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UMA IMERSÃO NO SILÊNCIO DE HEMINGWAY: OS ASSASSINOS E A TEORIA

DO ICEBERG

Vanessa de Carvalho Santos1


Karla Vivianne Oliveira Santos2
Saulo Cunha de Serpa Brandão3

RESUMO
A parte submersa de um iceberg é onde encontra-se sua verdadeira grandeza, mas esta só
pode ser vista a partir de um novo ponto de vista: da superfície para uma imersão nas águas
que o escondem. É isso que Ernest Hemingway pensa ao definir seu como um estilo baseado
na Teoria do Iceberg. O autor Estadunidense é reconhecido por economizar léxico na
construção de suas narrativas, todavia, a cada palavra escolhida por ele para compor sua obra,
um encadeamento de significados ganha vida. Pensando no seu conto Os assassinos como um
iceberg, objetivamos olhá-lo através da produção teórica de Hemingway sobre sua teoria aqui
mencionada para compreender de que forma o autor aplica o conceito que desenvolve a partir
dos elementos descobertos ao longo do conto. Além de Hemingway, este estudo também se
desenvolve à luz dos trabalhos de Baker (1972), Gieseler (2001) e Feitosa (1996).

Palavras-Chave: Ernest Hemingway. Teoria do Iceberg. Os Assassinos.

ABSTRACT
The submerged part of an iceberg is where its true greatness is found, but this can only be
seen from a new point of view: from the surface to an immersion in the waters that hide it.
This is what Ernest Hemingway thinks when defining his style based on the Iceberg Theory.
The American author is recognized for saving lexicon in the construction of his narratives,
however, with every word chosen by him to compose his work, a chain of meanings comes
alive. Thinking About his short story The Killers as an iceberg, we aim to look at it through
Hemingway's theoretical production on his theory here mentioned to understand how the
author applies the concept he develops from the elements discovered throughout the short
story. In addition to Hemingway, this study is also developed in the light of the works of
Baker (1972), Gieseler (2001) and Feitosa (1996).

Keywords: Ernest Hemingway. Iceberg Theory. The killers.

1
Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail:
vanessadecarvalhosantos@outlook.com.
2
Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail:
viviannekarla2@gmail.com.
3
Professor Titular voluntário da UFPI. Doutor em Teoria da Literatura. E-mail saulo@ufpi.edu.br.
1
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Pode-se argumentar de forma persuasiva que Hemingway é o melhor escritor de


contos da língua Inglesa desde Dubliners de Joyce até o presente (BLOOM, 2005, p.
329, tradução nossa4).

Gertrude Stein estava sempre certa (Ernest Hemingway, tradução livre nossa5)

“Geração perdida”6 é uma expressão utilizada para qualificar o conjunto de


escritores/artistas que se estabeleceram em Paris nos anos 1920 e que se reuniam no famoso
Salão de Literatura da escritora, também estadunidense, Gertrude Stein. Eles eram expatriados
por diversas razões, mas mais frequentemente por não terem retornado aos seus países depois
da Primeira Grande Guerra ou que retornaram e se descobriram estrangeiros em seus países.
A utilização da palavra “perdida” para nomear tal grupo indica o fato de estarem sem direção
e por isso, nesse período, têm-se a forte presença do individualismo e da quebra de normas.
Os artistas dessa geração encontraram um meio para expressar as profundas mudanças
sociais causadas por problemas econômicos e pelo cenário pós-guerra. O período de
turbulência enfrentado pelos Estados Unidos também fez com que diversos artistas, como
Ernest Hemingway, remodelassem o instrumento que utilizavam para se expressar. Para além
de seus escritos artísticos, ele que popularizou o termo Teoria do Iceberg, que foi
exemplarmente desenvolvida e aplicada no romance O sol também se levanta – no original
The Sun Also Rises. Dessa geração perdida de artistas destacamos os outros, tais como T.S.
Eliot, F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound e Sinclair Lewis.
Vencedor do Nobel de Literatura em 1954, Ernest Hemingway construiu uma imagem
que o trouxe grande admiração da sua geração e até os dias atuais. Os trabalhos produzidos
pelo autor nascido em Illinois são considerados hoje clássicos da Literatura estadunidense. A
sua popularidade ainda em vida se justifica pelos temas de seus romances e contos que
tratavam de assuntos caros ao cidadão comum, como: caçadas, pescarias, touradas, lutas. E
também ao público letrado pelo seu estilo enxuto, questionamentos e debates transcendentais
e até metafísicos, desenvolvimento de teorias nas obras, enquanto ele as debatia
metatextualmente.
Posto isto, este trabalho se propõe a perscrutar o conto Os assassinos, de Hemingway,
publicado inicialmente na revista estadunidense Scribner em 1927, através do apoio teórico

4
No original: It could be argued persuasively that Hemingway is the best short-story writer in the English
language from Joyce's Dubliners until the present.
5
Gertrude Stein was Always right.
6
Gertrude Stein assim chamava os artistas que compareciam ao seu Salão de Literatura em Paris nos anos 20 do
século passado. (Artists of the Lost Generation).
2
do mesmo autor sobre a Teoria do Iceberg e seu estilo de escrita conciso que transmuda as
experiências mundanas com o uso de palavras depuradas. Buscamos, assim, compreender de
que maneira o autor aplica sua teoria a partir dos elementos encontrados ao longo do texto.

2 VERDADE E SIMPLICIDADE: OS PRINCÍPIOS DE HEMINGWAY

Faulkner, Stevens, Frost, talvez Eliot e Hart Crane foram escritores mais fortes do
que Hemingway, mas ele sozinho neste século americano alcançou o status
duradouro de mito (BLOOM, 2005, p. 331, tradução nossa7).

Quando pensamos no estilo de escrita mais reconhecido e disseminado do século XX,


em países anglófonos, é Ernest Hemingway o primeiro nome que surge à mente. Hoje
popularizada, sua forma de escrever desfez os fortes laços existentes entre texto literário e o
estilo ornamentado que peregrinou desde o período Vitoriano, no século XIX. O autor tornou-
se conhecido por não dar lugar a longos retratos topográficos e emocionais, pois capta a
complexidade da interação humana através do discurso direto e fornece ao leitor o material
para uma aproximação de uma experiência real (DARZIKOLA, 2013, p. 8).
Com O sol também se levanta, em 1922, romance que fez Hemingway ser considerado
um dos maiores escritores na época, ele começou a delinear os princípios que o guiariam na
construção da sua produção literária ao longo dos anos, transformando sua técnica de escrita
em algo inconfundível. Seis anos após essa publicação, o autor discutiu tais princípios no
livro de não ficção Morte ao Entardecer – Death in the Afternoon –, momento que também
escreveu sobre o início de sua carreira no florescer dos anos de 1920.

Eu sempre trabalhei até que eu tivesse algo feito e eu sempre parei quando eu sabia
o que aconteceria em seguida. Desta forma eu poderia ter certeza de continuar no dia
seguinte. Mas às vezes, quando eu estava começando uma nova história eu não
conseguia continuar, eu sentava em frente à lareira e espremia a casca das pequenas
laranjas na borda da chama e observava o crepitar de azul que elas produziam. Eu
levantava e olhava os telhados de Paris e pensava, “Não se preocupe. Você sempre
escreveu antes e escreverá agora. Tudo o que precisa fazer é escrever uma frase
escrevia uma frase verdadeira e depois continuava a partir daí. Era fácil, então,
porque sempre havia uma frase verdadeira que eu conhecia ou tinha visto ou ouvido
alguém dizer. Se eu começasse a escrever de forma elaborada, ou como alguém
introduzindo ou apresentando algo, eu descobri que eu poderia eliminar aquele
scrollwork ou ornamento e jogá-lo fora e começar com a primeira frase simples
declarativa e verdadeira que eu havia escrito (HEMINGWAY, 1964, p. 12, tradução
nossa8).
7
No original: Faulkner, Stevens, Frost, perhaps Eliot, and Hart Crane were stronger writers than Hemingway,
but he alone in this American century has achieved the enduring status of myth.
8
No original: I always worked until I had something done and I always stopped when I knew what was going to
happen next. That way I could be sure of going on the next day. But sometimes when I was starting a new story
and I could not get it going, I would sit in front of the fire and squeeze the peel of the little oranges into the edge
of the flame and watch the sputter of blue that they made. I would stand and look out over the roofs of Paris and
3
A construção do estilo de Hemingway pode ser, dessa forma, exprimida em duas
palavras-chave: verdade e simplicidade9. Quando o autor afirma que deve escrever frases
verdadeiras, ele estabelece para si próprio os primeiros princípios básicos que influenciarão
seu estilo. Todavia, o que é a verdade para Hemingway?
Destacamos como primeiro sentido desta palavra à adequação experiencial, i.e., o
escritor escreve sobre aquilo que ele tem conhecimento prático. Ética e estética são
imbricadas no trabalho do autor, igualando a verdadeira escrita a boa escrita. Se o autor
escreve sobre o que não conhece, o que ele não experimentou pessoalmente, ele não escreve
honestamente:

Boa escrita é verdadeira escrita. Se um homem está inventando uma história, isso
será verdadeiro em proporção à quantidade de conhecimento que ele tem e quão
consciencioso ele é; de modo que quando ele cria algo é como isso verdadeiramente
seria. Se ele não sabe quantas pessoas trabalham em suas mentes e ações, sua sorte
pode salvá-lo por um tempo, ou ele pode escrever fantasia. Mas se ele continua a
escrever sobre o que ele não sabe, ele se verá fingindo. Depois que ele finge
algumas vezes, ele não pode escrever mais honestamente (HEMINGWAY, 1935,
n.p. tradução nossa10).

Tudo isso se dá através da observação, pois, segundo as palavras de Hemingway, o fim de um


autor acontece quando ele para de observar, seja consciente ou inconscientemente.
Baker (1972, p. 48) explica que o sentido de lugar é parte do que Hemingway afirma
como verdade e este analisa a técnica que Hemingway utilizava para fazer com que leitor
sentisse o que o escritor estadunidense nomeou de “the way it was”, em tradução livre: a
maneira como era. Para Baker (1972) a frase em destaque acima é simples para um conceito
complexo. Segundo Hemingway:

think, “Do not worry. You have always written before and you will write now. All you have to do is write one
true sentence. Write the truest sentence that you know.” So finally I would write one true sentence, and then go
on from there. It was easy then because there was always one true sentence that I knew or had seen or had heard
someone say. If I started to write elaborately, or like someone introducing or presenting something, I found that I
could cut that scrollwork or ornament out and throw it away and start with the first true simple declarative
sentence I had written.
9
Gertrude Stein é creditada pelo treinamento do autor em seu estilo. Foi ela que o apresentou o livro The
backwash of the war escrito por Ellen N. La Motte, que era grande amiga de Stein e por ela considerada grande
escritora especialmente pela secura de seu estilo. Todos os primeiros escritos de Hemingway passaram pela
edição de Stein. Ela dizia “Cut out words. Cut everything out, except what you saw, what happened.” (Corte as
palavras. Corte tudo, exceto o que você viu, o que aconteceu. – tradução livre nossa). (WACHTELL, 2019)
10
No original: Good writing is true writing. If a man is making a story up it will be true in proportion to the
amount of knowledge of life that he has and how conscientious he is; so that when he makes something up it is
as it would truly be. If he doesn't know how many people work in their minds and actions his luck may save him
for a while, or he may write fantasy. But if he continues to write about what he does not know about he will find
himself faking. After he fakes a few times he cannot write honestly any more.
4
Todos os bons livros são parecidos porque são mais verdadeiros do que se tivessem
realmente acontecido e depois que você termina de ler um deles, sentirá que tudo
aquilo aconteceu com você e então tudo pertence a você; o bem e o mal, o êxtase, o
remorso e a tristeza, as pessoas e os lugares e como estava o tempo. Se você pode
conseguir isso para que você possa dar isso às pessoas, então você é um escritor
(HEMINGWAY, 1934, n.p., tradução nossa11).
A partir disso temos uma segunda forma de verdade: a adequação histórica. A
narrativa de Hemingway realiza-se em locais ficcionais com nomes de lugares reais, para
conceder realismo à obra. Estes podem variar, seja Paris, Kilimanjaro ou Wyoming, todavia,
todos são locações que podemos tocar e identificar o momento histórico que a narração
ocorre, descobrimos o palco de suas histórias através dos detalhes ou, como nos dois últimos
lugares exemplificados, podem estar explícitos no título da sua narrativa (BAKER, 1972, p.
49). O que Baker define como “adequação histórica”, Genette (1993, p. 50) é mais técnico ao
definir esse uso de dados históricos como “realema”, cuja função é enfatizar o processo de
verossimilhança. Mas o teórico francês insiste que mesmo trazendo dados que existem na
realidade, eles viram ficção no momento que entra em uma obra de mundos imaginários.
O terceiro e último sentido de verdade que apresentamos aqui se relaciona na
possibilidade de o autor comunicar suas próprias experiências ao leitor através de uma base
comum de sentimentos e emoções, i.e., o ser humano pode experimentar sentimentos
semelhantes ao serem colocados em situações semelhantes. Isto faz com que também
compartilhem de forma similar uma maneira de interpretar o texto, reproduzindo, desta forma,
emoções parecidas, através dessa leitura. Esta seria uma mediação estética (BAKER, 1972, p.
50).
Além do sentido de lugar, Baker (1972) distingue mais dois instrumentos estéticos nas
narrativas de Hemingway. O primeiro é sentido de fato, que é algo facilmente encontrado nos
textos do autor, “[...] fatos visíveis ou audíveis ou tangíveis, fatos mal declarados, fatos sem
apetrechos verbais para inibir seu poder impressionante [...]”, são o material da sua prosa
BAKER, 1972, p. 51-52, tradução nossa12). O segundo é o que ele nomeia de sentido de cena:

Se uma fusão imaginativa do sentido do lugar e do sentido de fato ocorrer, e se, fora
do processo de fusão, a vida dramática surgir, um terceiro elemento será necessário.
Isso pode ser chamado de senso de cena. Os lugares são menos que a geografia, os
fatos são inertes e descoordenados, a menos que a imaginação os atravesse como

11
No original: All good books are alike in that they are truer than if they had really happened and after you are
finished reading one you will feel that all that happened to you and afterwards it all belongs to you; the good and
the bad, the ecstasy, the remorse and sorrow, the people and the places and how the weather was. If you can get
so that you can give that to people, then you are a writer.
12
No original: […] visible or audible or tangible facts, facts badly stated, facts without verbal paraphernalia to
inhibit their striking power.
5
uma corrente vitalizante e a imagem total se mova e acelere (BAKER, 1972,p.52,
tradução nossa13).

Alcança-se esse sentido por meio da seleção precisa de léxico e economia sintática, não
permitindo lugar para ornamentos verbais. A combinação desses três sentidos - lugar, fato e
cena - resulta em um retrato da realidade e permite que o autor tenha uma dupla percepção das
coisas, ou seja, a identificação das reações emocionais e dos elementos que causaram tais
emoções (BAKER, 1972).
O bom escritor sabe sobre o que está escrevendo, mas não mostra tudo o que sabe para
o leitor, o que é exposto é somente a superfície de um iceberg. Hemingway capta a
complexidade da interação humana através de um discurso direto sutil e fornece ao leitor o
material de uma experiência que só se finda a partir da leitura do texto. É no silêncio do texto
de Hemingway, no que não foi dito, que está o segredo de sua obra; é neste que o leitor deve
imergir.

3 OS ASSASSINOS E A TEORIA DO ICEBERG

— Hei, Al. — gritou Max — Este menino esperto aqui quer saber do que se trata
tudo isto.
— Por que não lhe conta? — ouviu-se a voz da cozinha.
— Do que acredita que se trata?
— Não sei.
— O que acha?
(HEMINGWAY, 2012, n.p.).

Ainda que, a princípio, possamos compreender Hemingway a partir de seu estilo


aparentemente simples, podemos perceber que por trás dessa característica tão marcante
encontram-se outras tão mais complexas e profundas. Suas histórias são construídas, em
grande parte, por uma teoria que o próprio Hemingway postulou, intitulada Teoria do Iceberg.
Por meio dela, o escritor americano nos apresenta uma possibilidade de leitura de seus
escritos.
Embora existam outros estudos sobre essa teoria, uma das primeiras declarações de
Hemingway nos foi apresentada em sua obra Morte ao Entardecer, de modo a elucidar sobre
os princípios de sua técnica de escrita:

13
No original: If an imaginative fusion of the sense of place and the sense of fact is to occur, and if, out of the
fusing process, dramatic life is to arise, a third element is required. This may be called the sense of scene. Places
are less than geography, facts lie inert and uncoordinated, unless the imagination runs through them like a
vitalizing current and the total picture moves and quickens.
6
Se um escritor de prosa sabe o suficiente sobre o que ele está escrevendo, ele pode
omitir coisas que sabe e o leitor, se o escritor escrever verdadeiramente o suficiente,
terá tão fortemente a sensação dessas coisas como se elas já tivessem sido ditas. A
dignidade de um iceberg é devida a apenas um-oitavo dele estar acima d’água.
(HEMINGWAY, 1966, p. 182, tradução nossa14).

Dessa forma, o autor imprime a ideia de que o nosso compromisso com sua obra é
desvendar os sete-oitavos que estão abaixo da superfície do iceberg, aquilo que está
subentendido. Em outras palavras, Hemingway espera que seu leitor tenha um “olhar mais
atento para os detalhes da obra, enxergando além do que está escrito, do que está na
superfície” (GIESELER, 2011, p. 16, tradução nossa 15). Desta feita, percebemos que aquilo
que Hemingway faz é colocar em suas obras apenas a ponta do iceberg, como ele mesmo
confirma, para fora da água, moldando seu texto complexo a partir de uma estrutura de língua
evidentemente simples.

3.1 A CONSTRUÇÃO DO CONTO ATRAVÉS DA OMISSÃO

O conto Os assassinos apresenta a história de uma tentativa de assassinato organizada


por Al e Max dentro do restaurante do Henry, local para onde Ole Andreson, o sueco e
possível vítima, se desloca todos os dias para jantar. Com o objetivo de matar o estrangeiro,
os assassinos controlam a movimentação dentro do restaurante. Além deles, estão em cena
também George, proprietário do ambiente, o cozinheiro nomeado como negro e Nick Adams,
protagonista de várias histórias de Hemingway.
A Teoria do Iceberg de Hemingway é concebida por alguns estudiosos como uma
forma de omissão, em que o autor não nos diz tudo em sua obra, deixando alguns aspectos sob
responsabilidade do leitor. Perscrutando sobre as técnicas de Hemingway, Toshihiro
Maekawa (2001), em sua obra Hemingway’s Iceberg Theory, analisa formas diferentes de
omissão utilizadas por outros escritores, na tentativa de identificar novos aspectos da teoria do
escritor americano.
Para tanto, Maekawa (2001) traz à baila três técnicas de omissão: a primeira diz
respeito ao “correlato objetivo”, definida por T. S. Eliot, que trata-se da formulação de um grupo
de objetos, situações ou paisagens com o poder de causar no leitor de uma obra a emoção desejada.
Segundo essa definição, o autor organiza esses elementos de maneira que, uma vez apreciados na
14
No original: If a writer of prose knows enough about what he is writing about he may omit things that he
knows and the reader, if the writer is writing truly enough, will have a feeling of those things as strongly as
though the writer had stated them. The dignity of an iceberg is due to only one-eighth of it being above water.
15
No original: […] the reader to give a more attentive look at the details in his work, looking beyond what was
written, what lay on the surface.
7
leitura, desencadeiam uma carga emocional imediata no leitor ; a segunda refere-se à ironia, como
um tipo particular de omissão; e, a terceira, menciona a eliminação de experiências pessoais
por parte do autor. Para explanar sobre essas técnicas, a teórica destaca obras de Hemingway
em que existem omissões que leitores enfrentam dificuldade em encontrar o que está
escondido, embora possam sentir algo grande à espreita, abaixo da superfície (MAEKAWA,
2001).
No conto aqui em destaque, através de sua escolha de palavras nas falas, o autor nos
concede uma imagem visual do período histórico onde a intriga desenvolve-se. Quando
George afirma que tudo o que há para beber é “refrigerante de gengibre, cerveja sem álcool, e
outros refrigerantes”, já se relaciona ao momento que os Estados Unidos sofreram com a Lei
Seca, ocorrida entre os anos de 1920 e 1930, e que proibia a venda e consumo de qualquer
bebida alcoólica em território nacional. Todavia, um dos assassinos pergunte novamente “diga
se tem algo para beber”, dando a ideia de que alguns lugares vendiam bebidas alcoólicas,
mesmo com a proibição (HEMINGWAY, 2012, n.p.).
Neste mesmo período, observamos a intensa circulação e ação da máfia e assassinos,
permitindo que a opressão vinda de marginais se torne frequente. Quando Max anuncia
“Vamos matar um sueco”, não há qualquer surpresa ou estranhamento vindos das outras
personagens. O que eles, assim como o leitor, questionam é o motivo. “Por que vão matar Ole
Andreson? O que lhes fez?” e a resposta direta vem logo em seguida “Nunca teve a
oportunidade de nos fazer algo. Jamais nos viu”. A vida perde valor nesse período, a lei dos
mais fortes reina (HEMINGWAY, 2012, n.p.).
Nick demonstra um ato de heroísmo para com os dois assassinos e logo em seguida
vem sua desilusão, já que sua coragem não faz qualquer diferença. Com a escolha de palavras
de Max e Al, ao referirem a Nick como “garoto”, observa-se que se trata de uma personagem
que ainda não alcançou a idade adulta. Essa coragem resultante da sua jovem idade é vista no
final do conto quando eles e direciona a casa do sueco para avisá-lo sobre o perigo que
enfrenta. Para Sam, o ato não é de todo inteligente e ironicamente afirma que jovens garotos
sempre sabem o que querem (HEMINGWAY, 2012).
A imagem visual presente no conto é narrada em terceira pessoa. Com isso, não temos
pensamentos ou pontos de vista de qualquer personagem. Para que possamos os conhecer,
seus nomes devem ser ditos nas falas, exceto por George e Nick. Por isso, em certo momento
do conto, temos a seguinte passagem:

8
Os dois homens se retiraram. George, através da janela, viu-os passar sob o poste da
esquina e cruzar a rua. Com seus sobretudos ajustados e esses chapéus de feltro
pareciam dois artistas de variedades. George voltou para a cozinha e desatou Nick e
o cozinheiro (HEMINGWAY, 2012, n.p.).

Eles realmente pareciam isso ou somente para George? Todavia, o narrador não segue a
sombra de George, pois quando Nick se desprende do restaurante para ver o sueco, a narrativa
se desenvolve para outro ambiente.
O relógio é um elemento chave do conto Os assassinos:

George olhou o relógio na parede detrás do balcão.

— São cinco horas.


— O relógio marca cinco e vinte. — disse o segundo homem.
— Adianta vinte minutos.
— Ora, dane-se o relógio. — exclamou o primeiro — O que tem para comer?
(HEMINGWAY, 2012, n. p.)

A partir dessa breve observação, sempre que a hora é dita no conto nos questionamos
se se refere à hora real ou a hora do relógio que todos as personagens têm consciência do
atraso. Ole costuma ir as seis, mas de acordo com qual relógio? A frase “George olhou o
relógio” é repetida três vezes na história: seis e quinze; seis e vinte; e seis e cinquenta e cinco,
mas nunca sabemos que horas são, deixando a história com uma relatividade temporal.
Como indica o título, o enfoque da obra recai sobre os assassinos e não sobre o
assassinato, por isso ao fim da obra não sabemos se, após saírem do restaurante, Al e Max
conseguem, efetivamente, matar o Sueco. Assim como também continuamos sem o
conhecimento acerca do motivo que fez Ole Andreson ser marcado para morrer e o porquê de
ele permanecer na cidade e mais: quem queria ele morto. Vemos isso nos seguintes trechos:

— O que acontece — disse-lhe falando com a parede — é que não me decido a sair.
Fiquei todo o dia aqui.
— Não poderia escapar da cidade?
— Não — disse Ole Andreson — Estou farto de escapar.
(HEMINGWAY, 2012, n.p.).

— Pergunto-me o que terá feito — disse Nick.


— Deve ter traído alguém. Por isso os matam.
— Vou sair daqui. — disse Nick.
— Sim — disse George — É o melhor que pode fazer.
— Não suporto pensar nele esperando em seu quarto sabendo o que lhe vai
acontecer. É realmente horrível.
— Bom. — disse George — Melhor parar de pensar nisso
(HEMINGWAY, 2012, n.p.).

9
George e Nick, que observam toda a ação, fazem as mesmas indagações e transmitem as
mesmas frustrações que Hemingway espera de seus leitores. O autor elabora seus textos
utilizando o mínimo de materialidade possível, afastando a ideia de um princípio e de um fim,
transformando o vazio no seu próprio conteúdo: o NADA. Essa estética do NADA 16 encontra-
se presente no conto e em toda obra de Hemingway. Os questionamentos ficam em aberto,
sem solução. É no interior do NADA e do silêncio que está o momento fulcral da narrativa.

3.2 MINIMALISMO LEXICAL

Toda essa provocação que ocorre através das omissões permite ao leitor de
Hemingway ficar sem ter onde apoiar possíveis leituras, já que há poucas palavras (ou
nenhuma) que expressem as reações dos personagens (GIESELER, 2011). É possível perceber
essa característica peculiar de escrita quando o escritor estadunidense não faz uso recorrente
de adjetivos e advérbios em suas narrativas (palavras que expressam muito sobre as ações e
sentimentos dos personagens), como em Colinas como Elefantes Brancos – originalmente
Hills like White Elephants –, em que a principal fonte de análise nesse conto são os diálogos
(FEITOSA, 1996).
Em nossa análise, percebemos no conto Os Assassinos (2012), que Hemingway não se
preocupa em narrar sua história com detalhes: sua marca registrada é uma linguagem simples,
sem a escolha de palavras supérfluas ou, mais especificamente, sem o uso de adjetivos ou
advérbios que não dizem nada além do já dito, como no trecho abaixo, em que dois dos
personagens entram no restaurante e sentam-se à mesa para fazerem seus pedidos:

A porta da lanchonete Henry’s abriu-se e entraram dois homens. Sentaram ao


balcão.
– O que é que vai ser? – perguntou George.
– Não sei – disse um dos homens.
– O que é que você quer comer, Al?
– Não sei – disse Al. – Não sei o que quero comer.
Escurecia lá fora. A luz da rua entrava pela janela. Os dois homens ao balcão leram
o cardápio. Da outra extremidade do balcão, Nick Adams observava-os. Ele
conversava com George quando eles entraram.
(HEMINGWAY, 2012, n. p.).

16
Estilisticamente Hemingway adotava a aqui tratada Teoria do Iceberg, mas filosoficamente ele desenvolvia um
pensamento niilista em que a vida era Nada (e ele usava a grafia como em espanhol e não em inglês), que a vida
não tem sentido nem propósito. A sua filosofia foi desenvolvida em plenitude no pequeno conto chamado A
clean well lighted place (HEMINGWAY, 1991, p. 288)
10
Com esse recurso, ao descrever esta primeira cena, Hemingway nos transmite uma
característica única de seu estilo: a simplicidade. Sua forma concisa de escrita permite ao
leitor mergulhar por questionamentos que emergem a partir de sua narração sem muitos
pormenores ou arranjos.
Além do minimalismo na descrição das cenas, também é marcante na narrativa de
Hemingway a presença dos diálogos entre personagens, muitas vezes sarcásticos e quase
cômicos, que ocupam majoritariamente o conto – como também acontece em tantas outras
obras do autor desse mesmo gênero:

– O que está olhando? Max olhou para George.


– Nada.
– Vá pro inferno. Você estava me olhando.
– Talvez o rapaz o fez por brincadeira, Max – disse Al.
George riu.
– Você não tem que rir – disse Max. Não tem nada para rir, viu?
– Está bem. – disse George.
– E ele pensa que está tudo certo – disse Max virando-se para Al. – Ele acha que
está tudo certo. É um cara legal.
– Ora, ele é um filósofo – disse Al. Continuaram comendo.
– Qual é o nome do espertinho lá do fim do balcão? – perguntou Al para Max.
– Ei, espertinho – disse Max a Nick. Passe para o outro lado do balcão, com seu
amiguinho.
– Qual é a ideia? – perguntou Nick.
– Não há ideia nenhuma.
(HEMINGWAY, 2012, n. p.)

Tomando como base a Teoria do Iceberg, em que Hemingway deixa à cargo do leitor
a descoberta das partes submersas de seu texto, a citação acima nos revela que a análise dos
diálogos e das breves descrições de cenários e personagens deve ser suficiente para o
entendimento do conto que nos dá a impressão de que estamos “[...] lendo uma peça teatral”
(FEITOSA, 1996, p. 306).
Outro aspecto bastante presente na narrativa de Hemingway é o uso frequente de
expressões como “disse ele”, “ela disse”, “perguntou ele”, usadas “[...] sem nenhum tipo de
complemento que pudesse fazer o leitor ter certeza dos sentimentos da personagem.”
(GIESELER, 2011, p. 13, tradução nossa 17). Em Os Assassinos, Hemingway pinta de
normalidade toda a ação transcorrida no restaurante:

– O que fazem por aqui à noite? – perguntou Al.


– Eles jantam – disse o amigo. Ele vem todos aqui e comem a grande janta.
– É isso mesmo – disse George.
– Então você acha isso mesmo? – Al perguntou a George.

17
No original: [...] with no kind of complement that would allow the reader to be certain of the character’s
feelings.
11
– Claro.
– Você é um rapaz espertinho, não é?
– Claro – disse George.
– Bem, mas não é – disse o outro sujeito. – Você acha que ele é, Al?
– Ele é um bobo – disse Al. Virou-se para Nick. – Qual é o seu nome?
– Adams.
– Outro espertinho – disse Al. – Ele não é um espertinho, Max?
(HEMINGWAY, 2012, n. p., grifos nossos)

Através dessa descrição sucinta, o autor faz com que seu leitor perceba que, mesmo
envolvendo ameaças e indivíduos violentos, os demais envolvidos aceitam a situação à que
são sujeitos, como se isso fizesse parte de seu cotidiano – tanto que, em determinados
momentos, o personagem George chega a rir das atitudes dos assassinos, por não haver
surpresas frente às suas ações. Tão normal é a situação vivida pelos personagens do conto que
“a cidade quente estava cheia de gente espertinha” (HEMINGWAY, 2012 n. p.), como a
própria dupla de malfeitores fazia questão de frisar.
Além dessas expressões, também é comum percebermos na escrita do autor
estadunidense a presença de substantivos comuns – como Hemingway faz quando denomina o
rapaz da cozinha apenas como “garoto” ou “negro”, embora seu nome seja Sam – e isso se
deve ao fato de que as palavras dessa classe gramatical “[...] aproximam os fatos da história
da maneira com que eles acontecem na ‘vida real’, de maneira sutil embora efetiva,
promovendo uma aproximação maior entre o leitor e a personagem.” (GIESELER, 2011, p.
13, tradução nossa18). O uso desses recursos pode ser percebido no trecho abaixo:

Lá fora, a luz do poste brilhava entre os galhos nus de uma árvore. Nick subiu a rua
pelos trilhos dos bondes e, no poste seguinte, entrou numa rua lateral. A pensão de
Hirsch era a terceira casa da rua. Nick subiu os dois degraus e tocou a campainha.
Uma mulher veio até a porta.
– Ole Anderson está?
– Você quer vê-lo?
– Se ele estiver.
Nick seguiu a mulher por uma escadaria e até o fim de um corredor. Ela bateu à
porta.
– Quem é?
– É alguém que quer vê-lo, senhor Anderson – disse a mulher.
– É Nick Adams.
– Entre.
(HEMINGWAY, 2012, n. p.)

A partir da leitura do trecho acima, percebemos a simplicidade da escrita de


Hemingway não se limitando apenas ao seu estilo enquanto escritor, mas também presente em
sua temática, na qual aborda assuntos do cotidiano. Os temas do dia a dia são construídos em

18
No original: “[...] approximates the facts in the story to the way facts unfold in “real life”, favoring subtly but
effectively, a closer identification between reader and characters.
12
cenas habituais possibilitando a aproximação do leitor com o que foi escrito e, além disso,
aumentam ainda mais o impacto dos conflitos abordados no conto.
É interessante ressaltar que, além de todas essas características que foram percebidas
ao longo da análise de Os Assassinos (2012), outro aspecto nos chamou atenção na narrativa
de Hemingway: o uso constante de sinais de pontuação que exemplificam ainda mais a crueza
da escrita e minimalismo de detalhes presentes no referido conto, a saber: ponto final e ponto
de interrogação.

– Você conhece um sueco enorme chamado Ole Anderson?


– Sim.
– Ele vem jantar todas as noites, não vem?
– Ele vem aqui às vezes.
–Ele vem às seis horas, não vem?
– Quando vem.
– Sabemos de tudo, espertinho – disse Max. Diga mais alguma coisa. Vai alguma
vez ao cinema?
– De vez em quando.
(HEMINGWAY, 2012, n. p., grifos nossos)

Tendo isso em vista, fica aparente que o que Hemingway pretendia não era dizer algo
ao leitor, mas fazer com que, através dos fatos e ações dos personagens descritos por ele, o
seu leitor tirasse suas próprias conclusões. Dessa maneira, Hemingway faria com que aquele
que o lê “[...] pudesse traçar suas próprias conclusões, fazendo suas próprias inferências,
fazendo com que ele pensasse sobre os diálogos e sobre as poucas explicações dadas”
(GIESELER, 2011, p. 14, tradução nossa19).
Parte do minimalismo lexical de Hemingway também fazem parte as elipses, figuras
de linguagem que geralmente são usadas para omitir um termo que pode ser subentendido no
texto, sem que haja prejuízo de sentido entre as orações. Para o escritor, em sua obra a parte
visível é menos importante do que a parte oculta, fazendo com que “cada parte de uma página
que se elimina não faça se não reforçá-la e o que se conta seja a parte que não se vê”
(HEMINGWAY, 1996 apud SPALDING, 2009, p. 06).
O uso de elipse pode ser percebido nos trechos abaixo, em que: (1) caracteriza-se
como elipse verbal (omissão dos verbos “foi” e “olhava”); e (2) como elipse nominal
(omissão dos substantivos “travessas” e “prato(s)”). Vejamos:

(1) O sujeito foi atrás de Nick e Sam, o cozinheiro, até a cozinha. A porta fechou-se
atrás deles. O homem chamado Max ficou sentado ao balcão defronte George. Não

19
No original: […] he could draw his own conclusions, making his own inferences, having to think over the
dialogues and the few explanations given.
13
olhava para George, mas para o espelho atrás do balcão. (HEMINGWAY, 2012, n.
p., grifos nossos).

(2) George pôs as duas travessas, uma com presunto e ovos e outra com bacon e
ovos, sobre o balcão. Juntou dois pratos de batatas fritas e fechou o postigo da
cozinha. (...) Inclinou-se e pegou o presunto com ovos. (HEMINGWAY, 2012, n. p.,
grifos nossos).

Isso nos mostra que, em grande parte, o uso dessas figuras de linguagem nos parece ser
exatamente bem calculado, na medida em que o autor pretende realmente omitir não só
termos e palavras como também a ação de personagens (e seus sentimentos), como
exemplificado nos trechos acima, fato que caracteriza o seu estilo simples e conciso de
escrita.
Além disso, em nossa análise, verificamos a presença de períodos compostos por
coordenação (orações que não dependem sintaticamente uma da outra, mas se ligam por meio
de conjunções), mais especificamente ligados pelo conectivo “e”, como podemos perceber no
seguinte trecho:
Nick abriu a porta e entrou no quarto. Ole Anderson estava metido na cama,
completamente vestido. Ele fora um pugilista peso-pesado e era grande demais
para a cama. Tinha a cabeça apoiada em dois travesseiros. Não olhou para Nick.
- O que foi – ele perguntou.
- Eu estava no Harry’s – disse Nick – e dois sujeitos entraram, amarraram a
mim e ao cozinheiro, e disseram que iam matá-lo.
Soou absurdo quando ele disse. Ole Anderson não falou nada.
- Eles nos puseram na cozinha – continuou Nick. Eles iam atirar em você quando
entrasse para jantar.
Ole Anderson olhava para a parede e não dizia nada.
(HEMINGWAY, 2012, n. p., grifos nossos).

A escolha pertinente desse recurso demonstra que, estando ligadas por conectivos de
adição, as orações não necessitam de pausas, como aconteceria se estivessem ligadas por
vírgulas ou outros termos conectores, reforçando a ideia da simplicidade e verdade com as
quais Hemingway sempre trabalhava.
O uso desses períodos compostos por coordenação nos leva a análise de outra figura
de linguagem que pudemos verificar em nossa análise: o polissíndeto. Vejamos o seguinte
excerto:
–Ele vem jantar todas as noites, não vem?
–Ele vem aqui às vezes.
–Ele vem às seis horas, não vem?
– Quando vem.
– Sabemos de tudo, espertinho – disse Max.
(HEMINGWAY, 2012, n. p., grifos nossos)

A passagem acima nos revela o uso de uma figura de linguagem que é caracterizada
pela repetição de um determinado conectivo entre palavras ou expressões. Essa figura de

14
linguagem utiliza o excesso de termos para enfatizar a ideia de acréscimo ou de sucessão.
Tratando-se de Hemingway, em nossa análise, entendemos que o uso desse recurso implica
nos conceitos de verdade e simplicidade que o escritor costuma empregar. Dessa maneira,
para o autor de Os Assassinos, “o leitor, se o escritor está escrevendo com verdade suficiente,
terá uma sensação mais forte do que se o escritor declarasse tais coisas” (HEMINGWAY,
1996 apud SPALDING, 2009, p. 06).
Diante das análises feitas, podemos perceber como a escrita de Hemingway e a teoria
postulada por ele – definida como a principal técnica de sua escrita – se fixam em objetivos
estéticos que exigem uma disciplina rigorosa, em que se constroem secretamente através do
não dito, do subentendido. Isso se deve ao fato de que Hemingway acreditava que “as
histórias em que tudo está aparente, não são relidas da mesma maneira que as histórias em que
nem tudo está. Essas histórias são mais fáceis de entender, mas quando temos que lê-las mais
de uma vez, não conseguimos relê-las realmente” (FLORA, 1989, p. 140, tradução nossa20).
Em meio à ideia do subentendido, Hemingway permite ao seu leitor situar-se dentro da
história contada em suas obras, por meio de um intenso jogo narrativo, permeado de
insinuações em que o autor revela apenas lampejos da parte que realmente omite. Assim,
consegue uma tensão emocional que faz com que seus leitores se identifiquem com as
histórias, não só vendo o que os personagens veem, mas também sentindo o que eles sentem.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meu objetivo é colocar no papel aquilo que vejo e que sinto da mais simples e
melhor maneira (MONTAPERT, 1964, p. 27, tradução nossa21).

Emergindo da plêiade de autores fortes estadunidenses do início do sec. XX, aparece


Ernest Hemingway. Dono de uma escrita simples e enxuta, que molda o contexto de suas
narrativas pautando-se no heroísmo do ser humano quando este é valorizado diante das
adversidades, exatamente por imprimir em sua literatura parte de suas experiências de vida. A
isso também se atribui os conceitos de verdade e simplicidade tão apregoados pelo próprio
autor sobre seu estilo de escrita.
Na construção desse estilo, a linguagem utilizada pelo autor estadunidense revela-se
de suma importância. Através de omissões, adjetivos reduzidos ao mínimo e uma crueza na

20
No original: The stories where you leave it all in do not re-read like the ones where you leave it out. They
understand easier, but when you have read them once or twice you can’t re-read them.
21
No original: My aim is to put down on paper what I see and what I feel in the best and simplest way.
15
descrição de cenas cotidianas presentes em suas narrativas, a escrita de Hemingway gera no
leitor um efeito impactante justamente pelo que não é dito, pelo que fica submerso; o que o
próprio autor costumou chamar de Teoria do Iceberg.
Postulada pelo próprio Hemingway e, como visto anteriormente em nossa análise, a
Teoria do Iceberg propõe uma escrita em que os fatos flutuam sobre a água, mas a estrutura
de apoio e simbolismo operam fora de vista. Somente quando se percebe que a escrita do
autor possui essa estrutura de suporte, submersa e invisível, é possível usufruir do grande
sistema simbólico presente na obra do escritor.
Em nossa análise, observamos que Hemingway constrói sua narrativa através da
exposição de cenas e personagens comuns, realizando omissões e minimalismos de modo a
convidar o leitor para desvendar as lacunas presentes em sua escrita; mergulhando no silêncio
do autor para compreender seu estilo simples e o conteúdo de sua narrativa.

Referências

BAKER, Carlos. Hemingway: The Writer as Artist. Princeton: Princeton University Press,
1972.

BLOOM, Harold. Novelists and Novels. Philadelphia: Chelsea House Publishers, 2005.

DARZIKOLA, Shahla Sorkhabi. The Iceberg Principle and the Portrait of Common People in
Hemingway’s Works. Canadian Center of Science and Education Journal. Toronto, v. 3,
n. 3, p. 8-15, 2013.

FEITOSA, Rosane Gazolla Alves. Ernest Hemingway: o diálogo revelador. In:


ENCONTRO DE PROFESSORES DE LÍNGUAS E LITERATURAS ESTRANGEIRAS, 4.
1995, São Paulo; ENCONTRO PAULISTA DE PESQUISADORES EM TRADUÇÃO, 3.,
1995, São Paulo. Anais... São Paulo: Arte & Ciência, 1996. V.2. p. 306-308.
FLORA, Joseph M. Ernest Hemingway: a study of the short ficton. Boston: Twayne
Publishers, 1989.
GENETTE, Gérard. Fictions & Diction. Ithaca: Cornell University Press, 1993.
GIESELER, Adriana Luisa Sthamer. The American wife in the rain: a reading of the
Hemingway’s “Cat in the Rain”. 2011. 47 f. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
HEMINGWAY, Ernest. Death in the afternoon. London: Penguin, 1966.
HEMINGWAY, Ernest. A Moveable Feast. New York: Charles Scribner’s Sons, 1964.

HEMINGWAY, Ernest. Monologue to the maestro: a high seas letter [outubro de 1935].
New York: Esquire Magazine. Entrevista concedida a Maestro (Mice).

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HEMINGWAY, Ernest. Os Assassinos. Disponível em:
http://acervo.revistabula.com/posts/web-stuff/os-assassinos-de-ernest-hemingway. Acesso
em: 01 de junho de 2018.

HEMINGWAY, Ernest. The Complete Short Stories of Ernest Hemingway. New York:
Simon & Schuster Inc., 1991.

MAEKAWA, Toshihiro. Hemingway's Iceberg Theory. North Dakota Quarterly. Grand


Forks, 68.2&3, p. 37-48, 2001.
MONTAPERT, Alfred Armand. Distilled wisdom. Alhambra: Borden Publishing Company,
1964.
SPALDING, Marcelo. A mais linda é a mais preguiçosa: o silêncio eloquente de Final do
jogo, de Julio Cortázar. Nonada: Letras em Revista, Porto Alegre. Vol. 2, núm. 13. 2009.

WACHTELL, C. Did a censored female writer inspire Hamingway’s famous style? The
Conversation. New York, n. p., 2019. Disponível em: https://theconversation.com/did-a-
censored-female-writer-inspire-hemingways-famous-style-113722. Acesso em: 02 de abril de
2019.

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