Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo:
Uma leitura mais crítica sobre o mesmo processo, realizada por Cervo e
Bueno (2002), assume que o pensamento brasileiro de política exterior guiou-se pelo
abandono, ou pela “demolição instantânea” (Cervo, 1997), do Estado
desenvolvimentista, que reforçava a autonomia da política externa com feições
nacionalistas, e a incorporação do Estado normal, invenção latino-americana do
início dos anos 1990 que visava ao estabelecimento incondicional dos ditames de
Washington nos planos econômico e externo. Para além das pressões externas,
contudo, a emergência do paradigma do Estado normal, responsável pela relativa
inconsistência e heterogeneidade da política externa brasileira do período Collor (cf.
Batista, 1993; Hirst e Pinheiro, 1995), relaciona-se com a chegada ao poder, ao
redor da América Latina, de grupos sobreviventes ao esmagador consenso cepalino
que vigorava desde os anos 1950 no continente. Ademais, “[i]rrompeu com tamanha
força, coerência e convergência regional entre os países, que nada se lhe compara
em outras partes do mundo” (Cervo, 2003, p. 15).
Três são as faces do Estado normal, observadas ao longo da década de 1990
em grande parte dos países latino-americanos: a do Estado subserviente, cuja
principal característica seria a submissão às coerções do centro hegemônico do
capitalismo; a do Estado destrutivo, que coloca fim ao núcleo duro da economia
nacional e transfere renda ao exterior; por fim, a do Estado regressivo, que reserva
para a nação as funções da infância social (Cervo e Bueno, 2002, p. 457). Essas
características justificariam, de alguma forma, a visível guinada ao americanismo por
parte das elites neoliberais latino-americanas, em busca da renovação de uma
aliança especial, esquecida, por exemplo, durante o governo Reagan. O exemplo
mais sintomático, neste sentido, seria o alinhamento da Argentina aos Estados
Unidos no fim dos anos 1980 e o estabelecimento de “relações carnais”, segundo o
então chanceler daquele país, Guido di Tella, que se estenderam ao longo da
próxima década.
À semelhança da adoção incondicional do paradigma americanista por parte
de nossos vizinhos, o Brasil também se rendera, na opinião de Cervo e Bueno
(2002), às relações especiais com os Estados Unidos, motivado pela “normalização”
do Estado. Mais do que isso, na opinião de Moniz Bandeira (1997), a adesão ao
receituário do Consenso de Washington e o alinhamento ideológico e político aos
Estados Unidos representaram, no período, condição fundamental para que os
países latino-americanos pudessem renegociar a dívida e receber recursos das
agências financeiras internacionais. Ao mesmo tempo, prossegue o autor,
Até mesmo Paulo Tarso Flecha de Lima, a quem Azambuja sucedeu no posto
de chanceler interino, teve papel fundamental num dos episódios mais caros à
política externa brasileira diante da crise do Golfo: a retirada de 450 trabalhadores
brasileiros retidos no Iraque, às vésperas da intervenção norte-americana. A
despeito de quaisquer possíveis divergências entre Flecha de Lima, já fora do cargo
que ocupara durante todo o governo Sarney, e o chanceler Francisco Rezek, sua
convocação é indicativa de que havia interesse do governo em se manter próximo
dos diplomatas de visão afim, mesmo tendo servido sob o presidente anterior (a
posição liberal de Flecha de Lima, a propósito, será tratada adiante).
O mesmo ceticismo com que a ideia do alijamento do Itamaraty deve ser
encarada, como se buscou mostrar nas linhas anteriores, deve balizar a apreciação
da tese de que o presidente deteve a paternidade intelectual das transformações
que imprimiu no âmbito das relações exteriores durante seu mandato. Afinal de
contas, parece-nos implausível supor que Collor tenha construído todo um conjunto
de diretrizes para a inserção internacional do Brasil, a partir de um marco neoliberal,
que fora simplesmente replicado pelos diplomatas que gravitavam ao seu redor.
Como já visto, até mesmo os discursos iniciais do presidente foram cuidadosamente
trabalhados a partir de concepções já existentes, como aquelas defendidas por José
Guilherme Merquior. Nesse diapasão, sustenta Velasco e Cruz (2004) que, a
despeito do “selo” de Collor que marca a abertura neoliberal de sua política externa,
a ele não pode ser atribuída a concepção das transformações em seu sentido lato. O
exemplo oferecido pelo autor é o da liberalização comercial, levada às vias de fato
no governo Collor, mas gestada na esfera da Comissão de Política Aduaneira desde
1985, quando começou a se estudar a revisão das Tarifas Aduaneiras Brasileiras
(Velasco e Cruz, 2004, p. 143). Uma demonstração ainda mais evidente de que as
transformações empreendidas no governo Collor não eram inéditas pode ser
encontrada na postura do primeiro chanceler de Sarney, Olavo Setúbal. Ele buscou,
durante sua curta gestão à frente do MRE, romper com o paradigma universalista
que prevalecia no Itamaraty. Mesmo que não tenha logrado êxito, frente à
resistência da corporação diplomática, o argumento evocado pelo chanceler muito
se assemelha com aquele apregoado pelo Collor candidato, ou mesmo pelo Collor
presidente, meia década mais tarde:
Considerações finais
ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon de et. alii (orgs.). Sessenta Anos de Política
Externa Brasileira, vol. 1. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.
ARBILLA, José María. “Arranjos Institucionais e Mudança Conceitual nas Políticas Externas
Argentina e Brasileira (1989-1994)”. Contexto Internacional, vol. 22, no. 2, 2000.
AZAMBUJA, Marcos Castrioto de. “A Política Externa do Governo Collor”. São Paulo:
Instituto de Estudos Avançados, 1991.
CANANI, Ney. Política Externa no Governo Itamar Franco. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2004.
CERVO, Amado e BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. 2ª. ed.
Brasília: Ed. UnB, 2002.
CRUZ JR, Ademar Seabra de; CAVALCANTE, Antonio Ricardo F.; PEDONE, Luiz. “Brazil’s
Foreign Policy Under Collor”. Journal of Interamerican Studies and World Affairs, vol. 35,
no. 1, 1993.
HIRST, Monica e PINHEIRO, Letícia. “A Política Externa do Brasil em dois tempos”. Revista
Brasileira de Política Internacional, vol. 38, no. 1, 1995.
LIMA, Maria Regina Soares de. “Ejes Analíticos y Conflicto de Paradigmas en la Política
Exterior Brasileña”. America Latina/Internacional, vol. 1, no. 2, 1994.
PEREIRA, Analúcia Danilevicz. A Política Externa do Governo Sarney. Porto Alegre: Ed.
UFRGS, 2003.
PINHEIRO, Letícia. “Traídos Pelo Desejo: um ensaio sobre a teoria e a prática da Política
Externa Brasileira Contemporânea”. Contexto Internacional, vol. 22, no. 2, 2000.
PRZEWORSKI, Adam. “The Neoliberal Fallacy”. Journal of Democracy, vol. 3, no. 3, 1992.
PUTNAM, Robert. “Diplomacy and Domestic Politics: the logic of two-level games”.
International Organization, vol. 42, no. 3, 1988.
i
Todas as opiniões contidas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor. Favor não citar
sem autorização. E-mail: casaroes@gmail.com