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Coleção LESTE
Fiódor Dostoiévski
Um Jogador
Tradução
Boris Schnaiderman
editora■34
Um jogador
Apontamentos de um homem moço
I
Finalmente, regressei, após duas semanas de
ausência. Havia três dias já que a nossa gente estava em
Roletenburgo. Pensei que me esperassem, sabe Deus
com que ansiedade, mas enganei-me. O general tinha
um ar muito independente, falou comigo de modo altivo
e ordenou-me que fosse ver a sua irmã. Era evidente que
haviam conseguido dinheiro em alguma parte. Tive,
mesmo, a impressão de que o general se encabulava um
pouco na minha presença. Mária Filípovna estava numa
azáfama fora do comum e falou comigo ligeiramente;
todavia, aceitou o dinheiro, conferiu-o e ouviu todo o
meu relatório. Para o jantar, esperavam Miézientzov, o
francesinho e ainda um certo inglês: como de costume,
mal se consegue dinheiro, dá-se um jantar pomposo, à
moda moscovita. Apenas me viu, Polina Aleksândrovna
perguntou por que demorara tanto a voltar e, sem
aguardar resposta, retirou-se. Naturalmente, agiu assim
de propósito. No entanto, tínhamos que nos explicar.
Muitos fatos se acumularam nesse ínterim.
Reservaram-me um cômodo pequeno, no quarto
andar do hotel. Aqui se sabe que pertenço à comitiva do
general. Tudo indica que eles já conseguiram fazer-se
conhecer. Todos consideram o general um riquíssimo
dignatário russo. Ainda antes do jantar, teve tempo de
me dar, além de outros encargos, o de trocar duas notas
de mil francos. Troquei-as no escritório do hotel. Agora,
vão olhar-nos como milionários, pelo menos uma semana
a fio. Quis levar Micha (Diminutivo de Mikhail (Miguel).
(N. do T.)) e Nádia (Diminutivo de Nadiejda (Esperança).
(N. do T.)) a um passeio, mas, quando já me achava na
escada, o general mandou chamar-me, queria saber para
onde eu os levaria. Decididamente, este homem não me
pode encarar; até gostaria de fazê-lo, mas, de cada vez,
respondo-lhe com um olhar tão fixo, isto é,
desrespeitoso, que ele parece ficar acanhado. Numa
alocação extremamente empolada, aglomerando frases
uma sobre a outra e, por fim, confundindo-se
completamente, deu-me a compreender que eu devia
passear com as crianças no parque, o mais longe
possível do cassino. Acabou mesmo por irritar-se e
acrescentou abruptamente: - Senão, é capaz de levá-los
ao cassino, à mesa da roleta. Desculpe - acrescentou -
mas eu sei que o senhor ainda é bastante leviano e,
provavelmente, capaz de ir jogar. Em todo caso, embora
eu não seja o seu mentor, e nem queira encarregar-me
de semelhante papel, de qualquer modo tenho o direito
de desejar que o senhor, por assim dizer, não me
comprometa...
- Mas eu nem tenho dinheiro - respondi calmamente. -
Para perder, é preciso ter o quê.
- O senhor vai recebê-lo imediatamente - respondeu o
general, corando um pouco, remexeu na sua
escrivaninha, consultou o livro de apontamentos e
verificou que me devia perto de 120 rublos.
- Está bem, vamos acertar as contas - disse. - É
preciso fazer uma redução a táleres. Bem, tome cem
táleres, em conta redonda; o resto, naturalmente, não se
perderá.
Tomei o dinheiro em silêncio.
- Por favor, não se ofenda com as minhas palavras, o
senhor é tão suscetível... Se lhe fiz uma observação, eu,
por assim dizer, acautelei-o e, naturalmente, tenho certo
direito a isso...
Regressando ao hotel com as crianças, antes do
jantar, encontrei uma verdadeira cavalgada. Os nossos
tinham ido ver não sei que ruínas. Duas caleças
admiráveis, cavalos magníficos! Numa das caleças, iam
Mademoiselle Blanche, Mária Filípovna e Polina; o
francesinho, o inglês e o nosso general estavam a cavalo.
Os transeuntes detinham-se para olhar; a impressão fora
produzida; todavia, o general estava perdido. Calculei
que, acrescentando-se aos quatro mil francos que eu
trouxera aquilo que eles, aparentemente, conseguiram
obter emprestado, deviam ter sete a oito mil francos; e
isso era muito pouco para Mlle. Blanche.
Mlle. Blanche hospedou-se igualmente no nosso hotel,
em companhia da mãe; o nosso francesinho também. Os
criados chamam-no de M. le Comte; a mãe de Mlle.
Blanche é Mme. la Comtesse. Bem, talvez sejam
realmente comte e comtesse.
Bem que eu sabia que M. le Comte não me
reconheceria quando nos encontrássemos ao jantar. O
general, naturalmente, não teria sequer a ideia de nos
apresentar um ao outro, ou, pelo menos, recomendar-me
a ele; quanto a M. le Comte, já esteve na Rússia e sabe
que pássaro miúdo é aquele que eles denominam
outchitel (Forma afrancesada da palavra russa utchítiel
(professor primário ou secundário) (N. do T.)). Aliás, ele
me conhece muito bem. Mas, confesso, apareci no
próprio jantar sem ser convidado; segundo parece, o
general esqueceu-se de tomar providências; senão,
certamente, teria me mandado jantar à table d’hôte
(Mesa com refeições a preço fixo. (N. do T.)). Apareci
sozinho, de modo que o general olhou-me com
desagrado. A boa Mária Filípovna indicou-me logo um
lugar; mas fui salvo pelo fato de encontrar ali Mister
Astley, e automaticamente passei a pertencer ao grupo.
Encontrara esse inglês estranho, pela primeira vez, na
Prússia, num vagão em que ficamos sentados frente a
frente, quando eu viajava no encalço de nossa gente;
depois encontrei-me com ele, inesperadamente, ao
entrar em França, e, ainda mais uma vez, na Suíça; eram
duas vezes, no decorrer das últimas duas semanas; e
agora, de repente, encontrava-o já em Roletenburgo.
Nunca encontrei pessoa mais tímida; era tímido até à
estupidez, e ele mesmo, naturalmente, sabia disso, pois
não tinha nada de estúpido. Aliás, era de gênio muito
doce e simpático. Fiz com que falasse bastante, por
ocasião do nosso encontro na Prússia. Disse-me que
estivera, naquele verão, no Cabo Norte, e que tinha
muita vontade de visitar a feira de Níjni-Novgorod (Havia
na cidade de Níjni-Novgorod uma famosa feira anual. (N.
do T.)). Não sei de que modo ele travara relações com o
general; parece-me que estava irremediavelmente
apaixonado por Polina. Quando esta entrou, ele pareceu
incendiar-se. Estava muito contente pelo fato de, à mesa,
eu me ter sentado a seu lado, e já me considerava, creio,
seu amigo íntimo.
À mesa, o francesinho estava muito arrogante, tratava
a todos com altivez e pouco caso. E em Moscou, lembro-
me, parecia também inflar de importância. Estava
discorrendo muito longamente sobre finanças e política
russa. O general ousava, de vez em quando, contradizê-
lo, mas discretamente, apenas o necessário para
salvaguardar o seu prestígio.
Eu me achava numa estranha disposição de espírito e,
naturalmente, antes que houvesse decorrido metade do
jantar, já me fizera a habitual e indefectível pergunta:
“Por que me arrasto atrás deste general e não os deixei
já há muito?”. De raro em raro, lançava um olhar a Polina
Aleksândrovna; ela absolutamente não me notava. Por
fim, fiquei irritado e resolvi fazer umas grosserias.
Comecei por intrometer-me numa conversa,
abruptamente e em voz alta. Em primeiro lugar, queria
brigar com o francesinho. Voltei-me para o general e, de
repente, observei, em voz bem nítida e, ao que parece,
interrompendo-o, que, naquele verão, os russos quase
não podiam jantar à table d’hôte. O general fixou em
mim um olhar surpreendido.
- Toda pessoa que se respeita - continuei aos
borbotões - acaba ouvindo impropérios e tem que
suportar ofensas. Em Paris e no Reno, mesmo na Suíça,
encontram-se, à table d’hôte, tantos polaquinhos e
francesinhos que simpatizam com eles, que um russo
não tem possibilidade de dizer uma palavra sequer (Na
época havia, na Europa Ocidental, muitos emigrados
políticos poloneses. (N. do T.)).
Disse isto em francês. O general olhava-me perplexo,
não sabendo se devia ficar zangado ou apenas
surpreendido pelo fato de eu ter perdido a tal ponto a
noção das conveniências.
- Quer dizer que alguém lhe deu, em alguma parte,
uma lição - disse o francesinho com displicente ar de
desprezo.
- Em Paris, comecei por brigar com um polaco -
respondi - depois, com um oficial francês que defendia o
polaco. Em seguida, porém, uma parte dos franceses
ficou do meu lado, quando lhes contei como quisera
cuspir dentro do café de um monsenhor.
- Cuspir? - perguntou o general, com expressão de
altivez e surpresa, e olhando mesmo em torno. O
francesinho examinava-me com desconfiança.
- Exatamente - respondi. - Dois dias a fio não me
abandonou a ideia de que seria preciso, talvez, ir tratar
do nosso caso, rapidamente, em Roma, e, por isso, dirigi-
me à chancelaria da Nunciatura Apostólica em Paris, a
fim de visar o meu passaporte (Roma era ainda a capital
do Estado Pontifício. (N. do T.)). Fui recebido lá por um
pequeno abade, de uns cinquenta anos, esquálido e de
feições glaciais, que me ouviu delicadamente, mas com
uma secura extrema, e me pediu que esperasse. Embora
tivesse pressa, sentei-me para esperar, desdobrei um
número de Opinion Nationale (Jornal francês liberal,
conhecido por seu apoio à causa da independência
polonesa. (N. do T.)), e pus-me a ler os maiores
impropérios contra a Rússia. Entretanto, ouvi que alguém
passava pela sala ao lado, para ser recebido por
monsenhor; vi também o meu abade fazendo saudações
com a cabeça. Dirigi-me a ele com o mesmo pedido;
disse-me então, com secura ainda maior, que esperasse
mais. Algum tempo depois, entrou ali mais um
desconhecido, para tratar de um caso; era um austríaco,
ouviram o que tinha a dizer e conduziram-no
imediatamente para cima.
Fiquei, então, profundamente despeitado; levantei-
me, acerquei-me do abade e disse-lhe, com ar decidido,
que, se monsenhor estava recebendo, podia tratar do
meu caso também. Ele deu um passo atrás,
tremendamente surpreendido. Simplesmente, não podia
compreender que um desprezível russo ousasse colocar-
se no mesmo nível das visitas de monsenhor. Mediu-me
dos pés à cabeça e exclamou, com o tom mais arrogante,
como se se alegrasse pelo fato de poder ofender-me:
“Então, o senhor pensa que monsenhor vai deixar, por
sua causa, o café que está tomando?”. Pus-me também a
gritar, mas ainda mais alto que ele: “Pois saiba que
pouco me importa o café deste seu monsenhor! Se o
senhor, neste mesmo instante, não acabar de preparar o
meu passaporte, irei à presença dele”. “Como! Ele está
com o cardeal!” - gritou o abadezinho, afastando-se de
mim horrorizado, lançou-se em direção à porta e abriu os
braços em cruz, dando a entender que preferia morrer a
deixar-me entrar ali. Respondi-lhe então que eu era
herege e bárbaro, que je suis hérétique et barbare, e que
todos aqueles arcebispos, cardeais, monsenhores etc.
etc., eram a mesma coisa para mim. Numa palavra, fiz
ver que não desistiria do caso. O abade lançou-me um
olhar de infinita raiva, arrancou-me o passaporte e levou-
o para cima. Instantes depois, já estava com visto. Aqui
está; querem ver? - Tirei o meu passaporte e mostrei o
visto romano.
- O senhor, no entanto... - começou o general.
- O senhor se salvou, declarando-se bárbaro e herege
- observou o francesinho, com um sorriso malicioso. -
Cela n’était pas si bête (“Isso até que não foi tolo”. (N. do
T.)).
- Deve-se acaso imitar os nossos patrícios? Eles ficam
sentados por aí, não ousam soltar um pio e estão
prontos, talvez, a renegar o fato de serem russos. Pelo
menos, em Paris, no hotel em que me hospedei, todos
começaram a tratar-me com maior atenção, quando
contei a minha briga com o abade. O gordo pan
(“senhor”. Em polonês no original. (N. do T.)) polaco, a
pessoa que me era mais hostil à table d’hôte, ficou
apagado, passando para um segundo plano. Os franceses
toleraram até o fato de eu contar-lhes que, uns dois anos
antes, encontrara um homem em quem um infante
francês atirara em 1812, apenas para descarregar o fuzil.
Aquele homem era então uma criança de dez anos, e a
sua família não tivera tempo de sair de Moscou.
- Isso não pode ser! - indignou-se o francesinho. - Um
soldado francês é incapaz de atirar numa criança!
- Mas isso aconteceu - respondi. - Quem me contou foi
um distinto capitão reformado, e eu mesmo vi em sua
face a cicatriz que a bala deixou.
O francês pôs-se a falar com muita volubilidade. O
general, a princípio, apoiou-o, mas eu recomendei-lhe
que lesse ao menos, por exemplo, uns trechos das
Memórias do General Pieróvski, que fora prisioneiro dos
franceses em 1812 (Segundo uma nota das Obras
completas de Dostoiévski, o general V. A. Pieróvski
(1795-1857) escreveu Memórias, um trecho das quais foi
publicado pelo Arquivo Russo (Rússki Arkhiv), em 1865.
Nele se relata como os franceses, que estavam
conduzindo uma coluna de prisioneiros de guerra russos,
em 1812, fuzilavam todos os que ficavam para trás, em
virtude de fraqueza e esgotamento. (N. do T.)). Mária
Filípovna procurou desviar o rumo da conversa. O general
estava muito descontente comigo, pois eu e o francês já
falávamos quase aos berros. Mister Astley, porém,
pareceu gostar muito da minha discussão com o francês;
levantando-se da mesa, convidou-me a tomar com ele
uma taça de vinho. À noitinha consegui, como era
preciso, falar com Polina Aleksândrovna, pelo espaço de
um quarto de hora. Mantivemos nossa conversa durante
o passeio habitual. Todos foram para o parque, em
direção do cassino. Polina sentou-se num banco, em
frente do repuxo, e deixou que Nádienka (Diminutivo de
Nadiejda. (N. do T.)) fosse brincar por perto, com
algumas crianças. Deixei também que Micha fosse até o
chafariz, e ficamos, finalmente, a sós.
A princípio, naturalmente, falamos de negócios. Polina
ficou simplesmente zangada, quando lhe entreguei
apenas setecentos táleres. Estava certa de que eu lhe
traria de Paris, depois de empenhar as suas joias, pelo
menos dois mil táleres, talvez até mais.
- Preciso de dinheiro, custe o que custar - disse ela - e
é preciso consegui-lo; senão, estou simplesmente
perdida.
Comecei a interrogá-la sobre o que tinha ocorrido na
minha ausência.
- Nada mais além de duas notícias que se receberam
de Petersburgo: em primeiro lugar, que a vovó estava
muito mal, e, dois dias depois, que ela, provavelmente, já
falecera. Essa notícia procedia de Timofiéi Pietróvitch -
acrescentou Polina - e ele é um homem preciso. Estamos
aguardando a notícia derradeira, definitiva.
- Quer dizer que estão todos à espera, aqui? -
perguntei.
- Naturalmente: todos e tudo; durante todo um
semestre foi esta a única esperança.
- É a sua esperança também? - perguntei.
- Na realidade, ela nem é minha parenta, sou apenas
enteada do general. Mas sei, com certeza, que há de se
lembrar de mim no testamento.
- Tenho a impressão de que lhe caberá uma quantia
bem graúda - disse eu, concordando.
- Sim, ela me queria bem, mas, por que você tem essa
impressão?
- Diga-me - respondi eu com uma pergunta - o nosso
marquês, ao que parece, também foi posto a par de
todos os segredos da família, não?
- E você próprio por que se interessa por isso? -
perguntou Polina, olhando-me seca e severamente.
- Pudera; se não me engano, o general já teve tempo
de conseguir com ele dinheiro emprestado.
- Você está adivinhando com muita exatidão.
- Ora, daria ele dinheiro se não soubesse da existência
da avozinha? Você observou, acaso, que à mesa, umas
três vezes, ao dizer algo sobre a vovó, ele chamou-a de
vovozinha - la baboulinka (Transcrição francesa do
diminutivo russo babúlinka. (N. do T.))? Que relações
íntimas e amistosas!
- Sim, você tem razão. Logo que ele souber que me
coube também algo da herança, há de pedir a minha
mão. Não era isto que você queria saber?
- Somente então pedirá a sua mão? Eu pensei que já o
tivesse feito há muito tempo.
- Você sabe muito bem que não! - disse Polina com
arrebatamento. - Mas onde foi que você encontrou esse
inglês? - acrescentou, depois de um momento de
silêncio.
- Bem que eu sabia que você iria logo fazer-me
perguntas sobre ele. - Contei-lhe os meus encontros
anteriores com Mister Astley, em viagem. - Ele é tímido e
apaixonável, e, naturalmente, já se apaixonou por você,
não?
- Sim, está apaixonado por mim - respondeu Polina.
- E, naturalmente, ele é dez vezes mais rico que o
francês. De mais a mais, será que este possui realmente
algo? Não há dúvida sobre isso?
- Não há, não. Ele tem não sei que château (“castelo”.
(N. do T.)). Ainda ontem, o general me falou disso com
segurança. Bem, isso basta a você?
- Em seu lugar, eu não teria dúvidas: casaria com o
inglês.
- Por quê?
- O francês é mais bonito, mas é mais ignóbil; e o
inglês, além de honesto, possui dez vezes mais -
respondi abruptamente.
- Sim, mas, em compensação, o francês é marquês e
mais inteligente - respondeu ela, com ar sobremodo
tranquilo.
- Deveras - prossegui, no mesmo tom.
- Sem dúvida alguma.
As minhas perguntas desagradavam extremamente a
Polina; verifiquei que ela queria irritar-me com o tom e a
rispidez de suas respostas, e, no mesmo instante, disse-
lhe que o percebia.
- Sim, realmente, eu me divirto quando você se irrita.
Aliás, você tem que expiar o simples fato de eu lhe
permitir fazer-me tais perguntas e suposições.
- Eu me considero no pleno direito de fazer a você
quaisquer perguntas - respondi tranquilo -, justamente
porque estou pronto a expiá-las seja com o que for, até
com a própria vida.
Polina deu uma gargalhada.
- Da última vez que falamos, foi sobre o
Schlangenberg; você me disse que, a uma simples
palavra minha, estava pronto a atirar-se de cabeça para
baixo, e parece que ali são perto de mil pés de altitude.
Algum dia, hei de dizer essa palavra, unicamente para o
ver expiar tudo e, esteja certo, hei de manter com
firmeza a minha decisão. Você me é odioso, justamente
porque lhe permiti tanto, e, mais ainda, pelo fato de me
ser tão necessário. Mas, enquanto preciso de você, tenho
que resguardá-lo.
Começou a levantar-se. Estava falando com irritação.
Nos últimos tempos, ela terminava cada conversa
comigo com um sentimento de rancor e irritação, um
rancor verdadeiro.
- Permite você que lhe pergunte o que representa
Mademoiselle Blanche? - perguntei, desejoso de não
deixá-la partir sem uma explicação.
- Você mesmo sabe o que ela representa. Desde
então, por aqui não aconteceu nada de novo.
Mademoiselle Blanche, certamente, será esposa do
general; isso, naturalmente, se se confirmar a notícia do
falecimento da avó, porque tanto Mademoiselle Blanche
como a mãe desta, e ainda o marquês, cousin (“primo”.
(N. do T.)) em terceiro grau, sabem muito bem que
estamos arruinados.
- E o general está realmente apaixonado?
- Agora não se trata disso. Ouça e não esqueça: tome
estes setecentos florins e vá jogar, ganhe para mim na
roleta o mais que puder; no momento, preciso
urgentemente de dinheiro.
Em seguida, chamou com um grito Nádienka e dirigiu-
se para o cassino, onde se juntou a todo o nosso grupo.
Tomei o primeiro atalho à esquerda, pensativo e
surpreso. Aquela ordem de ir jogar na roleta foi para mim
como uma pancada na cabeça. Coisa estranha: eu tinha
em que pensar, e, no entanto, fiquei completamente
absorto com a análise dos meus sentimentos em relação
a Polina. Na realidade, aquelas duas semanas de
ausência foram mais fáceis para mim do que o dia do
regresso, embora, em viagem, eu sentisse uma angústia
de louco, me agitasse como se me faltasse o ar, e a
visse, mesmo em sonho, continuamente diante de mim.
De uma feita, na Suíça, adormeci no trem e, segundo
parece, pus-me a conversar com Polina, e isso fez com
que todos os meus companheiros de viagem rissem. E
agora, mais uma vez, formulei a mim mesmo a pergunta:
eu a amo? E, mais uma vez, não soube responder, ou
melhor, pela centésima vez respondi que a odiava. Sim,
ela me era odiosa. Havia momentos (mais precisamente,
sempre que uma conversa nossa chegava ao fim) em
que eu teria dado metade da minha vida para poder
estrangulá-la! Juro, se fosse possível empurrar-lhe
lentamente, para dentro do peito, um punhal afiado, eu,
parece-me, agarraria o cabo com delícia. E, no entanto,
juro por tudo o que existe de sagrado que, se ela me
tivesse realmente dito, no alto de Schlangenberg, o
passeio da moda: “Atire-se de cabeça” - eu o faria no
mesmo instante, e até mesmo com deleite. Eu sabia.
Deste ou daquele modo, a situação tinha que se resolver.
Ela compreende admiravelmente tudo isso, e a ideia de
que eu tenho consciência, absolutamente exata e
distinta, da sua inacessibilidade para mim, de toda a
impossibilidade da realização dos meus devaneios, essa
ideia, tenho certeza, causa-lhe um prazer extraordinário;
de outro modo, poderia ela, que é cautelosa e
inteligente, ter comigo tais intimidades e franquezas?
Tenho a impressão de que, até agora, ela me olhou como
aquela imperatriz da antiguidade que se despia em
presença do seu escravo, não o considerando uma
pessoa. Sim, muitas vezes, ela não me considerou uma
pessoa...
No entanto, confiara-me um encargo: ganhar na
roleta, custasse o que custasse. Eu não tinha tempo de
pensar para quê, e com que rapidez, era preciso ganhar
dinheiro, e que novas considerações haviam surgido
naquele cérebro, que estava sempre calculando. Além
disso, nas duas semanas da minha ausência,
aparentemente ocorrera uma infinidade de fatos novos,
sobre os quais eu ainda não tinha qualquer noção. Era
preciso adivinhar, desvendar tudo isso, o quanto antes.
Mas, naqueles momentos, não havia tempo para isto: era
preciso ir à roleta.
II
Confesso que aquilo me era desagradável; embora eu
estivesse resolvido a jogar, não contava de modo algum
começá-lo para outrem. Isso até me confundia um pouco,
e entrei na sala de jogo com um forte sentimento de
despeito. Desde o primeiro olhar, tudo me desagradou
ali. Não suporto o espírito de servilismo que se encontra
nos folhetins de todo o mundo e, sobretudo, em nossos
jornais russos, nos quais, quase toda primavera, os
nossos folhetinistas contam dois fatos: em primeiro
lugar, a magnificência e luxo extraordinários das salas de
jogo nas cidades de roleta do Reno, e em segundo, as
montanhas de ouro que, afirmam, ficam sobre as mesas.
E esses folhetinistas não são pagos para escrever isto;
contam-no apenas por espírito serviçal e desinteressado.
Não há qualquer magnificência nessas reles salas, e o
ouro não apenas não se amontoa sobre as mesas, mas
até mal existe ali. Naturalmente, vez por outra, no
decorrer da estação, aparece, de repente, algum
excêntrico, um inglês ou um asiático, ou um turco, por
exemplo, como aconteceu este verão, e, de chofre, perde
ou ganha uma quantia muito elevada; mas todos os
demais apostam uns escassos florins, e, normalmente,
há bem pouco dinheiro sobre a mesa. Depois que entrei
na sala de jogo (a primeira vez na vida), fiquei por algum
tempo sem me decidir a jogar. Além disso, eu era
comprimido pela multidão. Mas, ainda que estivesse
sozinho, penso que iria embora quanto antes e não
começaria a jogar. Batucava-me o coração, confesso, e
meu estado não era de sangue-frio; já sabia com certeza
- há muito o decidira - que não sairia sem maiores
novidades de Roletenburgo; algo de radical e definitivo
tinha que suceder indefectivelmente em meu destino.
Era preciso, e assim seria. Por mais ridículo que fosse o
fato de eu esperar tanto da roleta, tenho a impressão de
ser ainda mais ridícula a opinião rotineira, por todos
aceita, de que é estúpido e absurdo esperar algo do jogo.
E por que há de o jogo ser pior do que qualquer outro
meio de adquirir dinheiro, como, por exemplo, o
comércio? É verdade que, em cem jogadores, ganha
apenas um. Mas que tenho eu com isso?
Em todo caso, resolvi ficar a princípio prestando
atenção, e não iniciar nada de sério naquela noite. Ainda
que sucedesse algo, seria fortuito, ligeiro - foi o que
decidi. Por outro lado, era preciso também estudar o
próprio jogo; porque, apesar dos milhares de descrições
da roleta, que eu sempre lia com grande sofreguidão,
decididamente não compreendia nada do seu
funcionamento, antes de verificá-lo pessoalmente.
Em primeiro lugar, tudo me pareceu tão sujo - sujo e
ruim, de certo modo, do ponto de vista moral. Não me
refiro, de maneira nenhuma, a esses semblantes ávidos e
inquietos que, às dezenas, às centenas mesmo,
assediam as mesas de jogo. Não vejo absolutamente
nada de sujo no desejo de ganhar o quanto antes e o
mais possível; sempre me pareceu muito estúpido o
pensamento de um moralista supernutrido e bem
provido de haveres, que, ouvindo a defesa de alguém, no
sentido de que, “na verdade, joga-se aos pouquinhos”,
respondia: “tanto pior, porque é uma cupidez miúda”.
Como se a pequena e a grande cupidez não fossem a
mesma coisa. É um caso de proporções. O que é miúdo
para Rothschild, é uma grande riqueza para mim, e,
quanto a lucros e ganhos de jogo, os homens, mesmo
fora da roleta, em toda parte não fazem outra coisa
senão tirar ou ganhar algo uns dos outros. Se são, de
modo geral, ignóbeis o ganho e o enriquecimento, é
outra questão. Mas eu não vou resolvê-la agora. Como eu
próprio estivesse, no mais alto grau, possuído do desejo
do ganho, toda essa ambição e toda essa imundície
carregada de ambição, se assim quiserem, eram para
mim, no momento em que entrei na sala, de certo modo
mais familiares. A situação mais simpática é aquela em
que as pessoas não se envergonham umas das outras,
mas agem franca e abertamente. E para que enganar-se?
É a mais vã e imprudente das ocupações! O que havia de
mais feio, ao primeiro relance, em toda aquela corja de
jogadores, era o respeito pela ocupação, a seriedade e,
mesmo, a deferência com que todos assediavam as
mesas. Eis por que ali estava demarcada nitidamente a
diferença entre o jogo chamado mauvais genre (“tipo
ruim”. (N. do T.)) e outro permissível a uma pessoa
decente. Existem dois tipos de jogo: o dos cavalheiros e o
dos plebeus - este repassado da avidez de lucro, o jogo
de todos os pulhas. Ali, isso estava rigorosamente
diferençado; mas como esta diferença é, na realidade,
ignóbil! Um cavalheiro, por exemplo, pode apostar cinco
ou dez luíses de ouro, raramente mais; aliás, pode
apostar mesmo mil francos, no caso de ser muito rico,
mas unicamente pelo jogo em si, por divertimento
apenas - em essência, para verificar o processo de
ganhos ou perdas; mas de modo nenhum se deve
interessar pelo próprio ganho. Depois de ganhar, pode,
por exemplo, rir, fazer uma observação a alguém
próximo de si; pode até apostar mais uma vez e tornar a
duplicar o ganho, mas somente por curiosidade, a fim de
observar as probabilidades do jogo e fazer os seus
cálculos - não pelo desejo plebeu de ganhar. Em suma,
deve olhar para todas as mesas de jogo, roletas e trente
et quarante (“trinta e quarenta”, um jogo de cartas. (N.
do T.)), apenas como um divertimento, criado
unicamente para o seu prazer. Não deve suspeitar sequer
dos cálculos e artimanhas em que se baseia e pelos
quais se norteia a banca. Não seria nada mau, mas nada
mau mesmo, se, por exemplo, ele tivesse a impressão de
que também os demais jogadores - toda essa canalha
que treme sobre cada florim - são outros tantos ricaços e
cavalheiros, como ele próprio, e jogam apenas por
divertimento e desfastio. Este desconhecimento
completo da realidade e um modo tão inocente de ver as
demais pessoas seriam, naturalmente, aristocráticos ao
extremo. Eu via muitas mamãezinhas empurrarem para a
frente misses inocentes e elegantes, de quinze a
dezesseis anos, suas filhas, e, dando-lhes algumas
moedas de ouro, ensinarem-lhes como jogar. A senhorita
ganhava ou perdia, com um sorriso indefectível, e
afastava-se, muito satisfeita. O nosso general acercou-se
da mesa, com majestosa importância; um criado
precipitou-se para oferecer-lhe uma cadeira, mas ele
nem sequer notou o criado; puxou lentamente o seu
porta-níqueis; com igual lentidão, retirou dele trezentos
francos-ouro, pondo-os, depois, sobre o preto, e ganhou o
lance. Não apanhou o ganho, deixando-o sobre a mesa.
Deu novamente o preto; também dessa vez não apanhou
o dinheiro, e, no terceiro lance, quando saiu o vermelho,
ele perdeu de uma só vez mil e duzentos francos.
Afastou-se com um sorriso e conseguiur controlar-se.
Estou certo de que sentia uns gatos arranharem-lhe o
coração, e, fosse a aposta duas ou três vezes maior, teria
perdido o controle, revelando perturbação. Aliás, vi um
francês ganhar e, depois, perder perto de trinta mil
francos, alegremente e sem qualquer perturbação. Um
cavalheiro de verdade não deve ficar nervoso, mesmo no
caso de perder toda a fortuna. O dinheiro deve ficar
abaixo da condição do cavalheiro, de tal forma que não
valha quase a pena preocupar-se com ele. Naturalmente,
seria muito aristocrático não perceber absolutamente a
imundície de todos aqueles pulhas e do próprio
ambiente. Todavia, às vezes, não é menos aristocrático
também o comportamento oposto, isto é, notar, prestar
atenção, mesmo examinar, com um lornhão, por
exemplo, toda aquela canalha: mas que não seja de
outro modo a não ser aceitando toda aquela multidão e
aquela imundície como uma distração de caráter
especial, uma representação urdida para entretenimento
dos cavalheiros. É admissível acotovelar-se a gente em
meio àquela multidão, desde que se olhe em torno com
absoluta convicção de que se é apenas um observador
que não faz parte do conjunto. Se bem que, apesar de
tudo, não convém observar com muita insistência; não
será conduta de cavalheiro, pois, em todo caso, aquele
espetáculo não merece uma observação prolongada e
demasiado atenta. Aliás, são poucos os espetáculos que
merecem uma observação extremamente atenta de um
cavalheiro. No entanto, tive pessoalmente a impressão
de que tudo aquilo merecia uma observação muito
atenta, principalmente no caso de alguém que chegou
ali, não para a observação em si, mas considerando-se,
sincera e conscienciosamente, como parte de toda
aquela canalha. E quanto às minhas secretíssimas
convicções morais, naturalmente, não há para elas
espaço nestas minhas reflexões. Convenhamos que
assim seja; falo para limpar a consciência. Preciso,
porém, observar o seguinte: nos últimos tempos, eu
sentia uma repugnância horrível em conciliar minhas
ações e pensamentos com qualquer critério moral. Eu
obedecia a outro impulso...
A corja, realmente, joga de modo extremamente
imundo. Estou, mesmo, propenso a crer que se cometem,
à mesa de jogo, furtos dos mais vulgares. Os crupiês que,
sentados nos extremos da mesa, fiscalizam e pagam as
apostas, têm um trabalho insano. Mas, que crápulas
esses crupiês! São, na maioria, franceses. Aliás, se estou
observando e constatanto isso, não é absolutamente
para descrever a roleta, e sim para saber como proceder
no futuro. Observei, por exemplo, que o fato mais comum
é alongar-se, de repente, o braço de alguém, para
apropriar-se daquilo que você ganhou. Uma altercação
começa, não raro há gritos, mas vá provar, mesmo com o
auxílio de testemunhas, que a parada é sua!
A princípio, tudo isso era uma algaravia para mim; eu
apenas suspeitava e com dificuldade distinguia que as
apostas podiam ser sobre números, sobre par ou ímpar e
sobre cores. Naquela noite, resolvi arriscar cem florins do
dinheiro de Polina Aleksândrovna. A ideia de que estava
me lançando no jogo por conta alheia deixava-me um
tanto confuso. Era uma sensação extremamente
desagradável, e eu quis livrar-me dela o quanto antes.
Tinha continuamente a impressão de que, iniciando o
jogo por conta de Polina, estava solapando a minha
própria sorte. Será verdade que não possamos
aproximar-nos da mesa de jogo sem que a superstição
imediatamente nos domine? Comecei tirando cinco
friedrichsdors (Friedrichsdor - moeda de ouro prussiana,
cunhada, a primeira vez, por ordem de Frederico, o
Grande. (N. do T.)), isto é, cinquenta florins, e coloquei-os
no par. A roda girou e saiu o número treze; perdi,
portanto. Presa de certa sensação mórbida, unicamente
para dar um fim a tudo aquilo e ir embora, coloquei mais
cinco friedrichsdors no vermelho. Saiu o vermelho. Repeti
a aposta com os dez friedrichsdors, e saiu novamente o
vermelho. Tendo recebido quarenta friedrichsdors,
coloquei vinte sobre os doze números centrais, sem
saber o que resultaria disso. Pagaram-me o triplo. Deste
modo, no lugar dos meus dez friedrichsdors iniciais, vi-
me, de repente, com oitenta. Tive um sentimento tão
intolerável, em consequência de não sei que sensação
incomum e estranha, que decidi retirar-me. Tive a
impressão de que teria jogado de modo completamente
diverso, se o fizesse para mim. Todavia, coloquei todos os
oitenta friedrichsdors, mais uma vez, no par. Dessa vez,
saiu o quatro; atiraram-me outros oitenta friedrichsdors,
e, apanhando todo o monte de cento e sessenta
friedrichsdors, saí à procura de Polina Aleksândrovna.
Eles estavam todos passeando em alguma parte do
parque, e só consegui vê-la à hora da ceia. Dessa vez, o
francês estava ausente, e o general expressou-se com
franqueza: entre outras coisas, achou necessário
observar-me novamente que não gostaria de me ver à
mesa de jogo. Na sua opinião, ele ficaria muito
comprometido, se eu, de algum modo, perdesse dinheiro
demais; “contudo, mesmo que o senhor ganhe muito, eu
também ficarei comprometido - acrescentou de modo
significativo. - Naturalmente, não tenho o direito de
dispor das suas ações, mas deve concordar comigo...”.
Neste ponto, como de costume, deixou a frase em
suspenso. Respondi-lhe secamente que tinha muito
pouco dinheiro e, por conseguinte, não me podia fazer
notado pelas perdas, mesmo que me pusesse a jogar.
Subindo para o meu quarto, pude entregar a Polina o
seu ganho e declarei-lhe que não ia jogar mais para ela.
- Mas por quê? - perguntou, sobressaltada.
- Porque quero jogar para mim mesmo - respondi,
examinando-a surpreendido - e isso atrapalha.
- Então, continua firmemente convicto de que a roleta
é a sua única saída e salvação? - perguntou com
sarcasmo. Respondi, muito seriamente, que sim; e,
quanto à minha convicção de ganhar infalivelmente, eu
estava de acordo em que podia ser ridícula, “mas que
me deixassem em paz”.
Polina Aleksândrovna insistiu em partilhar comigo,
meio a meio, o lucro daquela noite, e entregou-me
oitenta friedrichsdors, propondo-me continuar a jogar nas
mesmas condições. Recusei, decidida e definitivamente,
a participação nos ganhos, e declarei-lhe que não podia
jogar por conta alheia, não por má vontade, mas porque,
certamente, ia perder.
- E, no entanto, eu mesma, por mais estúpido que isto
seja, também confio quase unicamente na roleta - disse
ela, pensativa. - Por isso você deve, sem falta, continuar
o jogo de parceria comigo, meio a meio, e naturalmente
vai fazê-lo. - E, dizendo isso, afastou-se de mim, sem dar
ouvidos às minhas objeções.
III
Todavia, passou ontem o dia todo sem me dizer
palavra sobre o jogo. E, de modo geral, evitou falar
comigo. Não mudou seu modo de me tratar. Ao
encontrar-me, tinha o mesmo jeito displicente e, até,
algo hostil e desdenhoso. De modo geral, não procura,
vejo-o bem, ocultar a sua repulsa por mim. Apesar disso,
não esconde igualmente que lhe sou necessário, e que
me está reservando para algo. Estabeleceram-se entre
nós certas relações estranhas, em grande parte
incompreensíveis para mim, tomando-se em
consideração o seu orgulho e altivez em relação a todos.
Sabe, por exemplo, que a amo até a demência, permite-
me até falar-lhe da minha paixão, e, naturalmente, não
haveria um meio de expressar mais intensamente o seu
desprezo por mim do que com esta permissão de lhe
falar do meu amor, sem qualquer obstáculo ou
contenção. Era como se dissesse: “Está vendo, faço tão
pouco caso dos seus sentimentos que me é de todo
indiferente o que possa dizer-me ou sentir por mim”.
Mesmo antes, falava-me muito dos seus negócios, mas
nunca fora completamente franca. Mais ainda, em seu
desdém por mim havia, por exemplo, sutilezas desta
ordem: sabendo que eu conhecia alguma circunstância
da sua vida ou algo daquilo que a deixava
profundamente inquieta, ela mesma começava a contar-
me certas particularidades sobre o assunto, no caso de
se tornar necessário aproveitar-me, de algum modo,
para os seus objetivos, como uma espécie de escravo ou
menino de recados; sempre, porém, contava apenas o
indispensável a um empregado que se utiliza como
mensageiro, e caso me fosse desconhecida, ainda, toda a
correlação dos acontecimentos, se ela mesma me via
sofrer e inquietar-me com os seus sofrimentos e as suas
inquietações, ainda assim, nunca se dignava a
tranquilizar-me inteiramente com a sua franqueza
amistosa, embora, utilizando-me não raro em tarefas não
só trabalhosas mas que até ofereciam perigo, ela tivesse,
a meu ver, obrigação de ser franca em relação a mim.
Mas valia a pena, acaso, preocupar-se com os meus
sentimentos, com o fato de que eu também me
sobressaltava e talvez me preocupasse e torturasse com
as suas preocupações e insucessos, três vezes mais que
ela própria?!
Eu já sabia, com umas três semanas de antecedência,
da sua intenção de jogar na roleta. Chegou até a
prevenir-me de que eu precisaria fazê-lo em seu lugar,
pois isso não seria decente para ela. Pelo tom de sua voz,
já notara então que ela era presa de certa preocupação
séria, e não apenas da vontade de ganhar dinheiro. Que
lhe importava o dinheiro em si?! No caso, existe um
objetivo, há não sei que circunstâncias, que posso
adivinhar, mas que, até o presente, desconheço.
Naturalmente, a humilhação e servilismo em que ela me
mantém poderiam dar-me (e, com muita frequência,
realmente dão) a possibilidade de eu mesmo inquiri-la
direta e rudemente. Sendo eu, em relação a ela, um
escravo e bem insignificante a seus olhos, não há motivo
para que se ofenda com a minha rude curiosidade.
Todavia, se me permite fazer-lhe perguntas, não as
responde. Às vezes, nem chega a percebê-las. Eis o que
sucede entre nós!
Falou-se muito ontem, em nosso grupo, de um
telegrama, enviado a Petersburgo há quatro dias, e que
não teve resposta. O general está visivelmente inquieto e
pensativo. Trata-se, naturalmente, da avó. Também o
francês está agitado. Ontem, por exemplo, após o jantar,
passaram muito tempo numa conversa séria. O tom de
voz do francês, em relação a todos nós, é altivo e
displicente. Bem diz o provérbio: “Dá-se a ponta de um
dedo e querem logo a mão”. Mesmo em relação a Polina,
usa um tom descuidado, que chega à grosseria; aliás,
participa com prazer dos passeios em grupo pelo cassino
ou das cavalgadas e outras excursões fora da cidade. Há
muito que conheço algumas das circunstâncias que
ligaram o francês ao general: na Rússia, pretendiam abrir
uma usina em sociedade; não sei se o projeto fracassou
ou se continuam a falar dele. Além disso, fiquei sabendo,
por acaso, parte de um segredo de família: o francês
realmente salvou, no ano passado, o general de um
embaraço, fornecendo-lhe trinta mil rublos, para
completar o que faltava na caixa, antes da transmissão
do seu cargo público. E, naturalmente, o general ficou
sob o seu domínio; mas agora, exatamente agora, quem
desempenha o papel principal, apesar de tudo, é Mlle.
Blanche, e estou certo de que não erro nisso.
Quem é Mlle. Blanche? Em nosso meio, dizem que ela
é uma francesa da melhor sociedade, que vive com a
mãe e dispõe de uma fortuna imensa. Sabe-se também
que há certo grau de parentesco entre ela e o nosso
marquês, mas um parentesco bem remoto, algo como
prima em segundo grau. Conta-se que, antes da minha
viagem a Paris, o francês e Mlle. Blanche tinham entre si
relações bem mais cerimoniosas, acentuadas por uma
nota de delicadeza; atualmente, porém, a amizade e
parentesco entre eles parecem, de certo modo, mais
rudes e íntimos. É possível que os nossos negócios lhes
pareçam tão ruins, que eles nem considerem mais
necessário fazer muita cerimônia conosco e simular
diante de nós. Ainda anteontem notei como Mister Astley
estava examinando Mlle. Blanche e a mãezinha desta.
Tive a impressão de que ele as conhecia. Pareceu-me,
até, que o nosso francês também se tenha encontrado
antes com Mister Astley. Este, aliás, é a tal ponto
encabulado, tímido e silencioso, que se pode quase
confiar nele. Certamente, não levará lixo para fora de
casa. Pelo menos, o francês mal o cumprimenta e quase
não olha para ele; logo, não o teme. Isto ainda é
compreensível; mas por que Mlle. Blanche também
quase não olha para ele? Tanto mais que, ontem, o
marquês se traiu: em meio de uma conversa geral, não
me lembro a propósito do quê, disse que Mister Astley
era imensamente rico e que ele tinha certeza disso; bem
que era caso de Mlle. Blanche olhar para Mister Astley
com maior atenção. Quanto ao general, está inquieto.
Compreende-se o que pode significar para ele, agora, um
telegrama comunicando a morte da tia!
Embora eu tivesse impressão segura de que Polina
evitava falar comigo, e isto parecesse intencional, assumi
também um ar frio e indiferente: pensava que, apesar de
tudo, ela viria a mim. Em compensação, ontem e hoje,
dirigi toda a minha atenção para Mlle. Blanche. Pobre
general, está irremediavelmente perdido! Apaixonar-se
aos cinquenta e cinco anos, com tanta força, é,
naturalmente, uma infelicidade. Acrescentem-se a isto a
sua viuvez, os filhos, a propriedade rural completamente
arruinada, as dívidas e, finalmente, a mulher por quem
lhe coube apaixonar-se. Mlle. Blanche é bonita. Mas não
sei se vou ser compreendido, dizendo que ela tem um
desses rostos que podem assustar. Pelo menos, sempre
tive medo de semelhantes mulheres. Deve ter uns vinte
e cinco anos. É alta e de ombros largos, abruptos; tem
busto e pescoço magníficos; o tom da pele é moreno
amarelado, e os cabelos, negros como nanquim, tão
abundantes que dariam para dois penteados. Tem olhos
negros, de esclerótica amarela, olhar insolente, dentes
muito brancos e lábios sempre pintados; cheira a
almíscar. Veste-se com imponência e riqueza, luxo, mas
com muito gosto. Tem pés e mãos admiráveis. A voz é de
contralto, um tanto rouca. De vez em quando, solta uma
gargalhada, mostrando todos os dentes; comumente,
porém, sua expressão é quieta, mas atrevida, pelo
menos na presença de Polina e de Mária Filípovna. (Um
boato esquisito: Mária Filípovna está prestes a voltar para
a Rússia.) Mlle. Blanche, parece-me, não possui qualquer
instrução, talvez nem seja inteligente, mas em
compensação é astuta e desconfiada. Tenho a impressão
de que em sua vida não faltaram aventuras. Para dizer
tudo, é possível que o marquês não seja seu parente, e a
mãe não seja propriamente mãe. Consta, no entanto,
que, em Berlim, onde nos reunimos, ela e a mãe tinham
algumas relações importantes. Quanto ao próprio
marquês, embora eu, até o presente, ponha em dúvida
este seu título, não parece haver dúvida de que tenha
pertencido à boa sociedade, em Moscou, por exemplo, e
em algumas cidades da Alemanha. Não sei o que ele
representa em França. Dizem que tem um château.
Pensei que, nestas duas semanas, muita água ia correr,
e, no entanto, ainda não sei se já foi dito algo decisivo
entre o general e Mlle. Blanche. De modo geral, tudo
depende agora da nossa condição financeira, isto é, das
possibilidades do general em mostrar-lhes muito
dinheiro. Se, por exemplo, chegasse a notícia de que a
avó não morreu, estou certo de que Mlle. Blanche
desapareceria de imediato. Eu mesmo acho
surpreendente e ridículo o fato de me ter tornado tão
linguarudo. Oh, como tudo isso me repugna! Que delícia
não seria abandonar tudo e todos! Mas posso, acaso,
afastar-me de Polina, deixar de espionar em torno dela?
Está claro que é ignóbil espionar, mas que me importa
isso?
Também achei curioso observar Mister Astley, ontem e
hoje. Sim, tenho certeza de que está enamorado de
Polina! É curioso e ridículo quanto pode expressar, às
vezes, o olhar de uma pessoa tímida, morbidamente
pudica, atingida pelo amor, precisamente na ocasião em
que essa pessoa preferiria sumir debaixo da terra a
expressar algo, com a palavra ou com o olhar. Mister
Astley encontra-se frequentemente conosco, no decorrer
dos passeios. Então, tira o chapéu e passa por nós,
certamente morto de vontade de unir-se ao grupo. Mas,
sendo convidado, imediatamente recusa. Nos lugares de
repouso, no cassino, ao ouvir-se música ou diante do
repuxo, detém-se invariavelmente nas proximidades de
nosso banco, e, onde quer que estajamos, no parque, no
bosque ou sobre o Schlangenberg, basta mover os olhos
em redor para que se veja infalivelmente aparecer em
alguma parte, no atalho mais próximo ou atrás de um
arbusto, um pedacinho de Mister Astley. Tenho a
impressão de que está procurando a oportunidade para
uma conversa reservada comigo. Encontramo-nos hoje
de manhã e trocamos duas palavras. Às vezes, fala de
modo extremamente brusco. Sem me dizer “bom dia”,
começou: - Ah, essa Mademoiselle Blanche!... Já vi
muitas mulheres do tipo de Mademoiselle Blanche!
Calou-se, olhando-me com ar significativo. Não sei o
que pretendia dizer, porquanto, à minha pergunta sobre
o que significava aquilo, fez um aceno de cabeça, com
um sorriso astuto, e acrescentou: - Assim é.
Mademoiselle Pauline gosta muito de flores?
- Não sei, não sei absolutamente - respondi.
- Como! Não sabe isso também? - exclamou,
profundamente surpreendido.
- Não sei, não notei nada - repeti rindo.
- Hum! isto me sugere certa ideia especial. - Nesse
momento, fez um gesto com a cabeça e afastou-se.
Tinha, por sinal, um ar satisfeito. Converso com ele num
francês detestável.
IV
Hoje foi um dia ridículo, escandaloso, absurdo. São
onze da noite. Estou sentado no meu cubículo,
lembrando tudo. Para começar, de manhã não tive outro
remédio senão ir jogar na roleta, por conta de Polina
Aleksândrovna. Levei todos os seus cento e sessenta
friedrichsdors, mas com duas condições: a primeira, que
eu não queria jogar a meias, isto é, se ganhasse, nada
levaria para mim; a segunda que, de noite, Polina devia
explicar-me por que andava em tal necessidade de
ganhar, e quanto exatamente. Não posso de nenhum
modo supor que fosse simplesmente por causa de
dinheiro. No caso, sem dúvida, o dinheiro era
indispensável, e o quanto antes, para algum fim especial.
Prometeu explicar-me tudo e fui jogar. Nas salas de jogo,
havia uma horrível multidão. Como são atrevidos e
sôfregos! Abrindo caminho à força, cheguei ao centro e
fiquei bem ao lado do crupiê; em seguida, comecei a
experimentar timidamente o jogo, apostando duas ou
três moedas de cada vez. Nesse ínterim, fiquei
observando e fazendo descobertas; tive a impressão de
que, propriamente, o cálculo tem muito pouca
importância, e de modo nenhum aquela que lhe atribuem
inúmeros jogadores. Eles ficam sentados com os seus
papeizinhos divididos em colunas, observam os lances,
contam, consideram as probabilidades, fazem cálculos,
finalmente apostam e... perdem exatamente como nós
outros, simples mortais, que jogamos sem calcular. Em
compensação, cheguei a uma conclusão que parece
exata: com efeito, na sucessão dos resultados casuais,
existe não um sistema, mas uma espécie de ordem, o
que, naturalmente, é muito estranho. Por exemplo,
acontece saírem, depois dos doze números centrais, os
doze últimos; duas vezes, digamos, a sorte recai nesses
doze últimos e, depois, passa para os doze primeiros. Em
seguida, recai mais uma vez sobre os doze do meio, e
ainda três, quatro vezes consecutivas, sobre estes,
passando de novo para os doze últimos, de onde, após
duas vezes, torna aos primeiros, passa ainda para os
médios, em que dá três batidas, e assim ocorre durante
uma hora e meia ou duas. Um, três e dois, um, três e
dois. É muito divertido. Um dia, ou certa manhã, por
exemplo, acontece que o vermelho é seguido do negro, e
vice-versa, quase sem nenhuma ordem, a todo instante,
de modo que a sorte não recai mais de duas ou três
vezes seguidas sobre o vermelho ou o negro. No dia ou
na noite seguintes, acontece digamos sair apenas o
vermelho mais de vinte e duas vezes seguidas, e assim
ocorre, invariavelmente, por algum tempo, às vezes um
dia inteiro. Muitos pormenores sobre este fato me foram
explicados por Mister Astley, que passou a manhã inteira
junto às mesas de jogo, mas não fez nenhuma aposta.
Quanto a mim, perdi completamente tudo, e em bem
pouco tempo. Logo no início, apostei no par vinte
friedrichsdors e ganhei, apostei mais cinco e tornei a
ganhar, e assim mais duas ou três vezes. Creio que, em
cinco minutos, tive nas mãos perto de quatrocentos
friedrichsdors. Deveria afastar-me nesse momento, mas
nasceu então em mim certa sensação estranha, certo
desafio ao destino, um desejo de dar a este um piparote,
mostrar-lhe a língua. Arrisquei a maior quantia permitida,
quatro mil florins, e perdi. Depois, em minha excitação
apanhei tudo o que me restava, repeti o lance e tornei a
perder, afastando-me da mesa como se tivesse levado
uma pancada na cabeça. Chegar a não compreender o
que me acontecia, e foi apenas pouco antes do jantar
que relatei o sucedido a Polina Aleksândrovna. Até
aquela hora, fiquei vagando pelo parque.
No decorrer do jantar, estava novamente de ânimo
exaltado, como três dias antes. Como daquela vez,
jantavam conosco o francês e Mlle. Blanche. Aconteceu
que ela estivera de manhã nas salas de jogo e assistira
às minhas proezas. Dessa vez, começou a falar comigo
de modo mais atencioso. O francês foi mais direto e
perguntou-me simplesmente se o dinheiro que eu havia
perdido era de fato meu. Tenho a impressão de que
desconfia de Polina. Numa palavra, existe algo em tudo
isso. No mesmo instante, menti e disse que o dinheiro
era meu.
O general estava extremamente surpreendido: onde
arranjara eu tanto dinheiro? Expliquei-lhe que havia
começado com dez friedrichsdors, que seis a sete lances
felizes, a dobrar, levaram-me a ganhar cinco a seis mil
florins, e que, depois, perdi tudo em dois lances.
Naturalmente, era verossímil. Explicando-o, lancei um
olhar a Polina, mas nada pude compreender na
expressão do seu rosto. Contudo, ela me deixou mentir e
não me corrigiu; concluí disso que devia, realmente,
mentir e ocultar que tinha jogado por conta dela. Em
todo caso, pensei, deve-me uma explicação, e de manhã
prometera revelar-me algo.
Eu esperava que o general me fizesse alguma
observação, mas ele manteve-se calado; no entanto,
percebi em seu rosto intranquilidade e perturbação. Na
dura contingência em que se encontrava, talvez lhe fosse
simplesmente penoso ouvir que uma porção assim
respeitável de ouro tivesse passado, durante um quarto
de hora, pelas mãos de um imprudente imbecil como eu.
Desconfio que, ontem à noite, ele teve alguma
discussão veemente com o francês. Trancados no quarto,
passaram muito tempo a falar acaloradamente. O
francês, ao sair dali, parecia irritado, e hoje de manhã,
bem cedo, foi de novo procurar o general, provavelmente
a fim de continuar a conversa de ontem.
Ouvindo o relato das minhas perdas no jogo, o francês
observou-me de modo sarcástico, e até com rancor, que
eu devia ter sido mais prudente. Acrescentou ainda, não
sei com que intenção, que embora muitos russos joguem,
eles são, a seu ver, incompetentes até para jogar.
- Mas, na minha opinião, a roleta foi criada justamente
para os russos - disse eu, e, depois que o francês sorriu
com desdém, observei-lhe que, naturalmente, a verdade
estava do meu lado, pois, falando dos russos como
jogadores, eu os estava injuriando mais que louvando, e
que, por conseguinte, era preferível acreditar em mim.
- Mas, em que baseia a sua opinião? - perguntou o
francês.
- No fato de que, no catecismo das virtudes e méritos
do civilizado homem ocidental, entrou historicamente, e
quase na qualidade de primeira condição, a capacidade
de adquirir capitais. E, quanto ao russo, este não
somente é incapaz de adquiri-los, mas até os dilapida à
toa, de modo vil. Todavia nós, russos, também
precisamos de dinheiro - acrescentei - e, por
conseguinte, ficamos muito satisfeitos com meios como a
roleta, pelos quais temos um grande fraco, e graças aos
quais se pode enriquecer de repente, em umas duas
horas, sem trabalhar. Isso nos seduz ao extremo; e, como
jogamos à toa, sem esforço, invariavelmente perdemos!
- Isso, em parte, é justo - observou com ar
autossuficiente o francês.
- Não, isso é injusto, e o senhor devia ter vergonha de
se referir assim à sua pátria - observou o general, severa
e solenemente.
- Vejamos uma coisa - respondi. Na verdade, não se
sabe ainda o que é mais ignóbil: se a conduta horrível
dos russos ou o método alemão de acumular, por meio
de trabalho honesto.
- Que pensamento horrível! - exclamou o general.
- Que pensamento russo! - exclamou o francês.
Eu ria, tinha muita vontade de provocá-los.
- Gostaria mais de passar toda a vida como um
nômade, levando comigo uma tenda de quirguiz (Grande
parte da população da Quirguízia deixou a vida nômade
somente no século XX. (N. do T.)) - disse eu gritando - do
que inclinar-me ante o ídolo alemão.
- Que ídolo? - gritou também o general, começando já
a ficar seriamente zangado.
- O método alemão de acumulação de riqueza. Estou
aqui há pouco tempo, mas, apesar de tudo, o que já
pude notar e verificar deixa indignada a minha natureza
tártara. Juro por Deus, não desejo essas virtudes! Ontem,
já tive ocasião de andar umas dez verstas nestas
redondezas. Bem, vi exatamente o mesmo que se
encontra nos livrinhos ilustrados alemães, destinados a
pregar moral: em cada casa existe um Vater (“Pai”. Em
alemão no original. (N. do T.)), terrivelmente virtuoso e
extraordinariamente honesto. Tão honesto, que dá até
medo aproximar-se dele. Eu não suporto as pessoas
honestas das quais temos medo de nos aproximar. Cada
um desses Vaters possui uma família e, ao anoitecer,
todos eles leem em voz alta livros instrutivos. Olmos e
castanheiros farfalham sobre a casinhola. O pôr do sol,
uma cegonha no telhado, tudo é poético e tocante ao
extremo... Não se zangue, meu general, permita-me
contar tudo do modo mais comovente. Eu mesmo estou
lembrado de como o meu falecido pai lia ao anoitecer,
também sob umas tiliazinhas, em nosso jardim, para
mim e a minha mãe, livros semelhantes... Posso,
portanto, fazer sobre isso um juízo equitativo. Pois bem,
cada uma dessas famílias daqui está em completa
escravidão e dependência em relação ao Vater. Todos
trabalham como uns bois e acumulam dinheiro como
judeus. Suponhamos que o Vater já economizou certo
número de florins e conta com o filho mais velho para lhe
transmitir o ofício ou um pedacinho de terra; a fim de
que isto seja possível, deixa-se de dar um dote à filha, e
esta permanece solteirona. Com o mesmo fim, o filho
mais novo é vendido para trabalhos servis ou para ser
soldado, e acrescenta-se o dinheiro assim obtido ao
capital da família. Isto se faz aqui, realmente; tomei
informações. Tudo isso não tem outro móvel senão a
honestidade, uma honestidade extremada, a ponto de o
próprio filho mais novo acabar acreditando que foi
vendido exclusivamente por uma questão de
honestidade. E, realmente, chega-se ao ideal quando a
própria vítima se alegra por estar sendo conduzida para
a imolação. E que mais acontece? Acontece que o filho
mais velho também não se sente melhor: tem ele uma
certa Amalchen, com a qual se ligou de coração; no
entanto, o casamento é impossível, porque não se
acumulou ainda certo número de florins. Também neste
caso se espera sinceramente e com bons modos, e é
sinceramente e com um sorriso que se caminha para o
sacrifício. Amalchen tem já as faces encovadas, está
ficando ressequida. Finalmente, uns vinte anos depois, os
bens foram multiplicados, os florins acumulados honesta
e virtuosamente. O Vater abençoa o primogênito
quarentão e Amalchen, que tem agora trinta e cinco
anos, o peito seco e o nariz rubicundo... chora, prega
uma lição de moral e morre. O primogênito, por sua vez,
transforma-se num Vater virtuoso, e recomeça a história.
Uns cinquenta ou setenta anos depois, o neto do primeiro
Vater consegue, realmente, reunir um capital
considerável e transmite-o a seu filho, que o transmitirá
por sua vez, e assim após umas cinco ou seis gerações,
surge o próprio Barão Rothschild, ou então a firma Goppe
& Cia. (Famosa casa bancária em Amsterdã e Londres.
(N. do T.)) ou sabe o diabo o quê. Com efeito, tem-se um
espetáculo grandioso: transmitem-se, durante cem ou
duzentos anos, o trabalho, a paciência, a inteligência, a
honestidade, o caráter, a firmeza, o hábito de calcular
tudo, a cegonha no telhado! Que mais querem?
Realmente, não existe nada acima disso, e, a partir desse
ponto, eles começam a julgar todo mundo, e a executar
imediatamente os culpados, isto é, aqueles que não se
parecem com eles um pouco sequer. Pois bem, o caso
está no seguinte: quanto a mim, prefiro tornar-me
devasso à moda russa ou ganhar na roleta. Não quero
transformar-me em Goppe & Cia., depois de cinco
gerações. Preciso de dinheiro para mim mesmo, e não
considero toda a minha pessoa algo indispensável e
suplementar a um capital. Sei que disse uma porção de
inconveniências, mas assim seja. Tais são as minhas
convicções.
- Não sei se há muita verdade no que o senhor disse -
observou o general, com ar pensativo -, mas estou certo
de que se torna um farsante intolerável desde que lhe
deem um pouquinho de liberdade...
Como de costume, não terminou a frase. Quando o
nosso general começava a falar de algo que fosse ao
menos um pouco mais sério que a conversa habitual,
nunca chegava a concluir o que dizia. O francês estava
ouvindo com displicência, os olhos um pouco
arregalados. Não compreendeu quase nada do que eu
dissera. Polina tinha certo ar de altiva indiferença.
Parecia ter deixado de ouvir, não apenas as minhas
palavras, mas toda aquela conversa à mesa.
V
Estava extremamente pensativa, mas, apenas nos
levantamos, ordenou-me que a acompanhasse num
passeio. Chamamos as crianças e dirigimo-nos para o
parque, em direção do repuxo.
Como eu estivesse particularmente exaltado, deixei
escapar de modo estúpido e grosseiro a pergunta: por
que o nosso Marquês Des Grieux (Personagem do
romance Manon Lescaut, do Abade Prévost. (N. do T.)), o
francesinho, não somente não a estava acompanhando
então, quando ela saía para alguma parte, mas, até,
passava dias inteiros sem falar com ela?
- Porque é um canalha - respondeu-me, de modo
estranho. Até então, eu nunca ouvira dela semelhante
opinião sobre Des Grieux, e calei-me, temeroso de
compreender aquela irritação.
- Reparou que, hoje, ele não está em boas relações
com o general?
- Você quer saber do que se trata - respondeu ela, de
modo seco e irritado. - Você sabe que o general
hipotecou-lhe completamente todas as suas
propriedades e, se a avó não morrer, o francês entrará
imediatamente na posse do penhor.
- Então, é verdade mesmo que tudo está hipotecado?
Ouvi dizer, mas não sabia que se tratava realmente de
tudo.
- Como podia ser diferente?
- E, nesse caso, adeus Mademoiselle Blanche -
observei. - Não será mais generala! Sabe de uma coisa?
Tenho a impressão de que o general está apaixonado a
tal ponto que, se Mademoiselle Blanche o abandonar,
será capaz de suicidar-se. Na idade dele, é perigoso
apaixonar-se assim.
- Tenho também a impressão de que alguma coisa vai
acontecer com ele - observou Polina Aleksândrovna,
pensativa.
- É magnífico! - exclamei. - Não pode haver um modo
mais rude de se mostrar que foi unicamente por causa
de dinheiro que ela concordou em casar-se com ele. Nem
sequer se cuidou de guardar as aparências, tudo
aconteceu sem qualquer cerimônia. Que maravilha! E,
quanto à avó, o que pode haver de mais cômico e
imundo do que enviar um telegrama após outro,
perguntando: “Já morreu, já morreu?”. Hem, que acha
disso, Polina Aleksândrovna?
- Tudo isso é absurdo - disse ela com repugnância,
interrompendo-me. - Eu, ao contrário, fico admirada por
você estar assim alegre. Ficou contente como o quê?
Será porque perdeu o meu dinheiro no jogo?
- Para que me deixou perdê-lo? Eu lhe disse que não
podia jogar por conta alheia, sobretudo para você. Vou
obedecer, sejam quais forem as suas ordens; mas o
resultado não depende de mim. Avisei bem que não daria
certo. Diga-me: está muito aborrecida pelo fato de ter
perdido tanto dinheiro? Para que precisa de uma quantia
tão grande?
- Para que essas perguntas?
- Mas você mesma prometeu-me explicar... Escute:
estou plenamente convencido de que, depois de começar
a jogar por minha conta (e eu tenho doze friedrichsdors),
hei de ganhar. Então, leve quanto quiser.
Ela teve uma expressão desdenhosa.
- Não se zangue comigo - prossegui - por causa desde
oferecimento. Estou a tal ponto imbuído da convicção de
ser um zero perto de você, isto é, a seus olhos, que você
pode até levar dinheiro de mim. Não pode ofender-se
com o meu presente. Além disso, o dinheiro que perdi
era seu.
Lançou-me um olhar rápido e, percebendo que eu
estava falando com irritação e sarcasmo, tornou a
interromper-me: - Não lhe interessa de modo algum o
que sucede comigo. Se quer saber, estou simplesmente
endividada. O dinheiro foi tomado por mim de
empréstimo, e eu gostaria de devolvê-lo. Tive o
pensamento louco e estranho de que, infalivelmente, ia
ganhar dinheiro nesta cidade, à mesa do jogo. Não
compreendo por que me surgiu esse pensamento, mas
acreditei nele. Quem sabe? Talvez eu acreditasse
justamente por não me sobrar nenhuma outra
probabilidade.
- Ou porque houvesse demasiada necessidade de
ganhar. É exatamente o caso do afogado que se agarra a
uma palhinha. Deve convir comigo que, se ele não
estivesse submergindo, não tomaria a palhinha por um
galho de árvore.
Polina ficou admirada.
- Como assim? - perguntou. A sua esperança não era
do mesmo gênero? Há duas semanas, você me falou
longamente da sua certeza absoluta de ganhar aqui na
roleta e procurou convencer-me a que não o
considerasse um doido; estava, então, brincando? Mas,
lembro-me, falava com tanta seriedade que de modo
nenhum se poderia tomar aquilo por uma brincadeira.
- É verdade - respondi pensativo. - Até agora, estou
plenamente certo de ganhar. Confesso-lhe, até, que você
acaba de me sugerir a pergunta: por que a minha perda
de hoje, tão horrível e sem sentido, não deixou em mim
qualquer dúvida? Apesar de tudo, estou absolutamente
convicto de que hei de ganhar, apenas comece a jogar
por minha conta.
- Mas, por que tem essa certeza?
- Palavra que não sei como lhe responder. Sei apenas
que preciso ganhar, que é, igualmente, a única saída
para mim. Eis, talvez, por que eu tenho esta impressão
de que devo infalivelmente ganhar.
- Quer dizer que você também tem uma necessidade
demasiada, se está fanaticamente convencido do ganho?
- Sou capaz de jurar que você duvida da minha
capacidade de sentir uma necessidade séria.
- Pouco me importa isso - respondeu Polina,
tranquilamente e com indiferença. - Se quer saber: sim,
duvido que algo possa atormentá-la seriamente. É capaz
de se atormentar, mas não seriamente. Você é uma
pessoa desordenada e que não se deteve em algo. Para
que precisa de dinheiro? Em todas as razões que me
apresentou, não encontro nada de sério.
- Aliás - interrompi - você disse que precisa pagar uma
dívida. Deve ser, pois, uma bela dívida! Não será para o
francês?
- Que perguntas são essas? Hoje você está
particularmente rude. Não estará bêbado?
- Já sabe que me permito dizer tudo e, às vezes, faço
perguntas muito francas. Repito, sou seu escravo e não
se tem vergonha de um escravo: o escravo não pode
ofender a ninguém.
- Tudo isso é bobagem! E eu não suporto esta sua
teoria de “escravidão”.
- Repare que não falo da minha escravidão porque
deseje ser seu escravo, refiro-me a isto como um fato
que absolutamente não depende de mim.
- Diga-me francamente: para que precisa de dinheiro?
- E para que precisa sabê-lo?
- Como queira - respondeu ela com um movimento
altivo da cabeça.
- Não tolera a teoria da escravidão, mas exige a
condição de escravo: “Responder e não argumentar!”.
Está bem, seja. Pergunta-me para que quero dinheiro.
Como assim? O dinheiro é tudo!
- Compreendo, mas não há razão para se ficar assim
demente, só por desejá-lo! Você também está chegando
à exaltação, ao fatalismo. Nisso, existe algo, um objetivo
particular. Fale sem rodeios, eu quero.
Parecia que ela começava a zangar-se, e agradou-me
extremamente o fato de que me interrogasse com
tamanho arrebatamento.
- Está claro que há um objetivo - disse eu -, mas não
saberia explicar em que consiste. Nada mais a não ser
que, possuindo dinheiro, vou tornar-me para você
também uma outra pessoa e não um escravo.
- Como? Como vai consegui-lo?
- Como vou consegui-lo? Então não é, ao menos,
capaz de compreender que eu possa conseguir que você
não me olhe mais como a um escravo? Pois bem, é
justamente o que não quero - esses espantos e
surpresas.
- Você disse que está nessa escravidão a sua delícia.
Eu mesma também pensei assim.
- Pensou assim! - exclamei, com uma volúpia
estranha. - Ah, como é boa esta sua ingenuidade! Pois
bem, realmente, ser o seu escravo é uma delícia para
mim. No derradeiro grau da humilhação e insignificância
há um certo deleite, sim! - prossegui num delírio. - Sabe
lá o diabo se ele não se acha também na chibata quando
esta desce sobre as costas e nos dilacera a carne... Mas
eu quero, talvez, experimentar outras delícias também.
Ainda há pouco o general me deu uma lição de moral
diante de você, à mesa, por causa de setecentos rublos
por ano, e que eu talvez nem receba dele. O Marquês
Des Grieux examina-me, erguendo as sobrancelhas, e, ao
mesmo tempo, não me nota. E eu, por outro lado, talvez
deseje ardentemente puxar pelo nariz o Marquês Des
Grieux, na sua presença.
- Argumentos de fedelho. Em toda situação é possível
conduzir-se com dignidade. E havendo luta, ela há de
enobrecer, em vez de aviltar.
- Isto saiu diretamente de um caderno escolar!
Suponha, simplesmente, que eu talvez não saiba situar-
me com dignidade. Isto é, sou talvez uma pessoa digna,
mas não sei conduzir-me com dignidade. Compreende
que possa ocorrer uma situação dessas? Sim, todos os
russos são assim, mas sabe por quê? Pois bem, eles
receberam dons demasiadamente ricos e variados, para
que possam rapidamente encontrar para si uma forma
decente. O caso está exatamente na forma. Na maior
parte dos casos, nós, russos, somos tão ricamente
dotados que, para assumir uma forma decente,
precisamos da genialidade. Bem, o mais comum é não se
ter genialidade, pois, em geral, ela é rara. Unicamente
entre os franceses, e talvez entre mais alguns europeus,
a forma se delineou tão bem que se pode aparentar uma
extraordinária dignidade e ser, ao mesmo tempo, o mais
indigno dos homens. É por isso que a forma tem entre
eles tão grande significação. Um francês é capaz de
suportar uma ofensa, uma verdadeira ofensa moral, sem
uma careta; mas de modo nenhum há de tolerar um
piparote no nariz, pois isso representa uma transgressão
da forma de decência aceita por todos e consagrada
secularmente. As nossas senhoritas são suscetíveis aos
encantos de um francês, justamente por causa de sua
excelente forma. A meu ver, no entanto, não há nisso
forma alguma, mas apenas um galo, le coq gaulois (“o
galo gaulês”. É o símbolo da França. (N. do T.)). Aliás, eu
não posso compreender isso, não sou mulher. Talvez os
galos tenham o seu encanto. E de modo geral, estou
falando demais, e você não me detém. Interrompa-me
com maior frequência; quando estou falando com você,
tenho vontade de dizer tudo, tudo, tudo. Perco então
toda forma. Concordo, até, que não possuo boas
maneiras, nem também qualquer espécie de qualidades.
Declaro-lhe isso agora. Nem me preocupo, sequer, com
quaisquer qualidades. Agora, tudo se paralisou em mim.
Você mesma sabe a razão disso. Não tenho na cabeça
qualquer pensamento humano. Há muito tempo que não
sei o que está acontecendo no mundo, tanto na Rússia
como aqui. Eu passei, por exemplo, por Dresden, e não
me lembro mais como ela é. Você mesma sabe o que me
absorveu. Visto que eu não tenho nenhuma esperança e,
a seus olhos, sou um zero, digo-lhe francamente: vejo
você em toda parte, e o resto me é indiferente. Não sei
por que e de que modo eu a amo. Sabe você que talvez
nem tenha qualidades? Imagine que nem sei se é bonita
de rosto. O seu coração, certamente, é mau, e a
inteligência, destituída de nobreza; isto é muito possível.
- Talvez pretenda comprar-me com dinheiro - disse ela
- justamente por não acreditar na minha nobreza?
- Quando foi que pensei em comprá-la com dinheiro? -
gritei.
- Você ficou confuso e perdeu o fio do discurso. Se não
pensa em comprar-me, pretende adquirir com dinheiro a
minha consideração.
- Não, não é bem assim. Já lhe disse que me exprimo
com dificuldade. Você me deixa esmagado. Não se
zangue com a minha tagarelice. Compreenda por que é
que não se pode ficar zangado comigo: sou
simplesmente um louco. Aliás, é indiferente para mim,
mesmo que fique zangada. Chegando lá em cima, no
meu cubículo, basta-me lembrar e imaginar apenas o
ruído do seu vestido, e já fico em condições de morder as
mãos. E por que se zanga comigo? Porque eu digo ser
um escravo? Aproveite-se, aproveite-se da minha
escravidão, aproveite-se! Sabe que, um dia, vou matá-la?
Não será por ter deixado de amá-la ou por ciúme, mas
sem maiores motivos, simples porque, às vezes, tenho
vontade de devorá-la. Está rindo...
- Não estou rindo, absolutamente - disse ela, com
indignação. - Ordeno-lhe que se cale.
Deteve-se, quase sufocada pela cólera. Juro por Deus,
não sei se ela era bonita, mas eu gostava sempre de vê-
la parar assim diante de mim, isto me incitava a
provocar-lhe frequentemente a ira. Talvez ela o tivesse
notado e se zangasse de propósito. Eu lhe disse isto.
- Que imundície! - exclamou com repugnância.
- Para mim, é indiferente - prossegui. - E há outra
coisa a dizer-lhe: é perigoso andarmos juntos; muitas
vezes, tive uma vontade incoercível de espancá-la,
desfigurá-la, esganá-la. E que pensa? Crê que não
chegaremos a isso? Vai levar-me ao delírio. Pensa que
vou temer o escândalo? A sua ira? Que me importa a sua
ira? Amo sem esperança, e sei que, depois disso, vou
amá-la mil vezes mais. Se eu a matar um dia, terei que
me matar também; no entanto, demorarei o mais
possível em fazê-lo, para sentir sem você essa dor
intolerável. Quer saber algo inconcebível? Amo-a cada
dia mais, embora seja quase impossível. E, depois disso,
posso deixar de ser fatalista? Lembre-se, murmurei-lhe,
anteontem sobre o Schlangenberg, provocado por você:
“Diga-me uma palavra, e saltarei neste abismo”. Se
dissesse aquela palavra, eu o teria feito. Não acredita,
porventura, que o fizesse?
- Que tagarelice mais tola! - exclamou ela.
- Nada tenho a ver com o fato de que seja tola ou
inteligente - exclamei por meu turno. - Sei que, na sua
presença, preciso falar, falar, falar, e falo. Na sua
presença perco todo amor-próprio e tudo me é
indiferente.
- Para que vou fazê-lo saltar do Schlangenberg? - disse
ela seca e de modo particularmente ofensivo. - Isto me é
de todo inútil.
- Magnífico! - exclamei. - Você disse intencionamente
esse magnífico “inútil” para me esmagar. Eu a vejo de fio
a pavio. Diz que é inútil? Mas o prazer é sempre útil, e
um poderio selvagem, ilimitado, ainda que seja sobre
uma mosca, constitui também uma forma de prazer. O
homem é um déspota por natureza e gosta de fazer
sofrer. Você gosta disso ao extremo.
Lembro-me de que ela ficou a examinar-me de modo
particularmente fixo e atento; provavelmente o meu
rosto expressava então todas as minhas sensações
absurdas e incoerentes. Estou me lembrando agora de
que, realmente, a nossa conversa decorreu quase
palavra por palavra com a descrevi. Meus olhos
injetaram-se de sangue. Aparecia-me espuma nos cantos
dos lábios. E, no que se refere ao Schlangenberg, juro por
minha honra: mesmo agora, se ela me ordenasse atirar-
me no abismo, eu o faria! Ainda que o dissesse apenas
por brincadeira, ou com desprezo, ainda que cuspindo
sobre mim, mesmo então eu saltaria!
- E por que não? acredito em você - replicou Polina,
mas com uma expressão de que somente ela é capaz às
vezes, com tamanho desprezo e maldade, com tanta
altivez, que, por Deus, eu era capaz de matá-la naquele
instante. Ela estava correndo um risco. Dizendo-o, não
lhe menti nisso também.
- Você não é covarde? - perguntou-me de repente.
- Não sei, talvez o seja. Não sei... faz muito tempo que
não penso nisso.
- Se eu lhe dissesse: mate este homem, você o faria?
- A quem?
- Quem eu quisesse.
- O francês?
- Não pergunte, limite-se a responder: matará aquele
que eu lhe apontar? Quero saber se, ainda há pouco,
estava falando a sério. - Esperou tão compenetrada, com
tal impaciência, a minha resposta, que eu tive um
sentimento estranho.
- Mas, há de me dizer afinal o que está acontecendo
aqui?! - exclamei. - Acaso tem medo de mim? Eu mesmo
estou vendo todas as coisas irregulares que sucedem
aqui. Você é a enteada de um homem louco, que perdeu
a fortuna e que está contaminado de paixão por esse
demônio... Blanche; além disso, está aqui esse francês,
com a sua influência misteriosa sobre a sua pessoa, e
agora você me faz, com tanta seriedade... semelhante
pergunta. Pelo menos, devo saber do que se trata; senão
perderei o juízo e vou fazer algo. Ou é que não se digna,
por vergonha, de ser franca? Pode acaso ter vergonha de
mim?
- Estou falando com você de um assunto
absolutamente diverso. Fiz-lhe uma pergunta e estou
esperando a resposta.
- Está claro que matarei - disse eu, com um grito. -
Basta que me dê uma ordem neste sentido; mas poderia
você... irá, porventura, ordenar isto?
- E o que pensa então? Vou ter pena de você? Vou dar
a ordem e ficarei de parte. Vai suportar isto? Mas não,
não será capaz disso! É possível que mate, por ter
recebido a ordem, mas, depois, virá matar-me também,
porque ousei ordenar-lhe isto.
A essas palavras, senti como que uma pancada na
cabeça. Naturalmente, mesmo naquele instante, tomei a
sua pergunta por uma brincadeira, um desafio; em todo
caso, porém, ela dissera aquilo com ar demasiado sério.
Apesar de tudo, eu estava surpreso pelo fato de que ela
tivesse falado desse modo, de que se reservasse tal
direito sobre mim, e concordasse em ter semelhante
poderio sobre a minha pessoa, dizendo simplesmente:
“Caminha para a tua destruição; eu vou ficar de parte”.
Nessas palavras havia algo de cínico e de sincero, mas
que, a meu ver, já era demasiado. E como me olharia ela
depois? Aquilo ultrapassava os limites da escravidão e da
insignificância. Depois de semelhante olhar, uma pessoa
iguala-se à outra. E por mais absurda, por mais
inverossímil que fosse toda a nossa conversa, o meu
coração estremeceu.
De repente, ela soltou uma gargalhada. Estávamos
sentados num banco, diante das crianças que brincavam,
defronte do ponto em que se detinham as carruagens e
os passageiros desciam para a alameda, diante do
cassino.
- Está vendo aquela baronesa gorda? - exclamou ela. -
É a Baronesa Wurmerhelm. Faz apenas três dias que está
aqui. Vê também o seu marido - um prussiano comprido,
seco, de bengala na mão? Lembra-se de como nos olhou
de alto a baixo, anteontem? Vá agora mesmo ao
encontro deles, aproxime-se da baronesa, tire o chapéu e
diga-lhe qualquer coisa em francês.
- Para quê?
- Você jurou que saltaria do Schlangenberg; está
jurando que é capaz de matar alguém a uma ordem
minha. Em lugar de todos estes assassínios e tragédias,
quero apenas rir um pouco. Vá sem retrucar. Quero ver
como o barão vai espancá-lo com a sua bengala.
- Está-me desafiando; pensa que não vou fazer?
- Sim, é um desafio; vá, quero que faça isto!
- Está bem, eu vou, embora seja um capricho louco.
Mas há um ponto a considerar: não surgirá disso uma
consequência desagradável para o general, e que recaia
também sobre você? Juro por Deus, não é por mim que
me preocupo, mas por você, bem... e ainda pelo general.
Mas que capricho é este de me mandar ofender uma
mulher?
- Não, você é apenas um tagarela, estou vendo - disse
ela com desdém. - Ainda há pouco estava com os olhos
injetados de sangue, mas sem maior significação; aliás,
talvez fosse por causa do vinho que tomou no jantar.
Pensa que eu mesma não compreendo o caráter estúpido
e vulgar disto, e que o general ficará irritado? Quero
simplesmente dar risada. Ora, eu quero, e é só!
Realmente, para que precisa ofender uma mulher? Vai
ser, com certeza, espancado a bengala.
Dei meia-volta e fui, em silêncio, cumprir o encargo.
Tratava-se, evidentemente, de uma coisa estúpida, e, é
claro, eu não pude deixar de fazê-la, mas lembro-me de
que, ao aproximar-me da baronesa, fui como que
espicaçado por algo: era uma audácia de escolar. Além
disso, eu estava irritado ao extremo, como um bêbado.
VI
Já se passaram dois dias, depois daquele estúpido
incidente. E quantos gritos, barulho, comentários!
Quanta desordem, quanta confusão, estupidez e
vulgaridade! E fui eu a causa de tudo isso! Às vezes,
aliás, torna-se engraçado; para mim, pelo menos. Não
consigo atinar com o que me sucedeu - se me encontro
de fato num estado de alienação, ou simplesmente
descarrilhei e estou praticando desatinos, até que me
amarrem. Às vezes, tenho a impressão de estar perdendo
o juízo. Noutras, parece-me que ainda não estou longe da
infância, do banco escolar, e faço apenas traquinagens
grosseiras.
Foi Polina, sempre Polina! Não fosse ela, talvez nem
houvesse traquinagens. Quem sabe? - talvez eu faça
tudo isso por desespero (por mais estúpido que seja
semelhante raciocínio.) E eu não compreendo, não
compreendo o que ela tem de bom! Aliás, é bonita;
parece bonita, sim. Outros também perderam o juízo por
ela. É alta e esbelta. Apenas, muito magra. Tenho a
impressão de que se pode dar-lhe um nó ou dobrá-la em
duas. A sua pegada é fina e comprida, de causar tortura.
É isso: torturante. Os cabelos são de um matiz ruivo. Tem
verdadeiros olhos de gato, mas com que orgulho e altivez
sabe olhar com eles. Faz uns quatro meses, quando de
minha entrada para o serviço do general, uma vez, à
noitinha, ela ficou na sala, conversando longa e
ardorosamente com Des Grieux. E olhava para ele com
tal expressão... que, depois, chegando ao meu quarto
para dormir, imaginei que Polina lhe dera uma bofetada;
acabara de dá-la, e estava diante dele, olhando-o. Pois
bem, foi a partir dessa noite que a amei.
Vamos, todavia, aos fatos.
Desci, por um atalho, para a alameda, parei no meio
desta e fiquei esperando a baronesa e o barão. A uma
distância de cinco passos, tirei o chapéu e inclinei-me.
Lembro que a baronesa estava com um vestido de
seda muito rodado, cinza-claro, com falbalás, crinolina e
cauda. É baixa e extraordinariamente obesa, com um
queixo muito gordo, do qual pende uma papada,
escondendo completamente o pescoço. O rosto é
rubicundo. Os olhos, pequenos, maus, insolentes.
Caminhando, parece fazer uma honra a todos que a
veem. O barão é seco, alto. O rosto, como sói acontecer
com os alemães, é torto e com mil ruguinhas; tem
quarenta e cinco anos e usa óculos. Suas pernas ficam
implantadas quase no peito; sinal de raça fina. Orgulhoso
como um pavão. Um tanto desajeitado. Existe algo de
ovino na expressão de seu rosto, o que substitui, a seu
modo, o ar de quem tem pensamentos profundos.
Tudo isso passou por meus olhos em três segundos.
O meu cumprimento, de chapéu na mão, a princípio
mal chamou a atenção de ambos. Apenas, o barão
franziu ligeiramente o cenho. A baronesa vinha
deslizando diretamente em minha direção.
- Madame la baronne - disse eu nitidamente e em voz
alta, escandindo cada palavra - j’ai l’honneur d’être votre
esclave (“Senhora baronesa... tenho a honra de ser seu
escravo”. (N. do T.)).
A seguir, inclinei-me, pus o chapéu e passei ao lado
do barão, voltando para ele polidamente o rosto e
sorrindo.
Fora Polina quem me ordenara que tirasse o chapéu,
mas eu mesmo decidira inclinar o corpo e fazer aquela
travessura de escolar. Com os diabos, o que me tinha
impelido a fazê-lo? Foi como se eu me despencasse de
um alto.
- Hem! - gritou ou, melhor, grasnou o barão, voltando-
se para mim, surpreso e irritado.
Voltei-me e detive-me, em respeitosa expectativa,
continuando a olhar para ele e a sorrir. Ele estava
evidentemente perplexo e repuxou as sobrancelhas para
cima, até nec plus ultra (Até “o limite extremo”, em
latim. (N. do T.)). O seu rosto parecia cada vez mais
sombrio. A baronesa voltou-se também para mim e
olhou-me igualmente com uma perplexidade irada.
Diversos transeuntes começaram a prestar atenção à
cena. Alguns chegaram a parar.
- Hem! - tornou o barão, com redobrado grasnido e
redobrada cólera.
- Ja wohl (“Sim, é isso”, em alemão. (N. do T.)) -
articulei arrastadamente, continuando a encará-lo bem
nos olhos.
- Sind sie rasend (“Está louco?, em alemão. (N. do
T.))? - gritou ele, erguendo a bengala e começando,
provavelmente, a sentir um pouco de medo. O meu traje
talvez o deixasse perturbado. Eu estava vestido com
muita propriedade, com ostentação até, como uma
pessoa que pertence à melhor sociedade.
- Ja wo-o-ohl! - gritei de repente com toda a força,
arrastando o “o”, como fazem os berlinenses, que
empregam a todo momento esse “ja wohl”, prolongando,
em tais ocasiões, a letra “o”, com maior ou menor
duração, a fim de expressar diferentes tonalidades de
pensamentos e sensações.
O barão e a baronesa voltaram-se rapidamente e
quase correram de mim, assustados. Entre os
transeuntes, alguns fizeram comentários, outros
olhavam-me perplexos. Aliás, não me lembro bem.
Dei meia-volta e caminhei, com o passo habitual, em
direção de Polina Aleksândrovna. Mas, ainda a uns cem
passos do seu banco, vi que ela se erguera e dirigia-se
com as crianças para o hotel.
Alcancei-a junto à entrada.
- Executei... a traquinice - disse eu, alcançando-a.
- Bem, e então? Arranje-se agora - respondeu ela, sem
sequer me olhar, e foi subindo a escada.
Passei no parque as horas do anoitecer. Atravessei-o
depois, em seguida o bosque, e penetrei, até, num outro
principado. Numa pequena choupana, comi omelete e
tomei vinho: extorquiram-me, por este idílio, a elevada
quantia de um táler e meio.
Foi somente às onze que voltei para o hotel.
Imediatamente fui chamado à presença do general.
O nosso grupo está alojado em dois apartamentos,
num total de quatro compartimentos. O primeiro é um
salão espaçoso, com piano de cauda. Ao lado, há um
outro quarto, igualmente grande: o escritório do general.
Era ali que ele me esperava, parado no centro da sala,
numa pose de grande efeito. Des Grieux estava
refestelado no divã.
- Permita que lhe pergunte, meu caro senhor, que
espécie de embrulhada arranjou? - começou o general,
dirigindo-se a mim.
- Eu gostaria, meu general, que fosse diretamente ao
assunto - disse eu. - O senhor, provavelmente, quer falar
do meu encontro de hoje com um alemão?
- Com um alemão?! Esse alemão é o Barão
Wurmerhelm, uma pessoa importante! O senhor foi muito
grosseiro com ele e com a baronesa.
- De modo nenhum.
- Assustou-os, meu caro senhor - gritou o general.
- Absolutamente, não. Ainda em Berlim fixou-se em
meu ouvido esse “ja wohl” que eles acrescentam
invariavelmente a cada palavra, e que arrastam de modo
tão detestável. Quando me encontrei com ele, na
alameda, esse “ja wohl” veio-me de repente, não sei por
quê, à lembrança, e atuou sobre mim de modo a irritar-
me... Além disso, a baronesa, que já me havia
encontrado três vezes, tem o hábito de vir caminhando
diretamente sobre mim, como se eu fosse um verme,
que se pode esmagar com o pé. Convenhamos, também
posso ter o meu amor-próprio. Tirei o chapéu e disse
polidamente (asseguro-lhe que foi com polidez):
“Madame, j’ai l’honneur d’être votre esclave”. Quando o
barão se voltou e gritou: “Hem!” - algo me impeliu a
gritar também: “Ja wohl!”. E eu gritei duas vezes: a
primeira de modo natural; a segunda, arrastando a
palavra com toda a força. É tudo.
Confesso que eu estava satisfeito ao extremo com
aquela explicação, perfeitamente digna de um moleque.
Tinha uma vontade surpreendente de apresentar toda
aquela história do modo mais absurdo.
E isso me dava prazer cada vez maior.
- Parece que o senhor está rindo de mim - gritou o
general.
Voltou-se para Des Grieux e expôs-lhe, em francês,
que eu estava realmente procurando uma complicação.
O francês sorriu com desdém e deu de ombros.
- Oh, não pense assim, não há nada disso! - gritei para
o general. - Foi uma ação má, e eu lhe confesso isso com
toda a sinceridade. Pode-se considerá-la, até, um ato
estúpido e inconveniente de escolar, mas nada mais que
isso. E - sabe, general? - estou profundamente
arrependido. Mas existe, no caso, uma circunstância que,
aos meus olhos, quase me exime, até, do
arrependimento. Nos últimos tempos, há umas duas,
mesmo três semanas, eu não me sinto bem: estou
doente, nervoso, irritadiço, imaginativo e, em alguns
casos, chego a perder completamente o controle. Na
verdade tive, por vezes, uma vontade louca de dirigir-me
de súbito ao Marquês Des Grieux e... Aliás, não devo
dizê-lo; ele pode sentir-se ofendido. Numa palavra, são
indícios de doença. Não sei se a Baronesa Wurmerhelm
levará em consideração esta circunstância, quando eu
lhe pedir desculpas (pois pretendo fazer isto). Suponho
que não, tanto mais que, segundo eu sei, começou-se,
nos últimos tempos, a abusar desta circunstância no
mundo jurídico: nos processos criminais, os advogados
passaram a defender os criminosos, seus clientes, com a
afirmação de que se tratava de uma doença. “Matou -
dizem eles - e não se lembra de nada.” E imagine,
general, a medicina os favorece; realmente, confirmam
os médicos, existe uma doença assim, uma demência
temporária, durante a qual a pessoa não se lembra de
quase nada, ou então lembra tudo pela metade, ou por
um quarto. Mas o barão e a baronesa são gente da velha
geração e, ademais, junkers prussianos e proprietários
rurais. Provavelmente, ainda não conhecem este
progresso no mundo médico-legal, e, por isso, nem vão
aceitar as minhas explicações. O que pensa, general?
- Chega, senhor! - disse o general abruptamente e
com uma indignação contida. - Chega! Vou procurar
livrar-me para sempre do seu comportamento de escolar.
O senhor não vai desculpar-se perante o barão e a
baronesa. Quaisquer relações com o senhor, ainda que
consistissem unicamente no seu pedido de desculpas,
seriam demasiado humilhantes para eles. Informado de
que o senhor pertence a minha casa, o barão teve já um
entendimento comigo na sala de jogo e, confesso, mais
um pouco, e ele pediria a mim uma satisfação.
Compreende acaso o que me fez enfrentar, meu caro
senhor? Eu, eu tive que pedir desculpas ao barão e dei-
lhe a palavra de que, hoje mesmo, o senhor deixaria de
fazer parte de minha casa...
- Com licença, com licença, general, então foi ele
mesmo quem exigiu que eu não pertencesse mais a sua
casa, conforme o senhor se expressa?
- Não; mas eu me achei na obrigação de dar-lhe uma
satisfação, e, naturalmente, o barão a aceitou. Vamos
separar-nos, meu caro senhor. Tem ainda a receber de
mim quatro friedrichsdors e três florins, segundo o
câmbio local. Eis o dinheiro, e aqui está o papelzinho,
com o cálculo; pode verificá-lo. Adeus. A partir de agora,
somos dois estranhos. Nada tenho a agradecer-lhe,
senão aborrecimentos e cuidados. Vou chamar agora
mesmo o criado e avisá-lo de que, a partir de amanhã,
não serei mais responsável pelas suas despesas no hotel.
Tenho a honra de permanecer seu criado.
Apanhei o dinheiro, o papelzinho em que estava
escrita a lápis a conta, inclinei-me em direção do general
e disse-lhe, com muita seriedade: - O caso não pode
acabar assim, general. Lamento muito que o senhor
tivesse de suportar aborrecimentos por parte do barão,
mas, desculpe se o digo, o senhor mesmo é culpado
disso. Por que assumiu o encargo de responder por mim
ao barão? O que significa a expressão de que pertenço a
sua casa? Em sua casa exerço apenas a função de
professor, nada mais. Não sou seu filho, não estou sob a
sua tutela, e o senhor não pode responder pelos meus
atos. Sou pessoa com plena competência jurídica. Tenho
vinte e cinco anos, recebi um título universitário, sou de
condição fidalga, mas completamente estranho para o
senhor. Somente o meu respeito ilimitado pelas suas
qualidades me impede de exigir do senhor,
imediatamente, uma satisfação e maiores explicações
sobre o fato de ter assumido o direito de responder por
mim.
O general estava tão surpreso que abriu os braços;
em seguida, voltou-se de repente para o francês e disse-
lhe, apressadamente, que, um instante atrás, eu quase o
desafiara para um duelo. O francês soltou uma
gargalhada sonora.
- Todavia, não pretendo perdoar ao barão - prossegui,
com absoluto sangue-frio, não me perturbando um pouco
sequer com o riso de Monsieur Des Grieux - e visto que o
senhor, general, acedeu hoje a ouvir-lhe as queixas,
passando, desse modo, a agir no interesse dele e
colocando-se, por assim dizer, na situação de
participante em todo este caso, tenho a honra de
comunicar-lhe que, o mais tardar amanhã de manhã, vou
exigir do barão, em meu nome, uma explicação formal
das razões por que, tendo um caso a tratar comigo, se
dirigiu, em vez disso, a um terceiro, como se eu fosse
incapaz ou indigno de responder, perante ele, por meus
próprios atos.
Aconteceu justamente o que eu previra. Ouvindo essa
nova tolice, o general assustou-se tremendamente.
- Como! Então o senhor tem a intenção de continuar
com este maldito caso?! - exclamou. - Mas o que está
fazendo comigo, meu Deus? Não se atreva, não se
atreva, meu caro senhor, ou então, juro-lhe!... também
aqui existem autoridades, e eu... eu... numa palavra, de
acordo com a minha condição... e o barão também...
numa palavra, o senhor vai ser preso e expulso daqui
pela polícia, para que não faça mais desordens!
Compreende isso?! - E, embora a cólera o sufocasse,
estava tremendamente assustado.
- General - respondi com uma calma que lhe era
intolerável - não se pode prender alguém por desordem
antes do fato consumado. Ainda não comecei as minhas
explicações com o barão, e o senhor não sabe
absolutamente nada sobre o modo e os fundamentos
com que pretendo continuar este caso. Quero apenas
desmentir a suspeita, ofensiva para mim, de que eu
esteja sob a tutela de uma pessoa que teria poder sobre
a minha livre vontade. O senhor se inquieta e alarma em
vão.
- Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus, Aleksiéi
Ivânovitch, ponha de lado este seu projeto insensato! -
murmurou o general, mudando de repente do tom irado
para o da súplica, e até agarrando-me as mãos. - Veja
bem, que resultará disso? Um novo aborrecimento!
Convenha que devo portar-me aqui de modo particular,
sobretudo agora!... sobretudo agora!... Oh, o senhor não
conhece, não conhece todas as particularidades da
minha vida!... Quando partirmos daqui, estou disposto a
aceitá-lo de novo ao meu serviço. Agora, tem de ser
assim, bem, numa palavra, o senhor compreende os
motivos! - exclamou desesperado. Aleksiéi Ivânovitch,
Aleksiéi Ivânovitch!
Retirando-me em direção da porta, pedi-lhe mais uma
vez, encarecidamente, que não se preocupasse, e
prometi que tudo se passaria bem, de maneira decente,
e apressei-me a sair.
Às vezes, os russos no estrangeiro são demasiado
covardes e temem tremendamente o que se possa dizer
a seu respeito, a maneira como serão vistos, e se será
decente isto e mais aquilo; em suma, comportam-se
como se estivessem usando espartilho, e, sobretudo,
pretendem ter importância. O mais comum entre eles é
alguma forma preconcebida, aceita de uma vez por
todas, e que passam a respeitar servilmente, nos hotéis,
nos passeios, nas reuniões, em viagem... Mas o general
deixara escapar que existiam para ele, ademais, certas
circunstâncias peculiares, que ele devia portar-se de
certo “modo especial”. Foi por isso que, de repente, se
acovardou e mudou de tom comigo. Eu o percebi e levei
em consideração. E, é claro, ele poderia dirigir-se no dia
seguinte, por estupidez, a alguma autoridade, de modo
que eu precisava, realmente, agir com cuidado.
Aliás, eu não queria propriamente deixar o general
zangado; mas surgiu-me um desejo de irritar Polina. Ela
procedera com tamanha crueldade comigo, e me atirara
num caminho tão estúpido, que eu tinha uma vontade
imensa de levá-la a ponto de ela própria me pedir que
parasse. As minhas travessuras de colegial podiam, por
fim, comprometê-la também. Além disso, outras
sensações e desejos surgiram em mim; se eu, por
exemplo, me anulo perante ela, por minha própria
vontade, isso não significa de nenhum modo que eu seja,
diante das pessoas em geral, um joão-ninguém, e não
será o barão, naturalmente, que poderá “bater-me com a
bengala”. Tive ganas de rir deles e sair-me de tudo
galhardamente. Haviam de ver. Certamente, ela iria
assustar-se com o escândalo e chamar-me novamente! E,
embora não me chamasse, veria mesmo assim que não
sou um joão-ninguém...
(Uma notícia surpreendente: a babá, que encontrei na
escada, acaba de me dizer que Mária Filípovna partiu
hoje, com o trem da tarde, completamente sozinha, para
Karlsbad, a fim de se reunir a uma prima. Que significa
esta notícia? A babá diz que há muito ela pretendia fazer
isto; mas como foi que ninguém o soube? Aliás, é
possível que eu fosse o único a ignorá-lo. Conversando
comigo, a babá deixou escapar que Mária Filípovna teve
anteontem uma discussão séria com o general.
Compreendo. Certamente, trata-se de Mlle. Blanche. Sim,
algo decisivo está para acontecer em nosso meio.)
VII
De manhã, chamei o criado e disse-lhe que tirassem a
minha conta separadamente. O meu quarto não era tão
caro que eu me assustasse muito com a despesa e me
mudasse do hotel. Tinha dezesseis friedrichsdors, e
depois... depois, talvez a riqueza! Coisa estranha, eu
ainda não ganhei no jogo, mas estou agindo, sentindo e
pensando como um ricaço, e não consigo imaginar-me de
outro modo.
Apesar da hora matinal, eu pretendia ir
imediatamente procurar Mister Astley no Hôtel
d’Angleterre, a dois passos do nosso, quando Des Grieux
entrou no meu quarto. Isso nunca sucedera até então, e,
além disso, nos últimos tempos, eu tivera com esse
senhor as relações mais frias e tensas. Longe de ocultar
o seu desdém por mim, ele esforçava-se até por
manifestá-lo; e eu, por meu lado, tinha minhas próprias
razões para não o ver com bons olhos. Numa palavra,
odiava-o. Fiquei muito surpreso com a sua visita.
Compreendi no mesmo instante que sucedera algo
extraordinário.
Entrou com ar muito amável e elogiou-me pelo quarto.
Vendo que eu tinha o chapéu na mão, quis saber se,
realmente, ia sair tão cedo a passeio. Ouvindo que eu ia
tratar de um caso com Mister Astley, pensou um pouco,
chegou a alguma conclusão, e o seu rosto adquiriu um ar
extremamente preocupado.
Des Grieux era como todos os franceses, isto é, alegre
e amável, se isto se tornava necessário e vantajoso, mas
intoleravelmente cacete, quando desaparecia a
necessidade de apresentar-se amável e alegre. É raro
que um francês seja naturalmente amável; sua
amabilidade parece resultar sempre de uma ordem, de
um cálculo. Por exemplo, se ele percebe a necessidade
de se mostrar fantástico, original, fora do comum, a sua
fantasia, que é do tipo mais estúpido e antinatural,
constitui-se de formas predeterminadas e que há muito
já se tornaram vulgares. Ao natural, o francês é do mais
burguês, miúdo e cotidiano positivismo; em suma, é a
criatura mais cacete do mundo. A meu ver, apenas
novatos e sobretudo mocinhas russas ficam encantados
com os franceses. Mas todo ser honesto percebe
imediatamente e sente, como algo intolerável, o
burocratismo de formas preestabelecidas dessa
amabilidade, desenvoltura e alegria de salão.
- Venho tratar de um caso com o senhor - começou
com ar independente ao extremo, embora com
delicadeza - e não vou esconder-lhe que venho como
embaixador, ou, mais propriamente, como mediador, de
parte do general. Conhecendo muito mal o russo, não
compreendi quase nada da conversa de ontem, mas o
general explicou-me tudo com detalhes, e confesso...
- Mas ouça-me, Monsieur Des Grieux - interrompi - o
senhor se encarregou da tarefa de mediador neste caso.
Naturalmente, na minha qualidade de un outchitel, nunca
aspirei à honra de amigo próximo dessa família ou a
quaisquer outras relações de maior intimidade e, por isso
desconheço certas particularidades; mas explique-me o
seguinte: será que o senhor já se tornou, efetivamente,
membro da família? Pois, afinal, o senhor participa de tal
modo em tudo, e sempre assume, imediatamente, o
papel de mediador...
A minha pergunta não lhe agradou. Era por demais
transparente, e ele não queria de modo algum trair-se.
- Estou ligado ao general em parte por negócios, em
parte por certas circunstâncias especiais - disse com
secura. - O general mandou-me aqui, a fim de pedir ao
senhor que abandone as suas intenções de ontem. Tudo
o que o senhor inventou é, sem dúvida, muito
espirituoso; mas ele me pediu justamente para explicar-
lhe que não terá nisso qualquer êxito; ademais, o barão
não o receberá e, finalmente, ele tem, em todo caso,
meios para se livrar de novas contrariedades provocadas
pelo senhor. Quanto a isso, deve concordar comigo. Diga-
me, portanto: para que continuar? Quanto ao general,
promete, com toda a segurança, aceitá-lo de novo em
sua casa, logo que as circunstâncias o permitam, e, até
lá, conservar-lhe o seu salário, vos appointements. Um
trato bastante vantajoso, não é verdade?
Repliquei-lhe, com muita calma, que ele estava um
tanto enganado; provavelmente, eu não seria expulso da
casa do barão, mas, ao contrário, iriam ouvir-me; pedi-
lhe, então, que me confessasse: não viera apenas para
me sondar sobre o modo pelo qual eu ia abordar todo
aquele caso?
- Oh, meu Deus! Visto que o general está assim
interessado, não lhe seria agradável, compreende-se,
saber o que o senhor vai fazer? É tão natural!
Comecei a explicar o caso, e ele ficou ouvindo,
refestelado, a cabeça ligeiramente inclinada para mim,
com um reflexo não dissimulado de ironia no rosto. De
modo geral, afetava um ar sumamente altivo. Eu
procurava, com todas as forças, fingir que estava
encarando o caso do ponto de vista mais sério. Expliquei-
lhe que, levando-se em consideração que o barão se
dirigira ao general com uma queixa contra mim, como se
eu fosse um criado, privara-me, em primeiro lugar, do
meu emprego, e em segundo, tratara-me como a uma
pessoa incapaz de responder por si e com quem nem
vale a pena conversar. Naturalmente eu me sentia
ofendido e com razão; no entanto, compreendendo a
diferença de idade, posição social etc., etc. (nesse ponto,
mal consegui conter o riso), eu não queria assumir uma
nova leviandade, isto é, exigir do barão, diretamente, ou
mesmo oferecer-lhe apenas, a oportunidade de uma
satisfação. Todavia, considerava-me no pleno direito de
apresentar-lhe, e sobretudo à baronesa, as minhas
desculpas, tanto mais que, realmente, nos últimos
tempos, eu me sentia mal de saúde, um tanto
perturbado, de ânimo fantasioso etc., etc. Todavia, o
próprio barão, dirigindo-se na véspera, de modo ofensivo
para mim, ao general, insistindo com ele em que me
despedisse, colocara-me em tal situação que eu não
podia mais apresentar-lhe, bem como à baronesa, as
minhas desculpas, porque ele, sua esposa e todo mundo
iriam considerar semelhante atitude como provocada
pelo desejo de ser reintegrado no emprego. Concluía-se
de tudo isso que eu me achava obrigado a pedir ao barão
que, em primeiro lugar, se desculpasse perante mim,
usando as expressões mais moderadas, dizendo, por
exemplo, que de nenhum modo quisera ofender-me. E,
depois que o barão o fizesse, eu, por meu turno, tendo as
mãos desatadas, iria apresentar-lhe as minhas desculpas
sinceras, de todo o coração. Numa palavra - concluí - eu
pedia apenas que o barão me desatasse as mãos.
- Irra, que suscetibilidade e quanta sutileza! E para
que precisa o senhor desculpar-se? Ora, concorde
comigo, monsieur... monsieur... que o senhor está
tramando tudo isso de propósito, para exasperar o
general... ou talvez o senhor tenha algum objetivo
particular... mon cher monsieur, pardon, j’ai oublié votre
nom, Monsieur Alexis?... n’est ce pas? (“meu caro
senhor, perdão, esqueci o seu nome, Senhor Aleksiéi?...
não é mesmo?”. (N. do T.)) - Mas, permita-me que lhe
pergunte, mon cher marquis (“meu caro marquês”. (N.
do T.)), é da sua conta?
- Mais le general... (Mas o general...”. (N. do T.)) - E o
que há com o general? Ontem ele disse alguma coisa no
sentido de que precisava manter-se num certo nível... e
estava tão inquieto... mas eu não compreendi nada.
- Nisso há... existe realmente uma circunstância
especial - replicou Des Grieux num tom súplice, em que
se percebia cada vez mais nitidamente uma nota de
despeito. - O senhor conhece Mademoiselle de
Cominges?
- Isto é, Mademoiselle Blanche?
- Sim, Mademoiselle Blanche de Cominges... et
madame sa mère (“A Senhorita Blanche de Cominges... e
a senhora sua mãe...”. (N. do T.))... convenha comigo, o
general... numa palavra, o general está apaixonado e
até... é possível, mesmo que se celebre aqui um
casamento. E imagine, com isso, toda espécie de
escândalo, de histórias...
- Não vejo no caso nem escândalos, nem histórias que
se relacionem com o casamento.
- Mais le baron est si irascible, un caractère prussien,
vous savez, enfin il fera une querelle d’Allemand (“O
barão é tão irascível, um caráter prussiano, o senhor
sabe, enfim, ele fará uma tempestade num copo
d’água”. Note-se a ironia do trocadilho na expressão
querelle d’Allemand, que significa “briga sem motivo”,
“tempestade em copo d’água”. (N. do T.)).
- Nesse caso, será comigo, e não com o senhor, pois
não pertenço mais à casa... (Intencionalmente, procurei
ser o mais incoerente possível.) Mas, permita-me
perguntar-lhe: então, está decidido que Mademoiselle
Blanche se casará com o general? Nesse caso, que estão
esperando? Quero dizer: para que escondê-lo, ao menos
de nós, que somos de casa?
- Não posso dizê-lo ao senhor... Aliás, isto ainda não
está completamente... contudo... o senhor sabe, estão
esperando uma notícia da Rússia; o general precisa
arranjar os negócios...
- Ah, ah! la baboulinka!
Des Grieux olhou-me com ódio.
- Numa palavra - interrompeu-me -, confio plenamente
na sua inata amabilidade, na sua inteligência, no seu
tato... O senhor, naturalmente, há de fazer isso pela
família em que foi acolhido como um parente, em que foi
amado, respeitado...
- Perdão, fui expulso! O senhor afirma agora que foi
apenas para guardar as aparências; no entanto, se
alguém lhe disser: “Está claro que não quero puxar-lhe as
orelhas, mas, para disfarçar, permita-me que as puxe...” -
convirá comigo que o resultado é quase o mesmo, não?
- Se é assim, se nenhum pedido exerce influência
sobre o senhor - começou ele com severidade e
arrogância - permita-me assegurar-lhe que serão
tomadas algumas medidas. Existem autoridades aqui, o
senhor será deportado hoje mesmo... que diable! Un
blan-bec comme vous (“que diabo! Um fedelho como o
senhor”. (N. do T.)) quer desafiar uma pessoa como o
barão para um duelo! Pensa que será deixado em paz? E,
creia-me, ninguém o teme aqui! Se eu lhe fiz um pedido,
foi mais por minha conta, porque o senhor incomodou o
general. Pensa que o barão não mandará simplesmente
enxotá-lo de casa por um criado?
- Mas eu não irei pessoalmente - respondi, muito
tranquilo. - O senhor se engana, Monsieur Des Grieux,
tudo isso vai acontecer de modo muito mais correto do
que está pensando. Vou já conversar com Mister Astley e
pedir-lhe que seja meu padrinho, numa palavra, meu
second (“padrinho” num duelo. (N. do T.)). Ele gosta de
mim e, certamente, não se recusará. Irá à procura do
barão, e este vai recebê-lo. Se eu próprio sou um
outchitel e pareço de algum modo um subalterne, e,
ademais, indefeso, Mister Astley é sobrinho de lorde, um
lorde de verdade, o Lorde Peabroke, que se encontra
aqui. O barão, creia-me, será delicado com Mister Astley,
e vai ouvi-lo. E, se não o ouvir, Mister Astley há de
considerar isso como uma ofensa à sua própria pessoa (o
senhor sabe como os ingleses são exigentes) e mandará
um amigo seu para se entender com o barão, e ele tem
boas amizades. O resultado, como vê, talvez seja
diferente do que supõe.
O francês acovardou-se de fato; realmente, tudo
aquilo se parecia muito com a verdade, e demonstrava
que eu, em todo caso, estava em condições reais de
iniciar uma complicação.
- Mas eu lhe peço - começou ele, num tom bem
súplice - deixe tudo isso! Parece que lhe é agradável o
fato de surgir uma complicação! O que o senhor quer não
é uma satisfação, mas uma complicação dessas! Eu disse
que tudo ia sair divertido e até espirituoso, o que talvez
seja exatamente o seu objetivo, mas, em suma -
concluiu, vendo que eu me levantara e apanhava o
chapéu -, vim transmitir-lhe estas duas palavras de certa
pessoa; leia, fui encarregado de esperar pela resposta.
Em seguida, tirou do bolso e apresentou-me um
bilhete pequeno, dobrado e selado com lacre.
Estava escrito ali, com a letra de Polina:
Sua, P.