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SIM

VICENTE CECIM

Eugène Delacroix: “A Liberdade Guiando o Povo/La Liberté guidant le peuple” (1830,


comemoração da Revolução Francesa).

Massa e Poder

Mas o momento da descarga (...)


contém em si o seu próprio perigo.
CANETTI
Na fronteira dos anos 40/50, Jean-Paul Sartre, a voz que falava mais alto em nome do
movimento filosófico surgido no pós-guerra chamado Existencialismo, fez duas observações
devastadoras. A primeira, após o extermínio dos habitantes das cidades de Hiroshima e
Nasagaki pelas Bombas Atômicas lançadas pelos Estados Unidos da América e seus aliados,
foi: - “Pela primeira vez em sua história o homem pode decidir se quer ou não continuar
existindo como espécie.”. A segunda foi: - “Ouvidos de longe, os gritos de alegria das multidões
parecem gritos de Agonia.” Na noite em que, bem jovem, eu acabava de ler isto – para me
confirmar essas palavras, ouvi um urro de gol vindo de um estádio de futebol, ao longe, e
vivenciei o horror dessa verdade. Que a primeira frase de Sartre não nos deixe esquecer que
Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França, China, Índia e Israel – até onde se sabe - continuam
apontando dia e noite milhares de bombas atômicas uns para os outros. Enquanto não disparam
a primeira e iniciam o Apocalipse –nesta Sim nos interessemos apenas pela segunda frase do
autor de “O Ser e o Nada/L’Etre et Néan”.
Por que dar atenção a isso? Porque mais uma vez a massa brasileira vai às ruas para
tentar interferir no seu Destino, que, confiadamente, entregou nas mãos de poucos para que
conduzissem todos ao fim de um túnel mesmo que fosse mal iluminado, à luz de velas. Pois
vivemos em um país que ainda não se curou de suas antigas feridas, culturais, políticas e
econômicas, de ex-vítima do Colonialismo Imperialista – agora Imperialismo Capitalista, fosse
de Estado ou não, a diferença se tornou quase nenhuma. E também mais uma vez, como sempre
em todos os povos e épocas, a população nacional se parte em duas facções, cada uma tentando
encher de mais carnes e argumentos os seus, como sempre, nessas circunstâncias, bastante
emagrecidos ossos. Um dualismo clássico nem tanto nas movimentações políticas organizadas
pelo Estado, as das eleições, em que pode haver subdivisões nas disputas, mas, sem dúvida,
sempre presente e exacerbado quando os ânimos se exaltam e as assombradas palavras golpe,
revolução, guerra civil e outras, uivantes, entram em cena.
Este será o delicado assunto desta Sim. Os aspectos profundos dos movimentos das
massas populares ao longo da História, segundo “Massa e Poder”, o substancial estudo de Elias
Canetti sobre as grandes ondas humanas que se quebraram nos séculos – e continuam se
quebrando – umas contra as outras, ou contra muros & muralhas, reis, imperadores, tiranos,
governantes eleitos ou ditadores e quem mais se mete em sua frente. No Ocidente e no Oriente.
Elias Canetti, escritor romeno, também foi ficcionista, e é o autor de um dos romances
fundamentais do século XX: “Auto de Fé”.

A Descarga da Massa Elias Canetti


O fenômeno mais importante que se desenrola no seio da massa é a descarga. Antes
disso, a massa não existe propriamente, é a descarga que, realmente, a constitui. É o momento
em que todos aqueles que dela fazem parte se libertam das suas diferenças e se sentem como
iguais. Entre essas diferenças, há que pensar, sobretudo, nas que são impostas do exterior,
distinções de categoria, de classe e de posses. Os homens, enquanto indivíduos, estão sempre
conscientes dessas distinções, que pesam seriamente sobre eles e os obrigam, com muita
severidade, a distanciar-se uns dos outros. O homem situa-se num lugar determinado, seguro, e,
com eficazes gestos jurídicos, afasta de si tudo quanto dele se acerca. Tal como um moinho de
vento sobre uma vasta planície, ele aí está, expressivo e agitado, e até ao próximo moinho não
há nada. Toda a vida, tal como ele a conhece, está fundada em distâncias: a casa, em que
ele se fecha à chave a si próprio e aos seus haveres, o emprego, que ele ocupa, a posição, a que
ele aspira — tudo isso serve para criar distâncias, para as consolidar e ampliar.
A liberdade de qualquer movimento mais profundo de um para outro fica cortada.
Os impulsos, tanto num sentido como no outro, perdem-se como na areia dum deserto. Ninguém
pode chegar à proximidade do outro, nem à altura do outro. Hierarquias firmemente
estabelecidas em todos os setores da vida não permitem a ninguém tocar no que está mais
acima, nem descer, a não ser na aparência, até ao que está mais abaixo. Em diferentes
sociedades, essas distâncias encontram-se reciprocamente contrabalançadas de modos
diversos. Em algumas, põe-se ênfase nas diferenças de origem, em outras, nas de atividade ou
de riqueza. Não vem a propósito, aqui, especificar essas hierarquias. O essencial é que elas
existem em toda a parte, que em toda a parte se implantam na consciência dos homens e
determinam de forma decisiva o seu comportamento para com os outros. A satisfação de se
estar, na hierarquia, mais acima do que outros não compensa a perda de liberdade de
movimentos. Nas suas distâncias, o ser humano entorpece e entristece. Vai carregado com esses
fardos e não sai do mesmo local. Esquece-se de que foi ele quem os impôs a si próprio e anseia
por se libertar deles. Mas como ele há de se libertar sozinho? Fosse o que fosse que ele fizesse
para tanto, e até por muito resoluto que fosse, se encontraria perante outros que fariam malograr
os seus esforços. Enquanto estes se aferrarem às suas distâncias, ele não consegue acercar-se
deles minimamente. Só todos juntos se podem libertar dos fardos que são as suas distâncias. É
precisamente isso que acontece na massa. Com a descarga, são suprimidas as separações, e
todos se sentem iguais. Nesse aperto, em que mal há espaço entre eles, em que corpos se
comprimem de encontro a corpos, cada um está tão próximo do outro como de si próprio. O
alívio daí resultante é enorme. É por causa desse momento feliz, em que ninguém é mais, em
que ninguém é melhor que o outro, que os homens se tornam massa. Mas o momento da
descarga, que é tão desejado e tão ditoso, contém em si o seu próprio perigo. Padece de uma
ilusão fundamental: os homens, que de repente se sentem iguais, não se tornaram realmente
iguais, nem para sempre. Regressam às suas casas separadas e se deitam para dormir nas suas
camas. Conservam os seus haveres e não renunciam aos seus nomes. Não rejeitam os seus
parentes. Não fogem à sua família. Só no caso de conversões a sério é que as pessoas saem das
suas antigas alianças e entram numa nova. Tais associações, que, por sua natureza, só podem
admitir um número limitado de membros e têm de assegurar a sua estabilidade por meio de
duras regras, designo-as eu como cristais de massa. Da sua função ainda se falará
pormenorizadamente. A própria massa, contudo, desagrega-se. Sente que se desagregará. Receia
a desagregação. Só pode subsistir se o processo da descarga tiver continuação com novas
pessoas, que vêm ter com ela. Somente o acréscimo da massa impede aqueles que dela fazem
parte de voltar para trás, arrastando-se sob o peso dos seus fardos

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e-mail: vicentefranzcecim@gmail.com

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