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O CASO LETELIER QUARENTA ANOS DEPOIS,

1976-2016
Ensaio de interpretação
Carlos Federico Domínguez Avila
Centro Universitário Euroamericano (Unieuro), Brasília – DF, Brasil. E-mail: cdominguez_unieuro@yahoo.com.br

DOI: 10.17666/329510/2017

Introdução Pinochet tinha ordenado pessoalmente a morte


de Letelier, nos seguintes termos: “Analisando os
Em 8 de outubro de 2015, o Secretário de Es- eventos do carro-bomba em Washington, a CIA
tado dos Estados Unidos, John Kerry, entregou à concluiu que temos evidência convincente de que
presidenta chilena, Michelle Bachelet, uma memó- o presidente Pinochet ordenou pessoalmente ao
ria portátil com mais de 5 mil documentos – digita- seu chefe de inteligência [Manuel Contreras] para
lizados recentemente e desclassificados como secre- levar adiante o assassinato”. Também confirmava
tos pelo governo norte-americano – a respeito do que: “Pinochet pediu pessoalmente ao seu chefe
homicídio do ex-ministro chileno Orlando Letelier de inteligência que ocultara os assassinos”, que
e de sua assistente, a estadunidense Ronni Moffitt, “obstruísse” a investigação norte-americana, e até
em Washington, em 21 de setembro de 1976. considerou a “eliminação de seu antigo chefe de
Entre os documentos destaca-se um memo- inteligência” (Schultz, 1987). Em consequência,
rando – até então secreto – de 6 de outubro de para Schultz:
1987, em que o então secretário de Estado George
Schultz informava ao presidente Ronald Reagan [O ataque com carro-bomba] é um flagrante
que, segundo fontes confiáveis da Central de In- exemplo de envolvimento direto de um chefe
teligência Americana (CIA), o general Augusto de Estado em um ato de terrorismo de Estado,
um que é particularmente perturbador por ter
Artigo recebido em 26/11/2015 acontecido em nossa capital e por ser aquele
Aprovado em 08/03/2017 governo geralmente considerado amistoso.
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[...] O que nós sabemos agora sobre o rol de militar. Nessa linha, seus agentes foram responsá-
Pinochet nesses assassinatos é da mais alta se- veis por infiltração, assassinatos, sequestros, tor-
riedade e acrescenta mais ímpeto à necessidade turas, ameaças e perseguição, entre outros crimes.
de trabalhar para uma completa democratiza- Mais de 3 mil chilenos foram assassinados e 40
ção do Chile (Idem). mil foram torturados durante os dezessete anos
do regime pinochetista (Muñoz, 2010; Constable
Para as vítimas do atentado e para a maioria e Valenzuela, 2013). Muitas dessas vítimas foram
dos pesquisadores do assunto, a responsabilidade amedrontadas pelos agentes da Dina dentro do terri-
intelectual, política e penal do governante chile- tório chileno e posteriormente em países vizinhos –
no naquele crime era bastante óbvia. Entretanto, particularmente na Argentina, como no caso do
nunca antes tinham sido revelados documentos tão assassínio do general Carlos Prats (Buenos Aires,
categóricos, consistentes e comprometedores. Vale 1974), mas também na Europa Ocidental, como
acrescentar que esses novos documentos formavam no atentado contra o líder democrata-cristão Ber-
parte de um inquérito que o governo norte-ame- nardo Leighton (Roma, 1975). Em consequência,
ricano – outrora afim com o regime militar chile- não é errada a comparação da Dina com a Gestapo,
no – estava preparando contra o general Pinochet especialmente pela sua virtual dependência e sub-
pelo atentado que resultou na morte de Letelier e missão às ordens do general Pinochet.
de Moffitt. Pinochet faleceu em dezembro de 2006 Paralelamente, a denominada operação Condor
sem ser condenado pelo referido crime. Em com- procurava constituir uma rede de cooperação repressi-
pensação, mais de cinquenta oficiais chilenos estão va entre regimes autoritários do Cone Sul: Argentina,
atualmente presos por abusos aos direitos humanos Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Vigente en-
na época do regime militar. tre 1975 e 1980, a operação Condor foi inicialmente
Seja como for, a divulgação desses documentos impulsionada e coordenada pela Dina chilena. De
ajuda a iluminar um período bastante turbulento, fato, o próprio nome da operação foi uma homena-
dramático e repressivo na história latino-americana, gem dos interlocutores à iniciativa do regime pinoche-
ampliando e aprofundando os inquéritos policiais tista, em virtude de o condor ser a ave nacional do
e judiciais contra outros responsáveis materiais do Chile. Ao longo de sua existência, a operação Condor
emblemático caso Letelier. favoreceu a coordenação repressiva e o assassinato de
Para muitos pesquisadores, o atentado que re- centenas de vítimas nos países sul-americanos – sobre-
sultou na morte de Letelier e de Moffitt erigiu-se tudo na Argentina – e em outros países do continente
em uma das mais ousadas e espúrias ações terroris- e do mundo. A coincidência de métodos e propósitos
tas da Diretoria de Inteligência Nacional (Dina), entre a Dina e suas instituições repressivas análogas –
então comandada pelo coronel e posteriormente inclusive a CIA – tem levado a pressupor que, direta
general Manuel Contreras. Mistura de polícia se- ou indiretamente, o caso Letelier foi um dos atenta-
creta, corpo de inteligência e até conglomerado dos mais paradigmáticos da própria operação Condor
econômico-financeiro, a Dina acabou sendo o (McSherry, 2009).
instrumento repressivo mais ativo, brutal e efeti- Nesse diapasão, nossa hipótese de trabalho suge-
vo durante os primeiros anos do regime pinoche- re que o atentado contra Orlando Letelier configura-
tista. Oficialmente, a Dina foi criada no início de -se, de um lado, na mais ousada das ações repressivas
1974, ainda que existisse na prática desde os dias realizadas pelo regime militar chileno e, de outro
imediatamente posteriores ao golpe militar de 11 lado, no início do longo declínio do regime pinoche-
de setembro de 1973, e acabou sendo formalmente tista em função da crise de confiança decorrente das
substituída pela Central Nacional de Informações responsabilidades políticas e penais do atentado –
(CNI) em 1977 (Antunes, 2007). tudo isso em um contexto de justiça transnacional.
A principal tarefa da Dina era reprimir a “sub- Em relação aos aspectos teóricos e metodológi-
versão”, termo bastante elástico e que acabava in- cos, o presente artigo fundamenta-se na denominada
cluindo qualquer atividade de oposição ao regime justiça transnacional, nos estudos interdisciplinares e

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na história das relações internacionais. A documen- lende. Sua experiência como economista, advogado
tação primária consultada, de origem norte-ame- e negociador internacional – principalmente no
ricana e brasileira, é legítima e veraz. Em geral, essa caso estratégico do setor mineiro – foi sumamen-
documentação diplomática tem uma sustentação e te importante para o governo da Unidade Popular.
argumentação essencialmente burocrática ou racio- Por consequência, Allende nomeou-o inicialmente
nal – no sentido weberiano do termo –; ainda que, como embaixador em Washington, onde mante-
em alguns casos, certos diplomatas tivessem alguma ve contatos com parlamentares, militantes sociais,
simpatia pelo regime militar chileno, implantado entidades acadêmicas, empresários e funcionários
após a sangrenta derrocada do governo constitucional da essencialmente hostil administração Richard
e democrático de Salvador Allende, em setembro de Nixon. Posteriormente, ele assumiu os cargos de
1973. A esse respeito, cumpre mencionar, por exem- ministro do Interior – equivalente ao ministro da
plo, que o então secretário de Estado norte-america- Justiça no Brasil –, de ministro de Relações Exte-
no, Henry Kissinger, expressou pessoalmente ao ge- riores e, por último, o estratégico cargo de ministro
neral Pinochet, em Santiago, em 8 de junho de 1976, da Defesa (Garcés e Landau, 2001).
isto é, três meses antes do homicídio de Letelier, o Na véspera do golpe militar, Letelier era, como
seguinte: “Nos Estados Unidos, como sabe, simpati- ministro da Defesa, hierarquicamente superior aos
zamos com o que você está tentando fazer aqui [...] comandantes do Exército (Pinochet), da Marinha
Desejo o melhor ao seu governo” (Kissinger, 1976). (almirante José Toribio Merino) e da Aeronáutica
Neste artigo existe uma forte inclinação meto- (brigadeiro Gustavo Leigh). Consequentemente, a
dológica favorável à construção de uma consistente conspiração golpista que resultou na derrocada de
base de documentação político-diplomática, bem Allende e na destruição da respeitável evolução da
como ao estudo dos processos de tomada de deci- experiência democrática chilena também foi uma
sões. Essa opção acaba valorando fundamentalmen- traição dos altos mandos militares contra o próprio
te os atos e o papel das elites e das lideranças, isto é, ministro Letelier. Na jornada de 11 de setembro
dos denominados homens de Estado. de 1973, o então ministro da Defesa foi um dos
Ao mesmo tempo, pretendemos indagar e primeiros prisioneiros políticos de alto escalão pre-
responder prioritariamente à questão de como se sos pelos militares, permanecedo detido – e sendo
gestou e se desenvolveu o homicídio de Letelier, torturado – durante doze meses em diversos cam-
além de assumir, somente de forma subsidiária e pos de concentração, tanto na ilha Dawson quanto
indireta, a ainda mais espinhosa questão do porquê. em outras prisões especiais no país. Em setembro
Resumidamente, o como pretende compreender as de 1974, por pressões internacionais, Letelier foi
ideias, interpretações e preocupações dos diferentes libertado e imediatamente obrigado a se exilar, ini-
atores em conflito. Nessa linha, todos os atores en- cialmente na Venezuela e posteriormente na capital
volvidos tinham interesses a defender e sustentar. dos Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, sempre que possível procuramos Em pouco tempo, Orlando Letelier erigiu-
evitar esbarrar nos porquês, com o propósito de não -se em um dos mais efetivos e veementes críticos
recairmos em ilações, especulações ou imprecisões, do regime militar chileno. Seus contatos com im-
ou ainda sermos forçados a adotar visões teleoló- portantes figuras do Congresso norte-americano –
gicas, que certamente resultariam em dilemas de particularmente com os senadores Edward Kennedy
difícil resolução. e Frank Church – e com numerosas lideranças
sindicais, intelectuais, acadêmicas, religiosas e po-
pulares, tanto estadunidenses como europeias, re-
Orlando Letelier na mira do Condor, 1976 sultaram em um persistente questionamento dos
abusos e atrocidades do regime pinochetista. Lete-
Orlando Letelier (Temuco, 1932 – Washing- lier também se destacou pelos seus conhecimentos
ton, 1976) foi um dos mais próximos assessores – e experiências em economia política. Essa bagagem
além de amigo – do presidente chileno Salvador Al- intelectual lhe facultou trabalhar como pesquisa-

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dor do Instituto de Estudos Políticos (sediado em As persistentes e consistentes críticas do ex-mi-


Washington) e do Instituto Transnacional (sediado nistro da Unidade Popular muito aborreciam aos
em Amsterdam), bem como professor na American membros da Junta Militar imperante em Santia-
University (sediada em Washington). go. Assim, no encontro entre Pinochet e Kissinger
Nessa linha, Letelier publicou numerosos do- de 8 de junho de 1976, isto é, três meses antes do
cumentos jornalísticos e acadêmicos sobre a com- atentado, o governante chileno mencionou explici-
plexa realidade chilena, principalmente sobre os tamente em duas oportunidades o nome de Orlan-
efeitos das políticas econômicas de orientação ne- do Letelier, como uma das figuras mais marcantes
oliberal impulsionadas desde 1974 pelo governo e relevantes da oposição ao seu regime nos Estados
militar em colaboração com técnicos da Escola de Unidos: “Estamos voltando à institucionalização
Economia da Universidade de Chicago, encabe- passo a passo. Porém, sofremos ataques constantes
çados pelo professor Milton Friedman, que rece- dos democrata-cristãos. Eles são muito escutados
beu o prêmio Nobel de Economia de 1976. Eram em Washington. Não pela gente do Pentágono,
os famosos Chicago boys, que transformaram mas sim no Congresso. Gabriel Valdés tem influên-
o Chile em um precoce laboratório neoliberal cia. E [Orlando] Letelier [também]”. Acrescentan-
(Valdés, 1995). do o seguinte: “Letelier tem acesso ao Congresso.
Três semanas antes do atentado, Letelier Sabemos que estão dando informações falsas. Não
(1976a) publicou um dos seus últimos artigos, temos experiência de governo. Estamos preocupa-
“The Chicago boys in Chile: economic freedom’s dos pela nossa imagem” (Pinochet, 1976).
awfull toll”, em que denunciava a paradoxal afi- É bastante provável que a ordem para proce-
nidade eletiva de “um sistema social onde a liber- der ao atentado mortal contra Letelier tenha sido
dade econômica e o terror político coexistem sem decidida, pelo general Pinochet, na segunda quin-
tocar-se entre si”. O economista chileno também zena de junho de 1976. O período em questão foi
questionou os aspectos morais do trabalho de Frie- muito fértil e intenso no marco da operação Con-
dman, considerado o principal inspirador das refor- dor. O recente golpe militar na Argentina (março
mas liberais. Para Letelier (1976a), resultava de 1976) estava provocando graves consequências
nas comunidades de exilados e refugiados chilenos,
[...] curioso que o homem [Friedman] que uruguaios, paraguaios e bolivianos presentes em
escreveu um livro, Capitalismo e Liberdade território argentino. Líderes políticos de orienta-
[de 1962], para divulgar o argumento que so- ção democrática – inclusive ex-presidentes, como
mente o liberalismo econômico clássico pode o brasileiro João Goulart ou o boliviano Juan José
sustentar a democracia política possa agora tão Torres – faleceram em circunstâncias muito suspei-
facilmente desvincular a economia da política, tas, ou criminosas. Outros foram sumariamente ex-
quando as teorias econômicas que ele apoia traditados para seus países de origem e nunca mais
coincidem com uma absoluta restrição de todo apareceram com vida –por exemplo, Edgardo Enrí-
tipo de liberdades democráticas. quez, militante do Movimiento de Izquierda Revo-
lucionaria (MIR). De fato, 20 mil chilenos, muitos
Após analisar as consequências do experimento deles militantes da Unidade Popular e potenciais
neoliberal dos militares chilenos – principalmente opositores do regime pinochetista, que tinham se
no que diz respeito a inflação, emprego, crescimen- refugiado desde 1973 na Argentina, passaram a ser
to do produto, investimento, distribuição da renda, alvos fáceis da repressão conjunta chileno-argentina
entre outros fatores –, Letelier (1976a) concluía no marco da operação Condor (Kornbluh, 2004).
categoricamente que, em contraste com os pressu- Ao mesmo tempo, a cooperação bilateral entre
postos da teoria neoliberal de Friedman e outros, a a Dina e CIA estava cada vez mais intensa e efetiva.
“Repressão para as maiorias e liberdade econômi- Documentação citada por Kornbluh (2004) sugere
ca para os pequenos grupos privilegiados eram, no que, nessa época, o próprio Manuel Contreras che-
Chile, os dois lados da mesma moeda”. gou a ser pago como informante da CIA em função

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de seu acesso privilegiado ao general Pinochet, com manos no país andino – nos meses seguintes, essa
quem despachava pontualmente todas as manhãs emenda foi ampliada até incluir outros países sul-
e de quem recebia todo tipo de ordens. É bastante -americanos. O cancelamento do crédito holandês
provável que a cooperação Dina-CIA tivesse reper- tinha uma finalidade semelhante, isto é, contribuir
cussões em países terceiros, especialmente no Peru com a defesa e a promoção dos direitos humanos
e na Argentina, e não parece incorreto destacar que no Chile.
as autoridades da CIA – então encabeçadas pelo di- Em estágio inicial do planejamento do atenta-
retor (e posteriormente presidente) George H. W. do contra Letelier, o general Pinochet solicitou o
Bush e pelo subdiretor Vernon Walters – eram bas- apoio do governo de Alfredo Strossner, no marco
tante próximas e até amigáveis em relação às ações da operação Condor. Especificamente, Santiago
da Dina no Chile e com a operação Condor em ge- expressou interesse na emissão de dois passaportes
ral. Com efeito, nas semanas anteriores ao homicí- paraguaios em favor dos agentes da Dina Michael
dio de Letelier, o chefe da Dina, Manuel Contreras, Townley e Armando Fernández Larios – codinomes
visitou Washington, encontrando-se com o general Juan Williams Rose e Alejandro Romeral, respec-
Walters para revisar questões de interesse comum. tivamente. Também solicitou a concessão do vis-
Será que algum pedido de tolerância, encobrimen- to estadunidense para ambos os documentos pelo
to e/ou discreto apoio institucional diante de uma consulado dos Estados Unidos em Assunção. As-
ação terrorista prevista contra o opositor chileno es- sim, os passaportes paraguaios falsos foram emiti-
tivesse na agenda desses controvertidos atores? dos, vistoriados e entregues às autoridades chilenas.
No plano doméstico, a oposição armada chi- Entretanto, diante da turbulenta realidade da épo-
lena tinha sido desarticulada nos três primeiros ca e dos rumores de ações terroristas da operação
anos do regime militar. As principais lideranças do Condor fora do território dos países membros, o
MIR, do Partido Comunista e do Partido Socialista então embaixador norte-americano em Assunção,
tinham sido obrigadas a abandonar o país. Os mo- George Landau – que posteriormente foi transfe-
vimentos sociais e políticos não marxistas estavam rido à embaixada estadunidense em Santiago –,
reduzidos e reprimidos, e fatos como o banimento decidiu alertar às autoridades superiores em Wa-
do chefe do MIR, Andrés Pascal – após sua quase shington sobre o episódio. A administração Gerald
captura na localidade de Malloco (em 1975) –, e Ford determinou então o cancelamento dos referi-
o aniquilamento da cúpula do Partido Comunis- dos vistos. Desafortunadamente, esse percalço não
ta (em meados de 1976) certamente motivaram o implicou o encerramento da ação terrorista, que a
ambicioso chefe da Dina e seus agentes a procu- partir desse momento passou a ser realizada intei-
rar alvos políticos relevantes – por exemplo, Carlos ramente com documentos falsos de origem chilena,
Altamirano, Clodomiro Almeida, Anselmo Sule, concedidos para os mesmos agentes citados, além
Hortensia Bussi, Volodia Teitelboim e Orlando Le- de uma terceira agente da Dina, chamada de Lilia-
telier, entre outros – além do território dos países na Walker, mas cuja verdadeira identidade conti-
membros da operação Condor. nua desconhecida (Dinges, 2005).
Parece razoável supor, em função da falta de Nesse contexto, o regime militar chileno anun-
evidência documental direta, que o general Pino- ciou, em 10 de setembro de 1976, na véspera do
chet também tivesse ordenado o atentado contra terceiro aniversário da assonada golpista e dias an-
Letelier como uma virtual retaliação pela aprovação tes do atentado, a promulgação de um decreto-su-
da denominada emenda Kennedy e do bloqueio de premo – o de número 588 – que retirava a naciona-
empréstimos holandeses ao Chile, em junho de lidade chilena de Orlando Letelier. Concretamente,
1976, ambos os casos com alguma participação do o ex-ministro, transformado em apátrida, era acu-
ex-ministro chileno. A emenda Kennedy deman- sado de incentivar ações contrárias aos interesses
dava a suspenção da assistência militar norte-ame- nacionais chilenos no exterior. Vale acrescentar que
ricana ao Chile e condicionava sua retomada ao esse tipo de iniciativa repressiva tinha sido anterior-
melhoramento efetivo da situação dos direitos hu- mente aplicado a outros opositores chilenos no exí-

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lio. Em resposta, no mesmo dia, Letelier (1976b) cipal ator material do atentado, Michael Townley:
pronunciou, no Madison Square Garden, da cidade foi ele que armou e instalou a bomba embaixo do
de Nova York, o último dos seus discursos políti- carro do ex-ministro, além de subcontratar um gru-
cos. Reconhecendo que se tratava de um momento po de cinco cubanos anticastristas que detonaram
dramático em sua vida, o ex-ministro chileno cate- o explosivo. Letelier e Ronni Moffitt morreram em
goricamente acrescentou o seguinte: 21 de setembro de 1976. Michael Moffitt, marido
de Ronni e amigo de Orlando, foi o único dos ocu-
Desde o mesmo momento que um grupo de pantes do carro que logrou sobreviver ao atentado
generais, servindo aos mais reacionários gru- (Dinges e Landau, 1980).
pos econômicos, decidiram três anos atrás Um evidente atentado terrorista na capi-
declarar a guerra contra o povo chileno e ocu- tal da principal potência do continente e do bloco
par o país, um impressionante movimento ocidental, que resultou na morte de um distingui-
mundial de solidariedade com o povo chileno do ex-ministro e de uma cidadã norte-americana,
tem emergido. Este abrangente movimento erigiu-se em acontecimento de primeira relevância
de solidariedade há expressado, desde as mais no marco das relações bilaterais chileno-estaduni-
diversas perspectivas políticas e ideológicas, a denses, hemisféricas e especificamente ao interior
repulsa do mundo civilizado diante da bárba- do próprio Chile (Muñoz, 1986). Ainda que ini-
ra e brutal violação de todos os direitos hu- cialmente a Junta Militar tivesse condenado vee-
manos pela Junta Militar chilena. Durante os mentemente o atentado e imediatamente negado
passados três anos o apoio internacional ao qualquer participação no episódio, rapidamente as
povo chileno de parte de governos, partidos suspeitas se concentraram em uma plausível cone-
políticos, igrejas, organizações internacionais, xão chilena. O próprio Michael Moffitt (1976), en-
instituições humanitárias e pessoas de boa-fé tão viúvo, pronunciou-se no dia seguinte ao atenta-
tem salvado incontáveis vidas, e tem libertado do denunciando o seguinte:
centenas de prisioneiros políticos das mãos do
mais repressivo regime que o mundo tem co- A verdade é que a [J]unta é responsável não
nhecido desde a destruição do fascismo e do somente pela morte da sociedade chilena e de
nazismo na Europa. um dos seus maiores diplomatas, mas também
eles são, eu suspeito, responsáveis pela morte
[...] Hoje Pinochet assinou um decreto em se de minha esposa. Qualquer um que esteja in-
que afirma que fui privado de minha nacionali- teressado sabe que Washington está cheio de
dade. Este é um importante dia para mim. Um agentes da Dina, a polícia secreta do Chile. Se
dia dramático em minha vida em que a ação as instruções chegaram de Santiago ou da Em-
de generais fascistas contra mim me faz sentir baixada [chilena] na avenida Massachussetts
mais chileno do que nunca. Porque nós somos não é conhecido por agora. Se uma sincera in-
os verdadeiros chilenos [...], e eles – os fascistas vestigação não é aplastada pela pressão política
– são os inimigos do Chile, os traidores que será possível encontrá-las.
estão vendendo nosso país ao investimento es-
trangeiro. Eu nasci chileno, sou chileno e vou Assim como minha esposa e meu querido Or-
morrer sendo chileno. Eles nasceram traidores, lando Letelier, nós acreditamos que as abomi-
vivem como traidores e serão lembrados sem- náveis condições em que a maioria da popu-
pre como fascistas traidores. lação da raça humana (especialmente, porém
não exclusivamente, no Terceiro Mundo) é
Certamente a retirada da nacionalidade de Le- forçada a viver, é [sic] moralmente ultrajante
telier formava parte da conspiração para o homicí- e politicamente insano. Esse é o legado que eles e o
dio que acabou acontecendo onze dias depois. Em ex-presidente Allende legaram ao mundo
13 de setembro, chegou aos Estados Unidos o prin- e milhões de pessoas nunca o esquecerão.

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Paralelamente, é tema de debate na literatura tenha sido destruída pelos agentes da Dina no final
estadunidense especializada no caso Letelier a pos- da década de 1970.
sível informação prévia – e até um eventual con- Como mencionado, ataques terroristas seme-
luio – do Departamento de Estado dirigido por lhantes tinham sido ordenados pelo general Pino-
Kissinger e/ou da CIA dirigida por George H. W. chet e executadas pelos agentes da Dina – nota-
Bush em torno do episódio, bem como uma possí- damente por Michael Townley –, resultando, por
vel omissão de advertência às autoridades chilenas exemplo, na morte do general Carlos Prats, em
para dissuadi-as de prosseguir com o planejamento Buenos Aires (1974), ou nos graves ferimentos pro-
e execução do atentado terrorista – único antece- vocados ao político opositor Bernardo Leigthon,
dente de terrorismo internacional na capital dos em Roma (1975). Paralelamente, é provável que as
Estados Unidos até os ataques de 11 de setembro autoridades chilenas entendessem que era plausível
de 2001. desenvolver um conflito de baixa intensidade com
Para os fins deste artigo, parece suficiente deixar os opositores no exílio, comparável àquele impul-
registrado que, em 23 de agosto de 1976, Kissinger sionado na mesma época entre o governo israelense
autorizou o despacho de instruções aos embaixadores e os insurgentes palestinos – isto é, uma virtual in-
norte-americanos lotados em Santiago e em outras ternacionalização do conflito, que incluía até terri-
capitais dos países membros da operação Condor – tórios e capitais de países europeus.
inclusive Brasília – para sutilmente recomendar às De fato, existe evidência que sugere que a in-
máximas autoridades desses países a suspenção de teligência norte-americana tinha detectado os pre-
eventuais ações e atentados da operação Condor parativos de um ataque da Dina contra exilados
fora da América do Sul, já que eles poderiam acabar chilenos residentes em Paris e encaminhado essas
criando graves problemas morais e políticos. Dada informações às contrapartes francesas para dissuadir
a sensibilidade do tema, o embaixador em Santiago efetivamente aos agentes de Santiago. Paradoxal-
respondeu aos seus superiores que considerava mais mente, eventuais crimes e atos terroristas da Dina
oportuno um contato da estação da CIA no Chile foram dissuadidos em território europeu, embora
com o chefe da Dina, inclusive para evitar ferir a não tenham sido evitados na capital da principal
honorabilidade e suscetibilidade do próprio gene- potência do continente e do bloco ocidental. Parece
ral Pinochet. Seja como for, em 20 de setembro de razoável pressupor que uma forte advertência por
1976, menos de 24 horas antes do homicídio, esse parte da administração Gerald Ford em relação ao
despacho com instruções de alerta e eventual dissua- planejamento do atentado contra Letelier teria dis-
são às autoridades sul-americanas teria sido sustado, suadido os autores intelectuais e materiais do crime
até nova ordem, para evitar desconfortos com os re- de 21 de setembro de 1976 (Dinges, 2005).
feridos governos (Kornbluh, 2004). Seja como for, esse homicídio virou um crime
federal nos Estados Unidos. Inicialmente, o proces-
so passou à jurisdição da polícia federal e, posterior-
Crise e recomposição do pinochetismo, mente, o caso Letelier-Moffitt foi transferido aos
1978-1979 cuidados do Departamento de Justiça, recaindo a
responsabilidade de investigar o referido homicídio
No processo de tomada de decisão que resul- no escritório do promotor Eugene Propper (Branch
tou no atentado e homicídio de Orlando Letelier e e Propper, 1982). Nos primeiros meses após o aten-
da cidadã estadunidense Ronni Moffitt, Pinochet, tado, os trabalhos de investigação policial-judicial
Contreras e auxiliares certamente levaram em con- foram de difícil e complexa resolução, mesmo em
sideração objetivos, meios e sobretudo os riscos de- território norte-americano. A CIA, sob a direção de
correntes dessa temerária, audaciosa e espúria ação. George H. W. Bush, por exemplo, tentou plantar
Desafortunadamente, a documentação específica nos meios de imprensa norte-americanos a tese do
sobre esse processo de tomada de decisão, caso exis- martírio de Letelier, no sentido que teriam sido mi-
ta, ainda não é pública – e o mais provável é que ela litantes de extrema-esquerda chilenos os verdadei-

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ros responsáveis do ataque, no intuito de denegrir rompimento das relações diplomáticas por ini-
a imagem e o prestígio internacional do regime mi- ciativa do governo de La Paz, em 17 de março
litar. O Departamento de Estado, sob o comando de 1978) e principalmente com a Argentina
de Kissinger, também demorou várias semanas em (pela posse de ilhas e delimitação das fronteiras
transferir aos investigadores federais todos os expe- marítimas no canal de Beagle, uma grave crise
dientes do caso, inclusive os retratos, os vistos e as que quase provocou uma guerra entre os países
fotocópias dos falsos passaportes paraguaios emiti- em dezembro de 1978).
dos em favor de Townley e Fernández, no marco da • As pressões trabalhistas, inclusive com apoio de
operação Condor. entidades sindicais transnacionais.
Somente após a posse do presidente Jimmy • As pressões da Igreja católica e dos familiares
Carter (1977-1981), o caso Letelier-Moffitt ga- de milhares de desaparecidos e de presos polí-
nhou certo dinamismo. Durante a campanha pre- ticos. Cumpre acrescentar que em novembro-
sidencial, o candidato do Partido Democrata tinha -dezembro de 1978 foram descobertos, nas
questionado explicitamente as ações de Nixon, localidades de Lonquen, Talagante e Cuesta
Ford e Kissinger em relação ao Chile de Allende e Barriga, os primeiros túmulos coletivos de víti-
posteriormente de Pinochet.1 Carter também mani- mas civis ou desaparecidos do golpe de setem-
festou o seu desejo de recompor as relações hemis- bro de 1973 e eventos subsequentes.
féricas com a perspectiva da promoção dos direi- • A persistência dos questionamentos sobre a si-
tos humanos e da democracia. Nessa linha, o caso tuação dos direitos humanos no Chile, princi-
Letelier-Moffitt tornava-se cada vez mais espinho- palmente em foros internacionais, bem como
so e comprometedor nas relações bilaterais entre a promulgação de uma anistia parcial e pouco
Washington e Santiago, e assim foram percebidas efetiva em abril de 1978.
e interpretadas por diferentes atores endógenos e • A realização de uma fraudulenta consulta popu-
exógenos (Muñoz e Portales, 1991). lar em 4 de janeiro de 1978, que resultou em
Rapidamente se avolumou sob o regime pino- um falacioso respaldo cidadão ao regime militar
chetista um conjunto de pressões intraburocráticas, e especificamente à figura do general Pinochet.
domésticas e externas, muitas delas diretamente • As crescentes divergências intraburocráticas no
vinculadas ao caso Letelier. Nesse diapasão, cumpre seio da Junta Militar, sobretudo entre o general
mencionar as seguintes iniciativas e ações: Pinochet e o brigadeiro Gustavo Leigh, chefe
da Aeronáutica, relacionadas com a aparente
• A dissolução da Dina, em abril de 1977. tendência personalista, caudilhista ou cesaris-
• A imediata criação da Central Nacional de Infor- ta de Pinochet, em detrimento dos interesses e
mações (CNI), com insignificantes mudanças em dos poderes dos outros membros daquele cole-
relação à sua antecessora, que, após breve interlú- giado teoricamente quadripartite.
dio, passou a ser dirigida pelo general Odlanier • Uma reforma ministerial abrangente; o reforço
Mena, antigo desafeto do general Contreras, con- da censura e do denominado “recesso político-
figurando um relevante conflito de personalida- -partidarista”, em prejuízo principalmente dos
des, agendas e objetivos (Salazar, 2013). militantes do partido democrata-cristão; a im-
• O pronunciamento do denominado discurso plementação de reformas neoliberais; a manu-
de Chacarillas, de 7 julho de 1977, oferecen- tenção, em geral, do Estado policial-militar ou
do uma nebulosa institucionalização do regime burocrático-autoritário, vigente no país desde
e uma gradual descompressão do governo militar. 1973 (Cavallo, Salazar e Sepúlveda, 2008; Val-
• As crescentes tensões territoriais e fronteiriças divia, Álvarez e Pinto, 2006).
com o Peru (na província de Arica), com a Bo-
lívia (pelo fracasso do denominado processo de No meio desse complexo cenário, o fiscal Pro-
Charaña, sobre a busca de uma saída daquele pper anunciou, em 28 de fevereiro de 1978, o in-
país para o oceano Pacífico e o consequente diciamento em corte federal dos Estados Unidos

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O CASO LETELIER QUARENTA ANOS DEPOIS, 1976-2016 9

de alguns suspeitos pelo atentado que resultou na Dina/CNI acabou sendo extraditado em 8 de abril
morte de Letelier e Moffitt, bem como solicitou – de 1978, com o compromisso aceito e assinado pe-
via Carta Rogatória – informações ao governo las autoridades estadunidenses de que ele somente
chileno sobre a verdadeira identidade dos agentes poderia participar no inquérito do caso Letelier-
fotografados nos falsos passaportes paraguaios. Pa- -Moffitt e não em outros processos paralelos. A esse
ralelamente, a promotoria filtrou na imprensa nor- respeito, a embaixada brasileira em Santiago infor-
te-americana os retratos dos suspeitos e, em poucos mou ao Itamaraty o seguinte:
dias, tornou-se evidente que eles correspondiam
aos agentes Townley e Fernández, da Dina. São pouco claras, a essa altura, as motivações
Na primeira semana de abril de 1978, o go- do presidente Pinochet, embora ninguém te-
verno de Pinochet encarava uma situação extre- nha dúvidas de que a expulsão de Townley seja
mamente complexa, derivada diretamente de seu de sua responsabilidade pessoal. Não é despre-
envolvimento no caso Letelier. Se não atendesse à zível a tese [...] equiparando Townley a um ca-
exigência do governo norte-americano de extraditar sus belli ambulante. E à luz do zelo wilsoniano
Townley – que era cidadão estadunidense – imedia- da atual administração americana [de Carter],
tamente, enfrentaria o rompimento das relações di- todos os meios de evitar uma nova Veracruz se-
plomáticas, a imposição de um embargo comercial riam válidos. A tese seria, enfim, de que Pino-
e uma mais que provável desestabilização política e chet estaria tratando de recuperar a iniciativa,
militar do regime imperante em Santiago. demonstrando, ao mesmo tempo, habilidade,
Townley tinha chegado ao Chile ainda ado- flexibilidade, espírito de cooperação. [...] As
lescente, acompanhando seu pai, que era agente variáveis são muitas, portanto, configurando
de uma empresa automotriz norte-americana. No talvez o momento politicamente mais crítico
conturbado cenário político chileno das décadas de que este governo já enfrentou.2
1960 e 1970, o norte-americano se aproximou da
extrema direita, especialmente durante o governo Sentindo-se traído e abandonado pela CNI
da Unidade Popular. Na época, ele chegou a ser e pelo próprio Pinochet, o agente Townley deci-
acusado de homicídio e outros crimes. A partir diu colaborar com as autoridades judiciais norte-
da criação da Dina, Contreras o contratou como -americanas em troca de uma eventual redução da
agente especial, sobretudo para ações terroristas pena. Assim, nas semanas seguintes ele reconheceu
fora do território chileno. Townley acabou sendo o a sua ativa participação no homicídio, inculpou um
responsável pelo atentado que resultou na morte do grupo de cinco cubanos anticastristas que ele tinha
general Carlos Prats, em Buenos Aires, e pelo ata- subcontratado para executar o atentado e confir-
que contra Bernardo Leigthon, em Roma. Também mou a participação de três oficiais chilenos no
estava envolvido no desenvolvimento de armas atentado: Contreras, o coronel Pedro Espinoza –
químicas e de diferentes tipos de explosivos para o subchefe da extinta Dina – e o capitão Armando
governo militar chileno, e algumas fontes bibliográ- Fernández Larios.3
ficas, fundamentadas em pesquisas com documen- Com base nos depoimentos de Townley e ou-
tação diplomática, verificaram que ele, assim como tras provas materiais, o governo estadunidense de-
Contreras, era informante ou colaborador da CIA. cidiu, em 27 de abril de 1978, solicitar a detenção
Seja como for, a hipótese de extradição de Town- provisória dos três altos oficiais chilenos, como pas-
ley, no marco do caso Letelier-Moffitt, colocava em so prévio a uma eventual extradição. Tudo isso com
uma situação extremamente comprometedora o ge- base em um tratado bilateral de 1902 vigente na
neral Contreras e, consequentemente, o próprio época dos fatos.
general Pinochet, verdadeiro autor intelectual do Entre maio e setembro de 1978, o regime pi-
crime. Ao mesmo tempo, instalava-se em Santiago nochetista enfrentou a primeira grande crise po-
uma virtual crise de confiança interinstitucional e lítica – na interpretação de aliados, adversários e
hierárquica. Por fim, o agente norte-americano da inimigos, tanto domésticos como externos – desde

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a sua implantação, em setembro de 1973. A lite- destituição do brigadeiro Gustavo Leigh, em 24 de


ratura especializada e a documentação diplomática julho de 1978, “por faltar reiteradamente aos prin-
consultada coincidem em destacar a gravidade da cípios e postulados que inspiraram o movimento
situação, não descartando a derrocada do próprio de 11 de setembro de 1973” – episódio que acabou
Pinochet e uma eventual abertura democrática. Em sendo conhecido como o segundo golpe de Pino-
23 de junho de 1978, por exemplo, o general Pi- chet (Cavallo, Salazar e Sepúlveda, 2008).
nochet se reuniu reservadamente com o embaixador Assim, quando a chancelaria chilena re-
George Landau e, no relatório correspondente, o di- cebeu o pedido oficial de extradição de Contreras,
plomata norte-americano informou aos seus superio- Espinoza e Fernández, em 20 de setembro de 1978,
res sobre o governante chileno: “Parecia um homem Pinochet teve maiores capacidades de manipular e
perturbadíssimo, e a preocupação de que pudesse ser influenciar as determinações da Corte Suprema de
substituído por outro oficial militar parecia assomar Justiça, instância encarregada de processar os pedi-
em sua cabeça” (apud Muñoz, 2010, p. 138). Nesse dos de extradição de criminosos, segundo o tratado
mesmo diapasão, a embaixada brasileira em Santiago bilateral de 1902. Todavia, a decisão do presidente
informou o seguinte ao Itamaraty: do tribunal supremo, Israel Bórquez, no sentido de
impor um sigilo judicial ao processo, certamente
A esta altura, seria leviano qualquer vaticínio por orientação dos assessores jurídicos do governo,
sobre o desfecho da questão. Evidentemente pa- inclusive no que diz respeito a negar aos advogados
rece difícil admitir se extradite um general do que representavam os interesses norte-americanos
Exército, que era ademais, até bem pouco, um a possibilidade de acompanhar e eventualmente
homem de estrita confiança do Presidente da questionar os depoimentos – seguramente falsos,
República. Tampouco aparenta ser viável o jul- tendenciosos ou desaforados – dos acusados, foi
gamento de tão ilustres réus no Chile, onde está fundamental para o veredito anunciado em março
em vigor a anistia para crimes. Equivaleria, po- de 1979, que indeferiu a extradição.
rém, a um suicídio político minimizar a gravi- Nesse diapasão, Contreras e outros consegui-
dade do caso ou abstrair-se do impacto potencial de ram recuperar a sua liberdade. A reação do gover-
suas repercussões. Por isso, tão ou mais impor- no de Carter diante desse resultado adverso foi
tante do que a decisão final da Corte chilena sumamente moderada e essencialmente simbólica.
será a evolução, em si mesma, do julgamento. Washington basicamente anunciou a redução de
De como for conduzida internamente a questão pessoal civil e militar diplomático lotado na em-
dependerá, tudo indica, em larga medida, a re- baixada em Santiago, o cancelamento de exercícios
ação do Governo norte-americano e da opinião militares conjuntos e a negação de créditos interna-
pública mundial. Trata-se de um sério desafio ao cionais – fossem bilaterais ou em organismos finan-
governo Pinochet, não se pode negar.4 ceiros internacionais.
Um recurso interposto pela acusação contra a
Olhado em perspectiva histórica e em função primeira sentença também acabou sendo negado,
da grave crise institucional implantada no seio do por insuficiência de provas fidedignas, em 1º de
regime militar, é surpreendente verificar a continui- outubro de 1979 – de forma que não se justificava
dade – e até a consistência – do governo de Pino- nem mesmo a instauração de processo militar para
chet. Com efeito, o governante chileno se manteve julgar os acusados no próprio país sul-americano.
no poder em função do apoio específico do corpo Nessa linha, o embaixador brasileiro Raul de Vi-
de generais do Exército, da tradição prussiana des- cenzi informou aos seus superiores que, na opinião
ses oficiais, da tolerância da Marinha, da simpatia de Pinochet, “com a sentença estava terminado o
do empresariado e da burguesia, e de uma pouco caso Letelier no Chile”.5
conhecida capacidade de articulação política. Cer- Vale acrescentar que nessa época certos mili-
tamente, o momento culminante dessa crise insti- tantes vinculados à promoção dos direitos huma-
tucional foi a imperativa determinação de forçar a nos esperavam da administração Carter uma vigo-

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O CASO LETELIER QUARENTA ANOS DEPOIS, 1976-2016 11

rosa reação contra a impunidade de fato, concedida apreciada pelo governo de Reagan (Muñoz, 1986).
no Chile, aos autores do atentado que resultou na Nesse contexto, o caso Letelier ficou praticamente
morte de Letelier e de Moffitt. A documentação di- congelado, e uma sensação de impunidade e impe-
plomática consultada sugere que não poucos líderes rícia judicial continuou predominando até o fim da
políticos chilenos e norte-americanos chegaram a ditadura pinochetista, em 1990 (Constable e Va-
especular sobre a possibilidade de denunciar o Chi- lenzuela, 2013).
le como país que promovia o terrorismo interna- Cumpre destacar que, em 1987, o capitão
cional, sobre a implantação de um estrito controle Armando Fernández Larios, antigo comparsa de
ou restrição de investimentos privados norte-ame- Contreras e de Townley, mesmo sendo oficial do
ricanos no Chile e sobre o cancelamento do visto exército chileno e membro de família com tradição
norte-americano às autoridades chilenas, entre ou- militar, decidiu contrariar ordens expressas e dire-
tras fortes represálias. tas do general Pinochet para manter estrito silêncio
Porém, após o triunfo da revolução islâmica sobre o caso Letelier, desertando e entregando-se
no Irã e da revolução sandinista na Nicarágua, às autoridades norte-americanas – curiosamente a
acontecimentos que implicaram a derrocada de entrega de Fernández aconteceu em território bra-
antigos aliados anticomunistas de Washington – sileiro. Em troca de benefícios judiciais, inclusive a
bem como possíveis avanços soviéticos no contex- expressa proibição de ser extraditado para o Chile,
to da Guerra Fria –, Carter e seus assessores em Fernández Larios ofereceu aos promotores norte-
segurança nacional – inclusive Zbigniew Brze- -americanos do caso Letelier novos indícios e pro-
zinski e Robert Pastor – aparentemente temeram vas sobre o caso. A esse respeito, no memorando de
que uma excessiva pressão norte-americana pudes- Schultz ao presidente Reagan, citado na Introdu-
se resultar na derrocada de Pinochet. Em outras ção, comenta: “Fernández entregou valiosa infor-
palavras, Carter, Brzezinski e Pastor não acredita- mação relacionada aos roles de dois oficiais sêniores
vam em uma precoce redemocratização do Chile do Exército chileno previamente acusados de ter
e pareciam recear – talvez infundadamente – que planejando os assassinatos (o antigo chefe da polí-
o regime militar fosse substituído por um governo cia secreta [Manuel Contreras] e seu chefe de ope-
marxista-leninista ou pró-soviético. rações [Pedro Espinoza]), e informação significativa
Após a invasão soviética no Afeganistão, em sobre o rol de Augusto Pinochet no encobrimento”
dezembro de 1979, seguida do aprofundamento (Schultz, 1987).
das tensões mundiais no sentido leste-oeste, tanto Vale acrescentar que o caso em referência, mes-
o regime militar chileno quanto o caso Letelier- mo arquivado pelas autoridades judiciais chilenas,
-Moffitt passaram a ser vistos como assuntos se- continuou aberto nos Estados Unidos. Somente
cundários na agenda hemisférica e global do últi- após a redemocratização e a publicação do chama-
mo ano da administração Carter. Obviamente, isso do Relatório Rettig, que ilustrou muitas das atro-
significava em termos práticos o reconhecimento, cidades cometidas pela Dina, a justiça chilena teve
ao menos temporário, da impunidade aos autores autonomia e capacidade para indiciar e condenar o
intelectuais e materiais do atentado. general Contreras e o coronel Espinoza pelo crime
A negligencia benigna de Carter em relação que resultou na morte de Letelier e de muitos ou-
ao governo pinochetista virou consenso estratégico tros chilenos que foram objeto de abusos aos direi-
regional anticomunista entre Washington e Santia- tos humanos (Muñoz, 2010).
go, a partir da assunção de Ronald Reagan como Contudo, o autor intelectual do crime contra
presidente e de George H. W. Bush – antigo che- Letelier, isto é, o próprio general Pinochet, conti-
fe da CIA, na época do atentado contra Letelier, e nuou em liberdade após 1990, sendo comandante do
posteriormente presidente, no período de 1989 a exército até março de 1998 e posteriormente tor-
1992 – como vice-presidente. A contumaz e provo- nando-se senador vitalício, garantindo assim a sua
cante retórica anticomunista, antimarxista e especi- imunidade penal em território chileno – não ne-
ficamente antissoviética de Pinochet era muito bem cessariamente no exterior.

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Letelier, Pinochet e a justiça transnacional toritário. Esse processo foi objeto de explícito apoio
por instâncias judiciais espanholas e europeias, ain-
Em 16 de outubro de 1998, o Chile e o mun- da que não esteja claro se o próprio Pinochet tivesse
do foram surpreendidos pela detenção, em Lon- sido notificado formalmente das acusações e dos
dres, do general (em retiro) e senador Augusto Pi- riscos de uma eventual detenção em território de
nochet, a pedido da justiça espanhola, em função terceiros países.
de acusações de tortura e outras violações aos direi- Seja como for, após ser informado da presença
tos humanos. Iniciou-se uma longa e paradigmáti- de Pinochet em Londres, Garzón requereu a sua
ca disputa judicial que terminou, dezesseis meses detenção provisória, e as autoridades britânicas,
depois, com a libertação do ex-governante chileno seguindo normas nacionais, procederam à captura
por presumida incapacidade física e mental para do ex-ditador, acusado de torturas, conluio, for-
afrontar um julgamento (Roht-Arriaza, 2005). mação de quadrilha, sequestro e assassinatos. Nas
Sob a perspectiva da justiça transnacional, a semanas seguintes, o general chileno não teve reco-
detenção e a possível extradição de Pinochet à Es- nhecida sua imunidade soberana, instaurando-se
panha para enfrentar as acusações de violação aos um complexo e dramático processo de extradição
direitos humanos aparece como um dos casos de (Byers, 2000).
estudo mais importantes, relevantes e significati- No interlúdio, os governos da França, da Bélgi-
vos, resultado de vários anos de trabalho jurídico, ca e da Suíça, além da Espanha, também expressa-
coordenado pelo advogado espanhol Joan Garcés. ram interesse e disposição para requerer a extradição
Durante o governo da Unidade Popular, Gar- do senador chileno. Nos Estados Unidos, organiza-
cés servira como assessor especial de Allende, e dei- ções de promoção dos direitos humanos e institui-
xou o Palácio de la Moneda em 11 de setembro ções acadêmicas e de pesquisa – o Instituto de Estu-
de 1973 a pedido do próprio mandatário, que lhe dos Políticos, entre outras – exigiram do governo do
assinara a tarefa de se salvar e denunciar no mundo presidente Bill Clinton a reabertura do caso Letelier-
“a felonia, a covardia e a traição” dos conspiradores. -Moffitt, a desclassificação de documentos sigilosos
Nessa linha, Garcés também era colega de trabalho relacionados com o atentado terrorista e, eventual-
de Letelier nos últimos dias do governo da Unidade mente, a expedição de um pedido de extradição pelo
Popular (Garcés e Landau, 2001). crime de 21 de setembro de 1976.
Paralelamente, em 1996, em decisão polêmica Afinal, em 2 de março de 2000, após 503 dias
ainda na atualidade, o juiz Baltazar Garzón reivin- de detenção, Pinochet foi autorizado, por razões de
dicou a jurisdição universal da justiça espanhola em saúde, a voltar ao seu país. Entretanto, o Chile que
casos de genocídio, tortura, terrorismo, pirataria, ele encontrou era diferente, tanto em termos políti-
narcotráfico e tráfico de seres humanos, especial- cos, pelo início do governo socialista de Ricardo La-
mente se as autoridades nacionais competentes se gos (2000-2006), quanto judiciais, com mais de cem
mostrassem incapacitadas ou impossibilitadas de acusações em sua conta. Assim, em junho de 2000,
assumir suas responsabilidades. Seguidamente, a Pinochet e outros oficiais acabaram sendo processa-
denominada União Progressista de Fiscais impetrou dos – e alguns deles condenados – pelos crimes co-
um processo penal contra os comandantes milita- metidos entre 1973 e 1990, particularmente no caso
res da última ditadura argentina – isto é, o general dos chamados detidos-desaparecidos.
Jorge Videla e o almirante Emilio Massera –, em Para que isso fosse possível, a Lei de Anistia,
virtude dos abusos cometidos contra os cidadãos que o governo pinochetista tinha promulgado em
espanhóis naquele país, entre 1976 e 1982. abril de 1978, fundamentalmente para se autopro-
Com esses antecedentes, Garcés e colabora- teger ou se anistiar de eventuais acusações penais,
dores decidiram acrescentar nesse mesmo proces- acabou sendo neutralizada e, na prática, mesmo
so uma acusação penal contra Pinochet e outros que não fosse formalmente derrogada, ficou sem
militares (ativos e na reserva) pelos abusos contra efeito, sob o argumento dos compromissos do Esta-
espanhóis e também chilenos durante o regime au- do chileno com normas internacionais de proteção

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dos direitos humanos. Essa peculiar situação criada Em síntese, o crime de setembro de 1976 é um
desde a detenção de Pinochet tem permitido aos relevante caso de investigação judicial e acadêmica.
procuradores e tribunais chilenos a realização de Considerado exemplo máximo de audácia e infâ-
novos inquéritos e condenações. mia, no marco geral da famigerada operação Con-
Cumpre frisar que o próprio general Pinochet dor e do terrorismo internacional, fica evidente que
não chegou a ser condenado, em virtude de razões o também virou paradigmático para os estudos em
humanitárias, bem como de suposta incapacidade justiça transnacional e, em termos mais abrangen-
física e mental para encarar um julgamento. Fale- tes, para os pesquisadores especializados e interessa-
ceu em 10 de dezembro de 2006, ironicamente a dos na defesa e na promoção dos direitos humanos
mesma data em que se comemora o Dia Internacio- e da democracia.
nal dos Direitos Humanos.
A detenção e eventual extradição de Pinochet
à Espanha erigiu-se em um caso paradigmático no Considerações finais
marco dos estudos e processos de justiça transnacio-
nal. Atualmente, lideranças e ex-governantes acusa- De uma perspectiva histórica, o legado do go-
dos por desaforados e massivos abusos aos direitos verno militar chileno e a personalidade do general
humanos devem pensar duas ou três vezes antes de Augusto Pinochet continuam sendo objeto de de-
viajar a países em que possam ser detidos e extradita- bates e controvérsias. Para os conservadores, o em-
dos – eis o denominado precedente Pinochet. presariado, parte do estamento militar e a extrema
Foi o que ocorreu, em junho de 2015, quando direita, o general Pinochet foi fundamentalmente
o governante sudanês Omar al-Bashir, acusado de um patriota, que conseguiu salvar o país do comu-
genocídio em Darfur, conseguiu fugir de um pro- nismo, aplastar a insurgência e modernizar – isto é,
cesso de justiça transnacional impetrado nas cor- liberalizar – a economia. Eles argumentam que o
tes da África do Sul. Na oportunidade, o governo bom desempenho econômico chileno da década de
sul-africano reconheceu a imunidade soberana de 1990 foi consequência, em grande medida, das re-
Al-Bashir, como governante que participava em formas econômicas e sociopolíticas impulsionadas
reunião de chefes de Estado dos países membros da no período autoritário. Nesse contexto, Pinochet
Organização da Unidade Africana. Acusações seme- aparece como um virtual déspota ilustrado – ou
lhantes foram apresentadas em tribunais espanhóis, um moderno Diego Portales, prócer conservador
belgas e de outros países europeus contra outros chileno da primeira metade do século XIX – que
governantes, entre eles Hassan II (Marrocos), The- conseguiu reerguer o país via manu militari após
odoro Nguema (Guiné Equatorial), Hissène Habré o infortúnio e a debacle do período democrático,
(Chade), Désiré Bouterse (Suriname) e Efraín que culminou com o golpe de setembro de 1973.
Ríos Montt (Guatemala). Para outros, Pinochet representa, como torturador-
Parece pertinente acrescentar que o caso Lete- -mór, uma versão contemporânea do que os antigos
lier-Moffitt continua aberto no Chile. Na atualida- romanos denominavam de hostis humani generis,
de procura-se investigar a participação de agentes do isto é, um inimigo de toda a humanidade. Daí que
segundo escalão da Dina/CNI, bem como a de civis, o debate histórico continua aberto, tanto no Chile
no encobrimento do crime. A verdadeira identi- quanto no exterior. “Mas, quando tudo tiver sido
dade da agente Liliana Walker, que participou do dito e feito, Pinochet provavelmente será lembra-
atentado em Washington com Townley e Fernán- do mais como um símbolo notório de repressão do
dez Larios, ainda não foi desvelada. E o senador que como um reformador econômico”, pondera,
chileno Juan Pablo Letelier, filho do Orlando Lete- de forma categórica e clarividente, Heraldo Muñoz
lier, tem o firme propósito de continuar trabalhan- (2010, p. 363).
do no inquérito até que todos os responsáveis pela Quarenta anos depois do homicídio de Orlan-
morte de seu pai e de Ronni Moffitt sejam proces- do Letelier é evidente que muitos avanços foram
sados e eventualmente condenados. conquistados pela sociedade e pelo Estado chile-

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no. Em 2015, por exemplo, a presidenta Bachelet Orlando Letelier passou à história como um dos
anunciou oficialmente o início das consultas po- mais destacados chilenos – e latino-americanos –
líticas e sociais para convocar a uma Assembleia do século XX.
Nacional Constituinte, com objeto de propor uma
nova Carta Magna para o país, suscetível de erra-
dicar muitos dos entraves e impasses que a Consti- Notas
tuição de 1980, verdadeira herança do regime mi-
litar, continua impondo à nação. Especificamente 1 Com efeito, no segundo debate presidencial, a 6 de
em relação aos abusos aos direitos humanos, parece outubro de 1976, Carter, tendo presente especifica-
pertinente verificar que muitas vítimas têm sido mente o caso chileno, acusou à administração republi-
agraciadas com reparações morais e materiais pelos cana de ter “derrubado um governo eleito e ajudado
a estabelecer uma ditadura militar” (apud Muñoz,
sofrimentos do passado. A construção da memória
2010, p. 134).
histórica predominante reivindica a luta e a resis-
2 Raul de Vicenzi ao Ministério das Relações Exteriores
tência das diferentes forças que combateram desde
(MRE), Telegrama 393 (confidencial-urgente), San-
o campo democrático. Muitas lideranças políticas tiago, Arquivo do Ministério das Relações Exteriores
atuais do Chile apresentam como credenciais suas (AMRE), 10 abr. 1978.
contribuições da juventude na luta contra o auto-
3 Paralelamente, o ex-chefe da Dina, general Manuel
ritarismo. E não poucas autoridades civis e milita- Contreras, respondendo a um inquérito militar so-
res expressaram pedidos de desculpas pelos crimes, bre o caso Letelier encabeçado pelo general Héctor
pelos excessos e pelos abusos do passado. A esse Orozco, reconheceu sua participação no crime, mas
respeito, parece pertinente refletir, com Heraldo acrescentou que “todas as operações no exterior ti-
Muñoz (2010, p. 357), o seguinte: nham sido autorizadas por Pinochet”, e alertou que
“ele tinha resguardado documentos em vários lugares
Pinochet era necessário? Valeu a pena o pre- em caso de que seja assassinado”. Por tanto, Pinochet
ço pago pela mudança? Claramente não. Para acabou suspendendo o inquérito militar e ordenando
a libertação do antigo chefe da polícia secreta (Korn-
começar, a repressão e a violência sistemática
bluh, 2004).
contra dissidentes não eram inevitáveis. Muito
provavelmente, as reformas econômicas do re- 4 Raul de Vicenzi ao MRE, Telegrama 1069 (confiden-
cial), Santiago, 23 set. 1978, AMRE.
gime Pinochet teriam, num contexto democrá-
tico, recebido a severa oposição de sindicatos 5 Raul de Vicenzi ao MRE, Telegrama 802 (confiden-
cial), Santiago, 26 out. 1978, AMRE.
trabalhistas, membros do Congresso e partidos
políticos; mas sua implantação, mesmo sob
regime autoritário, não exigia assassinato de
líderes sindicais, exílio de milhares de dissiden- Bibliografia
tes, tortura e desaparecimento de prisioneiros
políticos, atentados de bomba contra líderes ANTUNES, Priscila. (2007), “O sistema de inte-
exilados [o caso de Letelier] e um estado per- ligência chileno no governo Pinochet”. Varia
manente de guerra interna. História, 23 (38): 399-417.
BRANCH, Taylor & PROPPER, Eugene. (1982),
Nesse diapasão, o homicídio de Letelier apare- Labyrinth. Nova York, Viking Press.
ce como um dos mais simbólicos crimes do regime BYERS, Michael. (2000), “The Law and Politics of
pinochetista. O ex-ministro chileno foi condenado the Pinochet case”. Duke Journal of Comparati-
ao martírio em virtude da firmeza das convicções, ve & International Law, 10 (2): 415-441.
da consistência das ações em prol da democracia CAVALLO, Ascanio; SALAZAR, Manuel & SE-
e da transcendência de princípios e propósitos. PÚLVEDA, Oscar. (2008), La historia ocul-
Mesmo sem pretender fazer hagiografia de pessoa ta del Régimen Militar: memoria de una época
alguma, ao autor deste artigo parece evidente que 1973-1988. Santiago, Uqbar.

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O CASO LETELIER QUARENTA ANOS DEPOIS, 1976-2016 15

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16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 95

O CASO LETELIER QUARENTA THE LETELIER CASE FORTY L’AFFAIRE LETELIER 40


ANOS DEPOIS, 1976-2016: ENSAIO YEARS LATER, 1976-2016: AN ANS PLUS TARD, 1976-2016 :
DE INTERPRETAÇÃO INTERPRETIVE ESSAY TENTATIVE D’INTERPRETATION

Carlos Federico Domínguez Avila Carlos Federico Domínguez Avila Carlos Federico Domínguez Avila

Palavras-chave: Orlando Letelier; Chile; Keywords: Orlando Letelier; Chile; Au- Keywords: Orlando Letelier; Chili; Au-
Autoritarismo; Direitos Humanos; Justiça thoritarianism; Human Rights; Transna- toritarisme; Droits de l’Homme; Justice
transnacional. tional justice. transnationale.

O artigo explora os desdobramentos This paper explores recent developments L’article explore les récents développe-
recentes do chamado caso Letelier. Or- on the Letelier case. Orlando Letelier, ments de l’affaire Letelier. Orlando Lete-
lando Letelier, ex-ministro do governo former minister of Salvador Allende’s lier, ancien ministre du gouvernement de
da Unidade Popular e opositor do re- Government and opponent of the Chil- l’unité populaire et opposant au régime
gime militar chileno, foi objeto de um ean military regime, was shot in Wash- militaire chilien, a été assassiné à Was-
homicídio em Washington, em 21 de ington, on September 21st, 1976. His hington le 21 septembre 1976. L’épisode
setembro de 1976. O episódio passou a assassination came to be regarded as the a été considéré comme l’action la plus
ser considerado como a ação mais ousada most spurious action of the Chilean se- audacieuse de la police secrète du régime
da polícia secreta do regime militar chi- cret police and also from the so-called militaire chilien et, indirectement, de
leno e, indiretamente, também da deno- Condor operation. After four decades of l’opération Condor. Après quatre décen-
minada operação Condor. Após quatro pursuit by justice, the Letelier case is still nies en quête de justice et de punition
décadas de busca pela justiça e punição object of interdisciplinary academic re- des responsables intellectuels et matériels
dos responsáveis intelectuais e materiais search in different countries. This paper is de ce crime, l’affaire Letelier est toujours
do crime, o caso Letelier ainda é objeto based on diplomatic documentation and l’objet d’intenses recherches universi-
de intensa pesquisa acadêmica interdis- literature, as well as on the contributions taires interdisciplinaires dans différents
ciplinar em diferentes países. Este artigo of transnational justice. pays. Les recherches de cet article se
fundamenta-se em pesquisa com docu- basent sur de la documentation primaire
mentação primária e em literatura espe- et sur la littérature spécialisée, ainsi que
cializada, bem como nas contribuições sur les contributions de la justice trans-
da justiça transnacional. nationale.

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