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Robert
LIVROS BILÍNGUES
Inglês • Português

L. Stevenson
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No Vale
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No Vale
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Robert L. Stevenson
Herman Melville
Charles Dickens Em 1877, quando estava na França para tratar os pulmões sempre frágeis, Robert Louis
Bram Stoker Stevenson conheceu Fanny Van de Grift, uma norte-americana dez anos mais velha, com
um matrimônio tempestuoso ainda em curso e dois filhos para criar. Foi amor à primeira
Jack London vista e, quando ela quis voltar para a América, ele decidiu segui-la.
Edith Wharton Tamanha abnegação convenceu a mulher a se divorciar do marido e, em 1880, Robert e
G.K. Chesterton Fanny coroam seu sonho de amor, casando-se em São Francisco. Os recursos à disposição
Louisa M. Alcott eram muito escassos, mas os dois não quiseram renunciar à viagem de núpcias. Escolhe-
ram como destino o vale do Napa, nas redondezas, e o atravessaram por inteiro, muito fre-
H.P. Lovecraft quentemente de maneira improvisada.
Henry James Das lembranças dessa viagem nasceu, em 1884, The Silverado Squatters, do qual são aqui
David H. Lawrence apresentadas algumas partes. É evidente que tais recordações são revestidas do mito de
uma viagem de amor por tanto tempo sonhada e finalmente realizada, superando dificul-
Katherine Mansfield
dades nada pequenas.
Stephen Crane
Nestas páginas, encontra-se toda a perplexidade do escocês de boa família que, ainda jo-
Rudyard Kipling vem, depara-se com destinos diferentes dos que conheceu até então.
Robert L. Stevenson
Kate Chopin
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O. Henry Código: M3K6LA

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Robert L. Stevenson

In the Valley
No Vale
 Introdução

Coleção Folha Inglês com Clássicos da Literatura © 2018, Kontenut.

Todos os direitos reservados.

Coordenação e organização
Folha de S.Paulo | Diretoria Executiva de Circulação

No Vale

Título original Em 1877, quando estava na França para tratar os pulmões sempre
In The Valley
Uma obra de Robert L. Stevenson frágeis, Robert Louis Stevenson conheceu Fanny Van de Grift, uma
Tradução Irineu Franco Perpetuo
norte-americana dez anos mais velha, com um matrimônio tempes-
Preparação e coordenação da revisão Ana Luisa Astiz / AA Studio
tuoso ainda em curso e dois filhos para criar. Foi amor à primeira
vista e, quando ela quis voltar para a América, ele decidiu segui-la.
Revisão de notas e notas adicionais Isabella Spangler / AA Studio
O pai, que obviamente desaprovava a relação, interferiu, fechando
Revisão geral Isabela Fontanella e Juliana Caldas / AA Studio
os cordões da bolsa. Stevenson, porém, não se deu por vencido: com
Curadoria Manuel da Costa Pinto
diversos trabalhos pequenos, amealhou o dinheiro para a viagem e,
Projeto gráfico da capa, miolo e diagramação Ana Maria Romero e Ana Marques
em 1879, após violentas altercações com ele, alcançou sua Fanny em
Ilustração da capa © Weberson Santiago
Monterey, na Califórnia. Tamanha abnegação convenceu a mulher a
ISBN da coleção: 978-85-93876-63-9
ISBN do volume 23: 978-85-93876-86-8
se divorciar do marido e, em 1880, Robert e Fanny coroam seu so-
nho de amor, casando-se em São Francisco. Os recursos à disposição
DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
eram muito escassos, mas os dois não quiseram renunciar à viagem
S848n de núpcias. Escolheram como destino o vale do Napa, nas redonde-
Stevenson, Robert Louis 1850-1894.
No Vale = In The Valley / Robert L. Stevenson;
zas, e o atravessaram por inteiro, muito frequentemente de manei-
[tradução: Irineu Franco Perpetuo]. – Ed. bilíngue. – São Paulo : Folha de S.Paulo, 2018.
72 p. ; 21 cm. – (Coleção Folha. Inglês com clássicos da literatura ; v. 23) ra improvisada. Das lembranças dessa viagem nasceu, em 1884, The
Texto em português, com tradução paralela em inglês. Silverado Squatters, do qual são apresentadas aqui algumas partes. É
ISBN 978-85-93876-63-9 (coleção completa). evidente que tais recordações são revestidas do mito de uma viagem
ISBN 978-85-93876-86-8 (volume 23).
de amor por tanto tempo sonhada e finalmente realizada, superando
1. Ficção escocesa. I. Perpetuo, Irineu Franco. II. Título.
III. Título: In The Valley. IV. Série.
CDD – E823
dificuldades nada pequenas. Contudo, o olhar de Stevenson perma-
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Lioara Mandoju CRB-7 5331
nece lúcido e atento ao recolher os traços do país com o qual ele,
Impresso no Brasil por RR Donnelley
escocês de família antiga, tem em comum apenas a língua. Tudo lhe
parece novo e diferente, sobretudo na mescla inextrincável de primi-
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou
por nenhum meio, sem a permissão expressa e por escrito da Publifolha Editora Ltda. tivo e “moderníssimo”: de uma parte, florestas intocadas com índios,

3
 Introdução
serpentes com chocalhos e ursos pardos; de outra, uma rede muito
desenvolvida de telefone e telégrafo. É ali, na Califórnia, que Robert
faz o primeiro telefonema de sua vida, a um certo Foss, mítico pos-
tilhão de diligência, que continuava a transportar passageiros, sem
muita cerimônia, pelas estradas íngremes do vale do Napa, mas em
companhia de uma guarda armada, para protegê-los dos “salteadores
de estrada”, ou seja, dos bandidos que pululavam na região. A dili-
gência restava como único meio de transporte naquelas paragens,
dado que a ferrovia tivera que ser interrompida diante da extensão
insuperável do monte Santa Helena, que impedia o tráfego prove-
niente de São Francisco.
Também no encontro com o velho marinheiro sueco que, após ter
sulcado os mares do mundo inteiro, decidira comprar um lote no
vale do Napa para passar o restante de seus dias, descobrindo nele
uma floresta petrificada, por cuja visita cobrava meio dólar, há toda a
perplexidade do escocês de boa família que, ainda jovem, depara-se
com destinos diferentes dos que ele conhece: destinos nunca imagi-
nados antes ou talvez até imaginados (A Ilha do Tesouro é de 1883 e
A Flecha Negra, de 1888), mas jamais experimentados na concretude
de sua real existência.
De resto, a meta de Stevenson é mesmo esta: imaginar e perseguir
um ‘‘maravilhoso’’ fora do tempo e do espaço, para depois apresentar
seu contorno obscuro, seu rosto aterrorizante e seu modo indeci-
frável. Basta pensar em sua obra mais famosa, O Médico e o Monstro
(1886). Lá, o “maravilhoso” é oferecido pela poção extraordinária que
separa, no indivíduo, o bem do mal, dividindo tanto a alma quanto o
corpo; mas o fenômeno sobrenatural é visto como uma ameaça cada
vez mais iminente, até o desfecho, dessa vez trágico. Em A Ilha do
Tesouro, a rede cerradíssima de aventuras, confrontos e tiros que leva
à conquista do imenso tesouro do pirata Flint será por fim a origem
4 5
Introdução
dos pesadelos recorrentes e devastadores que afligirão o protagonista
Jim Hawkins e que constituirão o contrapeso permanente da des-
mesurada riqueza adquirida. Mesmo em Nos Mares do Sul, volume
de contos polinésios publicado postumamente em 1896, a oleografia
exótica com frequência cede lugar a perturbações sutis, inexplicáveis,
ou a comportamentos “exóticos”, no fundo redutíveis a um defeito
essencial, que ritos e crenças não conseguem exorcizar.
Também o conflito insanável que opõe os dois irmãos inimigos de
O Senhor de Ballantrae (1889) reverbera o tema da divisão e da atração
fatal exercida pelo mal ou, pelo menos, da facilidade desconcertante
com que o bem pode se converter em seu contrário. Stevenson talvez
só tenha entrevisto uma via de saída do grave impasse descoberto na
natureza humana no fim da vida, no incompleto Weir de Hermiston,
publicação póstuma de 1896 em que a tensão fantástica do escritor
encarna-se no patrimônio histórico dos mitos e lendas escocesas,
vistos como uma espécie de meio de salvação dos conflitos interiores
e familiares, como uma recomposição soberana e tranquila dos far-
rapos de um tecido social feito de violência, inveja e opressão. O fato
de aqui o embate ser entre pai e filho, entre um grande pai e um filho
de algum modo forçado à inaptidão, demonstra como Stevenson por
fim acolheu, em seu mundo criativo, também a dimensão psicológi-
ca (de extraordinária “visão” pré-freudiana), até então latente diante
dos “fatos” mirabolantes narrados. O grande contador de histórias, o
“Tusitala” um pouco juiz, um pouco santarrão e um pouco protetor
sobrenatural das ilhas Samoa, talvez tivesse finalmente encontrado a
fórmula mágica de uma sabedoria e compreensão superiores, capazes
de neutralizar o conflito originário e, de alguma forma, apagar o mal
originário que sempre fora seu Moloch sub-reptício e indestrutível.
 In the Valley
No Vale

© Shutterstock
 No Vale
O cenário deste pequeno livro é uma montanha alta. Há, na verdade,
muitas mais altas; há muitas de contornos mais nobres. Não é lugar de
peregrinação para o viajante global sumário; porém, para quem habita
suas encostas, o monte Santa Helena logo se torna um centro de interes-
se. É o Mont Blanc de uma parte das Montanhas Costeiras da Califór-
nia, nenhuma das vizinhas próximas chegando à metade de sua altitude.
Contempla, de cima, um campo muito verde e intrincado. Na primavera,
alimenta vários córregos murmurantes. De seu cume, tem-se uma exce-
lente lição de geografia: vendo, ao sul, a baía de São Francisco, com Ta-
malpais de um lado e monte Diablo do outro; a oeste, e a trinta milhas, o
8 9
In the Valley
The scene of this little book is on a high mountain. There are, indeed,
many higher; there are many of a nobler outline. It is no place of
pilgrimage for the summary globe-trotter;1 but to one who lives upon
its sides, Mount Saint Helena2 soon becomes a centre of interest. It is
the Mont Blanc of one section of the Californian Coast Range, none
of its near neighbours rising to one-half its altitude. It looks down on3
much green, intricate country. It feeds in the spring-time many splashing
brooks. From its summit you must have an excellent lesson of geography:
seeing, to the south, San Francisco Bay, with Tamalpais on the one hand
and Monte Diablo on the other; to the west and thirty miles away,4 the
1
globe-trotter – traduz-se por “viajante do mundo” e é uma palavra composta de globe (mundo, globo)
e trotter (de to trot, “andar” e, em um uso mais coloquial, “trotar”, no sentido de caminhar com passo
desenvolto). Globe também é o termo que geralmente designa um “mapa-múndi”.
2
Mount Saint Helena – é um monte pertencente à cadeia dos Mayacamas, nos condados californianos de
Napa, Sonoma e Lake, todos citados no texto. Outros montes da Califórnia mencionados pelo autor são
Tamalpais, Monte Diablo e Shasta. No monte Santa Helena, Stevenson e a mulher, durante a lua de mel,
pernoitaram junto a uma mina de prata abandonada.
3
it looks down on – to look down on/upon somebody é um phrasal verb que significa “olhar para alguém
de cima para baixo”, “olhar com desprezo”; no texto é, porém, empregado no sentido literal. É composto do
verbo to look, seguido do advérbio down e das preposições on ou upon.
4
thirty miles away – 30 milhas equivalem a 48 quilômetros aproximadamente.
 No Vale
mar aberto; a leste, passando pelos campos de milho e pelos densos pân-
tanos de junco do vale de Sacramento, em cuja direção a ferrovia Central
Pacific começa a subir os flancos das Sierras; e, ao norte, até onde sei, o
pico branco do monte Shasta contemplando, abaixo, o Oregon. Três con-
dados, Napa, Lake e Sonoma, estendem-se ao longo dos precipícios de
suas encostas. Seu pico descoberto fica a cerca de quatro mil e quinhentos
pés acima do mar; suas encostas são orladas de florestas; e o solo, onde é
nu, reluz com o calor do cinábrio.
A vida à sua sombra avança de modo rústico. Cervos, ursos, cascavéis
e antigas operações de mineração são a base da conversa dos homens.
A agricultura apenas começou a subir o vale. E, embora daqui a alguns
anos o distrito inteiro possa estar sorrindo com fazendas, trens passando
e sacudindo a montanha até o coração, hotéis de muitas janelas ilumi-
nando a noite como fábricas, e uma cidade próspera ocupando o lugar
da apática Calistoga; contudo, nesse meio tempo, no sopé daquela mon-
tanha, o silêncio da natureza reina, em grande medida, inquebrável, e as
pessoas da colina e do vale tratam de seus negócios calmamente, como
nos dias antediluvianos.
10
In the Valley
open ocean; eastward, across the corn-lands5 and thick tule swamps of
Sacramento Valley, to where the Central Pacific railroad begins to climb
the sides of the Sierras; and northward, for what I know, the white head
of Shasta looking down on Oregon. Three counties, Napa County, Lake
County, and Sonoma County, march across its cliffy shoulders. Its naked
peak stands nearly four thousand five hundred feet6 above the sea; its
sides are fringed with forest; and the soil, where it is bare, glows warm
with cinnabar.
Life in its shadow goes rustically forward. Bucks,7 and bears, and
rattle-snakes, and former mining operations, are the staple8 of men’s talk.
Agriculture has only begun to mount above the valley. And though in a
few years from now the whole district may be smiling with farms, passing
trains shaking the mountain to the heart, many windowed hotels lighting
up the night like factories, and a prosperous city occupying the site of
sleepy Calistoga; yet in the mean time, around the foot of that mountain
the silence of nature reigns in a great measure unbroken, and the people
of hill and valley go sauntering about their business9 as in the days before
the flood.
5
corn-lands – o termo genérico corn inclui vários tipos de cereais, como trigo, centeio, cevada, aveia, milho e
arroz. Porém, quando não especificado de outra forma, tende a indicar o tipo de cereal mais difundido na zona
da qual se está falando, razão pela qual, em grande parte da Inglaterra, corn se refere ao “trigo”, na Escócia
e na Irlanda à “aveia” e, nos Estados Unidos, ao “milho”. No inglês americano, o termo coletivo para designar
cereais como trigo, centeio, cevada e aveia é grain e não corn, que designa apenas o “milho”, chamado tam-
bém de maize (termo mais formal no inglês americano, mas genérico em outros lugares).
6
four thousand five hundred feet – um pé equivale a 30,48 centímetros, logo, 4.500 pés equivalem 1,37 qui-
lômetro aproximadamente.
7
Bucks – o substantivo buck designa o “macho” de diversos animais, entre os quais o cervo e o coelho, como
neste caso, mas também é muito usado no inglês americano coloquial no sentido de “dólar”; nesta acepção,
provavelmente deriva de greenback (literalmente “dorso verde”, devido ao fato de o verso das cédulas esta-
dunidenses ser de cor verde).
8
staple – o termo tem o significado duplo de “grampo” do grampeador (que se diz stapler) e de “alimento
base” ou “matéria-prima”, especialmente agrícola, de uma região ou de um país (rice is the staple crop in most
parts of India, o arroz é a principal cultura na maior parte da Índia); por extensão, em sentido figurado, pode
designar o assunto principal de uma conversa, como no texto.
9
go sauntering about their business – a expressão idiomática to go about one’s business significa “conti-
nuar com seus afazeres”, especialmente face a alguma mudança (despite the floods and heavy rains, people
are going about their business as if nothing had happened, apesar das enchentes e chuvas fortes, a população
continua com seus afazeres como se nada tivesse acontecido).
11
 No Vale
Para chegar ao monte Santa Helena, vindo de São Francisco, o viajan-
te tem de cruzar a baía duas vezes: primeiro, na balsa movimentada de
Oakland e, depois, após uma hora e tanto de ferrovia, do entroncamento
Vallejo até Vallejo. De lá, pega o trem mais uma vez para subir o longo e
verde vale do Napa.
Nas contrações e expansões daquele mar interno, a baía de São Francis-
co, deve haver poucos cenários mais tristes que a balsa de Vallejo. Praias
nuas e uma ilhota baixa e descoberta circundam o mar; pelos estreitos, a
maré borbulha, turva como um rio. Quando fizemos a travessia (rumo,
embora ainda não o soubéssemos, a Silverado), o barco a vapor saltava, e
as boias pretas dançavam nas ondas; a brisa do oceano soprava um frio as-
sassino; e, embora o céu mais alto ainda não estivesse manchado de vapor,
a névoa do mar fluía sobre cumes do condado de Marin, em uma nuvem
prateada, grande e disforme.
South Vallejo é uma típica cidade californiana. Era um erro; o lo-
cal revelara-se insustentável; e, embora ainda seja um lugar jovem pela
escala da Europa, já começou a ser abandonado em favor de seu vizi-
nho homônimo, North Vallejo. Um píer longo, alguns saloons, um hotel
12
In the Valley
To reach Mount Saint Helena from San Francisco, the traveller has
twice to cross the bay: once by the busy Oakland Ferry, and again, after
an hour or so of the railway, from Vallejo10 junction to Vallejo. Thence11
he takes rail once more to mount the long green strath12 of Napa Valley.
In all the contractions and expansions of that inland sea, the Bay of San
Francisco, there can be few drearier scenes than the Vallejo Ferry. Bald
shores and a low, bald islet inclose the sea; through the narrows the tide
bubbles, muddy like a river. When we made the passage (bound, although
yet we knew it not,13 for Silverado14) the steamer jumped, and the black
buoys were dancing in the jabble; the ocean breeze blew killing chill; and,
although the upper sky was still unflecked with vapour, the sea fogs were
pouring in from seaward, over the hilltops of Marin county, in one great,
shapeless, silver cloud.
South Vallejo is typical of many Californian towns. It was a blunder; the
site has proved untenable; and, although it is still such a young place by the
scale of Europe, it has already begun to be deserted for its neighbour and
namesake, North Vallejo. A long pier, a number of drinking saloons,15 a hotel
10
Vallejo – cidade que tem o nome de seu fundador, o general Mariano Guadalupe Vallejo (1807-1890) e é hoje
a maior do condado de Solano, na Califórnia. Situada na foz do rio Napa, na região da baía de São Francisco,
foi duas vezes capital do estado, ainda que por períodos muito breves.
11
Thence – advérbio arcaico, mas comum ao registro literário, que significa “a partir” de algum lugar (em
direção a outro).
12
strath – designa um vale amplo atravessado por um rio e é uma palavra tipicamente escocesa que revela
as origens do autor, como glen (vale estreito e profundo) e kirk (igreja), que se encontram mais adiante no
texto. O termo strath, uma anglicização do gaélico srath, é também empregado na formação de topônimos
como Strathclyde, ou seja, a área que compreende o vale do rio Clyde, onde se localiza a cidade de Glasgow.
13
although yet we knew it not – esta frase apresenta uma inversão típica do registro literário, não corres-
pondendo ao padrão sujeito + verbo + complemento, além de omitir o verbo auxiliar to do; no inglês padrão,
seria although we did not know it yet.
14
Silverado – trata-se de uma palavra Spanglish (Spanish + English, ou seja, quando se fundem espanhol e
inglês), criada a partir do substantivo inglês silver (prata), à semelhança do nome espanhol (ou El Dorado, a
legendária “cidade do ouro”). A região do cânion Silverado foi amplamente explorada para a extração de prata
no final do século XIX; conheceu depois um período de renascimento na década de 1940, após a descoberta
de numerosas fontes termais. A permanência do autor em Silverado é narrada no segundo conto que compõe
The Silverado Squatters.
15
drinking saloons – o termo saloon é usado também em português para designar o lugar típico dos vilarejos
da fronteira norte-americana, na época da conquista do Oeste; no inglês britânico, saloon bar designa a “sala
interna” de um local, geralmente mais cômoda e cara do que o bar simples, enquanto saloon car é um tipo de
automóvel que no inglês americano chama-se sedan.
13
 No Vale
de grandes dimensões, lagoas pantanosas onde os sapos exibem seu coa-
xar, e a total ausência, mesmo ao meio-dia, de qualquer rosto ou voz hu-
mana – essas são as marcas de South Vallejo. Contudo, havia um edifício
alto, ao lado do píer, chamado Star Flour Mills; e os navios de mar, ple-
namente equipados, ancorados próximos ao longo da costa, esperando
sua carga. Logo estariam contornando o cabo Horn, logo a farinha do
Star Flour Mills seria descarregada nas docas de Liverpool. Pois esse é,
também, um posto avançado da Inglaterra; para lá, para aquele moinho
desolado, cruzando os oceanos Atlântico e Pacífico, e contornando o gé-
lido Horn, vai aquele batalhão de navios enormes de alto-mar, com três
mastros, trazendo nada e retornando com pão.
A Frisby House, pois esse era o nome do hotel, era um lugar de reveses,
como a cidade. Agora estava entregue aos trabalhadores e parcialmente
em ruínas. No jantar, havia a oferta comum do que é chamado no Oeste
de casa de meia tigela: toalha de xadrez vermelho e branco, a praga das
moscas, galinheiros trançados acima dos pratos, a grande variedade e in-
variável vileza da comida e os homens rudes, sem casaco, devorando-a em
silêncio. Em nosso quarto, o fogão não aquecia, mas soltava fumaça; e, ao
passo que uma janela não abria, a outra não fechava. A vista dava para
um pedaço de estrada vazia, algumas casas escuras, um jumento vagando
com sua sombra em uma colina e um vislumbre do mar, com um navio
alto ancorado ao luar. Por todo o entorno daquela hospedaria desolada, os
sapos cantavam seu coro canhestro.
14
In the Valley
of a great size, marshy pools where the frogs keep up their croaking, and
even at high noon the entire absence of any human face or voice – these
are the marks of South Vallejo. Yet there was a tall building beside the
pier, labelled the Star Flour Mills; and sea-going, full-rigged ships lay close
along shore, waiting for their cargo. Soon these would be plunging round
the Horn,16 soon the flour from the Star Flour Mills would be landed on
the wharves17 of Liverpool. For that, too, is one of England’s outposts;
thither,18 to this gaunt mill, across the Atlantic and Pacific deeps and round
about the icy Horn, this crowd of great, three-masted, deep-sea ships come,
bringing nothing, and return with bread.
The Frisby House, for that was the name of the hotel, was a place of
fallen fortunes, like the town. It was now given up to labourers, and partly
ruinous. At dinner there was the ordinary display of what is called in the
west a two-bit house:19 the tablecloth checked red and white, the plague20
of flies, the wire hencoops over the dishes, the great variety and invariable
vileness of the food and the rough coatless men devouring it in silence.
In our bedroom, the stove would not burn, though it would smoke; and
while one window would not open, the other would not shut. There was a
view on a bit of empty road, a few dark houses, a donkey wandering with
its shadow on a slope, and a blink of sea, with a tall ship lying anchored in
the moonlight. All about that dreary inn frogs sang their ungainly chorus.
16
the Horn – refere-se ao cabo Horn, ponto mais meridional da América do Sul, localizado na porção da Terra
do Fogo que pertence ao Chile. Era passagem obrigatória para os navios que desejavam ir do oceano Pacífico
ao Atlântico e vice-versa, antes da abertura do canal do Panamá. Devido aos ventos fortes e ao mar agitado,
é considerado um local de navegação difícil e perigosa.
17
wharves – é uma das duas formas do plural de wharf (doca, cais). Em inglês, os substantivos que terminam
com -f ou -fe podem formar o plural de modo regular (reef/reefs, recife/recifes), irregular (leaf/leaves, folha/
folhas; thief/thieves, ladrão/ladrões) ou podem ter ambas as formas, como wharf (wharfs/wharves).
18
thither – advérbio considerado arcaico que indica movimento “na direção de algo”.
19
a two-bit house – o adjetivo two-bit, típico do registro informal e com conotação negativa, indica algo que
é pouco importante ou de pouco valor. Equivale, no português, à expressão “de meia tigela”.
20
plague – o significado mais comum é “epidemia”, “doença contagiosa”, tanto que the plague, por antono-
másia, é a “peste bubônica” (the Great Plague of London occurred during the 17th century, a grande peste de
Londres ocorreu no século XVII). Por extensão, o termo designa ainda uma “grande quantidade”, um “enxame”,
uma “invasão” ou mesmo uma “praga” de insetos ou outros animais (a plague of locusts, uma praga de gafa-
nhotos). O termo é pronunciado como play (jogo), com o acréscimo do g duro final; as duas letras ue são mudas.
15
 No Vale
Na manhã seguinte, logo cedo, escalamos a colina ao longo de uma
ponte comprida de madeira, que atravessava um lugar pantanoso após o
outro. Aqui e ali, conforme subíamos, passávamos por casas enfeitadas de
rosas brancas. Mais da baía fez-se visível, e logo o pico azul do Tamalpais
ergueu-se sobre o plano verde da ilha, do lado oposto. Isso nos dizia que
ainda estávamos pouco distantes da cidade dos Golden Gates, que já,
àquela hora, começava a despertar entre as dunas de areia. Chamava-nos
por sobre as águas com a voz de um pássaro. Seu cume imponente, azul
como safira no índigo mais tênue do céu, falava-nos de perspectivas mais
amplas, e do Pacífico reluzente. Pois Tamalpais ergue-se em sentinela,
como um farol, contemplando os Golden Gates, entre a baía e o mar
aberto, olhando para ambos com indiferença. Mesmo enquanto o fitáva-
mos e saudávamos desde Vallejo, marujos, lá longe em alto-mar, esquadri-
nhavam-no com os olhos protegidos da luz; e, como que para responder
à ideia, um dos grandes navios lá embaixo começou silenciosamente a se
vestir de velas brancas, rumo à pátria, para a Inglaterra.
Para além de Vallejo, o trem nos conduziu por pastos verdes e desco-
bertos. A oeste, as terras montanhosas e rudes de Marin bloqueavam o
oceano; no centro, em braços longos, dispersos e cintilantes, a baía desfa-
zia-se em meio ao pasto; havia poucas árvores e poucas áreas cercadas; o
sol brilhava amplamente sobre planaltos extensos, as colinas desplumadas
ressaltavam-se com clareza contra o céu. Mas, pouco a pouco, essas co-
linas começaram a se aproximar de ambos os lados, e primeiro bosques,
depois florestas começaram a revestir suas encostas; e logo estávamos
16
In the Valley
Early the next morning we mounted the hill along a wooden footway,
bridging one marish spot after another. Here and there, as we ascended,
we passed a house embowered in white roses. More of the bay became
apparent, and soon the blue peak of Tamalpais rose above the green level
of the island opposite. It told us we were still but a little way from the city
of the Golden Gates,21 already, at that hour, beginning to awake among
the sand-hills. It called to us over the waters as with the voice of a bird. Its
stately head, blue as a sapphire on the paler azure of the sky, spoke to us of
wider outlooks and the bright Pacific. For Tamalpais stands sentry, like a
lighthouse, over the Golden Gates, between the bay and the open ocean,
and looks down indifferently on both. Even as we saw and hailed it from
Vallejo, seamen, far out at sea, were scanning it with shaded eyes; and, as
if to answer to the thought, one of the great ships below began silently to
clothe herself with white sails, homeward bound22 for England.
For some way beyond Vallejo the railway led us through bald green
pastures. On the west the rough highlands of Marin shut off the ocean;
in the midst, in long, straggling, gleaming arms, the bay died out among
the grass; there were few trees and few enclosures; the sun shone wide
over open uplands, the displumed hills stood clear against the sky. But
by-and-by these hills began to draw nearer on either hand, and first
thicket and then wood began to clothe their sides; and soon we were away
21
the city of the Golden Gates – referência à cidade de São Francisco: Golden Gate (literalmente “porta áu-
rea”) é, de fato, o nome do estreito que liga a baía de São Francisco ao oceano Pacífico e recebe esse nome
por analogia com a enseada do Chifre de Ouro de Constantinopla, atual Istambul, na Turquia. A Golden Gate
Bridge, que atravessa o estreito, ligando São Francisco ao condado de Marin, foi terminada em 1937 e era
então a maior ponte suspensa do mundo.
22
bound – este adjetivo predicativo deriva de to bind (juntar, ligar) e pode ter outros significados, com base
no contexto: “destinado” (it is bound to be, é destino), “obrigado” (bound by law, obrigado por lei), “enca-
dernado”/“revestido” (a leather-bound book, um livro encadernado em couro) e, como neste caso, “dirigido”,
“com rumo a”.
17
 No Vale
distantes de todos os sinais de proximidade do mar, subindo um vale in-
terno e irrigado. Diversos carvalhos postavam-se, ora isolados, ora em
gracioso arvoredo, entre campos e vinhedos. As cidades eram compactas,
em proporções aproximadamente iguais, com casas de madeira novas e
brilhantes, e árvores silvestres grandes e crescentes; e o sino da locomotiva
soava mais festivamente naquele domingo de sol, conforme alcançávamos
uma cidade verde após outra, com os habitantes aglomerando-se vestindo
suas melhores roupas dominicais para ver os forasteiros, com o sol bri-
lhando nas casas limpas e as grandes abóbadas de folhagem murmurando
acima, na brisa.
O agradável vale do Napa é, ao norte, bloqueado por nossa montanha.
Lá, em Calistoga, a ferrovia termina, e o viajante que deseja ir além, aos
gêiseres ou às fontes de condado Lake, deve atravessar os picos da monta-
nha de diligência. Assim, o monte Santa Helena é não apenas um cume,
mas uma fronteira; e, até a época deste escrito, deteve o progresso do
cavalo de ferro.
18
In the Valley
from all signs of the sea’s neighbourhood, mounting an inland, irrigated
valley. A great variety of oaks stood, now severally, now in a becoming23
grove, among the fields and vineyards. The towns were compact, in about
equal proportions, of bright, new wooden houses and great and growing
forest trees; and the chapel bell on the engine sounded most festally that
sunny Sunday, as we drew up at one green town after another, with the
townsfolk trooping in their Sunday’s best to see the strangers, with the
sun sparkling on the clean houses, and great domes of foliage humming
overhead in the breeze.
This pleasant Napa Valley is, at its north end, blockaded by our
mountain. There, at Calistoga, the railroad ceases, and the traveller who
intends faring farther, to the Geysers24 or to the springs25 in Lake County,
must cross the spurs of the mountain by stage. Thus, Mount Saint Helena
is not only a summit, but a frontier; and, up to the time of writing, it has
stayed the progress of the iron horse. 26
23
becoming – forma em -ing do verbo to become, aqui com função de adjetivo. O significado mais comum
de to become é “tornar-se”, mas usado transitivamente quer dizer “ficar bem”, “convir”. Becoming, em re-
ferência a peça de roupa ou corte de cabelo, indica que é adequado à pessoa, que lhe cai bem e é, assim,
“gracioso”, “belo” (she wore a very becoming dress, usava um vestido que lhe caía muito bem). Em referência
a um comportamento ou a uma situação é “decoroso”, “apropriado” (this language is not becoming for a lady,
esta linguagem não é apropriada para uma dama). Seu contrário é unbecoming (inadequado, inconveniente).
24
Calistoga... the Geysers – a cidade de Calistoga, no condado de Napa, foi fundada em 1859, em seguida
à descoberta de numerosos gêiseres e fontes de águas termais nos arredores. Atualmente, Calistoga é um
importante centro termal, além de zona vinícola: hoje o vale de Napa é a região dos Estados Unidos mais re-
nomada na produção de vinhos. O termo geyser (que deriva de Geysir, nome de uma fonte termal na Islândia),
em inglês, pode ser pronunciado de dois modos: como guy + sir (geralmente a pronúncia do inglês americano)
ou como ghee + sir (pronúncia britânica).
25
springs – o substantivo spring tem muitos significados; pode querer dizer “mola” (também no sentido figu-
rado de “impulso”, “pulo”) ou “fonte de água”, como no texto. Deriva do verbo to spring, que designa o ato de
“saltar” como uma mola (to spring to one’s feet, saltar para/e ficar de pé) e o de “jorrar”, “borrifar”, também no
sentido figurado de “derivar” ou “ser a consequência de algo” (racism springs from prejudices, o racismo deri-
va dos preconceitos). Em referência à natureza e à vegetação, indica o nascimento das plantas, seu despontar
no terreno e, assim, a estação em que acontece esse fenômeno, ou seja, a “primavera”.
26
the iron horse – Iron Horse (literalmente “cavalo de ferro”) é um termo literário icônico da cultura vitoriana
para se referir à “locomotiva a vapor”, em comparação com o maquinário existente à época, puxado
por cavalos.
19
 No Vale
Capítulo I
Calistoga
É difícil para um europeu imaginar Calistoga, pois o lugar inteiro é
muito novo e com um padrão muito ocidental; ouvi dizer que o próprio
nome foi inventado em um jantar, pelo homem que descobriu as fontes.
A ferrovia e a estrada sobem o vale quase paralelas uma à outra. A rua
de Calistoga é perpendicular a ambas – uma rua larga, com casas brilhan-
tes, limpas e baixas, aqui e ali uma varanda dando para a calçada, aqui e ali
um curral de cavalos, aqui e ali o povo ocioso da cidade. Outras ruas estão
delimitadas e, quase certamente, nomeadas; pois essas cidades do Novo
Mundo começam com o firme propósito de crescerem, com Washington
e Broadway, depois Primeira e Segunda, e assim por diante, sendo auda-
ciosamente traçadas assim que a comunidade permite-se fazer um plano.
Mas, enquanto isso, toda a vida e a maior parte das casas de Calisto-
ga estão concentradas naquela rua entre a estação ferroviária e a estrada.
Nunca a ouvi ser chamada de nenhum nome, mas arriscaria o palpite de
que é Washington ou Broadway. Aqui ficam a serralheria, a farmácia, o
armazém e Kong Sam Kee, a lavanderia chinesa; aqui, provavelmente,
fica a redação do jornal local (pois o lugar tem um jornal – todos eles
20
In the Valley
Chapter I
Calistoga
It is difficult for a European to imagine Calistoga, the whole place is
so new, and of such an occidental pattern; the very name, I hear, was
invented at a supper-party by the man who found the springs.
The railroad and the highway come up the valley about parallel to
one another. The street of Calistoga joins the perpendicular to both – a
wide street, with bright, clean, low houses, here and there a verandah
over the sidewalk,27 here and there a horse-post, here and there lounging
townsfolk. Other streets are marked out, and most likely named; for
these towns in the New World begin with a firm resolve to grow larger,
Washington and Broadway, and then First and Second, and so forth,
being boldly plotted out as soon as the community indulges in a plan.
But, in the meanwhile, all the life and most of the houses of Calistoga are
concentrated upon that street between the railway station and the road. I
never heard it called by any name, but I will hazard a guess that it is either
Washington or Broadway. Here are the blacksmith’s, the chemist’s, the
general merchant’s, and Kong Sam Kee, the Chinese laundryman’s; here,
probably, is the office of the local paper (for the place has a paper – they
27
railroad... sidewalk – ambos os substantivos são típicos do inglês americano; seus correspondentes, no
inglês britânico, são railway (ferrovia) e pavement (“calçada”, que no inglês australiano diz-se footpath).
21
 No Vale
têm jornais); e aqui, com certeza, fica um dos hotéis, Cheeseborough’s,
de onde o intrépido Foss, homem caro à lenda, faz seus cavalos partirem
para os gêiseres.
Deve-se lembrar que estamos em uma terra de postilhões e salteadores:
uma terra, nesse sentido, como a Inglaterra de cem anos atrás. O ladrão
de estrada – curiosamente chamado “agente de estrada” – ainda é muito
ativo nessas partes. A fama de Vasquez ainda é recente. Apenas uns anos
atrás, a diligência de Lakeport foi roubada a uma ou duas milhas de Ca-
listoga. Em 1879, o dentista de Mendocino City, a cinquenta milhas na
costa, repentinamente livrou-se das vestes de seu ofício, como Grindoff,
em The Miller and his Men, e seguiu flamejante em seu segundo traje de
capitão de bandidos. Ao grande assalto seguiu-se uma longa perseguição,
uma perseguição de dias, senão semanas, entre as colinas intrincadas; e
à perseguição seguiu-se uma luta bastante desordenada, na qual muitos
– entre os quais, creio, o dentista – comeram poeira. A grama crescia
pela primeira vez, nutrida pelo sangue deles, quando cheguei a Calistoga.
Lembro-me de outro salteador daquele mesmo ano. ‘‘Ele não estava se
sentindo bem’’, era a defesa bem-humorada que faziam dele, ‘‘e o médico
lhe disse para tomar algo, então ele tomou a caixa-forte’’.
22
In the Valley
all have papers); and here certainly is one of the hotels, Cheeseborough’s,
whence the daring Foss,28 a man dear to legend, starts his horses for
the Geysers.
It must be remembered that we are here in a land of stage-drivers and
highwaymen: a land, in that sense, like England a hundred years ago.
The highway robber – road-agent, he is quaintly called – is still busy in
these parts. The fame of Vasquez is still young. Only a few years go, the
Lakeport stage was robbed a mile or two from Calistoga. In 1879, the
dentist of Mendocino City, fifty miles away upon the coast, suddenly
threw off the garments of his trade, like Grindoff, in The Miller and his
Men, and flamed forth in his second dress as a captain of banditti.29 A
great robbery was followed by a long chase, a chase of days if not of weeks,
among the intricate hill-country; and the chase was followed by much
desultory fighting, in which several – and the dentist, I believe, amongst
the number – bit the dust.30 The grass was springing for the first time,
nourished upon their blood, when I arrived in Calistoga. I am reminded
of another highwayman of that same year. ‘‘He had been unwell,’’ so ran
his humorous defence, ‘‘and the doctor told him to take something, so he
took the express-box.’’
28
the daring Foss – “o intrépido Foss” é o apelido de Clark Foss, talvez o mais famoso stage driver (“pos-
tilhão”, aquele que guiava as diligências) de todos os tempos. Utilizando os cavalos dos próprios estábulos,
Foss organizou, na década de 1860, o primeiro serviço de diligência da zona do gêiser e, na época, tornou-se
uma verdadeira celebridade por seu caráter indômito e, sobretudo, pela coragem com que enfrentava as es-
tradas de montanha, não apenas marcadas por precipícios e passagens perigosas, mas também infestadas
de bandidos, como o célebre Tiburcio Vásquez, citado em seguida no texto, um dos mais ativos salteadores
de diligências da época.
29
banditti – o substantivo bandit deriva do italiano “bandito” e tem o mesmo significado; a única forma
plural hoje é bandits, mas, no passado, utilizava-se também banditti, particularmente em referência a ban-
dos organizados.
30
bit the dust – a expressão to bite the dust pode ser traduzida por “morder o pó”, ou seja, “ser derrota-
do”, “morrer”. Em inglês, existem outras expressões nas quais comparece o termo dust: to throw dust in
somebody’s eyes (jogar poeira nos olhos de alguém, deixar alguém para trás), to eat somebody’s dust (comer
poeira, ser superado), to let the dust settle (deixar a poeira baixar, deixar uma situação se acalmar).
23
 No Vale
O culto do postilhão sempre floresce com mais força onde há ladrões
de estrada, onde os guardas viajam armados e a diligência é não apenas
uma ligação entre campo e cidade, e o veículo das notícias, mas traz um
leve aroma da guerra, como um homem que deve ser irmão de um sol-
dado. A Califórnia gaba-se de seus famosos postilhões, e entre os mais
famosos Foss não é esquecido. Ao longo das abomináveis estradas de
montanha sem proteção lateral, ele lança sua equipe com pouca consi-
deração pela vida humana ou pela doutrina das probabilidades. Viajantes
encolhidos, que contemplam a si mesmos bordejando a eternidade a cada
curva, olham com admiração natural para o semblante enorme, impas-
sível e corpulento de seu condutor. Tem a mesma cara do condutor da
anedota de Sam Weller, que atrapalhou o grupo de eleitores no momento
oportuno. Correm narrativas maravilhosas de sua prontidão e habilidade.
Uma em particular, sobre como um de seus cavalos caiu em um trecho
instável da estrada, e como Foss soltou as rédeas e, passando pelo animal
caído, chegou à próxima estação com apenas três. Relato isso como ouvi,
sem garantias.
24
In the Valley
The cultus31 of the stage-coachman always flourishes highest where
there are thieves on the road, and where the guard travels armed, and
the stage is not only a link between country and city, and the vehicle of
news, but has a faint warfaring aroma, like a man who should be brother
to a soldier. California boasts her famous stage-drivers, and among the
famous Foss is not forgotten. Along the unfenced, abominable mountain
roads, he launches his team with small regard to human life or the
doctrine of probabilities. Flinching travellers, who behold themselves
coasting eternity at every corner, look with natural admiration at their
driver’s huge, impassive, fleshy countenance. He has the very face32 for
the driver in Sam Weller’s anecdote,33 who upset the election party at
the required point. Wonderful tales are current of his readiness and skill.
One in particular, of how one of his horses fell at a ticklish passage of
the road, and how Foss let slip the reins,34 and, driving over the fallen
animal, arrived at the next stage with only three. This I relate as I heard
it, without guarantee.
31
cultus – trata-se de um termo obsoleto, hoje substituído por cult em todos seus significados: o de “culto
religioso” e o de “devoção” ou “admiração” por algo ou alguém; nessa segunda acepção, foi também adotado
em português, como adjetivo para se referir a objetos, obras ou produtos culturais nos quais se reconhece um
valor erudito (a cult movie, um filme cult).
32
the very face – embora seja mais frequentemente empregado como advérbio de intensidade, aqui, very é
empregado como adjetivo, qualificando um substantivo (face) e com o significado de “exato”, “próprio” (you
are the very man I wanted to speak to, você é o próprio homem com quem queria falar).
33
Sam Weller’s anecdote – Sam Weller é o nome de um personagem de The Pickwick Papers (As aventuras
do sr. Pickwick), primeiro romance de Charles Dickens e uma das obras-primas da literatura inglesa. O forte
senso de humor desse personagem tornou a obra célebre (originalmente publicada em fascículos entre 1836
e 1837), transformando-a em um verdadeiro fenômeno editorial, com cópias piratas, adaptações teatrais e
livros com coletâneas das falas de Weller. O personagem inspirou um gênero particular de humorismo, cha-
mado “wellerismo”.
34
reins – rein, frequentemente usado no plural, designa as “rédeas” dos cavalos, mas é empregado também
de forma figurada, no sentido de “controle”, “comando”, como na expressão to take up the reins of something
(tomar as rédeas de algo). Rein é homófono de outros dois substantivos: rain (chuva) e reign (reino).
25
 No Vale
Vi Foss apenas uma vez, embora, por mais estranho que pareça, tenha
falado com ele duas vezes. Ele mora fora de Calistoga, em um rancho
chamado Fossville. Certa noite, depois que ele tinha ido para casa havia
muito tempo, passei no Cheeseborough’s, e perguntaram-me se eu gos-
taria de falar com o sr. Foss. Pensando que a entrevista era impossível e
que só estavam me pedindo para endossar o sentimento geral, respondi,
audaciosamente, ‘‘sim.’’ No momento seguinte, tinha um instrumento em
minha orelha, outro na boca, e me vi, sem ninguém no mundo para con-
tar, conversando com um homem a várias milhas de distância, em meio
a colinas desoladas. Foss pôs um fim na conversa de forma rápida e algo
queixosa; voltou ao seu drinque noturno em Fossville, enquanto eu reto-
mei meu passeio pela rua principal de Calistoga. Mas era estranho que
ali, no que estamos acostumados a considerar os limites da civilização, eu
tenha usado pela primeira vez o telefone em minha carreira civilizada.
É assim nesses países jovens; telefones, telégrafos, jornais e anúncios cor-
rendo entre índios e ursos pardos.
Sozinho, do outro lado da estrada de ferro, está o Hotel Springs, com
suas casinhas anexas. O solo do vale é extremamente nivelado com os
sopés das colinas; apenas aqui e ali um outeiro, coroado de pinheiros,
26
In the Valley
I only saw Foss once, though, strange as it may sound, I have twice
talked with him. He lives out of Calistoga, at a ranche called Fossville. One
evening, after he was long gone home, I dropped into35 Cheeseborough’s,
and was asked if I should like to speak with Mr. Foss. Supposing that
the interview was impossible, and that I was merely called upon to
subscribe the general sentiment, I boldly answered ‘‘Yes.’’ Next moment,
I had one instrument at my ear, another at my mouth, and found myself,
with nothing in the world to say, conversing with a man several miles off
among desolate hills. Foss rapidly and somewhat plaintively brought the
conversation to an end; and he returned to his night’s grog 36 at Fossville,
while I strolled forth again on Calistoga high street.37 But it was an odd
thing that here, on what we are accustomed to consider the very skirts
of civilization, I should have used the telephone for the first time in
my civilized career. So it goes in these young countries; telephones, and
telegraphs, and newspapers, and advertisements running far ahead among
the Indians and the grizzly bears.
Alone, on the other side of the railway, stands the Springs Hotel, with
its attendant cottages. The floor of the valley is extremely level to the
very roots of the hills; only here and there a hillock, crowned with pines,
35
dropped into – to drop into ou to drop in é um phrasal verb que significa “visitar”, “passar em”, geralmente
sem que o encontro tenha sido marcado (he was passing by his mother’s house, so he decided to drop in,
estava passando pela casa da mãe, então resolveu entrar). To drop by e to drop round podem ser usados
com o mesmo significado.
36
grog – como em português (grogue), designa uma bebida à base de rum ou conhaque à qual se acres-
centam água quente e açúcar; em inglês, porém, esta palavra é usada também para designar genericamente
bebida alcoólica (em particular na gíria australiana e neozelandesa). O termo parece derivar do apelido de Old
Grog dado ao almirante inglês Edward Vernon devido a seus uniformes de gros-grain (“gorgorão”, em inglês
também grogram, de onde Grog deriva), que proibiu seus marinheiros de beberem rum puro.
37
high street – no inglês britânico, designa a rua principal de uma cidade, onde em geral se concentram os
estabelecimentos comerciais. Seu correspondente no inglês americano é main street que, no registro colo-
quial, pode se tornar drag ou main drag (do verbo to drag, “arrastar”).
27
 No Vale
eleva-se como a sepultura de um líder tornado famoso na guerra; e bem
diante de um desses outeiros está o Hotel Springs – está ou estava; pois
desde que estive ali o lugar foi destruído por um incêndio e se reergueu
das cinzas. Há um gramado ao redor da casa, e esse gramado, por sua vez,
é circundando por um sistema de pequenos chalés de cinco aposentos,
cada um com uma varanda e uma palmeira esguia diante da porta. Alguns
dos chalés são alugados para moradores, e estes estão cobertos de flores.
Os demais são ocupados pelos hóspedes normais do hotel; e esse é um
jeito bem agradável de se ter uma casinha de campo só para você, sem
obrigações domésticas, e por um dia ou por semana.
Toda a vizinhança do monte Santa Helena está cheia de enxofre e de
fontes ferventes. Os gêiseres são famosos; eram a grande estância de saú-
de dos índios antes da chegada dos brancos. O condado Lake é salpicado
de spas; Hot Springs e White Sulphur Springs são os nomes de duas es-
tações da ferrovia do vale do Napa; e a própria Calistoga parece repousar
em uma mera película acima de um lago subterrâneo fervente. Em uma
extremidade do terreno do hotel ficam as fontes que lhe dão o nome,
quentes o suficiente para escaldarem seriamente uma criança quando eu
estive lá. Na outra extremidade, o inquilino de um chalé cavou um poço,
e a água dali também veio fervendo. Isso mantém essa extremidade do
vale quente como uma torrada. Fui ao hotel um pouco depois das cinco
28
In the Valley
rises like the barrow of some chieftain famed in war; and right against
one of these hillocks is the Springs Hotel – is or was; for since I was there
the place has been destroyed by fire, and has risen again from its ashes.
A lawn runs about the house, and the lawn is in its turn surrounded by a
system of little five-roomed cottages, each with a verandah and a weedy
palm before the door. Some of the cottages are let to residents, and these
are wreathed in flowers. The rest are occupied by ordinary visitors to the
Hotel; and a very pleasant way this is, by which you have a little country
cottage of your own, without domestic burthens,38 and by the day or week.
The whole neighbourhood of Mount Saint Helena is full of sulphur
and of boiling springs. The Geysers are famous; they were the great health
resort of the Indians before the coming of the whites. Lake County is
dotted with spas;39 Hot Springs and White Sulphur Springs are the
names of two stations on the Napa Valley railroad; and Calistoga itself
seems to repose on a mere film above a boiling, subterranean lake. At one
end of the hotel enclosure are the springs from which it takes its name,
hot enough to scald a child seriously while I was there. At the other
end, the tenant of a cottage sank a well, and there also the water came
up boiling. It keeps this end of the valley as warm as a toast. I have gone
across to the hotel a little after five in the morning, when a sea fog from
38
burthens – burthen é a forma arcaica de burden (ônus, fardo, encargo), hoje usada apenas para designar
a “capacidade de carga” de um navio. Outros termos da língua inglesa, com o tempo, também trocaram o th
pelo d (murther/murder, homicídio).
39
spas – o substantivo spa designa uma “fonte termal” ou uma “localidade termal”, e deriva do nome de
uma cidade belga, famosa exatamente por suas fontes de propriedades terapêuticas. No inglês americano,
spa bath é uma “banheira de hidromassagem” (chamada também de jacuzzi, uma metonímia do nome da
empresa que as produz) e health spa (em inglês britânico health farm) é uma espécie de “hotel com centro
de bem-estar”, que se encontra geralmente no campo, onde se faz exercício físico e tratamentos estéticos.
29
 No Vale
da manhã, quando uma neblina marítima do Pacífico pairava, espessa e
cinza, negra e suja, e encontrei o termômetro diante de mim, e este já
marcava mais de noventa; e no estresse do dia, por vezes era quente de-
mais para se andar.
Mas, apesar do calor de cima e de baixo, cozinhando a gente de ambos
os lados, Calistoga era um lugar agradável para se morar; lindamente ver-
de, pois aquele era o momento propício do ano californiano, quando as
chuvas acabaram e o verão poeirento ainda não se estabeleceu; frequente-
mente visitada por ares frescos, ora da montanha, ora cortando Sonoma,
provenientes do mar; muito quieta, muito parada, muito silenciosa a não
ser pelas brisas e pelos badalos do gado nos campos. E havia algo de
satisfatório na visão daquela montanha grande que nos cercava ao norte:
quer estivesse vestida de luz do sol, estremecendo em seu pináculo mais
elevado com o calor e o brilho do dia; quer se pusesse a emanar vapores
ondulantes, espiral após espiral crescendo, tremendo, voando e desfazen-
do-se no azul.
30
In the Valley
the Pacific was hanging thick and gray, and dark and dirty overhead, and
found the thermometer had been up before me, and had already climbed
among the nineties;40 and in the stress of the day it was sometimes too
hot to move about.
But in spite of this heat from above and below, doing one on both
sides,41 Calistoga was a pleasant place to dwell in; beautifully green, for it
was then that favoured moment in the Californian year, when the rains
are over and the dusty summer has not yet set in; often visited by fresh
airs, now from the mountain, now across Sonoma from the sea; very quiet,
very idle, very silent but for the breezes and the cattle bells afield. And
there was something satisfactory in the sight of that great mountain that
enclosed us to the north: whether it stood, robed in sunshine, quaking to
its topmost pinnacle with the heat and brightness of the day; or whether it
set itself to weaving vapours, wisp after wisp growing, trembling, fleeting,
and fading in the blue.
40
climbed among the nineties – referência à temperatura expressa em graus Fahrenheit, escala criada
pelo físico Daniel Gabriel Fahrenheit em 1724, com base na qual a água solidifica em 32 graus e ferve em
212 graus. Foi muito usada nos países de língua inglesa, para depois ser substituída pela escala Celsius ao
longo das décadas de 1960 e 1970, embora seja ainda empregada nos Estados Unidos, ainda que não em
contextos científicos. Os 90 ºF no texto correspondem a 32,2 ºC.
41
doing one on both sides – o verbo to do tem usos variados, que seria impossível elencar de maneira
completa. Por exemplo, tem a função de auxiliar nas frases interrogativas e negativas (do you like my new
haircut?, você gosta do meu novo corte de cabelo?), é usado na construção de formas enfáticas (I do think
you’re crazy, acho mesmo que você é louco) e nas perguntas retóricas ou question tags (you know Patty, don’t
you?, você conhece Patty, não?). Quando não é auxiliar, tem geralmente o significado de “fazer”, “realizar”,
além de muitos outros, entre os quais o aqui empregado de “cozinhar” (diz-se que uma bisteca bem cozida é
well-done; se “malpassada”, é rare).
31
 No Vale
As colinas intrincadas, cheias de árvores e quase intransitadas que ro-
deiam o vale, separando-o de Sonoma a oeste e de Yolo a leste – ásperas
em seus contornos, sulcadas por torrentes de inverno, coroadas de roche-
dos e pinheiros oscilantes – eram reduzidas a satélites pelo tamanho e
imponência do monte Santa Helena. Ele as sobrepujava em dois terços
do tamanho. Dominava-as com a audácia de seu perfil. Seu grande cume
descoberto, sem árvores ou pasto, um marco de quartzo e cinábrio, rejei-
tava o parentesco com os ermos escuros e desgrenhados dos topos das
colinas menores.
32
In the Valley
The tangled, woody, and almost trackless foot-hills that enclose the
valley, shutting it off from Sonoma on the west, and from Yolo on the east
– rough as they were in outline, dug out by winter streams, crowned by
cliffy bluffs and nodding pine trees – wore dwarfed into satellites by the
bulk and bearing of Mount Saint Helena. She over-towered42 them by
two-thirds of her own stature. She excelled them by the boldness of her
profile. Her great bald summit, clear of trees and pasture, a cairn of quartz
and cinnabar, rejected kinship43 with the dark and shaggy wilderness of
lesser hill-tops.
42
over-towered – o verbo to overtower (hoje a grafia com hífen é rara) é composto pela preposição over
(sobre, acima) + tower (torre), e significa “sobrepujar”, “dominar”; é construído de modo similar a outros ver-
bos que usam over para designar algo que supera um certo nível ou que é excessivo: to overwork (trabalhar
demais), to overheat (esquentar demais) e to overspend (gastar demais).
43
kinship – substantivo que designa as relações entre membros de uma mesma família e cujo sentido pode
ser expandido para abarcar as relações entre pessoas de uma mesma comunidade ou grupo.
33
 No Vale
Capítulo II
A floresta petrificada
Partimos do Hotel Springs por volta das três da tarde. O sol aquecia-
-me até o coração. Um vento fresco e amplo baixava sem pausas pelo vale,
carregado de perfume. Bem lá em cima estava o monte Santa Helena,
uma massa montanhosa de pico descoberto, com aguilhões ornados de
árvores e irradiando calor. Em certo momento, o vimos emoldurado por
um bosque de carvalhos brancos altos e lindamente graciosos, uma com-
posição bem-acabada em linha e cor. Passamos por uma vaca estendida
no acostamento, com o sino marcando devagar o compasso do movimen-
to de suas mandíbulas ruminantes, a cara grande e vermelha onde andava
meia dúzia de moscas, um monumento de satisfação.
Um pouco adiante pegamos à esquerda, subindo uma estrada de mon-
tanha e, por duas horas, passamos por um vale atrás de outro, verdes, ema-
ranhados, cheios de maneira nobre, que nos davam de vez em quando
uma visão do monte Santa Helena e das colinas azuis ao longe, cruzados
cortados por vários córregos, por onde passamos com os degraus da dili-
gência batendo na água. À direita e à esquerda mal havia qualquer vestígio
de gente além da estrada pela qual seguíamos; penso que passamos apenas
por uma casa de rancho em todo o trajeto e estava fechada e sem fumaça.
Mas tínhamos a companhia daqueles riachos cintilantes – de uma clareza
deslumbrante, como de hábito, espirrando nas rodas como diamantes, e
proporcionando um frescor alegre através da luz do sol. E, com a variedade
34
In the Valley
Chapter II
The Petrified Forest
We drove off from the Springs Hotel about three in the afternoon. The
sun warmed me to the heart. A broad, cool wind streamed pauselessly
down the valley, laden with perfume. Up at the top stood Mount Saint
Helena, a bulk of mountain, bare atop, with tree-fringed spurs, and
radiating warmth. Once we saw it framed in a grove of tall and exquisitely
graceful white oaks, in line and colour a finished composition. We passed
a cow stretched by the roadside, her bell slowly beating time to the move-
ment of her ruminating jaws, her big red face crawled over by half a dozen
flies, a monument of content.
A little farther, and we struck to the left up a mountain road, and for
two hours threaded one valley after another, green, tangled, full of noble
timber, giving us every now and again a sight of Mount Saint Helena
and the blue hilly distance, and crossed by many streams, through which
we splashed to the carriage-step. To the right or the left, there was scarce
any trace of man but the road we followed; I think we passed but one
ranchero’s house in the whole distance, and that was closed and smokeless.
But we had the society of these bright streams – dazzlingly clear, as is
their wont,44 splashing from the wheels in diamonds, and striking a lively
coolness through the sunshine. And what with the innumerable variety
44
as is their wont – a expressão as is somebody’s wont, onde wont é um sinônimo obsoleto de habit (hábito),
pertence ao registro formal e significa “como de hábito” (Mary was late, as is her wont, Mary estava atrasada,
como de hábito).
35
 No Vale
incontável de verdes, as massas de folhagem balançando à brisa, os vis-
lumbres do panorama, as descidas em bosques aparentemente impene-
tráveis, a tortuosidade contínua da estrada que apressava-se a mergulhar
novamente em seus abrigos, tivemos uma bela sensação da floresta, da
primavera e do ar livre.
Nosso condutor a propósito deu-me uma aula sobre as árvores califor-
nianas – algo de que eu precisava muito, pois caíra entre pintores que não
sabiam o nome de nada, e mexicanos que não sabiam o nome de nada
em inglês. Ele me ensinou sobre o medronheiro, a uva-de-urso, o casta-
nheiro-da-índia, o bordo; mostrou-me a codorna de montanha, com seu
penacho; mostrou-me onde umas sequoias jovens já despontavam, rumo
aos céus, a partir das ruínas das antigas; pois, naquele distrito, tudo já ti-
nha perecido: sequoias e peles-vermelhas, as duas formas de vida indígena
mais nobres, igualmente condenadas.
Finalmente, em um vale solitário, fomos dar em um grande portão de
madeira, com uma tabuleta em cima, como em uma hospedagem. ‘‘A Flo-
resta Petrificada. Proprietário: C. Evans’’, dizia o texto. Do lado de dentro,
em uma colina relvada, ficavam a casa do proprietário e outra casa menor,
ao lado, para servir de museu, onde fotografias e petrificações estavam
expostas. Era uma ilha pura de turismo em meio àquelas colinas solitárias.
36
In the Valley
of greens, the masses of foliage tossing in the breeze, the glimpses of
distance, the descents into seemingly impenetrable thickets, the continual
dodging of the road which made haste45 to plunge again into the covert,
we had a fine sense of woods, and spring-time, and the open air.
Our driver gave me a lecture by the way on Californian trees – a thing
I was much in need of, having fallen among painters who know the name
of nothing, and Mexicans who know the name of nothing in English.
He taught me the madrona, the manzanita, the buck-eye, the maple; he
showed me the crested mountain quail; he showed me where some young
redwoods46 were already spiring heavenwards from the ruins of the old;
for in this district all had already perished: redwoods and redskins, the
two noblest indigenous living things, alike condemned.
At length, in a lonely dell, we came on a huge wooden gate with a sign
upon it like an inn. ‘‘The Petrified Forest. Proprietor: C. Evans,’’ ran the
legend. Within, on a knoll of sward, was the house of the proprietor, and
another smaller house hard by47 to serve as a museum, where photographs
and petrifactions were retailed. It was a pure little isle of touristry among
these solitary hills.
45
made haste – outra expressão do registro formal, agora datada; to make haste significa “apressar-se”; haste
é sinônimo de hurry (pressa).
46
redwoods – o termo redwood (literalmente “madeira vermelha”, devido ao espectro avermelhado do
revestimento) designa a “sequoia”, uma conífera típica da Califórnia e do Oregon; a sequoia da Califórnia (em
inglês, coast redwood) é a árvore mais alta do mundo e pode superar os 100 metros. No texto, o autor joga
com a assonância de redwoods e redskins, os “peles-vermelhas”, apontando-os como duas formas de vida
indígena condenadas a desaparecer.
47
hard by – expressão em desuso que quer dizer “perto de”, “junto a”; um sinônimo é close by. Hard designa
vizinhança ou proximidade também em outras expressões, como to be hard on the heels of something/
somebody ou to run somebody hard (seguir alguém de perto), porém, mais comumente significa “duro”,
“rígido”, “árduo”.
37
 No Vale
O proprietário era um sueco velho e corajoso, de cara branca. Tinha ido
parar lá, sabe Deus como, pego seus acres – esqueci quantos anos atrás –
completamente sozinho, dobrado pela ciática, com uns trocados no bolso
e um machado no ombro. Anos longos e inúteis de viagens marítimas
tinham-no descartado nesse estado, no final, sem um tostão e doente.
Sem dúvida, tentara a sorte nas minas, sem que nada de bom resultasse;
sem dúvida, amara a garrafa e vivera como um marinheiro em terra firme.
Mas, no fim dessas aventuras, fora parar ali; e, como o lugar o agrada-
ra, estabelecera-se ali para criar uma vida nova, distante das ondas e do
mar salgado. E a própria visão de seu rancho fizera-lhe bem. Era ‘‘o lugar
mais lindo das montanhas californianas”. ‘‘Ora, não é lindo?’’ dizia. Cada
centavo que ele ganha vai para o rancho, para deixá-lo mais lindo. Daí
o clima, com a brisa marítima de toda tarde no tempo mais quente do
verão, curou gradualmente a ciática; e sua irmã e sobrinha estavam agora
habituadas a lhe fazer companhia – ou melhor, a sobrinha veio apenas
uma vez nos dois dias, ensinando música no vale no restante do tempo.
E então, como último golpe de sorte, “o lugar mais lindo das montanhas
da Califórnia” produzira uma floresta petrificada que o sr. Evans agora
mostra pela quantia modesta de meio dólar por cabeça ou dois terços do
capital de quando ele chegou lá, com um machado e a ciática.
38
In the Valley
The proprietor was a brave old white-faced Swede. He had wandered
this way, Heaven knows how, and taken up his acres – I forget how many
years ago – all alone, bent double with sciatica, and with six bits in his
pocket48 and an axe upon his shoulder. Long, useless years of seafaring
had thus discharged him at the end, penniless and sick. Without doubt he
had tried his luck at the diggings,49 and got no good from that; without
doubt he had loved the bottle, and lived the life of Jack ashore.50 But
at the end of these adventures, here he came; and, the place hitting his
fancy, down he sat to make a new life of it, far from crimps and the
salt sea. And the very sight of his ranche had done him good. It was
‘‘the handsomest spot in the Californy mountains.’’ ‘‘Isn’t it handsome,
now?’’ he said. Every penny he makes goes into that ranche to make it
handsomer. Then the climate, with the sea-breeze every afternoon in the
hottest summer weather, had gradually cured the sciatica; and his sister
and niece were now domesticated with him for company – or, rather, the
niece came only once in the two days, teaching music the meanwhile in
the valley. And then, for a last piece of luck, ‘‘the handsomest spot in the
Californy mountains’’ had produced a petrified forest, which Mr. Evans
now shows at the modest figure of half a dollar a head, or two-thirds of
his capital when he first came there with an axe and a sciatica.
48
with six bits in his pocket – a acepção mais comum de bit é “pedaço”, “pequena quantidade”, como em
a bit of (um pouco de) ou bits and pieces ou bits and bobs, que, no inglês britânico, é um jeito de designar
“quinquilharias”, “miudezas”, objetos pequenos e de pouco valor; no uso coloquial, sobretudo no inglês ame-
ricano, bits pode designar dinheiro miúdo.
49
diggings – esse termo, frequentemente no plural, refere-se a um lugar em que são efetuadas escavações
arqueológicas ou em minas, porém, the diggings, sem especificações ulteriores, normalmente designa “as
minas”, em particular as de ouro da Califórnia e da Austrália.
50
Jack ashore – Jack é um nome próprio usado para designar genericamente um “sujeito”, um indivíduo
qualquer (por exemplo, a expressão coloquial every man jack usa-se para dizer “todos indistintamente”); por
extensão, Jack (ou Jack tar) pode também ser o apelativo confidencial de um marinheiro, como neste caso.
Como os marinheiros, em terra, têm o hábito de beber e fazer farra nas tavernas, Jack ashore (literalmente
“marinheiro em terra”) é um modo de indicar um “bêbado”.
39
 No Vale
Esse favorito tardio da sorte – mancando um pouco, penso, como se em
memória da ciática, mas sem nenhum vestígio do mar de que eu consiga
me lembrar –, completamente ruralizado da cabeça aos pés, acompanhou-
-nos na subida à colina atrás de sua casa.
– Quem foi o primeiro a encontrar a floresta? – perguntou minha esposa.
– O primeiro? Fui eu – ele disse. – Eu estava limpando o pasto para
meus animais quando encontrei isso – chutando uma sequoia grande, de
sete pés de diâmetro, que jazia de lado, o tronco oco, com pedaços de cas-
ca grudados, todos transformados em pedra cinza, com veios de quartzo
entre o que haviam sido as camadas da madeira.
– O senhor ficou surpreso?
– Surpreso? Não! Com o que deveria ficar surpreso? O que eu sabia de
petrificações, vivendo no mar? Petrificação! Essa palavra não existia no
meu vocabulário! Eu conhecia putrefação, isso sim! Eu achei que era uma
pedra; você também acharia, se estivesse limpando o pasto.
E agora ele tinha uma teoria própria, que não cheguei a entender di-
reito, à exceção de que as árvores não tinham “crescido” lá. Porém men-
cionou, com orgulho evidente, que divergia de todo o pessoal científico
que visitara o local; e soltou, com liberdade despreocupada, palavras como
“tufo” e “sílica”.
Quando mencionei que eu era da Escócia, ele disse: “Meu velho país”;
“Meu velho país”, com um olhar sorridente e um tom de afeto verdadeiro
na voz. Fiquei extremamente surpreso, pois ele era obviamente escandi-
navo, e lhe pedi que explicasse. Aparentemente, aprendera inglês e passara
quase toda sua vida de navegação em navios escoceses.
– De Glasgow – disse – ou Greenock, mas dá na mesma, todos partem
de Glasgow.
40
In the Valley
This tardy favourite of fortune – hobbling a little, I think, as if in
memory of the sciatica, but with not a trace that I can remember of the
sea – thoroughly ruralized from head to foot, proceeded to escort us up
the hill behind his house.
‘‘Who first found the forest?’’ asked my wife.
‘‘The first? I was that man,’’ said he. ‘‘I was cleaning up the pasture for
my beasts, when I found this ’’ – kicking a great redwood seven feet in
diameter, that lay there on its side, hollow heart, clinging lumps of bark,
all changed into gray stone, with veins of quartz between what had been
the layers of the wood.
‘‘Were you surprised?’’
‘‘Surprised? No! What would I be surprised about? What did I know
about petrifactions – following the sea? Petrifaction! There was no such
word in my language! I knew about putrifaction, though! I thought it was
a stone; so would you, if you was cleaning up pasture.’’
And now he had a theory of his own, which I did not quite grasp,
except that the trees had not ‘‘grewed’’ there. But he mentioned, with
evident pride, that he differed from all the scientific people who had
visited the spot; and he flung about such words as ‘‘tufa’’ and ‘‘scilica’’ with
careless freedom.
When I mentioned I was from Scotland, ‘‘My old country,’’ he said;
‘‘My old country’’ – with a smiling look and a tone of real affection in
his voice. I was mightily surprised, for he was obviously Scandinavian,
and begged him to explain. It seemed he had learned his English and
done nearly all his sailing in Scotch ships. ‘‘Out of Glasgow,’’ said he,
‘‘or Greenock;51 but that’s all the same – they all hail from Glasgow.’’
51
Greenock – cidade situada na costa meridional do estuário do rio Clyde, onde há um porto industrial. Ao
partir de Glasgow, Escócia, pelo rio Clyde, em direção ao mar, as embarcações invariavelmente passam pelo
porto de Greenock.
41
 No Vale
E ficou tão feliz por eu ser escocês e seu compatriota adotivo, que me
presenteou com uma petrificação muito bonita – creio que era a mais
bonita e portátil que ele tinha.
Aqui estava um homem que era, ao menos, sueco, escocês e americano,
reconhecendo uma lealdade benévola aos três países. O leitor não deixará
de se lembrar do circassiano escocês do sr. Wallace. Conheci e falei com
um alemão de Fifeshire, cuja combinação de sotaques abomináveis dei-
xou-me sem fala. Mas, de fato, creio que todos nós pertencemos a muitos
países. E talvez esse hábito de viajar muito, e fazer amizades dispersas,
esteja preparando a eutanásia das nações antigas.
E a floresta em si? Bem, em uma encosta emaranhada e coberta de es-
pinhos – pois, a meu ver, o pasto precisaria de um pouco mais de limpeza
– jaziam espalhados troncos petrificados de vários tamanhos, como o que
já foi mencionado. É muito estranha, é claro, e velha o suficiente, se isso
42
In the Valley
And he was so pleased with me for being a Scotsman, and his adopted
compatriot, that he made me a present of a very beautiful piece of
petrifaction – I believe the most beautiful and portable he had.
Here was a man, at least, who was a Swede, a Scot,52 and an American,
acknowledging some kind allegiance to three lands. Mr. Wallace’s
Scoto-Circassian53 will not fail to come before the reader. I have myself met
and spoken with a Fifeshire German, whose combination of abominable
accents struck me dumb.54 But, indeed, I think we all belong to many
countries. And perhaps this habit of much travel, and the engendering
of scattered friendships, may prepare the euthanasia of ancient nations.
And the forest itself ? Well, on a tangled, briery hillside – for the
pasture would bear a little further cleaning up, to my eyes – there lie
scattered thickly various lengths of petrified trunk, such as the one
already mentioned. It is very curious, of course, and ancient enough, if
52
Scotch... Scotsman... Scot – o adjetivo Scotch (escocês) é usado para designar os produtos da Escócia,
dentre os quais o “uísque” (Scotch whisky). Empregado em certa época também para as pessoas, hoje seria
tomado como ofensivo nessa acepção: para se referir aos habitantes da Escócia, usa-se o adjetivo Scottish,
enquanto o substantivo que indica um escocês é Scotsman ou Scot.
53
Mr. Wallace’s Scoto-Circassian – referência a um episódio narrado pelo estudioso e jornalista britânico
Donald Mackenzie Wallace (1841-1891) em sua obra Russia (1877): enquanto se encontrava nas cercanias de
Stávropol, deparou-se com um circassiano que se exprimia em escocês fluente, pois fora adotado e criado
por missionários provenientes da Escócia.
54
struck me dumb – to strike somebody dumb é uma expressão idiomática que significa “deixar sem pa-
lavras”, “emudecer”. O adjetivo dumb, de fato, quer dizer “mudo”, no sentido de privado de fala, ou então
“taciturno”, “silencioso”; também pode assumir a acepção de “estúpido”, “obtuso”. Por exemplo, a dumb
blonde é, segundo o estereótipo, uma mulher loira e atraente, mas de ar tolo, e to play dumb significa “fazer-se
de bobo”, “fingir não entender”.
43
 No Vale
fosse tudo. Sem dúvida, o coração do geólogo bate mais rápido ao vê-la;
porém, de minha parte, não me comovi, essencialmente. O turismo é a
arte da decepção.
Não há nada sob o céu tão azul,
Que valha completamente a viagem.
Mas, por sorte, o céu nos recompensa com muitas expectativas e aven-
turas agradáveis no caminho; e, por vezes, quando vamos ver uma floresta
petrificada, ele nos prepara uma curiosidade bem mais deliciosa, na for-
ma do sr. Evans, para quem desejo prosperidade, em uma velhice longa
e verdejante.
44
In the Valley
that were all. Doubtless, the heart of the geologist beats quicker at the
sight; but, for my part, I was mightily unmoved. Sight-seeing 55 is the art  
of disappointment.
There’s nothing under heaven so blue,
That’s fairly worth the travelling to.
But, fortunately, Heaven rewards us with many agreeable prospects and
adventures by the way; and sometimes, when we go out to see a petrified
forest, prepares a far more delightful curiosity, in the form of Mr. Evans,
whom may all prosperity attend throughout a long and green old age.
55
Sight-seeing – hoje sem hífen (sightseeing), designa a atividade turística de visitar os pontos de interesse
de um lugar (da expressão to see the sights). Como consequência, to go sightseeing corresponde a “fazer
uma visita turística”, e sightseer é o “turista”, o “visitante”. Contudo, sight não tem apenas o significado de
“atração”, “lugar de interesse”, mas também o mais genérico de “visão”, no sentido de faculdade ou atividade
de ver (short-sighted, míope; far-sighted, hipermétrope) ou de “espetáculo”, “vista” (a breathtaking sight, uma
vista de tirar o fôlego).
45
 No Vale
Capítulo III
Vinho de Napa
Eu estava interessado no vinho da Califórnia. Na verdade, sou interes-
sado em todos os vinhos e assim fui a vida inteira, do vinho de uva-passa
que um colega de escola escondia na caixa de brinquedos até minha última
descoberta, os notáveis da Valtellina, que brilharam na mesa dos césares.
Alguns de nós, bons e velhos pagãos, contemplam com tristeza as som-
bras que baixam sobre nossa época: como o verme invencível invade os
terraços ensolarados da França, Bordeaux não mais existe, o Ródano é
uma mera Arábia Pétrea. Château Neuf está morto, e eu nunca o provei;
o Hermitage – uma verdadeira ermida de todos os pesares da vida – ex-
pira junto ao rio. E, no lugar desses elixires imperiais, belos para todos os
sentidos, com cores de gemas, com aroma de flores, causadores de sonhos:
veja no cais de Cette os produtos químicos reunidos; veja o analista, em
Marselha, erguendo as mãos, em apelação, evocando o deus Lyoeus, e os
tonéis furados e os vinhos desonestos despejados no mar. Não só Pã; Baco
também está morto.
46
In the Valley
Chapter III
Napa Wine
I was interested in Californian wine. Indeed, I am interested in all wines,
and have been all my life, from the raisin wine that a schoolfellow kept
secreted in his play-box up to my last discovery, those notable Valtellines,
that once shone upon the board of Cæsar.
Some of us, kind old Pagans, watch with dread the shadows falling
on the age: how the unconquerable worm invades the sunny terraces
of France,56 and Bordeaux is no more, and the Rhone a mere Arabia
Petræa. Château Neuf is dead, and I have never tasted it; Hermitage – a
hermitage indeed from all life’s sorrows – lies expiring by the river. And
in the place of these imperial elixirs, beautiful to every sense, gemhued,
flower-scented, dream-compellers: – behold upon the quays at Cette57
the chemicals arrayed; behold the analyst at Marseilles, raising hands
in obsecration, attesting god Lyoeus, and the vats staved in, and the
dishonest wines poured forth among the sea. It is not Pan only; Bacchus,
too, is dead.58
56
how the unconquerable worm... – o worm a que se refere o autor é a “filoxera”, parasita que, a partir de
1863, infestou os vinhedos europeus, provocando uma grave crise na produção vinícola. Para superá-la,
recorreu-se ao enxerto de videiras europeias nas americanas, mas a contaminação provocou danos que
se prolongaram por cerca de 30 anos. Por esse motivo, o autor cita vinhos franceses (Bordeaux, Ródano,
Château Neuf, Hermitage), imaginando, por assim dizer, sua extinção.
57
Cette – antigo nome da cidade de Sète, importante porto francês no mar Mediterrâneo. Ao longo dos
séculos, a grafia do nome da cidade oscilou entre Cette (o que se prestava a equívocos, dado que, em
francês, cette significa “esta”) e Sète, e apenas em 1927 foi adotada definitivamente esta última.
58
Lyoeus (...) Pan (...) Bacchus – Bacchus é o equivalente romano do deus grego Dionísio, deus do vinho
e da colheita da uva. Já Lyoeus é um dos muitos epítetos de Baco. Pan se refere ao deus grego Pã, o fauno
que é deus dos campos, vales e florestas.
47
 No Vale
Se o vinho tiver que recolher sua fisionomia mais poética, o sol da toa-
lha de mesa branca, uma divindade a ser invocada por dois ou três, sem-
pre devotos, sossegando sua fala, degustando com ternura e guardando
reminiscências – pois uma garrafa de vinho bom, assim como uma boa
ação, sempre brilha em retrospecto –, se o vinho tiver que nos abando-
nar, segue o teu caminho, velho Jack! Agora começamos a ter pudores
e a olhar para as corajosas garrafas desperdiçadas em jantares em que os
convidados beberam de modo grosseiro, discutindo política e até mesmo
o escolar ‘‘provava”, como se fosse água de alcaçuz. E, ao mesmo tempo,
olhamos para a frente com timidez e uma centelha de esperança, para
onde as terras novas que, já cansadas de produzir ouro, começam a ver-
dejar com vinhedos. Um ponto bonito da história humana será decidido
pelos vinhos californianos e australianos.
O vinho na Califórnia ainda está em estágio experimental; e, ao provar
uma vindima, há questões econômicas graves envolvidas. O começo da
viticultura é como o começo da mineração de metais preciosos: o viticul-
tor também ‘‘prospecta’’. Testa-se um pedaço de terra atrás do outro, com
um tipo de uva atrás do outro. Esse é um fracasso; aquele é melhor; um
terceiro, o melhor de todos. Então, pouco a pouco, vão tateando por seu
Clos Vougeot e seu Lafite. Esses veios e pedaços de terra, mais preciosos
que os preciosos minérios, que exalam fragrâncias inimitáveis e um fogo
48
In the Valley
If wine is to withdraw its most poetic countenance, the sun of the white
dinner-cloth, a deity to be invoked by two or three, all fervent, hushing
their talk, degusting tenderly, and storing reminiscences – for a bottle of
good wine, like a good act, shines ever in the retrospect – if wine is to
desert us, go thy ways, old Jack!59 Now we begin to have compunctions,
and look back at the brave bottles squandered upon dinner-parties,
where the guests drank grossly, discussing politics the while, and even
the schoolboy ‘‘took his whack,’’60 like liquorice water. And at the same
time, we look timidly forward, with a spark of hope, to where the new
lands, already weary of producing gold, begin to green with vineyards.
A nice point in human history falls to be decided by Californian and
Australian wines.
Wine in California is still in the experimental stage; and when you
taste a vintage, grave economical questions are involved. The beginning
of vine-planting 61 is like the beginning of mining for the precious metals:
the wine-grower also ‘‘prospects.’’ One corner of land after another is tried
with one kind of grape after another. This is a failure; that is better; a third
best. So, bit by bit, they grope about for their Clos Vougeot and Lafite.
Those lodes and pockets of earth, more precious than the precious ores,
that yield inimitable fragrance and soft fire; those virtuous Bonanzas,62
59
go thy ways, old Jack – fala do personagem sir John Falstaff, presente em várias obras de Shakespeare
e conhecido por ser boêmio e fanfarrão, no segundo ato de Henrique IV. Nessa altura da peça, Falstaff,
também chamado de Jack, está cansado das intrigas e problemas do mundo e parece querer pedir licença
a si mesmo, de forma dramática, para deixar o mundo.
60
took his whack – a expressão to take a whack at something, típica do registro informal do inglês ameri-
cano, significa “tentar” ou “experimentar” algo.
61
vine-planting – o i do substantivo vine (que significa “parreira”, e então vine-planting é a “viticultura”)
pronuncia-se como em wine (vinho) e pine (pinheiro). Em compensação, o i de vineyard (vinhedo) pronun-
cia-se como em pin (alfinete) ou sin (pecado).
62
Bonanza – bonanza (geralmente minúsculo) é um substantivo de clara origem espanhola que, no inglês
americano coloquial, designa uma fonte de prosperidade e riqueza, ou uma situação de sorte que resulta em
grandes ganhos, uma “mina de ouro” (the new agreement is a real bonanza for the company, o novo acordo
é uma verdadeira mina de ouro para a firma). Justamente por isso, o pequeno afluente do rio Klondike, no
qual, em 1896, foram descobertas grandes quantidades de ouro, foi rebatizado Bonanza Creek: assim
começou a gold-rush, a “corrida do ouro”.
49
 No Vale
suave; essas preciosidades virtuosas, onde o solo sublimou-se sob o sol e
as estrelas como algo melhor, e o vinho é poesia engarrafada: estas ainda
estão por descobrir; estão ocultas pelo chaparral, recobertas pelos bos-
ques; o mineiro lasca a rocha e se aventura adiante, e o urso pardo medita,
sem ser perturbado. Elas, porém, aguardam sua hora, esperando por seu
Colombo; e a natureza cuida delas, e as prepara. O leve sabor da terra
californiana há de se demorar no palato do seu neto.
Enquanto isso, o vinho é meramente bom; o melhor que provei tinha
gosto melhor do que um Beaujolais e não era diferente. Mas o comércio é
pobre; vive da mão para a boca, investindo tudo nos experimentos, e for-
çado a vender as safras. Encontrar uma que foi devidamente envelhecida
e que traz o nome correto é ser o favorito da sorte.
Que traz o próprio nome, digo, e sublinho a alusão.
– Quer saber por que o vinho da Califórnia não é bebido nos Estados
Unidos? – disse-me um vendedor de vinhos de São Francisco, após ter me
mostrado seu negócio. – Bem, a razão está aqui.
E, abrindo um armário grande, com muitas gavetas, prosseguiu a ba-
nhar-me em uma grande variedade de selos lindamente pintados, em
azul, vermelho ou amarelo, com estampas de coroas e coroinhas, trazendo
uma profusão tão grande de clos e châteaux que um único departamento
dificilmente poderia ter produzido todos os nomes. Mas o estranho era
que nenhum deles parecia familiar.
50
In the Valley
where the soil has sublimated under sun and stars to something finer,
and the wine is bottled poetry: these still lie undiscovered; chaparral63
conceals, thicket embowers them; the miner chips the rock and wanders
farther, and the grizzly muses undisturbed. But there they bide their
hour,64 awaiting their Columbus; and nature nurses and prepares them.
The smack of Californian earth shall linger on the palate of your grandson.
Meanwhile the wine is merely a good wine; the best that I have tasted
better than a Beaujolais, and not unlike. But the trade is poor; it lives
from hand to mouth, putting its all into experiments, and forced to sell
its vintages. To find one properly matured, and bearing its own name, is
to be fortune’s favourite.
Bearing its own name, I say, and dwell upon the innuendo.65
‘‘You want to know why California wine is not drunk in the States?’’ a
San Francisco wine merchant said to me, after he had shown me through
his premises. ‘‘Well, here’s the reason.’’
And opening a large cupboard,66 fitted with many little drawers, he
proceeded to shower me all over with a great variety of gorgeously tinted
labels, blue, red, or yellow, stamped with crown or coronet, and hailing
from such a profusion of clos and châteaux, that a single department
could scarce have furnished forth the names. But it was strange that all
looked unfamiliar.
63
chaparral – palavra derivada do espanhol chaparro (nome de algumas espécies de carvalho com porte de
arbusto), que designa um tipo de vegetação similar ao maqui, presente no sudoeste da América do Norte,
onde há condições climáticas comparáveis às do Mediterrâneo.
64
bide their hour – to bide one’s hour ou, mais difundido, to bide one’s time, é uma expressão que significa
“aguardar o momento oportuno”, “esperar a oportunidade certa”. O verbo to bide é hoje considerado arcaico
e, na língua corrente, sobrevive, na prática, nesta locução.
65
innuendo – este substantivo deriva do gerúndio do verbo latino innuere e indica uma “observação” ou um
“aceno” alusivos, uma “insinuação”, geralmente desagradável; seus sinônimos podem ser insinuation e hint. O
plural pode ser formado de duas maneiras: acrescentando simplesmente -s (innuendos) ou -es (innuendoes).
Innuendo também é usado na linguagem legal para introduzir uma explicação do que foi exposto anteriormen-
te, com o mesmo significado de to wit ou that is to say (ou seja, quer dizer).
66
cupboard – designa um “armário” ou “despensa”; no inglês americano, prefere-se o termo closet para um
móvel de grandes dimensões e cabinet para um “armário pequeno”. A palavra é a união de cup (taça) e board
(tábua de madeira), mas, enquanto em cup o p é sonoro, em cupboard é mudo.
51
 No Vale
– Château X? – eu disse. – Nunca ouvi falar dele.
– Creio que não – disse ele. – Eu estava lendo um dos romances de X.
– Eram todos castelos no ar! Mas esse, com certeza, é o motivo pelo qual
o vinho da Califórnia não é bebido nos Estados Unidos.
O vale do Napa é há tempos sede da indústria de viticultura. Não co-
meçou aqui, como acontece frequentemente, nas terras baixas do vale, ao
longo do rio, mas foi de uma vez às encostas ásperas das colinas, único lu-
gar onde pode esperar prosperar. Uma inclinação ao sol e pedras forman-
do uma represa do calor do dia parecem necessárias ao solo da vinícola; a
rudeza da terra deve ser evaporada, seu âmago dissolvido e refinado dia-
riamente, por muito tempo; até que, por fim, esses torrões que se rompem
aos nossos passos, e que aos olhos parecem apenas terra comum, tornem-
-se, de verdade e para a mente perceptiva, uma obra-prima da natureza. A
poeira de Richebourg, que o vento leva embora, que apoteose da poeira!
O próprio homem não parece menos filho desse pó marrom e quebradiço
do que o sangue e o sol naquela garrafa velha, atrás daqueles feixes.
Um vinhedo californiano, um dos postos avançados do homem no ter-
ritório selvagem, tem características próprias. Não há nada ali que lembre
o Reno ou o Ródano, os baixios da côte d’or ou os desertos infames e co-
bertos de cicatrizes de Champagne; tudo, porém, é verde, solitário, velado.
Visitamos dois deles, o do sr. Schram e o do sr. M’Eckron, que comparti-
lhavam o mesmo vale.
52
In the Valley
‘‘Château X—?’’ said I. ‘‘I never heard of that.’’
‘‘I dare say not,’’ said he. ‘‘I had been reading one of X—’s novels.’’
They were all castles in Spain!67 But that sure enough is the reason why
California wine is not drunk in the States.
Napa valley has been long a seat of the wine-growing industry. It did
not here begin, as it does too often, in the low valley lands along the
river, but took at once to the rough foot-hills, where alone it can expect
to prosper. A basking inclination, and stones, to be a reservoir of the
day’s heat, seem necessary to the soil for wine; the grossness of the earth
must be evaporated, its marrow daily melted and refined for ages; until
at length these clods that break below our footing, and to the eye appear
but common earth, are truly and to the perceiving mind, a masterpiece
of nature. The dust of Richebourg, which the wind carries away, what an
apotheosis of the dust! Not man himself can seem a stranger child of that
brown, friable powder, than the blood and sun in that old flask behind
the faggots.68
A Californian vineyard, one of man’s outposts in the wilderness, has
features of its own. There is nothing here to remind you of the Rhine
or Rhone, of the low côte d’or, or the infamous and scabby deserts of
Champagne; but all is green, solitary, covert. We visited two of them, Mr.
Schram’s and Mr. M’Eckron’s, sharing the same glen.
67
castles in Spain – to build castles in Spain ou to build castles in the sky/in the air significa “fazer castelos no
ar” e parece derivar da expressão francesa análoga faire des châteaux en Espagne, de origem incerta, talvez
ligada à ideia de que construir castelos em um país estrangeiro, portanto, em algum lugar distante e, talvez,
inalcançável, seja uma espécie de quimera; outras fontes sugerem uma alusão ao Dom Quixote de Miguel de
Cervantes, cujo protagonista vive uma série de aventuras rocambolescas, viajando pela Espanha no encalço
de suas visões loucas. No texto, castles in Spain é usado como referência a nomes de fantasia, sem nenhum
fundamento real.
68
faggots – o substantivo faggot pode ter significados diversos; no texto, é usado na acepção agora obso-
leta de “feixe”, mas também pode ser um prato da cozinha inglesa (um bolo de carne, ervas aromáticas e
pão) ou, no inglês americano coloquial, um termo ofensivo para designar um homossexual (frequentemente
abreviado fag).
53
 No Vale
Descendo um pouco o vale, abaixo de Calistoga, viramos abruptamente
para o sul e mergulhamos na mata cerrada. Uma trilha rude, subindo
rapidamente; um pequeno riacho, cintilando de um lado, que talvez fosse
grande depois da chuva, mas cuja vida já estava se extinguindo; no alto
e de todos os lados, uma área sombreada de mata verde e emaranhada,
ainda fragrante e enfeitada de flores da estação precoce, onde a framboesa
desempenhava o papel do espinheiro-branco na Inglaterra, e os casta-
nheiros-da-índia davam suas flores, como chifres retorcidos: atravessando
tudo isso, lutamos penosamente para subir, inclinados para um lado e para
o outro pela rudeza da trilha, e com os rostos continuamente chicoteados
por ramos de folhas ou flores. Essas últimas não são muito inconvenientes
na pátria; mas aqui, na Califórnia, são questão de alguma importância.
Pois em todos os bosques e a cada beira de estrada prospera um arbusto
ou erva abominável, chamado carvalho venenoso, cuja mera proximidade
é venenosa para alguns, e cujo toque é evitado até pelos mais insensíveis.
As duas casas, com seus vinhedos, estavam cada uma em um grande
nicho próprio, nesse vale de floresta escarpado e estreito. Embora esti-
vessem bem próximas, havia uma boa diferença de nível; e a cabeça da
propriedade do sr. M’Eckron devia estar bem abaixo dos pés da do sr.
Schram. Não tinham limpado mais do que o necessário para o cultivo;
o bosque emaranhado cercava bem de perto cada um dos oásis; o vale
circundava-os; lá se reclinavam ao sol e ao silêncio, escondidos de tudo,
menos das nuvens e pássaros da montanha.
O estabelecimento do sr. M’Eckron é de solteiro; uma pequena casa de
madeira, uma pequena adega perto da encosta e um trecho de parreiras
plantadas e cuidadas sem ajuda por ele mesmo. Começara recentemente;
54
In the Valley
Some way down the valley below Calistoga, we turned sharply to
the south and plunged into the thick of the wood. A rude trail rapidly
mounting; a little stream tinkling by on the one hand, big enough perhaps
after the rains, but already yielding up its life; overhead and on all sides
a bower of green and tangled thicket, still fragrant and still flower-be-
spangled by the early season, where thimble-berry played the part of our
English hawthorn, and the buck-eyes were putting forth their twisted
horns of blossom: through all this, we struggled toughly upwards, canted
to and fro69 by the roughness of the trail, and continually switched across
the face by sprays70 of leaf or blossom. The last is no great inconvenience
at home; but here in California it is a matter of some moment.71 For in all
woods and by every wayside there prospers an abominable shrub or weed,
called poison-oak, whose very neighbourhood is venomous to some, and
whose actual touch is avoided by the most impervious.
The two houses, with their vineyards, stood each in a green niche of its
own in this steep and narrow forest dell. Though they were so near, there
was already a good difference in level; and Mr. M’Eckron’s head must
be a long way under the feet of Mr. Schram. No more had been cleared
than was necessary for cultivation; close around each oasis ran the tangled
wood; the glen enfolds them; there they lie basking in sun and silence,
concealed from all but the clouds and the mountain birds.
Mr. M’Eckron’s is a bachelor establishment; a little bit of a wooden
house, a small cellar hard by in the hillside, and a patch of vines planted
and tended single-handed by himself. He had but recently begun;
69
to and fro – o advérbio to and fro designa o movimento rítmico e repetitivo em direções opostas, “de um
lado para o outro”, “para lá e para cá”.
70
sprays – o substantivo spray, além do significado de “spray aerossol” (usado também em português) e de
“jorro”, pode significar, como no texto, “ramo” ou “galho” (nesta acepção, seus sinônimos podem ser sprig
e twig).
71
a matter of some moment – o substantivo moment, além da acepção literal de “momento” ou “ocasião”,
também pode significar, no registro formal, “importância” (this was a decision of great moment, era uma de-
cisão de grande importância).
55
 No Vale
suas parreiras eram jovens, seu negócio também; mas achei que ele tinha a
aparência de um homem de sucesso. Era proveniente de Greenock: lem-
brava-se de seu pai colocando-o na Mons Meg, e isso me deixou com
saudades de casa; e trocamos uma ou duas palavras em escocês, o que me
agradou mais do que você imagina.
Por outro lado, o sr. Schram tem a vinícola mais antiga do vale, creio que
com dezoito anos de idade; contudo, começara como um barbeiro sem
dinheiro, e, mesmo após abrir caminho aqui com suas malvasias negras,
continuou, por muito tempo, a vagar pelo vale com sua navalha. Agora,
sua propriedade é o retrato da prosperidade; pássaros empalhados na va-
randa, adegas escavadas fundo na encosta, apoiadas em pilares como um
esconderijo de bandidos: tudo arrumado, envernizado, florido e banhado
pela luz do sol em meio à mata selvagem e emaranhada. A corpulenta e
sorridente sra. Schram, que por prazer estivera na Europa e, aparentemen-
te, em todos os Estados Unidos, entretinha Fanny na varanda, enquanto
eu provava vinhos na adega. Para o sr. Schram, esse era um ofício solene;
seu prazer sério aquecia-me o coração; a prosperidade ainda não tinha
banido por inteiro uma certa trepidação neófita, de menina, e ele acompa-
nhava cada gole e lia meu rosto com uma ansiedade orgulhosa. Provei de
tudo. Provei cada variedade e matiz de Schramberger, Schramberger tinto
e branco, Schramberger Borgonha, Schramberger Hock, Schramberger
Golden Chasselas, o último com um buquê notável, e temo em pensar
quantos mais. Muitos deles vão para Londres – penso que a maioria; e o
sr. Schram tem muita noção do gosto inglês.
56
In the Valley
his vines were young, his business young also; but I thought he had the
look of the man who succeeds. He hailed from Greenock: he remembered
his father putting him inside Mons Meg,72 and that touched me home;
and we exchanged a word or two of Scotch, which pleased me more than
you would fancy.
Mr. Schram’s, on the other hand, is the oldest vineyard in the valley,
eighteen years old, I think; yet he began a penniless barber, and even after
he had broken ground up here with his black malvoisies, continued for
long to tramp the valley with his razor. Now, his place is the picture of
prosperity: stuffed birds in the verandah, cellars far dug into the hillside,
and resting on pillars like a bandit’s cave: – all trimness, varnish, flowers,
and sunshine, among the tangled wildwood. Stout, smiling Mrs. Schram,
who has been to Europe and apparently all about the States for pleasure,
entertained Fanny73 in the verandah, while I was tasting wines in the
cellar. To Mr. Schram this was a solemn office; his serious gusto74 warmed
my heart; prosperity had not yet wholly banished a certain neophite and
girlish trepidation, and he followed every sip and read my face with proud
anxiety. I tasted all. I tasted every variety and shade of Schramberger, red
and white Schramberger, Burgundy Schramberger, Schramberger Hock,
Schramberger Golden Chasselas, the latter with a notable bouquet, and I
fear to think how many more. Much of it goes to London – most, I think;
and Mr. Schram has a great notion of the English taste.
72
Mons Meg – é o nome de uma grande e célebre bombarda do século XV, conservada no castelo de Edim-
burgo. Foi utilizada em batalha pouquíssimas vezes, pois seu peso imenso (seis toneladas) tornava o trans-
porte difícil; no século XVI, foi colocada no castelo e usada para dar salvas em celebrações de matrimônios
e aniversários reais.
73
Fanny – trata-se de Fanny Van de Grift (1840-1914), que Stevenson conheceu em Paris em 1876. A família
do escritor opôs-se à relação, pois ela já era casada, mas Stevenson encontrou-a na Califórnia e, por fim,
casaram-se, em São Francisco, em 1880. Da narrativa de sua viagem de núpcias nascerá The Silverado
Squatters (1883), de onde foi extraído o conto aqui apresentado.
74
gusto – este substantivo é um falso cognato parcial; tem claramente a mesma origem da palavra portu-
guesa, mas indica o “gosto” no sentido de prazer ou satisfação (with gusto, com gosto/entusiasmo). Para
“gosto” como um dos cinco sentidos diz-se taste, enquanto o “gosto” como sabor é flavour (which flavour of
ice-cream would you like?, que sabor de sorvete gostaria?); a variante americana é flavor.
57
 No Vale
Naquele local selvagem eu não sentia a sacralidade dos cultivos antigos.
Ainda era cru, não era nenhuma Maratona ou Johannisberg; porém o sol
estimulante, as vinhas crescendo, os tonéis e garrafas na caverna tocavam
uma música agradável para a mente. Aqui, também, o creme da terra esta-
va sendo desnatado e acumulado; e os clientes de Londres podem provar,
assim como é, o sabor da terra nesse vale verde. Um vinho é algo tão local,
tão quintessencial, que aparentemente os próprios pássaros da varanda
podem comunicar um sabor, e aquela adega romântica influenciar a gar-
rafa prestes a ser desarrolhada em Pimlico, e o sorriso do alegre sr. Schram
envolver os copos.
Mas isso são somente experimentos. Tudo, nesse país novo, está se mo-
vendo para a frente: os tonéis de vinho e os explosivos dos mineiros repou-
sam apenas por uma noite, como pavilhões de beduínos; e, amanhã, rumo
a novas florestas! Essa agitação de mudança e esses ecos perpétuos dos
passos a se moverem assombram a terra. Os homens se deslocam eterna-
mente, sempre perseguindo o destino; uma vez encontrada a sorte, seguem
a vagar. Quando regressávamos a Calistoga, a estrada estava despida de
meros passageiros, mas sua borda verde estava pontilhada dos acampa-
mentos das famílias que viajavam: uma, com uma grande carroça atulhada
de apetrechos domésticos, era de colonos que ocupariam um rancho em
Mendocino ou talvez no condado Tehama; outra, de um grupo em casacos
empoeirados, homens e mulheres, que encontramos acampados em um
bosque junto à estrada, todos com ânimo prazeroso, com um chinês para
cozinhar para eles, acenando para nós quando passamos ao largo.
58
In the Valley
In this wild spot, I did not feel the sacredness of ancient cultivation. It
was still raw, it was no Marathon, and no Johannisberg; yet the stirring
sunlight, and the growing vines, and the vats and bottles in the cavern,
made a pleasant music for the mind. Here, also, earth’s cream was being
skimmed and garnered; and the London customers can taste, such as it
is, the tang of the earth in this green valley. So local, so quintessential is a
wine, that it seems the very birds in the verandah might communicate a
flavour, and that romantic cellar influence the bottle next to be uncorked
in Pimlico, and the smile of jolly Mr. Schram might mantle in the glass.
But these are but experiments.75 All things in this new land are moving
farther on: the wine-vats and the miner’s blasting tools but picket for a
night, like Bedouin pavillions; and to-morrow, to fresh woods! This stir of
change and these perpetual echoes of the moving footfall, haunt the land.
Men move eternally, still chasing Fortune; and, fortune found, still wander.
As we drove back to Calistoga, the road lay empty of mere passengers,
but its green side was dotted with the camps of travelling families: one
cumbered with a great waggonful of household stuff, settlers going to
occupy a ranche they had taken up in Mendocino, or perhaps Tehama
County; another, a party in dust coats, men and women, whom we found
camped in a grove on the roadside, all on pleasure bent, with a Chinaman
to cook for them, and who waved their hands to us as we drove by.
75
But these are but experiments – esta frase exemplifica bem as duas principais funções de but. Na primeira
ocorrência, but é uma conjunção com valor adversativo, traduzindo-se então como “mas”; no segundo caso,
é uma preposição com valor limitativo (como only ou just) e pode ser traduzido por “só”, “nada além de”.
Pouco adiante, but é empregado novamente com valor limitativo (but picket for a night). De acordo com os
contextos e construções, a tradução de but em sentido limitativo pode variar: he greeted everybody but me
(cumprimentou todo mundo, menos eu), she drinks nothing but red wine (ela só bebe vinho tinto), if we had but
known, we would have never accepted (se soubéssemos, jamais teríamos aceitado).
59
 No Vale
Capítulo IV
O escocês no exterior
Algumas páginas atrás, escrevi que um homem pertence, nos dias de
hoje, a uma variedade de países; mas sua velha terra ainda é o amor ver-
dadeiro, e as outras não passam de infidelidades agradáveis. A Escócia é
indefinível; não tem unidade, a não ser no mapa. Duas línguas, muitos
dialetos, inúmeras formas de devoção e incontáveis patriotismos e pre-
conceitos locais separam-nos mais amplamente que os extremos leste e
oeste desse grande continente da América. Quando estou em casa, sinto
que um homem de Glasgow é algo como um rival, um homem de Barra,
pouco mais do que meio estrangeiro. Encontremo-nos, porém, em um
país distante e sejamos provenientes das encostas de Manor ou das en-
costas de Mar, um afeto pronto nos une instantaneamente. Isso não é
60
In the Valley
Chapter IV
The Scot Abroad76
A few pages back, I wrote that a man belonged, in these days, to a
variety of countries; but the old land is still the true love, the others are but
pleasant infidelities. Scotland is indefinable; it has no unity except upon
the map. Two languages, many dialects,77 innumerable forms of piety, and
countless local patriotisms and prejudices, part us among ourselves more
widely than the extreme east and west of that great continent of America.
When I am at home, I feel a man from Glasgow to be something like a
rival, a man from Barra to be more than half a foreigner. Yet let us meet
in some far country, and, whether we hail from the braes of Manor or the
braes of Mar, some ready-made affection joins us on the instant. It is not
76
The Scot Abroad – o título deste capítulo traz à mente o de uma célebre obra de Mark Twain, The Innocents
Abroad (Os inocentes no exterior, de 1869), sátira do turista americano. Neste caso, o autor volta a ironia em
sua própria direção, visto que o protagonista, o Scot (escocês), é ele.
77
Two languages, many dialects – esta frase se refere ao complexo panorama linguístico da Escócia, subdi-
vidido principalmente em duas famílias de línguas, as germânicas (anglo-saxônicas) e as celtas. Atualmente,
a maior parte da população fala inglês (ou melhor, Scottish English, termo guarda-chuva para as variantes do
inglês faladas na Escócia), que é também a língua oficial, mas são igualmente reconhecidos o Scottish Gaelic
e o Scots. O Scottish Gaelic (gaélico escocês) é uma língua celta falada nas Highlands ocidentais e nas ilhas
Hébridas, enquanto o Scots (escocês) é uma língua germânica como o inglês (em alguns aspectos similar
a este, porém, no geral, distinta), difundida especialmente nas Lowlands, e, por isso, também chamada de
Lowland Scots. O Scottish Gaelic e o Scots subdividem-se, por sua vez, em numerosos dialetos.
61
 No Vale
raça. Olhe para nós. Um é nórdico, outro celta, outro saxão. Não é co-
munidade de língua. Não a temos entre nós; e a temos, quase perfeita,
com ingleses, irlandeses ou americanos. Não é laço de fé, pois detesta-
mos os erros uns dos outros. E, contudo, em algum lugar, bem no fundo
do coração de cada um de nós, algo anseia pela velha terra e pelo velho
povo gentil.
De todos os mistérios do coração humano, esse talvez seja o mais ines-
crutável. Não há encanto especial naquele país cinzento, com seu arqui-
pélago chuvoso, castigado pelo mar; seus campos de montanhas escuras;
seus lugares de má aparência, negros de carvão; seus campos de cereal sem
árvores, acres, inamistosos; sua cidade excêntrica, cinza, com um castelo,
onde os sinos batem aos domingos, e o vento ruge, e chuvas de sal voam e
golpeiam. Não sei nem se quero viver lá; mas basta-me ouvir, em alguma
terra distante, uma voz familiar cantando “Oh, por que deixei meu lar?”
e tenho imediatamente a impressão de que nenhuma beleza sob o céu
gentil e nenhuma companhia de sábios e bons pode compensar a ausên-
cia de meu país. E, embora ache que preferiria morrer em outro lugar, no
62
In the Valley
race. Look at us. One is Norse, one Celtic, and another Saxon. It is not
community of tongue. We have it not among ourselves; and we have it
almost to perfection, with English, or Irish, or American. It is no tie of
faith, for we detest each other’s errors. And yet somewhere, deep down
in the heart of each one of us, something yearns for the old land, and the
old kindly78 people.
Of all mysteries of the human heart, this is perhaps the most inscrutable.
There is no special loveliness in that gray country, with its rainy, sea-beat
archipelago; its fields of dark mountains; its unsightly places, black with
coal; its treeless, sour, unfriendly looking corn-lands; its quaint, gray,
castled city, where the bells clash of a Sunday,79 and the wind squalls, and
the salt showers fly and beat. I do not even know if I desire to live there;
but let me hear, in some far land, a kindred voice sing out, ‘‘Oh, why left I
my hame?’’80 and it seems at once as if no beauty under the kind heavens,
and no society of the wise and good, can repay me for my absence
from my country. And though I think I would rather die elsewhere, yet
78
kindly – este termo não é apenas um advérbio derivado de kind (gentil), mas também, como aqui, um
adjetivo datado, com um significado ligeiramente diverso: define o comportamento de uma pessoa gentil que,
além disso, mostra-se atenciosa para com os outros. Pode também ser usado em referência às condições
atmosféricas, na acepção de “agradável” e “ameno” (a kindly climate, um clima ameno).
79
of a Sunday – a preposição of, geralmente equivalente ao português “de” no significado e no uso, tem aqui
um valor temporal, e exprime o conceito de “cada”; tal acepção continua, embora um pouco em desuso, em
expressões do inglês britânico, como of an evening (de tarde, à tarde), of a weekend (no fim de semana, a
cada fim de semana). Outro uso particular de of é o do inglês americano informal, nas frases que exprimem
indicação de horário: a quarter of seven, “quinze para as sete” (a quarter to seven, no inglês britânico). Em
algumas construções, of assume o significado de “da parte de” (it was very kind of him, foi muito gentil da
parte dele).
80
Oh, why left I my hame? – o autor cita aqui o verso de uma canção popular escocesa do século XIX inti-
tulada The Exile’s Song (“A Canção do Exílio”), de Robert Gilfillan. A notar a construção da frase interrogativa
sem o auxiliar (why left I em vez de why did I leave), e o uso do termo hame, que é o equivalente Scots de
home (casa).
63
 No Vale
fundo do coração anseio por ser enterrado nos bons torrões de terra da
Escócia. Direi com honestidade, pois isso cresce em mim a cada ano: não
há estrelas tão belas quanto as lâmpadas de rua de Edimburgo. Quando
me esquecer de ti, velha Esfumaçada, que minha mão direita se esqueça
de suas habilidades!
A sorte mais feliz na Terra é nascer escocês. Você deve pagar por ela
de muitas maneiras, assim como por todas as outras vantagens terrenas.
Você tem que aprender as paráfrases e o catecismo abreviado; geralmente
se vicia em beber; sua juventude, até onde pude descobrir, é uma época de
guerra ruidosa contra a sociedade, de mais gritaria, lágrimas e agitação de
que se você tivesse nascido, por exemplo, na Inglaterra. Porém, de algum
modo, a vida é mais cálida e mais próxima; a lareira tem um fogo mais
vermelho; as luzes do lar brilham com mais suavidade na rua chuvosa; os
próprios nomes, cativados em verso e música, apegam-se com mais firme-
za a nossos corações. Um inglês pode encontrar outro inglês amanhã em
Chimborazo, sem que nenhum deles se importe; mas, quando o viticultor
escocês me falou de Mons Meg, foi como mágica.
64
In the Valley
in my heart of hearts I long to be buried among good Scots clods. I will
say it fairly, it grows on me with every year: there are no stars so lovely as
Edinburgh street-lamps. When I forget thee, auld Reekie,81 may my right
hand forget its cunning!
The happiest lot82 on earth is to be born a Scotchman. You must pay for
it in many ways, as for all other advantages on earth. You have to learn the
paraphrases and the shorter catechism; you generally take to drink;83 your
youth, as far as I can find out, is a time of louder war against society, of
more outcry and tears and turmoil, than if you had been born, for instance,
in England. But somehow life is warmer and closer; the hearth burns
more redly; the lights of home shine softer on the rainy street; the very
names, endeared in verse and music, cling nearer round our hearts. An
Englishman may meet an Englishman tomorrow, upon Chimborazo,84
and neither of them care; but when the Scotch wine-grower told me of
Mons Meg, it was like magic.
81
auld Reekie – tradicional apelido dado à cidade de Edimburgo, capital da Escócia, em que auld é a forma
dialetal escocesa de old (velho ou velha), enquanto reekie significa “enfumaçado”.
82
lot – o significado mais comum de lot, geralmente coloquial, é “grande quantidade”, em expressões
como a lot of (muitos) ou “tudo”/“todos”, em locuções como the lot/the whole lot (I don’t need these clothes
anymore, please take the whole lot, não preciso mais dessas roupas, por favor, leve todas). Sempre informal
é a acepção de “grupo” (it’s late, hurry up, you lot!, é tarde, vamos logo, gente!), enquanto, especialmente no
inglês americano, lot pode designar um “lote”, um “terreno” (a parking lot, um estacionamento). No texto, é
usada em acepção ulterior (aparentemente distante das precedentes, embora a origem seja a mesma), a de
“sorte”, “destino”.
83
take to drink – to take to (seguido de um substantivo ou da forma terminada em -ing) pode designar a ação
de adquirir o hábito ou vício de fazer algo. Então to take to drink/drinking significa “entregar-se à bebida”,
“adquirir o vício de beber”.
84
Chimborazo – vulcão inativo do Equador (com 6.268 metros de altitude).
65
 No Vale
Da cabana escura na ilha brumosa
Montanhas nos separam, e um mundo de mares;
Porém, nossos corações são fiéis, nossos corações são das Highlands,
E nós, em sonhos, contemplamos as Hébridas.
Seja Highland ou Lowland, todos os nossos corações são escoceses.
Apenas poucos dias após ter visto M’Eckron, uma mensagem chegou
a mim, no meu chalé. Era de um escocês que percorrera um longo ca-
minho, vindo das colinas para fazer negócio. Ouvira dizer que havia um
conterrâneo em Calistoga e viera ao hotel para vê-lo. Dissemos poucas
palavras um ao outro; não tínhamos muito a dizer – jamais teríamos nos
visto se tivéssemos ficado na pátria, separados tanto no espaço quanto em
sociedade; então apertamos as mãos, e ele voltou a seu rancho entre as
colinas, e aquilo foi tudo.
Havia outro escocês, um residente que, por puro amor pelo país em
comum, um homem sóbrio, sério, religioso, guiou-me por todo o vale,
interessando-se por mim tanto quanto se fosse seu filho: mais, talvez;
pois o filho tem falhas que são sentidas com muita agudeza, enquanto o
conterrâneo abstrato é perfeito – como uma baforada de turfa.
E ainda havia mais um. Deparei-me com este de repente, quando ele
adentrava calmamente meu chalé com a intenção evidente de pilhagem:
um homem de cerca de cinquenta anos, imundo, maltrapilho, desonesto,
com chapéu de chaminé e casaca e a boca franzida de um jeito que faria
inveja a um pastor de igreja. Tinha exatamente o tipo de cara que eu vira
dúzias de vezes atrás da bandeja.
– Olá, senhor! – gritei. – Aonde vai?
66
In the Valley
From the dim shieling on the misty island
Mountains divide us, and a world of seas;
Yet still our hearts are true, our hearts are Highland,
And we, in dreams, behold the Hebrides.
And, Highland and Lowland,85 all our hearts are Scotch.
Only a few days after I had seen M’Eckron, a message reached me in
my cottage. It was a Scotchman who had come down a long way from the
hills to market. He had heard there was a countryman in Calistoga, and
came round to the hotel to see him. We said a few words to each other; we
had not much to say – should never have seen each other had we stayed at
home, separated alike in space and in society; and then we shook hands,
and he went his way again to his ranche among the hills, and that was all.
Another Scotchman there was, a resident, who for the mere love of
the common country, douce, serious, religious man, drove me all about
the valley, and took as much interest in me as if I had been his son:
more, perhaps; for the son has faults too keenly felt, while the abstract
countryman is perfect – like a whiff of peats.
And there was yet another. Upon him I came suddenly, as he was
calmly entering my cottage, his mind quite evidently bent on plunder: a
man of about fifty, filthy, ragged, roguish, with a chimney-pot hat and a
tail coat, and a pursing of his mouth that might have been envied by an
elder of the kirk.86 He had just such a face as I have seen a dozen times
behind the plate.
‘‘Hullo, sir!’’ I cried. ‘‘Where are you going?’’
85
Highland and Lowland – nomes geográficos hoje escritos predominantemente no plural. As Highlands
(literalmente “terras altas”) são a região da Escócia setentrional formada de numerosas cadeias montanhosas
de grande beleza. As Lowlands (literalmente “terras baixas”) compõem a parte central e sul do país, a mais
populosa, onde estão as cidades de Edimburgo e Glasgow. As Highlands conservaram a língua gaélica e as
antigas tradições, diferentemente das Lowlands, que sofreram uma anglicização maior.
86
kirk – termo com que se designa a “igreja” em escocês, também no sentido da “Igreja Presbiteriana” (cha-
mada the Kirk), em oposição à Church of England (Igreja Anglicana).
67
 No Vale
Ele se virou sem estremecer.
– O senhor é escocês? – disse, com gravidade. – Eu também; sou de
Aberdeen. Esse é meu cartão – apresentando-me um pedaço de papelão
que arrancara de alguma sarjeta durante as chuvas. – Estava só examinan-
do essa palmeira – prosseguiu, apontando para a mísera planta em frente
à porta –, que é o maior espécime que observei até agora na Califórnia.
Havia quatro ou cinco maiores à vista. Mas que adiantava discutir? Ele
exibiu uma fita métrica, fez-me ajudá-lo a medir a árvore no nível do solo
e anotou as medidas em uma caderneta grande e imunda, tudo com a
gravidade de Salomão. Então, agradeceu-me profusamente, observando
que aquele tipo de servicinho era dever entre compatriotas; apertou-me
as mãos, “pelos velhos tempos’’, como me disse; e afastou-se solenemente,
irradiando sujeira e trapaça ao caminhar.
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In the Valley
He turned round without a quiver.
‘‘You’re a Scotchman, sir?’’ he said gravely. ‘‘So am I; I come from
Aberdeen. This is my card,’’ presenting me with a piece of pasteboard
which he had raked out of some gutter in the period of the rains. ‘‘I was
just examining this palm,’’ he continued, indicating the misbegotten
plant before our door, ‘‘which is the largest spacimen I have yet observed
in Califoarnia.’’
There were four or five larger within sight. But where was the use of
argument? He produced a tape-line, made me help him to measure the
tree at the level of the ground, and entered the figures in a large and
filthy pocket-book, all with the gravity of Solomon. He then thanked
me profusely, remarking that such little services were due between
countrymen; shook hands with me, ‘‘for auld lang syne,’’87 as he said; and
took himself solemnly away, radiating dirt and humbug as he went.
87
for auld lang syne – Auld Lang Syne é um poema escrito pelo escocês Robert Burns em 1788 e posterior-
mente adaptado para uma melodia popular, que acabou por se tornar uma canção tradicional de Ano-Novo
em países de língua inglesa. A expressão for auld lang syne constitui um verso que se repete diversas vezes
na canção e é traduzida como [for the sake of] days gone by (em nome dos dias passados ou pelo tempo
que passou).
69
 No Vale
Um ou dois meses após esse meu encontro, um escocês veio a Sacra-
mento, talvez proveniente de Aberdeen. De qualquer forma, nunca houve
ninguém mais escocês nesse vasto mundo. Sabia cantar e dançar, e pre-
sumo que beber; tocava a gaita de foles com vigor e sucesso. Todos os es-
coceses em Sacramento apaixonaram-se por ele, gastando com ele tempo
livre e dinheiro, carregando-o por aí em carro aberto, entre as bebedeiras,
enquanto ele soprava a gaita até ficar escarlate. Essa é uma história bem
triste. Depois de tomar dinheiro emprestado de todo mundo, ele e a gaita
de foles desapareceram de repente de Sacramento, e a última coisa que
ouvi dizer foi que a polícia estava à sua procura.
Não posso dizer o quanto essa história me divertiu, quando me sentia
absolutamente no ponto de ser enganado da mesma forma.
Para concluir, é pelo menos curioso que as raças que mais peregrinam,
judeus e escoceses, sejam as mais fechadas do mundo. Mas talvez seja uma
questão de causa e efeito: “Pois fostes estrangeiros na terra do Egito”.
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In the Valley
A month or two after this encounter of mine, there came a Scot to
Sacramento – perhaps from Aberdeen. Anyway, there never was any one
more Scotch in this wide world. He could sing and dance, and drink,
I presume; and he played the pipes88 with vigour and success. All the
Scotch in Sacramento became infatuated with him, and spent their spare
time and money, driving him about in an open cab, between drinks, while
he blew himself scarlet at the pipes. This is a very sad story. After he had
borrowed money from every one, he and his pipes suddenly disappeared
from Sacramento, and when I last heard, the police were looking for him.
I cannot say how this story amused me, when I felt myself so thoroughly
ripe on both sides to be duped in the same way.
It is at least a curious thing, to conclude, that the races which wander
widest, Jews and Scotch, should be the most clannish89 in the world. But
perhaps these two are cause and effect: ‘‘For ye were strangers in the land
of Egypt.’’90
88
pipes – forma abreviada com a qual os escoceses se referem aos bagpipes (sempre no plural), ou seja, a
“gaita de foles”. Pipe tem também outros significados, sendo os mais difundidos “tubo”, “cano” (a leaking
pipe, um cano que está vazando) e “cachimbo” (pipe tobacco, tabaco de cachimbo).
89
clannish – é um adjetivo que deriva de clan e significa literalmente “relativo a um clã”. Contudo, no texto é
usado com valor figurado, no sentido de “fechado em si”, para definir um grupo de pessoas muito unidas e
hostis em relação a forasteiros. Na história dos povos gaélicos, um clã é um grupo familiar que descende, em
linha masculina, de um progenitor comum, tanto que a própria palavra deriva de um termo do gaélico escocês
que significa “filhos”, “descendentes”.
90
For ye were strangers... – trata-se de uma passagem da Bíblia extraída do Deuteronômio (10, 19), em clara
referência ao povo de Israel, que o autor cita como apoio ao que acabou de declarar a propósito de judeus
e escoceses.
71
 O autor

Robert Louis Stevenson nasce em Edimburgo, em 1850. Após uma

juventude rebelde, marcada por profundos conflitos com o pai e com a
burguesia puritana de seu ambiente, realiza estudos de direito e torna-se
advogado, sem, contudo, jamais exercer a profissão.
Doente de tuberculose e motivado por uma propensão peculiar à
aventura, viaja muito pela Europa e América. Lá, em 1880, casa-se com
Fanny Van de Grift, mulher divorciada e mãe de dois filhos, com a qual
continua a levar uma vida errante, colaborando com vários periódicos
ingleses e americanos, com contos, anotações de viagem e ensaios.
Em 1888, parte para um longo cruzeiro pelo Pacífico e, a partir de 1891,
estabelece-se nas ilhas Samoa, onde se torna muito querido e respeitado
pelos indígenas, que o chamam de Tusitala (“contador de histórias”).
Morre em Upolu, Samoa, em 1894.

O miolo deste livro foi impresso em papel Chambril Avena 80 g/m².

Os papéis da International Paper são produzidos a partir de florestas plantadas e renováveis.