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Escrito, no prelo, apresentado para a Revista da SESUNILA (Seção Sindical do

ANDES).
Ondas Autoritárias, Operação Condor e a Integração da Morte

Jacques de Novion

A História das Relações Internacionais da América Latina e o Caribe apresenta uma


historicidade própria, de longa duração, centrada no binômio de Integração e Segurança, que
marca do final do século XIX à atualidade, os caminhos construídos nas difíceis e tensas
relações dos países da região com a hegemonia estadunidense.

Revela também, em escala macrorregional, continental, o processo de construção e


consolidação da hegemonia dos EUA, do local ao global, conectadas aos acontecimentos
internacionais. Constatam-se cinco distintos momentos desse binômio, que combinam
políticas de integração com doutrinas de segurança: 1. Panamericanismo - Big Stick
(Diplomacia do Dólar e Política do Garrote); 2. Interamericanismo - Boa Vizinhança; 3.
Interamericanismo - Contra insurgência; 4. Aliança para o Progresso - Anticomunismo; 5.
Neoliberalismo - Nova Agenda de Segurança (Narcotráfico, Meio Ambiente, Imigração e
Terrorismo).

Nestes momentos, com particularidades e especialidades temporais e espaciais, é possível


observar que o binômio tem mais relação com a segurança que com a integração. É mais que
isso, impõem doutrinas de segurança que buscam adequar as realidades dos diferentes países
da região, combatendo as vozes críticas, contra hegemônicas e emancipatórias, garantindo a
partir de relações assimétricas, a implementação das propostas de integração. Desta forma,
esses interesses encontram apoio nas distintas realidades do continente americano, por meio
de cooptação das elites conservadoras que, nesta longa duração, foram fundamentais para a
implementação das doutrinas de segurança e das propostas de integração apresentadas pela
hegemonia estadunidense.

Nessa longa duração, entre tantos elementos possíveis, destaca-se a existência de três ondas
autoritárias, resultantes do avanço dos interesses hegemônicos, com participação decisiva das
elites nacionais, que implementam as doutrinas de segurança, readequando as realidades
internas aos interesses hegemônicos, por meio da violência e do autoritarismo.
A primeira onda autoritária, presente nos três primeiros momentos do Binômio, estabelece
as primeiras ditaduras do século XX, como na Nicarágua e a família Somoza, na República
Dominicana e Rafael Trujillo, no Haiti e a família Duvalier, em Cuba e Fulgêncio Batista,
no Paraguai e Alfredo Stroessner. Governos ditatoriais e autoritários, com alto índice de
violência frente a opositores e aos setores populares dessas sociedades. Por meio de
empresas, como a United Fruit Company, e o alinhamento das elites autoritárias passam a
reorganizar as realidades internas, como a manutenção da concentração da terra, por meio de
latifúndios monocultores, que mantiveram o alijamento das populações camponesas e
indígenas, mantendo a precariedade de vida dessas parcelas, instituindo a caracterização
dessas realidades como repúblicas bananeiras. Não por acaso nos três primeiros momentos
se expressam essas readequações de interesse das elites e da hegemonia, e que centram suas
ações autoritárias e violentas contra movimentos camponeses e indígenas, como o caso de
Augusto Sandino na Nicarágua e de Farabundo Martí em El Salvador, ou mesmo de governos
liberais eleitos democraticamente, como o caso guatemalteca com a deposição do governo
liberal de Jacobo Arbenz (1954).

A segunda onda autoritária no continente coincide com os elementos em torno ao fim da II


Grande Guerra e a Nova Ordem Mundial, onde o mundo se organiza de forma Bipolar,
estruturada na disputa sistêmica entre Socialismo (URSS) e o Capitalismo (EUA). A
mudança de uma perspectiva de ‘coexistência pacífica’ para a ‘guerra por satélites’, ou a
materialização da Guerra Fria no continente americano, ocorre com os acontecimentos em
torno da Revolução Cubana, evento que inaugura também o quarto momento do binômio. A
implementação da doutrina anticomunista em nosso continente se refere a cadeia de
acontecimentos em torno dessa revolução, como a tomada de poder (1959), a nacionalização
e estatização de empresas, como a United Fruit Company (1960), a invasão da Baia dos
Porcos por mercenários estadunidenses e cubanos (1961) e a reivindicação do socialismo
pelo processo cubano e a crise dos misseis (1962). A tensão em torno destes eventos
materializa o conflito bipolar no continente. Além da proximidade territorial entre os países
e da importância geopolítica do Grande Caribe para os interesses hegemônicos, a Revolução
Cubana se torna uma ameaça aos interesses hegemônicos dos EUA no continente. É a partir
desses elementos que a doutrina anticomunista, somada posteriormente a Aliança para o
Progresso, passa a marcar o período que congrega um dos momentos mais nefastos da história
recente do continente. Baixo o manto de uma suposta “onda comunista” produzida pela
Revolução Cubana no continente , os EUA intensificam a importância da Escola das
Américas, sediada no Panamá (1946), que passa a consolidar entre os quadros militares do
continente a segunda onda autoritária, com a deflagração das Ditaduras Empresarial-
Militares, como o caso paraguaio, com Alfredo Stroessner (1954); o brasileiro, com Arthur
da Costa e Silva (1964); o boliviano, com Hugo Banzer (1964); o argentino, com Juan
Onganía (1966); o uruguaio, com Juan María Bordaberry (1973); o chileno, com Augusto
Pinochet (1973); o argentino, com Jorge Videla (1976).

Desde o golpe no Brasil, as relações entre as ditaduras foram paulatinamente se estruturando,


com base nas doutrinas de Segurança Nacional e anticomunista ofertadas pela Escola das
Américas, com o apoio dos órgãos de inteligência e segurança dos EUA, como Pentágono e
a CIA. O caso brasileiro, inclusive, contou com apoio direto destes órgãos, como na Operação
Brother-Sam, onde tropas estadunidenses estavam de prontidão para o desembarque nesse
país, caso as forças populares e da sociedade civil atuassem contra o golpe de estado.

Porém, entre os golpes na região, chama-se atenção sobre os casos chileno e argentino. A
particularidade e importância do caso chileno reside em um elemento ímpar mundialmente.
A vitória presidencial de Salvador Allende em 1970 marca a primeira eleição democrática de
um projeto socialista no mundo. Este feito radicalizará as preocupações hegemônicas e das
elites empresariais e militares. Se para os interesses hegemônicos e das elites nacionais era
inaceitável uma revolução socialista armada, expressa pela experiência cubana, por outro
lado era mais inaceitável para estes interesses uma revolução democrática que, por meio do
voto, ascendesse eleitoralmente um projeto socialista. O golpe empresarial-militar no Chile
não só pretendia sufocar a experiência inédita, derrotar o projeto Socialista Democrático de
Allende e a Unidade Popular, mas mais que isso, passava a experimentação de um projeto
que décadas mais tarde se tornaria a cartilha obrigatória para as falidas economias pós-
ditaduras: o Neoliberalismo.

Já o caso argentino evidencia o cerco macrorregional, principalmente no cone-sul, dessa


segunda onda autoritária. O golpe de 1976 nesse país, não só marca essa integração
autoritária, com colaboração expressa entre as ditaduras na região, mas mais que isso, produz
a evidência da radicalidade dessas ditaduras em não aceitar vozes e pensamentos destoantes
aos manuais de tortura e de contra insurgência produzidos pelos órgãos de inteligência e
segurança dos EUA, e utilizados para instruir os militares latino-americanos na Escola das
Américas. Após o golpe no Chile, a Argentina se tornava o último país com um governo
democrático, tornando-se local de exilio para a maioria das nacionalidades desta parte do
continente. A violência e o terrorismo de Estado empreendidos nesse país não só ceifaram
milhares de jovens, mas também assassinou exilados e figuras políticas dos governos
depostos. A histórica luta das organizações de Direitos Humanos, como Madres de Plaza de
Mayo, Abuelas de Plaza de Mayo e da organização Hijos y Hijas, são demonstrações do
silenciamento e extermínio de toda uma geração de latino-americanos, onde o simples fato
de pensar diferente e desejar outro futuro coletivo possível era elemento suficiente para
ameaças, perseguições, prisões, torturas e desaparições.

E é neste período da segunda onda autoritária que se produz a Operação Condor, que apenas
em 1992 se confirma com a descoberta feita por Martín Almada, professor paraguaio preso
e torturado pela ditadura paraguaia, baixo acusação de terrorismo intelectual, vinculada a sua
atuação como representante de professores e a reivindicação de melhores salários e condições
de vida, como moradia. Antes dessa descoberta, a Operação Condor era tratada como delírio
de sobreviventes das torturas, ou de entusiastas da teoria da conspiração. Conforme o
documentário Rede Condor (2013), a descoberta de toneladas de documentos em uma
delegacia do interior do Paraguai demonstra a existência de toda uma coordenação entre as
ditaduras da região, com apoio dos órgãos de inteligência e segurança dos EUA, que
produziram uma integração da morte.

Segundo os trabalhos de Stella Callone e J. Patrice McSherry, a Operação Condor se


desenvolveu entre 1968 e 1989, embora sua estruturação oficial e, consequentemente, maior
infraestrutura e coordenação para as ações da morte, ocorreram em novembro de 1975. Essa
política de extermínio de opositores, coordenada de forma transfronteiras e transcontinental,
alcança ações de sequestros, desaparecimentos e assassinatos, produzidos por seus agentes
em países da região, assim como na Europa e nos EUA. Como, por exemplo, o atentado em
Washington D.C, em 21 de setembro de 1976, com o assassinato do ex-chanceler do governo
Allende, Orlando Letelier. O terrorismo de Estado, produzido em parceria pelas ditaduras do
Brasil, Chile, Argentina, Paraguai, Bolívia, Uruguai, e EUA, ocasionaram um atentado
terrorista dentro do próprio território estadunidense, que se pretende ‘bastião mundial da
democracia’.

A segunda onda autoritária no continente produziu não apenas a continuidade dos interesses
e esquemas hegemônicos em aliança com as elites nacionais, foi mais que isso, produziu,
instituiu, estruturou e materializou, a partir da pretensa ideia de ‘onda comunista’, o que
devemos entender como a integração da morte. Se nos quatro primeiros momentos do
binômio as propostas de integração hegemônicas não alcançaram os postulados propostos e
a extensão continental desejada, por outro lado a Operação Condor, infelizmente e muito
provavelmente, tenha sido a política de integração que lamentavelmente alcançou seu
proposito, de integrar a morte, do silenciamento, de toda uma geração latino-americana e
caribenha, que tinha, como único erro, o sonho e a esperança num futuro coletivo e próprio.

As reaberturas e redemocratizações a partir da década de 1980, com particularidades próprias


em cada país da região, coincidem com a imposição da cartilha neoliberal, como alternativa
de integração para superar as crises hiperinflacionárias. Soma-se a fragmentação do campo
soviético, que modifica a Ordem Mundial, com a Globalização, e com ela as perspectivas de
segurança, fragmentando o inimigo a combater em uma Nova Agenda de Segurança, que a
cada dia soma novos elementos. Quatro deles são de maior destaque, narcotráfico, terrorismo,
meio-ambiente e imigração.

Neste momento atual do binômio, e com base nas novas políticas de segurança e nos
interesses neoliberais, evidencia-se uma terceira onda autoritária. No início do século XXI,
após as crises neoliberais e o agravamento das realidades dos diferentes países do continente,
surgem os denominados governos progressistas, com um neoliberalismo híbrido,
combinando ortodoxia econômica com investimentos em políticas sociais. Estas experiências
produziram, entre outras, alternativas de integrações dos países latino-americanos, tendo a
CELAC -Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos-, política que chocava
com as pretensões hegemônicas e os contínuos interesses vinculados às elites nacionais. A
terceira onda autoritária, em curso, tem como exemplos os golpes do século XXI: Jean
Bertrand Aristide, no Haiti (2005); Manuel Zelaya, em Honduras (2009); Fernando Lugo, no
Paraguai (2012); Dilma Roussef, no Brasil (2016), Evo Morales, na Bolívia (2019). Além
destes, somam-se as investidas contínuas e fracassadas, como nos casos cubano, venezuelano
e nicaraguense, países afetados pela política de bloqueio econômico, imposto pelos EUA e
referendada pela Organização dos Estados Americanos (OEA).

Neste breve relato, sobre uma longa duração da história das relações internacionais nas
Américas, observa-se uma trajetória dos interesses hegemônicos no continente, com
envolvimento direto das elites nacionais, havidas em negociar parcos privilégios. Que em
três ondas autoritárias revelam a imposição da violência, do medo, do silêncio, não apenas
para garantir a implementação dos interesses hegemônicos, mas também por exterminar
vozes, pensamentos, propostas, construções, produzidas na América Latina e no Caribe. Uma
evidência da não aceitação de nossas próprias produções e esperanças coletivas de futuro por
parte dos interesses hegemônicos. Martín Almada, em entrevista a RT notícias, em 05 de
julho de 2016, denuncia que esta terceira onda autoritária é evidência da continuidade das
articulações da Operação Condor. Denuncia que alerta as sociedades da América Latina e do
Caribe de que nossos desejos e esperanças de futuro coletivo seguem amplamente vigiadas e
controladas pelos interesses dos EUA e das elites nacionais. A consciência e o conhecimento
deste processo histórico se demonstram fundamentais para que Nunca Más nossas sociedades
sejam vítimas das imposições hegemônicas e da implementação da integração da morte.

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