôs-se de repente a tagarelar depressa em
francês, começou a dar conselhos, agitou-se, dizia que
era preciso esperar a sorte, ficou examinando não sei
que números... e a avó não compreendia nada. Ele
dirigia-se a cada momento a mim, para que eu
traduzisse; apontava a mesa, indicava algo; finalmente,
agarrou um lápis e começou a fazer cálculos num
papelzinho. A avó acabou perdendo a paciência.
- Ora, vai-te embora, vai-te embora! Só dizes
bobagens! “Madame, madame”, e ele mesmo não
compreende o negócio. Vai-te embora!
- Mais, madame - gorjeou Des Grieux, e pôs-se
novamente a dar empurrões e mostrar-lhe o jogo. Estava
muito irritado.
- Bem, aposta uma vez do jeito que ele quer -
ordenou-me a avó. - Vamos ver: talvez dê certo,
realmente.
Des Grieux queria apenas distraí-la das apostas
graúdas: propunha apostar em números isolados e
combinados. Coloquei, segundo a sua indicação, um
friedrichsdor numa sucessão de números ímpares, na
fileira dos primeiros doze, e cinco friedrichsdors sobre
cada grupo de números de doze a dezoito e de dezoito a
vinte e quatro: ao todo, apostamos dezesseis
friedrichsdors.
A roda girou.
- Zéro- gritou o crupiê. Perdemos tudo.
- Que imbecil! - gritou a avó, dirigindo-se para Des
Grieux. - Que francesinho ignóbil! O conselho que me
deu este monstro! Vai-te embora, vai-te embora! Não
compreende nada e se intromete!
Profundamente ofendido, Des Grieux deu de ombros,
olhou a avó com desprezo e afastou-se. Ele mesmo ficou
envergonhado de ter começado aquilo; fora impaciência
demais.
Uma hora depois, por mais que lutássemos, tínhamos
perdido tudo.
- Para casa! - gritou a avó.
Não disse palavra, até chegarmos à alameda. Mas
seguíamos por esta e ao nos aproximarmos já do hotel,
foi deixando escapar exclamações: - Que estúpida! Uma
estupidona! Que velha estúpida, você!
Mal chegamos ao seu apartamento, pôs-se a gritar:
- Tragam-me chá! E preparemo-nos imediatamente!
Vamos embora daqui!
- Para onde pretende ir, mãezinha? - começou Marfa.
- E é da tua conta? Cada macaco no seu galho!
Potápitch, arruma tudo, todo o equipamento. Estamos de
volta a Moscou! Eu proverspielen (Mistura de russo e
alemão. (N. do T.)) quinze mil rublos!
- Quinze mil, mãezinha! Meu Deus! - gritou Potápitch,
e levantou os braços, comovido, supondo,
provavelmente, que assim agradaria mais à patroa.
- Ora, ora, estúpido! Começa também a choramingar!
Cale-se! Vamos preparar-nos! A conta, mais depressa,
mais depressa!
- O primeiro trem parte às nove e meia, vovó -
anunciei, procurando deter-lhe a fúria.
- E agora, que horas são?
- Sete e meia.
- Que pena! Bem, tanto faz! Não tenho mais um
copeque, Aleksiéi Ivânovitch. Aqui tens mais duas notas,
corre até lá, troca isso também. Senão, não terei nem
mesmo para a viagem.
Saí. Regressando ao hotel meia hora depois, encontrei
todos os nossos no apartamento da avó. Ao saber que
ela ia partir de vez para Moscou, ficaram surpresos,
segundo parece, ainda mais do que com a sua perda no
jogo. Admita-se que a partida salvava a sua fortuna, mas
o que seria agora do general? Quem pagaria a Des
Grieux? Mlle. Blanche, é claro, não esperaria mais a
morte da avó, e certamente escaparia com o
principezinho ou com algum outro. Em pé, junto dela,
consolavam-na e procuravam convencê-la. Também
dessa vez, Polina estava ausente. A avó gritava,
exaltada: - Larguem-me, diabos! Que têm vocês com
isso? Por que este barba-de-bode se arrasta para junto
de mim? - gritava ela para Des Grieux. - E tu, garnisé, o
que queres também? - acrescentou, dirigindo-se a Mlle.
Blanche. - Por que te agitas assim?
- Diantre! (“Diacho!”. (N. do T.)) - murmurou Mlle.
Blanche, fazendo cintilar furiosamente os olhos; de
repente, porém, soltou uma gargalhada e saiu.
- Elle vivra cent ans! (“Ela viverá cem anos!”. (N. do
T.)) - gritou para o general, ao passar pela porta.
- Então, contas assim com a minha morte? - urrou a
avó para o general. - Vai-te embora! Enxota-os todos,
Aleksiéi Ivânovitch! O que têm vocês com isso? Espoquei
o que era meu, não de vocês!
O general deu de ombros, curvou-se e saiu. Des
Grieux seguiu-o.
- Chamem Praskóvia - ordenou a avó a Marfa.
Cinco minutos depois, Marfa regressou, acompanhada
de Polina. Durante todo aquele tempo, ela estivera em
seu quarto, com as criança, e parece que decidira
mesmo não sair o dia inteiro. Tinha o rosto sério, triste,
preocupado.
- Praskóvia - começou a avó -, é verdade isso que eu
há pouco soube, por via indireta: que esse imbecil, o teu
padrasto, quer casar-se com essa estúpida ventoinha
francesa? Uma atriz, talvez coisa pior ainda? Diga: é
verdade?
- Não sei disso com certeza, vovó - respondeu Polina -
mas, pelas palavras da própria Mademoiselle Blanche,
palavras que ela não procura ocultar, concluo...
- Chega! - interrompeu-a a avó com energia. -
Compreendo tudo! Sempre julguei que ele chegaria a
isto, sempre o considerei a pessoa mais fútil e leviana.
Conseguiu, à força, fazer-se general (foi promovido ao
dar baixa), e agora se faz de importante. Eu, minha mãe,
sei de tudo sobre os telegramas que vocês ficaram
enviando para Moscou. “A velha (por assim dizer)
esticará logo a canela?” Esperavam a herança; sem
dinheiro, essa infame rapariga - chama-se De Cominges,
não? - não o tomaria nem para criado, ainda mais com
aqueles dentes postiços. Dizem que ela mesma tem um
montão de dinheiro, que empresta a juros; foi bem
ganho. Praskóvia, não te culpo; não foste tu quem
mandou os telegramas; e também não quero lembrar o
que já passou. Sei que tens mau gênio. Uma vespa!
Quando picas, o local fica logo inflamado, mas tenho
pena de ti, porque eu amava a defunta Catierína
(Corruptela de Iecatierína (Catarina). (N. do T.)), tua mãe.
Bem, larga tudo aqui e vem comigo, queres? Realmente,
não tens para onde ir; e agora, não é decente ficares
com eles. Espera! - interrompeu ela, depois que Polina
começara a responder-lhe. - Eu ainda não terminei.
Minha casa em Moscou, você mesma sabe, é um palácio,
pode ocupar um andar inteiro, se quiser, e passar
semanas sem descer para me visitar, se não te agradar o
meu gênio. bem, você quer ou não?
- Permita, em primeiro lugar, perguntar-lhe: a senhora
pretende realmente partir agora?
- Pensas que estou brincando, mãezinha? Disse e vou.
Perdi hoje quinze mil rublos nessa excomungada roleta
de vocês. Há cinco anos fiz promessa de construir, nos
arredores de Moscou, uma igreja de pedra em lugar
daquela de madeira, que existe lá, mas, em vez disso,
me encalacrei aqui. Agora, mãezinha, vou viajar para
construir a igreja.
- E as águas, vovó? A senhora não veio fazer uma
estação de cura?
- Deixa-me em paz com essas tuas águas! Não me
irrites, Praskóvia! Faz isso de propósito? Diga, vens
comigo ou não?
- Eu lhe fico muito, muitíssimo agradecida, vovó -
começou Polina, sensibilizada - pelo refúgio que me
oferece. A senhora adivinhou, em parte, a minha
situação. Sou-lhe tão reconhecida que, acredite, irei
morar em sua casa, talvez mesmo em breve; mas, por
enquanto, há uns motivos... importantes... e eu não
posso decidir-me neste momento. Se a senhora ficasse
aqui, pelo menos duas semanas mais...
- Quer dizer que você não quer?
- Quer dizer que não posso. Além disso, não devo, em
todo caso, abandonar meu irmão e minha irmã, e, visto
que... visto que... realmente pode acontecer que eles
fiquem como que abandonados, então... se a senhora me
aceitar com as criancinhas, vovó, então, naturalmente,
irei para sua casa e, creia-me, hei de merecer isso da
senhora! - acrescentou com ardor. - Mas, sem as
crianças, não posso, vovó.
- Bem, não choramingue! (Polina nem estava
pensando em choramingar e, realmente, nunca chorava.)
Haverá lugar para os pintinhos também, pois o galinheiro
é grande. Além disso, já estão em idade de ir à escola.
Quer dizer que não vens agora? Bem, Praskóvia, veja
bem! Eu te desejaria boa sorte, mas sei por que não
vens. Sei de tudo, Praskóvia! Não tens nada de bom a
esperar desse francesinho.
Polina ficou abrasada. Eu até estremeci. (Todos
sabiam! Eu era, pois, o único a não saber de nada!) -
Bem, bem, deixa de franzir o cenho. Não vou tagarelar
sobre isso. Mas, cuidado, que não te dê aborrecimentos,
compreendes? És uma moça inteligente; vou ter pena de
ti. Bem, chega, melhor seria que eu nem olhasse para
vocês todos! Vá embora! Adeus!
- Vou ainda acompanhá-la, vovó - disse Polina.
- Não é preciso; não me atrapalhes, que eu já estou
enjoada de vocês todos.
- Polina beijou a mão da avó, que a retirou, beijando a
moça na face.
Passando ao meu lado, Polina lançou-me um olhar
rápido e imediatamente desviou os olhos.
- Bem, digo-te igualmente adeus, Aleksiéi Ivânovitch!
Falta apenas uma hora para o trem. Penso que te
cansaste comigo. Toma estas cinquenta moedas de ouro.
- Agradeço-lhe muito, vovó, mas tenho escrúpulos...
- Ora, ora! - gritou a avó, de modo tão enérgico e
ameaçador que não ousei recusar e aceitei.
- Em Moscou, quando estiver correndo à cata de
emprego, venha me ver; vou recomendar-te a alguém. E
agora, vai embora!
Fui para o meu quarto e deitei-me na cama. Penso que
fiquei estirado cerca de meia hora, as mãos atrás da
nuca. A catástrofe desencadeara-se, havia em que
pensar. Resolvi falar seriamente com Polina, no dia
seguinte. Ah, o francesinho? Então, era verdade! Mas, em
que podia consistir aquilo? Polina e Des Grieux! Que
dupla, meu Deus!
Tudo isso era simplesmente inverossímil. Ergui-me de
súbito, fora de mim, para ir imediatamente à procura de
Mister Astley e obrigá-lo a falar a todo custo.
Naturalmente, ele sabia mais que eu, em relação a isso
também. Mister Astley? Eis outro enigma!
De repente, ressoaram pancadas à minha porta. Fui
ver: era Potápitch.
- Paizinho, Aleksiéi Ivânovitch, a patroa está
chamando!
- Que se passa? Ela já vai? Ainda faltam vinte minutos
para o trem.
- Estão inquietas, paizinho, mal conseguem ficar
sentadas. “Mais depressa, mais depressa!” - isso para
chamar o senhor, paizinho; pelo amor de Cristo, não se
atrase.
Corri imediatamente para baixo. A avó já fora levada
para o corredor. Segurava a carteira.
- Aleksiéi Ivânovitch, caminha na frente, vamos!...
- Para onde, vovó?
- Nem que eu tenha de morrer, vou ganhar tudo de
volta! Bem, ordinário! marche! e sem perguntar nada!
Não é verdade que o jogo ali vai até a meia-noite?
Fiquei petrificado, refleti um pouco, mas
imediatamente cheguei a uma decisão.
- Faça o que quiser, Antonida Vassílievna, mas eu não
vou.
- Por que isso? O que há? Que bicho os mordeu a
todos?!
- Faça o que quiser: eu iria censurar-me depois. Não
quero! Não quero ser testemunha nem cúmplice; livre-
me disso, Antonida Vassílievna. Aqui estão de volta os
seus cinquenta friedrichsdors; adeus! - e, colocando o
rolo de moedas sobre a mesinha ao lado da qual estava a
cadeira da avó, cumprimentei-a com a cabeça e saí.
- Que absurdo! - gritou às minhas costas a avó. -
Podes deixar de me acompanhar, vou achar o caminho
sozinha! Vem comigo, Potápitch! Bem, levantem-me e
carreguem-me.
Não encontrei Mister Astley e voltei para o hotel.
Depois da meia-noite, soube, por intermédio de
Potápitch, como terminara o dia da avó. Perdera tudo o
que eu lhe trocara horas antes, isto é, em nossa moeda,
mais dez mil rublos. No cassino, juntara-se a ela aquele
mesmo polaquinho a quem dera dois friedrichsdors, o
qual lhe orientou o jogo e tempo todo. A princípio, antes
de aparecer o polaquinho, ela fizera Potápitch efetuar as
apostas, mas, pouco depois, mandara-o embora; foi
nesse momento que o polaquinho surgiu. Como que de
propósito, ele compreendia o russo e tagarelava até,
ainda que de modo canhestro, numa mistura de três
línguas, de jeito que conseguiam entender-se. A avó
cumulava-o de injúrias o tempo todo.
- Embora ele “rastejasse aos pés da pani (“Senhora”.
Em polonês, no original. (N. do T.))”, não havia
comparação possível com o senhor, Aleksiéi Ivânovitch -
contava Potápitch. - Ela tratava-o como a um senhor de
verdade, mas o outro (vi com os meus próprios olhos, e
que Deus me mate agora mesmo se não digo verdade)
roubava o dinheiro dela da própria mesa. Ela mesma o
pilhou umas duas vezes, e maltratou-o, paizinho,
chamando-lhe de todos os nomes; uma vez até o puxou
pelos cabelinhos - é verdade, não estou mentindo - de
modo que em volta as pessoas deram risada. Perdeu
tudo, paizinho; tudo o que o senhor trocou para ela. Nós
a trouxemos, a mãezinha, até aqui; ela só pediu água,
fez o sinal da cruz e foi para a caminha. Ficou talvez
esgotada; só sei que adormeceu no mesmo instante. Que
Deus a faça sonhar com os anjos! Ai, estes países
estrangeiros! - concluiu Potápitch. - Eu lhe dizia que tudo
aquilo não podia dar bom resultado. E que a gente vá o
quanto antes para a nossa Moscou! E o que é que nos
falta em casa, lá em Moscou? O jardim, flores como não
existem aqui, ar perfumado, maçãzinhas amadurecendo,
espaço; mas não: tinha que ir para o estrangeiro! O-o-
oi!...
XIII
Levei quase um mês sem tocar nessas minhas notas,
iniciadas sob a influência de impressões fortes, ainda que
desordenadas. A catástrofe, cuja aproximação eu
pressentira então, aconteceu realmente, mas de modo
cem vezes mais abrupto e inesperado do que eu
pensava. Foi algo estranho, monstruoso, trágico mesmo,
pelo menos no que me dizia respeito. Sucederam comigo
alguns fatos quase milagrosos; é assim, pelo menos, que
os encaro ainda hoje, se bem que, de outro ponto de
vista e, sobretudo, julgando-os pelo turbilhão em que
então me vi envolvido, eles fossem apenas algo mais que
absolutamente comuns. O que me parece mais
prodigioso, no entanto, é o modo pelo qual eu mesmo
encarei todos esses acontecimentos. Até agora, não me
compreendo! E tudo isso se esvaiu como um sonho, até
mesmo a minha paixão; realmente, era forte e autêntica,
mas... que é feito dela agora? Em verdade, vez por outra,
passa-me pela cabeça: “Não teria eu perdido então o
juízo, e passado todo esse tempo em algum manicômio?
Talvez ainda me encontre num, de modo que tudo isso
tenha sido apenas impressão, e até agora continue
sendo...”.
Reuni e reli as minhas folhas de papel. (Quem sabe,
talvez para verificar se não as escrevera num
manicômio?) Agora, estou bem sozinho. Aproxima-se o
outono, as folhas das árvores amarelecem. Estou nesta
triste cidadezinha (oh, como são tristes as cidadezinhas
alemãs!) e, em lugar de refletir sobre o passo a
empreender, vivo sob a influência das impressões
recentes, sob a influência das lembranças frescas, de
todo esse vendaval, que me arrebatou então para dentro
desse redemoinho e que de novo me expeliu para
alguma parte. Às vezes, tenho a impressão de estar
ainda girando no mesmo vendaval, e que, mais um
instante, e passará novamente por mim essa
tempestade, agarrar-me-á, de passagem, com a sua asa,
e, mais uma vez, hei de saltar fora da ordem e do senso
da medida, e rodopiar, rodopiar indefinidamente...
Aliás, é possível que eu me fixe de algum modo e pare
de girar, se me der a mim mesmo, na medida do
possível, conta exata de tudo o que sucedeu este mês.
Algo me atrai novamente para o papel; além disso, às
vezes, não há nada absolutamente a fazer de noite.
Coisa estranha, para matar de algum modo o tempo,
apanho na ordinária biblioteca local uns romances de
Paul de Kock (em tradução alemã!), que eu quase não
suporto; todavia leio-os e admiro-me de mim mesmo: é
como se eu temesse destruir, com um livro ou ocupação
séria, o encanto do passado próximo. Dir-se-ia que me
são tão caros esse sonho monstruoso e todas as
impressões por ele deixadas, que eu tenho até medo de
tocá-los com algo novo, para que não se desfaçam em
fumaça! Serão realmente tão caros para mim? Sim,
certamente me são caros; e talvez me lembre disso
daqui a quarenta anos...
Pois bem, começo a escrever. Aliás, tudo isso pode ser
contado agora parcialmente e de modo bem sucinto: as
impressões não são as mesmas, absolutamente...

Em primeiro lugar, é preciso acabar o caso da avó. No


dia seguinte, ela perdeu o seu último dinheiro. Era
inevitável: uma vez nessa trilha, as pessoas do seu tipo
correm cada vez mais depressa, como se descessem de
trenó uma vertente nevada. Jogou o dia todo, até as oito
da noite; não presenciei o seu jogo e fiquei sabendo dele
apenas pelo que me contaram.
Potápitch passou o dia inteiro de plantão junto dela,
no cassino. Os polaquinhos que orientavam a avó
alternaram-se, nesse dia, algumas vezes. Começou por
enxotar o polaquinho da véspera, aquele que ela puxara
pelos cabelos, e chamou um outro, mas o segundo foi
talvez pior ainda. Expulsando este, voltou a aceitar o
primeiro, que não se afastara e ficara acotovelando-se
por trás da cadeira dela, estendendo a cada momento a
cabeça na sua direção; por fim, ela foi presa de
verdadeiro desespero. O segundo polaquinho expulso
também não queria, de modo algum, ir embora; um
instalou-se à direita, o outro à esquerda. Discutiam e
insultavam-se o tempo todo, por causa de lances e
apostas, xingavam-se de lajdak (“Canalha”. Em polonês
no original. (N. do T.)) e outras amabilidades polacas,
tornavam a fazer as pazes, e atiravam o dinheiro, a
esmo, sobre os números. Depois de brigar, cada um
apostava do seu lado; por exemplo, um no vermelho, o
outro, simplesmente, no preto. Deixaram a avó
completamente atordoada, ela passou a não
compreender o que acontecia, e, finalmente, dirigiu-se
quase chorando ao crupiê velhinho, pedindo que a
defendesse e os expulsasse. Eles foram realmente
enxotados no mesmo instante, apesar dos seus gritos e
protestos: gritavam ambos ao mesmo tempo e
procuravam demonstrar que a avó é que lhes ficara
devendo dinheiro, que os enganara em algo e agira em
relação a eles de modo ignóbil, desonesto. O infeliz
Potápitch contou-me tudo isso chorando, naquela mesma
noite, depois do jogo, queixando-se de que eles enchiam
os bolsos de dinheiro, e que ele mesmo vira como
roubavam sem escrúpulo nenhum, a todo momento. Um
deles pedia, por exemplo, à avó, cinco friedrichsdors,
como pagamento pelos serviços prestados e começava a
colocar as suas apostas junto às da avó. Esta ganhava, e
o outro gritava que o seu lance fora premiado e que a
avó perdera. Quando foram expulsos, Potápitch apareceu
e denunciou que eles tinham os bolsos cheios de ouro. A
avó pediu imediatamente ao crupiê que tomasse
providências e, por mais que os dois polaquinhos
gritassem (como dois galos apanhados à unha),
apareceram policiais e os bolsos deles foram esvaziados,
em benefício da avó. Esta, enquanto teve dinheiro,
desfrutou de evidente prestígio junto aos crupiês e às
demais autoridades do cassino. Pouco a pouco, a sua
fama espalhou-se pela cidade inteira. Os visitantes da
estação de águas, pessoas de todas as nacionalidades,
tanto os mais simples como os mais ilustres, acorriam
para ver une vieille comtesse russe, tombée en enfance
(“Uma velha condessa russa, que virou criança”. (N. do
T.)), e que já perdera “alguns milhões”.
Mas a avó lucrou pouco, muito pouco, pelo fato de a
terem livrado dos dois polaquinhos. Para substituí-los,
apareceu no mesmo instante, oferecendo os seus
serviços, um terceiro polaco, que falava russo
correntemente, vestido como um cavalheiro, embora
parecesse um lacaio; tinha imensos bigodes e ostentava
arrogância. Também este “beijava os pés da pani”,
“estendia-se aos pés da pani”, mas, em relação aos
circunstantes, portava-se com insolência e dava ordens
com modos despóticos; em suma, colocou-se logo no
papel , não de criado, mas de patrão da avó. A todo
momento, e depois de cada lance, dirigia-se a ela e,
proferindo os mais terríveis juramentos, assegurava que
ele próprio era um honorowy pan, e que não levaria da
avó um copeque sequer. Repetia aqueles juramentos
com tal frequência que ela acabou por acovardar-se
completamente. Mas como aquele pan, a princípio,
parecera realmente ter-lhe melhorado o jogo e começado
a ganhar, a própria avó se via impossibilitada de livrar-se
dele. Passada uma hora, ambos os polaquinhos expulsos
do cassino apareceram novamente atrás da cadeira da
avó, oferecendo mais uma vez os seus préstimos, ainda
que fosse para recados. Potápitch jurava por Deus que o
honorowy pan piscava para eles, e até lhes passara algo.
Como a avó não tivesse ido jantar e quase não saísse da
cadeira, um dos polaquinhos foi-lhe realmente útil:
correu ao restaurante do cassino, que ficava ao lado, e
trouxe-lhe uma taça de caldo de galinha e, em seguida,
chá. Aliás, os dois polaquinhos corriam juntos. Mas, findo
o dia, quando todos compreenderam que a avó perdia a
última nota, havia já atrás da sua poltrona uns seis
polaquinhos, que ninguém vira nem ouvira antes. E,
quando ela já estava perdendo as derradeiras moedas,
eles não apenas não mais lhe obedeciam, como sequer
lhe davam atenção: esticavam-se por cima dela, sobre a
mesa, agarravam sozinhos o dinheiro, providenciavam e
apostavam, discutiam e gritavam, conversavam, como
íntimos, com o honorowy pan, que quase se esquecera
da existência da avó. Mesmo quando esta, tendo já
literalmente perdido tudo, voltou às oito da noite para o
hotel, três ou quatro polaquinhos ainda não se haviam
decidido a abandoná-la e corriam de cada lado da sua
cadeira, gritando a plenos pulmões, falando depressa e
assegurando que a avó os enganara em algo e lhes devia
uma indenização. Foi assim que chegaram até o hotel, de
onde, finalmente, foram enxotados aos empurrões.
Segundo os cálculos de Potápitch, a avó perdera
naquele dia, ao todo, perto de noventa mil rublos, além
do perdido na véspera. Ela trocara, sucessivamente,
todos os seus papéis: apólices a cinco por cento, títulos
de dívida interna e ações. Cheguei a admirar-me de
como ela suportara ficar na cadeira todas aquelas sete a
oito horas, quase sem se afastar da mesa, mas Potápitch
contou que, por umas três vezes, ela realmente
começara a ganhar muito; e entusiasmada novamente
com a esperança, não conseguira mais afastar-se dali.
Aliás, os jogadores sabem como uma pessoa pode passar
quase vinte e quatro horas sentada com um baralho, sem
desviar os olhos das cartas.
Entretanto, durante todo aquele dia, passaram-se em
nosso hotel fatos igualmente bem decisivos. Ainda pela
manhã, antes das onze, enquanto a avó permanecia nos
seus aposentos, nossa gente, isto é, o general e Des
Grieux, resolveram dar um passo decisivo. Tendo sabido
que a avó, longe de pensar em partir, ia, pelo contrário,
de novo ao cassino, eles foram, em conclave completo
(com exceção de Polina), discutir com a avó, definitiva e
mesmo francamente, o assunto. O general, que estava
trêmulo e sentia petrificar-se o coração, em virtude das
terríveis consequências que o aguardavam, passou até
da medida: depois de meia hora de pedidos e súplicas, e
tendo, mesmo, confessado com franqueza tudo, isto é,
todas as dívidas e até a sua paixão por Mlle. Blanche
(estava completamente perturbado), assumiu de repente
um tom ameaçador e pôs-se mesmo a gritar e a bater os
pés na direção da avó; gritava que ela estava lançando a
vergonha sobre a família, que se tornara o escândalo de
toda a cidade, e, finalmente... finalmente: “Está cobrindo
de vergonha o nome da Rússia, senhora! - gritou. - E para
isso existe polícia!”. A avó enxotou-o por fim com uma
vara (uma vara de verdade). O general e Des Grieux
conferenciaram ainda uma ou duas vezes naquela
manhã, preocupados realmente com o seguinte: não se
poderia, na verdade, utilizar de algum modo a polícia?
Diriam que uma velhinha infeliz, mas respeitável,
perdera completamente o juízo, que ia deixar no cassino
o resto do seu dinheiro, etc. Numa palavra, não se podia
conseguir que a vigiassem de algum modo ou
ordenassem uma interdição?... Mas Des Grieux dava
apenas de ombros e ria na cara do general, que já
tagarelava sem saber o que dizia, correndo de uma à
outra extremidade do gabinete. Finalmente, Des Grieux
fez um gesto com a mão e desapareceu. Soube-se à
noitinha que deixara o hotel, depois de uma conversa
bem decisiva e misteriosa com Mlle. Blanche. Quanto a
esta, desde a manhã tomara medidas definitivas:
enxotara de vez o general, não lhe permitindo sequer
que aparecesse aos seus olhos. Quando o general correu
atrás dela para o cassino, e a encontrou de braço com o
principezinho, tanto ela como Madame veuve Cominges
fingiram não o conhecer. O principezinho também não o
cumprimentou. No decorrer de todo aquele dia, Mlle.
Blanche sondou e trabalhou o príncipe, esperando que
ele desse, finalmente, a palavra decisiva. Mas ai,
enganara-se cruelmente nos seus cálculos em relação a
ele! Foi já à noitinha que se deu esta pequena catástrofe;
descobriu-se de repente que o príncipe estava pobre
como Jó, e que até contava com ela para tomar-lhe
dinheiro emprestado, em troca de uma nota promissória,
a fim de jogar na roleta. Blanche mandou-o embora
indignada e trancou-se no quarto.
Na manhã do mesmo dia, fui ver Mister Astley, ou,
melhor, passei a manhã inteira procurando-o, mas não
consegui de modo algum encontrá-lo. Não estava em
seus aposentos, nem no cassino ou no parque. Dessa
vez, não almoçou no hotel. Depois das quatro, avistei-o
de repente, indo da estação de estrada de ferro
diretamente para o Hôtel d’Angleterre. Ia muito
apressado e estava bem preocupado, embora fosse difícil
distinguir-lhe no rosto qualquer indício de perturbação.
Estendeu-me alegremente a mão, com a sua exclamação
costumeira: “Eh!” - mas não se deteve e prosseguiu em
seu caminho, num passo bastante apressado. Segui-o;
mas ele soube responder-me de tal modo que me senti
incapaz de fazer-lhe mais perguntas. Além disso, eu
tinha, não sei por quê, um escrúpulo tremendo de falar-
lhe a respeito de Polina; e ele, por seu lado, não me
perguntou por ela. Contei-lhe o episódio com a avó;
ouviu-me com atenção e seriedade e deu de ombros.
- Ela vai perder tudo - observei.
- Oh, sim! - respondeu. - Ainda outro dia, achava-me
de partida, ela foi jogar e eu já sabia com certeza que ela
perderia tudo. Se tiver tempo, irei ao cassino para dar
uma olhada, pois isso é curioso...
- Mas, por onde andou? - exclamei, surpreendido por
não lhe ter perguntado isso antes.
- Estive em Frankfurt.
- A negócios?
- Sim, a negócios.
Bem, que lucraria eu em insistir com perguntas? Aliás,
ainda me achava caminhando ao seu lado, quando, de
repente, ele dobrou uma esquina, em direção ao Hôtel
des Quatre Saisons (Hotel das Quatro Estações. (N. do
T.)), acenou-me com a cabeça e desapareceu. Voltando
ao meu hotel, pouco a pouco fui me convencendo de
que, mesmo no caso de passar duas horas conversando
com ele, eu não viria a saber absolutamente nada,
porque... porque nada tinha a perguntar-lhe! Sim, era
isso naturalmente! Eu não poderia, de modo nenhum,
formular então a minha pergunta.
Durante todo esse dia, Polina ora passeava com as
crianças e a babá no parque, ora ficava em casa. Havia
muito que estava evitando o general e quase não falava
com ele, pelo menos nada de sério. Eu já notara isso há
muito. Mas sabendo em que estado se encontrava
naquele dia o general, pensei que ele não conseguiria
evitá-la, isto é, que entre eles não poderia deixar de
ocorrer certas explicações importantes e familiares.
Todavia, quando, regressando ao hotel, depois da
conversa com Mister Astley, encontrei Polina com as
crianças, o seu rosto refletia a mais imperturbável
tranquilidade, como se ela tivesse sido a única poupada
por todas aquelas tempestades domésticas. Em resposta
à minha saudação, fez-me um aceno com a cabeça.
Cheguei ao meu quarto completamente irritado.
Naturalmente, evitava falar-lhe, e não a encontrara
nem uma vez sequer depois do incidente com os
Wurmerhelm. Ao mesmo tempo, eu, em parte, fingia e
me exibia; mas, com o decorrer do tempo, fervia em
mim, com intensidade crescente, uma indignação
genuína. Mesmo que ela não me amasse nem um pouco,
não era lícito, apesar de tudo, parecia-me, espezinhar
desse modo os meus sentimentos e receber minhas
declarações com tamanho desdém. Com efeito, ela sabia
que eu a amava de verdade; e ela mesma me permitia
falar-lhe disso! É verdade que a coisa começara entre nós
de modo um tanto estranho. Havia tempo, uns dois
meses, começara eu a notar que ela queria fazer-me seu
amigo e confidente, e que, em parte, já fazia tentativas
nesse sentido. Mas, por um motivo qualquer, isso não
prosseguira; pelo contrário, sobrevieram as nossas
estranhas relações atuais; por isso mesmo, comecei a
falar com ela daquele modo. Mas, se o meu amor lhe
repugnava, por que não me proibia simplesmente
manifestá-lo?
Isso ela não me proibia; às vezes até me provocava
para uma conversa e... naturalmente, fazia-o por
zombaria. Sei disso com certeza, notei-o perfeitamente:
era-lhe agradável, depois de me ouvir e de me irritar
dolorosamente, deixar-me, de súbito, perplexo com
algum ato extravagante, de soberano desprezo e
desatenção. E não desconhecia que, sem ela, eu não
poderia mais viver. Agora, já se passaram três dias desde
o episódio com o barão, e eu não posso mais suportar a
nossa separação. Quando a encontrei há pouco, junto ao
cassino, o coração bateu-me com tal intensidade que
empalideci. Mas também ela não pode mais viver sem
mim! Eu lhe sou necessário, mas será possível, será
possível que me queira unicamente como palhaço?
Ela tem um segredo - isso é evidente! A sua conversa
com a avó pungiu-me intensamente. Bem que eu instei
mil vezes com ela que fosse franca comigo, e Polina
sabia que eu estava realmente pronto a sacrificar-lhe a
vida. Mas ela desembaraçava-se de mim quase sempre
com desprezo, ou, em lugar do sacrifício que lhe oferecia,
exigia de mim disparates semelhantes ao daquela vez
com o barão! Não era uma indignidade? Resumir-se-ia
todo o mundo, para ela, naquele francês? E Mister
Astley? Mas, aí, o caso já se tornava absolutamente
incompreensível, e, no entanto, meu Deus, como eu
sofria!
Ao chegar ao quarto, num acesso de furor, agarrei a
pena e rabisquei para ela o seguinte:

“Polina Aleksândrovna, vejo claramente que


chegou o desfecho; naturalmente, há de atingi-la
também. Repito pela derradeira vez: precisa da
minha cabeça ou não? Se eu lhe sou necessário, seja
lá para o que for, disponha de mim; atualmente,
passo a maior parte do tempo no meu quarto, e não
viajarei por enquanto. Se precisar de mim, escreva
ou mande chamar-me.”

Fechei o envelope e enviei o bilhete por um criado,


com ordem de entregá-lo em mãos. Não esperava
resposta, mas, três minutos depois, o criado voltou com a
notícia de que “me mandavam cumprimentos”.
Depois das seis, fui chamado ao apartamento do
general.
Ele estava no escritório, vestido para sair, o chapéu e
a bengala sobre o divã. Ao entrar, tive a impressão de
que ele falava sozinho, parado no centro do quarto, as
pernas afastadas e a cabeça baixa. Mas, apenas me
avistou, lançou-se na minha direção, quase com um
grito, de modo que, involuntariamente, retrocedi e estive
a ponto de correr; ele, porém, agarrou-me as mãos e
arrastou-me para o divã; aí se sentou, fazendo-me
acomodar numa poltrona, à sua frente, e, sem me soltar
as mãos, de lábios trêmulos, com lágrimas a brilharem-
lhe de repente nas pestanas, disse, numa voz súplice: -
Aleksiéi Ivânovitch, salve-me, salve-me, tenha pena de
mim!
Durante muito tempo não pude compreender nada;
ele falava, falava, falava sem cessar e repetia: “Tenha
pena, tenha pena!”. Finalmente, adivinhei que esperava
de mim algo no gênero de um conselho; ou, melhor,
abandonado por todos, assaltado de angústia e alarma,
lembrou-se de mim e mandou chamar-me unicamente
para falar, falar, falar.
Perdera o juízo, ou, pelo menos, achava-se no auge da
perplexidade. Cruzava os braços e estava pronto a pôr-se
de joelhos diante de mim, para... adivinhem!... para que
eu fosse imediatamente à procura de Mlle. Blanche, a fim
de convencê-la, fazer-lhe ver que devia voltar para a sua
companhia e desposá-lo.
- Permita-me dizer-lhe , general - exclamei - que
Mademoiselle Blanche talvez nem me tenha notado até
hoje! Que posso fazer?
Mas era inútil retrucar: ele não compreendia minhas
palavras. Começava também a falar da avó, mas com
uma incoerência extrema; insistia, ainda, na ideia de
mandar chamar a polícia.
- Em nosso país, em nosso país - começou de repente,
fervendo de indignação - numa palavra, em nosso país,
onde há um Estado bem organizado, onde existe
autoridade, velhas assim seriam colocadas
imediatamente sob tutela! Sim, meu prezado senhor,
sim! - prosseguiu, erguendo-se de um salto, passando de
repente a um tom de descompostura, caminhando pela
sala. - O senhor ainda não sabia isso, meu prezado
senhor - dirigiu-se a algum prezado senhor imaginário, no
canto da sala. - Pois bem, ficará sabendo... sim... em
nosso país, velhas assim são dobradas em arco, em arco,
em arco, sim... oh, com mil diabos!
E ele se atirava novamente sobre o divã e, um
instante depois, apressava-se a contar-me, quase
soluçando, perdendo o alento, que Mlle. Blanche não
queria casar-se com ele porque, em lugar de um
telegrama, chegara a própria avó, sendo, pois, evidente
que ele não receberia a herança. Parecia-lhe que eu
ainda não sabia nada daquilo. Falei sobre Des Grieux; ele
fez um gesto com a mão: - Partiu! Tudo o que é meu está
hipotecado a ele; estou pobre como Jó! Aquele dinheiro
que o senhor trouxe... aquele dinheiro... eu não sei
quanto é, creio que ficaram uns setecentos francos e... é
tudo... Quanto ao que vai acontecer, não sei, não sei!...
- Mas, como pagará a conta do hotel? - exclamei
assustado. - E... depois?
Sua expressão tornou-se pensativa, mas parece que
não compreendeu nada e talvez nem me tivesse ouvido.
Tentei falar de Polina Aleksândrovna, das crianças; ele
respondia, apressado: - Sim! Sim! - Mas, no mesmo
instante, punha-se a falar novamente do príncipe, de que
Blanche agora partiria com ele, e então... - e então que
farei eu, Aleksiéi Ivânovitch? - perguntava-me de
repente. - Por Deus, diga o que devo fazer? Isto é uma
verdadeira ingratidão! Diga, não é uma ingratidão?
Por fim, uma torrente de lágrimas jorrou-lhe dos olhos.
Não havia o que fazer com uma pessoa assim; deixá-
lo sozinho era também perigoso; algo podia acontecer-
lhe. Aliás, de certo modo pude livrar-me dele, mas
recomendei à babá que fosse vê-lo com frequência, e,
além disso, falei com o criado do pavimento, um rapaz
bem sensato, que me prometeu também ficar atento.
Mal deixei o general, Potápitch veio chamar-me, da
parte da avó. Eram oito horas, e ela acabava de voltar do
cassino, depois de ter perdido tudo. Fui vê-la: a velha
estava sentada na sua cadeira, completamente
extenuada, e parecia doente. Marfa servia-lhe uma
chávena de chá, obrigando-a quase à força a tomá-lo. A
voz da avó estava profundamente alterada.
- Boa tarde, paizinho Aleksiéi Ivânovitch - disse,
baixando lentamente e com ar de importância a cabeça.
- Desculpe tê-lo incomodado mais uma vez, perdoe uma
pessoa idosa. Eu, pai meu, deixei tudo lá, quase cem mil
rublos. Tiveste razão ontem de não querer ir comigo.
Agora estou sem dinheiro, sem um vintém sequer. Não
quero molengar nem um instante, partirei às nove e
meia. Mandei um recado àquele teu inglês... Astley, não
é verdade? Quero pedir-lhe três mil francos emprestados
por uma semana. Tranquiliza-o, para que não pense
alguma coisa e não me recuse isso. Pai meu, ainda sou
bastante rica. Possuo três aldeias e duas casas. E ainda
se encontrará algum dinheiro, não trouxe tudo comigo.
Digo isso para que ele não tenha alguma dúvida... Ah, já
está aqui! Conhece-se logo uma pessoa de bem.
Mister Astley apressara-se em atender ao primeiro
chamado da avó. Sem qualquer hesitação, e sem falar
muito, contou imediatamente três mil francos, recebendo
uma nota promissória, assinada por ela. A seguir, fez
uma saudação e apressou-se a sair.
- Agora, deixa-me também, Aleksiéi Ivânovitch. Resta-
me pouco mais de uma hora e eu quero deitar-me, doem-
me os ossos. Não me queiras mal, velha estúpida que
sou. Agora, não vou mais acusar os jovens de
leviandade, e, quanto àquele infeliz, o general de vocês,
é também um pecado censurá-lo agora. Apesar de tudo,
não lhe darei dinheiro, conforme pretende, porque, a
meu ver, ele é um imbecilzinho, completo, mas eu
também, velha estúpida, não sou mais inteligente que
ele. Realmente, mesmo na velhice, não sou mais
inteligente que ele. Realmente, mesmo na velhice, Deus
cobra tudo e castiga o orgulho. Bem, adeus. Levanta-me,
Marfucha (Diminutivo de Marfa (N. do T.)).
Eu, entretanto, queria acompanhar a avó. Ademais,
permanecia numa espécie de expectativa, aguardando
sempre que, mais um pouco, e algo aconteceria. Não
consegui ficar no quarto. Saí para o corredor, e, por uns
instantes, fiquei mesmo vagando pela alameda. A minha
carta a Polina era clara e categórica, e a catástrofe que
sucedera, naturalmente, definitiva. No hotel, ouvi falar
da partida de Des Grieux. Afinal, mesmo que ela me
repelisse como amigo, talvez não me repelisse como
criado. Bem que precisava de mim, nem que fosse para
recados; sim, haveria de ser útil, por que não?!
Na hora do trem, corri à estação e ajudei a avó a
acomodar-se. Instalaram-se todos num vagão especial.
“Obrigado, paizinho, por tua ajuda desinteressada - disse
ela, despedindo-se de mim. - Repete à Praskóvia aquilo
que eu lhe disse ontem: vou esperá-la.”
Fui para o hotel. Passando pelo apartamento do
general, encontrei a babá e informei-me a respeito dele.
“Ih, paizinho, não há nada” - respondeu ela com ar triste.
Contudo, entrei: mas, à porta do escritório, parei
completamente estupefato. Mlle. Blanche e o general
davam estrondosas gargalhadas, a propósito de algo.
Veuve Cominges também estava lá, sentada no divã. O
general parecia possesso de alegria, chilreava frases sem
sentido e emitia um longo riso nervoso, que lhe franzia
todo o rosto numa infinidade de pequenas rugas,
escondendo-lhe os olhos. Mais tarde, soube, por
intermédio da própria Blanche, que ela, tendo mandado
embora o príncipe e sabendo do pranto do general, tivera
a ideia de consolá-lo e entrara por um instantinho no
apartamento dele. O pobre general ignorava, porém, que
o seu destino já estava decidido, e que Blanche
começara a arrumar as coisas a fim de voar, no dia
seguinte, para Paris, com o primeiro trem da manhã.
Parando por algum tempo no umbral do gabinete do
general, resolvi não entrar e saí sem ser notado. Subindo
para o meu quarto e abrindo a porta, notei de repente,
na penumbra, um vulto sentado numa cadeira, no canto
junto à janela. Não se levantou quando entrei. Acerquei-
me rapidamente, olhei e... faltou-me o alento: era Polina!
XIV
Soltei um grito.
- O que há? O que há? - perguntou ela de modo
estranho. Estava pálida e tinha o olhar sombrio.
- Como, o que há? Você, aqui? No meu quarto?!
- Se eu venho, quer dizer que venho toda. É meu
costume. Verá isso já; acenda a vela.
Acendi. Polina levantou-se, aproximou-se da mesa e
colocou diante de mim uma carta aberta.
- Leia - ordenou.
- Isto... isto é letra de Des Grieux! - exclamei,
agarrando a carta. Tremiam-me as mãos e as linhas
dançavam-me diante dos olhos. Esqueci os termos
exatos da carta, mas ei-la, se não palavra por palavra,
pelo menos, ideia por ideia.
“Mademoiselle - escrevia Des Grieux - certas
circunstâncias desfavoráveis obrigam-me a partir
imediatamente. A senhorita, sem dúvida, notou que eu
evitei propositadamente uma explicação definitiva, até
que todas as circunstâncias ficassem elucidadas. A chega
da velha (de la vieille dame), sua parenta, e seu absurdo
comportamento puseram fim a todas as minhas
perplexidades. O mau estado em que se encontram os
meus próprios negócios impedem-me definitivamente de
alimentar, no futuro, as doces esperanças com que ousei
embriagar-me por algum tempo. Lamento o que se
passou, mas espero que nada encontre, na minha
conduta, que seja indigno de um cavalheiro e de um
homem honesto (gentilhomme et honnête homme).
Tendo perdido quase todo o meu dinheiro em dívidas
contraídas por causa do seu padrasto, encontro-me na
extrema necessidade de aproveitar o que me resta: já
avisei aos meus amigos em Petersburgo que
providenciem imediatamente a venda da propriedade da
qual recebi hipoteca; sabendo, porém, que o seu leviano
padrasto gastou o dinheiro da senhorita, resolvi perdoar-
lhe cinquenta mil francos e devolvo-lhe a parte da
hipoteca correspondente a essa quantia, de modo que a
senhorita pode receber agora de volta tudo o que
perdeu, desde que exija dele esses bens por via judicial.
Espero, Mademoiselle, que, em virtude da situação atual
dos negócios, a minha conduta lhe seja muito vantajosa.
Espero, outrossim, cumprir desse modo, integralmente, o
dever de homem honesto e nobre. Esteja certa de que a
sua lembrança ficou eternamente gravada em meu
coração.”
- Então, tudo isto está claro - disse eu, dirigindo-me a
Polina. - Será possível que você podia esperar algo
diferente? - acrescentei indignado.
- Eu não esperava nada - respondeu ela,
aparentemente tranquila, mas com certo tremor na voz. -
Há muito que resolvi tudo; eu lia-lhe os pensamentos e
acabei sabendo o que ele pretendia. Julgou que eu
estivesse procurando... que eu fosse insistir... (Ela
deteve-se, mordeu o lábio e calou-se.) Intencionalmente,
dupliquei o meu desprezo por ele - prosseguiu depois. -
Esperei: o que viria dele? Se chegasse o telegrama sobre
a herança, atirar-lhe-ia a dívida desse idiota (o meu
padrasto) e o expulsaria! Ele me era há muito, há muito,
odioso. Oh, não era o mesmo homem de antes, mil vezes
diferente, e agora, e agora!... Oh, com que felicidade eu
lhe atiraria agora no rosto ignóbil esses cinquenta mil, e
lhe cuspiria... e ainda espalharia o cuspo!
- Mas o papel, esta hipoteca de cinquenta mil
devolvida por ele, está com o general, não é verdade?
Tome-a e devolva-a a Des Grieux.
- Oh, não é isso! Não é isso!...
- Sim, realmente, realmente, não é isso! E do que é
capaz agora o general? E a avó? - exclamei de repente.
Polina olhou-me com certo ar distraído e impaciente.
- Para que a avó? - disse ela com despeito. - Eu não
posso ir para a casa dela... E não quero pedir perdão a
ninguém - acrescentou irritada.
- Que fazer? - gritei. - E como foi - caramba! - como foi
que você pôde amar Des Grieux? Oh, patife, patife! Bem,
vou matá-lo num duelo! Quer? Onde ele está agora?
- Está em Frankfurt, onde passará três dias.
- Uma só palavra sua, e partirei amanhã mesmo, com
o primeiro trem! - disse eu, com um entusiasmo
estúpido.
Ela riu.
- Pois sim! Ele é capaz de dizer ainda: “Em primeiro
lugar, devolva-me cinquenta mil francos”. E para que ele
vai lutar?... Que absurdo!
- Bem nesse caso, onde arranjar esses cinquenta mil
francos - repeti, rangendo os dentes, como se fosse
possível, de repente, levantar do chão aquele dinheiro. -
Escute: e Mister Astley? - perguntei, sentindo um
pensamento estranho germinar em mim.
Os olhos dela cintilaram.
- E então? Tu mesmo queres que eu te deixe por esse
inglês? - disse, dirigindo-me um olhar penetrante e
sorrindo com amargor. Era a primeira vez na vida que me
tratava por tu.
Nesse momento, sua cabeça devia estar rodando de
emoção; de repente, sentou-se no divã, como que
esgotada.
Foi como se um raio me fulminasse; eu estava ali em
pé, e não acreditava nos meus olhos, não acreditava nos
meus ouvidos! E então? Quer dizer que ela me ama!
Viera ao meu quarto e não ao de Mister Astley! Ela
sozinha, uma moça, viera ao meu quarto, num hotel,
comprometendo-se publicamente, e eu permanecia em
pé diante dela, e ainda não compreendia!
Uma ideia absurda faiscou-me na cabeça.
- Polina! Concede-me apenas uma hora! Espera aqui
uma hora somente e... eu voltarei! Isto... isto é
indispensável! Vais ver! Fica aqui, fica aqui!
E saí do quarto correndo, sem responder ao olhar
surpreso e interrogador que me dirigiu; gritou-me algo,
mas não voltei.
Sim, às vezes, a ideia mais absurda, a mais impossível
na aparência, fixa-se tão fortemente em nós que
passamos a aceitá-la como algo realizável... Mais: se
essa ideia se liga a um desejo intenso, apaixonado,
aceitamo-la, por vezes, como algo fatal, indispensável,
predestinado, como algo que não pode deixar de ser e de
acontecer! É possível que haja nisso algo mais, alguma
combinação de pressentimentos, algum extraordinário
esforço da vontade, um envenenamento por meio da
própria imaginação, ou mais ainda - não sei. Mas, nessa
noite (que não esquecerei em toda a minha vida),
aconteceu-me um fato milagroso. Embora ele seja
confirmado plenamente pela aritmética, continuo a
considerá-lo milagroso até hoje. E por que, sim, por que
tal certeza estava tão profunda, tão intensamente
enraizada em mim, e de tão longa data? Certamente, eu
já pensava nisso - repito-o a vocês - não como um caso
que pode acontecer como outros (sendo, por
conseguinte, possível também a eventualidade
contrária), mas como algo que não pode em hipótese
alguma deixar de acontecer!
Eram dez e quinze; entrei no cassino, com uma
esperança bastante firme e, ao mesmo tempo, com uma
perturbação tal como jamais experimentara. Ainda havia
muita gente nas salas de jogo, embora duas vezes
menos que de manhã.
Depois das dez, ficam junto às mesas os jogadores
autênticos, desesperados, para os quais, nas estações de
águas, existe apenas a roleta; que ali vão unicamente
por causa dela, mal notando o que se passa em torno;
que não se interessam por nada em toda a estação, mas
apenas jogam da manhã à noite, e que seriam
provavelmente capazes de jogar a noite toda, até o
amanhecer, se isso fosse permitido. É de mau humor que
se dispersam quando, à meia-noite, se fecha a roleta. E
quando, antes do fechamento, o primeiro crupiê anuncia:
“Les trois derniers coups, messieurs! (“Os três últimos
lances, senhores!”. (N. do T.))” - eles estão prontos, às
vezes, a arriscar nesses três últimos lances tudo o que
têm nos bolsos, e, realmente, nesses momentos é que se
costuma perder mais. Dirigi-me para a mesa onde
estivera a avó. Não havia muito aperto, de modo que em
bem pouco tempo ocupei um lugar, de pé. Bem na minha
frente, sobre o pano verde, estava traçada a palavra:
passe. Passe é uma fileira de números, desde dezenove,
inclusive, até trinta e seis. A primeira fileira, de um a
dezoito, inclusive, chama-se manque: mas, que me
importava isso? Eu não fazia cálculos, ignorava mesmo o
número em que recaíra o último lance, e não me informei
sobre isso, ao começar o jogo, como faria um jogador
que fosse, ao menos, um pouco calculista. Arranquei do
bolso todos os meus vinte friedrichsdors e atirei-os sobre
o passe, que estava na minha frente.
- Vingt-deux! (“Vinte e dois!”. (N. do T.)) - gritou o
crupiê.
Ganhei e, novamente, apostei tudo, o dinheiro
anterior e o ganho.
- Trente et un (“Trinta e um”. (N. do T.)) - gritou o
crupiê. Novo ganho! Eu já estava com oitenta
friedrichsdors ao todo! Empurrei-os para os doze
números do meio (ganho triplo, mas duas chances contra
mim); a roda girou e saiu o vinte e quatro. Puseram na
minha frente três rolos de cinquenta friedrichsdors e dez
moedas de ouro; tinha, ao todo, duzentos friedrichsdors.
Possuído de uma espécie de febre empurrei todo
aquele monte de dinheiro sobre o vermelho - e, de
repente, voltei a mim! E uma única vez em toda aquela
noite, enquanto durou o jogo, o frio do medo me
perpassou o corpo e se refletiu num tremor das pernas e
das mãos. Horrorizado, senti e tive instantaneamente
consciência do que significava para mim, naquele
instante, perder! Toda a minha vida estava em jogo ali!
- Rouge! (“Vermelho!”. (N. do T.)) - gritou o crupiê. E
eu cobrei alento: um formigamento de fogo percorreu-me
o corpo. Pagaram-me em papel-moeda; eram, ao todo,
quatro mil florins e oitenta friedrichsdors! (Então eu
ainda era capaz de acompanhar as contas.) Em seguida,
estou lembrado, apostei dois mil florins, novamente
sobre os doze números do meio, e perdi; apostei o meu
ouro e os oitenta friedrichsdors, e tornei a perder. O furor
tomou conta de mim: agarrei os últimos dois mil florins,
que me sobravam, e coloquei-os sobre os doze primeiros
números - de qualquer jeito, ao acaso, sem nenhum
cálculo! Aliás, houve um instante de expectativa,
semelhante talvez, pela impressão causada, àquela que
tivera Mme, Blanchard, quando ela, em Paris, se
precipitou do balão ao solo (Marie Blanchard (1778-
1819), esposa de um dos primeiros aeronautas, morreu
no incêndio de um balão. Todavia, não se precipitou ao
solo, como diz o autor, mas sobre o telhado de uma casa.
(N. do T.)).
- Quatre! (“Quatro!”. (N. do T.)) - gritou o crupiê. Ao
todo, contando-se o lance anterior, fiquei novamente
com seis mil florins. Ostentava já um ar de triunfo, não
temia mais nada, nada, e atirei quatro mil florins sobre o
preto. Umas nove pessoas apressaram-se, depois de
mim, a apostar também no preto. Os crupiês
entreolhavam-se, cochichavam. Em torno, havia gente
conversando e esperando pelo resultado.
Saiu o preto. A partir daí, não lembro mais as contas,
nem a ordem das minhas jogadas. Lembro-me apenas,
como em sonho, de que cheguei a ganhar, parece, uns
dezesseis mil florins; de repente, com três lances
infelizes, deixei escapar doze mil; depois, empurrei os
derradeiros quatro mil para o passe (mas, nessa ocasião,
não estava mais sentindo quase nada; apenas esperava,
maquinalmente, sem refletir), e tornei a ganhar; depois,
ganhei mais quatro vezes seguidas. Tudo quanto posso
recordar é que amontoava florins aos milhares; lembro-
me também de que estavam saindo, com maior
frequência que os demais números, os doze centrais, a
que me aferrei. Apareciam de certo modo regular:
invariavelmente, umas três ou quatro vezes seguidas,
depois desapareciam por dois lances, e tornavam a
aparecer três ou quatro vezes consecutivas. Esta
surpreendente regularidade ocorre às vezes em faixas - e
é isso justamente que deixa desconcertados os jogadores
que anotam os lances e ficam fazendo cálculos de lápis
na mão. E que terríveis ironias da sorte acontecem às
vezes aqui!
Creio que decorrera, no máximo, meia hora desde a
minha chegada. De repente, o crupiê comunicou-me que
eu ganhara trinta mil florins e que, não se
responsabilizando a banca, de cada vez, por quantia
superior a esta, a roleta ficaria fechada até a manhã
seguinte. Juntei todo o meu ouro, atulhei os bolsos,
apanhei todas as cédulas, e, no mesmo instante, passei
para outra sala, onde havia também uma roleta; a
multidão seguiu-me, numa torrente; ali, imediatamente
abriram lugar para mim, e eu me lancei a apostar
novamente, ao acaso e sem cálculos. Não compreendo o
que me salvou!
Aliás, às vezes, a ideia do cálculo passava-me
velozmente pela cabeça. Aferrava-me a certos números e
chances, mas logo os abandonava e tornava a apostar,
quase inconsciente. Devia esta muito distraído; lembro-
me de que os crupiês, em diversas ocasiões, corrigiram-
me o jogo. Eu cometia erros grosseiros. Tinha as
têmporas alagadas de suor e as mãos trêmulas. Pulavam
também para perto de mim alguns polaquinhos,
oferecendo-me os seus serviços, mas eu não ouvia
ninguém. A boa estrela não me abandonava! De repente,
ressoaram em volta conversas em voz alta e risos.
“Bravo, bravo!” - gritavam todos, alguns até bateram
palmas. Também ali arrebatei trinta mil florins, e a banca
foi novamente fechada até o dia seguinte!
- Vá embora, vá embora - murmurou-me alguém à
direita. Era não sei que judeu de Frankfurt; estivera o
tempo todo ao meu lado, e, parece, ajudou-me às vezes
no jogo.
- Vá embora, pelo amor de Deus! - murmurou outra
voz, junto ao meu ouvido esquerdo. Lancei um olhar de
relance. Era uma senhora vestida com muita modéstia e
correção, tendo perto de trinta anos, cujo rosto fatigado,
de certa palidez doentia, ainda lembrava uma anterior e
magnífica beleza. Nesse momento, eu enchia os bolsos
de notas, que simplesmente amassava, e reunia o ouro
que sobrara sobre a mesa. Apanhando o último rolo de
cinquenta friedrichsdors, consegui passá-lo, às ocultas,
para as mãos da senhora pálida; senti uma vontade
louca de fazer isso, e aqueles dedinhos finos, lembro-me,
apertaram-me fortemente a mão, em sinal do mais vivo
reconhecimento. Tudo isso aconteceu num átimo.
Tendo recolhido tudo, passei para o trente et
quarante.
No trente et quarante senta-se um público
aristocrático. Não é jogo de roleta, mas de cartas. Ali a
banca responde por cem mil táleres de cada vez. A
aposta maior é também de quatro mil florins. Eu não
conhecia absolutamente o jogo e não estava a par de
quase nenhum lance, fora o vermelho e o preto, que ali
também havia. Foi justamente a eles que me agarrei.
Todo o público do cassino se aglomerou em torno de
mim. Não me lembro se, nessa ocasião, pensei uma vez
sequer em Polina. Sentia então uma volúpia irresistível
em agarrar e arrebanhar as cédulas, cujo monte
aumentava diante de mim.
Realmente, dir-se-ia que o destino me impelia. Dessa
feita, como que de propósito, ocorreu certo episódio,
que, aliás, se repete frequentemente no jogo. Acontece
ligar-se a sorte, por exemplo, ao vermelho e não o deixar
umas dez, até quinze vezes seguidas. Eu ouvira dizer,
ainda na antevéspera, que o vermelho saíra vinte vezes
seguidas, na semana anterior; semelhante fato, na
roleta, nem seria sequer lembrado, mas ali era narrado
com espanto. Está claro que, numa ocorrência assim,
todos abandonam imediatamente o vermelho e, depois
de dez vezes, por exemplo, quase ninguém mais se
decide a apostar nele. Mas nenhum jogador experiente
aposta então também no preto, que fica em frente do
vermelho. Um jogador experiente sabe o que significa o
“capricho do acaso”. Por exemplo, seria de esperar que,
depois de dezesseis lances no vermelho, o décimo
sétimo recaísse infalivelmente no preto. Os novatos
lançam-se, em tropel, a essa espécie de jogo, duplicam e
triplicam as paradas e sofrem perdas imensas.
Mas, por certo capricho estranho, tendo notado que o
vermelho saíra sete vezes seguidas, aferrei-me a ele de
propósito. Estou certo de que o amor-próprio foi em parte
culpado dessa minha decisão; eu queria assombrar os
espectadores com a minha louca temeridade, e - oh,
estranha sensação! - estou lembrado nitidamente de
que, sem qualquer incitação do amor-próprio, apoderou-
se de mim uma ânsia terrível de risco. É possível que,
tendo passado por tantas sensações, a alma não se
satisfaça, mas apenas se irrite com elas e exija novas
sensações, cada vez mais intensas, até ficar
definitivamente extenuada. E, realmente, não estou
mentindo: se o regulamento do jogo permitisse apostar
de uma vez cinquenta mil florins, eu o faria, certamente.
Em torno de mim, gritava-se que era uma loucura, que o
vermelho já saíra pela décima quarta vez!
- Monsieur a gagné déjà cent mille florins (“O senhor
já ganhou cem mil florins!. (N. do T.)) - ressoou uma voz
ao meu lado.
Voltei a mim, de chofre. Como? Eu ganhara, naquela
noite, cem mil florins! E para que precisava de mais?
Atirei-me sobre as cédulas, enfiei-as no bolso,
amassando-as e sem contar, arrebanhei todo o meu
ouro, todos os rolos de moedas, e corri para fora do
cassino. Em torno, quando eu atravessava as salas, todos
riam, olhando para os meus bolsos atulhados e para o
meu passo, irregular sob o peso de tanto ouro. Penso que
devia pesar muito mais de meio pud (Pud: medida russa
de peso, correspondente a 16,38 kg. (N. do T.)). Algumas
mãos se estenderam para mim; distribuí ouro aos
punhados. Dois judeus detiveram-me à saída.
- O senhor é corajoso! É muito corajoso! - disseram-
me. - Mas parta amanhã de manhã, sem falta, o quanto
antes, senão vai perder tudo, tudo...
Não os escutei. A alameda estava escura, não se
enxergava um palmo à frente do nariz. Faltava perto de
meia versta para chegar ao hotel. Nunca temi ladrões ou
salteadores, nem mesmo em criança; e agora também
não pensava neles. Aliás, não me lembro em que
pensava, pelo caminho; tinha a cabeça oca. Sentia
apenas certa delícia terrível - a embriaguez do sucesso,
do triunfo, do poder - não sei como expressar-me. A
imagem de Polina perpassava também diante de mim:
lembrava-me e tinha consciência de que estava então
indo para junto dela, encontrá-la-ia num instante,
contaria tudo, mostraria... mas quase esquecera já as
suas palavras, e por que fora eu ao cassino; e todas
aquelas sensações recentes, que remontavam a hora e
meia, quando muito, pareciam-me algo acontecido em
tempos distantes, algo findo, envelhecido, superado, e
que não valia a pena lembrar mais, porque tudo
começaria novamente. Quase no fim da alameda,
assaltou-me de súbito o temor: “E se eu for agora morto
e roubado?”. A cada passo, o meu medo duplicava. Eu
corria, quase. De repente, no fim da alameda, todo o
nosso hotel apareceu iluminado por inúmeras lâmpadas.
Graças a Deus, em casa!
Cheguei correndo ao meu andar e abri bruscamente a
porta. Polina estava ali, sentada no meu divã, diante da
vela acesa, os braços cruzados. Olhou-me perplexa; sem
dúvida, naquele instante eu devia ter um ar bem
estranho. Detive-me diante dela e comecei a despejar
sobre a mesa todo aquele monte de dinheiro.
XV
Lembro-me de que ela me fitava o rosto com uma
fixidez terrível, mas sem se mover do lugar, não
mudando sequer de posição.
- Ganhei duzentos mil francos! - exclamei, despejando
o último rolo. O imenso monte de notas e rolos de
moedas de ouro ocupou toda a mesa e eu não podia
mais afastar os olhos dali; havia instantes em que me
esquecia completamente de Polina. Ora me punha a
arrumar aquelas pilhas de notas, juntando-as, ora reunia
o ouro no montão comum; ou, então, deixava tudo e me
punha a caminhar, pensativo, com passos rápidos, pelo
quarto; depois, de súbito, aproximava-me novamente da
mesa e contava o dinheiro mais uma vez. De repente,
como se voltasse a mim, atirei-me em direção à porta e
fechei-a depressa, dando duas voltas à chave. Em
seguida, detive-me, pensativo, diante da minha maleta.
- Deixo isto na mala até amanhã? - perguntei,
voltando-me de repente para Polina, lembrando-me de
chofre da sua presença. Ela estava sentada no mesmo
lugar, sempre sem se mover, mas observava-me com
atenção. Era de certo modo estranha a expressão do seu
rosto; uma expressão que me desagradou! Não me
enganarei se disser que nela havia ódio.
Acerquei-me dela rapidamente.
- Polina, aqui estão vinte e cinco mil florins; isto
significa cinquenta mil francos, mais até. Leve-os e atire-
os amanhã no rosto dele.
Não me respondeu.
- Se quiser, eu mesmo vou levá-los amanhã de
manhã, bem cedo. Está bem?
De repente, pôs-se a rir. Riu durante muito tempo.
Eu a olhava surpreso e com um sentimento de aflição.
Aquele riso era muito parecido com outro, recente,
muitas vezes repetido, a risada com que zombava de
mim, e que lhe vinha sempre no decorrer das minhas
mais arrebatadas declarações de amor. Finalmente,
parou e tornou-se soturna; examinava-me com
severidade, de soslaio.
- Não aceitarei o seu dinheiro - disse com desprezo.
- Como? Que é isso? - gritei. - Afinal, Polina, por quê?
- Não recebo dinheiro de graça.
- Ofereço-lhe como amigo; ofereço-lhe a minha vida.
Lançou-me um olhar prolongado, inquiridor, como se
quisesse traspassar-me com ele.
- Você está pagando caro demais - disse ela com um
sorriso. - A amante de Des Grieux não vale cinquenta mil
francos.
- Polina, como pode falar assim comigo?! - exclamei
com censura. - Sou acaso Des Grieux?
- Eu o odeio! Sim... sim!... Não o amo mais que a Des
Grieux - gritou, de repente, os olhos dardejantes.
Nesse momento, escondeu de súbito o rosto entre as
mãos, e foi tomada por um ataque de histeria. Lancei-me
na sua direção.
Compreendi que algo lhe sucedera na minha
ausência. Parecia completamente fora de si.
- Compra-me! Queres? Queres? Por cinquenta mil
francos, como Des Grieux? - deixou escapar, entre
soluços convulsivos. Eu a envolvi com os braços, beijava-
lhe as mãos, os pés, caí de joelhos diante dela.
O ataque de histeria estava chegando ao fim. Pôs as
mãos nos meus ombros e examinava-me fixamente;
parecia querer ler algo no meu rosto. Escutava-me, mas,
aparentemente, não ouvia as minhas palavras. Uma
expressão preocupada e certo ar pensativo
transpareciam-lhe no rosto. Eu tinha medo por ela;
parecia-me realmente que o seu espírito se turvava. Em
certos momentos, atraía-me docemente; um sorriso
confiante espalhava-se então pelo seu rosto; de súbito,
repelia-me e punha-se a prestar atenção em mim, o olhar
novamente ensombrecido.
De repente, começou a abraçar-me.
- Tu me amas, me amas, não é verdade? - disse. - Bem
que tu, bem que tu... querias lutar com o barão, por
minha causa!
E, de súbito, soltou uma gargalhada, como se algo
engraçado e agradável lhe tivesse ocorrido de repente.
Chorava e ria, ao mesmo tempo. Que fazer? Eu próprio
como que ardia em febre. Lembro-me de que ela
começou a dizer-me algo, mas não pude compreender
quase nada. Era não sei que delírio, uma espécie de
balbucio - como se ela quisesse contar-me algo o mais
rapidamente possível - um delírio interrompido às vezes
com o riso mais alegre, e que estava começando a
assustar-me.
- Não, não, és querido, querido! - repetia. - És muito
fiel! - Punha-me novamente as mãos nos ombros,
novamente fixava o olhar em mim e continuava
repetindo: - Tu me amas... amas... Vais amar-me?
Eu não afastava dela os olhos; nunca a vira em tais
acessos de ternura e amor; é verdade que, certamente,
era um delírio, mas... notando o meu olhar apaixonado,
ela começava de repente a sorrir com malícia; sem mais
nem menos, punha-se de supetão a falar de Mister
Astley.
Aliás, desviava incessantemente o assunto para Mister
Astley (sobretudo, quando se esforçara, pouco antes,
para contar-me algo), mas eu não podia apreender
inteiramente o que ela pretendia dizer; parece até que se
ria dele; repetia constantemente que ele permanecia à
espera... que talvez eu ignorasse estar ele, com toda a
certeza, debaixo da minha janela.
- Sim, sim, debaixo da janela. Ora, abre, olha, olha,
está ali, ali!
E empurrava-me para a janela; mal eu esboçava,
porém, um movimento, ela soltava uma gargalhada e eu
me detinha a seu lado; então, atirava-se a mim e me
abraçava.
- Nós vamos? Partiremos amanhã, não é verdade? -
ocorria-lhe de repente, com inquietação. - Bem... (e ela
ficava pensativa) bem, vamos alcançar a vovó, que
achas? Creio que a alcançaremos em Berlim. Que dirá ela
quando a alcançarmos e assim que nos vir? E Mister
Astley?... Bem, este não se vai atirar do Schlangenberg,
não achas? (Deu uma gargalhada.) Bem, escuta: sabes
para onde ele viajará no próximo verão? Quer ir ao Polo
Norte, para pesquisas científicas, e convidou-me a viajar
com ele, ah, ah, ah! Diz que nós, os russos, sem os
europeus, não sabemos nada, nem somos capazes de
nada... Mas ele é bom também! Tu sabes, ele desculpa o
general; diz que Blanche... que a paixão... bem, não sei,
não sei - repetiu de repente, como que falando demais e
perdendo o fio do que dizia. - Pobres que eles são, como
tenho pena deles, e da vovó também... Bem, escuta,
escuta, como vais matar Des Grieux? E é possível, é
possível que realmente pensasses em matá-lo? Oh, tolo!
Podias realmente pensar que eu te deixaria lutar com
Des Grieux? E não matarás também o barão -
acrescentou, rindo de chofre. - Oh, como estavas ridículo,
naquele dia, com o barão! eu os observava, a ambos, do
meu banco; e como relutaste, quando eu te mandei!
Como ri então, como ri então! - acrescentou, entre
gargalhadas.
E, de repente, tornava a beijar-me e a abraçar-me, e
apertava de novo, terna e apaixonadamente, o seu rosto
contra o meu. Eu não pensava em mais nada e nada
mais ouvia. A cabeça girava-me.
Penso que eram quase sete da manhã, quando voltei
a mim; o sol iluminava o quarto. Polina estava sentada ao
meu lado e examinava tudo em torno, de modo estranho,
como se estivesse saindo das trevas e coordenando as
recordações. Ela também acabava de acordar e olhava
fixamente para a mesa onde estava o dinheiro. A cabeça
pesava-me e doía. Tentei segurar a mão de Polina; ela
empurrou-me de repente e ergueu-se de um salto do
divã. O dia nascente estava sombrio; chovera antes do
amanhecer. Acercou-se da janela, abriu-a, pôs fora a
cabeça e o peito e, apoiando-se nos braços, os cotovelos
sobre a quina da janela, ficou assim uns três minutos,
sem se voltar para mim e sem ouvir o que eu lhe dizia.
Assustado, pensei: “O que será agora e como acabará
isto?”. De súbito, ergueu-se da janela, aproximou-se da
mesa e, olhando-me com uma expressão de ódio infinito,
os lábios trêmulos de raiva, disse-me: - Bem, devolve-me
agora os meus cinquenta mil francos!
- Novamente, Polina, novamente! - comecei.
- Ou mudaste de ideia? Ah, ah, ah! Talvez já estejas
lastimando?
Estavam sobre a mesa vinte e cinco mil florins,
contados ainda na véspera; apanhei-os, entregando-os a
Polina.
- Agora já são meus, não é mesmo? Estamos
entendidos, não é verdade? - perguntou-me ela raivosa,
segurando o dinheiro.
- Sempre foram teus - disse eu.
- Pois bem, aqui tens os teus cinquenta mil francos! -
sacudiu o braço e jogou-os contra mim. O maço bateu-
me dolorosamente no rosto e espalhou-se no chão. Feito
isso, Polina precipitou-se para fora do quarto.
Eu sei, naturalmente, que, naquele momento, ela não
estava em seu juízo perfeito, embora eu não compreenda
esse desvario passageiro. É verdade que até hoje, um
mês depois, ela ainda está doente. Qual foi, no entanto,
a causa de semelhante estado e, sobretudo, daquele
disparatado gesto? Orgulho ofendido? Desespero pelo
fato de se ter decidido a vir até o meu quarto? Ter-lhe-ia
eu dado a impressão de que me envaidecia da minha
felicidade e de que, do mesmo modo que Des Grieux,
queria na realidade livrar-me dela, presenteando-a com
cinquenta mil francos? Mas não houve nada disso, diz-me
a consciência. Creio que o acontecido deveu-se, em
parte, à sua vaidade: foi a vaidade que a levou a não
acreditar em mim e a ofender-me, embora ela própria,
Polina, talvez sentisse tudo isso de modo vago e
impreciso. Nesse caso, eu, naturalmente, paguei por Des
Grieux e tornei-me culpado, talvez, mas sempre grande
culpa. É verdade que tudo aquilo não passava de delírio;
é verdade, também, que eu sabia que ela delirava e...
que não dei atenção a esta circunstância. Será que agora
ela não me perdoará isso? Sim, agora; mas, e naquela
noite, naquela noite? Certamente, o seu delírio e a sua
doença não eram de tal modo intensos que ela não se
desse nenhuma conta do que fazia, quando foi ao meu
quarto com a carta de Des Grieux. Logo, sabia o que
estava fazendo.
Apressadamente e de qualquer jeito, joguei todas as
minhas notas e o monte de ouro sobre a cama, cobri
tudo e saí do quarto, uns dez minutos depois de Polina.
Estava certo de que ela correra para o seu quarto e quis
esgueirar-me até o apartamento deles e interrogar a
babá, na saleta de entrada, sobre a saúde da senhorita.
Qual não foi, porém, a minha surpresa quando,
encontrando na escada a babá, esta me disse que Polina
ainda não voltara e que ia até procurá-la no meu quarto.
- Acaba de sair de lá - disse eu - faz uns dez minutos.
Aonde poderia ter ido?
A babá dirigiu-me um olhar de censura.
Enquanto isso, a notícia do ocorrido já estava
circulando pelo hotel. No aposento dos criados e na sala
do Oberkellner murmurava-se que, às seis da manhã, a
Fräulein (“Senhorita, moça”. Em alemão no original. (N.
do T.)) saíra do hotel, debaixo de chuva, e correra em
direção do Hôtel d’Angleterre. Pelas palavras e alusões
deles, percebi que já sabiam ter ela passado a noite no
meu quarto. Aliás, já se faziam comentários a respeito de
toda a família do general: soube-se que, na véspera, ele
delirara e chorara de modo tal que todo o hotel ouvira.
Dizia-se também que a avó era mãe dele, vinda da
Rússia exclusivamente para impedir o casamento do filho
com Mlle. de Cominges, e deserdá-lo em caso de
desobediência; e, como ele realmente lhe
desobedecesse, a condessa perdera de propósito, sob as
vistas dele, todo o seu dinheiro na roleta, para que,
desse modo, o general já não recebesse nada. “Diese
Russen” (“Esses russos!”. Em alemão no original. (N. do
T.)) - repetia o Oberkellner, balançando a cabeça com
indignação. Outros riam. O Oberkellner preparava a
conta. Já se sabia do meu ganho; Karl, o criado de serviço
no meu pavimento, foi o primeiro a felicitar-me. Mas eu
tinha mais em que pensar. Corri para o Hôtel
d’Angleterre.
Era cedo ainda; Mister Astley não recebia ninguém; ao
saber, porém, que era eu, saiu para o corredor e parou
na minha frente, e, em silêncio, fixou-me com o seu olhar
de chumbo, à espera do que eu dissesse. Interroguei-o
imediatamente sobre Polina.
- Está doente - respondeu Mister Astley, continuando a
olhar-me fixamente.
- Quer dizer que ela está realmente no seu
apartamento?
- Oh, sim está comigo.
- Nesse caso, o senhor... o senhor pretende conservá-
la consigo?
- Oh, sim, pretendo.
- Isso provocará escândalo, Mister Astley; não se pode
fazer isso. Além disso, ela está muito doente; o senhor
notou?
- Oh, sim, eu notei e já disse ao senhor que ela está
doente. Se não fosse essa doença, ela não teria passado
a noite no quarto do senhor.
- Quer dizer que o senhor sabe disso, também?
- Sim, sei disso. Ela vinha para cá, ontem, e eu a teria
levado para junto de uma parenta; mas, como estava
doente, enganou-se e foi ter com o senhor.
- Quem diria! Bem, felicito-o, Mister Astley. A
propósito, acaba de me sugerir uma ideia: não passou o
senhor toda a noite parado sob a minha janela? Miss
Polina obrigou-me a noite inteira a abri-la e verificar se o
senhor não estava embaixo, e ria muito.
- Será possível? Não, não fiquei embaixo da sua
janela; mas esperei no corredor e caminhei pelas
redondezas.
- Mas é preciso tratá-la, Mister Astley.
- Oh, sim, já chamei o médico, e, se ela morrer, o
senhor me prestará contas da sua morte.
Fiquei surpreso.
- Perdão, Mister Astley: o que pretende o senhor?
- É verdade que o senhor ganhou, ontem, duzentos
mil táleres?
- Ao todo, cem mil florins apenas.
- Está aí! Parta então para Paris, hoje de manhã.
- Para quê?
- Todos os russos, quando têm dinheiro, vão a Paris -
explicou Mister Astley, com um tom de voz de quem
estivesse lendo num livro.
- E que vou fazer em Paris, agora no verão? Eu a amo,
Mister Astley! O senhor mesmo sabe disso.
- Será? Estou convencido do contrário. Além disso,
ficando aqui, o senhor, certamente, perderá tudo e não
terá com que viajar a Paris. Mas, adeus, estou
plenamente convencido de que o senhor viajará hoje a
Paris.
- Está bem, adeus, mas eu não irei a Paris. Pense,
Mister Astley, sobre o que sucederá agora ao nosso
grupo. Numa palavra, o general... e agora, esta aventura
com Miss Polina; a notícia se espalhará por toda a cidade.
- Sim, por toda a cidade; quanto ao general, creio que
não se preocupa com isso; tem mais em que pensar.
Ademais, Miss Polina tem pleno direito de viver onde
quiser. No se refere a esta família, pode-se dizer com
exatidão que não existe mais.
Enquanto caminhava, ria-me da estranha certeza que
tinha aquele inglês, de que eu viajaria a Paris. “Contudo,
ele quer matar-me a tiro, num duelo - pensei - se
Mademoiselle Polina morrer... Isto é que se chama um
caso!” Juro que eu tinha pena de Polina, mas, fato
curioso, a partir do momento em que, na véspera, me
encostara à mesa de jogo e começara a arrebanhar os
maços de notas, o meu amor passara como que para um
segundo plano. Digo isto agora; mas, naquela ocasião, eu
ainda não percebia tudo isso claramente. Será que sou
mesmo um jogador? Será que realmente... amei Polina
de modo tão estranho? Não, eu a amo até hoje, Deus é
testemunha! E quando eu saí do hotel de Mister Astley,
de regresso a meu quarto, sofria sinceramente e
acusava-me. Mas... mas, então, deu-se comigo um
episódio muito estúpido e estranho.
Dirigia-me apressadamente para o apartamento do
general, quando, ali perto, abriu-se uma porta e alguém
me chamou. Era Mme. veuve Cominges, que me
chamava a mando de Mlle. Blanche. Entrei.
Elas ocupavam dois quartos. Ouviam-se, do quarto de
dormir, os risos e gritos de Mlle. Blanche. Estava-se
levantando.
- Ah, c’est lui! Viens donc, bêta! É verdade que tu as
gagné une montagne d’or et d’argent? J’aimerais mieux
l’or. (“Ah, é ele! Vem cá, boboca! [...] que tu ganhaste
uma montanha de ouro e prata? Eu preferiria o ouro”. (N.
do T.)) - Ganhei - respondi rindo.
- Quanto?
- Cem mil florins.
- Bibi, comme tu es bête. Mas entra aqui, eu não estou
ouvindo nada. Nous ferons bombance, n’est ce pas?
(“Como és tolo, Bibi! [...] Vamos farrear, não é verdade?.
(N. do T.)) Entrei no quarto dela. Estava à vontade,
deitada sob uma colcha de cetim cor-de-rosa, de onde
emergiam uns ombros morenos, sadios, admiráveis,
desses que se veem somente em sonho, mal cobertos
com uma camisola de cambraia, ornada de rendas
alvíssimas e que combinava admiravelmente com a sua
pele morena.
- Mon fils, as-tu du coeur? - exclamou ela, vendo-me, e
soltou uma gargalhada. Ria sempre com muita alegria e,
às vezes, até com sinceridade.
- Tout autre... - comecei, parafraseando Corneille. (“És
corajoso, meu filho? [...] Um outro...”. Palavras de
personagens de Cid, tragédia de Corneille. A alusão a
Corneille constitui paródia evidente a um episódio de
Manon Lescaut (Observação do anotador da edição russa
das Obras reunidas de Dostoiévski). (N. do T.)) - Olha,
vois-tu - pôs-se ela de repente a tagarelar - em primeiro
lugar, procura as minhas meias e ajuda-me a calçá-las, e,
em segundo, si tu n’es pas trop bête, je te prends à Paris
(“vê [...] se não és demasiadamente estúpido, levo-te a
Paris!. (N. do T.)) Sabes? Vou partir daqui a pouco.
- Daqui a pouco?
- Dentro de meia hora.
Realmente, estava tudo arrumado. Achavam-se ali,
prontas, todas as suas malas e pertences. O café já fora
servido havia muito.
- Eh bien! Queres? Tu verras Paris. Dis donc qu'est ce
que c’est un outchitel? Tu étais bien bête, quand tu étais
outchitel. (“Então! [...] Verás Paris. Conta-me o que é um
utchítiel (em russo, professor primário ou secundário).
Eras bem tolo, quando eras utchítiel”. (N. do T.)) Mas,
onde estão as minhas meias? Calça-as, homem!
Estendeu-me um pezinho realmente encantador,
moreno, miúdo, mas não deformado como quase todos
esses pezinhos que parecem tão gentis dentro dos
sapatos. Comecei a rir e pus-me a calçar-lhe a meinha de
seda. Enquanto isso, Mlle. Blanche, sentada na cama,
tagarelava sem parar.
- Eh bien, que feras-tu, si je te prends avec? Em
primeiro lugar, je veux cinquante mille francs. Você os
dará em Frankfurt. Nous allons à Paris; lá, vamos viver
juntos, et je te ferai voir des étoiles en plein jour (“Pois
bem, o que farás, se te levo comigo? [...] quero
cinquenta mil francos... [...] Vamos a Paris [...] e eu te
farei ver estrelas em pleno dia”. (N. do T.)). Vais ver
mulheres como nunca viste. Escuta...
- Espera! Vou entregar-te assim cinquenta mil francos,
e que me ficará então?
- Et cent cinquante mille francs, já esqueceste? Além
disso, concordo em viver no teu apartamento um mês,
dois, que sais-je! Naturalmente, vamos gastar em dois
meses esses cento e cinquenta mil francos. Estás
vendo? Je suis bonne enfant (“E cento e cinquenta mil
francos [...] que sei eu! [...] Sou boa menina [...] mas tu
verás estrelas”. (N. do T.), digo-te isto desde já; mais tu
verras des étoiles.
- Como? tudo em dois meses?
- Ora, como! Isso te deixa horrorizado? Ah! vil esclave!
Mas não sabes que um mês de vida assim é melhor que
toda a tua existência? Um mês - et après le déluge! Mais
tu ne peux comprendre, va! Anda, vai embora, vai
embora, não mereces isso! Ai, que fais-tu? (“e depois, o
dilúvio! Mas tu não podes compreender, anda! [...] o que
fazes?”. (N. do T.))
Naquele momento, eu estava calçando a outra meia,
mas não pude conter-me e beijei-lhe o pezinho. Retirou-o
violentamente e pôs-se a bater-me no rosto com a
pontinha do pé. Finalmente, mandou-me embora de uma
vez.
- Eh bien, mon outchitel, je t’attends, si tu veux; (“Pois
bem, meu utchítiel, eu te espero, se queres”. (N. do T.)
vou partir daqui a um quarto de hora! - gritou-me ela.
Ao voltar a meu quarto, sentia-me tonto, como se
tivesse rodado muito. Eu não tinha culpa se Mlle. Polina
me atirara à cara um maço de notas e, ainda na véspera,
preferira Mister Astley, ora essa! Algumas dessas notas
achavam-se ainda espalhadas pelo chão; apanhei-as;
nesse instante, abriu-se a porta e apareceu o Oberkellner
em pessoa (antes, não queria sequer olhar para mim),
com um convite: não queria eu mudar-me para baixo,
para o excelente apartamento em que ainda há pouco
estivera hospedado o Conde V.?
Fiquei refletindo, imóvel.
- A conta! - gritei. - Vou partir agora, daqui a dez
minutos. - “Se é para ir a Paris, então vamos de uma vez!
- pensei. - Sem dúvida, estava escrito!”
Um quarto de hora depois, viajávamos realmente os
três num compartimento reservado: eu, Mlle. Blanche e
Mme. veuve Cominges. Olhando-me, Mlle. Blanche
soltava gargalhadas que raiavam pela histeria. Veuve
Cominges fazia o mesmo; não posso dizer que me
sentisse alegre. Minha vida rompia-se em duas, mas, a
partir da véspera, acostumara-me a apostar tudo numa
jogada. Talvez fosse realmente verdade que eu não
suportara o dinheiro e perdera a cabeça. Peut-être, je ne
demandais pas mieux. (“Talvez eu não pedisse coisa
melhor!. (N. do T.)) Tinha a impressão de que os cenários
eram substituídos provisoriamente apenas. “Mas eu
estarei aqui dentro de um mês, e então... então ainda
nos defrontaremos, Mister Astley!” Não, conforme lembro
agora, mesmo então eu sentia uma terrível tristeza,
embora risse a mais não poder com essa bobinha da
Blanche.
- Mas, o que queres? Como és estúpido! Oh, como és
estúpido! - dizia Blanche soltando gritinhos e
interrompendo a risada para começar a invectivar-me
seriamente. - Ora bem, ora bem, vamos gastar os teus
duzentos mil francos, mais tu seras heureux comme un
petit roi (“mas tu serás feliz como um reizinho”. (N. do
T.)); em compensação, eu mesma vou fazer-te o laço de
gravata e apresentar-te a Hortense. E quando tivermos
gasto o nosso dinheiro, virás de novo aqui e, mais uma
vez, vais rebentar a banca. O que te disseram os judeus?
O principal é a coragem, e tu a tens, e ainda mais de
uma vez hás de me levar dinheiro a Paris. Quant à moi, je
veux cinquante mille francs de rente et alors... (“Quanto
a mim, quero cinquenta mil francos de renda, e então...”.
(N. do T.)) - E o general? - perguntei-lhe.
- O general, tu mesmo sabes, vai diariamente, a esta
hora, procurar um buquê para mim. Desta vez, de
propósito, ordenei-lhe que arranjasse as flores mais
raras. O coitado, quando voltar, verá que o passarinho
bateu as asas. Há de voar atrás de nós, vais ver. Ah, ah,
ah! Ficarei muito contente. Em Paris, ele me será útil;
Mister Astley há de pagar a conta dele aqui...
Aí está como parti então para Paris.
XVI
Que dizer de minha estada em Paris? Foi, certamente,
delírio e extravagância. Vivi em Paris apenas pouco mais
de três semanas, e, nesse prazo, deu-se totalmente cabo
dos meus cem mil francos. Falo apenas de cem mil; os
cem mil restantes eu os dei a Mlle. Blanche em dinheiro
sonante: cinquenta mil em Frankfurt e os outros
cinquenta mil em Paris, três dias depois, em forma de
nota promissória, pela qual, no entanto, também lhe dei
dinheiro, uma semana depois, “et les cent mille francs
qui nous restent, tu les mangeras avec moi, mon
outchitel” (“e, quanto aos cem mil francos que nos
restam, vais comê-los comigo, meu utchítiel”. (N. do T.))
Ela me chamava constantemente de utchítiel. É difícil
imaginar no mundo algo mais calculista, avarento e
mesquinho que as pessoas da categoria de Mlle. Blanche.
Mas isso no que se refere a seu próprio dinheiro. Quanto
aos meus cem mil francos, declarou-me ela depois, com
toda simplicidade, que necessitava deles para a sua
instalação em Paris. “Agora situei-me de uma vez por
todas num nível digno, e, por muito tempo, ninguém me
desbancará dessa posição. Pelo menos, tomei
providências neste sentido”, acrescentou.
Aliás, eu quase não vi a cor daqueles cem mil; o
dinheiro ficava sempre com ela, e, no meu porta-níqueis,
que ela própria examinava diariamente, nunca havia
mais de cem francos, mas quase sempre menos.
- Ora, para que você precisa de dinheiro? - dizia ela,
às vezes, com o ar mais inocente; e eu não discutia.
Em compensação, com aquele dinheiro ela ajeitou
bem razoavelmente o seu apartamento e, quando me
conduziu depois para a minha nova morada, mostrou-me
os quartos, dizendo: - Veja o que se pode fazer com
economia e bom gosto, mesmo com recursos realmente
miseráveis.
Essa miséria, porém, custara exatamente cinquenta
mil francos. Com os cinquenta mil restantes, ela adquiriu
uma carruagem e cavalos, e, além disso, demos dois
bailes, isto é, duas reuniões à noite, aos quais
compareceram Hortense, Lisette, Cléopâtre, mulheres
admiráveis em muitos e muitos sentidos e, mesmo, nada
feias. Nessas duas reuniões, fui forçado a desempenhar o
papel bem estúpido de anfitrião, a receber e distrair
comerciantezinhos enriquecidos e imbecis, de uma
ignorância e falta de vergonha inconcebíveis, toda
espécie de tenentes, lastimáveis autorezinhos e pobres
escribas de jornal, que chegaram todos em seus fraques
da moda, com luvas cor de palha, e com um amor-
próprio e uma arrogância que seriam simplesmente
inconcebíveis mesmo em nossa Petersburgo - e isso já é
bastante significativo. Deu-lhes até na veneta zombar de
mim, mas eu embebedei-me com champanhe e fui
estirar-me no quarto dos fundos. Tudo isso era para mim
extremamente abominável.
- C’est un outchitel - dizia de mim Blanche - il a gagné
deux cent mille francs (“É um utchítiel, ganhou duzentos
mil francos”. (N. do T.)), e, sem mim, não saberia como
gastá-los. Depois, vai empregar-se novamente como
outchitel; ninguém sabe de um emprego? É preciso fazer
alguma coisa por ele.
Comecei a recorrer com demasiada frequência ao
champanhe, porque estava sempre muito triste e
caceteado ao extremo. Vivia no meio mais burguês e
mercantil, onde cada sou (Moeda correspondente à
vigésima parte do franco. (N. do T.)) era contado e
recontado. Blanche tinha por mim profundo desamor, nas
duas primeiras semanas percebi isso; é verdade que me
vestia com ostentação e me fazia, pessoalmente, todos
os dias, o laço da gravata, mas, no íntimo, votava-me um
sincero desprezo, ao que eu não prestava a menor
atenção. Triste e melancólico, comecei a frequentar o
Château des Fleurs (“Castelo das Flores”, um café muito
famoso. (N. do T.)), onde, todas as noites, regularmente,
me embebedava e aprendia o cancã (dançado ali da
maneira mais horrível), chegando a adquirir, mesmo,
fama no gênero. Finalmente, Blanche me decifrou: ela
formara, anteriormente, de certo modo, a ideia de que,
enquanto durasse a nossa vida em comum, eu haveria
de andar atrás dela de papelzinho e lápis na mão,
sempre a contar quanto ela gastara, quanto roubara e
quanto gastaria e roubaria ainda. E, naturalmente,
estava certa de que batalharíamos a propósito de cada
dez francos. E, para cada ataque meu previsto por ela
com antecedência, preparou de antemão uma réplica;
mas, não vendo surgir qualquer investida de minha
parte, pôs-se a princípio a retrucar sozinha. De vez em
quando começava a falar com grande ardor; porém,
vendo que eu permanecia calado - o mais das vezes,
estirado no divã e olhando, imóvel, para o teto - chegava,
por fim, a ficar surpresa. No início, julgava que eu fosse
simplesmente estúpido, “un outchitel”, e interrompia
bruscamente as suas explicações, pensando talvez: “Não
passa de um estúpido; não há motivo para indicar-lhe a
pista, se não compreende sozinho”. E lá se ia ela, para
voltar uns dez minutos depois. Isso acontecia quando
fazia as mais extravagantes despesas, completamente
acima das nossas posses: um dia, por exemplo, trocou os
seus cavalos e comprou uma nova parelha por dezesseis
mil francos.
- Bem, e então, Bibi, não estás zangado? - começou
ela, aproximando-se de mim.
- Na-a-ão! Estou enjoa-a-do de você! - disse eu,
afastando-a com o braço, mas isso lhe parecia tão
curioso que imediatamente se sentou a meu lado: -
Sabes? Se me decidi a pagar tanto, foi porque eram
vendidos a preço de ocasião. Podem ser revendidos por
vinte mil francos.
- Acredito, acredito; os cavalos são magníficos; e
agora, estás bem equipada para sair: isso vai ser útil um
dia; bem, chega.
- Então, não está zangado?
- E por quê? É inteligente da tua parte procurar
adquirir algumas coisas que te são indispensáveis. Tudo
isso há de ser útil mais tarde. Estou vendo que tens
realmente necessidade de te colocares nesse nível; de
outro modo, não se chega a ter um milhão. No caso, os
nossos cem mil francos são apenas um início, uma gota
no mar.
Blanche esperava tudo de mim, menos semelhantes
reflexões (em lugar de gritos e censuras!); foi como se
caísse do céu.
- Quer dizer que... que tu és assim! Mais tu as l’esprit
pour comprendre! Sais-tu, mon garçon (“Mas és esperto
o bastante para compreender! Sabes, meu menino...”.
(N. do T.)), embora sejas mesmo um outchitel, devias ter
nascido um príncipe! Então, não lamentas que o nosso
dinheiro se gaste depressa?
- Ora, quanto antes, melhor!
- Mais... sais-tu... mais dis donc, és acaso rico ? Mais
sais-tu, desprezas demasiadamente o dinheiro. Qu’est-ce
que tu feras après, dis donc ? (“Mas... sabes!... diga [...]
Mas sabes ? O que vais fazer depois, diga?”. (N. do T.)) -
Après, viajarei para Homburgo e ganharei outros cem mil
francos.
- Oui, oui, c’est ça, c’est magnifique! E eu sei que hás
de ganhá-los sem falta e que os trarás para cá. Dis donc,
acabarás fazendo com que eu te ame de verdade. Eh
bien, por seres assim, vou amar-te todo este tempo e não
te farei nenhuma infidelidade. Sabes? Até agora, embora
não te amasse, parce que je croyais que tu n’est qu’un
outchitel (quelque chose comme un laquais, n’est-ce
pas?), apesar de tudo, conservei-me fiel a ti, parce que je
suis bonne fille (“Sim, sim, é isso, é magnífico! [...] Diga
então [...] Pois bem [...] porque eu acreditava que você
não era mais que um utchítiel (uma espécie de lacaio,
não é verdade?) [...] porque sou boa menina”. (N. do T.)).
- Ora, conta isso a outro! E com Alberto, aquele
oficialzinho puxado a escuro? Então eu não vi, da outra
vez?
- Oh , oh, mais tu es... (“Oh, oh, mas tu és...”. (N. do
T.)) - Ora, mentira, mentira. E pensas que estou zangado
com isso? Pouco me importa; il faut que jeunesse se
passe (“É preciso viver a mocidade”. (N. do T.)). Não há
motivo para que o mandes embora, se era teu antes de
mim e se o amas. Apenas, não lhe dê dinheiro, está
ouvindo?
- Então, não estás zangado por isso também? Mais tu
es un vrai philosophe, sais-tu? Un vrai philosophe! -
gritou, com arrebatamento. - Eh bien, je t’aimerai, je
t’aimerai - tu verras, tu seras content! (“Mas tu és um
verdadeiro filósofo, sabes? Um verdadeiro filósofo! [...]
Pois bem, vou amar-te, vou amar-te - verás, e hás de
ficar contente!”. (N. do T.)) E, realmente, a partir de
então, ela pareceu ligar-se de fato a mim, até com
amizade, e assim decorreram os nossos últimos dez dias.
Não vi as prometidas “estrelas”; mas, em certo sentido,
ela cumpriu realmente a palavra. Além disso,
apresentou-me a Hortense, mulher até extremamente
admirável no seu gênero, e que era chamada, na nossa
roda, de Thérèse-philosophe (Alusão ao romance
licencioso Thérèse-philosophe ou Mémoire pour servir à
l’Histoire de D. Dirray et de Mlle. Erodice la Haye, 1748,
cuja autoria foi atribuída a Montigny ou ao Marquês J. B.
d’Argens. (N. do T.))...
Aliás, não é justo estender-me sobre o assunto; tudo
isso poderia formar uma narrativa à parte, com um matiz
peculiar que não quero introduzir neste relato. O caso
está em que eu desejava ardentemente que o episódio
terminasse o quanto antes. Mas os nossos cem mil
francos foram suficientes, conforme já disse, para quase
um mês, o que me deixou sinceramente surpreso:
Blanche comprou coisas para si pelo menos no valor de
oitenta mil; portanto, não gastamos mais de vinte mil
francos, e... apesar de tudo, isso bastou. Blanche, que,
por fim, já era quase sincera comigo (pelo menos, dizia
algumas coisas que não eram mentira), confessou-me
que, em todo caso, não recairiam sobre mim dívidas que
ela era forçada a contrair.
“Não te dei para assinar faturas e notas promissórias -
dizia-me - porque tinha pena de ti; outra teria feito isso e
te mandaria para a prisão. Está vendo, está vendo como
eu te amei e como sou bondosa! Só este casamento dos
diabos quanto não me custará!”
Realmente, houve um casamento em nossa casa. Foi
celebrado já bem no fim do nosso mês, e deve-se supor
que se consumiram nele os últimos níqueis dos meus
cem mil francos; e o caso terminou assim, isto é, foi
desse modo que se encerrou o nosso mês; em seguida,
aposentei-me formalmente.
Eis como a coisa se deu: uma semana após a nossa
instalação em Paris, chegou o general. Veio diretamente
à procura de Blanche e, desde a primeira visita, quase
ficou morando conosco. É verdade que tinha em alguma
parte um pequeno apartamento. Blanche recebeu-o
alegremente, com gargalhadas e gritinhos, e pôs-se até a
abraçá-lo; as coisas correram de tal modo que ela é que
não o deixava afastar-se de si, e ele teve de acompanhá-
la a toda parte: ao bulevar, aos passeios, ao teatro, às
visitas. O general ainda servia para semelhante
utilização; era bastante imponente e apresentável:
estatura quase elevada, suíças pintadas, bigodões
(servira no corpo de couraceiros) e um rosto vistoso,
embora algo flácido. Tinha excelentes maneiras e usava
o fraque com muito jeito. Em Paris, começou a ostentar
as suas condecorações. Andar pelo bulevar, em
semelhante companhia, era não apenas possível, mas, se
se admite uma expressão assim, até recomendável. O
bondoso e parvo general estava extremamente
satisfeito; ele, de forma nenhuma, contava com tanto
quando apareceu em nosso apartamento, após sua
chegada a Paris. Viera quase trêmulo de medo; pensava
que Blanche fosse gritar e ordenar que o tocassem para
fora; assim, encheu-se de júbilo vendo as coisas
assumirem semelhante aspecto, e passou o mês inteiro
numa espécie de inconsciente beatitude, e foi nesse
estado que o deixei. Fiquei sabendo, com minúcias, que,
após a nossa partida brusca de Roletenburgo, ele tivera
no mesmo dia, de manhã, uma espécie de ataque.
Perdeu os sentidos e, depois, durante a semana inteira,
permanecera como quase louco e delirava. Estava em
tratamento quando, de repente, abandonou tudo,
sentou-se num vagão e rodou para Paris. Naturalmente,
a recepção que lhe fez Blanche constituiu para ele o
melhor remédio; mas sinais da doença subsistiram por
muito tempo ainda, apesar da condição alegre, de
êxtase, em que se encontrava. Era-lhe absolutamente
impossível raciocinar ou mesmo participar de qualquer
conversa um pouco mais séria; nessas ocasiões, limitava-
se a acrescentar “hum!” a cada palavra e balançava a
cabeça. Ria com frequência, mas seu riso era nervoso,
mórbido, aos arrancos; outras vezes, ficava horas inteiras
sentado, sombrio como a noite, franzindo as densas
sobrancelhas. Perdera por completo a memória de
muitas coisas; tornou-se escandalosamente distraído e
adquiriu o hábito de falar sozinho. Somente Blanche era
capaz de o animar; aliás, os acessos deste seu estado
sombrio, taciturno, quando se encolhia a uma canto,
significavam apenas que desde muito não via Blanche,
ou que esta saíra de casa sem levá-lo consigo, ou, ainda,
que não o acarinhara ao sair. Ele mesmo seria incapaz de
dizer o que queria, e ignorava que estivesse sombrio e
triste. Depois de permanecer sentado uma a duas horas
(notei isso umas duas vezes, quando Blanche se
ausentava o dia todo, provavelmente para ir à casa de
Alberto), ele começava de repente a olhar em torno, a
agitar-se, a virar a cabeça dum lado para outro, como
que procurando lembrar algo e encontrar alguém; porém,
não vendo ninguém nem conseguindo lembrar o que
queria perguntar, caía de novo em seu
ensimesmamento, até que Blanche tornasse a aparecer,
alegre, despachada, elegante, com o seu riso sonoro;
chegava correndo até ele, punha-se a sacudi-lo e até o
beijava, graça que raramente lhe concedia. Uma vez o
general alegrou-se a tal ponto com a chegada de Blanche
que chegou a chorar, fato que me deixou pasmo.
Desde que o general apareceu em nosso
apartamento, Blanche começou a advogar em favor dele
perante mim. Tornou-se até loquaz; lembrou que, por
mim, traíra o general; que fora quase noiva dele e já lhe
prometera a mão; que, por causa dela, o general
abandonara a família e que, além disso, eu estivera a
serviço dele, fato que deveria ter presente sempre, e
que... como não me envergonhava?... Eu mantinha-me
calado, enquanto ela tagarelava terrivelmente. Afinal,
soltei uma gargalhada, e assim terminou o caso, isto é, a
princípio ele me julgou um tolo, mas, finalmente, curvou-
se à ideia de que eu era uma pessoa muito boa e jeitosa.
Em suma, tive a sorte de merecer, por fim, decisiva e
completa benevolência dessa digna moça. (Aliás,
Blanche era na verdade moça boníssima - mas de uma
espécie peculiar, naturalmente; a princípio, não a
apreciei assim.) - Você é uma pessoa bondosa e
inteligente - dizia-me ela ultimamente - e... e... é
lamentável, apenas, que sejas tão tolo! Nunca vai juntar
nenhum dinheiro, absolutamente nenhum! Un vrai russe,
un calmouk! (“Um verdadeiro russo, um calmuco!”. (Os
calmucos são um povo mongólico, estabelecido no Sul da
Rússia europeia, entre os rios Volga, Don, Kumá e Cuban,
bem como na região asiática da Dzungária.) (N. do T.))
Algumas vezes, ordenou-me que levasse o general a
passeio, como se manda um criado levar a cadela galga.
Aliás, levei-o também ao teatro, ao Bal-Mabille, aos
restaurantes. Blanche fornecia dinheiro para isso,
embora o general tivesse recursos próprios e gostasse
muito de tirar a carteira em público. Uma vez, quase
precisei usar de violência, para impedi-lo de comprar, no
Palais Royal, um brochinho de setecentos francos, que o
deixara encantado, e com o qual queria a todo custo
presentear Blanche. Ora, que significava para ela um
brochinho de setecentos francos? E o general, ao todo,
não tinha mais de mil. Nunca pude saber onde os
arranjara. Suponho que com Mister Astley, tanto mais
que este pagara a conta deles no hotel. Quanto à
impressão do general a meu respeito, creio que não
desconfiava sequer das minhas relações com Blanche.
Embora tivesse ouvido vagamente falar que eu ganhara
uma quantia apreciável, supunha certamente que
Blanche me mantinha junto de si como uma espécie de
secretário doméstico ou - quem sabe? - um criado. Pelo
menos, falava comigo sempre com a altivez de antes,
como um superior hierárquico, e algumas vezes chegou a
passar-me descompostura. Um dia, fez-nos rir muito, a
Blanche e a mim, durante o café matinal, em nossa casa.
Era homem de poucos melindres, mas, de repente,
ofendeu-se comigo. Até hoje não compreendo por quê. E
ele próprio, naturalmente, também não sabia a causa.
Numa palavra, lançou-se num discurso sem princípio
nem fim, à bâtons rompus (“desordenadamente”. (N. do
T.)), gritava que eu era um moleque, que ele me
ensinaria... que me faria compreender... etc., etc. Mas
ninguém podia compreender nada. Blanche ria às
gargalhadas; finalmente, conseguiram até certo ponto
acalmá-lo e levaram-no para um passeio. Aliás, notei
muitas vezes que ficava triste, sentia pena de alguém e
de algo, e que alguém lhe fazia falta, apesar mesmo da
presença de Blanche. Em tais momentos, chegou a puxar
umas duas vezes conversa comigo, mas não conseguiu
explicar-se devidamente; evocava a sua carreira, a
defunta esposa, a propriedade rural, as coisas
domésticas. Contente com alguma palavra que de
repente lhe ocorria, repetia-a umas cem vezes por dia,
embora ela não expressasse absolutamente as suas
ideias, nem os seus sentimentos. Tentei falar-lhe dos
filhos; mas ele desviava o assunto com a mesma fala
atropelada de antes, e passava rapidamente a outro
tema: “Sim, sim! As crianças, as crianças, o senhor tem
razão, as crianças!”. Só uma vez, quando nos dirigíamos
ao teatro, ficou comovido. “São crianças infelizes! - disse
de repente. - Sim, meu senhor, sim, são crianças infe-e-
lizes!” E, naquela noite, repetiu algumas vezes essas
palavras: “Crianças infelizes!”. Uma vez, quando
mencionei Polina, ficou até enfurecido. “É uma mulher
ingrata - exclamou. - É ruim e ingrata! Cobriu de
vergonha a família! Se aqui existissem leis, eu a reduziria
a frangalhos! Sim! Sim!” Quanto a Des Grieux, não podia
sequer ouvir-lhe o nome. “Ele me aniquilou - dizia -
roubou-me, apunhalou-me! Foi o meu pesadelo durante
dois anos inteiros! Apareceu-me em sonhos, meses
seguidos! Isso... isso... isso... Oh, nunca me fale dele!”
Eu via que algo estava sendo urdido entre eles, mas
continuava a calar-me, como de costume. Blanche foi a
primeira a declarar-me; isto acontecera exatamente uma
semana antes de nos separarmos.
- Il a de la chance (“Ele tem sorte”. (N. do T.)) -
tagarelou -, a babouchka (Forma afrancesada de
bábuchka (avó, em russo). (N. do T.)) está agora de fato
doente e vai morrer mesmo. Mister Astley mandou um
telegrama; hás de convir comigo que, apesar de tudo, o
general é herdeiro dela. E, mesmo que não fosse, não
atrapalharia em nada. Em primeiro lugar, ele tem uma
pensão própria, e, em segundo, vai morar no quarto ao
lado e será completamente feliz. Serei Madame la
générale. Passarei a fazer parte de uma roda distinta
(Blanche sonhava com isso continuamente) , e, em
seguida, serei uma senhora de terras russa, j’aurai un
château, des moujiks, et puis j’aurai toujours mon million
(“terei um castelo, mujiques, e, além disso, terei sempre
o meu milhão”. (Blanche fala assim, embora a ação se
passe depois da emancipação dos servos. (N. do T.)).
- Bem, e se ele se tornar ciumento, começar a exigir...
sabe Deus o quê... estás compreendendo?
- Oh, não, non, non, non! Como irá atrever-se? Eu
tomei medidas, não se preocupe. Já o obriguei a assinar
algumas promissórias em nome de Alberto. É só
acontecer algo, e será imediatamente castigado; mas
não se atreverá!
- Bem, casa-te...
O casamento celebrou-se sem muita solenidade, de
modo discreto e familiar. Foram convidados Alberto e
mais alguns íntimos. Hortense, Cléopâtre e outras foram
decididamente afastadas. O noivo estava
extraordinariamente interessado na sua condição. A
própria Blanche lhe fez o laço da gravata, passou-lhe
pomada no cabelo, e, com seu fraque e colete branco,
ele tinha uma aparência très comme il faut (“bem
apropriada”. (N. do T.)).
- Il est pourtant très comme il faut (“Até que ele está
bem apropriado”. (N. do T.)) - declarou-me a própria
Blanche, saindo do quarto do general, como se até ela se
admirasse com a ideia de que o general estava très
comme il faut. Eu prestava tão pouca atenção aos
pormenores, participando de tudo apenas como
negligente observador, que até esqueci muita coisa do
que então aconteceu. Estou apenas lembrado de que
tanto Blanche como a mãe dela apareceram não como
Mlle. Cominges e veuve Cominges, mas du-Placet. Até
agora não sei por que ambas se tinham apresentado
antes como de Cominges. Mas o general ficou muito
contente com isso também, e du-Placet agradou-lhe até
mais do que Des Cominges. Na manhã do casamento, ele
andava pela sala, de um canto a outro, completamente
paramentado, e não cessava de repetir a si mesmo com
o ar mais sério e imponente: “Mademoiselle Blanche du-
Placet! Blanche du-Placet! du-Placet! A jovem Blanca du-
Placet!”. E em seu rosto luzia certa autossuficiência.
Na igreja, na pretoria e em casa, ao servirem-se
alguns salgados, ele estava não apenas alegre e
satisfeito, mas orgulhoso até. Algo sucedera a ambos.
Blanche adquirira também um ar todo especial de
dignidade.
- Agora, preciso portar-me de modo absolutamente
diverso - disse-me ela com extraordinária seriedade -
mais, vois-tu, eu não pensei num coisa muito ruim:
imagina que, até agora, não consigo decorar o meu
sobrenome atual: Zagoriânski, Zagoziânski, madame la
générale de Sago-Sago, ces diables des noms russes,
enfim madame la générale à quatorze consonnes!
comme c’est agréable, n’est-ce pas? (“mas estás vendo
[...] a senhora generala de Sago-Sago, esses diabos de
nomes russos, enfim a senhora generala de quatorze
consoantes! Muito agradável, não é verdade?”. (N. do T.))
Separamo-nos finalmente, e Blanche, aquela estúpida
Blanche, chegou até a chorar ao despedir-se de mim.
- Tu étais bon enfant - disse-me, choramingando. - Je
te croyais bête et tu en avais l’air, mas isso te fica bem. -
E, apertando-me já a mão, em despedida definitiva,
exclamou de repente: - Attends! - correu ao seu budoar
e, um instante depois, trouxe-me duas notas de mil
francos. Jamas poderia esperar aquilo! - Isto te será útil;
és, talvez, um outchitel muito sábio; como pessoa,
porém, és terrivelmente tolo. De forma nenhuma te darei
mais de dois mil, pois, de qualquer modo, irás perdê-los
no jogo. Bem, adeus! Nous serons toujours bons amis, e,
se ganhares novamente, vem procurar-me sem falta, et
tu serás heureux (“Eras bom menino [...] eu te julgava
bobo e parecias mesmo [...] Espera! [...] Seremos sempre
bons amigos [...] e serás feliz!”. (N. do T.))!
Eu próprio ainda tinha uns quinhentos francos; além
disso, possuía um magnífico relógio, no valor de uns mil
francos, abotoaduras de brilhantes, etc., de modo que
podia manter-me por um prazo bastante prolongado,
sem me preocupar com nada. Instalei-me
proprositadamente nesta cidadezinha, a fim de me
concentrar, e, sobretudo, aguardo Mister Astley. Soube
com certeza que ele passará e vai deter-se aqui por vinte
e quatro horas, para negócios. Vou saber... e depois...
depois, irei diretamente a Homburgo. Não viajarei para
Roletenburgo, a não ser no ano próximo. Realmente,
dizem ser de mau presságio tentar a sorte, duas vezes
seguidas, junto à mesma mesa, e, em Homburgo, existe
o mais autêntico dos jogos.
XVII
Faz já um ano e oito meses que eu não lanço um olhar
sequer a estas anotações, e somente agora, por angústia
e aflição, resolvi distrair-me e as reli por acaso. Havia
parado, então, no ponto em que dizia da minha intenção
de viajar para Homburgo. Meu Deus! Com que leveza,
relativamente falando, escrevi aquelas últimas linhas! Ou
melhor, não que o fizesse de coração leve, mas com que
autossuficiência, com que inabaláveis esperanças!
Duvidava eu então, um pouco que fosse, de mim
mesmo? E eis que se passou pouco mais de ano e meio,
e, a meu ver, acho-me em condição bem pior que a de
um mendigo! Mas pouco me importo com a miséria!
Estou simplesmente liquidado! Aliás, quase não há com o
que me comparar, e não se deve pregar moral a si
mesmo! Não pode haver nada mais absurdo que a moral,
em tais momentos! Oh, as pessoas autossuficientes!
Com que orgulhosa autossatisfação esses tagarelas estão
prontos a deitar suas sentenças! Se eles soubessem até
que ponto eu próprio tenho consciência de toda a
indignidade da minha atual condição, certamente a sua
língua não se moveria para me dar lições. Vamos ver:
que podem eles dizer-me de novo que eu não saiba? E é
nisso que está a questão? O certo é que basta a roda
girar uma vez, e tudo muda, e esses mesmos moralistas
serão os primeiros (tenho certeza) a vir felicitar-me com
amistosos gracejos. E não virariam o rosto, ao encontrar-
me como fazem agora. Mas pouco me importo com todos
eles! Que sou agora? Zéro. Que posso vir a ser amanhã?
Amanhã, posso ressuscitar dentre os mortos e recomeçar
a viver! Posso encontrar em mim o homem, enquanto ele
ainda não se perdeu!
Realmente, viajei então para Homburgo, mas... estive
depois mais de uma vez em Roletenburgo, em Spa e,
mesmo, em Baden, para onde viajei na qualidade de
camareiro do Conselheiro Hinze, um patife que me tomou
a seu serviço. Sim, estive também na condição de criado,
durante cinco meses a fio! Isso aconteceu logo que saí
da prisão. (Estive na prisão, em Roletenburgo, por causa
de uma dívida contraída aqui. Fui resgatado por uma
pessoa desconhecida. Quem? Mister Astley? Polina? Não
sei, mas a dívida foi paga, duzentos táleres ao todo, e eu
fiquei livre.) Para onde ir? E foi então que entrei ao
serviço desse Hinze. Era um homem jovem e volúvel,
gostava de vadiar, e eu falo e escrevo em três idiomas. A
princípio, entrei para o seu serviço como uma espécie de
secretário, por trinta florins mensais; mas acabei criado
de fato: manter um secretário tornou-se para ele
demasiado oneroso, e ele diminuiu-me o ordenado; como
não tivesse para onde ir, fiquei e, desse modo, eu próprio
me converti em criado. A seu serviço, comia e bebia mal
mas, em compensação, juntei setenta florins em cinco
meses. Uma noite, em Baden, declarei-lhe que desejava
deixá-lo; fui, na mesma noite, para a roleta. Oh, como me
batia o coração! Não, não é que o dinheiro me fosse
caro! O que eu queria, então, era apenas que, no dia
seguinte, todos aqueles Hinze, todos aqueles
Oberkellners, todas aquelas magníficas senhoras de
Baden-Baden, falassem de mim, contassem a minha
história, ficassem surpresos comigo, me elogiassem e
reverenciassem o meu novo ganho. Tudo isso eram
sonhos e preocupações infantis, mas... quem sabe? -
talvez eu me encontrasse também com Polina: contar-
lhe-ia tudo e ela haveria de ver que estou acima de todos
esses absurdos lances da fortuna... Oh, não é que o
dinheiro me fosse caro! Estou certo de que o atiraria
novamente a qualquer Blanche e tornaria a andar, em
Paris, durante três semanas, numa carruagem, puxada
por uma parelha própria, no valor de dezesseis mil
francos. Sei muito bem que não sou avarento; creio
mesmo que sou perdulário; e, no entanto, com que
tremor ouço, de coração opresso, os gritos do crupiê:
trente et un, rouge, impair et passe; ou: quatre, noir, pair
et manque! Com que avidez olho para a mesa de jogo,
em que estão espalhados luíses de ouro, friedrichsdors e
táleres; para as pilhas de ouro, que quando tocadas pela
pazinha do crupiê se espalham em montículos luzentes
como brasas, ou, então, para as rumas de prata, do
comprimento de um archin (medida russa
correspondente a 0,71 m. (N. do T.)), jazendo em torno
da roda. Quando ainda me aproximo da sala de jogo e
ouço, a uma distância de duas salas, o tinir das moedas,
quase chego a ter convulsões.
Oh, aquela noite em que levei para a mesa de jogo os
meus setenta florins foi também admirável! Comecei por
dez florins e, novamente, apostei no passe. Tenho um
preconceito em relação ao passe. Perdi. Restavam-me
sessenta florins em prata; pensei um pouco e preferi o
zéro. Comecei a apostar no zéro cinco florins de cada
vez; no terceiro lance, saiu de repente o zéro, e quase
morri de alegria, recebendo cento e setenta e cinco
florins; não ficara tão alegre ao ganhar cem mil. Apostei
imediatamente cem florins no rouge e ganhei; todos os
duzentos no rouge, e tornei a ganhar; todos os
quatrocentos no noir, com o mesmo resultado; todos os
oitocentos no manque, e ganhei ainda; contando com o
anterior, tinha mil e setecentos florins, e isso em menos
de cinco minutos! Sim, em tais momentos, esquecem-se
mesmo todos os fracassos anteriores!
Realmente, eu conseguira aquilo arriscando mais que
a própria vida, eu ousara arriscar... e eis que ali me
achava, de novo, e como gente.
Aluguei um quarto no hotel, fechei a porta à chave e
fiquei sentado até umas três horas, contando o meu
dinheiro. De manhã, ao acordar, não era mais criado.
Decidi partir para Homburgo no mesmo dia: naquela
cidade, não servira como criado e não estivera na prisão.
Meia hora antes da partida do trem, fui apostar dois
lances, não mais, e perdi mil e quinhentos florins. Apesar
de tudo, mudei-me para Homburgo, e já faz um mês que
estou aqui...
Naturalmente, vivo em sobressalto permanente, jogo
bem modestamente, espero não sei o quê e faço
cálculos; passo dias inteiros junto à mesa de jogo e
observo o desenrolar deste; o jogo aparece-me até em
sonho, mas, com tudo isso, tenho a impressão de estar
anquilosado, de ter-me afundado numa espécie de limo.
Concluo isso da impressão que me deixou o encontro que
tive com Mister Astley. Não nos tínhamos visto mais e
encontramo-nos por acaso. Eis como isso aconteceu:
caminhava eu pelo jardim; refletia que já me achava
quase sem dinheiro, mas que ainda me restavam
cinquenta florins, e que, além disso, no hotel, onde
ocupava um cubículo, pagara toda a conta na
antevéspera. Ficara-me, pois, a possibilidade de ir
apenas uma vez à roleta, e, caso ganhasse, mesmo que
fosse uma ninharia, poderia continuar o jogo; se
perdesse, precisaria empregar-me novamente como
criado, a não ser que encontrasse gente russa precisando
de um preceptor. Ocupado com tais pensamentos,
prossegui em meu passeio cotidiano, atravessei o parque
e o bosque, e passei ao principado vizinho. Acontecia-me
caminhar deste modo umas quatro horas e voltar a
Homburgo, faminto e cansado. Mal acabei de passar do
jardim para o parque, vi de repente Mister Astley sentado
num banco. Ele notou-me primeiro e chamou-me. Sentei-
me a seu lado. Percebendo nele, porém, certo ar de
importância, moderei imediatamente a minha alegria,
embora tivesse ficado contente ao extremo por encontrá-
lo.
- Então, está aqui?! Bem que eu pensei encontrá-lo -
disse-me. - Não precisa incomodar-se contando-me
coisas: eu sei, eu sei de tudo; conheço toda a vida que
levou neste ano e oito meses.
- Bah! Quer dizer que vigia assim os seus velhos
amigos! - respondi. - Honra-o este fato de não esquecer...
Mas espere, acaba de me dar uma ideia: não foi o senhor
quem me resgatou da prisão de Roletenburgo, onde me
meteram por causa de uma dívida de duzentos florins?
Fui resgatado por um desconhecido.
- Não, oh, não, não o resgatei da prisão de
Roletenburgo, onde estava por causa de uma dívida de
duzentos florins, mas sabia que se achava preso em
virtude de uma dívida de duzentos florins.
- Quer dizer que sabe mesmo quem me resgatou?
- Oh, não, eu não posso dizer que saiba quem o
resgatou.
- É estranho; ninguém, entre os russos, me conhece, e
os russos daqui provavelmente não me resgatariam; lá
na Rússia é que os ortodoxos resgatam gente ortodoxa. E
eu pensei que deveria ter sido algum inglês esquisitão,
apenas por excentricidade.
Mister Astley ouvia-me um tanto surpreso. Parece que
esperava encontrar-me triste e abatido.
- Estou muito contente, no entanto, vendo que
conservou toda a sua independência de espírito e que
está, mesmo, alegre - disse ele, com ar bastante
desagradável.
- Quer dizer, no íntimo está acabrunhado de despeito,
porque não sofri nenhum abalo profundo e não estou
humilhado - disse eu, rindo.
Custou a compreender aquilo, mas, logo que o
compreendeu, sorriu.
- Agradam-me as suas observações. Reconheço
nessas palavras o meu amigo de outros tempos,
inteligente, arrebatado e, ao mesmo tempo, cínico;
somente os russos podem reunir em si, ao mesmo
tempo, tantas qualidades opostas. Realmente, as
pessoas gostam de ver humilhado, diante de si, o seu
melhor amigo; é na humilhação que se baseia, mais
comumente, a amizade; é uma verdade antiga,
conhecida por todas as pessoas inteligentes. No caso
atual, porém, asseguro-lhe, estou contente, com
sinceridade, pelo fato de não o ver entristecido. Diga-me:
não pretende largar o jogo?
- Oh, diabos levem o jogo! Vou largá-lo
imediatamente, apenas...
- Apenas, deve ganhar agora tudo de volta? Bem que
o pensei; não complete a frase; eu sei, disse-o sem
querer; por conseguinte, falou a verdade. Diga-me: não
se ocupa com nada, além do jogo?
- Sim, nada...
Começou a fazer-me um exame. Eu não sabia nada,
quase não passara os olhos pelos jornais e,
decididamente, em todo aquele tempo, não abrira um
livro.
- Está anquilosado - observou. - Não só desistiu da
vida, dos seus interesses, da sociedade, dos deveres de
homem e de cidadão, dos amigos (tinha-os, apesar de
tudo); não só desistiu de qualquer objetivo que não seja
o ganho, como até renunciou às suas próprias
recordações. Lembro-me do senhor num momento
ardoroso e forte da sua vida; mas estou certo de que
esqueceu as suas melhores impressões de então; os seus
sonhos de agora, os seus desejos mais vitais, não
passam de pair e impair, rouge, noir, doze no centro, e
assim por diante, e assim por diante, tenho certeza!
- Chega, Mister Astley! Por favor, por favor, não me
faça lembrar - exclamei com despeito, quase com raiva. -
Saiba que não esqueci absolutamente nada; mas, apenas
por algum tempo, expulsei tudo isso da minha cabeça,
mesmo as recordações - até que eu corrija radicalmente
minha situação; então... então, o senhor verá, hei de
ressuscitar dentre os mortos!
- Estará aqui, dentro de dez anos - disse ele. - Aposto
como vou lembrar-lhe isto, se estiver vivo, neste mesmo
banco.
- Bem, chega - disse eu com impaciência,
interrompendo-o -, e, para lhe demonstrar que não estou
tão esquecido em relação ao passado, permita que lhe
pergunte: onde está agora Miss Polina? Se não foi o
senhor quem me resgatou, certamente foi ela. Desde
aquele tempo, não tive dela qualquer notícia.
- Não, oh, não! Eu não creio que ela o tenha
resgatado. Está agora na Suíça, e me fará um grande
favor se deixar de me fazer perguntas sobre Miss Polina -
disse ele com ar decidido e, mesmo, zangado.
- Isso quer dizer que o senhor, também, já foi bastante
ferido por ela! - ri involuntariamente.
- Miss Polina é a melhor das criaturas, a mais digna de
respeito; mas, repito, o senhor me fará um grande favor
deixando de me interrogar a seu respeito. O senhor
nunca a conheceu, e eu considero que o nome dela em
seus lábios é uma ofensa ao meu sentimento moral.
- Ah, sim? Aliás, o senhor não tem razão; pense bem,
de que lhe posso falar, a não ser a esse respeito? É nisso
que consistem todas as nossas recordações. Não se
preocupe, não me interessa conhecer nenhum dos seus
casos íntimos, secretos... Interesso-me unicamente, por
assim dizer, pela condição exterior de Miss Polina,
apenas pela sua atual situação externa. Isso pode ser
dito em duas palavras.
- Pois não, mas com a condição de que tudo fique
terminado com essas duas palavras. Miss Polina passou
muito tempo doente; mesmo agora, ainda está enferma;
durante algum tempo, ela viveu com minha mãe e minha
irmã, no Norte da Inglaterra. Há meio ano, a avó -
lembra-se - aquela mesma velha maluca, morreu e
deixou-lhe sete mil libras. Agora, Miss Polina está
viajando com a família de minha irmã, que se casou. O
irmãozinho dela e a irmã também estão garantidos pelo
testamento da avó e estudam em Londres. O padrasto, o
general, este morreu há um mês, em Paris, em
consequência de um ataque apoplético. Mademoiselle
Blanche tratou dele bem, mas conseguiu transferir para o
seu nome tudo o que ele recebera da avó... Parece que é
tudo.
- E Des Grieux? Não está viajando também pela Suíça?
- Não, Des Grieux não está viajando pela Suíça, e eu
não sei onde ele está; além disso, aviso-o de uma vez
por todas que deve evitar semelhantes alusões e
aproximações ignóbeis; caso contrário, terá que se haver
sem falta comigo.
- Como?! Apesas das nossas relações amistosas de
outros tempos?
- Sim, apesar daquelas relações.
- Peço-lhe mil desculpas, Mister Astley. Permita, no
entanto, que lhe diga: não há nisso nada de ofensivo ou
pouco nobre; não culpo absolutamente Miss Polina de
nada. Além disso, um francês e uma senhorita russa,
falando genericamente, constituem uma aproximação
tal, Mister Astley, que não seremos nós dois que a
poderemos resolver ou compreender definitivamente.
- Se o senhor não associa o nome de Des Grieux a um
outro, eu lhe pediria que me explicasse: que entende
pela expressão “um francês e uma senhorita russa”? Que
“aproximação” é essa? Por que, no caso, se trata
justamente de um francês e uma senhorita russa?
- Como vê, isso o deixou interessado. Mas trata-se de
assunto longo, Mister Astley. Seria preciso conhecer
muita coisa antes. Aliás, é uma questão importante, por
mais ridículo que tudo isto pareça à primeira vista. O
francês, Mister Astley, é uma forma acabada, bonita. O
senhor, na qualidade de britânico, pode não concordar
com isso; também eu, como russo, não concordo, quando
mais não seja, talvez por inveja mesmo; as nossas
senhoritas, porém, podem ter opinião diferente. O senhor
pode considerar Racine artificial, afetado, uma
perfumaria; certamente, nem vai lê-lo. Eu também o
considero artificial, afetado, uma perfumaria, e, sob certo
ponto de vista, até ridículo; mas ele é encantador, Mister
Astley, e, sobretudo, é um grande poeta, queiramos nós
dois ou não que assim seja. A forma nacional do francês,
isto é, do parisiense, começou a assumir uma forma
elegante, quando nós ainda éramos ursos. A revolução
herdou-a da nobreza. Atualmente, o francesinho mais
vulgar pode ter maneiras, gestos, expressões e até ideias
de uma forma supremamente elegante, sem todavia ter
tomado parte na criação dessa forma, quer com a sua
iniciativa, quer com a alma, quer com o coração; tudo
isso ele recebeu de herança. Pessoalmente, eles podem
ser as mais fúteis e as mais ignóbeis das criaturas. Pois
bem Mister Astley, comunico-lhe agora que não existe no
mundo criatura mais confiante e sincera que uma jovem
russa bondosa, inteligentezinha e não excessivamente
afetada. Desempenhando um papel qualquer, oculto sob
uma máscara, Des Grieux pode conquistar-lhe o coração
com extraordinária facilidade; ele possui uma forma
elegante, Mister Astley, e a jovem toma essa forma pela
própria alma dele, pela forma natural da sua alma e do
seu coração, e não por um traje que ele recebeu como
herança. Para seu máximo desprazer, devo confessar-lhe
que os ingleses, na maioria, são angulosos e
deselegantes, e os russos sabem distinguir o belo com
bastante agudeza, e têm por ele um fraco. Mas, para
distinguir a beleza da alma e a originalidade de caráter, é
necessário muito mais independência e liberdade de
julgamento que a de nossas mulheres, sobretudo as
senhoritas, e, em todo caso, mais experiência. Quanto a
Miss Polina - perdão, o que ficou dito não volta atrás - é
preciso muito, muito tempo, para se decidir a preferir o
senhor ao canalha Des Grieux. Ela o apreciará, será sua
amiga, vai abrir-lhe todo o coração; mas, nesse coração,
apesar de tudo, há de reinar o odioso canalha, o mau e
mesquinho Des Grieux. Isto há de persistir, até, por
assim dizer, apenas por teimosia e amor-próprio, porque
esse mesmo Des Grieux apareceu-lhe, certo dia, sob a
auréola de um elegante marquês, de um liberal
desiludido e arruinado (seria?), ajudando a sua família e
o imprudente general. Todos esses manejos foram
descobertos mais tarde. Mas não importa que tenham
sido descobertos; mesmo assim, deem-lhe agora o Des
Grieux de outros tempos, eis do que precisa! E, quanto
mais ela odeia o Des Grieux atual, mais saudade tem do
anterior, embora este existisse apenas na sua
imaginação. O senhor é produtor de açúcar, Mister
Astley?
- Sim, faço parte da sociedade Lowell & Comp., que
explora uma famosa usina de açúcar.
- Pois bem, está vendo, Mister Astley? Por um lado é
um produtor de açúcar, por outro, é o Apolo do
Belvedere; tudo isso, de certo modo, não combina. E eu
não sou sequer produtor de açúcar; sou apenas um
jogador miúdo de roleta, e fui até criado, o que,
certamente, já é do conhecimento de Miss Polina,
porque, segundo parece, ela possui boa polícia.
- O senhor está enraivecido, e por isso diz todos esses
absurdos - falou Mister Astley com sangue-frio, depois de
pensar um pouco. - Além disso, não há originalidade nas
suas palavras.
- De acordo! Mas nisso é que está o horror, meu
nobre amigo: todas essas minhas acusações, por mais
antiquadas, vulgares, dignas de um vaudeville, apesar de
tudo, são verdadeiras! Apesar de tudo, nós dois não
conseguimos nada!
- Isto são absurdos torpes... porque, porque... saiba de
uma vez! - disse Mister Astley com voz trêmula e olhos
cintilantes. - Saiba de uma vez, homem ingrato e indigno,
insignificante e infeliz, que cheguei a Homburgo
intencionalmente, por encargo dela, a fim de encontrá-lo,
para conversar com o senhor longamente e de todo o
coração, e dar depois a ela relato de todos os seus
sentimentos, ideias, esperanças e... recordações!
- Será possível?! Será possível?! - exclamei, e lágrimas
jorraram-me dos olhos. Não pude contê-las e aquilo
acontecia-me, ao que parece, pela primeira vez em
minha vida.
- Sim, homem infeliz, ela o amava, e eu posso revelar-
lhe isso, porque o senhor é um homem perdido! Mais
ainda, mesmo que eu lhe diga que ela o ama até hoje,
mesmo assim vai ficar aqui! Sim, o senhor se destruiu.
Tinha algumas capacidades, um temperamento vivo e
era uma pessoa nada má; podia ser mesmo útil à sua
pátria, que tanto precisa de gente, mas há de ficar aqui,
e a sua vida acabou. Não o estou culpando. A meu ver,
todos os russos são assim ou têm uma tendência para se
tornarem assim. Se não é a roleta, é outra coisa
semelhante. As exceções são demasiadamente raras. O
senhor não é o primeiro a não compreender o que é o
trabalho (não estou falando do seu povo). A roleta é um
jogo russo por excelência. Até agora, o senhor foi
honesto e preferiu tornar-se criado a roubar... mas eu
tenho medo de pensar no que pode acontecer no futuro.
Chega, adeus! O senhor, naturalmente, precisa de
dinheiro, não? Aqui tem, da minha parte, dez luíses de
ouro; não darei mais porque, de qualquer modo, vai
perdê-los no jogo. Tome-os, e adeus! Aceite mesmo!
- Não, Mister Astley, depois de tudo o que se acabou
de dizer...
- To-me! gritou ele. - Estou convencido de que ainda
tem caráter nobre, e dou-lhe dinheiro como um amigo o
pode dar a outro amigo de verdade. Se eu pudesse estar
certo de que o senhor largaria imediatamente o jogo,
Homburgo, e iria para a sua pátria, estaria pronto a dar-
lhe no mesmo instante mil libras, para o início da sua
nova carreira. Todavia, não lhe dou mil libras, mas
apenas dez luíses de ouro, justamente porque mil libras
ou dez luíses, agora, são exatamente o mesmo para o
senhor; de qualquer modo, há de perdê-los. Tome-os, e
adeus.
- Aceitarei, se me permitir que o abrace por
despedida.
- Oh, com prazer!
Abraçamo-nos sinceramente, e Mister Astley foi
embora.
Não, ele não tinha razão! Se eu fui rude e estúpido,
referindo-me a Polina e Des Grieux, ele foi rude e
apressado em relação aos russos. De mim próprio, não
digo nada. Aliás... aliás, tudo isso, por enquanto, não é o
essencial. São apenas palavras, palavras e mais
palavras, mas é preciso ação! O principal, agora, é a
Suíça! Amanhã mesmo; oh, se fosse possível partir
amanhã mesmo! Nascer de novo, ressuscitar. É preciso
demonstrar-lhes... Que saiba Polina que ainda posso ser
gente. Basta apenas... aliás, já é tarde, mas amanhã...
Oh, tenho um pressentimento! E nem podia ser de outro
modo! Tenho agora quinze luíses de ouro, e cheguei a
começar com quinze florins! Se começar com cuidado...
Mas, será possível, será possível que eu seja tão criança?
Não compreenderei, porventura, que sou um homem
perdido? Mas, por que não posso ressuscitar? Sim! Basta
ao menos uma vez na vida ser paciente e calculador, e
eis tudo! Basta ter caráter uma só vez, e, numa hora,
posso mudar todo o meu destino! O principal é o caráter.
Lembrar apenas que, há sete meses, me aconteceu coisa
semelhante, em Roletenburgo, antes de eu perder tudo.
Oh, foi um admirável exemplo de decisão: eu perdera
tudo, tudo... Saio então do cassino, e percebo que no
bolso do meu colete se mexe ainda um florim. “Ah, então
tenho com que jantar!” - pensei, mas, percorrendo uns
cem passos, mudei de ideia e voltei. Coloquei aquele
florim no manque; e, realmente, sentimos algo de
peculiar nessa sensação, quando, sozinhos, em país
estranho, longe da pátria, dos amigos, e sem saber o que
vamos comer nesse dia, apostamos o último florim, o
último dos últimos, o derradeiro! Ganhei e, vinte minutos
depois, saí do cassino com cento e setenta florins no
bolso. Eis uma realidade! Eis o que pode significar, às
vezes, o derradeiro florim! E o que aconteceria, se eu
naquele momento tivesse perdido a confiança, se não me
atrevesse a decidir-me?...
Amanhã, amanhã tudo estará terminado!

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