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ISSN 0102-2571

Nº 35 Nº 35 Nº 35
2017 2017 2017

Neste número
Andrey Rosenthal Schlee

Hermano Queiroz

Jurema Machado

Lia Calabre

Lucia Hussak Van Velthem

Marcia Sant’anna

Márcia Chuva

Marcos Olender

Maria Cecília Londres Fonseca

Maria Lucia Bressan Pinheiro

Mário Chagas

Milton Guran

Paulo Ormindo de Azevedo

Roberto Pontes Stanchi

Tania Andrade Lima

Yussef Daibert Salomão de Campos

Zoy Anastassakis

Iphan 1937–2017
Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional nº 35 / 2017
ISSN 0102-2571

Iphan 1937–2017
ORGANIZAÇÃO: Andrey Rosenthal Schlee
PRESIDENTE DA REPÚBLICA DO BRASIL
Michel Temer

MINISTRO DE ESTADO DA CULTURA


Sérgio Sá Leitão

PRESIDENTE DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO


HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
Kátia Bogéa

DIRETORES DO IPHAN
Andrey Rosenthal Schlee
Hermano Queiroz
Marcelo Brito
Marcos José Silva Rego
Robson Antônio de Almeida

CHEFE DE GABINETE DO IPHAN


Rafael Arrelaro

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO IPHAN SELEÇÃO DAS IMAGENS A Revista do Patrimônio é publicada


Fernanda Pereira Andrey Rosenthal Schlee pelo Instituto do Patrimônio
Assessoria de Comunicação Histórico e Artístico Nacional, do
ORGANIZAÇÃO Autores Ministério da Cultura, desde 1937.
Andrey Rosenthal Schlee Cristiane Dias Os artigos são autorais e não
refletem necessariamente a posição
ORGANIZADORES-COLABORADORES COLABORADORES do Iphan e do organizador deste
António Miguel de Sousa Adélia Soares número, Andrey Rosenthal Schlee.
Hermano Queiroz Carolina Di Lello Silva
Yussef Daibert de Campos Glayson Nunes Instituto do Patrimônio Histórico
Ivana Cavalcante e Artístico Nacional
EDIÇÃO E COPIDESQUE Karina Monteiro De Lima SEPS 713/913, Bloco D, Edifício
Caroline Soudant Leonardo Prudente Iphan. 70390-135 - Brasília (DF)
Roberto Stanchi
REVISÃO E PREPARAÇÃO DOS TEXTOS
Gilka Lemos FOTO DA CAPA
Marcel Gautherot
DIREÇÃO DE ARTE E DIAGRAMAÇÃO
Cristiane Dias (a partir do projeto
gráfico de Victor Burton)
Iphan 1937–2017
Maria Lucia Bressan Pinheiro Mário Chagas
Trajetória das ideias preservacionistas Museus e patrimônios: por uma
no Brasil: as décadas de 1920 e 1930 13 poética e uma política decolonial 121

Lia Calabre Marcia Sant’Anna


O Serviço do Patrimônio Artístico A cidade-patrimônio no Brasil:
Nacional dentro do contexto da lições do passado e desafios
construção das políticas públicas contemporâneos 139
de cultura no Brasil 33
Maria Cecília Londres Fonseca
Paulo Ormindo de Azevedo A salvaguarda do patrimônio cultural
Patrimônio Cultural e Natural como imaterial no Iphan: antecedentes,
fator de desenvolvimento: a revolução realizações e desafios 157
silenciosa de Renato Soeiro, 1967-1979 45
Roberto Stanchi
Zoy Anastassakis O patrimônio arqueológico: oitenta
A cultura como projeto: Aloisio anos de delegações 171
Magalhães e suas ideias para o Iphan 65
Yussef Daibert Salomão de Campos
Márcia Chuva Desafios propostos pela Constituição
Possíveis narrativas sobre duas de 1988 ao patrimônio cultural 203
décadas de patrimônio: de 1982 a 2002 79
Milton Guran
Andrey Rosenthal Schlee e Hermano Queiroz Sobre o longo percurso da matriz
O jogo de olhares 105 africana pelo seu reconhecimento
patrimonial como uma condição
para a plena cidadania 213

Lucia Hussak vanVelthem


Patrimônios culturais indígenas 227

Jurema Machado
Feito em casa: o Iphan e a cooperação
internacional para o patrimônio 245

Tania Andrade Lima


O licenciamento ambiental no Iphan:
o socioambiente em questão 285

Marcos Olender
O afetivo efetivo. Sobre afetos,
movimentos sociais e preservação
do patrimônio 321

Acervo: Cyro Corrêa Lyra.


R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

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M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
Mar ia Cecília Londres Fonseca

A C I O N A L
A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL

I PHAN : ANTECEDENTES , REALIZAÇÕES E DESAFIOS

N
NO

R T Í S T I C O
A
E
I S T Ó R I C O
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Um dos maiores desafios que se selecionados passou da atribuição de valor
apresentam ao Instituto do Patrimônio “excepcional” – de acordo com o discurso
Histórico e Artístico Nacional - Iphan vigente nas primeiras décadas da instituição

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desde sua criação, há oitenta anos, tem – à identificação de sua “relevância para

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sido o de cumprir sua função institucional a memória, a identidade e a formação da
no que diz respeito a fundamentar, na sua sociedade brasileira” (art. 216 da CF de

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atuação, a atribuição de caráter “nacional” 1988), considerada em sua diversidade –
ao patrimônio que vem sendo constituído conforme as concepções hegemônicas a
por meio de instrumentos a cada dia mais partir das últimas décadas do século XX, em
numerosos e diversificados – tombamento, que tem sido determinante a influência da
registro, inventário, chancela de paisagem antropologia e das ciências sociais. Essa nova
cultural, registro como sítio arqueológico etc. diretriz vem qualificar a trajetória do Iphan
É, portanto, com base nos critérios usados no sentido de acompanhar as transformações 157
para a atribuição de valores, tanto daqueles da sociedade brasileira, aproximando o
discriminados no Decreto-lei n 25, de 30
o
patrimônio titulado do modo como essa
de novembro de 1937 – histórico, artístico, sociedade se representa. Consequentemente
arqueológico, bibliográfico, etnográfico, – e também em decorrência do preceito
paisagístico –, quanto dos compatíveis constitucional de incluir a sociedade como
com a gama mais ampla e genérica de bens parceira do poder público na tarefa de
apresentada no artigo 216 da Constituição preservar o patrimônio (art. 216, par. 1º
Federal –CF de 1988, que o Iphan conquista da CF de 1988) –, na medida em que o
legitimidade junto aos outros entes do poder olhar da instituição se amplia, as leituras
público e à sociedade para preservar, por meio do território e de sua ocupação se fazem a
da aplicação dos institutos legais que definem partir de diferentes perspectivas e, sobretudo,
o escopo de sua atuação, os bens titulados. abrem-se espaços para acolher as múltiplas
Ao longo dos últimos oitenta anos, vozes das comunidades existentes nesta Bonecas Karajá
Acervo: Copedoc/Iphan/
a explicitação da importância dos bens imensa nação. Por esse motivo, os esforços Marcel Gautherot.
do Iphan têm contribuído, sobretudo nas – Sphan, a partir de sua criação, em 1937,
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últimas décadas, para construir e divulgar, estruturou sua política visando proteger bens
A C I O N A L

junto a essa sociedade, “retratos do Brasil” móveis e imóveis de valor “excepcional”.


cujos elementos vão mapeando a rica e Foi esse olhar, portanto, que norteou o
multifacetada diversidade cultural do povo intenso e extremamente difícil trabalho de
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brasileiro. identificação desses bens em todo o imenso


Neste artigo, vamos nos concentrar na território brasileiro, priorizando a proteção
A

abordagem dessa dimensão simbólica da daqueles ameaçados de descaracterização ou


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missão do Iphan, analisando-a a partir dos desaparecimento, e concentrando-se, por


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passos dados pela instituição na formulação esse motivo, nas regiões em que a ocupação
e implementação de sua política pública em do colonizador deixou marcos reconhecidos,
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seus oitenta anos de existência. Entretanto, tanto por serem testemunhos de “fatos
A T R I M Ô N I O

dada a proposta desta publicação e o fato de a memoráveis” de nossa história como por
história da instituição já ter sido apresentada serem considerados exemplares “autênticos”
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em inúmeras obras, o fio condutor deste da criatividade artística brasileira. Esse


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texto será a construção da política federal processo de seleção tinha como bases uma
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para a salvaguarda do patrimônio cultural historiografia que privilegiava os marcos


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imaterial (PCI). Nesse campo, de recente da conquista do território, assim como


M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a

formulação, o Iphan foi um dos países as diferentes fases da organização política


pioneiros na comunidade internacional e da nação, e uma estética pautada em uma
constitui referência também para os estados determinada leitura dos estilos arquitetônicos
e municípios, bem como para iniciativas e artísticos.
da sociedade, elaborando conceitos, A equipe liderada por Rodrigo
instrumentos e práticas, num constante Melo Franco de Andrade, apoiada por
158
processo de produção e de avaliação, sempre um Conselho Consultivo composto
em parceria com os outros atores envolvidos. majoritariamente por arquitetos, historiadores
e artistas, contou também com uma rede de
COMO CHEGAMOS colaboradores nas diversas regiões do país,
O N D E E S TA M O S ? tais como Luís Saia (SP), Sílvio Vasconcelos
(MG), Airton Carvalho (PE), Godofredo
Um ponto de partida para a abordagem Filho (BA), que encontravam grandes
do tema pode ser a desconstrução das noções dificuldades, não só em termos operacionais
de “patrimônio” e de “valor nacional”, que como por atuarem em nome de uma política
são nucleares na formulação das políticas considerada “elitista” e que vinha de encontro
públicas de patrimônio nos diversos países. aos interesses “desenvolvimentistas” então
Com base em experiências europeias já vigentes, especialmente nos meios urbanos.
consolidadas – algumas desde o século Embora figuras como Mário de Andrade
XIX, como a francesa – o então Serviço do já propusessem, nos anos 1930, uma visão
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional mais abrangente do que seria o patrimônio
brasileiro, a imagem do Brasil moldada a elaborado em 1936 por Mário de Andrade

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partir dos Livros do Tombo nas primeiras a pedido do então ministro da Educação e

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décadas do Sphan só passou a ser questionada Saúde, Gustavo Capanema, que a atuação
devido aos seus limites materiais e sobretudo do Iphan passou a ser questionada nos anos
simbólicos, a partir das últimas décadas do 1970-1980. Esse movimento teve grande

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século XX. E isso na medida em que se expressão no Centro Nacional de Referência
constatavam lacunas quanto a testemunhos Cultural – CNRC, criado em 1975 sob a

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fundamentais de nossa história, entendida direção do designer Aloisio Magalhães –, e

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numa perspectiva mais ampla – ou seja, da integrado à Fundação Nacional Pró-Memória,

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presença dos indígenas, habitantes destas no âmbito do então Ministério de Educação
terras desde tempos imemoriais; das inúmeras e Cultura – MEC, em 1979. O objetivo do

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revoltas contra o poder constituído desde CNRC era o desenvolvimento de experiências

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a Colônia; das marcas do longo período da voltadas para o conhecimento e apoio das
escravidão; dos movimentos rumo à ocupação mais diversas manifestações culturais, com

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do interior do país, etc. Do mesmo modo, especial atenção ao chamado “patrimônio não

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não havia meios legais para a inscrição, consagrado”, bem como para ações visando à

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nos Livros do Tombo, das memórias e das inclusão das comunidades envolvidas como

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tradições de vários grupos étnicos e culturais parceiras.

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
que vivem no Brasil, como os grupos A opção pelo foco na noção de “referência
indígenas, os afrodescendentes, as populações cultural” abriu espaço e orientou projetos
rurais etc. Essas últimas manifestações são, inovadores no campo do patrimônio, que,
em sua grande maioria, produções coletivas inclusive, puderam recorrer aos recursos
de transmissão oral – fugindo, portanto, do das incipientes tecnologias da informação.
caráter de “bens móveis e imóveis”, passíveis Essas experiências foram importantes para a
159
de tombamento. Mas eram objeto de atenção elaboração dos capítulos relativos à cultura
dos folcloristas, que, num movimento na Constituição Federal de 1988, que, por
paralelo à política do órgão federal que sua vez, forneceram as bases jurídicas para a
tinha como atribuição legal a proteção formulação da política federal de patrimônio
do patrimônio nacional, pesquisavam, imaterial, iniciada no ano 2000. Delas resultou
documentavam e recolhiam peças, reunindo também, nesse período, a elaboração, pelo
importantes acervos das culturas populares. Iphan, da metodologia do Inventário Nacional
Esse trabalho foi, em nível nacional, assumido de Referências Culturais – INRC, instrumento
pela Comissão Nacional do Folclore, criada amplamente utilizado para a identificação de
em 1947 e, a partir de 1958, pela Campanha bens culturais a serem preservados com base na
de Defesa do Folclore Brasileiro – CDFB, no percepção e nos valores que lhes são atribuídos
âmbito do Ministério da Educação e Cultura. por seus detentores.
Foi, portanto, a partir de uma releitura Além disso, o processo de
do anteprojeto para a criação de um Serviço redemocratização em curso desde o início
do Patrimônio Artístico Nacional – Span, dos anos 1980, mobilizando a sociedade
civil para a reivindicação de direitos, trouxe identificar, promover, proteger e fomentar”
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para o Iphan – que, em 1985, foi integrado esse patrimônio.


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ao recém-criado Ministério da Cultura – O trabalho que se seguiu resultou na


MinC com a denominação de Secretaria do edição, em 4 de agosto de 2000, do Decreto
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – no 3.551, que
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Sphan – demandas que punham em questão


(...) institui o registro de bens culturais de
a representatividade nacional do “patrimônio
natureza imaterial que constituem patrimônio
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consagrado” pelo poder público, tanto em cultural brasileiro, cria o programa nacional do
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função dos limites legais do instituto do


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patrimônio imaterial e dá outras providencias.


tombamento, como de alguns critérios
vigentes para constituir esse acervo, como já Foram criados quatro livros de registro:
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mencionado. Livro dos Saberes, Livro das Celebrações,


A T R I M Ô N I O

A Constituição Federal de 1988, Livro das Formas de Expressão, Livro dos


em seus artigos 215 e 216, incorporou Lugares (ver MEC/Iphan, 2000).
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também em relação à cultura o princípio da Nesse decreto estão discriminadas as


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cidadania plena, ampliando e diversificando principais diferenças, no processo do registro,


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a conceituação do agora denominado em relação às condições aplicadas ao processo


de tombamento de bens materiais, conforme
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“patrimônio cultural brasileiro” e instituindo


M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a

a sociedade como parceira do Estado na o que está especificado no Decreto-lei no


responsabilidade e na tarefa pela preservação 25/1937: a) o pedido deve ter natureza
desse patrimônio. Em consequência, os coletiva; b) a instrução do processo é
preceitos constitucionais, ao garantirem descentralizada, não sendo, portanto, tarefa
explicitamente, no artigo 215, a valorização exclusiva do Iphan; c) o título é outorgado em
das culturas já mencionadas, e ampliarem, caráter transitório, devendo o bem objeto do
160
no artigo 216, além dos tipos de bens, os registro ser reavaliado a cada dez anos. A esses
instrumentos de preservação, trouxeram requisitos foram acrescentados, por inspiração
desafios aos órgãos públicos que tinham essa de programa da Unesco – Proclamação das
missão e, particularmente, ao novamente Obras-Primas do Patrimônio Oral e Imaterial
denominado Iphan. da Humanidade, criado em 1999 –, a
Esse foi um dos motivos para que a exigência de anuência prévia dos detentores
comemoração dos sessenta anos do Iphan, relativamente à titulação e a apresentação
em 1997, fosse marcada pela realização, de um plano de salvaguarda adequado à
em Fortaleza, do Seminário Internacional especificidade do bem, a ser elaborado
Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas com a participação de seus detentores. Já
de Proteção, cujas recomendações indicaram o critério de evidência de continuidade
ao ministro da Cultura a necessidade de histórica do bem cultural permanece comum
serem tomadas providências no sentido aos processos de tombamento e de registro
da “elaboração de diretrizes e a criação de a serem avaliados. No âmbito do Iphan,
instrumentos legais e administrativos visando foram criados, em 2004, o Departamento do
Patrimônio Imaterial – DPI, que incorporou A experiência do Iphan, e particular-

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o Centro Nacional de Folclore e Cultura mente a do DPI, com a salvaguarda

A C I O N A L
Popular – CNFCP, e, junto ao Conselho dos conhecimentos tradicionais de bens
Consultivo, em 2010, a Câmara Setorial do registrados no Livro dos Saberes tem
Patrimônio Imaterial. habilitado a participação da instituição,

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No curso dos dezessete anos da edição do representando o Ministério da Cultura, no
Decreto n 3.551/2000, a política do Iphan
o
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético

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voltada para a salvaguarda do patrimônio – CGEN, no âmbito do Ministério do

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imaterial foi se ampliando em várias direções, Meio Ambiente. Esse tipo de atuação está

I S T Ó R I C O
em função das demandas que o tema necessariamente relacionado à articulação
suscita e também dos processos de avaliação com outras áreas da administração pública,

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realizados pelo próprio DPI, evidenciando e, não apenas a ambiental como as da

A T R I M Ô N I O
consequentemente, intensificando a relação agropecuária, do desenvolvimento, da justiça,
desse campo com os de outras políticas entre outras. No CGEN o representante do

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públicas. MinC tem participado ativamente da Câmara

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Por exemplo, a partir do pedido de Temática de Conhecimento Tradicional

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registro de uma língua falada por imigrantes Associado. Em 2011 o Iphan foi credenciado

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italianos do sul do país – o talian, que a participar também dos processos de

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
adquiriu aqui feição própria, diferenciando- autorização de pesquisa científica com foco
se do dialeto vêneto que lhe deu origem –, a em conhecimentos tradicionais associados
questão da diversidade linguística mereceu a recursos genéticos, uma vez que estava
um trabalho interinstitucional que levou à previsto no MP 2.186-16, de 2001, que criou
edição, em 2010, do Decreto da Presidência o CGEN, que esses conhecimentos “integram
da República n 7.387, de 9 de dezembro de
o
o patrimônio cultural brasileiro”, conforme
161
2010, que instituiu o Inventário Nacional especificado na Lei no 13.123/2015,
da Diversidade Linguística – INDL, conhecida como Lei da Biodiversidade.
instrumento julgado o mais apropriado para Embora não seja atribuição direta do
a documentação e valorização das diversas Iphan atuar na penalização da biopirataria,
línguas existentes no Brasil, desde as inúmeras ou da destruição do meio ambiente onde
línguas indígenas (a maioria ágrafas) até a vivem as comunidades que desenvolvem,
Língua Brasileira de Sinais – Libras. Essa perpetuam e utilizam os conhecimentos,
linha de atuação, sob a gestão do MinC, em geral essenciais à sua sobrevivência
envolve vários outros ministérios e tem e à sua identidade, é, sim, missão do
a participação fundamental do Instituto Iphan conscientizar esses grupos para a
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, importância cultural desses conhecimentos
que, desde então, vem reunindo informações e dar apoio em busca dos meios necessários
censitárias essenciais para as políticas voltadas à defesa de seus direitos, basicamente
para essa questão, em particular aquelas por meio da elaboração e participação no
relativas aos grupos indígenas. desenvolvimento de planos de salvaguarda.
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L

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M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s

Acervo: Iphan.
São Benedito, PA
Mastro de
Um bom exemplo dessa situação é a elaboração da que veio a ser a Convenção

A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural

A C I O N A L
do Rio Negro-AM, bem registrado em Imaterial, aprovada em 2003, uma vez
2010 no Livro dos Saberes. Trata-se de um que era um dos poucos países que já
conjunto articulado de conhecimentos, dispunham então de instrumento legal

N
R T Í S T I C O
práticas, sentidos e valores em torno do voltado para essa finalidade, assim como de
cultivo, processamento e utilização de conhecimentos e experiências nesse campo

A
diferentes espécies de mandioca, muitas desenvolvidos em anos anteriores. Além de

E
delas desenvolvidas pela comunidade participar das reuniões intergovernamentais

I S T Ó R I C O
no exercício dessa atividade e a partir de para a elaboração do texto da Convenção
trocas codificadas entre os detentores. A (2002-2003), o Brasil integrou o Comitê

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configuração desse bem registrado e o Intergovernamental por ela criado (2006-

A T R I M Ô N I O
processo de sua salvaguarda comprovam 2008; 2013-2016) e tem prestado assistência
observação de Barbara Kirshenblatt- internacional sempre que solicitado. O

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Gimblett (2004, p. 53): Congresso Nacional do Brasil ratificou

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a Convenção em 2006, o que a converte

E V I S T A
(...) enquanto, à semelhança do patrimônio
em lei a ser respeitada no território
tangível, o patrimônio imaterial é cultura, à

R
brasileiro (Decreto Legislativo no 22/2006,
semelhança do patrimônio natural, é vivo (...).

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
promulgado pelo Decreto no 5.753/2006).
Requer, portanto, instrumentos de Em nível regional, o Brasil é um dos
preservação mais flexíveis e, sobretudo, membros fundadores do Centro Regional
participativos. para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
No nível internacional, e no campo da América Latina – Crespial e participa
específico do que veio a ser denominado da Comissão de Patrimônio Cultural do
163
patrimônio cultural imaterial, o Brasil Mercosul.
já vinha acompanhando os trabalhos, na Até o final de 2016 foram inscritos
Unesco, de questionamento dos limites nos Livros de Registro do Iphan quarenta
do alcance da Convenção do Patrimônio bens. Nas Listas criadas pela Convenção
Mundial, de 1972, particularmente em da Unesco de 2003, foram inscritos cinco
relação ao reconhecimento e à preservação bens na Lista Representativa do Patrimônio
de culturas autóctones e populares, tais Cultural Imaterial da Humanidade; um
como os conhecimentos tradicionais e as bem na Lista do Patrimônio Cultural
manifestações folclóricas. Esses trabalhos Imaterial que Requer Medidas Urgentes
resultaram na aprovação, em 1989, da de Salvaguarda; e dois bens na Lista de
Recomendação sobre a Salvaguarda da Programas, Projetos e Atividades que
Cultura Tradicional e Popular (Blake, melhor refletem os princípios e objetivos da
2001). No início de 2002, o Brasil sediou, Convenção.
no Rio de Janeiro, uma das reuniões
da Unesco preparatórias ao processo de
QUAIS parte, ao caráter necessariamente participativo
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s

A S C O N Q U I S TA S
ALCANÇADAS E QUAIS OS da prática de preservação do patrimônio
A C I O N A L

D E S A F I O S PA R A O F U T U R O ? cultural imaterial, têm influenciado também


as ações de proteção de bens culturais móveis
e imóveis e contribuído para um maior
N

A análise da experiência acumulada nesses


R T Í S T I C O

dezesseis anos nos permite fazer algumas envolvimento da sociedade nessa missão.
considerações sobre os resultados alcançados, Exemplo esclarecedor nesse sentido é
A

até o momento, por essa política pública o tratamento que vem sendo dado pelo
E

Iphan – juntamente com outras instituições


I S T Ó R I C O

federal e delinear alguns dos desafios que


se apresentam, não apenas ao Iphan, mas a públicas e privadas e com a sociedade –
todos os envolvidos com a salvaguarda do aos vestígios e, sobretudo, à memória da
H

escravidão, particularmente na cidade do Rio


A T R I M Ô N I O

patrimônio cultural imaterial.


A formulação de uma política pública de Janeiro. Como sabemos, a documentação
voltada especificamente para a proteção relativa a esse assunto foi em grande parte
P

desse patrimônio revelou-se uma estratégia destruída – ato cuja motivação tem sido
D O

oportuna, naquele momento, no sentido de objeto de controvérsias – e os vestígios


E V I S T A

abrir caminhos para a inclusão, no acervo materiais são igualmente escassos e pouco
R

do patrimônio cultural instituído pelo representativos. No Rio de Janeiro, cuja


M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a

Iphan, de bens fundamentais no processo região portuária recebeu o maior fluxo


de formação da nação brasileira, o que de africanos escravizados nas Américas,
viabilizou o reconhecimento de manifestações sobretudo desde as últimas décadas do
culturais de grupos como os já citados, até século XVIII até a proibição do tráfico, em
então menos favorecidos pelas políticas de 1850, praticamente não restavam vestígios
patrimônio. Algumas dessas manifestações materiais do Cais do Valongo – e do Cais
164
chegaram, inclusive, a ser objeto de da Imperatriz, que o sucedeu –, encobertos
perseguição policial até meados do século em diferentes momentos. O mesmo ocorreu
XX, como rituais de religiões afro-brasileiras com o Cemitérios dos Pretos Novos, próximo
e indígenas (candomblé, umbanda, culto ao Cais do Valongo, de cuja localização
à jurema etc). Outras, embora aceitas e exata não se tinha informação segura. Esse
abertamente praticadas, eram reconhecidas cemitério, na verdade uma área de descarte
apenas enquanto “folclóricas”, de caráter dos africanos escravizados que chegavam
popular, carecendo, do ponto de vista mortos ou ainda moribundos ao porto
vigente na política federal de patrimônio do Rio de Janeiro, foi usado entre 1779 e
histórico e artístico, de requisitos para serem 1830 e abandonado quando da proibição
reconhecidas pelo poder público como do tráfico de escravos. O Cais do Valongo
patrimônio da nação brasileira. foi posteriormente encoberto pelo Cais da
Além do avanço do ponto de vista Imperatriz, em 1843, que, por sua vez, foi
conceitual, do ponto de vista operacional os aterrado na reforma urbanística da gestão do
resultados alcançados, devido, em grande prefeito Pereira Passos, no início do século
XX. A exata localização do cemitério ficou procurou-se trazer à tona os testemunhos

A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
indefinida, pois se sabia apenas que era materiais de um momento da história do

A C I O N A L
próxima ao Cais do Valongo. Brasil amplamente referido em memórias,
Ora, em 1996, os proprietários de obras de arte – particularmente na iconografia
residência na região encontraram, no material produzida por viajantes estrangeiros, como

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R T Í S T I C O
retirado do solo em obras de reforma, Debret – e, claro, na historiografia, mas que,
restos de corpos humanos identificados por salvo nos tombamentos do Terreiro da Casa

A
arqueólogos como vestígios de negros vindos Branca (BA) e da Serra da Barriga (AL),

E
da África que ali haviam sido enterrados. ocorridos nos anos 1980, não tinha presença

I S T Ó R I C O
Visando à preservação e exposição de material marcante nos Livros do Tombo.
encontrado na região, tão importante para a Sem dúvida, a menção específica à pro-

H
memória das comunidades afro-brasileiras, o teção do direito à propriedade da terra aos

A T R I M Ô N I O
casal de proprietários criou, em 13 de maio quilombolas como obrigação do Estado no
de 2005, o Instituto de Pesquisa e Memória artigo 68 da Constituição Federal de 1988

P
Pretos Novos – IPN, organização privada constituiu um expressivo avanço no reconheci-

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sem fins lucrativos, e instalou na casa o mento do direito à memória das comunidades

E V I S T A
Memorial dos Pretos Novos, local de visitação afrodescendentes do Brasil . Mas, no caso da

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de estudantes e turistas. Essas iniciativas cidade do Rio de Janeiro, a presença africana

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
integram o sítio arqueológico do Cais do só passou efetivamente a integrar o patrimônio
Valongo, sob proteção do Iphan desde 2012, reconhecido pelo Iphan com o registro em
e que, por sua importância para a história da 2005, no Livro das Formas de Expressão, do
humanidade, é candidato a inscrição na Lista Jongo, em quatro estados brasileiros (SP, RJ,
do Patrimônio Mundial da Unesco. ES e MG), e também, em 2007, das Matrizes
Esse caso merece destaque neste texto do Samba Carioca – manifestação que teve
165
por evidenciar a importância de uma origem na mesma região do Rio de Janeiro,
concepção integrada de patrimônio cultural, então denominada Pequena África, para onde
pois consideramos que a distinção entre haviam sido trazidos anteriormente milhares
“material” e “imaterial” funcionou como uma de africanos escravizados. Outra referência
estratégia oportuna para viabilizar a inclusão, importante da presença afro-brasileira na re-
no repertório de bens protegidos pelo poder gião é o prédio das antigas Docas D. Pedro II,
público, de manifestações culturais como, no projeto do engenheiro afrodescendente André
caso do Brasil, o riquíssimo e diversificado Rebouças, tombado pelo Iphan em 2016.
legado das culturas afrodescendentes já Atualmente, portanto, a tendência no
incorporadas pelos historiadores e cientistas Iphan é de abordar, da forma mais abrangente
sociais como signos de uma identidade e integrada possível, os bens apresentados para
brasileira. Ora, no caso apresentado, a serem reconhecidos como patrimônio cultural
importância dessa iniciativa se dá no sentido do Brasil, identificando-os em suas múltiplas
contrário ao do movimento que levou à dimensões e aplicando os instrumentos de
edição do Decreto no 3.551/2000, ou seja, proteção adequados.
Quanto aos desafios que se apresentam o seu registro e que são constitutivos
A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s

à política de salvaguarda do patrimônio da identidade daquela comunidade.


A C I O N A L

cultural imaterial do Iphan, destacamos aqui Entretanto, diferentemente da reação a


os que nos parecem, no momento, os mais danos causados nos bens tombados, no
significativos: caso dos bens registrados não se trata de
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R T Í S T I C O

1) Um aspecto de complexa abordagem necessariamente aplicar uma lei e punir


é a definição do bem a ser registrado, pois os que descaracterizaram o bem – mesmo
A

é preciso não esquecer que as propostas porque a identificação desses efeitos danosos
E

não são mero reflexo de uma realidade, é de difícil aferição –, mas de, sempre
I S T Ó R I C O

mas construções feitas a partir de leituras respeitando o protagonismo de produtores


e recortes com base nos contextos em que e detentores, apoiá-los na complexa tarefa
H

ocorrem as manifestações em questão. É da salvaguarda do bem. Cabe ao poder


A T R I M Ô N I O

possível que as propostas encaminhadas para público, e particularmente ao Iphan, auxiliá-


deliberação do Conselho Consultivo do los na mobilização dos recursos legais e
P

Patrimônio Cultural – que são fruto de um administrativos que possam contribuir para
D O

longo processo de coleta de informações e viabilizar a continuidade do bem, atendendo


E V I S T A

de análise – não coincidam exatamente com aos interesses dos detentores, com base no
R

o entendimento que alguns produtores e respeito aos seus direitos e na busca de formas
M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a

detentores têm de seus bens culturais. Por esse de reparação de danos a seu patrimônio.
motivo, é tão importante a participação de 3) Como foi dito antes, um decreto
todos os atores sociais envolvidos ao longo do como o que criou o registro não gera
processo, assim como o estabelecimento de nem normatiza o exercício de direitos
formas de permanente diálogo. e deveres específicos, mas, de acordo
2) Sem dúvida a concessão do título com interpretações recentes do texto
166
de Patrimônio Cultural do Brasil, em constitucional (Queiroz, 2016), seus
decorrência do registro, terá impactos na efeitos estão relacionados ao exercício dos
dinâmica do bem em questão. Se, por direitos culturais especificados no artigo
um lado, o reconhecimento, o apoio e a 215 da Constituição Federal de 1988, entre
divulgação de uma manifestação cultural eles o direito à memória, a que devem
podem trazer benefícios de toda ordem para ter acesso todos os cidadãos brasileiros. É
os detentores e as localidades onde ocorre, fato que algumas manifestações culturais
por outro lado deve haver atenção para que poderiam ser entendidas como
eventuais efeitos danosos de intervenções bens de caráter imaterial já dispõem de
externas, sobretudo no caso de comunidades instrumentos normatizados de proteção
tradicionais. A predominância do interesse legal, como as leis de direito autoral e de
pelo potencial do bem enquanto espetáculo, propriedade intelectual. Mas outras, como
por exemplo, assim como a ênfase em ações os conhecimentos tradicionais citados antes,
visando gerar lucros financeiros, pode vir em geral de caráter coletivo e de transmissão
a se sobrepor aos valores que justificaram oral entre as gerações, não apresentam
os requisitos para a aplicabilidade dos Wajãpi (AM), bem registrado em 2002 Cuias
Acervo: Iphan/
Francisco Costa.
instrumentos legais mencionados , embora e inscrito na Lista Representativa do 167
sejam muito vulneráveis à apropriação Patrimônio Imaterial da Unesco (Brayner,
indébita por parte de terceiros. Por esse 2012; Jaenisch, 2010; Queiroz, 2016 ).
motivo, a farta documentação produzida Assim, o DPI vem se dedicando a estruturar,
nos inventários e na instrução dos processos junto ao meio jurídico, formas de atuar em
de registro é fundamental para comprovar a defesa dos chamados direitos difusos desses
propriedade coletiva desses bens e assegurar grupos sociais.
a reparação de danos eventualmente 4) A noção de patrimônio cultural
causados por terceiros, assim como a justa imaterial enquanto objeto de política pública
repartição dos benefícios, de todo tipo, tem sido apropriada das mais diversas
gerados por seu uso. Um exemplo de maneiras, em parte devido à ambiguidade
iniciativa bem-sucedida nesse sentido foi que ainda cerca esse termo, de recente
a reação à tentativa de uso comercial, não incorporação às políticas culturais em todo
autorizado pelos detentores, dos padrões o mundo, mas também por sua capacidade
gráficos da Arte Kusiwa, da etnia indígena de mobilizar os mais diversos grupos sociais.
Ora, conforme estabelecido na Convenção exige um trabalho complexo de conceituação e
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da Unesco de 2003, a principal justificativa de busca das formas adequadas de preservação.


A C I O N A L

para o investimento nesse campo do No caso da salvaguarda, não se trata apenas


patrimônio cultural é a preocupação com a de produzir documentação que assegure a
“salvaguarda” (termo utilizado no título dessa memória dessas manifestações, mas também
N
R T Í S T I C O

Convenção de 2003) de tais bens, sobretudo de contribuir para a manutenção de condições


quando reconhecidos pelo poder público. favoráveis à continuidade do bem registrado.
A

No caso do Brasil, está fundamentada no E, se no caso dos bens móveis e imóveis, a


E

parágrafo 1º do art. 216 da Constituição existência de um aparato legal é imprescindível


I S T Ó R I C O

Federal de 1988. Nesse sentido, alguns à atuação do poder público visando à sua
critérios, além dos já citados anteriormente, proteção, no caso do PCI são, sem dúvida,
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deveriam ser respeitados em qualquer a vontade, a competência e o empenho


A T R I M Ô N I O

processo de titulação de bens culturais de dos atores envolvidos – com o necessário


natureza imaterial: a) a produção prévia de protagonismo dos produtores e detentores –
P

conhecimento que comprove, entre outros os fatores decisivos para a continuidade desse
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aspectos, a continuidade histórica do bem; tipo de patrimônio. Nesse sentido, um dos


E V I S T A

b) o encaminhamento participativo do objetivos mais importantes dos planos de


processo de reconhecimento, que legitima a salvaguarda é o de dar apoio à organização dos
R

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a

iniciativa junto à sociedade; c) condições que detentores, de modo a constituir interlocutores


assegurem o compromisso do poder público que sejam considerados seus legítimos
no sentido de assumir, em parceria com as representantes pelas comunidades envolvidas.
comunidades envolvidas, a responsabilidade No caso da já citada Arte Kusiwa dos Wajãpi,
pela salvaguarda do bem. Entretanto, o cujo título de Patrimônio Cultural do Brasil
aspecto mais visível dessa política, no Brasil, foi revalidado na 85ª reunião do Conselho
168 tem sido a concessão de um título, o que Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada
é evidenciado em iniciativas de caráter em Brasília no dia 27 de abril de 2017, a
meramente declaratório, seja em nível federal, organização dos grupos Wajãpi em uma
estadual ou municipal – sobretudo por parte associação, a Apina, ainda antes do Registro,
do poder legislativo – e, em consequência, e a conscientização e qualificação das gerações
com repercussão predominantemente mais jovens quanto ao valor de seu patrimônio
política, sem maiores compromissos com e a importância de seu engajamento na
a salvaguarda do bem, o que induz a uma salvaguarda foram fundamentais para os
percepção equivocada dos objetivos dessa resultados alcançados nos mais de dez anos do
política pública, contribuindo para sua processo de salvaguarda, viabilizando assim a
banalização. revalidação do título. A etapa da salvaguarda,
5) A contribuição da antropologia, como no entanto, não é de fácil execução, uma vez
observa Chiara Bortolotto (2011:22), tem sido que implica em compatibilizar constantemente
fundamental na elaboração das noções relativas contextos culturais, visões de mundo e,
ao campo do PCI, que, por sua especificidade, frequentemente, interesses distintos. Por
esse motivo, torna-se difícil fixar normas REFERÊNCIAS

A s a l va g u a r d a d o p a t r i m ô n i o c u l t u r a l i m a t e r i a l n o I p h a n : a n t e c e d e n t e s , r e a l i z a ç õ e s e d e s a f i o s
ou padrões de atuação, pois cada caso exige
BLAKE, Janet. Elaboration d’un nouvel instrument

A C I O N A L
a elaboração de propostas diferenciadas,
normatif pour la sauvegarde du patrimoine culturel
construídas em constante processo de diálogo, immatériel: eléments de réflexion. Paris: Unesco, 2001.
e permanentemente avaliadas quanto a seus

N
BORTOLOTTO, Chiara. “Le trouble du patrimoine

R T Í S T I C O
resultados (Sant’Anna, 2016). culturel immatériel”. In: ______ (org.). Le patrimoine
culturel immatériel: enjeux d’une nouvelle catégorie.
6) Finalmente, está cada vez mais Paris: Editions de la Maison des Sciences de l’Homme,

A
evidente que todos os desafios mencionados 2011. P. 22

E
exigem, tanto na proteção do patrimônio BRAYNER, Natália Guerra. Direitos culturais, afirmação

I S T Ó R I C O
identitária e patrimonialização: a salvaguarda das
material como na salvaguarda do imaterial,
expressões orais e gráficas dos Wajãpi. In: Colóquio
além da participação das comunidades e das Internacional La Transmisión de la Tradición para la

H
organizações da sociedade civil, articulação Salvaguardia y Conservación del Patrimonio Cultural,

A T R I M Ô N I O
2012, Campeche, México.
do Iphan com instituições públicas cujas
JAENISCH, Damiana Bregalda. Arte Kusiwa: pintura
políticas tenham interfaces com sua atuação corporal e arte gráfica wajãpi. Etnografia da Salvaguarda

P
e seus objetivos. Sem dúvida, trata-se de uma de um bem registrado como patrimônio cultural do

D O
Brasil. Brasília: Iphan, 2010.
tarefa difícil, inclusive em função de eventuais

E V I S T A
KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara. Intangible
instabilidades institucionais e interferência de
heritage as metacultural production. Museum
motivações sobretudo políticas, mas cabe ao

R
International, nº 221/222, Paris, Unesco, p. 53,

M a r i a C e c í l i a L o n d r e s Fo n s e c a
Iphan, em parceria com os atores envolvidos mai.2004.

nessa missão, administrar essas várias MEC/IPHAN. O registro do patrimônio imaterial: dossiê
final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho
intercorrências, tendo sempre como objetivo do Patrimônio Imaterial. Brasília: Ministério da Cultura/
o cumprimento de seus deveres institucionais Iphan, 2000.
junto à sociedade. QUEIROZ, Hermano Fabrício de Oliveira Guanais e. O
registro de bens culturais imateriais como instrumento
Concluindo, esses desafios, se não
constitucional garantidor de direitos
enfrentados em conformidade com as diretrizes 169
culturais. Salvador: Diretoria de
nacionais e internacionais dessa política Cultura/Ipac; Brasília:Iphan,
2016.
pública, podem se constituir em riscos, seja
SANT’ANNA, Márcia. A
devido às dificuldades na implementação noção de sustentabilidade
dessas diretrizes, seja por práticas que podem no âmbito da política
de salvaguarda do
levar à banalização dessa noção tão relevante
patrimônio cultural
para a identificação e valorização de nossa imaterial do Brasil.
riquíssima diversidade cultural, sempre no Aurora 463 – Revista
da Semana do
sentido de tornar cada vez mais nacional nosso
Patrimônio Cultural de
patrimônio. Por outro lado, é inegável que Pernambuco, nº 1, v. 1,
os esforços para desenvolver e divulgar essa Recife, Fundarpe, 2016.

política têm contribuído para desconstruir


preconceitos, promover a cidadania e incluir
todos os brasileiros na tarefa de preservar nosso
patrimônio.

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