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Henry
LIVROS BILÍNGUES
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The Friends of the Friends

Os Amigos dos Amigos

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Os Amigos dos Amigos
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Henry James
Herman Melville
Charles Dickens “Os Amigos dos Amigos” revela uma profunda melancolia e é ao mesmo tempo uma exal-
Bram Stoker tação de um amor elaborado no mais secreto mistério. Foi publicado primeiro em revista
e depois em volume, em 1896.
Jack London
O eu narrador é uma mulher, que se expressa pelas páginas do seu diário, por acaso caído
Edith Wharton nas mãos de um editor, protagonista de uma brevíssima introdução. A mulher narradora
G.K. Chesterton conta então como terminou uma relação amorosa que chegou às portas do casamento.
Louisa M. Alcott Ela tem uma amiga que vivenciou a aparição do pai no momento exato em que ele morria
H.P. Lovecraft muito longe dela, e tem também um noivo que passou pela mesma experiência com a
mãe dele. Assim, tenta fazer os dois se encontrarem para trocar impressões sobre esses
Henry James fatos tão extraordinários, mas passam-se anos e os encontros são sempre frustrados por
David H. Lawrence uma série infindável de contratempos.
Katherine Mansfield
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O. Henry Código: B2UKF5

(Este código é pessoal e intransmissível. É válido apenas para uma ativação).
 Henry James

The Friends of the Friends

Os Amigos dos Amigos
 Introdução

Coleção Folha Inglês com Clássicos da Literatura © 2018, Kontenut.

Todos os direitos reservados.

Coordenação e organização
Folha de S.Paulo | Diretoria Executiva de Circulação

Os Amigos dos Amigos

Título original
The Friends of the Friends
Uma obra de Henry James “Os Amigos dos Amigos” revela uma profunda melancolia e é ao
Tradução Gil Reyes
mesmo tempo uma exaltação de um amor elaborado no mais secre-
Preparação e coordenação da revisão Ana Luisa Astiz / AA Studio
to mistério. Foi publicado primeiro em revista e depois em volume,
em 1896.
Revisão de notas e notas adicionais Isabela Fontanella / AA Studio
O eu narrador é uma mulher, que se expressa pelas páginas do
Revisão geral Isabela Fontanella e Juliana Caldas / AA Studio
seu diário, por acaso caído nas mãos de um editor, protagonista de
Curadoria Manuel da Costa Pinto
uma brevíssima introdução. A mulher narradora conta então como
Projeto gráfico da capa, miolo e diagramação Ana Maria Romero e Ana Marques
terminou uma relação amorosa que chegou às portas do casamento.
Ilustração da capa © Weberson Santiago
Ela tem uma amiga que vivenciou a aparição do pai no momento
ISBN da coleção: 978-85-93876-63-9
ISBN do volume 18: 978-85-93876-81-3
exato em que ele morria muito longe dela, e tem também um noi-
vo que passou pela mesma experiência com a mãe dele: em ambos
DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
os casos, são aparições extremamente vívidas, mas efêmeras, muito
J27a reais e que desapareceram em um instante. O eu narrador tenta fa-
James, Henry, 1843-1916.
Os Amigos dos Amigos = The Friends of the Friends / Henry James;
zer os dois se encontrarem para trocar impressões sobre esses fatos
[tradução: Gil Reyes]. – Ed. bilíngue. – São Paulo : Folha de S.Paulo, 2018.
96 p. ; 21 cm. – (Coleção Folha. Inglês com clássicos da literatura ; v. 18) tão extraordinários, mas passam-se anos e os encontros são sempre
Texto em português, com tradução paralela em inglês. frustrados por uma série infindável de contratempos.
ISBN 978-85-93876-63-9 (coleção completa). Nesse meio-tempo, porém, a mulher começa a ter emoções con-
ISBN 978-85-93876-81-3 (volume 18).
traditórias a respeito do tão ansiado encontro: sente uma espécie
1. Ficção americana. I. Reyes, Gil. II. Título.
III. Título: The Friends of the Friends. IV. Série.
CDD – 813
de estranho medo ou ciúme, até que ela mesma acaba impedindo a
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Lioara Mandoju CRB-7 5331
única ocasião na qual os dois teriam inevitavelmente se conhecido.
Impresso no Brasil por RR Donnelley
E, apesar disso, à noite o encontro acontece, embora o noivo tenha
diante dele uma aparição, pois naquela mesma noite a amiga morre
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou
por nenhum meio, sem a permissão expressa e por escrito da Publifolha Editora Ltda. na casa dela.

3
 Introdução

Desta vez, porém, a aparição não é efêmera: os dois se olham

em silêncio por vinte minutos, e talvez até façam mais que isso,
algo que o eu narrador jamais conseguirá saber nem compreender.
Mas é o suficiente para que ela, uma semana depois, cancele o
casamento marcado e abandone seu prometido esposo para sempre
ao próprio destino.

4 5
 The Friends of the Friends
Os Amigos dos Amigos

© Shutterstock
 Os Amigos dos Amigos
Encontrei, como você profetizou, muitas coisas interessantes, mas pou-
cas que contribuam para a delicada questão – a possibilidade de publica-
ção. Os diários dela são menos sistemáticos do que eu esperava; ela tinha
apenas o abençoado hábito de anotar e narrar. Resumia, arquivava; na rea-
lidade, parece que raramente deixava passar uma boa história sem pegá-la
no ar. Refiro-me, é claro, não tanto às coisas que ela ouvia como às que via
e sentia. Às vezes, escreve sobre si, às vezes sobre os outros, ou combina
as duas coisas. É sob esta última rubrica que costuma ser mais eloquente.
Mas, como você vai entender, nem sempre quando é mais eloquente ela se
torna mais publicável. Para dizer a verdade, é assustadoramente indiscreta
ou pelo menos oferece todo o material para que eu me torne. Pegue, por
exemplo, este fragmento que lhe mando, depois de dividi-lo em capítulos
curtos para a sua comodidade. É o conteúdo de um caderno sem pauta
de poucas páginas, que mandei copiar e tem o mérito de ser algo quase
equilibrado, um todo inteligível. Claramente, são páginas que têm alguns
anos. Li com o mais vivo interesse a declaração que elas fazem de modo
tão circunstancial e me esforcei para aceitar o prodígio que deixam para
ser inferido. Essas coisas causariam impacto, não é mesmo? Em qualquer
leitor. Mas será que você me imagina por um momento apresentando
tal documento ao mundo, mesmo que ela, como se quisesse oferecer ao
mundo o privilégio de lê-lo, tenha evitado dar nomes ou iniciais aos seus
amigos? Você tem algum tipo de pista sobre a identidade deles? Deixo
que ela fale por si.
8 9
The Friends of the Friends
I find, as you prophesied, much that’s interesting, but little that helps
the delicate question – the possibility of publication. Her diaries are
less systematic than I hoped; she only had a blessed habit of noting
and narrating. She summarised, she saved; she appears seldom indeed
to have let a good story pass without catching it on the wing.1 I allude
of course not so much to things she heard as to things she saw and felt.
She writes sometimes of herself, sometimes of others, sometimes of the
combination. It’s under this last rubric that she’s usually most vivid. But
it’s not, you’ll understand, when she’s most vivid that she’s always most
publishable. To tell the truth she’s fearfully indiscreet, or has at least all
the material for making me so. Take as an instance the fragment I send
you after dividing it for your convenience into several small chapters. It’s
the contents of a thin blank-book which I’ve had copied out and which
has the merit of being nearly enough a rounded thing, an intelligible
whole. These pages evidently date from years ago. I’ve read with liveliest
wonder the statement they so circumstantially make and done my best
to swallow the prodigy they leave to be inferred. These things would be
striking, wouldn’t they? To any reader; but can you imagine for a moment
my placing such a document before the world, even though, as if she
herself had desired the world should have the benefit of it, she has given
her friends neither names nor initials? Have you any sort of clue to their
identity? I leave her the floor.2
1
on the wing – a expressão significa algo que esteja voando, solto por aí, sem nada que o prenda ao chão. A
palavra wing tem o significado literal de “asa”, mas em português dizemos que algo “está no ar”.
2
I leave her the floor – o conto abre com uma parte inicial em que o narrador conta ter encontrado um diário
de uma escritora e que existe a possibilidade de publicá-lo. No entanto, acha melhor primeiro pedir a opinião
da pessoa a quem dirige a carta, para que esta julgue se é de fato algo publicável. To leave someone the floor
é uma expressão idiomática que significa “deixar o campo aberto a alguém”, “deixar que a pessoa assuma o
espaço”, isto é, neste caso, deixar que as páginas do diário falem por si.
 Os Amigos dos Amigos
I I
Sei muito bem, claro, que fui eu mesma a causadora; mas isso não muda
nada. Fui a primeira a lhe falar dela – ele nunca ouvira menção ao seu
nome. E se não tivesse sido eu, outra pessoa o teria feito: tentei depois me
consolar com essa reflexão. Mas o consolo das reflexões é escasso: o único
consolo que conta na vida é não ter sido estúpido. Essa é uma graça da
qual por certo nunca vou poder desfrutar.
– Sim, você deveria conhecê-la e conversar com ela a respeito – foi
o que eu disse imediatamente. – Vocês são almas gêmeas. – Contei-lhe
quem era ela e que os dois deviam ser almas gêmeas, pois se ele havia
tido na juventude uma estranha aventura, ela também tivera uma, mais
ou menos na mesma época. Isso era bem conhecido dos amigos dela –
um incidente que a toda hora pediam que ela contasse. Era encantadora,
inteligente, bonita e infeliz; mas, apesar disso, era a esse incidente que
originalmente devia sua reputação.
10
The Friends of the Friends
I know perfectly of course that I brought it upon myself; but that doesn’t
make it any better. I was the first to speak of her to him – he had never
even heard her mentioned. Even if I had happened not to speak some
one else would have made up for it: I tried afterwards to find comfort
in that reflexion.3 But the comfort of reflexions is thin: the only comfort
that counts in life is not to have been a fool. That’s a beatitude I shall
doubtless never enjoy. “Why you ought to meet her and talk it over” is
what I immediately said. “Birds of a feather flock together.”4 I told him
who she was and that they were birds of a feather because if he had had
in his youth a strange adventure she had had about the same time just
such another. It was well known to her friends – an incident she was
constantly called on to which describe. She was charming clever pretty5
unhappy; but it was none the less the thing to which she had originally
owed her reputation.
3
reflexion – grafia britânica para reflection (reflexão), hoje considerada antiquada. Também para a palavra
connection (conexão, ligação) existe no inglês britânico a grafia connexion.
4
Birds of a feather flock together – literalmente significa que aves com o mesmo tipo de penas (feather) voam
no mesmo bando (flock). É uma maneira informal de dizer que duas pessoas são parecidas e têm os mesmos
gostos. Em português há expressões equivalentes, como “farinha do mesmo saco” ou “almas-gêmeas”.
5
pretty – esta palavra pode ter dois significados em inglês. A primeira é como indicativo de beleza (she is
a pretty woman, ela é uma bela mulher). Mas também pode servir como advérbio de intensidade (the test
was pretty hard, o teste estava bem difícil).
11
 Os Amigos dos Amigos
Estando aos dezoito anos de idade em algum lugar no exterior com
uma tia, ela teve uma visão de um de seus pais no instante da morte. O
progenitor em questão achava-se na Inglaterra, a centenas de quilômetros
de distância e, que ela soubesse, não estava nem moribundo nem morto.
Era de dia, no museu de uma grande cidade estrangeira. Ela se adiantara
aos demais que a acompanhavam e entrara sozinha numa pequena sala
que abrigava uma obra de arte famosa e era ocupada naquele instante
por duas outras pessoas. Uma delas era um velho vigilante; a outra, antes
de observar melhor, ela tomou por um estranho, um turista. Teve ape-
nas a noção de que era um homem com a cabeça descoberta, sentado
num banco. Porém, no instante em que pousou os olhos nele, deparou,
para seu espanto, com o pai, que, como se esperasse por ela há um bom
tempo, olhou-a com uma aflição singular e uma impaciência que beirava
a repreensão. Ela correu até ele com um grito de espanto, “Papai, o que
houve?”, mas isso foi seguido pela expressão de um sentimento ainda mais
vivo, quando, após seu gesto, ele simplesmente desapareceu, deixando o
vigilante e seus parentes, que a esta altura já estavam em seus calcanhares,
reunidos ao redor dela, consternados. Portanto, essas pessoas, o vigilante,
a tia, os primos, foram de certo modo testemunhas do fato – pelo menos
da impressão que o fato causara nela; e havia o testemunho adicional de
um médico, que cuidava de uma das pessoas do grupo e a quem isso
foi comunicado imediatamente. Ele deu-lhe um remédio para histeria,
mas chamou a tia de lado e disse: “Espere e veja se não aconteceu nada
quando chegarem em casa”. E algo de fato acontecera – o pobre pai, após
um ataque súbito e violento, morrera naquela manhã. A tia, irmã da mãe,
12
The Friends of the Friends
Being at the age of eighteen somewhere abroad with an aunt she had
had a vision of one of her parents at the moment of death. The parent
was in England hundreds of miles away and so far as she knew neither
dying nor dead. It was by day, in the museum of some great foreign
town. She had passed alone, in advance of her companions, into a
small room containing some famous work of art and occupied at that
moment by two other persons. One of these was an old custodian; the
second, before observing him, she took for a stranger, a tourist. She was
merely conscious that he was bareheaded and seated on a bench. The
instant her eyes rested on him however she beheld to her amazement
her father, who, as if he had long waited for her, looked at her in singular
distress and an impatience that was akin to reproach. She rushed to
him with a bewildered cry, “Papa, what is it?” but this was followed by
an exhibition of still livelier feeling when on her movement he simply
vanished, leaving the custodian and her relations, who were by that time
at her heels, to gather round her in dismay. These persons, the official, the
aunt, the cousins, were therefore in a manner witnesses of the fact – the
fact at least of the impression made on her; and there was the further
testimony of a doctor who was attending one of the party and to whom
it was immediately afterwards communicated. He gave her a remedy for
hysterics, but said to the aunt privately: “Wait and see if something doesn’t
happen at home.” Something had happened – the poor father, suddenly
and violently seized, had died that morning. The aunt, the mother’s sister,
13
 Os Amigos dos Amigos
recebera antes do final do dia um telegrama dando a notícia e pedin-
do que preparasse a sobrinha. A sobrinha já estava preparada, e a sensação
que a garota teve dessa aparição permaneceu, é claro, indelével. Todos
nós, como amigos dela, havíamos sido comunicados e transmitimos a no-
tícia com certo estranhamento uns aos outros. Doze anos haviam se pas-
sado, e ela, como mulher que tivera um casamento infeliz e vivia separada
do marido, tornara-se interessante por outros motivos; mas, como o nome
que agora carregava era ostentado com bastante frequência, e, além disso,
como sua separação judicial, do jeito que as coisas andam, dificilmente
poderia contar como uma honraria, era comum nos referirmos a ela como
“aquela que viu o fantasma do pai”.
Quanto a ele, esse querido homem, havia visto o fantasma da mãe –
ou seja, era o que faltava! Eu nunca o ouvira falar disso até um dia em
que nosso convívio mais íntimo e agradável o levou por meio de alguma
derivação da conversa a mencioná-lo, e com isso inspirou-me o impulso
de lhe contar que ele tinha uma rival nesse campo – uma pessoa com
quem poderia comparar impressões. Mais tarde, essa sua história acabou
se tornando também para ele, talvez por eu tê-la repetido indevidamente,
um conveniente rótulo mundano; mas não havia sido com base nisso que
me fora apresentado um ano antes. Ele tinha outros méritos, assim como
ela, coitada, tinha também os dela. Posso dizer com sinceridade que eu
era bem ciente dos méritos dele desde o início – e os descobrira antes que
14
The Friends of the Friends
received before the day was out a telegram announcing the event and
requesting her to prepare her niece for it. Her niece was already prepared,
and the girl’s sense of this visitation remained of course indelible. We
had all, as her friends, had it conveyed to us and had conveyed it6 creepily
to each other. Twelve years had elapsed, and as a woman who had made
an unhappy marriage and lived apart from her husband she had become
interesting from other sources; but since the name she now bore was a
name frequently borne,7 and since moreover her judicial separation, as
things were going, could hardly count as a distinction, it was usual to
qualify her as “the one, you know, who saw her father’s ghost.”
As for him, dear man, he had seen his mother’s – so there you are! I had
never heard of that till this occasion on which our closer, our pleasanter
acquaintance led him, through some turn of the subject of our talk, to
mention it and to inspire me in so doing with the impulse to let him
know that he had a rival in the field – a person with whom he could
compare notes. Later on his story became for him, perhaps because of
my unduly repeating it, likewise a convenient worldly label; but it hadn’t
a year before been the ground on which he was introduced to me. He
had other merits, just as she, poor thing, had others. I can honestly say
that I was quite aware of them from the first – I discovered them sooner
6
had it conveyed to us and had conveyed it – a construção to have something done indica sempre que
outra pessoa faz a ação (had it conveyed to us, (alguém) comunicou-o a nós), enquanto o segundo have (had
conveyed) é usado simplesmente como auxiliar para formar o past perfect.
7
bore... borne – duas formas distintas (simple past a primeira e particípio passado a segunda) do verbo to
bear/bore/borne. Este verbo significa “carregar”, “ostentar” (como neste contexto) ou “tolerar”, “suportar”
(I can’t bear him, não o suporto). Possui ainda a acepção de “trazer dentro” (she’s bearing a child, “está grá-
vida”), e no sentido estendido significa também “parir”, “gerar”. Para dizer “nascer” usa-se, ao contrário, a
forma to be born, sem o e final, que significa literalmente “ser gerado”.
15
 Os Amigos dos Amigos
ele descobrisse os meus. Lembro de ter me dado conta já naquela época
de que a consciência que ele tinha dos meus fora estimulada por eu ter
sido capaz de corresponder, embora não por experiência própria, ao seu
curioso episódio. Esse episódio era datado, como o dela, de uns doze anos
atrás – ano em que ele, em Oxford, por alguma razão decidira estender
suas férias de verão. Depois de passar uma tarde de agosto no rio, ao voltar
ao quarto, ainda à luz do dia, viu a mãe em pé ali, como se os olhos dela
tivessem sido grudados na porta. Recebera uma carta da mãe de manhã,
enviada de Gales, onde ela estava com o pai dela. Ao vê-lo, a mãe deu
um sorriso esplendoroso e estendeu os braços na direção dele, e então,
enquanto ele alegremente estendia os seus, ela desapareceu. Ele escreveu
para a mãe naquela noite, contando-lhe o acontecido; a carta foi bem
preservada. Na manhã seguinte, soube que ela havia morrido. Após essa
nossa conversa casual, ele ficou muito impressionado com o pequeno pro-
dígio que eu fora capaz de lhe revelar. Nunca soubera de outro caso. Com
certeza precisavam conhecer-se, minha amiga e ele; por certo, teriam algo
em comum. Eu poderia providenciar isso, não poderia? – se ela não visse
nenhum inconveniente, é claro; porque por ele, não havia o menor proble-
ma. Prometi que falaria com ela assim que possível e, ao longo da semana,
pude fazê-lo. Ela tampouco viu algum “inconveniente”; estava disposta a
conhecê-lo. E, no entanto, não iria ocorrer nenhum encontro – o que se
costuma entender como encontro.
16
The Friends of the Friends
than he discovered mine. I remember how it struck me even at the time
that his sense of mine was quickened by my having been able to match,
though not indeed straight from my own experience, his curious anecdote.
It dated, this anecdote, as hers did, from some dozen years before – a year
in which, at Oxford, he had for some reason of his own been staying
long into the “Long.”8 He had been in the August afternoon on the river.
Coming back into his room while it was still distinct daylight he found
his mother standing there as if her eyes had been fixed on the door. He
had had a letter from her that morning out of Wales, where she was
staying with her father. At the sight of him she smiled with extraordinary
radiance and extended her arms to him, and then as he sprang forward
and joyfully opened his own she vanished from the place. He wrote to her
that night, telling her what had happened; the letter had been carefully
preserved. The next morning he heard of her death. He was through this
chance of our talk extremely struck with the little prodigy I was able to
produce for him. He had never encountered another case. Certainly they
ought to meet, my friend and he; certainly they would have something in
common. I would arrange this, wouldn’t I? – if she didn’t mind; for himself
he didn’t mind in the least. I had promised to speak to her of the matter as
soon as possible, and within the week I was able to do so. She “minded”
as little as he; she was perfectly willing to see him. And yet no meeting
was to occur – as meetings are commonly understood.
8
Long – termo coloquial usado como abreviatura de long holiday; designa o longo período de pausa nos es-
tudos, em geral o das férias de verão no hemisfério norte, entre final de junho e metade de setembro, adotado
principalmente em universidades e em escolas públicas.
17
 Os Amigos dos Amigos
II
Isso é só metade da história – a maneira extraordinária pela qual o
encontro viu-se impossibilitado. A razão era uma série de incidentes;
mas que, ao persistirem durante anos, fizeram com que ambos virassem
motivo de brincadeiras, para mim e para os outros. No começo, eram
incidentes muito engraçados e depois começaram a ficar incômodos. O
estranho é que os dois se mostravam receptivos: não eram indiferentes,
muito menos avessos. Era um daqueles caprichos do acaso, auxiliado,
suponho, por alguma oposição bem estabelecida entre seus interesses e
hábitos. Os dele centravam-se em seu cargo, sua perene atividade de ins-
petor, que lhe permitia pouco lazer, exigindo-lhe deslocar-se a toda hora
e obrigando-o a desmarcar compromissos. Ele gostava da vida social, mas
podia encontrá-la por toda parte e se esforçava. Nunca soube onde ele
estaria em determinado momento, e havia épocas em que ficava meses
sem vê-lo. Ela, por sua vez, era quase suburbana: morava em Richmond
e nunca “saía”. Era uma mulher refinada, mas não ligada à vida social, e,
como diziam as pessoas, sabia do seu valor. Decididamente altiva e um
tanto caprichosa, vivia a vida dela como a planejara. Havia coisas que se
podia fazer com ela, mas não era possível convencê-la a ir às festas. Éra-
mos nós que íamos, talvez um pouco mais do que seria conveniente, às
18
The Friends of the Friends
II
That’s just half my tale – the extraordinary way it was hindered. This
was the fault of a series of accidents; but the accidents, persisting for
years, became, to me and to others, a subject of mirth with either party.
They were droll9 enough at first, then they grew rather a bore. The odd
thing was that both parties were amenable: it wasn’t a case of their
being indifferent, much less of their being indisposed. It was one of the
caprices of chance, aided I suppose by some rather settled opposition
of their interests and habits. His were centered in his office, his eternal
inspectorship, which left him small leisure, constantly calling him away
and making him break engagements. He liked society, but he found it
everywhere and took it at a run. I never knew at a given moment where
he was, and there were times when for months together I never saw him.
She was on her side practically suburban: she lived at Richmond10 and
never went “out.” She was a woman of distinction, but not of fashion,
and felt, as people said, her situation. Decidedly proud and rather
whimsical, she lived her life as she had planned it. There were things
one could do with her, but one couldn’t make her come to one’s parties.
One went indeed a little more than seemed quite convenient to hers,
9
droll – este adjetivo significa “divertido” (e é ligado ao francês drôle, que tem o mesmo sentido), mas com
uma nuance de “estranho”, “maluco”. É menos usado que amusing (divertido, engraçado) ou funny (cômico,
ridículo).
10
Richmond – é uma cidade do norte da Inglaterra, no Yorkshire, mas também (e é esse o caso aqui) um dos
boroughs (regiões, bairros) da Greater London, cujo nome completo é Richmond-upon-Thames. Embora seja
hoje um subúrbio londrino, graças aos seus parques continuou sendo um lugar de muito verde, junto aos
famosos Kew Gardens, mais distante da agitação de Londres.
19
 Os Amigos dos Amigos
reuniões dela, que consistiam em sua prima, uma xícara de chá e a vista.
O chá era bom; mas a vista era familiar, embora talvez não tanto quanto a
prima – uma senhora solteira antipática, daquele grupo do museu e com
quem ela vivia agora –, que se tornara desagradavelmente familiar. Essa
ligação com um parente inferior, em parte por razões econômicas – ela
definia sua companhia como uma administradora maravilhosa –, era uma
das perversidades que tínhamos que perdoar nela. Outra era seu apego
ao que ela julgava uma atitude de decoro depois de se separar do marido.
Um apego extremado – mórbido, segundo muitos. Mostrava-se sempre
retraída; cultivava escrúpulos; suspeitava de desfeitas, ou melhor, talvez eu
devesse dizer que remoía um pouco antigas desfeitas: era uma das pou-
cas mulheres que conheci a quem essa condição particular tornou tímida
em vez de corajosa. Pobre mulher, ficara muito suscetível! Especialmente
marcados eram os limites que estabelecera para a possível atenção por
parte dos homens: seu pensamento era sempre que o marido aguardava
apenas surgir uma oportunidade para atacá-la. Ela desestimulava, quando
não proibia, as visitas de pessoas do sexo masculino que não fossem senis:
dizia que todo cuidado era pouco.
20
The Friends of the Friends
which consisted of her cousin, a cup of tea and the view. The tea was
good; but the view was familiar, though perhaps not, like the cousin
– a disagreeable old maid who had been of the group at the museum
and with whom she now lived – offensively so. This connexion with an
inferior relative, which had partly an economic motive – she proclaimed
her companion a marvelous manager – was one of the little perversities
we had to forgive her. Another was her estimate of the proprieties created
by her rupture with her husband. That was extreme – many persons
called it even morbid. She made no advances; she cultivated scruples; she
suspected, or I should perhaps rather say she remembered, slights: she was
one of the few women I’ve known whom that particular predicament had
rendered modest rather than bold. Dear thing, she had some delicacy!
Especially marked were the limits she had set to possible attentions from
men: it was always her thought that her husband only waited to pounce
on her. She discouraged if she didn’t forbid the visits of male persons not
senile: she said she could never be too careful.
21
 Os Amigos dos Amigos
Da primeira vez que mencionei a ela que tinha um amigo com um
destino que o distinguia da mesma estranha maneira como a ela, dei-
xei-a à vontade para que pudesse dizer: “Oh, traga-o aqui para me ver!”.
Eu talvez tivesse sido capaz de trazê-lo, e uma situação bem inocente
ou relativamente simples teria sido criada. Mas não foram essas suas
palavras; ela disse apenas: “Vamos acabar nos conhecendo, com certe-
za; sim, vou ficar atenta!”. Isso causou a primeira demora e, ao mesmo
tempo, aconteceram várias coisas. Uma delas foi que conforme o tem-
po passou ela, encantadora como era, foi fazendo mais e mais amigos, e
muitas vezes aconteceu desses amigos também serem amigos suficiente-
mente próximos dele e o citavam nas conversas. Curioso é que embora
não pertencessem, digamos, ao mesmo mundo, ou para usar um termo
horrível, ao mesmo conjunto, os membros do meu confuso par acabaram
tendo contato com as mesmas pessoas e fazendo com que participassem
do mesmo estranho coro. Ela tinha amigos que não se conheciam, mas
que de modo inevitável e pontual falavam bem dele. Ela também pos-
suía um tipo de originalidade, um interesse intrínseco, que levava cada
um de nós a mantê-la como um recurso privado, cultivado com certo
ciúme, mais ou menos em segredo, como uma pessoa que não era mui-
to comum encontrar nos círculos sociais, que não era para qualquer
um se aproximar – não era para as pessoas vulgares –, e cujo contato,
22
The Friends of the Friends
When I first mentioned to her that I had a friend whom fate had
distinguished in the same weird way as herself I put her quite at liberty
to say “Oh bring him out to see me!” I should have probably been able to
bring him, and a situation perfectly innocent or at any rate comparatively
simple would have been created. But she uttered no such word; she only
said: “I must meet him certainly; yes, I shall look out for him!” That
caused the first delay, and meanwhile various things happened. One of
them was that as time went on she made, charming as she was, more
and more friends, and that it regularly befell that these friends were
sufficiently also friends of his to bring him up in conversation.11 It was
odd that without belonging, as it were, to the same world or, according
to the horrid term, the same set,12 my baffled pair should have happened
in so many cases to fall in with the same people and make them join in
the droll chorus. She had friends who didn’t know each other but who
inevitably and punctually recommended him. She had also the sort of
originality, the intrinsic interest, that led her to be kept by each of us
as a private resource, cultivated jealously, more or less in secret, as a
person whom one didn’t meet in society, whom it was not for every one –
whom it was not for the vulgar – to approach, and with whom therefore
11
bring him up in conversation – to bring somebody/something up significa “mencionar alguém/alguma
coisa” e, no presente contexto, significa “fazer menção ao seu nome” durante uma conversa. To bring some-
body up significa também “educar”, “criar” ou, mais coloquialmente, “animar” alguém, “levantar seu moral”.
12
the same set – o substantivo set identifica um grupo de pessoas ou coisas com algo em comum. Em
matemática, significa “conjunto” (set x has three members, o conjunto x tem três elementos) e também em
português é usado no sentido de “conjunto de coisas afins” (um set de músicas ou um set de vôlei ou tênis).
23
 Os Amigos dos Amigos
portanto, era particularmente difícil e precioso. Nós a víamos também em
separado, em certos compromissos e condições, e achávamos melhor não
contar aos demais para manter a harmonia. Sempre havia alguém que
tinha notícias mais recentes dela do que o outro. Havia também uma mu-
lher estúpida que, por um longo tempo, entre os não privilegiados, devia
a meras três visitas que fizera a Richmond a reputação de ser íntima de
“muitas pessoas incrivelmente inteligentes e fora do comum”.
Todo mundo já teve amigos que achou uma boa ideia juntar, e todo
mundo lembra que esses alegres pensamentos muitas vezes não foram
bem-sucedidos; mas duvido que tenha havido um caso em que o fracasso
tenha tido relação tão direta com a quantidade de influência colocada em
jogo. Realmente, nesse caso, a quantidade de influência talvez tenha sido
o aspecto mais notável. Conforme revelaram a mim e a outras pessoas,
minha dama e meu cavalheiro consideraram essa situação um ótimo tema
para uma comédia divertidíssima. Com o tempo, a primeira razão foi
abandonada e cinquenta outras melhores surgiram. Os dois eram muito
parecidos: tinham as mesmas ideias e manias e gostos, os mesmos pre-
conceitos e superstições e heresias; diziam e às vezes até faziam as mes-
mas coisas; gostavam e desgostavam das mesmas pessoas e lugares, dos
24
The Friends of the Friends
acquaintance was particularly difficult and particularly precious. We saw
her separately, with appointments and conditions, and found it made on
the whole for harmony not to tell each other. Somebody had always had a
note from her still later than somebody else. There was some silly woman
who for a long time, among the unprivileged, owed to three simple visits
to Richmond a reputation for being intimate with “lots of awfully clever
out-of-the-way people.”13
Every one has had friends it has seemed a happy thought to bring together,
and every one remembers that his happiest thoughts have not been his
greatest successes; but I doubt if there was ever a case in which the failure
was in such direct proportion to the quantity of influence set in motion.
It’s really perhaps here the quantity of influence that was most remarkable.
My lady and my gentleman each pronounced it to me and others quite a
subject for a roaring farce.14 The reason first given had with time dropped
out of sight and fifty better ones flourished on top of it.They were so awfully
alike: they had the same ideas and tricks and tastes, the same prejudices
and superstitions and heresies;15 they said the same things and sometimes
did them; they liked and disliked the same persons and places, the
13
out-of-the-way people – out-of-the-way neste caso é um adjetivo (e por isso escrito com hifens) e significa
geralmente “afastado”, “remoto”, ou, no inglês britânico, “estranho”, “incomum”. No texto, a referência é a
pessoas “fora do comum”, no sentido positivo. É criado a partir da locução adverbial out of the way (distante,
fora de mão): that place is rather out of the way, “aquele lugar é bem fora de mão”.
14
roaring farce – a palavra farce é um falso cognato e significa, na verdade, “comédia satírica, com cenas que
beiram o improvável”. Já a palavra roaring é mais comumente empregada como “rugir”, “rugido” ou o “som
produzido por felinos selvagens”, mas também é frequentemente usado como adjetivo que denota a intensi-
dade da risada, como gargalhadas altas e escandalosas. No texto, as palavras intensificam o significado uma
da outra, indicando uma comédia extremamente improvável e também hilária.
15
the same ideas... – vale a pena notar a coordenação por polissíndeto (isto é, a coordenação por meio da
conjunção and) e o paralelismo (the same ideas and tricks and tastes, the same prejudices and superstitions
and heresies). O uso dessa figura retórica particular enfatiza ainda mais a afinidade entre os dois personagens.
25
 Os Amigos dos Amigos
mesmos livros, autores e estilos; havia toques similares até em suas feições
e características. Ficou estabelecido que eram, como se diz na linguagem
comum, igualmente “agradáveis” e quase igualmente bonitos. Mas a gran-
de semelhança que impressionava e gerava comentários era sua estranha
aversão a serem fotografados. Eram as únicas pessoas de que se tinha no-
tícia que nunca haviam sido “capturadas” e que mostravam uma objeção
exaltada a isso. Simplesmente não se deixavam fotografar – não e não, não
importava o que se dissesse. Eu me queixara abertamente disso; ele, em
particular, eu desejara em vão poder mostrá-lo no console da lareira de
minha sala, numa moldura de Bond Street. Era sob todos os aspectos a ra-
zão mais poderosa de todas pela qual eles tinham que se conhecer – todas
as demais reduzidas a nada pela estranha lei que fizera com que batessem
tantas portas um na cara do outro, que os transformara nos dois baldes
de um poço, nas duas pontas de uma gangorra, nos dois partidos de um
Estado, de modo que, quando um subia, o outro descia, quando um estava
fora, o outro estava dentro; sem qualquer chance de algum dos dois entrar
numa casa antes que o outro saísse, ou que saísse desavisadamente até que
o outro estivesse a ponto de entrar. Só chegavam quando não estavam
mais sendo aguardados, que era justamente também quando iam embora.
26
The Friends of the Friends
same books, authors and styles; there were touches of resemblance even in
their looks and features. It established much of a propriety that they were
in common parlance equally “nice” and almost equally handsome. But the
great sameness, for wonder and chatter, was their rare perversity in regard
to being photographed. They were the only persons ever heard of who
had never been “taken” and who had a passionate objection to it. They
just wouldn’t be – no, not for anything any one could say. I had loudly
complained of this; him in particular I had so vainly desired to be able to
show on my drawing-room chimney-piece in a Bond Street frame.16 It
was at any rate the very liveliest of all the reasons why they ought to know
each other – all the lively reasons reduced to naught17 by the strange law
that made them bang so many doors in each other’s face, made them the
buckets in the well, the two ends of the see-saw, the two parties in the State,
so that when one was up the other was down, when one was out the other
was in; neither by any possibility entering a house till the other had left
it or leaving it all unawares18 till the other was at hand. They only arrived
when they had been given up, which was precisely also when they departed.
16
Bond Street frame – Bond Street é uma rua de Londres famosa pelas lojas finas e pelos antiquários. Dizer que
a moldura havia sido comprada na Bond Street significa destacar que se tratava de um objeto de certo valor.
17
naught – forma arcaica e literária de nothing (nada).
18
unawares – aware significa “sabedor”, “consciente”, e com o prefixo un- e o acréscimo de um -s final forma
esse advérbio particular, que significa “sem saber”, “inconscientemente”.
27
 Os Amigos dos Amigos
Em resumo, eram alternados e incompatíveis; perdiam-se um do outro de
modo tão inveterado que só podia ser explicado como algo previamen-
te acertado. Era, porém, tão distante de algo acertado de antemão que
acabou – literalmente depois de vários anos – por desapontá-los e inco-
modá-los. Acho que a curiosidade deles só se tornou forte depois que se
mostrou totalmente vã. É claro que houve grande esforço para ajudá-los,
mas só serviu para estender cordas e fazê-los tropeçar. Para dar exemplos
eu deveria ter feito anotações; mas, de todo modo, lembro que nenhum
dos dois foi capaz de comparecer a um jantar na ocasião certa. A ocasião
certa para um era a ocasião errada para o outro. Na ocasião errada, os dois
eram muito pontuais, só que nunca houve ocasiões, a não ser as erradas.
As próprias condições do clima e a constituição humana reforçavam isso.
Um resfriado, uma dor de cabeça, um luto, uma tempestade, um nevoei-
ro forte, um terremoto, um cataclismo, intervinham de modo infalível.
A questão toda ia muito além de uma brincadeira.
28
The Friends of the Friends
They were in a word alternate and incompatible; they missed each other
with an inveteracy that could be explained only by its being preconcerted.
It was however so far from preconcerted that it had ended – literally after
several years – by disappointing and annoying them. I don’t think their
curiosity was lively till it had been proved utterly vain. A great deal was of
course done to help them, but it merely laid wires for them to trip. To give
examples I should have to have taken notes; but I happen to remember
that neither had ever been able to dine on the right occasion. The right
occasion for each was the occasion that would be wrong for the other.
On the wrong one they were most punctual, and there were never any
but the wrong ones. The very elements19 conspired and the constitution
of man reenforced them. A cold, a headache, a bereavement,20 a storm, a
fog, an earthquake, a cataclysm, infallibly intervened. The whole business
was beyond a joke.21
19
elements – com tradução literal de “elementos”, este termo é muito usado para falar das condições climá-
ticas e naturais de forma geral.
20
bereavement – termo formal para indicar “luto”, no sentido de “perda” (mais coloquialmente usa-se loss). A
frase em questão enumera uma série de impedimentos para o encontro, desde um banal resfriado (cold), até a
chegada de um cataclismo (cataclysm), num crescendo de imprevistos que beira o paradoxo.
21
joke – false friend que não significa “jogo” (que em inglês é play), e sim “brincadeira”, como neste contexto,
ou “piada” (to tell jokes, contar piadas). Às vezes é usado na locução a practical joke para se referir a uma
“pegadinha”.
29
 Os Amigos dos Amigos
No entanto, a brincadeira ainda precisava ser levada adiante, embora
não houvesse como não achar que ela criara uma situação séria, produ-
zindo nos dois uma consciência, um desconforto, um medo real do últi-
mo incidente de toda aquela série, o único que ainda teria algum frescor,
o incidente que poderia fazer com que se encontrassem. O efeito final
de todos os que o precediam seria incitar esse desfecho. Estavam muito
envergonhados – talvez até com um pouco de vergonha um do outro.
Tantos preparativos, tanta frustração: o que poderia resultar de tão bom
que justificasse tudo isso? Um mero encontro seria monótono. Costu-
mavam perguntar-me se eu os via depois de tantos anos apenas olhando
estupidamente um para ou outro. Porque, se já estavam entediados com
a brincadeira, ficariam mais entediados ainda com isso. Os dois faziam
exatamente as mesmas reflexões, e com certeza cada um, de algum modo,
sabia quais eram as do outro. De fato, acho que era essa peculiar descon-
fiança que acabava controlando a situação. Quero dizer que, depois de
falharem no primeiro ou nos dois primeiros anos por não terem como
evitar, mantiveram o hábito porque – como posso dizer? – haviam ficado
ansiosos. Realmente, deveria haver um desejo oculto que justificasse algo
ao mesmo tempo tão regular e tão ridículo.
30
The Friends of the Friends
Yet as a joke it had still to be taken, though one couldn’t help feeling
that the joke had made the situation serious, had produced on the part
of each a consciousness, an awkwardness, a positive dread of the last
accident22 of all, the only one with any freshness left, the accident that
would bring them together. The final effect of its predecessors had been
to kindle this instinct. They were quite ashamed – perhaps even a little
of each other. So much preparation, so much frustration: what indeed
could be good enough for it all to lead up to? A mere meeting would be
mere flatness. Did I see them at the end of years, they often asked, just
stupidly confronted? If they were bored by the joke they might be worse
bored by something else. They made exactly the same reflexions, and each
in some manner was sure to hear of the other’s. I really think it was this
peculiar diffidence that finally controlled the situation. I mean that if they
had failed for the first year or two because they couldn’t help it, they kept
up the habit because they had – what shall I call it? – grown nervous. It
really took some lurking volition to account for anything both so regular
and so ridiculous.
22
accident – apesar de também significar “acidente”, em inglês esta palavra também descreve pequenos even-
tos fortuitos, sem grande significado e sem danos, exatamente como a tradução “incidente” usada neste texto.
31
 Os Amigos dos Amigos
III
Quando, para coroar nossa longa relação, aceitei a renovada oferta de
casamento que ele me fez, comentaram, humoradamente, eu sei, que a
condição que eu teria colocado era que me presenteasse com uma foto
dele. Tanto é verdade que recusei dar-lhe a minha se não me desse a sua.
Seja como for, por fim lá estava ele, em sua alta distinção, no console da
lareira e, no dia em que ela veio me dar os parabéns, chegou mais perto
da foto do que nunca, para poder vê-lo. Ao se deixar capturar, ele dera
um exemplo que eu a convidei a seguir; ele sacrificara a sua aversão – por
que não sacrificava a dela também? Além do mais, também deveria me
dar algo de noivado – que tal a foto que lhe faria companhia? Ela riu e
sacudiu a cabeça; sacudia a cabeça com um impulso que parecia vir de tão
longe quanto a brisa que agita uma flor. O que acompanharia o retrato de
meu futuro marido seria o retrato de sua futura esposa. Ela já se aferrara
àquela posição – conseguia desviar-se tão pouco dela quanto explicá-la.
Era um preconceito, uma teimosia, um voto – viveria e morreria sem ser
fotografada. Agora, além disso, era a única nessa condição: era assim que
gostava; tornava-a ainda mais original. Regozijava-se com a rendição de
seu ex-aliado e ficou um longo tempo olhando para a foto dele, sobre a
qual não fez nenhuma observação especial, embora tenha até virado o
32
The Friends of the Friends
III
When to crown our long acquaintance I accepted his renewed offer of
marriage23 it was humorously said, I know, that I had made the gift of his
photograph a condition. This was so far true that I had refused to give him
mine without it. At any rate I had him at last, in his high distinction, on
the chimney-piece, where the day she called to congratulate me she came
nearer than she had ever done to seeing him. He had in being taken24
set her an example that I invited her to follow; he had sacrificed his
perversity – wouldn’t she sacrifice hers? She too must give me something
on my engagement – wouldn’t she give me the companion-piece? She
laughed and shook her head; she had headshakes whose impulse seemed
to come from as far away as the breeze that stirs a flower. The companion-
piece to the portrait of my future husband was the portrait of his future
wife. She had taken her stand – she could depart from it as little as she
could explain it. It was a prejudice, an entêtement,25 a vow – she would
live and die unphotographed. Now too she was alone in that state: this
was what she liked; it made her so much more original. She rejoiced in
the fall of her late associate and looked a long time at his picture, about
which she made no memorable remark, though she even turned it over
23
his renewed offer of marriage – o conto inteiro transcorre sem nomes próprios: os personagens principais
(a voz narradora, sua amiga e seu futuro marido) nunca são chamados pelo nome. O triângulo que se forma
desse modo parece ainda mais intrincado pela contínua necessidade de se interpretar a quem se referem os
pronomes pessoais.
24
in being taken – o verbo to take é aqui usado com o sentido de “capturar”, “fotografar”: em inglês, na
realidade, é como dizer to take a photograph of somebody, “tirar uma foto de alguém”. Neste caso, to take é
usado em uma construção passiva (being taken), com o mesmo sentido.
25
entêtement – palavra do francês que significa “teimosia”. Muitas palavras consideradas mais complexas
ou cultas vieram do francês, remetendo à época em que as elites acreditavam que o inglês era uma língua do
povo. Além disso, nos séculos XVII e XVIII a cultura francesa teve muita influência sobre a elite britânica, o que
colaborou para que o inglês incorporasse muitas palavras de origem latina.
33
 Os Amigos dos Amigos
retrato para ver o verso. Sobre nosso noivado, foi encantadora – cheia de
cordialidade e simpatia.
– Você o conhece há mais tempo do que eu não o conheço – disse ela –,
e isso já é um tempo enorme.
Ela compreendia que eu e ele havíamos cruzado montes e vales e que
era inevitável que ficássemos juntos agora. Quero deixar tudo isso claro
porque o que se seguiu é tão estranho que sinto até certo alívio ao indi-
car até que ponto nossas relações continuavam tão naturais como sempre
foram. Fui eu mesma que numa loucura repentina alterei e destruí essas
relações. Vejo agora que ela não me deu nenhum pretexto e que só achei
algum na maneira com que olhou para o belo rosto na moldura da Bond
Street. E como eu ia querer que ela olhasse para ele? O que eu desejara
desde o início era que se importasse com ele. Bem, era o que eu ainda
queria – até o momento em que me prometeu que naquela ocasião iria de
fato me ajudar a romper o estúpido feitiço que os mantivera separados. Eu
combinara com ele que fizesse sua parte se ela triunfalmente cumprisse a
dela. Eu estava em outra condição agora – a de poder responder por ele.
Comprometi-me firmemente a fazer com que às cinco horas do sábado
seguinte ele estivesse naquele lugar. Ele saíra da cidade em assuntos ur-
gentes, mas decidira cumprir sua promessa à risca, e voltar expressamente
e com bastante antecedência. “Tem certeza?”, lembro que ela perguntou,
com ar grave e pensativo: achei até que empalideceu um pouco. Estava
cansada, indisposta: era uma pena que ele finalmente a visse em hora
tão desfavorável. Se ele ao menos pudesse tê-la visto cinco anos antes!
Mas respondi que dessa vez eu tinha certeza e que o sucesso, portanto,
dependia só dela. Às cinco horas do sábado, ela iria encontrá-lo numa
determinada cadeira que eu indiquei, aquela em que ele costumava sentar
e na qual – embora eu não mencionasse isso – ele sentara quando, na
34
The Friends of the Friends
to see the back. About our engagement she was charming – full of
cordiality and sympathy. “You’ve known him even longer than I’ve not,”
she said, “and that seems a very long time.” She understood how we
had jogged together over hill and dale and how inevitable it was that
we should now rest together. I’m definite about all this because what
followed is so strange that it’s a kind of relief to me to mark the point
up to which our relations were as natural as ever. It was I myself who in
a sudden madness altered and destroyed them. I see now that she gave
me no pretext and that I only found one in the way she looked at the
fine face in the Bond Street frame. How then would I have had her look
at it? What I had wanted from the first was to make her care for him.
Well, that was what I still wanted – up to the moment of her having
promised me she would on this occasion really aid me to break the silly
spell that had kept them asunder.26 I had arranged with him to do his part
if she would triumphantly do hers. I was on a different footing27 now – I
was on a footing to answer for him. I would positively engage that at
five on the following Saturday he should be on that spot. He was out of
town on pressing business, but, pledged to keep his promise to the letter,
would return on purpose and in abundant time. “Are you perfectly sure?”
I remember she asked, looking grave and considering: I thought she had
turned a little pale. She was tired, she was indisposed: it was a pity he was
to see her after all at so poor a moment. If he only could have seen her five
years before! However, I replied that this time I was sure and that success
therefore depended simply on herself. At five o’clock on the Saturday she
would find him in a particular chair I pointed out, the one in which he
usually sat and in which – though this I didn’t mention – he had been
26
asunder – advérbio literário com um sentido mais forte que o do comum apart.
27
on a different footing – o termo footing em inglês não tem nada a ver com o “footing” que entrou na língua
portuguesa, que na realidade é um termo inventado na França e tomado de empréstimo para indicar o que os
ingleses chamam de jogging. Footing em inglês significa “equilíbrio” (to keep one’s footing, manter o equilíbrio)
ou “condições” (a financial footing, uma condição financeira). Já to be on the same footing pode ser traduzido
por “estar nas mesmas condições”.
35
 Os Amigos dos Amigos
semana anterior, lançara a questão do nosso futuro de uma maneira que
me convenceu a aceitar. Ficou olhando a cadeira em silêncio, como antes
olhara o retrato, enquanto eu repetia pela vigésima vez que era ridículo
demais que alguém não conseguisse apresentar à sua melhor amiga a sua
cara metade. “Eu sou de fato sua melhor amiga?”, ela perguntou com um
sorriso que por um instante trouxe de volta sua beleza. Respondi dando-
-lhe um abraço apertado; após o que ela disse: “Certo, eu virei. Estou com
muito medo, mas pode contar comigo”.
Depois que ela foi embora, fiquei pensando qual seria seu grande medo,
pois dissera isso com muita verdade. No dia seguinte, no final da tarde,
recebi um bilhete dela: ao chegar em casa, vira o anúncio do falecimento
do marido. Fazia sete anos que não o via e quis me informar daquele
jeito, antes que eu soubesse de outro. Mas, por estranho e triste que fosse
admiti-lo, isso fazia tão pouca diferença para a sua vida que ela mante-
ria o compromisso escrupulosamente. Fiquei feliz por ela – imaginei que
faria pelo menos a diferença de deixá-la com mais dinheiro; mas mesmo
nessa digressão, longe de esquecer sua afirmação de que estava com medo,
tive a impressão de vislumbrar uma razão. O medo dela, conforme a noi-
te avançou, tornou-se contagioso, e o contágio assumiu no meu peito a
forma de um pânico repentino. Não era ciúme – era apenas o pavor do
ciúme. Chamei-me de idiota por não ter ficado quieta até que fôssemos
marido e mulher. Depois disso, de algum modo me sentiria segura. Teria
sido questão de aguardar mais um mês – uma ninharia, sem dúvida, para
pessoas que esperavam há tanto tempo. Era muito óbvio que ela ficara
nervosa e, agora que estava desimpedida, seu nervosismo não seria menor.
36
The Friends of the Friends
sitting when, the week before, he put the question of our future to me in
the way that had brought me round.28 She looked at it in silence, just as she
had looked at the photograph, while I repeated for the twentieth time that
it was too preposterous one shouldn’t somehow succeed in introducing
to one’s dearest friend one’s second self. “Am I your dearest friend?” she
asked with a smile that for a moment brought back her beauty. I replied
by pressing her to my bosom; after which she said, “Well, I’ll come. I’m
extraordinarily afraid, but you may count on me.”
When she had left me I began to wonder what she was afraid of, for she
had spoken as if she fully meant it. The next day, late in the afternoon, I
had three lines from her: she found on getting home the announcement of
her husband’s death. She hadn’t seen him for seven years, but she wished
me to know it in this way before I should hear of it in another. It made
however in her life, strange and sad to say, so little difference that she would
scrupulously keep her appointment. I rejoiced for her – I supposed it would
make at least the difference of her having more money; but even in this
diversion, far from forgetting she had said she was afraid, I seemed to catch
sight of a reason for her being so. Her fear, as the evening went on, became
contagious, and the contagion took in my breast the form of a sudden panic.
It wasn’t jealousy – it just was the dread of jealousy. I called myself a fool
for not having been quiet till we were man and wife. After that I should
somehow feel secure. It was only a question of waiting another month – a
trifle surely for people who had waited so long. It had been plain enough
she was nervous, and now she was free her nervousness wouldn’t be less.
28
brought me round – to bring somebody round/around significa “procurar convencer alguém de modo a
induzi-lo a fazer algo” ou “a encarar algo de certo modo”. Em outra acepção pode significar “reanimar”,
“trazer de volta” (I tried to bring her round by letting her drink some water, tentei reanimá-la, fazendo-a beber
um pouco de água), ou “levar para casa”, “trazer junto” (remember to bring the laptop round, lembre-se de
trazer o laptop com você).
37
 Os Amigos dos Amigos
Portanto, do que poderia tratar-se a não ser de um forte pressentimento?
Ela fora até então vítima de interferências, mas era bem possível que a
partir de agora fosse a fonte delas. A vítima, no caso, seria simplesmente
eu. E o que seriam as interferências se não o dedo da providência apon-
tando um perigo? Quem corria perigo era, é claro, a coitadinha de mim.
O perigo fora evitado por uma série de incidentes de frequência insólita;
mas o reinado dos incidentes estava agora visivelmente no fim. Eu tinha
a íntima convicção de que os dois manteriam os encontros. Ficava cada
vez mais nítido para mim que se aproximavam, convergiam. Era como se
procurassem um objeto escondido na brincadeira de cabra-cega; tanto um
quanto o outro estavam ficando “quentes”. Havíamos falado sobre que-
brar o feitiço; bem, ele seria de fato quebrado – a não ser que assumisse
outra forma e exagerasse a frequência de seus encontros, como exagerara
seus desencontros. Eram pensamentos que eu não conseguia ter sentada,
quieta; fiquei acordada – à meia-noite, fui tomada por inquietudes. Por
fim, senti que havia apenas um modo de exorcizar o fantasma. Se o reino
dos incidentes terminara, eu deveria simplesmente assumir a sucessão.
Sentei e escrevi um bilhete apressado para que ele o lesse ao voltar e, como
os criados já haviam deitado, irrompi eu mesma, de cabeça descoberta,
pela rua vazia e com fortes ventos, para deixá-lo na primeira caixa de
correio. Era para lhe dizer que eu não conseguiria estar em casa à tarde
como imaginara e que ele deveria adiar sua visita até a hora do jantar. Isso
deixava implícito que ele me encontraria sozinha.
38
The Friends of the Friends
What was it therefore but a sharp foreboding? She had been hitherto29 the
victim of interference, but it was quite possible she would henceforth be
the source of it. The victim in that case would be my simple self. What had
the interference been but the finger of Providence pointing out a danger?
The danger was of course for poor me. It had been kept at bay by a series
of accidents unexampled in their frequency; but the reign of accident was
now visibly at an end. I had an intimate conviction that both parties would
keep the tryst.30 It was more and more impressed on me that they were
approaching, converging. They were like the seekers for the hidden object
in the game of blindfold;31 they had one and the other begun to “burn.”
We had talked about breaking the spell;32 well, it would be effectually
broken – unless indeed it should merely take another form and overdo their
encounters as it had overdone their escapes. This was something I couldn’t
sit still for thinking of; it kept me awake – at midnight I was full of unrest.
At last I felt there was only one way of laying the ghost.33 If the reign of
accident was over I must just take up the succession. I sat down and wrote a
hurried note which would meet him on his return and which as the servants
had gone to bed I sallied forth bareheaded into the empty gusty street to
drop into the nearest pillar-box. It was to tell him that I shouldn’t be able to
be at home in the afternoon as I had hoped and that he must postpone his
visit till dinner-time. This was an implication that he would find me alone.
29
hitherto – advérbio da linguagem formal para dizer up to now (até agora), up to this point (até este ponto).
Similarmente, o que vem em seguida, henceforth, é um modo formal de dizer from this time on (a partir de
agora, de agora em diante).
30
tryst – termo literário para indicar um encontro entre dois amantes em local secreto. To keep one’s tryst with
somebody significa “manter um encontro com alguém”.
31
the game of blindfold – na realidade, é o jogo da cabra-cega: blindfold é a venda colocada sobre os olhos
para impedir que a pessoa enxergue.
32
spell – como substantivo significa “encantamento”, “feitiço”, “magia”. É usado com frequência na expressão
to cast a spell on somebody, “enfeitiçar alguém”, ou to be under a spell, “estar enfeitiçado”. Neste caso, to
break the spell quer dizer “quebrar o encanto”. Quando a voz do narrador começa a ter a sensação de que o
encontro entre seu futuro marido e a amiga representa uma ameaça, aparecem no texto palavras que pertencem
à esfera da magia e do perigo iminente, como se uma força misteriosa ligasse os dois personagens (foreboding,
“pressentimento”; victim, “vítima”; danger, “perigo”; spell, “feitiço”).
33
laying the ghost – expressão idiomática que significa “parar de se assustar com coisas que dizem respeito
ao passado”. A ideia é que se consiga finalmente “colocar para dormir” (to lay) para sempre o fantasma do
passado. Ao contrário, to raise a ghost significa “evocar um fantasma”.
39
 Os Amigos dos Amigos
IV
Quando, conforme o combinado, ela apareceu às cinco horas, eu, é claro,
me senti falsa e desprezível. Meu ato fora uma loucura momentânea, mas
eu precisava pelo menos, como se diz, fazer jus a ele. Ela ficou uma hora;
ele, é claro, não apareceu; e a mim só restou persistir na minha perfídia. Eu
julgara melhor deixar que ela viesse – por mais singular que isso me pareça
agora, achei que diminuiria minha culpa. Mas quando a vi sentada ali, tão
visivelmente pálida e cansada, abalada por todas as sensações que a morte
do marido desatara, senti uma pontada profunda de compaixão e remorso.
Se não lhe contei na mesma hora o que havia feito foi por sentir muita
vergonha. Fingi espanto – fingi espanto até o fim; afirmei que se alguma
vez eu havia sentido firmeza fora naquele dia. Fico ruborizada ao contar
essa história – encaro-a como meu castigo. Dei todas as mostras de in-
dignação com a atitude dele; inventei suposições, atenuantes; admiti com
perplexidade, conforme os ponteiros do relógio avançavam, que a sorte
dos dois não havia mudado. Ela sorriu com essa minha visão da “sorte”
deles, mas parecia ansiosa – parecia diferente do usual: a única coisa que
40
The Friends of the Friends
IV
When accordingly34 at five she presented herself I naturally felt false
and base. My act had been a momentary madness, but I had at least, as
they say, to live up to it. She remained an hour; he of course never came;
and I could only persist in my perfidy. I had thought it best to let her
come; singular as this now seems to me I held it diminished my guilt.
Yet as she sat there so visibly white and weary, stricken with a sense of
everything her husband’s death had opened up, I felt a really piercing
pang of pity and remorse. If I didn’t tell her on the spot what I had done
it was because I was too ashamed. I feigned astonishment – I feigned
it to the end; I protested that if ever I had had confidence I had had
it that day. I blush as I tell my story – I take it as my penance. There
was nothing indignant I didn’t say about him; I invented suppositions,
attenuations; I admitted in stupefaction, as the hands of the clock
travelled, that their luck hadn’t turned. She smiled at this vision of
their “luck,”35 but she looked anxious – she looked unusual: the only
34
accordingly – aqui o advérbio accordingly é usado no sentido de “conforme o combinado”; uma acepção
que normalmente ele não tem, mas que parece facilmente intuída a partir do contexto. Accordingly geralmente
significa “de acordo”, “como tal” (she still considered him her boyfriend and treated him accordingly, ela ainda
o considerava seu namorado e o tratava de acordo), ou pode ser usado também no lugar de therefore (there is
a situation of general crisis. Accordingly, people accept even poorly-paid jobs, há uma situação de crise geral.
Por isso, as pessoas aceitam até trabalhos mal pagos).
35
luck – o termo luck, que significa “sorte” em português, não tem obrigatoriamente uma conotação positiva,
podendo também ter um significado mais neutro, no sentido genérico de “sorte” (má sorte, boa sorte). Em
geral, usa-se luck também para dizer “boa sorte”, subentendendo good luck. O autor brinca exatamente com
essa ambivalência, e por isso que no texto luck aparece entre aspas.
41
 Os Amigos dos Amigos
me fez prosseguir foi o fato de ela, por estranho que pareça, estar vestindo
luto – sem grandes volumes de crepe, apenas o simples e escrupuloso pre-
to. Tinha em sua boina três pequenas penas pretas. Agasalhava as mãos
num pequeno regalo de astracã. Isso, com a ajuda de um pouco de reflexão
profunda, fez-me sentir que eu tinha razão. Ela escrevera no bilhete que o
súbito evento não fizera diferença para ela, mas era evidente que, pelo me-
nos nisso, havia feito muita diferença. Já que ela tendia a adotar as formas
usuais, por que não observara a que manda não sair para tomar chá nos
primeiros dias? Desejava tanto assim ver alguém a ponto de não conseguir
esperar que o marido fosse enterrado. O fato de ter traído essa ansiedade
me fez insensível e cruel o suficiente para praticar minha odiosa fraude,
embora, ao mesmo tempo, conforme a hora se consumia, suspeitei que
havia nela algo mais profundo que o desapontamento, algo que ela não
conseguia ocultar tão bem. Falo de um estranho alívio encoberto, a suave
e fraca expiração que vem quando um perigo cessa. O que aconteceu en-
quanto ela passou aquela sua infrutífera hora comigo foi que por fim de-
sistiu dele. Abriu mão para sempre. E encarou isso fazendo a brincadeira
mais graciosa que já vi alguém fazer a respeito do que quer que seja; mas,
por tudo isso, foi um grande dia em sua vida. Discorreu com sua amena
graciosidade sobre todas as outras vezes estéreis, sobre o longo jogo de es-
conde-esconde, a estranheza sem precedentes de uma relação como aquela.
42
The Friends of the Friends
thing that kept me up was the fact that, oddly enough, she wore
mourning36 – no great depths of crape, but simple and scrupulous black.
She had in her bonnet three small black feathers. She carried a little muff
of astrachan.37 This put me, by the aid of some acute reflexion, a little in
the right. She had written to me that the sudden event made no difference
for her, but apparently it made as much difference as that. If she was
inclined to the usual forms why didn’t she observe that of not going the
first day or two out to tea?38 There was some one she wanted so much to
see that she couldn’t wait till her husband was buried. Such a betrayal of
eagerness made me hard and cruel enough to practise my odious deceit,
though at the same time, as the hour waxed and waned, I suspected
in her something deeper still than disappointment and somewhat less
successfully concealed. I mean a strange underlying relief, the soft low
emission of the breath that comes when a danger is past. What happened
as she spent her barren hour with me was that at last she gave him up.
She let him go for ever. She made the most graceful joke of it that I’ve
ever seen made of anything; but it was for all that a great date in her
life. She spoke with her mild gaiety of all the other vain times, the long
game of hide-and-seek,39 the unprecedented queerness of such a relation.
36
she wore mourning – to wear mourning, “vestir luto”, tem paralelo com a construção usada em português;
o mesmo vale para to be in mourning, “estar de luto”. Mourning (luto) pronuncia-se exatamente como morning
(manhã). São muitos os casos de homofonia na língua inglesa, e eles favorecem os jogos de palavras, como
na frase: how should you greet some women in a cemetery? Good mourning widows!, “como você deveria
cumprimentar um grupo de mulheres em um cemitério? Bom dia, viúvas!” (já que good mourning, literalmente
“bom luto”, soa exatamente como “bom dia”).
37
astrachan – lã extraída do cordeiro, com uma trama mais fechada que outras categorias e um brilho inerente
ao material.
38
going... out to tea? – esta expressão significa “ir fazer uma visita” a alguém; o que, na Inglaterra daquele pe-
ríodo, correspondia a reunir-se para o chá. Para as classes médias e altas, o tea é um ritual, um momento de
convívio social, e é tomado no meio da tarde, acompanhado (seguindo uma ordem rigorosa, do salgado para
o doce) por algum pequeno sanduíche (o clássico é de pão de forma com manteiga e fatias finas de pepino),
por scones (pãezinhos semidoces, sobre os quais pode-se passar manteiga ou chantili e geleia) e, por fim,
uma fatia de torta doce. Obviamente, depois de um tea time assim rico, janta-se mais tarde. Para a working
class, ao contrário, o tea é o nome que se dá ao jantar (o dinner das classes médias e altas), uma refeição
consumida por volta das 17h30-18h e, às vezes, seguida por outro lanche rápido (supper) por volta das 21h.
39
game of hide-and-seek – é o jogo de esconde-esconde, em que uma pessoa se esconde (hide) e outras
vão procurá-la (seek).
43
 Os Amigos dos Amigos
Porque era, ou havia sido, uma relação, não havia? Esta era apenas a parte
absurda. Quando levantou para ir embora, disse-lhe que era mais do que
nunca uma relação, mas que eu não tinha mais cara, depois do ocorrido,
de propor-lhe outra oportunidade. Era óbvio que a única oportunidade
válida seria a cerimônia do meu casamento. Com certeza ela iria ao meu
casamento, não? Seria também de esperar que ele fosse.
– Se eu for, ele não irá! – lembro da nota aguda e do pequeno estalo
de sua risada. Admiti que havia um pouco de sentido nisso. A questão,
portanto, era garantir primeiro nosso casamento.
– Isso não vai adiantar para nós dois. Nada vai adiantar! – disse ela ao
me beijar na despedida. – Acho que nunca, nunca vou vê-lo!
Foi com essas palavras que me deixou. Fui capaz de aguentar seu
desapontamento, como o chamei; mas quando duas horas mais tar-
de recebi-o para jantar, descobri que não era capaz de suportar o dele.
Eu não levara em conta a maneira com que minha manobra pode-
ria afetá-lo; mas o resultado foi a primeira expressão de censura que
vi sair de sua boca. Digo “censura”, mas a palavra não é forte o su-
ficiente para expressar os termos com que me transmitiu sua surpresa
por eu não ter, naquelas extraordinárias circunstâncias, achado algum
meio de não privá-lo de tal ocasião. Disse que eu poderia ter arranja-
do as coisas para não ser obrigada a sair ou poderia deixar o encontro
44
The Friends of the Friends
For it was, or had been, a relation, wasn’t it, hadn’t it?40 That was just the
absurd part of it. When she got up to go I said to her that it was more a
relation than ever, but that I hadn’t the face after what had occurred to
propose to her for the present another opportunity. It was plain that the
only valid opportunity would be my accomplished marriage. Of course
she would be at my wedding?41 It was even to be hoped that he would.
“If I am, he won’t be!” – I remember the high quaver and the little break
of her laugh. I admitted there might be something in that. The thing was
therefore to get us safely married first. “That won’t help us. Nothing will
help us!” she said as she kissed me farewell. “I shall never, never see him!”
It was with those words she left me.
I could bear her disappointment as I’ve called it; but when a couple
of hours later I received him at dinner I discovered I couldn’t bear his.
The way my manoeuvre might have affected him hadn’t been particularly
present to me; but the result of it was the first word of reproach that had
ever yet dropped from him. I say “reproach” because that expression is
scarcely too strong for the terms in which he conveyed to me his surprise
that under the extraordinary circumstances I shouldn’t have found
some means not to deprive him of such an occasion. I might really have
managed either not to be obliged to go out or to let their meeting take
40
wasn’t it, hadn’t it? – esta forma de pergunta é conhecida como question tag, que representa perguntas
retóricas nas quais quem pergunta apenas quer a confirmação de suas suspeitas e não uma resposta de
verdade. Nesta passagem, há duas question tags, uma seguida da outra, porque na frase precedente há
dois verbos (it was, or had been, a relation): a primeira, portanto, é uma pergunta retórica, referente ao verbo
was (wasn’t it), a segunda se refere a had been (hadn’t it?). Na tradução, optou-se por uma negativa apenas.
41
marriage... wedding – os dois termos podem ser traduzidos por “casamento” em português, mas enquanto
marriage costuma indicar a relação que liga as duas pessoas casadas, wedding é o “casamento” no sentido
da “cerimônia nupcial”. Portanto, dizemos their marriage has been difficult since the beginning, “o casamento
deles (isto é, a sua relação conjugal) tem sido difícil desde o início”, mas the wedding will be held at the Grand
Hotel, “o casamento (ou seja, a cerimônia nupcial) será celebrado no Grand Hotel”. Em alguns casos, porém,
também marriage pode ser usado no sentido de “cerimônia” (the marriage took place at the local church, o
casamento foi realizado na igreja local).
45
 Os Amigos dos Amigos
ocorrer assim mesmo. Os dois teriam ficado muito bem na minha sala de
estar sem mim. A essa altura eu desmontei – confessei minha iniquidade
e as tristes razões dela. Não adiara o encontro e não havia saído; ela viera
e depois de esperar por ele uma hora, partira achando que ele se ausentara
por culpa dele.
– Ela deve me achar um imbecil! – exclamou ele. – Por acaso ela me
chamou de… – e lembro o quase imperceptível suspiro de sua pausa – da-
quilo que tinha o direito de me chamar?
– Garanto a você que ela não disse nada que mostrasse a menor emo-
ção. Ela olhou sua foto, até virou-a para ver o verso, onde está escrito seu
endereço. Mas isso não lhe provocou nenhuma reação. Acho que ela não
se importa tanto com tudo isso.
– Então por que você tem medo dela?
– Não é dela que tenho medo. É de você.
– Você estava tão certa assim de que eu me apaixonaria por ela? Nunca
mencionou essa possibilidade antes – continuou, enquanto eu permanecia
quieta. – Você dizia que ela era uma pessoa admirável, mas não era sob
essa luz que fazia questão de apresentá-la a mim.
– Quer dizer que se fosse sob outra luz a essa altura você já teria pro-
curado conhecê-la? Eu não tinha medo antes – acrescentei. – Não tinha
motivo para isso.
46
The Friends of the Friends
place all the same. They would probably have got on, in my drawing-
room, well enough without me. At this I quite broke down42 – I confessed
my iniquity and the miserable reason of it. I hadn’t put her off and I hadn’t
gone out; she had been there and, after waiting for him an hour, had
departed in the belief that he had been absent by his own fault.
“She must think me a precious brute!” he exclaimed. “Did she say of
me” – and I remember the just perceptible catch of breath in his pause –
“what she had a right to say?”
“I assure you she said nothing that showed the least feeling. She looked
at your photograph, she even turned round the back of it, on which your
address happens to be inscribed. Yet it provoked her to no demonstration.
She doesn’t care so much as all that.”
“Then why were you afraid of her?”
“It wasn’t of her I was afraid. It was of you.”
“Did you think I’d be so sure to fall in love with her? You never alluded
to such a possibility before,” he went on as I remained silent. “Admirable
person as you pronounced her, that wasn’t the light in which you showed
her to me.”
“Do you mean that if it had been you’d have managed by this time to
catch a glimpse of her? I didn’t fear things then,” I added. “I hadn’t the
same reason.”
42
broke down – to break down significa “quebrar”, “falhar” (the car broke down just in the middle of the
desert, o carro quebrou justamente no meio do deserto). No sentido figurado, porém, como aqui, significa
“desabar”, “desmontar”, isto é, não controlar mais uma situação. Também o substantivo breakdown pre-
serva o sentido próprio e o figurado do verbo do qual deriva: um breakdown lorry é um “carro-guincho” (isto
é, um veículo que reboca o carro quebrado), enquanto um nervous breakdown é um “colapso nervoso”.
47
 Os Amigos dos Amigos
Ele me beijou quando eu disse isso, e então lembrei que ela fizera o
mesmo uma ou duas horas antes, e senti por um instante como se ele es-
tivesse tomando de meus lábios a mesma pressão que ela deixara. Apesar
dos beijos, o incidente produziu certa frieza, e eu sofria muito ao saber
que ele havia me visto como autora de uma fraude. Ele só conseguira ver
isso graças à minha sincera confissão, mas me sentia muito infeliz, como
se tivesse uma mancha para apagar. Não conseguia esquecer como me
olhara quando lhe falei da aparente indiferença dela pelo fato de ele não
ter aparecido. Pela primeira vez desde que o eu conhecia, pareceu duvidar
da minha palavra. Antes de nos despedirmos garanti que esclareceria tudo
a ela – iria logo cedo a Richmond para lhe dizer que ele não tivera culpa.
Então me beijou de novo. Eu disse que iria expiar meu pecado; que iria
me humilhar, me arrastar no pó; iria confessar e pedir para ser perdoada.
Ele me beijou mais uma vez.
48
The Friends of the Friends
He kissed me at this, and when I remembered that she had done so
an hour or two before I felt for an instant as if he were taking from my
lips the very pressure of hers. In spite of kisses the incident had shed a
certain chill, and I suffered horribly from the sense that he had seen me
guilty of a fraud. He had seen it only through my frank avowal, but I was
as unhappy as if I had a stain to efface.43 I couldn’t get over the manner
of his looking at me when I spoke of her apparent indifference to his
not having come. For the first time since I had known him he seemed to
have expressed a doubt of my word. Before we parted I told him that I’d
undeceive her – start the first thing in the morning for Richmond and
there let her know that he had been blameless. At this he kissed me again.
I’d expiate my sin, I said; I’d humble myself in the dust; I’d confess and ask
to be forgiven. At this he kissed me once more.
43
efface – também neste caso trata-se de um verbo bastante formal. Com frequência, para dizer “apagar
uma mancha” usa-se os verbos to erase (apagar), to remove (remover) ou to wash out (neste caso, quando
se trata de eliminar uma mancha lavando um tecido, por exemplo).
49
 Os Amigos dos Amigos
V V
No trem, no dia seguinte, bateu-me de repente a ideia de que havia sido
um bom negócio para ele consentir que eu viesse; mas minha decisão era
firme o suficiente para me fazer seguir adiante. Subi a longa montanha até
onde a vista começa e bati à porta. Fiquei um pouco confusa ao ver as per-
sianas ainda baixadas, e achei que talvez, na ânsia do meu remorso, eu ti-
vesse chegado cedo demais, sem dar tempo ainda de as pessoas acordarem.
– A patroa, em casa? Ela foi embora para sempre.
Fiquei absolutamente perplexa com o anúncio da velha criada.
– Ela foi embora?
– Ela morreu, senhora, por favor. – E enquanto eu ficava com a respi-
ração presa ao ouvir aquela palavra horrível: – Ela morreu ontem à noite.
O grito alto que deixei escapar soou até para meus ouvidos como
uma rude violação da hora. Senti naquele instante como se a tives-
se matado; temi desmaiar e vi obscuramente que a mulher estendia os
braços para mim. Não lembro o que aconteceu, nada a não ser da es-
túpida prima da minha amiga, numa sala escura, depois de um tempo
que julgo muito curto, falando comigo entre soluços, num tom vela-
damente acusatório. Não sei dizer quanto tempo levei para entender,
para acreditar e depois para me desvencilhar com imenso esforço da-
quele sentimento de culpa que, de modo supersticioso, insano, havia
sido de início quase tudo o que ocupara minha consciência. O médico,
50
The Friends of the Friends
In the train the next day this struck me as a good deal for him to
have consented to; but my purpose was firm enough to carry me on. I
mounted the long hill to where the view begins, and then I knocked at
her door. I was a trifle44 mystified by the fact that her blinds were still
drawn, reflecting that if in the stress of my compunction I had come early
I had certainly yet allowed people time to get up.
“At home, mum?45 She has left home for ever.”
I was extraordinarily startled by this announcement of the elderly
parlour-maid.
“She has gone away?”
“She’s dead, mum, please.” Then as I gasped at the horrible word: “She
died last night.”
The loud cry that escaped me sounded even in my own ears like some
harsh violation of the hour. I felt for the moment as if I had killed her; I
turned faint and saw through a vagueness that woman hold out her arms
to me. Of what next happened I’ve no recollection, nor of anything but
my friend’s poor stupid cousin, in a darkened room, after an interval that
I suppose very brief, sobbing at me in a smothered accusatory way. I can’t
say how long it took me to understand, to believe and then to press back
with an immense effort that pang of responsibility which, superstitiously,
insanely, had been at first almost all I was conscious of. The doctor,
44
a trifle – geralmente trifle é usado como substantivo no sentido de “bobagem”, “asneira” ou também
para indicar algo que seja pouco importante. Na locução a trifle, ao contrário, indica o mais comum a bit
(um pouco) e é típico da linguagem da aristocracia.
45
mum – neste caso mum não é o substantivo “mãe”, mas a contração de madam (senhora).
51
 Os Amigos dos Amigos
após a morte, fora muito sábio e claro: ele sabia há tempos de uma fragi-
lidade do seu coração, adquirida provavelmente pelas agitações e terrores
apresentados a ela por seu casamento. Ela vivera no passado cenas cruéis
com o marido, chegando a temer pela própria vida. Depois disso, toda
emoção, tudo o que fosse da natureza da ansiedade e do suspense pre-
cisou ser rigorosamente evitado, como mostrava sua decisão de cultivar
uma vida tranquila; mas quem pode garantir que alguém, ainda mais
uma “verdadeira dama”, conseguirá proteger-se de todos os pequenos
dissabores? Ela tivera um, há pouco, com a notícia da morte do marido
– já que há choques de todos os tipos, não só os do pesar e da surpre-
sa. Nunca imaginara um desenlace tão próximo: pareceu incomum, pois
achava que ele viveria tanto quanto ela. Depois, ao entardecer, na cidade,
tivera visivelmente algum contratempo: algo devia ter acontecido ali que
seria imperativo esclarecer. Ela voltara muito tarde – já eram mais de
onze e, ao deparar na sala com a prima, naquela hora muito ansiosa, disse
estar exausta e que descansaria um pouco antes de subir a escada. As
duas haviam passado para a sala de jantar, sua acompanhante sugerindo
um copo de vinho e se encaminhando para o bufê para servi-lo. Isso
levou um instante e, quando minha informante virou-se, nossa pobre
amiga não teve tempo nem de sentar. De repente, com um curto gemido
quase inaudível, caiu no sofá. Estava morta. Que “pequeno dissabor” ig-
norado lhe teria aplicado aquele golpe? Que choque, em nome dos céus,
52
The Friends of the Friends
after the fact, had been superlatively wise and clear: he was satisfied of
a long-latent weakness of the heart, determined probably years before
by the agitations and terrors to which her marriage had introduced her.
She had had in those days cruel scenes with her husband, she had been
in fear of her life. All emotion, everything in the nature of anxiety and
suspense46 had been after that to be strongly deprecated, as in her marked
cultivation of a quiet life she was evidently well aware; but who could say
that any one, especially a “real lady,” might be successfully protected from
everylittle rub? She had had one a day or two before in the news of her
husband’s death – since there were shocks of all kinds, not only those of
grief and surprise. For that matter she had never dreamed of so near a
release: it had looked uncommonly as if he would live as long as herself.
Then in the evening, in town, she had manifestly had some misadventure:
something must have happened there that it would be imperative to clear
up. She had come back very late – it was past eleven o’clock, and on being
met in the hall by her cousin47 who was extremely anxious, had allowed
she was tired and must rest a moment before mounting the stairs. They
had passed together into the dining-room, her companion proposing a
glass of wine and bustling to the sideboard to pour it out. This took but
a moment, and when my informant turned round our poor friend had
not had time to seat herself. Suddenly, with a small moan that was barely
audible, she dropped upon the sofa. She was dead. What unknown “little
rub” had dealt her the blow? What concussion, in the name of wonder,
46
suspense – vale a pena notar que esta palavra, que entrou no uso também do português, é escrita com
s (e não como suspence, um erro frequente) e, quando pronunciada em inglês, o acento cai na segunda
sílaba, não na primeira.
47
on being met in the hall by her cousin – muitas preposições podem às vezes funcionar também como
conjunções: por exemplo, na frase put your book on the table, “coloque o seu livro na mesa”, on é uma pre-
posição, mas na frase on my opening the door, I found she was gone, “quando abri a porta, descobri que
ela tinha ido embora”, on é uma conjunção, isto é, um elemento que estabelece uma relação entre duas
frases (a frase subordinada introduzida por on e a frase principal), aqui com valor temporal. Na realidade,
este uso de on é pouco comum e decididamente literário: no inglês corrente seria substituído por when,
as ou after, dependendo do sentido que se quisesse dar (when I opened the door, as I opened the door,
after I opened the door, respectivamente quando abri a porta, ao abrir a porta, depois de abrir a porta).
53
 Os Amigos dos Amigos
a teria aguardado na cidade? Mencionei a única razão imaginável de per-
turbação – ela não ter encontrado em minha casa, à qual para tanto fora
convidada às cinco horas, o cavalheiro com o qual eu estava para me casar,
que sofrera um impedimento imprevisto e que ela ainda não conhecia.
Isso, é claro, fazia pouca diferença; mas algo mais poderia facilmente ter
ocorrido: nada nas ruas de Londres era mais possível do que um acidente,
especialmente com aquelas charretes desesperadas. O que havia feito ela,
onde fora ao sair da minha casa? Juraria que fora direto para a sua casa.
Lembramos então que em seus passeios na cidade ela, às vezes, por co-
modidade, para um lanche, passava uma hora ou duas no “Gentlewoman”,
o tranquilo e pequeno clube de mulheres, e prometi que minha primeira
providência seria ir lá indagar. Então entramos na escura e triste câmara
onde ela jazia morta e onde, ao pedir em seguida para ficar a sós com ela,
permaneci por meia hora. A morte a deixara, a mantivera bonita; mas eu
sentia, acima de tudo, ajoelhada junto à sua cama, que a morte a silenciara.
Havia passado a chave em algo que eu queria saber.
Quando voltei de Richmond, e depois de cumprir outra obrigação, di-
rigi-me à residência dele. Era a primeira vez, mas sempre tivera vontade
de conhecê-lo. Na escada, que era totalmente pública, pois a casa contava
com vinte conjuntos de ambientes, encontrei seu criado, que voltou comi-
54
The Friends of the Friends
had awaited her in town? I mentioned immediately the one thinkable
ground of disturbance – her having failed to meet at my house, to which
by invitation for the purpose she had come at five o’clock, the gentleman
I was to be married to, who had been accidentally kept away and with
whom she had no acquaintance whatever. This obviously counted for
little; but something else might easily have occurred: nothing in the
London streets was more possible than an accident, especially an accident
in those desperate cabs. What had she done, where had she gone on
leaving my house? I had taken for granted that she had gone straight
home. We both presently remembered that in her excursions to town she
sometimes, for convenience, for refreshment, spent an hour or two at the
“Gentlewoman,” the quiet little ladies’ club, and I promised that it should
be my first care to make at that establishment an earnest appeal. Then we
entered the dim and dreadful chamber where she lay locked up in death
and where, asking after a little to be left alone with her, I remained for
half an hour. Death had made her, had kept her beautiful; but I felt above
all, as I kneeled at her bed, that it had made her, had kept her silent. It had
turned the key on something I was concerned to know.
On my return from Richmond and after another duty had been
performed I drove to his chambers.48 It was the first time, but I had often
wanted to see them. On the staircase, which, as the house contained
twenty sets of rooms, was unrestrictedly public, I met his servant, who
48
his chambers – chamber significa “aposento” em um sentido geralmente mais técnico em comparação
com room: you’ll stay in your room until you’ve finished your homework!, “você vai ficar no seu quarto
até terminar sua lição de casa!”, mas combustion chamber (câmara de combustão) ou gas chambers
(câmara de gás). No texto, trata-se de um uso tipicamente britânico: chambers aqui é “dependências” ou
ambientes onde uma pessoa mora (e, por extensão, sua residência). Também pode referir-se a escritório
ou instalações de um profissional.
55
 Os Amigos dos Amigos
go e me fez entrar. Com o ruído da minha entrada, ele apareceu à porta de
um aposento contíguo e, na hora em que ficamos a sós, dei-lhe a notícia:
– Ela morreu!
– Morreu? – Ele ficou tremendamente chocado, e notei que não preci-
sou perguntar a quem eu me referia, apesar de minha afirmação sucinta.
– Morreu ontem à noite, logo depois que saiu da minha casa.
Ele me olhou fixo, com a mais estranha das expressões, seus olhos vas-
culhando os meus como quem suspeita de uma armadilha.
– Ontem à noite, logo depois de sair da sua casa? – ele repetiu estupefa-
to. Então, e foi minha vez de ficar estupefata ao ouvir, ele disse:
– Impossível! Eu a vi.
– Você a “viu”?
– Nesse lugar, onde você está agora.
Isso trouxe à minha mente após um instante, como que para me ajudar
a entender, o grande prodígio da experiência de sua juventude.
– Sei, na hora em que ela morreu. Entendo: igual àquela visão tão boni-
ta que você teve da sua mãe.
– Oh, não como vi minha mãe, não foi assim, não foi assim! – Estava
profundamente tocado pela notícia – muito mais comovido, era óbvio, do
que teria ficado no dia anterior: fiquei com a forte impressão, como disse-
ra a mim mesma então, de que havia mesmo uma relação entre os dois, e
que ele já havia se encontrado com ela. Tal ideia, ao reafirmar o extraordi-
nário privilégio seu, o apresentaria de repente como sendo dolorosamente
anormal, se ele não insistisse com veemência na diferença.
– Eu a vi viva. Eu a vi e falei com ela. Eu a vi do jeito que estou vendo
você agora.
É notável que, por um momento, embora apenas por um momento, eu
tenha encontrado alívio no mais pessoal, digamos, mas também no mais
56
The Friends of the Friends
went back with me and ushered me in.49 At the sound of my entrance he
appeared in the doorway of a further room, and the instant we were alone
I produced my news: “She’s dead!”
“Dead?” He was tremendously struck, and I noticed he had no need to
ask whom, in this abruptness, I meant.
“She died last evening – just after leaving me.”
He stared with the strangest expression, his eyes searching mine as for
a trap.
“Last evening – after leaving you?” He repeated my words in
stupefaction. Then he brought out, so that it was in stupefaction I heard,
“Impossible! I saw her.”
“You ’saw’ her?”
“On that spot – where you stand.”
This called back to me after an instant, as if to help me to take it in,
the great wonder of the warning of his youth. “In the hour of death – I
understand: as you so beautifully saw your mother.”
“Ah not as I saw my mother – not that way, not that way!” He was
deeply moved by my news – far more moved, it was plain, than he would
have been the day before: it gave me a vivid sense that, as I had then said
to myself, there was indeed a relation between them and that he had
actually been face to face with her. Such an idea, by its reassertion of his
extraordinary privilege, would have suddenly presented him as painfully
abnormal hadn’t he vehemently insisted on the difference.
“I saw her living. I saw her to speak to her. I saw her as I see you now.”
It’s remarkable that for a moment, though only for a moment,
I found relief in the more personal, as it were, but also the more
49
ushered me in – to usher in significa “fazer entrar” alguém, com frequência abrindo-lhe caminho. Também
é referido a quem recebe alguém e o faz entrar em sua casa. Na realidade, usher, como substantivo, significa
“porteiro”, e usherette é seu correspondente feminino.
57
 Os Amigos dos Amigos
natural daqueles dois fatos estranhos. Em seguida, ao aceitar essa imagem
dela indo procurá-lo ao sair da minha casa e ver o quanto isso explicava
de que modo ela teria disposto de seu tempo, perguntei, com uma ponta
de malícia, da qual fui ciente:
– E que raios ela veio fazer aqui?
Ele agora tivera um minuto para pensar – para se recompor e avaliar os
efeitos, de modo que, embora falasse ainda com olhos excitados, mostrou
um rubor consciente e fez uma inconsequente tentativa de atenuar com
um sorriso a gravidade das minhas palavras.
– Ela veio apenas me ver. Veio, depois do que aconteceu na sua casa,
para que apesar disso pudéssemos finalmente nos encontrar. Pareceu-me
um gesto louvável dela, e foi assim que o encarei.
Olhei em volta do cômodo onde ela estivera – onde ela estivera e eu
nunca havia estado até então.
– E a maneira com que você encarou esse gesto foi também a maneira
com que ela o expressou?
– Ela só expressou esse gesto vindo aqui e me deixando olhar para ela.
E foi suficiente! – ele falou, com uma risada extraordinária.
Minha perplexidade só aumentava.
– Você está dizendo que ela não falou com você?
– Não disse nada. Ficou só olhando para mim enquanto eu olhava para ela.
– E você também não disse nada?
Ele me dirigiu de novo seu sorriso doloroso.
– Pensei em você. A situação era muito delicada. Usei muito tato. Mas
ela viu que eu fiquei feliz.
58
The Friends of the Friends
natural, of the two odd facts. The next, as I embraced this image of her
having come to him on leaving me and of just what it accounted for in
the disposal of her time, I demanded with a shade of harshness of which
I was aware:
“What on earth50 did she come for?”
He had now had a minute to think – to recover himself and judge
of effects, so that if it was still with excited eyes he spoke he showed a
conscious redness and made an inconsequent attempt to smile away the
gravity of my words.
“She came just to see me. She came – after what had passed at your
house – so that we should, nevertheless at last meet. The impulse seemed
to me exquisite, and that was the way I took it.”
I looked round the room where she had been – where she had been and
I never had till now.
“And was the way you took it the way she expressed it?”
“She only expressed it by being here and by letting me look at her. That
was enough!” he cried with an extraordinary laugh.
I wondered more and more. “You mean she didn’t speak to you?”
“She said nothing. She only looked at me as I looked at her.”
“And you didn’t speak either?”
He gave me again his painful smile. “I thought of you. The situation was
every way delicate. I used the finest tact. But she saw she had pleased me.”
50
What on earth... – literalmente “o quê sobre a terra...”, é uma expressão usada para fazer uma pergunta
quando se está muito indignado ou perplexo. Em português corresponde a “que raios”, “que diabos”. Uma
variante menos elegante é what the hell (what the hell are you doing?, que diabos você está fazendo?).
59
 Os Amigos dos Amigos
Ele até repetiu sua risada dissonante.
– Está evidente que você ficou “feliz”!
Então pensei um momento.
– Por quanto tempo ela esteve aqui?
– Como posso saber? Pareceram uns vinte minutos, mas provavelmente
tenha sido bem menos.
– Vinte minutos de silêncio!
Comecei a ter uma visão definida e agora me aferrava a ela.
– Você sabe que está dizendo uma coisa simplesmente monstruosa?
Ele estava de costas para a lareira; e foi desse modo, com um olhar de
súplica, que se aproximou de mim.
– Eu lhe peço, querida, não me leve a mal.
Não o levei a mal, e indiquei isso; mas, por alguma razão, quando ele,
muito desajeitadamente, abriu os braços, não consegui deixar que me
trouxesse para um abraço. E então recaiu entre nós por um tempo apre-
ciável o desconforto de um grande silêncio.
60
The Friends of the Friends
He even repeated his dissonant laugh.
“She evidently ’pleased’ you!” Then I thought a moment. “How long did
she stay?”
“How can I say? It seemed twenty minutes, but it was probably a good
deal less.”
“Twenty minutes of silence!” I began to have my definite view and
now in fact quite to clutch at it. “Do you know you’re telling me a thing
positively51 monstrous?”
He had been standing with his back to the fire; at this, with a pleading
look, he came to me. “I beseech you, dearest, to take it kindly.”
I could take it kindly, and I signified as much; but I couldn’t somehow,
as he rather awkwardly opened his arms, let him draw me to him. So there
fell between us for an appreciable time the discomfort of a great silence.52
51
positively – na maioria das vezes, este advérbio não corresponde ao português “positivamente”, mas é uma
ênfase usada com o mesmo significado que absolutely (com certeza, absolutamente): this is positively true,
“isto é absolutamente verdadeiro”. A palavra positive também pode conotar a certeza de quem fala, como em
I am positive she was here, eu tenho certeza que ela estava aqui.
52
discomfort of a great silence – a cena termina com um silêncio que demonstra o desconforto entre os dois
futuros cônjuges, em contraposição ao silêncio muito natural entre ele e a amiga dos dois, que finalmente
acabaram vendo-se e observando-se longamente.
61
 Os Amigos dos Amigos
VI
Ele rompeu o silêncio dizendo:
– Não resta nenhuma dúvida quanto à morte dela?
– Infelizmente não. Há pouco eu estava de joelhos junto à cama onde
a deitaram.
Ficou com os olhos fixos no chão; então ergueu-os para me olhar.
– Qual o aspecto dela?
– Ela parece... em paz.
Ele virou-se de novo enquanto eu o observava; mas após um momento
retomou:
– A que horas então...?
– Deve ter sido perto da meia-noite. Faleceu logo depois de chegar em
casa – de um problema do coração que ela sabia ter, e seu médico também,
mas do qual, por resignação e coragem, nunca me falou.
Ele ouviu com atenção e por um minuto não foi capaz de dizer
nada. Por fim, falou, num tom de confidência quase juvenil e com
uma simplicidade realmente sublime, que ainda vibra em meus
ouvidos enquanto escrevo: “Era maravilhosa, não?” Mesmo naquela
hora fui capaz de ser justa o bastante para responder que sempre
lhe dissera isso; mas ele, no instante seguinte, como se depois
62
The Friends of the Friends
VI
He broke it by presently saying: “There’s absolutely no doubt of her
death?”
“Unfortunately no. I’ve just risen from my knees by the bed where
they’ve laid her out.”
He fixed his eyes hard on the floor; then he raised them to mine. “How
does she look?”
“She looks – at peace.”
He turned away again while I watched him; but after a moment he
began: “At what hour then — ?”
“It must have been near midnight. She dropped as she reached her
house – from an affection of the heart which she knew herself and her
physician knew her to have, but of which, patiently, bravely, she had never
spoken to me.”
He listened intently and for a minute was unable to speak. At last
he broke out with an accent of which the almost boyish53 confidence,
the really sublime simplicity, rings in my ears as I write: “Wasn’t she
wonderful !” Even at the time I was able to do it justice enough to
answer that I had always told him so; but the next minute, as if after
53
boyish – adjetivo formado a partir de boy (rapaz) com o acréscimo do sufixo -ish; geralmente esses adjeti-
vos exprimem o conceito de “típico de”, “próprio de”. Boyish significa, portanto, “típico de rapaz”, “típico de
adolescente”; childish, “típico de criança”, “infantil”, e womanish, “típico de feminino” ou ainda “efeminado”.
O mesmo sufixo é usado também com nomes que indicam cores, como reddish (avermelhado), brownish
(amarronzado) ou em adjetivos relativos a povos (British, “britânico”; English, “inglês”; Swedish, “sueco”).
63
 Os Amigos dos Amigos
de falar tivesse tido um vislumbre de como poderia ter feito me sentir,
emendou rápido:
– Você pode facilmente achar que, se ela só chegou em casa por volta
da meia noite...
Interrompi-o na mesma hora.
– Você teve tempo suficiente para vê-la? Como é possível – perguntei –,
se você só saiu da minha casa bem tarde? Não lembro da hora exata, eu
estava preocupada. Mas você sabe que, mesmo tendo dito que tinha muito
o que fazer, continuou um tempo sentado depois do jantar. Ela, por sua
vez, passou o final de tarde no “Gentlewoman”, acabo de voltar de lá, fui
conferir. Tomou chá; ficou um longo tempo.
– O que ela ficou fazendo esse longo tempo?
Notei que ele estava ansioso para desafiar ponto por ponto meu relato
do assunto; e quanto mais ele demonstrava isso, mais eu me empenhava
em enfatizar essa versão, preferindo com visível perversidade uma explica-
ção que aprofundava a maravilha e o mistério, mas que, dos dois prodígios
à minha escolha, era aquela que os meus ciúmes reavivados achavam mais
fácil aceitar. Ele ficou ali, defendendo com uma candura que agora me
parece bonita o privilégio de, apesar da suprema derrota, ter conhecido a
mulher viva; enquanto eu, com uma intensidade que me impressiona até
hoje, embora ainda arda de certo modo nas próprias cinzas, só podia res-
ponder que, por meio de um estranho dom que ela compartilhava com a
mãe dele e que do lado dela também era provavelmente hereditário, o mi-
lagre ocorrido em sua juventude se repetira com ele, do mesmo jeito que
com ela. Ela fora procurá-lo – sim, num impulso tão encantador quanto
64
The Friends of the Friends
speaking he had caught a glimpse of what he might have made me feel,
he went on quickly: “You can easily understand that if she didn’t get home
till midnight —”
I instantly took him up. “There was plenty of time for you to have seen
her? How so,” I asked, “when you didn’t leave my house until late? I don’t
remember the very moment – I was preoccupied. But you know that
though you said you had lots to do you sat for some time after dinner. She,
on her side, was all the evening at the ‛Gentlewoman,’ I’ve just come from
there – I’ve ascertained. She had tea there; she remained a long long time.”
“What was she doing all that long long time?”
I saw him eager to challenge at every step my account of the matter;
and the more he showed this the more I was moved to emphasise that
version, to prefer with apparently perversity an explanation which only
deepened the marvel and the mystery, but which, of the two prodigies54 it
had to choose from, my reviving jealousy found easiest to accept. He stood
there pleading with a candour that now seems to me beautiful for the
privilege of having in spite of supreme defeat known the living woman;
while I, with a passion I wonder at to-day, though it still smoulders
in a manner in its ashes, could only reply that, through a strange gift
shared by her with his mother and on her own side likewise hereditary,
the miracle of his youth had been renewed for him, the miracle of hers
for her. She had been to him – yes, and by an impulse as charming as
54
marvel... mystery... prodigies – o mistério que envolve a morte repentina da mulher e também sua visita
inesperada ao homem na noite anterior a sua morte é reforçado por meio de uma escolha lexical particular:
marvel é “maravilhoso”, no sentido literário do termo, isto é, algo fantástico e quase sobrenatural. Também
os termos mystery (mistério) e prodigy (prodígio) estão ligados à área semântica do “sobrenatural”. Passion
(paixão) e miracle (milagre), algumas linhas adiante, ajudam a levar o mistério a um nível ainda mais intenso.
65
 Os Amigos dos Amigos
ele poderia desejar; mas, oh, ela não fora em seu corpo! Era uma simples
questão de evidência. Eu tinha em mãos, era a minha tese, uma declaração
precisa do que ela havia feito – a maior parte do tempo – naquele pequeno
clube. O lugar estava quase vazio, e os empregados notaram a presença
dela. Ela sentara imóvel numa poltrona funda, junto à lareira da sala de
estar; reclinara a cabeça, fechara os olhos, parecia num sono leve.
– Certo, mas até que horas?
– Nesse ponto – fui obrigada a dizer – os empregados hesitaram um
pouco. A recepcionista, em particular, infelizmente é uma tonta, embora
também supõe-se que seja uma gentlewoman. É evidente que àquela hora
da noite, por falta de substituta ou burlando as normas, ausentou-se por
um tempo do guichê onde é seu dever ficar para ver o entra e sai. Ela é
confusa, claramente é evasiva; então não posso, a partir das observações
dela, dar a você uma hora precisa. Mas foi observado que por volta das dez
e meia nossa pobre amiga não estava mais no clube.
Isso lhe veio a calhar.
– Ela seguiu direto para cá, e depois foi direto pegar o trem.
– Não teria conseguido num tempo tão curto – declarei. – E não era do
seu feitio fazer as coisas assim.
– Ela não precisaria correr para pegar o trem, minha querida, tinha
tempo de sobra. Sua memória a engana quando você diz que eu saí tarde
da sua casa: na realidade, saí da sua casa mais cedo que o habitual. Sinto
muito se minha visita lhe pareceu longa, porque por volta das dez eu já
estava aqui.
66
The Friends of the Friends
he liked; but oh she hadn’t been in the body! It was a simple question of
evidence. I had had, I maintained, a definite statement of what she had
done – most of the time – at the little club. The place was almost empty,
but the servants had noticed her. She had sat motionless in a deep chair
by the drawing-room fire; she had leaned back her head, she had closed
her eyes, she had seemed softly to sleep.
“I see. But till what o’clock?”
“There,” I was obliged to answer, “the servants fail me a little. The
portress in particular is unfortunately a fool, even though she too is
supposed to be a Gentlewoman. She was evidently at that period of the
evening, without a substitute and against regulations, absent for some
little time from the cage in which it’s her business to watch the comings
and goings. She’s muddled, she palpably prevaricates; so I can’t positively,
from her observation, give you an hour. But it was remarked toward half-
past ten that our poor friend was no longer in the club.”
It suited him down to the ground. “She came straight here, and from
here she went straight to the train.”
“She couldn’t have run it so close,” I declared. “That was a thing she
particularly never did.”
“There was no need of running it close, my dear – she had plenty of
time. Your memory’s at fault about my having left you late: I left you, as
it happens, unusually early. I’m sorry my stay with you seemed long, for I
was back here by ten.”
67
 Os Amigos dos Amigos
– Sim, para calçar os chinelos – repliquei – e cair no sono na poltrona.
Você dormiu até de manhã – você a viu em sonhos!
Ele olhou para mim em silêncio, com olhar sombrio – um olhar indi-
cando que reprimia alguma irritação. Em seguida, continuei:
– Você recebeu uma visita, imprevista, de uma dama. Que seja: nada no
mundo mais corriqueiro. Mas há damas e damas. Como é possível, céus,
se ela não foi anunciada e ficou muda, e ainda por cima você nunca tinha
visto nem sombra de uma foto dela – como poderia ter identificado a
pessoa de que estamos falando?
– E ela não me foi descrita à saciedade? Posso descrevê-la a você agora
com detalhes.
– Não – retruquei com uma prontidão que o fez rir de novo. Fiquei
vermelha nessa hora, mas continuei:
– Seu criado a anunciou?
– Ele não estava – nunca está quando precisamos dele. Uma das caracte-
rísticas deste casarão é que da porta da rua é fácil chegar a qualquer andar.
Meu criado namora uma jovem criada do apartamento acima do meu e
ficou muito tempo lá, ontem à noite. Quando ele some nessas horas, deixa
entreaberta minha porta da frente, a que dá para a escada, o suficiente para
poder se enfiar de volta sem fazer barulho. É só dar um empurrãozinho na
porta. Ela empurrou – só precisou de um pouco de coragem.
68
The Friends of the Friends
“To put yourself into your slippers,” I retorted, “and fall asleep in your
chair. You slept till morning – you saw her in a dream!” He looked at me in
silence and with sombre eyes – eyes that showed me he had some irritation
to repress. Presently I went on: “You had a visit, at an extraordinary hour,
from a lady – soit:55 nothing in the world’s more probable. But there are
ladies and ladies. How in the name of goodness, if she was unannounced
and dumb and you had into the bargain never seen the least portrait of
her – how could you identify the person we’re speaking of ?”
“Haven’t I to absolute satiety heard her described? I’ll describe her for
you in every particular.”
“Don’t !” I cried with a promptness that made him laugh once more. I
coloured at this, but I continued:
“Did your servant introduce her?”
“He wasn’t there – he’s always away when he’s wanted.56 One of the
features of this big house is that from the street-door the different floors
are accessible practically without challenge. My servant makes love to57
a young person employed in the rooms above these, and he had a long
bout58 of it last evening. When he’s out on that job he leaves my outer
door, on the staircase, so much ajar as to enable him to slip back without
a sound. The door only requires a little push. She pushed it – that simply
took a little courage.”
55
soit – expressão francesa, que significa “que seja”, “tudo bem”. É interessante notar que o uso dos galicis-
mos é ainda hoje típico dos ingleses cultos e de uma linguagem mais rebuscada.
56
when he’s wanted – to want é um verbo muito comum com o significado de “querer”. Menos conhecida,
porém, e de uso frequente no inglês, diferentemente do que ocorre em português, é uma construção passiva,
como na frase em questão. A mesma construção está presente também na expressão you’re wanted on the
phone, muito comum, e traduzida em português por “querem que você atenda o telefone”, “pedem para você
atender o telefone”.
57
makes love to – to make love significa “fazer amor” (to make love to/with somebody), mas em uma lingua-
gem mais antiga, como a deste conto, significa “fazer a corte a” alguém, “cortejar”, “namorar”.
58
long bout – aqui o autor faz uso de uma contradição para enfatizar o período de tempo em que o funcio-
nário estava ausente. Bout significa “um breve período de tempo usado em uma atividade específica”, assim
um long bout seria um “longo breve momento”, indicando que, na verdade, o tempo transcorrido não foi tão
breve assim.
69
 Os Amigos dos Amigos
– Um pouco? Toneladas! Além de fazer todo tipo de cálculos impossíveis.
– Bem, ela teve coragem; ela fez os cálculos. Veja, não nego por um
momento – acrescentou – que foi muito, muito impressionante!
Havia algo no tom de voz dele que por um momento me impediu de
falar. Por fim, eu disse:
– Como ela sabia onde você mora?
– Lembrou do endereço na pequena etiqueta que o pessoal da loja feliz-
mente grudou na moldura que mandei fazer para a minha foto.
– E como estava vestida?
– De luto, querida. Sem grandes volumes de crepe, apenas o simples e
escrupuloso preto. Tinha em sua boina três pequenas penas pretas. Aga-
salhava as mãos num pequeno regalo de astracã. Ela tem perto do olho
esquerdo – continuou ele – uma pequena cicatriz vertical...
Interrompi-o secamente.
– A marca de uma carícia do marido.
Então, acrescentei:
– E você deve ter chegado bem perto dela para vê-la!
Ele não deu resposta a isso, e acho que corou. Nessa hora, virei as costas
para ir embora.
– Bem, vou indo.
– Não vai ficar mais um pouco?
Chegou perto de mim de novo delicadamente e dessa vez consenti.
– A visita dela teve sua beleza – ele murmurou ao me segurar –, mas a
sua tem uma beleza maior.
Deixei que me beijasse, mas lembrei, como lembrara no dia anterior,
que o último beijo que ela me dera – neste mundo, acredito – havia sido
nos lábios que ele acabara de tocar.
– Eu sou vida, como você vê – respondi. – O que você viu ontem à noite
era morte.
70
The Friends of the Friends
“A little? It took tons! And it took all sorts of impossible calculations.”
“Well, she had them – she made them. Mind you, I don’t deny for a
moment,” he added, “that it was very very wonderful!”
Something in his tone kept me a time from trusting myself to speak. At
last I said: “How did she come to know where you live?”
“By remembering the address on the little label the shop-people happily
left sticking to the frame I had had made for my photograph.”
“And how was she dressed?”
“In mourning, my own dear. No great depths of crape, but simple and
scrupulous black. She had in her bonnet three small black feathers. She
carried a little muff of astrachan. She has near the left eye,” he continued,
“a tiny vertical scar –”
I stopped him short. “The mark of a caress from her husband.” Then
I added: “How close you must have been to her!” He made no answer
to this, and I thought he blushed, observing which I broke straight off.
“Well, good-bye.”
“You won’t stay a little?” He came to me again tenderly, and this time I
suffered him. “Her visit had its beauty,” he murmured as he held me, “but
yours has a greater one.”
I let him kiss me, but I remembered, as I had remembered the day
before, that the last kiss she had given, as I supposed, in this world had
been for the lips he touched. “I’m life, you see,” I answered. “What you
saw last night was death.”
71
 Os Amigos dos Amigos
– Era vida. Era vida!
Disse isso com uma tranquila obstinação. Desvencilhei-me dele. Fica-
mos olhando firme um para o outro.
– Você descreve a cena – se é que podemos chamar de descrição – em ter-
mos que são incompreensíveis. Ela entrou no aposento sem você perceber?
– Eu estava escrevendo uma carta e levantei a cabeça. Naquela mesa
debaixo da lâmpada, eu escrevia muito concentrado, e ela parou na mi-
nha frente.
– E o que você fez?
– Levantei, com uma interjeição, e ela, com um sorriso, levou o dedo
aos lábios, como uma advertência, embora com delicada dignidade. Com-
preendi que pedia silêncio, mas o estranho é que isso pareceu imediata-
mente explicá-la e justificá-la. Seja como for, ficamos um tempo, que eu
lhe disse não saber calcular, cara a cara. Como estamos nós dois agora.
– Só olhando fixo?
Ele sacudiu a cabeça, com impaciência.
– Ah! E não é o que estamos fazendo?
– Sim, mas estamos falando.
– Bem, e nós também estávamos... de certo modo.
Ele se perdeu, na rememoração disso.
– Foi algo tão cordial quanto o que estamos fazendo agora.
Quase perguntei se isso era dizer o suficiente, mas preferi achar que
aquilo que os dois tinham feito era evidentemente ficar se olhando em
mútua admiração. Então perguntei se ele a reconhecera de imediato.
– Não exatamente – replicou –, porque é claro que eu não esperava
vê-la; mas me dei conta de quem era bem antes que fosse embora, sabia
que só poderia ser ela.
72
The Friends of the Friends
“It was life – it was life!”
He spoke with a soft stubborness – I disengaged myself. We stood
looking at each other hard. “You describe the scene – so far as you describe
it at all – in terms that are incomprehensible. She was in the room before
you knew it?”
“I looked up from my letter-writing – at that table under the lamp I
had been wholly absorbed in it – and she stood before me.”
“Then what did you do?”
“I sprang up with an ejaculation, and she, with a smile, laid her finger,
ever so warningly, yet with a sort of delicate dignity, to her lips. I knew it
meant silence, but the strange thing was that it seemed immediately to
explain and justify her. We at any rate stood for a time that, as I’ve told
you, I can’t calculate, face to face. It was just as you and I stand now.”
“Simply staring?”59
He shook an impatient head. “Ah! we’re not staring!”
“Yes, but we’re talking.”
“Well, we were – after a fashion.” He lost himself in the memory of
it. “It was as friendly as this.” I had on my tongue’s end to ask if that
was saying much for it, but I made the point instead that what they
had evidently done was to gaze in mutual admiration. Then I asked if
recognition of her had been immediate. “Not quite,” he replied, “for of
course I didn’t expect her; but it came to me long before she went who
she was – who only she could be.”
59
staring – to stare e to gaze, quando usados sem objeto, significam “olhar fixo” (to stare/gaze into space,
olhar para o vazio, ter o olhar perdido no vazio). Quando to stare é seguido por at significa “encarar”, geral-
mente por surpresa ou incredulidade: she stared at him without speaking, “encarou-o sem falar”. To stare pode
ter ainda uma acepção negativa: stop staring at that disabled man!, “pare de encarar aquele deficiente!” (diz
a mãe ao filho). To gaze at somebody, ao contrário, enfatiza que há um interesse da parte de quem olha, e, às
vezes, também certa afetuosidade: she gazed at him lovingly, ela o olhou amorosamente.
73
 Os Amigos dos Amigos
Refleti um momento.
– E como ela foi embora?
– Do jeito que chegou. A porta estava aberta atrás dela, e ela saiu.
– Saiu rápido, devagar?
– Rápido. Mas olhando para trás – sorriu ele ao acrescentar. – Deixei-a ir,
pois sabia muito bem que tinha que aceitar a vontade dela, fosse qual fosse.
Tive consciência de exalar um suspiro longo e vago.
– Bem, você terá agora que aceitar a minha vontade – deixar que eu vá
embora.
Então ele me puxou para perto de novo, detendo-me e persuadindo-
-me, declarando com a devida galanteria que eu era bem diferente. Teria
dado qualquer coisa para ser capaz de perguntar se ele a havia tocado, mas
as palavras se recusaram a formar-se: eu sabia que iriam soar, até a últi-
ma nuance, horríveis e vulgares. Disse outra coisa qualquer – não lembro
exatamente o quê; algo levemente sinuoso e insidioso, com a maldade ne-
cessária para fazê-lo revelar algo sem que eu precisasse perguntar. Mas ele
não revelou; apenas repetiu, como se vislumbrasse que seria adequado me
acalmar e consolar, o sentido da sua declaração de alguns minutos atrás
– a afirmação de que ela era de fato admirável, como eu sempre insistira,
mas que eu era a “verdadeira” amiga dele, e assim seria para sempre. Isso
me levou a reafirmar, no espírito da minha réplica anterior, que eu pelo
menos tinha o mérito de estar viva; o que por sua vez voltou a arrancar
dele aquele lampejo de contradição que eu temia.
74
The Friends of the Friends
I thought a little. “And how did she at last go?”
“Just as she arrived. The door was open behind her and she passed out.”
“Was she rapid – slow?”
“Rather quick. But looking behind her,” he smiled to add. “I let her go,
for I perfectly knew I was to take it as she wished.”
I was conscious of exhaling a long vague sigh. “Well, you must take it
now as I wish – you must let me go.”
At this he drew near me again, detaining and persuading me, declaring
with all due gallantry that I was a very different matter. I’d have given
anything to have been able to ask him if he had touched her, but the
words refused to form themselves: I knew to the last tenth of a tone how
horrid and vulgar they’d sound. I said something else – I forget exactly
what; it was feebly tortuous and intended, meanly enough, to make him
tell me without my putting the question. But he didn’t tell me; he only
repeated, as from a glimpse of the propriety of soothing and consoling
me, the sense of his declaration of some minutes before – the assurance
that she was indeed exquisite, as I had always insisted, but that I was
his “real” friend and his very own for ever. This led me to reassert, in the
spirit of my previous rejoinder, that I had at least the merit of being alive;
which in turn drew from him again the flash of contradiction I dreaded.
75
 Os Amigos dos Amigos
– Ah, ela estava viva! Ela estava viva, estava viva sim!
– Estava morta, morta! – afirmei com energia, com a determinação de
que tinha que ser assim, o que me soa agora quase grotesco. Mas o som
da palavra ao vibrar de repente me encheu de horror, e toda a emoção
natural que seu sentido teria evocado em outras condições se acumulou e
irrompeu numa inundação. Pesou então sobre mim o quanto havia aí um
grande afeto extinto e o quanto eu amara e confiara nela. Tive também
uma visão da solitária beleza de seu fim.
– Ela se foi, nós a perdemos para sempre! – e me desmanchei em soluços.
– É exatamente o que eu sinto – exclamou, falando com extrema bon-
dade e me apertando contra ele para me confortar.
– Ela se foi; todos nós a perdemos: então, o que importa agora?
Ele inclinou-se sobre mim, e quando seu rosto tocou o meu, eu mal
soube dizer se estava molhado das suas lágrimas ou das minhas.
76
The Friends of the Friends
“Oh she was alive! She was, she was!”
“She was dead, she was dead!” I asseverated with an energy, a
determination it should be so, which comes back to me now almost as
grotesque. But the sound of the word as it rang out filled me suddenly
with horror, and all the natural emotion the meaning of it might have
evoked in other conditions gathered and broke in a flood. It rolled over
me that here was a great affection quenched and how much I had loved
and trusted her. I had a vision at the same time of the lonely beauty of her
end. “She’s gone – she’s lost to us for ever!” I burst into sobs.60
“That’s exactly what I feel,” he exclaimed, speaking with extreme
kindness and pressing me to him for comfort. “She’s gone; she’s lost to us
for ever: so what does it matter now?” He bent over me, and when his face
had touched mine I scarcely knew if it were wet with my tears or his own.
60
I burst into sobs – a forma mais comum dessa expressão é to burst into tears, “cair em prantos”. Aqui utili-
za-se sobs (soluços, não confundir com hiccups, que são os soluços causados por alterações na respiração)
em vez de tears (lágrimas). Com o mesmo significado é comum também a expressão to break down in tears.
77
 Os Amigos dos Amigos
VII
Era a minha teoria, a minha convicção, acabou virando, como direi, a
minha atitude, que os dois ainda não haviam se “encontrado”; e foi ape-
nas com base nisso que achei generoso convidá-lo a me acompanhar no
enterro dela. Ele o fez, muito humilde e doce, e presumi, embora ele pró-
prio claramente não ligasse para esse risco, que a solenidade da ocasião,
composta na maioria por pessoas que haviam conhecido os dois e sabiam
da persistente brincadeira, iria poupar a presença dele de qualquer asso-
ciação leviana. Quanto à questão do que teria acontecido na noite em
que ela morreu, pouco mais falamos, eu e ele; fui tomada por um horror
às provas. Em qualquer das duas hipóteses, elas se mostravam vulgares e
indiscretas. Ele, por sua vez, não tinha como apresentar corroborações –
nenhuma, quer dizer, exceto uma declaração de seu criado, que ele mesmo
admitia ser um personagem muito casual e intermitente, de que entre dez
e meia-noite nada menos do que três senhoras em luto fechado haviam
entrado e saído do lugar. Era muita coisa; nenhum de nós precisava de
três senhoras. Ele sabia que eu julgava ter explicação para cada fragmento
de tempo dela, e deixamos a questão de lado como resolvida; nos absti-
vemos de mais discussões. O que eu sabia, porém, era que ele se abstivera
disso para me agradar, não porque aceitasse minhas razões. Não aceitava
– estava apenas sendo indulgente; aferrava-se à sua interpretação porque
78
The Friends of the Friends
VII
It was my theory, my conviction, it became, as I may say, my attitude, that
they had still never “met”; and it was just on this ground I felt it generous
to ask him to stand with me at her grave. He did so very modestly and
tenderly, and I assumed, though he himself clearly cared nothing for the
danger, that the solemnity of the occasion, largely made up of persons who
had known them both and had a sense of the long joke, would sufficiently
deprive his presence of all light association. On the question of what had
happened the evening of her death little more passed between us; I had
been taken by a horror of the element of evidence. On either hypothesis
it was gross and prying. He on his side lacked producible corroboration
– everything, that is, but a statement of his house-porter, on his own
admission a most casual and intermittent personage – that between the
hours of ten o’clock and midnight no less than three ladies in deep black
had flitted in and out of the place. This proved far too much; we had
neither of us any use for three. He knew I considered I had accounted
for every fragment of her time, and we dropped the matter as settled;
we abstained from further discussion. What I knew however was that he
abstained to please me rather than because he yielded to my reasons.61 He
didn’t yield – he was only indulgent; he clung to his interpretation because
61
yielded to my reasons – to yield tem duas esferas principais de significado: a primeira é a de “produzir”,
“render” (the investment yielded a good return, o investimento rendeu um bom lucro), a outra é a de “ce-
der”, “render-se” (neste caso, sempre seguido de to); desta segunda área semântica deriva a acepção usada
no texto, isto é, a de “ceder”, “render-se” a suas razões.
79
 Os Amigos dos Amigos
gostava mais dela. E gostava mais dela, acho, porque falava mais à sua vai-
dade. Em situação similar, não teria sido esse seu efeito em mim, embora
eu tenha sem dúvida tanta vaidade quanto ele; mas essas são questões de
índole individual, em que ninguém pode julgar o outro. Eu teria achado
mais gratificante ser protagonista de uma daquelas inexplicáveis ocor-
rências, narradas em livros de suspense e discutidas em rodas de gente
culta; não era capaz de conceber nada mais incrível e puro, mais elevado e
augusto, num ser que fosse envolvido pelo infinito e ainda assim vibrasse
com emoção humana, do que um impulso como esse, de compensação,
ou de advertência, ou mesmo de curiosidade. Isso sim era bonito, e eu
no lugar dele teria me sentido melhor por ser tão distinta e selecionada
para algo assim. Era de conhecimento público que já o viam há muito
tempo sob essa luz; e, afinal, o que um fato como esse poderia significar a
não ser quase uma prova? Cada uma dessas estranhas visitações ajudava a
confirmar a anterior. Ele sentia diferente; mas também tinha, apresso-me
a acrescentar, um inegável desejo de não fazer ostentação disso, ou, como
se diz, não alardear. Eu que acreditasse no que quisesse – ainda mais que
a coisa toda era de certo modo um mistério que eu produzira. Era um
evento da minha história, um quebra-cabeça da minha consciência, não
da dele; portanto, nesse sentido ele aceitaria qualquer coisa que me soasse
conveniente. E, para todos os efeitos, tínhamos outro assunto a tratar;
estávamos premidos pelos preparativos do nosso casamento.
80
The Friends of the Friends
he liked it better. He liked it better, I held, because it had more to say to his
vanity. That, in a similar position, wouldn’t have been its effect on me,
though I had doubtless quite as much; but these are things of individual
humour and as to which no person can judge for another. I should have
supposed it more gratifying to be the subject of one of those inexplicable
occurrences that are chronicled in thrilling books and disputed about at
learned meetings;62 I could conceive, on the part of a being just engulfed
in the infinite and still vibrating with human emotion, of nothing more
fine and pure, more high and august, than such an impulse of reparation,
of admonition, or even of curiosity. That was beautiful, if one would, and I
should in his place have thought more of myself for being so distinguished
and so selected. It was public that he had already, that he had long figured
in that light, and what was such a fact itself but almost a proof ? Each
of the strange visitations contributed to establish the other. He had a
different feeling; but he had also, I hasten to add, an unmistakable desire
not to make a stand or, as they say, a fuss about it. I might believe what I
liked – the more so that the whole thing was in a manner a mystery of my
producing. It was an event of my history, a puzzle of my consciousness,
not of his; therefore he would take about it any tone that struck me as
convenient. We had both at all events other business on hand; we were
pressed with preparations for our marriage.
62
learned meetings – learned é um adjetivo um pouco formal que significa “erudito”, “culto” e é sinônimo
de erudite e de well-read ou well-educated. A diferença entre os três termos sinônimos é de registro: en-
quanto erudite é uma palavra muito cerimoniosa, well-read e well-educated pertencem a um registro mais
cotidiano. Este é um exemplo clássico do léxico inglês: como ele é uma mistura de palavras germânicas (de
origem anglo-saxônica) e latinas (que entraram no inglês através do Norman French), é frequente encontrar
duas palavras de etimologia diversa para indicar a mesma coisa. Muitas vezes, porém, as origens diferentes
trazem com elas também nuances de significado ou de nível expressivo: com frequência, o termo de origem
germânica é de registro menos elevado (como o well-read) enquanto o de origem latina (erudite) é mais re-
buscado. Existem numerosos exemplos disso: chambers (“dependências”, termo burocrático) e room (termo
geral); desire (“anseio” espiritual) e wish (“desejo” comum); liberty (“liberdade” no sentido abstrato) e freedom
(“liberdade” também física); reception (“recepção” oficial) e welcome (termo comum).
81
 Os Amigos dos Amigos
Os meus com certeza eram urgentes, mas descobri, com o passar dos
dias, que acreditar no que eu “quisesse” era acreditar naquilo que pudesse
me deixar mais intimamente convencida. Descobri também que não era
tanto que eu quisesse, mas que o prazer estava longe de ser a causa da mi-
nha convicção. Minha obsessão, como poderia chamá-la e como comecei
a percebê-la, recusava-se a ser posta de lado, como eu esperara, por meu
senso das obrigações prioritárias. Tinha muito a fazer, mas tinha muito
mais no que pensar, e chegou uma hora em que minhas ocupações viram-
-se seriamente ameaçadas por meus pensamentos. Vejo tudo isso agora,
sinto, vivo de novo. É terrivelmente vazio de alegria. Na realidade, trans-
borda de amargura; e, no entanto, devo ser justa comigo – eu não poderia
ter sido outra pessoa exceto a que fui. As mesmas estranhas impressões, se
me deparasse de novo com elas, produziriam a mesma angústia profunda,
as mesmas dúvidas atrozes, as mesmas certezas, mais claras ainda. Sim, é
tudo mais fácil de relembrar do que de escrever, mas mesmo que pudes-
se reconstituir o assunto hora a hora, que encontrasse os termos para o
inexprimível, mesmo assim a feiura e a dor logo iriam deter minha mão.
Vou então registrar de maneira muito simples e breve que uma semana
antes do dia do casamento, três semanas após a morte dela, eu soube em
todas as fibras de meu corpo que tinha algo muito sério a encarar e que
se tivesse que fazer esse esforço teria que fazê-lo imediatamente e antes
82
The Friends of the Friends
Mine were assuredly urgent, but I found as the days went on that to
believe what I “liked” was to believe what I was more and more intimately
convinced of. I found also that I didn’t like it so much as that came to, or
that the pleasure at all events was far from being the cause of my conviction.
My obsession, as I may really call it and as I began to perceive, refused
to be elbowed away,63 as I had hoped, by my sense of paramount duties.
If I had a great deal to do I had still more to think of, and the moment
came when my occupations were gravely menaced by my thoughts. I see
it all now, I feel it, I live it over. It’s terribly void of joy, it’s full indeed to
overflowing of bitterness; and yet I must do myself justice – I couldn’t
have been other than I was. The same strange impressions, had I to
meet them again, would produce the same deep anguish, the same sharp
doubts, the same still sharper certainties. Oh it’s all easier to remember
than to write, but even could I retrace64 the business hour by hour, could
I find terms for the inexpressible, the ugliness and the pain would quickly
stay my hand. Let me then note very simply and briefly that a week before
our wedding-day,65 three weeks after her death, I knew in all my fibres
that I had something very serious to look in the face and that if I was to
make this effort I must make it on the spot66 and before another hour
63
to be elbowed away – elbow significa “cotovelo” quando usado como substantivo e “abrir caminho com
os cotovelos” quando usado como verbo. Por exemplo, é frequente o uso desse verbo quando se quer abrir
caminho na multidão (she elbowed her way to the stage because she wanted to see the singer more closely, ela
abriu caminho às cotoveladas até o palco porque queria ver a cantora mais de perto). Neste contexto, junto a
away (fora), assume o significado de “empurrar para longe”, “afastar”.
64
but even could I retrace... – em vez de escrever normalmente but even if I could retrace... o autor começa
a frase omitindo if e, portanto, é obrigado a fazer a inversão (could I retrace em vez de I could retrace). Esse
modo de introduzir frases concessivas é típico da linguagem escrita e arcaica.
65
wedding-day – é o “dia do casamento”. Existem muitos nomes compostos tendo wedding como primei-
ro elemento, sempre relativos à esfera do casamento: wedding ceremony (cerimônia de casamento), wedding
cake (bolo de casamento), wedding party (festa de casamento), wedding dress (vestido de noiva),
wedding ring (aliança), wedding march (marcha nupcial).
66
on the spot – expressão adverbial que significa “imediatamente”, “na hora” (she decided to call him on the
spot, ela decidiu chamá-lo imediatamente), ou então “ali mesmo”, “no lugar” (a police patrol was on the spot
in minutes, a viatura policial chegou ao lugar em minutos).
83
 Os Amigos dos Amigos
que transcorresse uma hora sequer. O meu ciúme não extinto – era essa
a minha máscara de Medusa. Ele não morrera com a morte dela, sobre-
vivera lividamente, e era nutrido por suspeitas inconfessáveis. Elas seriam
inconfessáveis hoje, isto é, se eu não tivesse tido a aguda necessidade de
expressá-las na época. Essa necessidade tomara posse de mim – para me
poupar, ao que me pareceu, do meu destino. Depois disso, vi – na urgência
do caso, nas horas que iam diminuindo, no intervalo que encolhia – ape-
nas uma saída, a da absoluta presteza e sinceridade. Eu podia pelo menos
evitar fazer-lhe o mal de protelar outro dia; podia pelo menos encarar
minha dificuldade como algo bom demais para ser um mero subterfúgio.
Assim, com muita tranquilidade, mas de modo abrupto e terrível, expus-
-lhe certa noite que deveríamos reconsiderar nossa situação e reconhecer
que ela mudara.
Ele olhou com ar grave.
– Como assim mudou?
– Há outra pessoa entre nós.
Ele parou um instante para pensar.
– Não vou fingir que não sei de quem você está falando.
Ele sorriu de pena da minha aberração, mas queria ser gentil.
– Uma mulher morta e enterrada!
84
The Friends of the Friends
should elapse. My unextinguished jealousy – that was the Medusamask.67
It hadn’t died with her death, it had lividly survived, and it was fed by
suspicions unspeakable.68 They would be unspeakable to-day, that is, if
I hadn’t felt the sharp need of uttering them at the time. This need took
possession of me – to save me, as it seemed, from my fate. When once
it had done so I saw – in the urgency of the case, the diminishing hours
and shrinking interval – only one issue, that of absolute promptness and
frankness. I could at least not do him the wrong of delaying another day;
I could at least treat my difficulty as too fine for a subterfuge. Therefore
very quietly, but none the less abruptly and hideously, I put it before him
on a certain evening that we must reconsider our situation and recognise
that it had completely altered.
He stared bravely. “How in the world69 altered?”
“Another person has come between us.”
He took but an instant to think. “I won’t pretend not to know whom
you mean.” He smiled in pity for my aberration, but he meant to be kind.
“A woman dead and buried!”70
67
Medusamask – na mitologia clássica, a bela Medusa, uma das três górgonas, ousara seduzir Poseidon (o
deus dos mares) em um templo dedicado a Atena. A deusa, para vingar-se dessa profanação, transformou-a
em um monstro portador da morte: quem a olhasse nos olhos seria imediatamente transformado em pedra.
Medusa depois é morta por Perseu, que a decapitou: por isso na iconografia tradicional representa-se com
frequência a cabeça de Medusa, que conservou o poder de petrificar mesmo depois da decapitação. A gór-
gona simboliza por antonomásia a ambiguidade, a atração e a repulsão, a vida e a morte.
68
suspicions unspeakable – essa posição do adjetivo é bastante incomum: geralmente, exceto em alguns
poucos termos usados apenas na posição predicativa (alike, “similar”; asleep, “adormecido”; afraid, “com
medo”), em inglês os adjetivos vêm antes do substantivo ao qual se referem. Neste caso, teria sido mais usual
encontrar unspeakable suspicions, mas a escolha de não colocar o adjetivo primeiro não resulta tão estranha
se considerarmos que o conto inteiro é caracterizado por um estilo bastante formal e rebuscado.
69
How in the world... – em todo este diálogo, quando finalmente os dois personagens chegam a um confronto
aberto, as palavras se tornam mais incitadoras, e os diálogos, mais rápidos. Também mais adiante aparece
a expressão how in the world para introduzir a pergunta: como já assinalado antes no caso de how on earth,
trata-se de uma expressão usada nos diálogos quando há uma forte carga emotiva e se é tomado por um
sentimento de urgência.
70
buried – diferentemente do que costuma ocorrer, o u deste verbo não é pronunciado como em to burn
(queimar), mas como o e de berry (pequeno fruto silvestre). Na realidade, na pronúncia padrão, bury e berry
são homófonos.
85
 Os Amigos dos Amigos
– Está enterrada, mas não morta. Está morta para o mundo, morta para
mim. Mas não está morta para você.
– Você retorna à questão das diferentes explicações que demos à apari-
ção dela naquela noite?
– Não – respondi –, não estou retornando a nada, não preciso. Já me
basta o que tenho à minha frente.
– Então, por favor, querida, diga, o que poderia ser?
– Você está totalmente mudado.
– Por causa desse absurdo? – ele riu.
– Não tanto por ele, mas pelos outros absurdos que se seguiram.
– E quais podem ter sido?
Encaramo-nos, sem esquivar os olhos; mas os dele tinham uma estra-
nha luz, e minha certeza triunfou sobre sua perceptível palidez.
– Você vai fingir mesmo – perguntei – que não sabe quais são?
– Minha querida criança – replicou –, você me apresenta um esboço
vago demais!
Refleti por um momento.
– Às vezes ficamos um pouco constrangidos em expor a pintura pronta!
Mas partindo desse ponto de vista, e desde o início, o que poderia ser mais
constrangedor do que sua idiossincrasia?
Ele recorreu ao seu ar vago – algo que sempre fazia muito bem.
– Minha idiossincrasia?
– Seu notório, seu peculiar poder.
Com impaciência, deu de ombros e grunhiu com um fatigado desdém.
– Ah, certo, meu peculiar poder!
86
The Friends of the Friends
“She’s buried, but she’s not dead. She’s dead for the world – she’s dead
for me. But she’s not dead for you.”
“You hark back to the different construction we put on her appearance
that evening?”
“No,” I answered, “I hark back to nothing. I’ve no need of it. I’ve more
than enough with what’s before me.”
“And pray, darling, what may that be?”
“You’re completely changed.”
“By that absurdity?” he laughed.
“Not so much by that one as by other absurdities that have followed it.”
“And what may they have been?”
We had faced each other fairly, with eyes that didn’t flinch; but his had a
dim strange light, and my certitude triumphed in his perceptible paleness.
“Do you really pretend,” I asked, “not to know what they are?”
“My dear child,” he replied, “you describe them too sketchily!”
I considered a moment. “One may well be embarrassed to finish the
picture! But from that point of view – and from the beginning – what was
ever more embarrassing than your idiosyncrasy?”
He invoked his vagueness – a thing he always did beautifully. “My
idiosyncrasy?”
“Your notorious, your peculiar power.”
He gave a great shrug71 of impatience, a groan of overdone disdain. “Oh
my peculiar power!”
71
shrug – indica um movimento dos ombros primeiro para cima, depois para baixo, feito para sublinhar que
não se está interessado em alguma coisa. Seria equivalente a “dar de ombros” em português.
87
 Os Amigos dos Amigos
– Seu acesso a formas de vida – continuei com frieza –, seu domínio
das impressões, aparições, contatos, que ao resto de nós é vedado, para o
nosso bem ou nosso mal. Isso fez parte do profundo interesse que você
despertou em mim, uma das razões pelas quais achava divertido, sentia
grande orgulho em conhecê-lo. Era uma distinção magnífica; ainda é.
Mas, claro, eu não podia prever então o modo como iria operar agora; e
mesmo que pudesse, não teria ideia do quanto sua ação poderia me afetar
de maneira extraordinária.
– Pelos céus – indagou suplicante –, a que coisa fantástica você se refere?
E, então, enquanto em silêncio, eu escolhia o tom para voltar à carga:
– Vejamos, como raios ele opera? – prosseguiu. – E como raios afeta você?
– Ela se desencontrou de você durante cinco anos – eu disse –, mas
agora não acontece mais. Você está inventando!
– Inventando? – Ele começava a passar de branco a vermelho.
– Você a vê... você a vê: você se encontra com ela toda noite!
Ele fez um som alto de escárnio, mas que me soou falso.
– Ela vem até você como veio naquela noite – declarei. – Depois de
experimentar, descobriu que gostou!
Eu fui capaz, com a ajuda de Deus, de falar sem paixão cega, sem agres-
sividade vulgar; mas foram exatas as palavras que pronunciei – e não me
pareceram de modo algum um “esboço”. Ele virou-se, riu, bateu palmas
da minha tolice, mas em seguida encarou-me de novo com uma mudança
de expressão que me chocou.
– Você ousa negar – perguntei então – que a vê habitualmente?
88
The Friends of the Friends
“Your accessibility to forms of life,” I coldly went on, “your command of
impressions, appearances, contacts, closed – for our gain or our loss – to
the rest of us. That was originally a part of the deep interest with which
you inspired me – one of the reasons I was amused, I was indeed positively
proud, to know you. It was a magnificent distinction; it’s a magnificent
distinction still. But of course I had no prevision then of the way it would
operate now; and even had that been the case I should have had none of
the extraordinary way of which its action would affect me.”
“To what in the name of goodness,” he pleadingly enquired, “are you
fantastically alluding?” Then as I remained silent, gathering a tone for my
charge, “How in the world does it operate?” he went on; “and how in the
world are you affected?”
“She missed you for five years,” I said, “but she never misses you now.
You’re making it up!”
“Making it up?” He had begun to turn from white to red.
“You see her – you see her: you see her every night!”
He gave a loud sound of derision, but I felt it ring false. “She comes to
you as she came that evening,” I declared; “having tried it she found she
liked it!” I was able, with God’s help, to speak without blind passion or
vulgar violence; but those were the exact words – and far from “sketchy”
they then appeared to me – that I uttered. He had turned away in laughter,
clapping his hands at my folly, but in an instant he faced me again with a
change of expression that struck me. “Do you dare to deny,” I then asked,
“that you habitually see her?”
89
 Os Amigos dos Amigos
Ele adotara a linha da indulgência, de fazer concessões e concordar
gentilmente. De qualquer modo, para meu espanto, de repente disse:
– Muito bem, querida, e se for isso?
– É seu direito natural: faz parte da sua constituição e da sua maravi-
lhosa, se não muito invejável, sorte. Você há de entender, porém, que isso
nos separa. Eu libero você incondicionalmente.
– Você me libera?
– Você tem que escolher entre mim e ela.
Olhou sério.
– Entendo. – Então se afastou alguns passos, como se assimilasse o que
eu dissera e pensasse como seria melhor tratá-lo. Por fim, virou-se para
mim de novo.
– Como diabos você ficou sabendo de algo tão privado?
– Você quer dizer, considerando o quanto você tentou ocultá-lo? De
fato, é incrivelmente privado e pode acreditar que jamais irei divulgar isso.
Você se esforçou, fez seu papel, comportou-se – pobre de você! –, com
lealdade, admiravelmente. Portanto, observei você em silêncio, fazendo
também meu papel; notei cada hesitação na sua voz, cada olhar ausente,
cada esforço na sua mão indiferente: esperei até ficar bem segura e mise-
ravelmente infeliz. Como pode você ocultar se está perdidamente apaixo-
nado por ela, tomado até a medula pela felicidade que ela lhe dá?
Detive seu pronto protesto com um gesto mais rápido.
– Você a ama como nunca havia amado, e, paixão por paixão, ela cor-
responde! Ela te domina, controla, tem você inteiro! Uma mulher, numa
90
The Friends of the Friends
He had taken the line of indulgence, of meeting me halfway and kindly
humouring me. At all events he to my astonishment suddenly said: “Well,
my dear, what if I do?”
“It’s your natural right: it belongs to your constitution and to your
wonderful if not perhaps quite enviable fortune. But you’ll easily
understand that it separates us. I unconditionally release you.”
“Release me?”
“You must choose between me and her.”
He looked at me hard. “I see.” Then he walked away a little, as if grasping
what I had said and thinking how he had best treat it. At last he turned
on me afresh. “How on earth do you know such an awfully private thing?”
“You mean because you’ve tried so hard to hide it?72 It is awfully private,
and you may believe I shall never betray you. You’ve done your best,
you’ve acted your part, you’ve behaved,73 poor dear! loyally and admirably.
Therefore I’ve watched you in silence, playing my part too; I’ve noted
every drop in your voice, every absence in your eyes, every effort in your
indifferent hand: I’ve waited till I was utterly sure and miserably unhappy.
How can you hide it when you’re abjectly in love with her, when you’re
sick almost to death with the joy of what she gives you?”
I checked his quick protest with a quicker gesture. “You love her as
you’ve never loved, and, passion for passion, she gives it straight back!
She rules you, she holds you, she has you all! A woman, in such a case as
72
tried so hard to hide it – to try hard to do something significa “procurar de todos os modos fazer alguma
coisa”, “fazer de tudo para realizar algo” (I tried hard to let him know, but I couldn’t reach him in any way, tentei
de todas as maneiras avisá-lo, mas não consegui localizá-lo de jeito nenhum). O mesmo conceito pode ser
expresso com to try desperately to do something (tentar desesperadamente fazer algo) ou to try one’s best to
do something (esforçar-se ao máximo para fazer algo).
73
you’ve behaved – embora to behave signifique “comportar-se”, com valor neutro, frequentemente, no sen-
tido extensivo, permite subentender “comportar-se bem”, como se fosse to behave well (try to behave when
we meet them!, procure comportar-se direito quando os encontrarmos!). Com frequência, as mães dizem ao
filho travesso: behave!, com a intenção de transmitir “comporte-se direito!”.
91
 Os Amigos dos Amigos
situação como a minha, intui e sente e vê; não é uma pateta que precise
receber “informes fidedignos”. Você vem a mim mecanicamente, com-
pungido, com os restos da sua ternura e o que sobrou de sua vida. Posso
abrir mão de você, o que não posso é compartilhá-lo: o que você tem de
melhor é dela, sei o que é e entrego você de graça para ela, para sempre!
Ele lutou com galhardia, mas não havia conserto; repetiu sua negação,
retirou o que havia dito, ridicularizou minha acusação, que eu mesma,
aliás, concordava tratar-se de uma extravagância indefensável. Não fingi
em nenhum momento que estivéssemos falando de coisas comuns; nem
que ele e ela fossem pessoas comuns. Nada disso; se o fossem, como po-
deria eu ter me importado com eles? Haviam desfrutado de uma rara ex-
tensão da existência e me capturado em seu voo; só que eu não conseguira
respirar naquele ar e pedi para descer. Tudo naqueles fatos era monstruo-
so, e principalmente minha lúcida percepção deles; a única coisa que coa-
dunava com a natureza e a verdade era eu agir a partir dessa percepção.
Senti, depois de ter dito aquelas palavras, que minha certeza era completa;
bastava ver o efeito que minhas palavras haviam tido nele. Na realidade,
ele disfarçou o efeito numa nuvem de zombarias, uma manobra que lhe
permitiu ganhar tempo e deu cobertura à sua retirada. Questionou minha
sinceridade, minha sanidade, quase a minha humanidade, e isso, é claro,
92
The Friends of the Friends
mine, divines74 and feels and sees; she’s not a dull who has to be ’credibly
informed.’ You come to me mechanically, compunctiously, with the dregs
of your tenderness and the remnant of your life. I can renounce you, but
I can’t share you: the best of you is hers, I know what it is and freely give
you up to her for ever!”
He made a gallant fight, but it couldn’t be patched up;75 he repeated
his denial, he retracted his admission, he ridiculed my charge, of
which I freely granted him moreover the indefensible extravagance. I
didn’t pretend for a moment that we were talking of common things;
I didn’t pretend for a moment that he and she were common people.
Pray, if they had been, how should I ever have cared for them? They had
enjoyed a rare extension of being and they had caught me up in their
flight; only I couldn’t breathe in such air and I promptly asked to be set
down. Everything in the facts was monstrous, and most of all my lucid
perception of them; the only thing allied to nature and truth was my
having to act on that perception. I felt after I had spoken in this sense that
my assurance was complete; nothing had been wanting to it but the sight
of my effect on him. He disguised indeed the effect in a cloud of chaff,
a diversion that gained him time and covered his retreat. He challenged
my sincerity, my sanity,76 almost my humanity, and that of course
74
divines – é significativo que aqui não se tenha usado um simples to surmise (intuir) ou to understand (com-
preender), mas justamente o verbo to divine, que tem mais ou menos o mesmo significado, mas um termo de
registro bem mais formal e com uma conotação que remete à esfera do mágico e do misterioso.
75
couldn’t be patched up – to patch up significa “reparar” alguma coisa que sofreu dano. Costuma ser usado
na expressão to patch it up with somebody, “reconciliar-se com alguém”. O termo patch, como substantivo,
significa “remendo”, “retalho” (patchwork é a famosa técnica usada nas colchas de retalhos): o verbo está,
portanto, associado à ideia de “consertar” ou “reparar” algo.
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my sanity – sanity indica aqui a “sanidade mental”, isto é, o “bom senso”, a “capacidade de discernimento”.
Também o adjetivo sane significa “de mente sadia”, enquanto insane, com o sufixo de privação in-, quer dizer
“insano”, “doente da mente”, “maluco”.
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 Os Amigos dos Amigos
aumentou o fosso entre nós e confirmou nosso rompimento. Ele fez tudo,
em suma, exceto convencer-me de que eu estava errada ou de que ele se
sentia infeliz: separamo-nos e deixei-o com sua inconcebível comunhão.
Nunca se casou, e tampouco o fiz. Quando, seis anos mais tarde, eu, na
solidão e no silêncio, soube da morte dele, saudei-a como uma contribui-
ção direta à minha teoria. Foi repentina, nunca explicada devidamente,
cercada por circunstâncias nas quais percebi – porque, ah, como eu as
esquadrinhei! – uma nítida intenção, a marca de sua própria mão oculta.
Havia sido fruto de uma persistente necessidade, de um desejo insaciável.
Para expressar exatamente o que quero dizer, havia sido uma reação a um
chamado irresistível.
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The Friends of the Friends
widened our breach and confirmed our rupture. He did everything in
short but convince me either that I was wrong or that he was unhappy:
we separated and I left him to his inconceivable communion.
He never married, any more than I’ve done. When six years later, in
solitude and silence, I heard of his death I hailed it as a direct contribution
to my theory. It was sudden, it was never properly accounted for,77 it was
surrounded by circumstances in which – for oh I took them to pieces! – I
distinctly read an intention, the mark of his own hidden hand. It was the
result of a long necessity, of an unquenchable78 desire. To say exactly what
I mean, it was a response to an irresistible call.
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it was never properly accounted for – to account for something significa “levar em conta alguma coisa”. A
frase sublinha, portanto, que ninguém teve condições de explicar a morte do homem.
78
unquenchable – to quench é um verbo muito formal para dizer “extinguir” (frequentemente usado na ex-
pressão to quench a fire, “extinguir um incêndio”, ou to quench one’s thirst, “saciar a sede”). O adjetivo
unquenchable deriva desse verbo, com o acréscimo do prefixo un- e do sufixo -able; sua tradução em portu-
guês, “inextinguível”, é formada de modo análogo.
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 O autor

Henry James nasce em Nova York, em 1843, em uma família de alta

envergadura cultural (o irmão mais velho é o filósofo William James).
Faz seus estudos entre a Suíça, a Alemanha e os Estados Unidos. Em
1862, matricula-se na Escola de Direito da Universidade de Harvard,
mas um ano depois abandona o curso.
Entre 1869 e 1880, realiza numerosas viagens pela Europa: Inglaterra,
Suíça, França, Itália. Em 1883, muda-se para Londres, voltando de vez
em quando para os Estados Unidos.
Em 1915, assume a nacionalidade britânica e recebe a “Ordem do
Mérito”, que lhe é conferida pelo rei Jorge V. Morre em Londres, em 1916.

O miolo deste livro foi impresso em papel Chambril Avena 80 g/m².

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