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SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
Ciência, História, Mito e Arte
2010
2 SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
FICHA TÉCNICA
Título
SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
Ciência, História, Mito e Arte
Autora
Judite Maria Zamith Cruz
Organização
Ana Paula Moreira Vilela
Edição
Cadernos Escola e Formação
do Centro de Formação de Associação de Escolas Braga/Sul
Execucação Gráfica
Minhografe – Artes Gráficas, Lda.
Braga
ISBN
978-989-96569-0-1
Depósito Legal
N.º 307773/10
Apoios
ÍNDICE
Dedico este livro . ............................................................................................................................................ 5
INTRODUÇÃO................................................................................................................................................. 17
CAPÍTULO I
Psicologia actual: perspectivismo nas abordagens construtivistas e narrativas
1. Difíceis mudanças na estrutura cognitiva da criança............................................................................ 27
2. Freud, Velázquez e Magritte: pensamentos maduros cruzados........................................................... 28
2.1. A imaginação é um processo psíquico assombroso ..................................................................... 30
2.2. O inconsciente no pensamento alemão......................................................................................... 31
2.2.1. Funções imagética e narrativa da mente ........................................................................... 31
3. Da psicanálise à psicologia narrativa ................................................................................................... 34
3.1. Visões do «eu» distintas: Freud e Watson.................................................................................. 36
3.1.1 O mundo de que não posso falar porque não o vivi:
a experiência mística oriental............................................................................................... 37
CAPÍTULO II
Educação Sexual na família, na escola e na sociedade: base evolutiva e desenvolvimental
1. Contextos de Educação Sexual formal e informal................................................................................ 45
2. O que é a sexualidade e quais são as zonas erógenas?..................................................................... 46
3. Educar para a sexualidade é simplesmente educar............................................................................. 46
3.1. Conceitos-chave: afecto, emoção, desejo, erotismo e pornografia............................................... 47
4. Valores e sexualidades......................................................................................................................... 48
4.1. Educação sexual, linguagens e atitudes....................................................................................... 49
4.2. Comunicação entre sexos e laços inter-geracionais..................................................................... 50
4.3. Amores incompreendidos e dificuldade de diálogo: Abelardo e Heloísa....................................... 50
4.4. Caminhos cruzados de fé e sexualidade....................................................................................... 51
4.5. As «fazedoras de anjos de Nagyrev»: mulheres que matam os seus maridos............................. 52
5. Sigmundo Freud tinha e não tinha razão na questão sexual................................................................ 53
6. Sexualidade e reprodução.................................................................................................................... 54
7. Desenvolvimento humano «normal».................................................................................................... 54
7.1. Primeiro amor incondicional: relação mãe-bebé............................................................................ 56
7.2. A plasticidade do cérebro da criança............................................................................................. 57
7.3. Brincadeiras na infância: feminilidade e masculinidade.................................................................. 58
7.4. Curiosidade de crianças de todo o mundo.................................................................................... 59
7.5. Educação inflexível e educação equilibrada do jovem.................................................................. 61
7.6. Adolescências «normal» e «tresmalhada».................................................................................... 63
7.7. Alice no País das Maravilhas: «- Mas quem sou eu?»................................................................... 65
8 ÍNDICE
8. Amores adolescentes............................................................................................................................ 66
8.1. O casamento da «menor» japonesa Butterfly com um militar americano..................................... 66
8.2. Do amor casto de Adão e Eva ao casamento cristão.................................................................... 68
8.3. O amor «impróprio» na China maoísta – Verdita ......................................................................... 70
9. Amor adulto, função de aquisição de auto-conhecimento.................................................................... 70
10. Crenças e medos das doenças sexualmente transmissíveis ............................................................ 71
11. Os métodos contraceptivos e a gravidez desejada............................................................................. 72
CAPÍTULO III
O prodígio das histórias: verdade, ciência e nuances de amar
1. Palavra, imagem e significados............................................................................................................. 81
1.1. Primeira distinção entre mitos e grandes narrativas alegóricas.................................................... 82
1.2. O significado da imagem: metáfora e compreensão do mundo...................................................... 82
2. Os rituais humanos............................................................................................................................... 83
3. Verdade e amor platónico em «O Simpósio» - o valor da palavra........................................................ 84
4. Amores travessos.................................................................................................................................. 86
4.1. A descoberta do amor por Eros e Psyque – o valor da metáfora................................................... 86
4.1.1. O beijar é um acto pecaminoso?......................................................................................... 88
4.2. O amor em Mangaia, uma ilha do Pacífico..................................................................................... 89
4.3. O que é um acto sexual na tribo baruya da Nova Guiné?............................................................... 89
4.4. O enamoramento é limerence........................................................................................................ 90
4.5. Sobre Narciso: rejeição de Eco e vaidade castigada.................................................................... 91
4.5.1. «Efeito de Narciso» - as pessoas preferem pessoas mais parecidas consigo.................... 91
4.5.2. A «síndrome de De Clérambault» - certas pessoas preferem celebridades........................ 92
5. A química do amor entre Justin e Ursula ............................................................................................. 92
6. A «síndrome de Kluver-Bucy» - tentar fazer amor com pedras............................................................ 93
7. A observação do cérebro do macaco no acto sexual e o comportamento sexual humano.................. 93
8. Existe um cérebro gay?......................................................................................................................... 96
9. A bênção no amor................................................................................................................................. 96
10. A alquimia no amor cortês e no amor sexual........................................................................................ 96
10.1. O amor cortês medieval, segundo Guilherme da Aquitânia...................................................... 96
10.2. O amor sexual no Rosarium Philosophorum (1550): a alquimia . ............................................ 97
11. Tristão e Isolda: a realidade absoluta de um sonho de amor envenenado......................................... 98
12. Uma tragédia de ciúme: Otelo de Shakespeare................................................................................. 99
13. Três contos de fadas: O Capuchinho Vermelho, A Bela Adormecida e A Branca de Neve.............. 100
14. Lendas inesquecíveis: a busca do prazer no sabor de um morango silvestre................................. 101
CAPÍTULO IV
O fascínio pelas artes plásticas e pela escrita: história, arte e nudez
1. Nudez real, imaginária e simbólica..................................................................................................... 109
2. Avaliações subjectivas de beleza.........................................................................................................111
2.1. Critérios estéticos antigos e contemporâneos..............................................................................111
2.2. Características ocidentais do companheiro indesejável...............................................................113
3. Nudez e sonho na arte.........................................................................................................................113
4. A pornografia, o erotismo e a censura à escrita...................................................................................114
5. O tratamento da nudez na pintura renascentista.................................................................................115
5.1. O tema mitológico de Leda e o cisne trabalhado por Poussin, Melzo e Dalí...............................116
5.2. A mulher nua de costas de Jean Auguste Ingres..........................................................................118
6. A Era Vitoriana: crítica de costumes e eliminação da nudez por William Hunt....................................118
7. A nudez na publicidade do século XXI.................................................................................................119
8. A pintura crítica de velhos costumes: Paula Rego................................................................................ 120
9. Educar para a cultura.......................................................................................................................... 122
9 ÍNDICE
CAPÍTULO V
Símbolos sexuais, culturas e sociedades
1. Diferença de significados: biologia animal, cultura e sociedade......................................................... 127
1.1. O belo e frágil pavão emplumado................................................................................................ 128
1.2. A simbologia da pomba branca.................................................................................................... 128
2. Sexualidade em símbolos: deuses, artefactos e rituais populares .................................................... 129
2.1. As representações gregas de Leto, Artemísia, Deméter e Dionísio com as Ménades................ 129
2.2. A mandorla e o vesica piscis: símbolos sexuais femininos.......................................................... 131
2.3.O Sheila-Na-Gig: sexualidade e protecção................................................................................... 132
2.4. A cornucópia: corno da abundância............................................................................................. 132
2.5. Exuberantes gigantes itifálicos.................................................................................................... 133
2.6. Outras representações fálicas exorbitantes: símbolos de poder, sexualidade e prazer . ........... 134
2.6.1. O Maypole: a elevação do pau gigante na Primavera....................................................... 135
2.7. A boneca de milho: fertilidade primaveril..................................................................................... 136
2.8. O bolo de noiva: união familiar e alimento................................................................................... 137
2.9. O ônfale do Templo de Delfos: pedra sagrada, umbigo ou clítoris.............................................. 137
2.9.1. A morte da Suma Sacerdotisa de Delfos às mãos de Apolo:
imposição do poder masculino........................................................................................... 138
2.9.2. O clítoris: etimologia da palavra, encobrimento e excisão................................................ 138
2.10. Significados sexuais em jóias, amuletos e feitiços de amor...................................................... 139
3. Simbólico sexual, forma de comunicação humana............................................................................. 140
CAPÍTULO VI
Sonhos sexuais e alegorias de criação do mundo
1. Sonhos: o medo, a criatividade e o simbólico....................................................................................... 147
2. Os sonhos milenares: presságio e origem de mitos........................................................................... 150
2.1. Sonhos recorrentes e adivinhação.............................................................................................. 150
2.2. O sonho eterno de voar no mito de Dédalo e Ícaro..................................................................... 151
3. A vida é sonho..................................................................................................................................... 152
3.1. Sonho parte integrante da vida .................................................................................................. 153
4. A vida é sonho lúcido?......................................................................................................................... 155
5. Interpretação de sonhos e sexualidade: primeiras tipologias de sonhos............................................ 156
5.1. Santo Agostinho e o pesadelo de visões terríficas: o pecado original......................................... 157
6. Contemporaneidade e interpretação dos sonhos............................................................................... 158
6.1. Interpretação freudiana.................................................................................................................... 158
6.2. Interpretação junguiana................................................................................................................... 160
6.2.1. Sonho de primeiro nível – não simbólico.................................................................................. 160
6.2.2. Sonho de segundo nível – confuso.......................................................................................... 161
6.2.3. Sonho de terceiro nível – simbólico ......................................................................................... 161
7. Que sentido podem fazer certos sonhos?.......................................................................................... 162
7.1. Antiga visão da exterioridade dos sonhos................................................................................... 163
8. Grandes narrativas espirituais expressas em sonhos: sentidos de vida............................................ 165
8.1. O ADN cultural da humanidade................................................................................................... 165
8.1.1. Exemplares de literatura alegórica........................................................................................... 165
8.1.2. As aventuras duma mulher primordial «casada» com uma árvore . ........................................ 166
9. A grande narrativa cristã...................................................................................................................... 167
9.1. O mito do pecado original............................................................................................................ 167
CAPÍTULOS VII
Ídolos efémeros, mitos ancestrais, amores e sexualidades intemporais
1. Juventude e insatisfação humana . .................................................................................................... 175
1.1.O mito da procura: o Julgamento de Páris................................................................................... 177
1.2. O mito de fealdade, rejeição e castigo: Galateia e o Polifemo.................................................... 180
10 ÍNDICE
CAPÍTULO VIII
A perspectiva arquetípica da mente
1. O inconsciente colectivo de Carl Gustav Jung..................................................................................... 195
2. Anima e animus................................................................................................................................... 196
3. Criaturas multifacetadas, personas e almas ...................................................................................... 198
3.1. As mulheres guerreiras: valquírias e amazonas.......................................................................... 198
3.2. Don Juan: uma persona em acto................................................................................................. 199
3.3. A «síndrome de Casanova»: uma persona ingrata...................................................................... 200
3.4. Os súcubos e os íncubos, sôfregos sugadores de energia alheia.............................................. 202
3.5. Casos de mulheres bíblicas assassinas: Salomé e Judite.......................................................... 202
3.6. Sereias dos mares, armadilhas de marinheiros........................................................................... 204
4. O arquétipo sombra presente no gigante Zammurrad e na dupla Mefistófeles-Doutor Fausto.......... 205
5. O arquétipo mãe e o psiquismo do próprio Jung ............................................................................... 207
CAPÍTULO IX
Diversidade humana: sexualidades e tantrismo
1. Dois conceitos do século XXI: alteridade e diversidade........................................................................ 215
2. O eu indiviso no hermafroditismo de humanos e de Deuses.............................................................. 215
2.1. A heróica Ayyappan, filha de dois pais Deuses........................................................................... 217
3. Dualidade oriental revisitada: o «eu» é co-dependente do outro........................................................ 219
4. Tantra, a energia erótica...................................................................................................................... 220
4.1. O tantrika.......................................................................................................................................... 220
4.2. Símbolos sexuais tântricos: Triângulo Duplo, Yoni Yantra e Yab-Yum........................................ 221
4.2.1. O Shri Yantra: a consciência e o Cosmos......................................................................... 222
4.3. Uma figura-chave do tantra: Cáli, «a Demoníaca»...................................................................... 223
4.3.1. Os mais tocantes símbolos sexuais tântricos: o yoni e o linga.......................................... 225
5. O poder (Shakti) de Xiva: a Sexualidade Cósmica............................................................................. 227
6. A relação subtil corpo-mente: o corpo etéreo e as chakras................................................................ 228
Referências................................................................................................................................................... 239
Nota de Abertura
Diz-nos a nossa parca experiência que, neste assunto, se tem privilegiado a abordagem da
dimensão biológica em detrimento de outras dimensões, igualmente importantes, como as de natu-
reza afectiva, cultural, social, ética e jurídica. A nova lei apresenta a educação sexual como matéria
de “educação nacional”, entronada no sistema de ensino como conteúdo curricular, tranversal às
diferentes disciplinas, ancorado, tal como previa o Conselho Nacional de Educação, no “Projec-
to educativo das escolas, sendo estas obrigadas a integrá-la num projecto de intervenção, que
deve ser elaborado, realizado e avaliado com a participação da comunidade educativa” (parecer
nº2/2009, de 26 de Março).
Neste sentido, este livro pretende fazer a simbiose entre diversas dimensões passíveis de
abordagem na educação sexual, sempre com propósitos pedagógicos e que impliquem também a
abordagem de uma outra faceta da educação sexual: a implícita/inconsciente, a que se agarra ao
modo de viver e que decorre do ambiente familiar, da conversa com os amigos, dos contactos so-
ciais, propiciando-se os dois modos de desenvolvimento nas crianças e adolescentes – o cognitivo
e o simbólico. Entretanto, o primeiro pode sobrepor-se ao segundo e ficamos mais capazes de
raciocinar, sem sentir e sem pensar de forma a imaginarmos meras possibilidades. O quotidiano
torna-se-nos ordenado, simples, lógico e linear.
Por seu turno, os sistemas simbólicos servem para categorizar e para comunicar com a ima-
gem concreta, a fantasia criativa e a linguagem fluente. Os mitos, as narrações e os dramas histó-
rico-culturais, melhor ou pior traduzidos na forma de contos para a infância ou em dramatizações
para adolescentes, permitem aos mais pequenos e aos jovens compartilhar histórias acerca do
mundo longínquo e acerca da origem da nossa história. Vistos como cânones, permitem ainda a
exploração dos significados de moralidade e de negociação entre o bem e o mal, o passado e o
presente, o futuro e o «eu».
Por outro lado, a cultura visual que também se explora neste livro possibilita-nos ir mais longe
-dá-nos a recriação com o imaginário, o simbólico e a existência, condições do domínio cognitivo
inconsciente e estava tácito.
O Centro de Formação de Associação de Escolas Braga/Sul esteve atento a estas novas
possibilidades de intervenção na sala de aula e quis sublinhar, com esta publicação, o contributo
inovador que emana desta nova abordagem da sexualidade e da educação, tendo lançado o repto
à formadora de transformar em livro algumas das sugestões que vaguearam nas referidas acções
de formação.
Trata-se, portanto, de um livro que não obedece aos cânones tradicionais de outras publi-
cações sobre educação e sexualidade. Não se elegeu aqui a via das regras e preceitos que expli-
cam o nome dos órgãos sexuais, não se prescreveram orientações sexuais e jamais se pretendeu
que constituísse um compêndio de teses indiscutíveis ou um receituário de aplicação simples e
automática. Esta publicação é, tão-só e apenas, o produto da reflexão dos educadores sobre temas
que foram debatidos na formação e que são, alguns deles, passíveis de abordagem com os nossos
alunos ou com os nossos filhos, no dia-a-dia das nossas vivências profissionais e pessoais com as
crianças e, principalmente, com os adolescentes.
Como já tivemos oportunidade de esclarecer, o presente livro percorreu um caminho pouco
concorrido, equacionados indivíduos, tempos e lugares de eleição que melhor veiculassem o es-
13 NOTA DE ABERTURA
clarecimento das temáticas afloradas. Ambicionou-se então realizar este livro como uma colagem,
no sentido outorgado por Max Ernest, ou seja, um encontro de duas realidades não relacionadas: a
escola e a vida. Nesse sentido, à vida foi dado um cunho de arte pela fantasia criativa incorporada
em palavras e imagens, expondo-se, a par, aspectos da psicologia evolucionista para a sexuali-
dade, indicações fornecidas pela investigação psicológica recente, critérios de valor ético e toma-
das de posição sobre situações contextualizadas de amor.
Por esta razão, este livro não constitui uma obra fechada, mas sim uma espécie de dossier
em construção para se ir completando, actualizando e partilhando por professores, pais, encar-
regados de educação e alunos ou na interacção entre eles. Também, por esta razão, não obriga a
uma leitura sequencial (do princípio ao fim), deixando ao leitor a iniciativa de o ler por capítulos, por
estórias, por imagens, ao sabor da criatividade, da imaginação e, principalmente, da curiosidade.
Informar, desmistificar preconceitos, observar a discriminação entre sexualidades e práticas
diversas, quer sejam de índole cultural, religiosa ou política, ultrapassar holisticamente as frontei-
ras da educação sexual recorrendo à sociologia, à literatura, à antropologia, à etologia, à história
da arte, à biologia, à psicologia, à psicanálise, à cinematografia, à literatura... explorando idiossin-
crasias, estórias ilustradas, narrações várias com o propósito último de propiciar aos professores
o fortalecimento dos seus saberes e o reconhecimento da sua autonomia na abordagem criativa
dos conceitos e, principalmente, na gestão curricular que se deseja ver assumida e fortalecida sem
excessivas orientações.
Facilita-se ainda o conhecimento da informação disponível através de um CD ROM que
contém as imagens desta edição e que podem ser utilizadas de forma interactiva, narrando-se as
interpretações que se oferecem para as mesmas. Confia-se assim ao professor a selecção dos
materiais mais apropriados a si mesmo, aos alunos, à escola e ao contexto em que se encontra.
Com o conjunto de recursos didácticos que aqui se apresentam, propicia-se uma correcta
aquisição dos saberes fundamentais sobre a sexualidade, o desenvolvimento harmonioso dos alu-
nos pela abertura que é dada aos valores universais, ao apreço pelos traços distintivos da identi-
dade sexual de cada um, despertando-os para as dimensões ética e artística da vida e para a curi-
osidade e a aventura da descoberta sistemática - são estes, aliás, os pilares sobre que repousam
o sucesso de todo o processo educativo.
Por último, diremos que todos nós, educadores, precisamos de aprofundar os nossos conhe-
cimentos e, principalmente, de reflectirmos sobre eles, se quisermos educar para a sexualidade
livre e responsável. E teremos também de ser nós, enquanto suportes emocionais e modelos con-
sistentes dos nossos alunos e filhos, a munirmo-nos de um manancial diversificado de linguagens,
arrancadas à floresta do conhecimento, que oriente e elucide os nossos jovens nesta problemática
da educação sexual. Aqui, neste livro, todas essas possibilidades se encontram em aberto.
INTRODUÇÃO
16 SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO
INTRODUÇÃO
Há vinte anos não podíamos imaginar o que hoje se sabe sobre o cérebro sexual, nomea-
damente no que se refere ao papel fulcral dos neurotransmissores: a dopamina, a serotonina e
as endorfinas, estas últimas consideradas os opiáceos do cérebro. À química sexual será dado
valor no capítulo III, onde se alude a diferenças cerebrais auscultadas em homossexuais. Curio-
samente, ocorre que indivíduos ditos pinga-amor têm baixos níveis de PEA, mesmo que efectuem
assédios amorosos continuados8.
Para além do conjunto de informações biológicas, um outro tipo de orientações e narrações
surge ao longo deste texto. É impossível não tocar nas tradições religiosas que sempre tiveram
um papel activo na educação e na legislação sobre sexualidade.
No capítulo III, distinguem-se de novo concepções teóricas, nomeadamente a verdade possível
para o conhecimento científico distinto de verdades relativas a imagens para cultos religiosos ou
a sentimentos como o amor. Contingências relacionadas com a leveza da vida e da sexualidade
serão igualmente relatadas.
O capítulo IV integra os poderes estabelecidos e as convenções adoptadas em matéria
de estética sexual. Abrange a Educação Sexual, mas partindo de épocas históricas diversas e
concepções artísticas dominadas pelo tempo e espaço cultural.
O Humanismo e o Renascimento são os períodos históricos a que daremos maior relevo.
No Ocidente, somente com o Renascimento dos séculos XV e XVI o cientista, o rei ou o papa
abandonaram a perspectiva de serem o macro-cosmos controlado por estrelas e planetas, ao
gosto medieval em que a alma estava atormentada por medos, sofredora na carne e esfomeada
de vida. O corpo ganhou então inteireza na pintura e na escultura. Tal não impediu que muitas
vozes perpetuassem a inflexibilidade psicológica para se oporem à aceitação de direitos humanos
de expressão e comunicação artísticas.
No Oriente, em que outras culturas e tradições religiosas imperaram, o ser humano continua
a ser esse macro-cosmos ligado a tudo por uma espiral cósmica, sinal de vida, desenhada sobre
o corpo. O espírito/mente deixa o corpo a dormir e torna-se errante no Universo Espiritual.
Ao longo do capítulo V será focado o simbolismo invulgar relacionado com a sexualidade,
ainda que uma palavra ou objecto não correspondam, invariavelmente, a essas representações.
Uma caixa, uma bolsa ou uma gruta sugerindo receptáculos não são formas de representar o
aparelho sexual feminino, invariavelmente.
As culturas distinguem-se em questões básicas de existência e de imaginário, mas também
se aproximam no que nos torna mais humanos. Uma expressão muito divulgada é, precisamente,
sermos animais simbólicos. A noção de Ernest Cassirer (1874-1945) disseminou-se e esqueceu-
se. Recria-se-á também a faceta complementar do imaginário no mito. Do ritual antigo às artes,
do sonho à teoria dos números, à Física Nuclear, criamos imagens, símbolos e metáforas que
fazem parte dos nossos organizadores implícitos de (auto-)conhecimento.
20 INTRODUÇÃO
Acontece interessarmo-nos primeiro pelo que nos é mais distante e somente depois nos
questionamos. Assim sendo, na origem do mundo encontramos a forma redonda, um símbolo
do mito da criação. Na Europa Neolítica, quando as pedras eram já polidas e arredondadas, as
espirais seriam sagradas, observados os monumentos megalíticos. Uma espiral ligar-se-ia ao
nascimento e à morte, por entrar e sair da terra. Os próprios desenhos de labirintos com espirais,
em templos medievais, mostraram decorações inspiradas em templos religiosos mais antigos.
Essas construções são documentadas, em particular, por Barbara Walker9 e por Jean Chevalier
e Alain Gheerbrant10 que nos elucidaram sobre símbolos sexuais.
No capítulo VI e no capítulo VII dá-se relevo ao sonho, ao imaginário e ao simbólico, sendo
fornecidos exemplos de diferenças de compreensão e valor conferido a ideias abstractas.
O sonho cumpre funções simbólicas. Primeiro, acreditou-se que os sonhos foram produzi-
dos por demónios para trazerem tensão, esperança, maldição ou remédio.... A maior parte dos
sonhadores vêem os sonhos e a sua imagética simbólica combinar o que se sente e pensa com
o modo como se é - a personalidade -, de forma a serem compactadas recordações pessoais,
na forma emergente de sonhos.
O mito é herdeiro do imaginário, consumado em grandes narrativas espirituais. Tal como os
contos e as lendas, permitem-nos compartilhar histórias acerca da sexualidade no mundo, acerca
da sua origem (o ovo primordial) e acerca do futuro promissor.
Mas subjacente ao sonho e ao sonho acordado, encontra-se a esfuziante mente humana.
«Mente» é um conceito deveras complexo, com significado plural11: cérebro (sede de actividade
psíquica), fantasia, imaginação, razão, intelecto (faculdade intelectiva da alma), espírito (conjunto
de funções «superiores» da alma), inteligência, vontade e intenção.
Freud juntou nesse lugar - a mente humana -, o sexo e a emoção, ou seja, os elos da
corrente psicanalítica para a integração da relação corpo-mente. Através do sonho, por exemplo,
abriam-se as portas do inconsciente e acedia-se a algo inominável ou ao amor intangível.
O sexo é essa potência emocional poderosa. Foi vislumbrado em actos «estranhos» por
Freud e analisado nos seus pacientes12: o pequeno Hans/Joãozinho (que tinha uma fobia de
cavalos); o Homem dos Ratos; Dora; o Homem dos Lobos (que foi definido como um caso de
neurose obsessiva). O Caso de Anna O. (cujo verdadeiro nome era Bertha Pappernheim) constitui
o exemplo mais conhecido de «histeria».
Ao sexo também se continua a atribuir o poder de anular a ruptura entre o ser humano e
o Universo, por via da transcendência, luz do conhecimento ou magia.
O capítulo VIII destaca a mitologia pelo pensamento de um homem místico, Carl Gustav
Jung (1875-1961), um dos primeiros discípulos de Freud.
Por último, no capítulo IX, reata-se a visão do eu-no-mundo, sublinhando-se a relação hu-
mana e as práticas sexuais tântricas, bem distantes de nós.
21 INTRODUÇÃO
Mas como é que outros povos, como os hindus, se abeiram do mundo? Na arte indiana, as
imagens são bem diferentes das ocidentais.
No hinduísmo, certas partes do corpo ligam-se a quatro elementos de que carecem para
se enquadrarem no Universo: o ar para a bexiga; a água para o fígado; o fogo para o coração;
e a terra para os pulmões.
Esses quatro componentes surgem na obra Mahanirvanatantra13, em Cáli, a Deusa Pré-Vé-
dica dos sons La (terra), Va (água), Ya (ar) e Ra (fogo), sendo o fogo (calor vital) e o ar (fôlego)
mais elaborados14. Aliás, foi o fígado (ligado à água) o assento das paixões para as civilizações
da Antiguidade, do Mediterrâneo e do Próximo Oriente, concepção essa que continua a ter peso
22 INTRODUÇÃO
para os tuaregues do rio Níger, em África15. Para os Astecas16, a dualidade primordial continua
a ser sustentada pelo fogo e pelo firmamento (ar), associados ao homem, e pela terra e pela
água, ligadas à mulher.
Mas os quatro elementos ou átomos clássicos são negados pelo conhecimento actual, tal
como o éter que serviria à noção grega de corpos astrais, estelares17.
Ao olharmos as estrelas interrogamo-nos sobre o que está para além de nós, pensando,
por exemplo, no desenvolvimento humano. Existe uma imagem sugestiva para esse fenómeno
- uma nebulosa, cuja forma é espiralada. Uma nebulosa constitui também um enigma, embora
não seja um mistério incompreensível.
«- Como é que vivemos a vida amorosa?» Concebida como espiral, deixa de haver progressão
na medida em que ocorre distensão e encolhimento. Ligamo-nos ao mundo e constrangemo-nos
no nosso quarto, alternadamente.
Formulamos perguntas: «- Sou masculino?»; «- Como devemos agir?»; «- Quantas vezes já agi
inadequadamente?». «- O que é amor? E paixão feminina?».
Entretanto não nos iludamos. Existem questões de género a considerar porque em todas as
sociedades o homem detém o poder, mesmo que confira à mulher faculdades especiais.
Podemos dialogar sobre o que nos faz questionar. «Tudo é mesa para o pensamento»,
defendeu já o poeta açoriano Herberto Hélder.
Pelos motivos expostos, idealizaram-se múltiplas vias para um livro cuja importância não radica
tanto no que se escreve, mas nas associações evocadas no leitor. Mais uma vez, tal como em
sonhos, utiliza-se a associação de ideias, uma ideia levando a outra ideia, próxima ou remota, a um
facto há muito esquecido, a uma experiência transformadora do «eu», fontes de emoção intensa.
E mesmo que o amor não mova o mundo, torna-o o melhor lugar para viver.
Notas
Introdução
1. Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 16).
2. Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 32).
3. Rita Carter (1998, trad. cast. 1998).
4. Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 19).
5. Joseph LeDoux (1996; trad. port. 2000).
6. Michael Liebowitz, 1983 (cit. por J. Renaud, 1983). A estrutura química da PEA é semelhante à
das anfetaminas, o que implica aumento dos batimentos cardíacos, pensamento acelerado, perda
de apetite, perturbação do sono e pupilas dilatadas (Winston, 2003, p. 389).
24 INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I
Psicologia Actual
CAPÍTULO I
Psicologia actual:
perspectivismo nas abordagens construtivistas e narrativas
ideias derivadas de scripts (guiões, roteiros, enredos dramáticos da vida), estereótipos sociais (sem
individualização: os negros, os ciganos, as mulheres, os homossexuais…) e cenários culturais (a
casa, a escola, a igreja da minha terra…). Scripts emocionais são estruturas cognitivas básicas,
associadas ao que é regular e imutável, por oposição ao que é irregular (opcional): repetidas festas
de aniversário, idas ao supermercado…
Essas estruturas de pensamento, para sequências predeterminadas de acção, podem ser com-
plexas - a ambivalência amorosa, a inveja profissional ou o altruísmo social5. A criança já observou
alguém amar e odiar ao mesmo tempo a mesma pessoa, alguém desejar possuir algo de outrem,
alguém efectuar uma bondosa acção… Na infância, assimilamos muitas histórias que operam em
simultâneo, com base em saberes quotidianos e televisivos. Na idade adulta, os scripts incorporados
podem rondar as centenas6. Desde pequenos que desenvolvemos «teorias»7 e agimos de acordo
com essas estruturas cognitivas. Nos relatos de adultos sobre as suas experiências criativas8, estes
enfatizam a transformação pela palavra. Ainda que se sugira não bastar verbalizar, mas também
sentir e pensar, impomo-nos agir em conformidade com a linguagem.
A forma escolhida de debater atitude e comportamento sexual, com suporte em símbolos, na
historiografia9 e no mito, passou pelo recurso metafórico, iniciando-se este texto por estabelecer as
fronteiras sem limites entre ciência psicológica e arte.
De ascendência portuguesa pelo lado paterno, Diego Rodriguéz de Silva y Velázquez (1599-
-1660) foi um pintor cortesão sevilhano que se iniciou no serviço da corte espanhola de Filipe IV
(que reinou entre 1621 e 1665), em 1623, com apenas 24 anos. Primeiro, impôs à pintura realismo
e grandeza. Com a força da idade, criou intimidade e, em simultâneo, distanciamento face ao que
pintava.
Figura nº 4 - Retrato de Diego Velázquez (1590-1660). Figura nº 5 - Fotografia de Sigmund Freud, em 1921.
Sigmund Freud (1856-1939) foi o primeiro psicanalista a tentar explorar a faceta inconsciente
do fluxo de consciência. Acreditou que os sintomas neuróticos das pessoas se relacionavam com a
vivência consciente e inconsciente.
29 PSICOLOGIA ACTUAL
René Magritte (1898-1967) foi um pintor belga que impressionou pelo carácter de dissociação
(ausência de associação) dos objectos e figuras incorporadas nas suas obras artísticas.
Figura nº 6 - Fotografia de René Magritte com Georgette, em 1928, no Jardim das Plantas, Paris.
Para introduzir a psicologia do século XXI apresentamos duas imagens de pinturas de dois
mestres, Velásquez e Magritte, respectivamente nos pontos 2.2.1. e 3.1. A primeira - As meninas -
retrata as concepções do quanto mudamos e os reflexos dessa mudança no futuro10, construindo
projectos guiados por múltiplos pontos de vista. A segunda - Poison («Veneno») - induz a noção de
que vivemos não somente a partir de dentro, mas a partir de fora, do exterior físico e social. Somos
influenciados pelo que se passa na mente (cá dentro) e, simultaneamente, pelo contexto envolvente.
Essa é uma perspectiva não dualista da mente, apelidada de tendência monista, em que o
cérebro é visto como incorporado no corpo, este, por sua vez, incorporado no meio circundante e
assim nos situamos em pequenos nichos significativos11 repletos de pares afectivos com quem es-
tabelecemos relacionamentos íntimos: amigos, familiares, colegas de trabalho, professores…
Com esse suporte emocional, o desafio cognitivo e a aprendizagem por descoberta revelar-
se-ão agradáveis. Nesse ambiente propício, sucede associarmos ideias de domínios diferentes,
procedendo mentalmente segundo ideias próximas ou remotas12. Estas últimas revelam-se mais
tentadoras e criativas do que aquelas, tidas por óbvias e culturais, próximas da frase feita e da
expressão coloquial.
Podemos começar por elucidá-lo, precisamente, com Velázquez e Freud distanciados pelo tempo
e cujos pensamentos são distintos (visual e linguístico), mas que nos farão chegar a apreensões
abstractas decorrentes do seu conhecimento explícito e implícito13. Não podemos nem precisamos
de explicar tudo.
Digamos que, aparentemente, nada une Velázquez e Freud, para além de serem ambos taci-
turnos e terem medo de viajar para longe de casa.
Sobre Velázquez, Ortega y Gasset chegou a afirmar que foi alguém que, exemplarmente, soube
não existir14. Viveu perto de 40 anos ao serviço do rei Filipe IV de Espanha (Filipe III de Portugal), tendo
pintado 34 retratos do monarca. O rei amigo chamava-lhe fleumático – instável e introvertido.
Freud explicou a sexualidade por mitos e alcançou reconhecimento e notabilidade europeia.
As diferenças evidenciam-se quando se tenta aproximar Freud do pintor Magritte. Enquanto o
primeiro desejou encontrar em formas alongadas (charutos, armas de fogo, espadas, cobras, guarda-
chuvas...) o simbolismo fálico, o segundo procurou sempre afastar a interpretação psicanalítica da
30 PSICOLOGIA ACTUAL
sua pintura. Magritte negou mesmo o traumatismo causado pelo suicídio da mãe e não quis, tal como
Velázquez, filiação na pintura «vanguardista».
Os três homens guiaram as suas vidas em sentidos únicos. Um tornou-se psicanalista e os
outros dois pintores. Tentar colocar esses domínios de actividade em comum passa por uma asso-
ciação inusual e muita reflexão.
Freud nunca foi um artista e poderia ter-se tornado antes advogado ou general, caso não fosse
judeu15.
Ao contrário do realismo e naturalismo inicial de Velázquez, Magritte manteve estreito contacto
com o devaneio e o sonho, mas deu-lhe uma conotação lúcida16 criando o inviável e gerindo-o pela
sua mão.
Por sua vez, na «síndrome de Klüver-Bucy», a pessoa tende a reagir a um objecto como se
fosse uma pessoa por quem estivesse apaixonado(a).
Esses são os substractos neurológicos de fenómenos sexuais antigamente sujeitos ao enigma
«inconsciente».
Na Pós-Modernidade, somos mais abrangentes do que Freud não nos centrando exclusivamente
nos aspectos sexuais da vida. Também não nos sujeitamos nem a desempenhar sempre um papel
passivo, normalmente conotado com o objecto feminino, nem aspiramos a exercer papéis activos,
manipuladores, por exemplo de conquistadores e/ou arrivistas. Vencedores masculinos, aqueles
últimos poderão identificar-se como poderosos subjugadores de pessoas e de territórios de poder.
Em alternância cíclica de actividade passiva e activa recorremos a narrativas do «eu» quando
vivemos aventuras com interregnos e moratórias. Ao Don Quixote de Cervantes25, símbolo de ac-
ção, mudança e novidade, aliamos dentro de nós um Sancho Pança, exigindo repouso ao guerreiro.
Nós, seres humanos, somos também seres em projecto, sujeitos em movimento, dependentes de
contingências várias. Esta concepção de base dinâmica na abordagem psicológica é conotada com
uma narrativa com scripts, estereótipos sociais e cenários culturais, aprendidos desde a primeira
infância26.
Mas antes da literatura ou da psicologia se ocuparem da narrativa, a vida efémera, religiosa e
quotidiana foram retratadas nas figuras bíblicas de Caravaggio (1573-1610) ou nos bufões/bobos de
Velázquez, mas sobretudo nas farsas de Gil Vicente (1465-1536?) e nas tragédias de Shakespeare
(1564-1616). Os dois dramaturgos criaram ricos enredos para personagens singulares ou estereo-
tipadas, algumas delas presentes em todos os tempos.
Filósofos como Erasmo de Roterdão (1469-1536) e Michel de Montaigne (1553-1592) haviam
já reflectido sobre as suas vivências. Caso curioso foi o de Montaigne que escreveu a maneira
como viveu os seus achaques renais, apetites, desejos e inclinações, congregados em registos de
sabedoria27.
Todavia, foi na pintura que se descobriu primeiro o jogo das perspectivas, tese de Leon Battista
Alberti (1404-1472), ao ver nela a janela aberta ao mundo. Alberti foi arquitecto, escultor, músico e
pintor e o seu insight (conhecimento emocional) foi aceite pela ciência contemporânea, assumindo-
se que o cientista é auto-referenciado28. Efectivamente, podem-se observar realidades, explicá-las
e partilhá-las, mas nunca tornarmo-nos exteriores a elas. Todo o indivíduo é incapaz de ser neutral,
porque sujeito a pontos de vista e à sua partilha.
A propósito do perspectivismo e da intersubjectividade humana, a obra-prima As Meninas (1656)
evidencia o que se acaba de afirmar. Velázquez sintetizou na pintura intrigante o pensamento epis-
témico de segundo nível, isto é, uma teoria do conhecimento que enfatiza o jogo de perspectivas,
colocando uma cena dentro de outra cena. Reflexivo e criativo, ele era crítico do próprio pensamento
e da sua contribuição para o gosto do rei. Realizou um quadro sobre a própria pintura de retratos
que viria a ser copiado (sem ser reproduzido) por Francisco de Goya (1746-1828) e Pablo Picasso
(1881-1973). Édouard Manet (1832-1883) considerou-o o pintor dos pintores29.
A concepção complementar do ser em projecto assenta, por acréscimo de significado, na
biografia objectiva de Velázquez. O pintor do rei espanhol nunca, ou quase nunca, se ausentou da
corte. Ele via o mundo, como lhe era dado a olhar, a partir da sua casa e estúdio no palácio real. Um
belo dia foi a Itália (1629), teimando voltar a esse país uma segunda vez em 1649. Esteve frente ao
terrível vulcão Vesúvio, perto de Nápoles, com 1270m de altura, e pintou-o com mestria30.
33 PSICOLOGIA ACTUAL
Velázquez começara por pintar naturezas mortas e figuras populares. Muito jovem, tornou-se
o pintor da monarquia31. Em As Meninas (1656), ele encontrava-se já no final da sua vida. Nessa
obra-prima, Filipe IV de Espanha e Mariana de Áustria são colocados em ponto pequeno, eles que
foram a fonte dos primeiros retratos do artista.
Na sala real do Álcazar, a Infanta Margarida, de 5 anos, está rodeada por um séquito de aias e
anões. Do anão e bobo Pertusato ou Nicolasito só se vê a perna sobre o mastim adormecido. A anã
mais querida na corte, Mari Bárbola, surge em corpo inteiro e apresenta-se carrancuda. Em contraste,
a Infanta está muito bonita. É o centro da obra-prima. Na sua grandeza vulnerável, ela encontra-se
rodeada por María Agustina Sarmiento e por uma aia, Isabel de Velasco.
O facto de os reis serem vistos em espelho e em ponto pequeno representa uma forma de
relativismo e de perspectivismo do que tem ou não grandeza – a realeza absoluta relativiza-se,
segundo a perspectiva do artista.
Mas Velázquez coloca o quadro de frente e vê-se, ao mesmo tempo, na parte de trás da tela.
Não lhe é possível estar a pintar a infanta de frente, colocado atrás dela. Será que a menina está
só ali para ver os pais? Será que os reis se encontram fora do quadro em que são enquadrados de
forma propositada? Pensa-se que sim.
Velázquez incorporou-se na tela localizando-se na parte esquerda do quadro a pintar o rei e
a rainha, somente vistos no reflexo do espelho por trás da cabeça da filha. Logo, os reis não estão
no plano principal do seu quadro.
34 PSICOLOGIA ACTUAL
Mas também aparece no quadro José Nieto Velázquez, ou seja, o observador distanciado do
que vê fazer-se (o processo de pintar) e do que está feito (o produto estético). No dia-a-dia, ele
desempenhava funções de funcionário, camarista da rainha e governador da casa da realeza. Teria
uma visão panorâmica da vida real e saberia quase tudo o que se passava.
Para além do controlo social de José Nieto, as figuras de uma freira e de um padre expõem a
conversação possível, mas também o poder da nação católica.
Velázquez era objecto, cumpridor de ordens régias e religiosas, e sujeito, pintor de profissão,
mas o eu projectado mostra um ser em projecto. Ele chega a ser pintado no quadro a usar a Ordem
de Sant’Iago, recebida três anos depois por ordem régia. A sua posição social é inquestionável. A
pintura é recriada pelo próprio aquando da condecoração e a sua imagem enaltecida com a insígnia
da Ordem.
A ilusão do espaço em profundidade obtém-na pelo efeito de claro-escuro, jogando, como vimos,
com espelhos, permitindo-lhe mostrar o lado artificial nas relações humanas32.
Por fim, em As Meninas, o distinto cortesão ao retratar a família monárquica e respec-
tivos acompanhantes régios e populares incorpora as dimensões epistémicas da mente. Não
se satisfez em registar pontos de vista sobre a vida externa e palaciana ou em relativizá-los. Criou uma
metalinguagem recorrendo ao não dito. Ele realçou um conhecimento «superior» do envolvimento,
ainda que sustentasse um estilo realista33. Não importa se foi ou não consciente do seu (e)feito.
Em termos de teoria do conhecimento (epistemologia), colocou-se a um segundo nível abstracto
e apreendeu o que se conhece ou julga conhecer da realidade objectiva, facetada e enraizada na
língua, na história e na cultura simbólica.
Naquele tempo, inverteu as expectativas pictóricas, liberalizou-as e formulou um comentário
sem ter de o redigir.
Nem sempre é possível formular em palavras o que imagens e guiões dramáticos movimen-
tados representam em extravagantes ideias. Exemplos concretos, presentes na pintura e na histo-
riografia, continuam a servir o guião epistémico revolucionário para a ciência cognitiva, narrativa e
metafórica.
Barbara Hardy34 constatou a pertinência do modo narrativo, organizador do «eu», em processos
psíquicos comuns, explicitando-a nas seguintes palavras:
Sabe-se que o sonho não contém uma vertente narrativa, consistente e verbalizada. Ele é visual.
Ao acordar construímos uma história, uma narração, ainda que a falha de nexo entre os episódios
35 PSICOLOGIA ACTUAL
nos possa deixar confusos. Tal como no sonho, nem sempre conseguimos em estado de vigília criar
uma sequência lógica ou congruente dos factos e da nossa biografia, ao contrário do que se passa
no processo literário, segundo a apreensão de Susanne Langer35, com a qual poderemos captar a
cadência do balançar e do versejar:
“Geralmente, o processo de formularmos as nossas próprias situações e biografia (...) segue o mesmo
modelo (do drama) – ‘pomos isso em palavras’, contamo-lo a outras pessoas, compomo-lo em ‘cenas’, de
forma que as nossas mentes possam agir em todos os seus momentos significativos. A base desse trabalho
de imaginação é a arte poética, que aprendemos a partir do ritmo de embalar e que se desenvolve até ao
mais intenso ou sofisticado drama e ficção.” (Langer, 1953, p. 400).
A psicologia narrativa36 é uma abordagem psicológica que consuma a análise da forma (es-
trutura, estilo, coerência...) e do conteúdo da experiência (melodias com temas conflituais, tantas
vezes, entrançados), com implicações educacionais e psicoterapêuticas. A estrutura cognitiva não
tem só uma base lógica, na concepção induzida pelo pensamento convergente, mas está sujeita a
processos emocionais/analógicos centrais.
Na educação formal, observa-se um continuum que vai do pensamento convergente (exigindo-se
uma resposta «certa») ao pensamento divergente, eliminada uma única orientação pré-determinada
para uma conjectura colocada. Por sua vez, ao pensamento lógico chamou-se formal ou para-
digmático, enquanto o pensamento narrativo foi aproximado da contemplação pelo filósofo e psicólogo
americano William James (1842-1910)37.
Os trabalhos iniciais em psicologia narrativa datam de 1984-1986, devendo-se a van Dijk e a
Jerome Bruner. Instigam à apreensão do princípio organizador narrativo para as acções humanas. A
narrativa estrutura a experiência humana, tantas vezes repleta de falhas nos encadeamentos entre
eventos e de hiatos entre ocorrências não cumpridas.
Esse modelo psicológico possibilita o prazer de trocar histórias, a busca de sentido para a exis-
tência humana e a adesão ao significado atribuído à identidade com vista à resolução de discrepâncias
na vida. Os temas vitais são como melodias sujeitas a ruídos, ou como engrenagens que emperram
porque um qualquer objecto se atravessa nas rodas dentadas.
Atendendo a essas incongruências, na consulta psicológica interpreta-se o vivido ou a ficção
na interacção clínica, negociando-se com o psicoterapeuta os significados da experiência imediata
que nos torna possuídos, irreflectidos e incapazes de distanciamento para pensarmos. Pressupõe
a construção de vínculos sociais ou de novas engrenagens entre episódios mais consistentes e
subsequente acção/interacção nas dinâmicas relacionais mais satisfatórias.
A psicologia narrativa parte, portanto, da concepção metateórica construtivista e dos significa-
dos dados ao «eu» pelos interlocutores, estando a interpretação a dois determinada pelo conteúdo
narrativo e pela coesão estrutural duma história de vida38.
Importa referir que em toda a biografia perpassam histórias nem sempre associadas a conteúdos
sexuais. O argumento sexual deixa de ser observado como único para desvelar a verdade, segundo
a técnica psicanalítica de associação livre.
À noção de «verdade absoluta» sobrepõe-se o significado plural e a sua partilha negociada em
comunidades científicas poderosas. A linguagem ressente-se dessa imposição: os conceitos mudam,
por iniciativa desses grupos de pressão.
36 PSICOLOGIA ACTUAL
Na figura nº 8, Poison (1939), foi colocada uma porta aberta, convidativa à entrada e à saída
de uma nuvem que sombreia a parede e se liga ao espaço e ao mar. Em vez de separar o espaço
exterior do espaço interior, em vez de se referir ao que está lá fora, a porta sugere também que «o
verdadeiro» não é o contrário do «falso» - outra ideia analógica, adequada aos nossos dias.
Poison representa a exteriorização mesclada com mentalização por meio de uma nuvem que
avança, deixada a porta entreaberta. Nesta pintura, traduzida por «Veneno», Magritte alude ao facto
do sistema nervoso estar em equilíbrio e um veneno interferir com ele e, consequentemente, com todo
o organismo40. Ao veneno pode associar-se a droga, o álcool, a música, a dança, a técnica respiratória
para o controlo e o êxtase sexual, enfim, tudo o que se considere modificar o estado psíquico.
A polaridade conceptual (dentro/fora, alto/baixo, externo/interno...) e outras categorias opostas
da linguagem em contexto foram repensadas pela ciência cognitiva e narrativa, de acordo com a
exposição supracitada.
Em contexto científico, também o investigador ou o professor não estão fora do que observam,
não são independentes do que escolhem estudar. Possuem intencionalidade, explicitada nos conteú-
dos de investigação, na exposição oral ou escrita. Acresce o facto de nem sempre terem consciência
das suas motivações e auto-enganarem-se.
Afinal, para ilustrar a interligação de opostos, poder-se-ão captar outras analogias para este
livro, presentes na relação corpo-mente. Nesse sentido, de agora em diante, daremos uma volta no
espaço e propomo-nos enfrentar novo desafio ao encararmos o pensamento hindu.
Imbuídos da cultura das sociedades ocidentais, estranhamos o imaginário indiano em que a
religiosidade intrínseca e a sexualidade explícita estão interligadas. Propomo-nos agora destrinçar
o mito e a prática de vida, a aglutinação de opostos e o paradoxo, o sexo unido à morte.
3.1.1 O mundo de que não posso falar porque não o vivi: a experiência mística oriental
Ludwig Wittgenstein (1889-1951) foi um filósofo ímpar que nos alertou para os limites da lin-
guagem, agarrada às nossas próprias vivências, tendo ficado célebre a sua injunção final no Trac-
tatus Logico-Philosophicus: «Aquilo de que não se pode falar, deve-se calar». Depois, seguiram-se
anos de silêncio em que nada escreveu41, manifestando desconhecimento sobre a linguagem do
pensamento.
Dar-se-ão exemplos de actos e rituais sexuais encarnados na tradição africana, antes da intro-
dução do fenómeno da Índia, ultrapassando o entendimento ocidental.
Para quem não viveu em Sofala – África, entre os cafres42, será difícil compreender o antigo
poder da rainha quando indiciava a eminência de regicídio, a propósito da impotência do esposo. No
antigo Uganda, eram as irmãs do rei a dar-lhe autorização para ter várias esposas. E em Dahomey, o
funcionário real, durante as cerimónias, teria sempre uma mulher atrás de si que tratava por «mãe».
Curioso é o facto de as princesas terem liberdades extremas nas tribos africanas mossi, ashanti e
dahomey43, sendo-lhes permitido não casar.
Entre hindus, a experiência mística permite-lhes venerar uma figura divina, Chinnamasta, que
significa «Deusa da Grande Sabedoria».
38 PSICOLOGIA ACTUAL
Figura nº 9 – Indiano anónimo: Guache de Mahavidya Chinnamasta, «Deusa da Grande Sabedoria» (século XIX).
Na Índia, ainda no século XIX, a representação de Mahavidya Chinnamasta coloca-a sem ca-
beça, por si mesma cortada, a fim de alimentar os fiéis que a rodeiam, os quais recolhem o sangue
sagrado. Simultaneamente, pisa com os próprios pés Rati que está a copular na posição superior com
o esposo, Kama («o Senhor do Desejo»). Chinnamasta alimenta-se dessa mesma relação sexual
e, de acordo com a imagem, coloca-se sobre o triângulo yoni (vulva), ou seja, o princípio feminino
cósmico44 (ver figura n.º 88).
Na alegoria «absurda», a Deusa-Mãe transporta uma grinalda feita de crânios e segura com a
mão o seu cérebro e a sua face. No colar ou enfeite em grinalda estão as cinquenta letras do alfabeto
sânscrito, uma linguagem literária antiquíssima. O logos (pensamento) consubstancia o seu poder
mítico para criar o mundo através da palavra45.
As duas acompanhantes, yoginis (Deusas tântricas), têm também coroas de crânios ao pes-
coço.
No tantrismo, à morte alia-se o sexo, ainda que sejam opostos. Embora antitéticos, unem-se o
princípio feminino e o princípio masculino, a realidade quotidiana e a eterna, a escuridão e a luz. As
39 PSICOLOGIA ACTUAL
Notas
10. A vida só pode ser compreendida para trás; mas deve ser vivida para diante. (Sören Kierkegaard,
1813-1855).
11. A noção de nicho ecológico deu lugar à aproximação familiar, constituída por pessoas íntimas e
importantes na nossa vida – pais, irmãos, avós...
12. De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de
Lisboa (2001), na metáfora «existe alteração do sentido habitual das palavras, que estabelecem uma
relação de analogia entre dois referentes ou realidades». Ao contrário da comparação, na metáfora
não está presente a conjunção como. Em termos linguísticos, usamos metáforas fossilizadas (cata-
crese) para associações verbais correntes estabelecidas no quotidiano, tema discutido por George
Lakoff e Mark Jonhson, em Metaphors we Live by (1980; trad. esp. 1986, p. 12), por contraste com
metáforas vivas, criativas e pouco frequentes. Assim, a catacrese é uma figura de retórica comum,
capaz de alargar o significado duma palavra, por analogia com o seu sentido inicial: «embarcar num
avião»; «as pernas da mesa»...
13. Ao conhecimento implícito associa-se o domínio tácito, intuitivo, emocional, não directamente ex-
plicitado e metafórico.
14. No vídeo intitulado Velázquez (CBS Fox – EFE TV Museu do Prado, 1990), o texto é retirado de As
Obras Completas de Ortega y Gasset (sem outra referência).
15. O psicólogo americano Howard Gardner (1993, trad. esp. 1995, pp. 68-70) retrata Freud como um
génio na área de inteligência intra-pessoal, à partida impedido de alcançar celebridade por ser de
ascendência judia.
16. Um sonho lúcido é associado à pintura de Magritte, na medida em que nesse tipo de sonho o so-
nhador está consciente de que está a sonhar e pode, no momento, controlar a acção, o que exige
prática e competência (Cross, 2002, p. 10). No quotidiano, afinal, a lucidez pode ser facilmente
quebrada.
17. Susan Greenfield (1996) foi Professora de Farmacologia na Universidade de Oxford, de Medicina no
Lincoln College em Oxford e de Física no Gresham College em Londres. Deve-se-lhe a descrição
da situação psicopatológica em que parece amar-se um objecto – «síndrome de Klüver-Bucy».
18. Louis R. Franzini e John Grossberg (1995) estudaram essa situação de amor perante alguém que
é um estranho – erotomania ou «síndrome de De Clérambault».
19. Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 90) situou a utilização do conceito de inconsciente
explorado por Freud.
20. A comparação entre o pensamento inglês e o pensamento alemão foi estabelecida também por
Norman MacKenzie (1965, trad. fr. 1966, p. 90), um americano dedicado ao estudo dos sonhos.
21. J. Laplanche e J.-B. Pontalis (1967, trad. port. 1970, p. 99). Quando se referem formações reacti-
vas, alude-se a atitudes ou hábitos de sentidos opostos aos desejos recalcados e constituídas em
reacção contra esses desejos (Laplanche & Pontalis, 1967, trad. port. 1970, pp. 258-261).
22. O livro Totem e Tabu (1913) somente foi editado em francês em 1947.
23. Theodore Sarbin (1986, pp. 3-21).
24. Karl E. Scheibe (1986, pp. 129-151) debateu a concepção de que se forja o carácter ouvindo histórias
ou agindo, como «os melhores» desportistas, entre outros indivíduos de acção.
25. Miguel de Cervantes (1547-1616) escreveu a sua peça satírica Don Quixote de la Mancha em duas
partes. Descreve as aventuras picarescas/burlescas de um senhor simples que tinha como interlo-
cutores o seu empregado Sancho Pança e o cavalo Rosinante, podendo lutar contra moinhos de
vento, tomados por gigantes.
26. Howard Gardner (1995, trad. esp. 1996) explica a liderança de indivíduos visionários ou outros que
souberam contar «boas» histórias a públicos adultos distintos, em atenção a desenvolvimentos
41 PSICOLOGIA ACTUAL
sócio-cognitivos diversos. São histórias que integram cenários, estereótipos e scripts facilmente
reconhecíveis pelos que os escutam.
27. Michel de Montaigne (1993, pp. 11-32).
28. Humberto Maturana assumiu essa posição ao longo da sua obra, debatendo a inserção do indivíduo
na realidade que analisa.
29. Robert Cumming (1995, trad. port. 1995, pp. 7, 56-57).
30. Cumming, ibid, pp. 47 e 57. Nessa obra, Cumming refere-se à amizade de Velázquez com o caris-
mático e influente Rubens e à deslocação de Velázquez a Itália.
31. Continua-se a seguir o texto de Obras Completas de Ortega y Gasset patente no filme intitulado
Velázquez (CBS Fox – EFE TV Museu do Prado, 1990). Outra fonte de informação sobre o quadro
As meninas de Velázquez foi buscada em História da Arte (1996), no Volume 7 – O Barroco e o
Rococó (AA.VV., 1996).
32. Robert Cumming (1995, trad. port. 1995, p. 57) dá valor a esses aspectos pictórico e psicológico
para a compreensão da obra-prima.
33. Dictionary of Art (1995, p. 243).
34. Barbara Hardy (1978, p. 13).
35. Susanne Langer (1953, p. 400).
36. A Psicologia Narrativa e a Folk Psychology («Psicologia Popular») foram explicadas por Jerome
Bruner (1986) e por Theodore Sarbin (1986) em alternativa ao pensamento paradigmático (up-down)
dirigido pela teoria e justificado pela descoberta de situações empíricas confirmatórias.
37. William James (sem data; cit. por J. Bruner, 1986, pp. 23-53).
38. Judite Zamith-Cruz (2002, pp. 469-482).
39. O behaviorismo foi a metateoria psicológica sustentada pelo associacionismo e pelo empirismo,
iniciados por John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776).
40. A. M. Hammacher (1973, ed. amer.1985, p. 104).
41. Christiane Chauviré (1989, trad. bras. 1991, p. 13).
42. Boris de Rachewiltz (1993, p. 71).
43. AA.VV. (2004, p. 22).
44. Richard Waterstone (1995, trad. port. 1996, p. 78).
45. Barbara Walker (1988, trad. port. 2002, p. 545).
46. Neil Philip (1999, trad. port. 1999, p. 9).
42 PSICOLOGIA ACTUAL
43 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO II
CAPÍTULO II
Educação Sexual na família, na escola e na sociedade:
base evolutiva e desenvolvimental
A família constitui o contexto primário da educação. Passo a passo, a escola possibilita o segundo
ensaio de vida social. Aqui e ali lida-se com tarefas com que nos confrontamos quotidianamente e
através das quais fazemos amizades. Nesses nichos aconchegados, observam-se tendências amo-
rosas e sexuais e, mesmo que não se legisle e imponha a Educação Sexual na forma de disciplina
formal, a escola pode ser decisiva ao facultar uma lição de vida e, quantas vezes, ao situar o amor
cristalizado dos 15 anos.
No século XII, o professor Pedro Abelardo e a jovem Heloísa viveram um drama amoroso
prolongado, rondando o enamoramento. Adolescente, ela ficara grávida. No século XX, Verdita e o
namorado foram condenados pela China de Mao Tsé Tung (1896-1981). Ambas as histórias-caso
serão narradas adiante1. A primeira tem um carácter religioso e a segunda é de natureza política,
permitindo uma reflexão sobre a questão sexual e a sua aproximação à instituição escolar, religiosa
e política. Na escola, o desejo, o amor e o sexo são temas interdependentes da biologia, história,
psicologia, artes, língua portuguesa ou filosofia. A cultura, a organização político-social e a educação
constituem elementos a não descurar no quotidiano do jovem, tal como importa conhecer a neuro-
biologia do sexo. Serão estas as temáticas que norteiam este capítulo.
Pretendeu-se colocar o seguinte argumento de peso: a Educação Sexual é desejável, se se
atender sobretudo à propagação de doenças sexualmente transmissíveis. Para além desse risco,
Portugal tornou-se o país com maior número de gravidezes na adolescência e, nessa fase de vida,
a placenta da jovem ainda não permite uma alimentação satisfatória do embrião.
Todavia, Freud assumiu outro motivo justificativo da exigência de educar para a sexualidade:
«não devemos enganar as crianças». Far-se-á eco nesta obra do seu pensamento revolucionário
na época.
Identificaram-se também formas de expressão de motivações intrínsecas em crianças e jo-
vens para compreenderem e interpretarem relações íntimas, inclusive condutas desajustadas e/
ou inadequadas - o poder de um qualquer Basilisco – peste, sífilis, síndrome de imunodeficiência
46 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
adquirida (SIDA)... Mas a SIDA, ou outra qualquer doença de transmissão sexual, não ocorre devido
a uma qualquer força misteriosa. Actualmente, mais de 330 milhões de pessoas em todo o mundo
contraem esse tipo de doenças2. Com a SIDA, prevê-se3 que a sexualidade ritual, a prostituição
sagrada (entre sacerdotes) e o rito de iniciação sexual venham a desaparecer em África devido à
devastação causada pela doença.
A sexualidade é uma dimensão da vivência humana que sofre grandes alterações ao longo dos
anos. É fonte de comunicação, troca de afecto e de prazer (do inglês petting, amimar, dar carinho)
e forma de expressão da afectividade; é modo de hetero-descoberta e auto-descoberta; é relação
sexual completa (coito), coito reservatus (retardado, para evitar o orgasmo) e actividade reprodutiva…
O prazer sexual é obtido em zonas erógenas do corpo4 que não se limitam a três zonas geni-
tais: pénis, clitóris (ou clítoris) e vagina. Por exemplo, as orelhas e o dedo grande do pé possuem
valor erógeno.
As zonas corporais que dão mais prazer no sexo feminino são os seguintes: clitóris, grandes
e pequenos lábios da vulva, vagina, períneo (ou perineu, região compreendida entre o ânus e as
áreas vaginais), monte de vénus, músculos glúteos (nadegueiros), mamilos, ancas, músculo central
da nuca e pescoço (atrás e por baixo das orelhas), costas (entre a coluna vertebral e as omoplatas).
No sexo masculino, podem ser outras as zonas erógenas: pénis (sobretudo a parte inferior e a glan-
de), testículos, períneo, ânus, próstata (que só se pode estimular através do ânus), língua, umbigo,
músculos da metade inferior das costas, mamilos e músculo central da nuca.
Para Freud, essas áreas libidinais ligam-se à formação de sistemas neuróticos e perversões.
Entre outras nomeou a boca, o clítoris e o ânus.
A sexualidade é assim uma área de conhecimento e constitui uma componente positiva de
realização pessoal, considerações insuficientes para fazer avançar a Educação Sexual na escola.
A sexualidade liga-se ao «eu», mas também nos aproxima do próximo em relações íntimas.
A Educação Sexual contribui para uma vivência mais informada, mais gratificante da sexualidade,
mais autónoma e, portanto, mais responsável e livre.
Um dos maiores desafios cognitivos a todos os que se preocupam com a educação actual talvez
seja a união entre o aprender e o prazer de aprender.
Por sua vez, é de considerar se não será redundante defender a Educação Sexual na escola,
na medida em que toda a educação é sexual. Implicitamente, a questão sexual está colocada des-
de o nascimento. Educação Sexual é fazer educação, de forma deliberada ou não. «Pedir que se
faça Educação Sexual antes que as coisas aconteçam...» pode assumir-se como uma ideia de boa
vontade, já chamada de peregrina por Júlio Machado Vaz, mas necessária e não exclusivamente
circunscrita à prevenção da gravidez.
47 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Uma educação global tem que incluir, portanto, uma vertente afectiva, sexual e não sexual. O
desenvolvimento humano sexual constitui uma dimensão básica da vida que extravasa a aprendi-
zagem na escola.
Figura nº 10 - Escultura do templo de Khajuraho, na Índia, que data dos séculos X e XI d. C..
48 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
4. Valores e sexualidades
Foi Jacques Lacan (1901-1981) quem afirmou que somente tem prazer o indivíduo «perverso»,
enquanto Freud (1856-1939) referia que o inconsciente é um lugar sem lei. Lacan assumiu valores
diferentes de Freud para a sexualidade.
Educação Sexual é educação para os valores ligados à sexualidade, quer eles sejam huma-
nos, estéticos, sociais, éticos ou políticos. Nas suas atitudes, a pessoa formula juízos de valor. É
um valor humano dizer que a sexualidade é uma fonte de prazer a não desprezar, se bem que nem
todos pensem assim.
Entre certas pessoas mais idosas, as mudanças globais ocorridas nos comportamentos relacio-
nais são fruto dos malefícios da época ou da influência da televisão. Embora difícil, é possível mudar
os valores dessas pessoas, incutidos desde as primeiras relações afectivas intensas (vinculações)
com os pais, outros familiares e/ou professores. Aqueles que mais amamos afectam-nos e ajudam-
nos a cimentar valores. A sociedade em que vivemos influencia-nos de tal modo que não chegamos
a imaginar as suas repercussões.
De acordo com Michael Mahoney9, para além dos valores, o que mais temos dificuldade em
mudar são as nossas concepções de identidade («- Quem sou eu?»), de realidade («- O que é o
meu envolvimento físico e social?») e de poder («- Que poder de (auto)controlo possuo?»). Temos
dificuldade em mudar a noção do «eu» e os valores que carregamos, mesmo na escola não tradicional.
A ser implantada na instituição a disciplina de Educação Sexual, favorece-se a sexualidade
comentada, discutida, aprofundada nos seus cambiantes físicos, psicológicos e sócio-culturais.
Observar-se-á, em paralelo, que a sexualidade será sempre um processo de construção indi-
vidual, sujeito a dúvidas, hesitações e tomadas de decisão. A sexualidade é um processo criado de
experiências e de aprendizagens de vida significativas, umas positivas e outras negativas.
49 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Uma atitude distingue-se de um comportamento verbal ou físico? A atitude é uma forma de or-
ganizar e tornar compreensível a experiência de vida para a própria pessoa e para os outros. Liga-se
à predisposição ou tendência para pensar algo e, espera-se, comportar-se na vida em conformidade
com o que se pensa.
Muitas vezes, temos dificuldade em argumentar porque somos a favor ou contra alguém ou
contra um grupo, como por exemplo uma minoria social ou étnica. Então, eu respondo a um «objecto»
(por exemplo, um determinado indivíduo de ascendência africana) como se fosse «uma classe de
objectos» (por exemplo, todos os indivíduos de ascendência africana). Assim sendo, pela atitude13,
a pessoa formula juízos de valor, sem ter que avaliar cada objecto per se.
Ao contrário de uma atitude, um comportamento implica que a pessoa coloque em acto uma
atitude. A pessoa age a partir da sua tendência para generalizar, tantas vezes incorrectamente, uma
característica individual a todo um grupo.
O resultado no final do jogo é o esperado: futebol - 1; rapariga - 014. A tradução possível para
a situação avançada coloca novamente a questão da necessidade de auto-conhecimento: «- Quem
sou eu? Eu sou um rapaz!». Os rapazes têm necessidade de se afirmar como machos: os homens
jogam à bola.
Mas o que é ser macho? Ser macho relaciona-se com os órgãos sexuais e com a categorização
dos animais. Em termos globais15, o macho é um ser que produz células sexuais pequenas e móveis
(esperma) que nadam para o ovo. Fêmea, por seu lado, é um ser que produz células grandes, cheias
de nutrientes (alimentos), os ovos.
Ser masculino aprende-se na relação com as primeiras pessoas significativas de ambos os
sexos e na experiência subsequente de vida em contexto.
O amor e uma gravidez não desejada sempre ocorreram ao longo dos tempos17, passando
muitas vezes por relações humanas em que se evitou ou não se soube falar, discutir, expor o que
aflige na interacção.
Em casos de personalidades notáveis, como o inventor francês da teologia moderna, Pedro
Abelardo (1079-1142), o amor também constituiu um grande problema.
O ousado Abelardo foi condenado duas vezes por heresia18, em 1121 e no ano da sua morte, por
ser audacioso no argumento - defender que o Universo existe nas próprias coisas. Não acreditou que
o mundo fosse em si próprio uma realidade (realismo) nem que constituísse um nome, uma palavra
(nominalismo). Foi apelidado de filósofo conceptualista, crente na interrogação constante e assídua.
O seu túmulo em Paris, no cemitério de Pére-Lachaise, é de autenticidade duvidosa, mas diz-se
estar enterrado com Heloísa (1101-1164).
A partir do relato de Clifford Bishop19, confrontamo-nos com uma história de vida plena de
estudo livresco, amor e solidão, mesmo que possa ser contada de modo diverso, em particular por
Ackerman20.
Em qualquer versão dos factos, Abelardo apaixonou-se pela pessoa errada ou no momento
errado.
Heloísa fora aluna de Abelardo, mais nova do que ele vinte e três anos. No entanto, este apaixonar-se-ia por ela,
tendo-lhe sido retribuído o mesmo afecto. Estavam deveras enamorados e o sentimento cresceu.
O tio de Heloísa, cónego na Catedral de Notre-Dame em Paris, obrigou-os a casar. Mesmo que a ocorrência se
passasse no século XII, já existia uma orientação religiosa para a sexualidade, trazida até aos nossos dias.
Os cultos religiosos sempre legislaram sobre sexualidade. O que o cónego Fulbert não sabia era que Heloísa estava
grávida e, estranhamente, ela não queria casar-se. Fugiu antes para um convento, onde viria a tornar-se freira.
Heloísa pretendia evitar o escândalo de casar grávida, facto que nem o tio Fulbert entendeu. O cónego pensou que
Abelardo mandara a sua querida sobrinha para um convento para não estragar a sua própria reputação, ele que era um
mestre conceituado. Como represália, Fulbert contratou dois homens da sua confiança que castraram Abelardo.
Desfeito, Abelardo tornou-se um professor em eterna itinerância – Paris, Corbeil, Monte de Santa Genoveva... Pensou
ter merecido (pelo pecado) tamanho castigo.
Em 26 de Março de 1997, na Comarca do Rancho de Santa Fé (Novo México) nos EUA ocorreu um caso de suicídio
colectivo que deixou as pessoas horrorizadas, os media «impressionados» e os poderes policiais locais em situação crítica.
O sucedido foi comunicado por via telefónica e anónima à Comarca de San Diego, na Califórnia. A polícia alertada encontrou,
ao chegar ao rancho, as janelas da casa abertas e, no interior, trinta e nove corpos vestidos com os pés unidos e as mãos
abertas. As faces, observadas tranquilas, tinham sido cobertas com panos roxos. Uma cassete de vídeo deixada no local
expunha a ocorrência macabra.
Eram fiéis do Culto Heaven’s Gate que acreditavam provir de outra galáxia e ter aterrado na Terra. A sua última
missão seria sobreviverem à catástrofe profetizada da destruição da Terra pelo cometa Hale-Bopp, alcançando um nível
«super-humano», destituído de sentimentos, sexualidade ou género. Os homens tinham-se castrado. Com a promessa
de abandono de valores sócio-económicos, eles tinham perseguido valores espirituais supremos que os levaram à morte,
garantindo-lhes o «caminho da salvação» prometida por Marshall Applewhite, via internet.
«- Para onde vamos?» constitui desde sempre a questão chave para grupos extintos ou recentes.
Em 1914, o Império Austro-Húngaro estava ameaçado por Russos. Maridos e noivos de Nagyrev iam sendo chamados
para a Primeira Guerra Mundial.
Nesses dias de mudança, os homens deixavam as mulheres sozinhas, começando estas a participar na vida da
aldeia. Entretanto, chegavam os primeiros prisioneiros de guerra e eram as mulheres a ter acesso à prisão, entre outros
motivos, para os poderem ver. Queriam fitá-los, olhos nos olhos. É possível que os inimigos, assim conotados por todos,
tenham despertado novas paixões naqueles corações livres. É certo que alguns homens da terra voltaram para retomar
vidas cortadas, mas foram recebidos, por vezes, com frieza ou com amuo.
53 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Certo dia, foi participada a morte de um homem, Peter Hegedus. Simultaneamente, uma mulher, a senhora Ladislaus
Szabo, enganou-se na dosagem de veneno a ministrar ao seu marido e ele não faleceu. Como poderia ser que até então
morressem certos maridos e um escapasse da estranha doença tal como se supunha?
Fazekas, uma parteira local, foi responsável pela morte de mais de cem homens entre 1914 e 1929, com um cocktail
elaborado com cola retirada do verso dos cartazes de recrutamento militar.
Foi Ladislaus Szabo quem abriu a boca para acusar a vizinha, a enfermeira Fazekas. Esta foi chamada a explicar
a ocorrência, negando o crime. No entanto, foram encontrados papéis na loja da sua casa embebidos em veneno, tendo
sido por esse facto incriminada.
Freud nasceu em 1856, tempo em que ocorriam acontecimentos estranhos cada vez mais dis-
cutidos na ciência médica: «histerias». Freud atribuiu esses males a factores psicológicos. Estava
convencido do relevo da sexualidade na vida das pessoas escutada em confidência. No entanto, o
Comité Nobel recusou a candidatura do psicanalista com a seguinte afirmação anotada: «- É sofrível
e tem uma mente tão doente como a dos seus doentes»27. Freud tinha abordado a questão sexual,
que era proibida há 100 anos, num contexto específico: Viena de Áustria conservadora.
Ainda nos finais do século XVIII, nos E.U.A., William Goodell28, no Hospital da Faculdade de
Medicina da Pensilvânia, recomendaria aos seus alunos que ao analisarem mulheres com doenças
vaginais fixassem os olhos no tecto. Depreende-se o quanto os valores morais na ciência mudaram.
No que se refere ao desenvolvimento sexual masculino e feminino, Freud falhou nas suas con-
jecturas, por razões culturais. À mulher atribuiu um estatuto inferior, até sexualmente29. Auscultou-lhe
na adolescência uma regressão30, imaginando-a castrada, sem pénis e com inveja do outro sexo
por não o possuir31.
Contudo, Freud sempre reconheceu a bissexualidade potencial de ambos os sexos, para o que
pode ter contribuído a sua própria relação com Wilherm Fliess ou com Carl Gustav Jung. Freud pen-
sou que as práticas sociais levam a mulher a papéis passivos32. Mas ele não era um pansexualista,
não via em tudo sexo e perversão33. Aliás, se tudo fosse sexual, não haveria conflito intra-psíquico34.
A pessoa não manifestaria choque e perturbação.
Freud não foi convencional para a época ao reconhecer que o prazer (melhor obtido pelas
referidas zonas erógenas do corpo) e a procriação não coincidem inevitavelmente, ou ao defender
que «sexual» e «genital» são conceitos diferentes35. Pela primeira vez tentou-se demonstrar que a
sexualidade inclui desejos não relacionados com a actividade reprodutiva. Freud concebeu ocorrên-
cias humanas a que chamou pulsões, impulsos componentes da sexualidade, ligados ao tacto ou
à boca36. Ele acreditou, isso sim, que a sexualidade permeia toda a nossa vida; não disse ter tudo
uma conotação sexual.
A sua posição decorre da aceitação de existirem motivações inconscientes de natureza sexual.
Pense-se que o nascimento duma mera amizade pode ter essas motivações inconscientes sexuais.
Nesse caso, existirá uma base sexual da qual nem chegamos a ter consciência de acordo com a
afirmação ingénua: «- É amizade, pura e simples!».
54 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
«Não creio que exista uma única boa razão para recusar às crianças as explicações exigidas pela sua sede
de saber, a não ser que a intenção do educador seja apagar, o mais cedo possível, toda a tentativa da
criança em pensar com independência, para dar vantagem a uma ‘honestidade’, que pode ser muito querida
e, então, para conseguir isso, nada ajudará mais o educador do que enganar a criança no plano sexual e
intimidá-la no plano religioso.» (Freud, 1907; ed. francesa, 1969, p. 11).
6. Sexualidade e reprodução
As pessoas têm relações sexuais porque buscam prazer e/ou porque desejam ter filhos. A
grande maioria das relações sexuais ocorre por prazer, o que chegou a ser validado na Suécia pela
investigação de B. Linner, em 1978, em cerca de 98% dos casos.
O próprio conceito de sexualidade é mais amplo do que reprodução, embora no tempo em que
Freud viveu assim pudesse não parecer. A pílula só surgiria nos anos sessenta.
Entretanto, conhecem-se cada vez melhor os trajectos cerebrais ligados à sexualidade que
vão em duas direcções: ascendente e descendente. O caminho ascendente vai da amígdala ao
hipotálamo e ao córtex cerebral. O caminho descendente integra o cérebro consciente que envia a
informação sexual a zonas límbicas do cérebro. Nessa dinâmica, reconhece-se já a possibilidade
dos seres humanos estarem disponíveis para amar, sem as restrições das outras espécies40. Assim
sendo, no amor romântico, está altamente envolvida a cognição de alto nível, emoção intensa e
acção corporal, para além de factores de reconhecimento físico e visual do companheiro. Parece,
afinal, que a sexualidade implica quase todo o cérebro humano.
As sociedades ocidentais permitem-nos viver ambos os aspectos da vida, com satisfação:
reprodução e sexualidade. Essa capacidade de escolhermos o que queremos em termos sexuais
e quando o queremos, somente será possível se formos livres e responsáveis para escolhermos
e dispusermos dos meios para separarmos sexualidade e reprodução, quando o desejarmos. Os
métodos contraceptivos consumaram essa revolução no pensamento e nas práticas de vida.
Júlio Machado Vaz41 considera que a sexualidade é uma trajectória muito longa que se realiza
devagar (pacientemente?) e em que os corpos precisam aprender o amor, em qualquer idade.
55 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Uma mulher inglesa, falecida em 1865, terá passado por ser do outro sexo, estudando Medicina em Edimburgo –
Inglaterra. Adoptou o nome masculino de James Miranda Barry.
Nessa época, às mulheres estavam vedados os estudos avançados, em particular, em Medicina.
Também foi cirurgião, durante a batalha de Waterloo (Bélgica), em 1815, quando Napoleão I foi derrotado por Ingleses
e Prussianos. Depois, passou a viver na África do Sul.
Como se soube ser mulher? Depois da sua autópsia.
Mesmo o facto de ter tido um filho não levou ao conhecimento do seu sexo.
A qualificação de prática de eonismo45 adequa-se à vida dupla de James Miranda Barry, mas
também se lhe associa Isabelle Eberhardt ou Martha Jane Burke/Calamity Jane46. Isabelle Eberhardt
apresentar-se-ia como homem no deserto do Norte de África, tendo aí vivido como nómada. Por
último, Martha Jane Burke, que ficou conhecida por Calamity Jane, era uma americana que somente
foi reconhecida como mulher numa campanha militar contra os índios sioux. Era engenhosa no uso
de armas, cavalgava e mascava tabaco.
Eonismo47 deriva do nome do Cavaleiro de Eon, Charles Eon de Beaumont (1728-1810), um
agente político que morreu fingindo ser mulher durante cerca de trinta anos. Fisicamente, sendo um
homem «normal», viveu com uma amiga, Marie Cole, que nem suspeitou que ela era na verdade
um homem. Também se vestiu de mulher para se deslocar à corte da czarina Isabel e ser «leitora».
Depois, voltou à Embaixada Francesa na Rússia, já como homem, «irmão da senhora leitora». Enfim,
ele foi Capitão dos Dragões na Guerra dos Cem Dias e escreveu o livro Ócios do Cavaleiro de Éon.
De acordo com o relato de Ruth Rendell, em 1810, a amiga Marie Cole ficou estupefacta quando
o Cavaleiro de Eon morreu, facto testemunhado pelo notário: «Só ao fim de muitas horas é que ela
recuperou do estado de choque em que caíra».
O efeito dos genes, das hormonas sexuais e da organização cerebral delimitam a sexualidade,
aspecto aprofundado no capítulo final em que é discutido o transexualismo, a homossexualidade e
o hermafroditismo por relação com o Oriente.
Neste capítulo, enquadram-se concepções latas de «normalidade» e conformação a normas
sócio-culturais. Assim, debater o desenvolvimento psicológico é falar de mudança, de fluxo, de pro-
56 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Em 2009, não se estranha mais existir um mecanismo de afectividade básico (o referido código)
que ajuda a sobreviver em condições adversas, como por exemplo quando se está doente. Não se
justifica o isolamento de todas as crianças enfermas. Todavia, em hospitais portugueses, nem sempre
foram concebidos lugares nas enfermarias de pediatria para os pais permanecerem junto dos filhos.
Antigamente, argumentava-se que os bebés «não deveriam ser incomodados».
Também se conhecem melhor os efeitos da hormona chamada oxitocina61 que se liberta do
hipotálamo em situações de amor sexual ou de relação pais-filhos intensa. Evidencia-se que os re-
cém-nascidos ficam agitados e choram quando experienciam a falta de carinho. Primeiro, protestam;
depois, gritam. O pior é quando vêm a desinteressar-se dos seres humanos e caem no desespero
passivo, nomeadamente observado durante a Segunda Guerra Mundial em hospitais franceses e
ingleses - o hospitalismo62.
Assim sendo, o equipamento de base do bebé leva-o a olhar para quem se ocupe dele (pais ou
outros), a estender os braços, a mimar as expressões e a estabelecer diálogos sem palavras. Reconhece
a mãe pelo olfacto arreigado e ela torna-se, em geral, a sua primeira paixão. Espera-se que os cuidados
da mãe sejam de «qualidade» e, cerca dos sete meses, o bebé alerta-se ou chora em presença de
novas pessoas. Esse é o desenvolvimento «ideal» aguardado em cerca de 60% das crianças «bem
adaptadas» e competentes na manutenção de laços afectivos estáveis e intensos63.
Em circunstâncias adversas, entre os seis e os sete meses, certas crianças não começam a
brincar com os objectos porque foram maltratadas ou sofreram o descuido dos cuidadores. Chegam
a manter as mãos juntas no peito ou na barriga, não as utilizando para jogar, e são referidas a partir
da sua posição - a postura da mantis oradora.
As perturbações na afectividade surgem, com correlatos cognitivo-sociais, quando a atenção
mútua de pais e filhos decorre de modo menos harmonioso. Existem pais imprevisíveis, ambivalentes,
deixando a criança confusa e emocionalmente dependente. Esse foi o padrão/modelo ansioso/ambi-
valente descrito por Mary Ainsworth e colaboradores64. Pior ainda é o caso dos pais a abandonarem,
o que implica um comportamento-modelo chamado padrão evitante. Mais recentemente, pensa-se
existirem condições em que a criança se manifesta desorganizada, ora agarrando ora evitando o
contacto humano. Nessa situação, ocorre possível ausência de previsibilidade dos cuidadores do-
minantes (mãe, pai, avó, ama…), pessoas afectadas por perturbações psíquicas, nomeadamente,
maus-tratos e depressão.
no pequeno écran, sem haver tempo para tomar uma decisão. Foi quando Eric, o menino, perguntou
aos pais:
Chocados, os pais telefonaram a uma terapeuta sexual de San Diego, na Califórnia, a trabalhar
na televisão76, que lhes respondeu poderem dizer às crianças ser melhor deixarem o coito efectivo
para quando crescessem e encontrassem outras pessoas que amassem e, então, o pénis de Eric
teria mais probabilidade de encaixar.
Outro aspecto elucidativo do desenvolvimento infantil parte da investigação a seguir relatada. Thore
Langfeldt77 observou, na Noruega, o modo como crianças de quatro e cinco anos se abraçam numa
forma aproximada do acto sexual, mas desde que não se sintam observadas. O desenvolvimento
«normal» passa, como ficou dito, pela exploração do próprio corpo e do corpo do companheiro(a).
Nesse sentido, os aborígenes adultos de Arnheim, do Norte da Austrália, aceitam, sem repressão,
os jogos sexuais das crianças, denotando o que certos antropólogos já apelidaram de «saúde sexual».
As culturas são diferentes. Num único país existem contrastes nas sub-culturas enformados em
distintos valores sociais e religiosos, mas igualmente diferenciáveis em termos de valores culturais
diversificados.
No Ocidente, aos dez anos, um rapaz já terá vivido qualquer tipo de exploração sexual mas,
ao longo do ensino básico, as raparigas continuam a não se cruzar com os rapazes. Elas fogem e
eles correm atrás da bola. Nem olham para elas: «- As raparigas são um nojo!». Esse é o tipo de
discurso agressivo de um rapaz que pode traduzir timidez. Os rapazes só esfolam os joelhos. Não
brincam com meninas. Ser rapaz é jogar à bola.
Mais tarde, um jovem face a uma rapariga, de acordo com uma engraçada comparação de Júlio
Machado Vaz, até treme como varas verdes. A tradução possível, a partir de linguagem psicológica
explícita para o seu comportamento desajustado, expressa-se da seguinte forma: «- Quem sou eu?».
A sua identidade está em construção.
Figura nº 13 - Curiosidade sexual: Fotografia de rapaz a ver avô (?) a ordenhar vacas - Suíça.
Mesmo estando outros genes e factores contextuais implicados, pensa-se que as pessoas
predispostas a procurar mais a inovação se tornam extrovertidas, impulsivas e exploradoras. Podem,
portanto, ser mais curiosas em geral e sexualmente mais activas.
61 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Em Iowa do Sul – EUA, num certo dia luminoso, o pintor Grant Wood ficou fascinado quando encontrou uma casa em
Estilo Neo-Gótico. Os seus telhados seriam soberbos... Também pode ter sentido vontade de criticar aquele meio fechado
em que vivia rotineiramente.
Pôs mãos à obra e foi buscar a irmã e o dentista para seus modelos dos papéis de pai e de mãe, colocando-os frente
à casa familiar retratada com rigor. Alguns criticariam a feia expressão no «casal». Grant desculpou-se como foi capaz:
a irmã era assim horrenda. Depois disse ter representado uma homenagem àquela população, cuja dignidade puritana
admirava. Não acreditaram nele.
Considere-se outra alternativa: ele amava a sua terra. Wood estudara na Europa e viria a ser um acérrimo defensor
da autonomia da pintura americana frente ao Velho Continente. Ele era um Regionalista na América do Norte, um defensor
do Realismo, durante os anos trinta. Apelava a um estilo de linhas rígidas, firmemente delineadas e modeladas, inspirado
no Gótico e nos mestres do Renascimento Setentrional (Albrecht Durer, Albrecht Altdorf...) que estudou na Europa, durante
os anos vinte. Wood observara diferenças entre a América e a Europa e o seu passado influenciara-o.
Muitos dos problemas sexuais com que nos deparamos provém de gerações muito fechadas,
intransigentes e sem adaptabilidade e estão relacionados com dificuldades inerentes às suas prá-
ticas de vida.
Neste século XXI há quem frequente sexshops, o que constitui já uma opção pessoal em li-
berdade. Actualmente, ser bissexual ou frequentar praias naturistas passou a consumir tempos de
62 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
destaque nos media. Também na imprensa portuguesa, sobretudo depois de 2001, afluíram denún-
cias de crimes de pedofilia. Essa é uma questão em que um indivíduo lesa outro, na sua liberdade
e dignidade.
Chama-se «catamito» a um rapaz ligado à actividade sexual homossexual, enquanto parceiro
passivo na sodomia – relação sexual anal. Ele não tem escolha.
Os comportamentos adultos anteriormente referidos são diferentes – liberdade em frequentar
um local ou em utilizar outrem para práticas sexuais coercivas. No primeiro caso, as pessoas não
incorrem na condição de poder sobre uma criança ou adolescente para serem conotadas como
perversas.
Perversão sexual significa a satisfação de pulsões sexuais por práticas consideradas como
desviantes do comportamento habitual – parafilia, na linguagem actual.
Defende-se que os comportamentos sexuais somente dizem respeito aos próprios e incidem
na categoria «sexual» os actos que não constituam sexualidade coerciva. A pedofilia, uma parafilia,
é coerciva. A violação, por exemplo, tem ligações fortes ao poder81 e é coerciva.
Por sua vez, uma educação flexível pressupõe que o adulto consiga assumir-se como um su-
porte emocional para o jovem e que responda às suas perguntas sobre amor e sexualidade. Esse
é um adulto que cria desafios à reflexão.
Que outro significado se adianta para a pintura de Picasso apresentada na figura 15?
Através do olhar do pintor, vê-se uma criança e um adulto atento que ensina a jovem a ser
equilibrista, pelo desafio físico e artístico, formulado com exigência de aperfeiçoamento.
Em 1937, Balthus82 colocou uma jovem como modelo de pré-adolescência num cenário austero,
severo e bem escuro, no qual a única luz incidia nas suas coxas. A sua exposição perturba-nos pela
forma como a rapariga se colocou. Normalmente, surgem na adolescência desejos sexuais intensos.
Em outros quadros, Balthus colocou outras jovens em interiores sombrios, onde dormem, sonham
acordadas ou se expõem fisicamente.
No entanto, a exibição Rapariga com Gato (1937) de Balthus contrasta com outro modo de
observar a adolescência contemplativa, partindo da fotografia de Cindy Sherman83.
A disciplina rígida e o puritanismo exigiram vestidos compridos em mulheres a quem não era
«adequado» o uso de calças. Com o Pós-Guerra, na segunda metade do século XX, tudo parecia
mudar.
«...Ontem as coisas corriam como de costume. Serei eu que mudei durante a noite? Deixa-me ver: era eu a
mesma pessoa, quando me levantei esta manhã? Parece que me lembro de me ter sentido um poucochinho diferente.
Mas se não sou a mesma, então quem sou eu? Ah! Esse é o grande problema!».
E começou a passar mentalmente em revista todas as crianças da sua idade que conhecia, para ver se poderia
ter sido trocada por qualquer delas. ‘Tenho a certeza de não ser a Ada’, disse ela, ‘porque o cabelo dela cai todo aos
caracóis e o meu não tem caracóis alguns; também estou certa de não ser a Mabel. Eu sei muitas coisas e, ela, oh,
ela não sabe nada! Além disso, ela é ela, e eu sou eu mas, meu Deus, que confusão que tudo isto é!’» (Carroll, 1865;
trad. port. 1971, pp. 19-20).
Figura nº 18 - John Tennier: Ilustração de «Alice no País das Maravilhas» (Carroll, 1865).
66 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Figura nº 19 - John Tennier: Ilustração de «Alice no País das Maravilhas» (Carroll, 1865). Mudança física.
O conceito de «papéis sociais» é ambíguo e, geralmente, quem o nomeia nem imagina outras
funções para além daquelas identificadas por si. «Papel» é comportamento social, status e expec-
tativa de manifestação de comportamento desejado adequado. «Papel» é representação em teatro
e, nessa condição lúdica, eu julgo ou finjo sentir o que chamo ao outro – a personagem.
Mas Alice era também uma menina real, Alice Liddell, que o Reverendo de Oxford, Charles
Lutwidge Dodson (1832-1898), conheceu e cativou. Charles Dodson foi matemático, fotógrafo e de-
senhador, para além de escritor e um grande sedutor. Ele escreveu e desenhou Alice, Mary Millais,
Irene MacDonald e dezenas de outras meninas; inventou-lhes jogos e acrósticos86 personalizados.
Dodson poderia ser hoje considerado um «pedófilo». Igualmente, Balthazar Klossowski de Rola
(Balthus), outro artista notável, poderia ser nos nossos dias condenado por esse crime.
8. Amores adolescentes
Nem sempre a relação sexual com menores constituiu um crime. Sempre existiram dramas
passionais, melodramas e tragédias japonesas em resultado da paixão por uma jovem menor de 16
anos. Ainda no século XX, se viveu uma atracção pelo exotismo oriental que levou muitos ocidentais
a casar com adolescentes durante o tempo de permanência em terras longínquas do lar.
Madame Butterfly87 é uma tragédia em 3 Actos. A crítica foi-lhe hostil e logo se tornou um fiasco
no Scala de Milão. Corria o ano de 1904.
Puccini nem quis acreditar no que ouviu dizer no dia seguinte, ele que afirmou, a pés juntos,
o seguinte: « (…) a minha Butterfly continua a ser (...) a ópera mais sentida e mais expressiva que
jamais compus».
O mesmo sentimento se colocou ao escritor inglês Charles Dickens (1812-1870) depois de ler
«O Capuchinho Vermelho»: se a personagem existisse, casar-se-ia com ela.
O que afligiria Puccini em Cio-Cio-San era ser ela a cometer o crime de se apaixonar por um
tenente da marinha americano, Pinkerton, não tendo encontrado outra solução senão suicidar-se.
A história daquela miúda de olhos em bico é bem simples de contar:
Cio-Cio-San e Pinkerton tinham-se conhecido em Nagasaki (Japão), num quadro colonial, em que se ouvem sinos e
gongos. Pinkerton comprou-a com 15 anos feitos. Talvez o militar tenha achado graça ao seu nome exótico - Cio-Cio-San
- Butterfly. Ele era um homem cínico88.
Nessa época, não haveria legislação que o impedisse de ter como esposa uma jovem menor de 18 anos.
É certo que se casaram felizes, se bem que o tio a recriminasse por abandono dos deuses locais. Aos olhos do tio,
ela procedeu mal. A família perseguiu-a ao querer retirá-la daquela vida. Tinham-na vendido e chegavam a recriminar-se.
Entretanto, escuta-se em cena «A canção das cerejeiras em flor» - sakura, sinal de momentos de paixão.
Terminada a missão militar, Pinkerton partiria, de qualquer forma, sem ela, como um amante que não ama – ávido
de prazer89. Já era de esperar, embora ela estivesse grávida.
Passados três anos, com a maioridade legal actualmente reconhecida, Butterfly tinha o seu bebé desejado (?), fruto
daquele amor impossível. O menino pequenino era parecido com o pai. Foi depois colocado ao cuidado de uma empregada,
Suzuki.
Sem que se soubesse a razão, o Senhor Cônsul Americano no Japão, chamado Sharpless, entrou na história de
Butterfly para a aconselhar a desposar um outro homem, um príncipe japonês chamado Yamadori. Nem se chegaria a
conhecer o passado de Yamadori, nem a sua intenção em relação ao casamento combinado. Também é possível que o
príncipe não soubesse ou não se importasse de ficar com a criança, filha de Pinkerton.
No entanto, Pinkerton estaria já prestes a voltar a Nagasaki num navio americano. Butterfly foi informada da sua
vinda e, agarrando-se à criança, nem hesitou em ir esperá-lo para o receber com alegria ingénua e com o filho nos braços.
Não podia ter feito pior. Ele já vinha acompanhado por Kate, uma jovem moderna.
Pinkerton compreenderia a sua má acção somente ao vê-la? Que fazer? Encurralado, Pinkerton deixaria as duas
mulheres. Kate ficou, como seria de esperar, surpreendida.
Nesse momento a jovem Butterfly precipitou-se. Traçou o seu fim, como uma borboleta pregada em alfinetes. Entregou
o menino a Kate que o recebeu nos braços sem compreender o que se passava. Depois, Butterfly matou-se no palco com
o sabre do pai. Pereceria mesmo pregada ao chão.
É evidente que Cio-Cio-San não conseguiria comunicar sentimentos com elasticidade e sujeitos a
nuances, pois a cultura e língua materna alteravam o sentido do que fosse dito em contexto emocional.
Pinkerton era um homem branco e de situação militar e social elevada. Um invasor.
«O grande amor – e eu diferencio entre amor e paixão – é sempre um recurso, um pressentimento de privação.
A saída de Adão e Eva do Paraíso é uma lenda maravilhosa, que representa a introdução do amor na terra, a
privação do estado ideal, onde havia a liberdade total, a harmonia dentro da liberdade. Eles saem munidos do amor,
para suportarem a realidade da vida.» (Bessa Luís, A., sem data).
Nessa acepção, o amor será um bem menor ou um prémio de consolação96, orientado pela
definição de amor-dádiva ou dom de Bessa Luís97: «o amor é uma memória que nos foi transmitida,
uma lição recitada, o amor é só uma forma de piedade por nós próprios».
Mesmo observado o amor nessa triste forma concebido, o Éden, no Génesis, é como o Lugar
das Delícias, o Paraíso Terrestre. Não terá sido o lugar onde Adão e Eva se uniram sexualmente?
Onde então? Na realidade agreste e terrestre.
69 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
As imagens sexuais repetem-se na Bíblia. Moisés fizera também magia com uma vara que
se transformara em serpente, um símbolo fálico comum. No Próximo Oriente, essa serpente fálica
ensinava a ter relações sexuais e, de acordo com a Bíblia, tentou Eva.
Na análise dessa alegoria por Clifford Bishop98, somente depois de se encontrarem no Éden é
que ocorreu a união de facto entre Adão e Eva, isto é, fora do Paraíso. Para intérpretes judeus nos
quais se apoia Bishop, a serpente não os tentou, logo, a queda do Paraíso passa a ser uma conse-
quência de mera desobediência ao dever. Como se observa, uma alegoria integra vários significados:
culpa/pecado e prazer, amor e dever, castigo e reparação do «mal» feito.
A questão da reprodução encontra-se igualmente presente na alegoria. Nas palavras bíblicas, a
expressão de Deus é «crescei e multiplicai-vos», o que leva certos judeus e muçulmanos a oporem-
se ao celibato. Inclusive, é comum entre judeus amarem-se na noite anterior a sábado (Sabat), dia
de repouso, na medida em que o sexo serve a criação e consuma um dever sagrado pelo Antigo
Testamento.
O que se observa ao ler o Génesis é que Deus demoraria seis dias a criar o mundo. O
primeiro ser humano seria concomitantemente macho e fêmea ou igual a Deus, um ser assexuado.
Mas a versão dominante do Génesis não é essa. É outra a narrativa99 divulgada em que Deus criou
a Terra e o Céu em um único dia e Adão foi feito da Terra, moldado com ela, tendo-lhe sido soprada
a vida pelo nariz, enquanto Eva (a própria Vida) se estruturou da sua costela para ser sua «ajudante».
Para o ritual de casamento, na tradição judaica, a sexualidade foi progressivamente eliminada
por leis terríveis100. Certos escritos sagrados para judeus como a Tora, constituída pelos cinco primei-
ros livros das Escrituras judaicas, o Talmude e o Levítico contém todos os exemplos de proibições
e de leis contra as práticas sexuais.
A Tora101, esse «Livro das Leis», foi uma forma de sarar males se essa obra fosse transportada
da sinagoga até junto de doentes ou mulheres em trabalho de parto102. Chegou a prescrever-se que
o homem depois de beijar o rolo da Tora não poderia beijar a mulher ou o filho103. Fazem-se ainda
prescrições reconhecíveis. Por exemplo, a poligamia é aceite, embora não esteja escrito o número
de mulheres que um homem pode ter.
No Talmude, onde são expressas e comentadas as tradições judaicas, enuncia-se a possibili-
dade de quatro mulheres casarem com um homem e dormirem com o marido alternadamente, pelo
menos uma vez por mês.
Mas é no Levítico104 que se decreta a pena de morte para a homossexualidade. Essa obra é
igualmente terrível para quem não tenha na sexualidade a orientação básica de gerar filhos. Às noivas
não virgens está prescrito que poderiam ser apedrejadas até à morte, tal como os noivos adúlte-
ros. O casamento e as práticas relacionadas com o asseio sexual e a menstruação encontram-se
registados nas Escrituras dos Judeus. Não é de esquecer a modéstia defendida para as mulheres
no modo de vestir.
Para além das religiões, os sistemas políticos criaram, como se verá a seguir, os seus regula-
mentos implícitos influentes.
70 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Verdita era muito bonita e, embora pequena, chamava a atenção dos seus camaradas do acampamento. Não era
propriamente destituída de sensibilidade, embora se sentisse bem no grupo.
Em outra Unidade de Trabalho, ela conheceu um rapaz de óculos, tal como ela belo e apaixonado.
Em segredo, passaram a encontrar-se.
Certo dia, foram descobertos e serviram de exemplo: ele foi morto e ela obrigada a escrever num papel ter sido
violada por ele.
Como seria de esperar de um tão raro amor, Verdita foi morrendo aos poucos. Definhou, sendo encontrada morta no rio.
O amor foi destruído devido à ideologia dominante, segundo a qual iria corromper os ideais
políticos, incentivados em jovens chineses. Associou-se a esta estória a luxúria (o pecado oposto à
castidade), mas o que se aconteceu a Verdita foi paixão partilhada.
O personagem a afirmá-lo renunciou a viver a sua paixão, acabando por se tornar um eremita,
doente, algures em África.
71 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
No Ocidente, a influência religiosa nos costumes sexuais diminuiu actualmente mais do que em
qualquer outra época histórica108. Nos EUA, impôs-se a Revolução Sexual desde os anos sessenta.
As sociedades comunistas somente nos anos noventa alcançariam liberdades fundamentais.
Ainda que certas ocasiões históricas constituam formas de libertação, propiciando a diminuição
de doenças venéreas mortais e de gravidezes não desejadas, o século XX ficou ensombrado com
o aparecimento da trágica Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA).
A tradição judaico-cristã per se não é culpada pela expansão das doenças sexualmente trans-
mitidas, até porque condenou a sexualidade desde o início do século I d. C., com Paulo de Tarso
- Turquia109 (5-67), São Jerónimo (342-420) e Santo Agostinho (354-430). A capacidade de nos
redimimos e o perdão caracterizam dois dos princípios basilares dessa fé. Actualmente, em con-
fronto com opiniões díspares, afirma-se que a Igreja Católica ao condenar o uso de contraceptivos
é responsável pela expansão da SIDA.
Com a SIDA, múltiplas vozes, para além das cristãs, juntaram-se na condenação de com-
portamentos sexuais. Nos séculos XX e XXI morre-se mais de SIDA do que de outras doenças da
civilização. Ainda em 1983, no jornal americano New York Post110, um político conservador, Patrick
J. Buchanan, defendia que a SIDA era uma condenação da Natureza para os homossexuais. Em
Londres, anos depois, na Câmara dos Lordes, Lady Salton111 veria a ira de Deus como causa desse
mal. Expressões como «conduta depravada» e «prática sexual abnóxia» (não inócua ou inofensiva)
já não serão utilizados depois de se saber o que a ciência nos vêm explicando: a SIDA não escolhe
os doentes nem a sua orientação sexual.
No ano de 2000, o Primeiro-Ministro inglês Tony Blair, face ao aumento de casos de gravidez
na adolescência, afirmou à comunicação social o seguinte: «Ninguém deve engravidar ou contrair
uma infecção transmitida sexualmente por causa da ignorância. Esse é um dado concreto». Temos
pois que passar a transmitir o conhecimento exigido. Blair avançou mais do que se esperaria.
Para colmatar o desconhecimento inevitável de um(a) jovem sobre sexualidade, deve começar-se
por explorar com ele(a) o que já sabe ou julga saber de sexo e de amor. O que sabemos prende-se
com a cultura que possuímos e com os contextos em que vivemos. Em primeiro lugar, convivemos
com a família em casa e com os colegas na escola.
Sugerida uma estória imbricada para a alusão a um Basilisco, não se duvida que certas crianças
portuguesas ou japonesas já conhecem a besta, uma criatura híbrida e fantástica. O Basilisco surgiu
em livro e em filme da «colecção» Harry Potter. Na obra de Joanne Kathleen Rowling112, é ele que
guarda a Câmara dos Segredos onde se morre e cuja porta não se pode abrir em Hogwarts - Escola
de Magia e Feitiçaria. O Basilisco é um símbolo de destruição e morte.
O que nem todos sabem é que a vitalidade do bicho surge da imaginação do mundo clássico.
O letal rei das cobras pequenas113 foi inventado como um ser vivo real pelo naturalista romano Plínio,
«o Antigo» (de seu nome Caio Plínio Segundo), quando realizou uma viagem à Etiópia114.
72 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Figura nº 21 - Um Basilisco.
«Retira-se o cego (primeira parte do intestino grosso, que se segue ao intestino delgado) dos carneiros;
embebe-se, primeiro, em água e vira-se de ambos os lados; depois, repete-se a operação num soluto
suave de soda, que deve ser mudado de quatro em quatro ou de cinco em cinco horas, cinco ou seis vezes
consecutivas.» (Andreae, 1998, trad. port. 2003, pp. 158-159).
73 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
Em seguida, o preservativo ainda tinha que ser limpo, cortado, moldado e costurado por quem
sabia da arte121. Muito poucos homens tinham acesso a este recurso anticonceptivo, apresentado
na figura nº 22.
Notas
5. O cérebro emocional é discutido por Joseph LeDoux (1996, trad. port. 2000), colocando limitações
à concepção fixada de existir uma região visceral (com atributos do Id inconsciente) ou um sistema
límbico, constituído pelo córtex límbico e as regiões subcorticais (pp. 103-109). O que LeDoux propõe
é que o hipotálamo (parte daquele sistema) está ligado a todos os níveis do sistema nervoso (p. 106)
e que existem vários sistemas emocionais no cérebro (p. 109).
6. O amor será feito de pequenos nadas erotizados – tiques e toques, despentear cabelos, rodear
ombros… (Vaz, 1991, p. 11). Nesse sentido fácil descrito por Alberoni, o amor não é monogâmico
por oposição à paixão monogâmica (Vaz, ibid, p. 174).
7. O ciúme pode ser inveja, acompanhada de pena e de ira/raiva, sem esquecer a nostalgia pelo medo
de perda do outro (Vaz, 1991, p. 170). Adiante será aludido através de Otelo de Shakespeare.
8. A citação de Milan Kundera desejar uma mulher é fácil, o pior é querer dormir com ela é apresentada
por Júlio Machado Vaz (1991, p. 12), em O Sexo dos Anjos. Nessa expressão, o homem separa a
intimidade do seu desejo, o que não será apanágio da mulher, culturalmente constrangida a nem
assumir o seu desejo.
9. Michael Mahoney escreveu Processos Humanos de Mudança, em 1991, sendo referida a noção
de existirem questões difíceis de mudar, nomeadamente a identidade e os valores de uma pessoa
(Mahoney, 1991, trad. bras. 1998, p. 32).
10. António Damásio (1994) expressou-o no livro O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Hu-
mano.
11. A estrutura de categorias linguísticas desempenha um papel no pensamento e, em muitos casos,
denominam-se scripts (guiões, roteiros), «estereótipos» e «cenários» aos pontos de referência cog-
nitivos de vários tipos que formam as bases de ilações e inferências (Lakoff, 1987, p. 45).
12. Alan M. Turing escreveu um texto, em 1947, intitulado Uma Máquina Pode Pensar, inaugurando o
paradigma da Inteligência Artificial – a metáfora do computador. Em 1960, Hilary Putman ainda insistia,
no livro Mentes e Máquinas, que a máquina poderia estabelecer um nexo, dando a solução à questão
complexa relativa à interacção ou separação mente e corpo. Desde então, a Neurofisiologia (e a
fortiori a Física) pode ter aspirado a reduzir a Psicologia a pouco, reconhecidas regiões do cérebro
para funções psicológicas. Estamos felizmente longe de tomar o reducionismo como «solução».
13. Jeffrey H. Goldstein (1980, trad. bras. 1983, p. 74).
14. Victoria McCarthy (1996; trad. port. 2000).
15. Simon Andreae (1998; trad. port. 2003, p. 24).
16. Diane Ackerman (1994, trad. cast. 2000).
17. Foi no Concílio de Trento (século XVI) que ficou definido não ser aceite o casamento de jovens sem
o consentimento dos pais (a partir dos 13 anos no rapaz e dos 11 anos e meio na rapariga), ainda
que pudessem sempre incorrer em pecado casando sem a aceitação parental (Vaz, 1991, p. 73).
18. Dictionary of Literature (1995, p. 7).
19. Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 86) contou a história de Abelardo e Heloísa.
20. Diane Ackerman (1994, trad. cast. 2000, p. 92-98).
21. Clifford Bishop (1996, trad. port. 1997, p. 97).
22. Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, pp. 127-128).
23. A fonte dessa ocorrência funesta é encontrada em O. Thompson (1931).
24. O relato recente do sucedido encontra-se em Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 51).
25. Andreae, ibid, pp. 51-53.
26. Simon Andreae, 1998.
27. Super-Interessante (2003). «Ciência Divertida», livro suplemento, revista nº 58, Fevereiro de 2003,
p. 7.
28. Super-Interessante, ibid, p. 6.
75 EDUCAÇÃO SEXUAL NA FAMÍLIA, NA ESCOLA E NA SOCIEDADE
lação a animais conhecidos na sua História Natural, constituída por 37 volumes (Lello Universal:
Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro, Volume 2, 1976, p. 568). Depois, a história do bicho feroz
foi recontada por um geógrafo latino do século III, Solino, na Polyhistoria - «Colecção de Factos
Notáveis» (Nigg, 2002, trad. port. 2002, p. 124).
115. Nigg, ibid, p. 124.
116. Simon Andreae (1998, trad. port. 2003, p. 153).
117. O termo «onanismo» provém da prática sexual de Onam, castigado de morte por Deus. Filho de
Judá, ele fora obrigado a casar com a cunhada viúva e masturbava-se, mas depois violou a lei,
fecundando-a. Júlio Machado Vaz (1991, p. 19) considerava que há mais de quinze anos a mas-
turbação era comummente observada como uma acção psicologicamente desajustada.
118. Simon Andreae (1998, trad. Port. 2003, p. 152).
119. Andreae, ibid, p. 158.
120. Andreae, ibid, pp. 158-159.
121. Andreae, ibid, p. 159.
122. Andreae, ibid, p. 159.
123. AA.VV. (2004, p. 157).
79 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
CAPÍTULO III
Um trovador e o seu amigo contam histórias a cinco raparigas, como em uma cena de “Decameron”, escrito por
Boccaccio, no século XIV, a propósito da fuga de jovens para uma zona isolada da peste, que assolava Itália.
81 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
CAPÍTULO III
O prodígio das histórias: verdade, ciência e nuances de amar
É infindável o moinho da palavra1. Como será adiante elucidado, existem muitos modos de
ficar apaixonado, passando pela antiga «declaração de amor» ao coup de foudre («acontecimento
imprevisto») ou à amizade que se transforma em «enamoramento» - limerence2. Os sentimentos
são difíceis de entender e explicar: chegamos, por vezes, ao ponto de nos habituarmos tanto a uma
pessoa que, a certa altura, descobrimos amá-la... Existem pessoas intrinsecamente «conjugais» e
outras não. Observam-se formas de se ser fiel, ciumento ou possessivo, características presas à
estrutura da personalidade, à linguagem da época, ao contexto espacial e à cultura envolvente. É
relevante termos palavras que permitam discriminar nuances de emoções e sentimentos. Ampliam
as possibilidades de os viver e de narrar afectos registados em fábulas educativas e em contos para
adultos.
Michel Foucault3 defendeu que, ao longo dos últimos trezentos anos, diversas formas de se-
xualidade originaram uma autêntica explosão discursiva4. Afirmou-o quando as histórias de amor
disparavam com a revolução dos costumes.
Todavia, as histórias deixaram de fazer sentido para o racionalismo científico, ainda que sejam
convincentes para os seres humanos5. Uma história, nesse sentido psicológico actual6, é uma no-
ção bem ampla do termo brasileiro estória. Integra narrativas da esfera literária, rituais simbólicos,
explicações para a ciência, exemplos clarificadores e mímicas corporais. Esses são relatos abertos
– tiram-se ilações, inferências e significados possíveis para as ocorrências descritas.
Pense-se que um líder ou qualquer indivíduo socialmente competente é observado por Howard
Gardner como um contador de histórias, desde que construa a grande narrativa de um povo ou grupo
sócio-político. Essa alegoria7, directamente comunicada pelo líder em discursos orais inflamados,
alerta para visões da existência corporificadas nas suas acções e na sua vida. Ele é o modelo
biográfico a seguir. Portanto, o que faz o líder é transmitir em linguagem corporal e em linguagem
verbal uma clara versão do mundo8.
82 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Em suma, os mitos permitem compreender o mundo pela metáfora13, pela imagem e, ainda,
pela imaginação neles colocada por pessoas. Em rituais ancestrais reacende-se essa procura de
sentido de vida.
2. Os rituais humanos
Um «ritual» ou «rito» (do latim ritus e ritualis) é uma actividade sujeita a prescrição (norma),
integrada em outras acções com significado (espiritual, religioso, lúdico...). Existem em todo o mun-
do rituais públicos e privados que servem necessidades, exigências e desejos humanos. O próprio
teatro é um ritual de ilusões. Assim sendo, as actuações corporalizadas ressentem-se na experiência
psíquica do público e no desenvolvimento do «eu» dos actores.
As funções dos preceitos e as convocações dos rituais são tão variadas quanto estes últimos:
a eterna busca do sentido de vida, o poder sobre outrem, o alívio na doença, a confissão do pecado/
culpa, o perdão pelo mal feito, o sacrifício pela humanidade, a conciliação amorosa, a celebração
do passado, o encorajamento à acção e o alimento para o espírito14. Segundo Murry Hope15, classi-
ficam-se os rituais de modo diverso: rituais de lembrança ancestral, de transição social – iniciação,
despedida, boas-vindas, de purificação, de gratidão e de protecção.
Como exemplo, em África ou na Austrália, certos povos autóctones ou aborígenes crêem que
as mulheres devem apanhar chuva para serem férteis16 e realizam cerimónias no sentido de busca
de protecção – rituais de fertilidade. Por seu lado, no campo das práticas religiosas, o corpo continua
a ser penetrado em rituais pelo símbolo do espírito. Na Nova Guiné, uma ilha da Oceânia, ocorre
um ritual em que é comum um homem vestir-se de ave-do-paraíso emplumada e outros homens
rirem-se da jovem e bela bailarina17. Fazem o ritual de namoro à ave com volúpia e sensualidade.
É como se esse pássaro/homem encarnasse o espírito da mulher e os gracejos dos companheiros
encorajassem todo o grupo na caçada a realizar logo depois.
A essas acções organizadas Carl Gustav Jung (1875-1961) associara o inconsciente colectivo18,
como quando se invocam os Deuses e a Mãe Natureza para aplacarem catástrofes e desastres
naturais. Na actualidade, a visão mítica ou a crença mágica têm impacto menor, mas o pressuposto
organizador de Jung revigora-se na concepção de que a mente incorpora algo mais do que o que
pode ser dado por experiência, ou seja, algo que circula como inconsciente transpessoal.
Não se duvida também que os ritos de crentes e religiosos unem as comunidades, mantém-nas
ligadas e íntegras, preparando o indivíduo para o papel que se espera dele. Enquanto o baptismo
e o casamento são sustentados por grandes grupos sociais, outros rituais se perderam por influên-
cia de fenómenos de aculturação: a acção de graças pelo parto (a partir do Levítico19, com exigida
quarentena da mulher sem poder entrar em igrejas), a candelária irlandesa20 (ritual de fertilidade),
o ritual de exorcismo romano, o hieros gamos grego ou «casamento sagrado» entre sacerdotes de
sexos opostos21.
No ritual de confidência/confissão, por exemplo, o cristianismo consuma um sistema de confissão
privado22, cabendo ao clero perdoar a partir da revelação da verdade.
O conhecimento da Cabala23 também aproximou sempre os judeus de rituais. Mas o judaísmo
desligou-se, progressivamente, de cultos sexuais e de religiões sexuais24. No século VII a. C., ainda
84 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
era queimado incenso no culto em honra de uma serpente de bronze, alusiva à vara construída por
Moisés. No passado, certos cultos simbólicos exigiram a utilização de facas de pedra em cerimónias
que se reportam a Moisés ou a Josué25 na conquista de Canaã - a terra prometida da Palestina.
Actualmente, o único elemento fálico do judaísmo é a circuncisão26, forma de aliança entre Deus e
o ser humano.
Em culturas actuais também os curandeiros («os Curadores do Espírito») adoptaram a prática
de não interrogar pessoas mas espíritos, pelo que têm que ficar possessos – possuídos27. Nessa ou
em outras orientações de ritual acrítico, perde-se distância reflexiva. Em situações ingratas, portanto,
cabe ao mágico influenciar e ser responsável pelo grupo, sendo ele a comunicar com o sagrado.
Deve ser dito que também foi essa a missão básica do cabalista que teria que viver com sim-
plicidade, concentrado e absorvido no estudo da Cabala para poder comunicar com o outro mundo.
O outro mundo foi uma descoberta platónica. A noção de amor com o significado de verdade
pode ser encontrada também em Platão (429-347 a. C.). Pela primeira vez, o conhecimento teve um
alcance erótico. O espírito faria parte da Natureza que se digladiaria entre ordem e caos.
A verdade platónica partilhou do mundo de formas imutáveis e perfeitas, localizado acima do
carácter transitório da vida e da imperfeição visível – o mundo de aparências. As formas perfeitas
estariam antes do mundo visível dos sentidos. A aquisição de conhecimento far-se-ia para trás (di-
rigido ao passado), face ao mundo real, imperfeito. Para tanto, a mente teria que ser una e aliada
das imagens de perfeição.
Em A República, Platão propôs-se agarrar a essência das coisas, precisamente pedindo ajuda
à mente, «semelhante à realidade que se aproxima dela e se une com ela». No original, unir significa
syneimi, ou seja, «relação sexual»28.
Em O Simpósio ou O Banquete29 integrado em A República e outros Textos, ainda Platão se
refere ao modo como a mente também se abstrai do corpo mortal, por recurso à ideia de Eros («amor
sexual»). Mas, nessa comparação, Eros é entendido como «amor não físico», em que dois amantes
se contemplam e se reflectem, projectando-se nas suas imagens, uma e outra vez… Nessa recor-
rente situação não sexual, a mente pode projectar a verdade do amor, por conflito e/ou por enigma,
ampliando-se a «sublimação»30 e a «resistência»31 freudianas.
Freud ainda reparou que a noção de sermos basicamente bissexuais decorre de textos hindus
anteriores ao Simpósio em que os Deuses são hermafroditas e, provavelmente, Platão não terá
sentido a «certeza» da sua identidade sexual32.
Foi na referida obra de Platão que também se apoiou a prática de pederastia33, ou seja, a
prática de relação sexual entre um homem e um rapaz. Mais globalmente, O Simpósio retrata o
entendimento do amor avalizado pelo mestre de Platão, Sócrates, entretanto falecido34. O cenário é
a casa de Agatão, um poeta dramático e anfitrião do célebre festim/simpósio em que os convivas,
todos homens, ficaram a conversar até altas horas da noite.
85 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Os primeiros entes humanos eram fruto da obra de Deuses jovens e eternamente belos. Foram, assim mesmo,
construídos de forma diversa dos seus criadores: redondos, completos e integrais. Mas tinham duas caras... Foi quanto
bastou, aliás, para que as divindades temessem ser passados para «segunda classe», a partir do poder de controlo próprio
e, por tal facto mesquinho, os Deuses cortaram os primeiros seres ao meio. Cada ser humano passou a possuir uma só
cara e pares de membros robustos.
A revolta não se fez esperar mas, como seria de prever, fracassou. O prognóstico estava correcto. Era preciso mais
do que duas metades idênticas, mesmo multiplicadas, para se haverem com os Deuses. Ainda assim, os novos seres
«humanos» andavam melhor, corriam e saltavam a dois pés.
Insurgirem-se por serem unos levá-los-ia, por fim, ao júbilo pelo sorriso decorrente da nova vida alcançada, levada com
alegria e ligeireza; mas a inquietude mais profunda assustou-os: comuns mortais, eram caras e metades incompletas.
Assim remodelados, alguns esforçar-se-iam (ou não) e encontrariam a sua cara-metade; outros, infelizes, errariam
no mundo sem eira nem beira. Quem sabe se os primeiros teriam a seu favor a sorte...
Aristófanes viria a concluir existirem pessoas feitas umas para as outras, mas também que esse
seria um anseio profundo de comunhão com o próximo, por dever cósmico37. E o mestre da comédia
esclareceu, em palavras insuspeitas, traduzidas da seguinte maneira38:
«Ninguém pode acreditar que é o mero prazer físico (Eros) que leva uma pessoa a sentir um prazer
tão intenso na companhia de outra. É claro que a alma de cada uma delas tem outro anseio que não é capaz
de exprimir, mas que apenas pode imaginar e a que só é capaz de referir-se de uma forma vaga. Imagi-
nemos que Hefesto, com as suas ferramentas, as visitava quando se encontravam deitadas lado a lado e,
erguendo-se acima delas, lhes perguntava: o que esperais vós, mortais, lucrar um com o outro? Imaginemos
ainda que, se eles não conseguissem responder, ele repetiria a pergunta nestes termos: o objecto do vosso
desejo é estarem sempre o mais possível perto um do outro e não se separarem nunca nem de dia nem de
noite? Se é isso que quereis, estou disposto a fundir-vos e a soldar-vos para que em vez de dois passeis a
ser um só corpo; enquanto viverdes tereis uma vida comum e quando morrerdes tereis uma morte comum e
continuareis a ser um só, e não dois, no outro mundo. Contentar-vos-ia tal destino e satisfaria ele os vossos
anseios? Sabemos qual seria a resposta; ninguém recusaria a proposta; ficaria claro que é isso que toda
a gente deseja, e todos considerariam essa a expressão exacta do desejo que há muito sentiam, mas que
não tinham sido capazes de exprimir: poderem fundir-se com o seu amado e serem, depois, um único ser
e não dois.» (Platão, trad. ingl. de W. Hamilton, 1951).
Importa dizer que o grego Hefesto era o venerado «Deus do Fogo e da Forja», constando-se
que ele podia fazer quase tudo.
Em suma, e a atender à versão do amor platónico, esta coaduna-se com o nosso viver: o amor
não é infindável, ainda que queiramos ter uma alma gémea. O amor não é perfeito por iniciativa dos
Deuses.
86 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
4. Amores travessos
Ainda que lentamente enriquecido com os sentimentos, existirão amores mais endiabrados e
atrevidos? O que é o «amor ocidental»? Para os gregos clássicos, o amor foi por vezes tragédia39.
No Ocidente, ainda é comum pensar-se que amar é um bem comum. Mas foi a partir do século XI
que se expandiram novas formas de amar40, umas mais idílicas outras mais carnais (traduzidas nas
cantigas de amor e de amigo), em que o amor passava pelo «jogo social».
Na actualidade, pensa-se que a paixão surge quando nos apaixonamos não pelo outro, uma
pessoa real, mas pelo modo como o/a vemos. Existe uma paixão solitária, podendo ser dado, a
este propósito, o exemplo de Narciso que somente via Eco espelhada no lago. Idealizamos o ser
humano amado e chegamos a idolatrá-lo. Essa pessoa da nossa paixão é sujeita a mimetismo, ou
seja, inconscientemente e com a convivência podemos passar a adoptar o seu comportamento,
linguagem e juízo.
Há quem acredite que essa concepção de amor existe somente entre nós41, ocidentais. Segun-
do Clifford Bishop, foram os trovadores «românticos» a darem esse cunho ao sentimento amoroso.
Também, de acordo com essa fonte, é possível que na Indonésia os weyewas nos considerem algo
«desumanos», a atender a esse facto bruto - amar. Por sua vez, no Amazonas, o enamoramento
entre os mehinakus é ainda tido como um íman que atrai os espíritos malignos. O resultado é nefasto
nessa sociedade, talvez porque não saibam explorar nuances emocionais, diferentes gradações de
emoções: enamoramento, amor-paixão, amor casto, amizade electiva...
Afinal, nas ilhotas Ifaluk, nos desertos africanos, no Egipto Antigo, na China do século XX,
no Alasca do povo inuit ou em Portugal todos conhecemos esses sentimentos de amor romântico
mesmo que sejam mal vistos, utópicos ou inconvenientes42.
De asas ainda entreabertas, Eros desceu à terra, em certo dia de vento forte, para trazer de volta à vida, com um terno
abraço, a sua agonizante amante, muito amada, Psyque...
O termo psyque significa «alma» no mito romano de paixão juvenil e é conotado com pureza e
inocência. No seu amor por Eros, a menina Psyque preserva a ideia de uma relação amorosa casta,
com ausência de relação sexual.
Escrito pelo latino Apuleio, no século II, que pensava que os demónios transformavam os seres
humanos em animais43, esse amor foi registado em Metamorfoses e ficou conhecido por O Asno
de Ouro - um príncipe transforma-se em burro. O mito reporta-se, portanto, a uma metamorfose, ou
seja, a uma forma de iniciação, causa dessa transformação.
87 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
No mito, Cupido é um Deus semelhante aos animais-noivos dos contos de fadas para crianças
e ficou invisível para Psyque. Na versão indo-europeia, trata-se do mito da busca do marido perdido,
ou do animal-noivo44. Na tradição oral italiana, duas das cerca de sessenta versões do mito são, por
exemplo, A Bela e o Monstro e O Touro Negro de Norroway45.
A crença de que o amor busca o espírito (Psyque) e não o corpo, pode ser ainda observada
para essa alegoria46. Em certo passo da narrativa, Psique é desviada pelas irmãs, podendo pensar-
se, aliás, que o sexo «é uma enorme serpente, mil vezes enroscada».
No relato seguinte, retrata-se a luta contra o sexo interdito por irmãs borralheiras:
A história de Psyque começou há muito, muito tempo, quando um rei e uma rainha tiveram três filhas. Não ficaram
escritos os nomes dos reis. É uma história muito antiga.
Uma das filhas, Psyque, possuía uma extraordinária beleza, pelo que a grega Afrodite (Vénus, Deusa romana do
amor) ficou ciumenta, mandando o filho – o próprio Eros - castigar Psyque, fazendo-a apaixonar-se por um homem abo-
minável. Podia ser Hulk – o homem verde ou o homem das cavernas. Poderia ser indiferente quem ele fosse, se somente
nos cingíssemos a um tema essencial: ciúme e «magia maligna».
Perante tamanha desgraça, os pais de Psyque consultaram o Oráculo de Apolo, em Mileto – Ásia Menor, perto do
mar Egeu.
O oráculo «disse» que Psyque teria de ser colocada, vestida de noiva, no cimo de uma colina, para ali ser a presa
de um monstro parecido com uma serpente – um seu admirador.
Uma serpente é sinal da terra e do submundo (inconsciente), mas a esse lugar não é feita referência no mito. Freud
também viu nela outro sinal: fálico.
Na comunidade local, ficou decidido atirar a rapariga para um monte. O destino estava traçado. Perante uma sina
tão atroz, ela foi conduzida numa procissão fúnebre, pronta para ser enterrada viva. Mas um vento suave, vindo de Oeste
- o Deus Zéfiro, transportou-a quando menos se esperava pela colina abaixo, depositando-a num palácio vazio (de Eros)
onde todos os seus desejos seriam satisfeitos. Podia pedir o que quisesse que logo ali se realizaria a sua vontade. Podia
pedir tudo, menos para fugir.
O monstro (Eros) somente lhe apareceria de noite, ao deitar.
Ele avisou-a de que não tentasse vê-lo à luz do dia. Porquê? Porque, nessa circunstância, um futuro filho de ambos
perderia a imortalidade divina do pai.
Mas ela estava grávida!
No palácio abandonada, Eros conservou Psyque fechada como sua amada. Estava, para todos os efeitos, presa,
encurralada.
Lamentando a situação em que ela se encontrava, há já longo tempo em isolamento total, Eros permitiu que as irmãs
a visitassem. Uma infeliz ideia, convenhamos.
As irmãs alcoviteiras disseram a Psyque que ele era uma «enorme serpente, mil vezes enroscada». Elas convencem-
na, inclusive, a cortar a cabeça a Eros com uma faca mas, quando o ia matar, Psyque viu-o transformar-se, naquele lugar
de traição, em um lindo príncipe.
Entretanto, ele acordava com um pingo de cera que lhe caiu da lamparina por ela transportada, diligente. Furibundo e
arrasado, Eros foi embora. Abandonou-a, pura e simplesmente. Nem quis saber que Psyque só tinha iluminado a sua cara
com um pequeno espelho (para ver se era um monstro) e que transportava uma minúscula lamparina.
Mas a lamparina era para o ver melhor? Não. Era para o matar, com luz suficiente, vendo-o, olhos nos olhos. O que
aconteceu foi, mais exactamente, que um pingo de cera caiu no ombro do belo jovem sem lhe desfazer a cara. Perante
tamanho desaforo, Psyque ainda tentou suicidar-se, mas foi novamente salva – o Deus Pã proibiu-a de se matar.
Pã era filho de um bode, transfiguração do Deus Hermes para seduzir a sua mãe, uma ninfa desconhecida (Dríope).
Psyque, tão bonita, não se devia matar. Ele também era filho do «Deus dos Rebanhos» (Hermes) e não se queixava da sua
sorte – ele próprio era a personificação da Natureza. Tinha sofrido, mas a sua estrela bafejara-o de bem-aventurança no
final da tormenta. Tocava sempre a sua flauta pastoril que inventara para alegrar as festas em que acompanhava o grande
Deus Baco (romano). Ela estava impedida de se suicidar.
É nessa fase da trama que se inicia a busca do marido perdido. Desde então, Psyque passaria a procurar Eros.
Ao longo dessa busca inglória, ela viveu muitas provações, habitando «o mundo dos criminosos». Na sua primeira
tarefa, bem árdua, teve que separar cereais misturados. Contudo, obteve a ajuda preciosa de formiguinhas que iam a passar,
diligentes. Elas foram, como seria de esperar, muito trabalhadoras. Por último, Psyque teve que pedir o estojo de beleza
à Deusa dos Infernos. A sua última tarefa - mais uma tarefa (im)possível – conduziu-a a um sono profundo, semelhante
ao sono da morte. Porquê? Porque abriu o estojo de beleza, tendo sido desaconselhada a fazê-lo por uma Torre Mágica.
88 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Eros estaria saturado por tanta insistência? Ele acabava, somente então, por pedir ao Rei dos Deuses do Olimpo,
Júpiter (Zeus grego), que Psique fosse imortalizada?
Não resta dúvida que casaram com grande pompa, no Olimpo, e tiveram uma filha imortal - Volúpia - a quem se dá
o nome de «prazer».
Todos sabemos que, na iconografia ocidental, as setas de Eros suscitam desejos sexuais.
Mas como foi educada Psyque em relação à sexualidade? Quais foram os sentimentos do-
minantes ao longo da narrativa extensa? Como se orientaram as personagens centrais em termos
relacionais? No aqui-e-agora, o que fazem? O que podem pensar e dizer um ao outro?
Esses são modos viáveis de discutir sentidos para a estória.
Em termos mais gerais: «- Quais são as nossas características pessoais?»; «- Como devemos
agir?»; «- O que é correcto e o que é uma má acção?».
Na sociedade amazónica equatoriana, os sequóias47 temem beijar-se e acham que beijar de-
monstra «loucura».
O acto de beijar pode ter-se tornado um hábito no Sudeste da Ásia quando as mães mastiga-
vam alimentos que davam a filhos pequenos. Assim observado, o beijo não tem uma base sexual,
mas alimentar.
O Tau chinês48 terá tomado a saliva feminina como remédio e, para o tantrismo hindu49, a vita-
lidade masculina exige fluidos femininos (secreções vaginais) para o seu sustento.
89 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Na sua investigação, Barbara Walker50 defende que foram os primeiros cristãos, homens, a
efectuar o beijo da paz.
Em costumes actuais, persiste esse convite à fraternidade por uma comunidade.
porta. Noutra dependência, o homem pode dormir só ou com hóspedes masculinos. Caso a esposa
se coloque por cima do marido, durante o acto sexual, teme-se que os fluxos do sexo (secreções
vaginais) possam deslizar sobre o ventre dele, arruinando o seu poder.
Está proibida qualquer relação sexual nas regiões pantanosas e nos elevados locais habitados
por maus espíritos. Os campos de cultivo estão igualmente vedados à actividade sexual. As relações
adúlteras tornam-se perigosas se se verificarem com frequência nos bosques. Assim o esperma
e os fluxos do sexo poderão ser arrastados para a terra por vermes e serpentes que os doarão a
divindades ctónias (da terra) e hostis.
ao nosso desejo. Sente-se uma energia transbordante, a pessoa fica excitada e experimenta um
óptimo bem-estar. Pode dizer viver a felicidade e a liberdade extremas.
Segue-se um período de dúvida e o segundo estado de cristalização inclui a imaginação de
que cada acto é uma prova de amor.
No quotidiano, essa atribulada condição psíquica intromete-se a ponto do amado vir à mente,
involuntariamente, entre 30% a 100% do dia. Esse é um dado no grupo de estudo de Tennov59.
Constatou ainda nos indivíduos inquiridos uma nítida perturbação quase obsessiva.
Tudo começou, para tormento de Narciso, quando uma ninfa, Eco, se apaixonou por ele. Uma infelicidade para ambos.
Ele ainda não tinha esse nome - Narciso. Era um qualquer filho de um qualquer rei.
Eco, sim. Tinha já nome. Ela chamava-se Eco porque fora impedida de falar, excepto para repetir a última sílaba dita
por alguém. Fora amaldiçoada por Hera (Juno romana) porque era muito tagarela e «é feio estar sempre a falar». Constava-
se, igualmente, que teria ofendido um Deus com o nome de Pã, mas importa não esquecer que Hera era muito ciumenta
e invejosa. Pode tê-la difamado.
O jovem simplesmente ignorou Eco. Nem se deu a conhecer, nem se deu ao trabalho de a calar. Ela parecia-lhe um
autêntico «relógio de repetição» ou um papagaio «mal-educado». Não teria, segundo ele, «personalidade forte», carácter,
pensamento próprio e auto-estima.
Um dia, ela transformou-se em sombra. Ele, coitado, também foi visto como asno ao repudiar outras admiradoras
e, sem o imaginar, apaixonou-se por si mesmo, mirando-se e remirando-se em um simples lago do Monte Hélicon que lhe
devolvia a sua imagem.
Um belo dia, ele morreu e transformou-se na flor do seu nome – o narciso.
Esse é um mito de desejo e de paixão62, subjugado o herói por vaidade exacerbada. A vaidade
pode ser entendida como sinal de auto-estima «elevada»?
O termo «química do amor» foi concebido por Michael Liebowitz, nos EUA, um psiquiatra que
criou um tratamento químico para a tristeza de amor.
Antes dele conceber o antídoto, em 1983, houve um casal que se suicidou por causa da força
do amor, relatando o irmão do homem em causa o sucedido72.
Há cerca de quarenta anos, um jovem rico chamado Justin, com apenas 16 anos, conheceu uma emigrante húngara
em tempo de férias. Ela tinha mais 10 anos do que ele e era casada.
Como o rapaz gostou logo dela, colocou um bilhetinho debaixo da porta de Ursula. No papel dizia-lhe quanto a amava.
No dia seguinte, constatou que ela se tinha ido embora.
Um ano depois, em 1965, quando Justin passeava no sul de França, voltou a encontrar Ursula num jardim quando
andava de baloiço.
Justin voltou a declarar-lhe o seu amor e Ursula decidiu separar-se do marido e nunca mais deixar Justin.
Em 1981, com 44 anos, ela matou-se com um revólver mas deixou um diário onde contava como lhe custaria enve-
lhecer ao lado de Justin, para além de temer que o amor se desvanecesse.
Que fez Justin? Primeiro, percorreu os lugares onde viveram juntos. Nesse tempo de recordação, passou por uma
terra onde tinham sido felizes, em África.
93 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Foram encontrá-lo morto no quarto de hotel em Cartum - Sudão. Suicidara-se com um revólver. Deixava junto dele
as fotografias de Ursula. Foi enterrado junto dela, em Nyala. Anteriormente, tinha sido feito o pedido de serem sepultados
juntos e, nesse lugar, pode ler-se: Ursula e Justin – um só.
Na actualidade, crê-se que a paixão se relaciona com uma substância química que circula em
doses nem sempre adequadas no cérebro – a feniletlamina (PEA).
Diversos estudos73 têm comprovado que se observa uma sensação de euforia no enamora-
mento, fruto da acção da dopamina que se associa com a PEA, transbordando no sistema límbico74
do cérebro, para além da sua acção no córtex cerebral.
Já no impulso sexual, opera no hipotálamo a testosterona, hormona presente em ambos os
sexos, e os estrogéneos, hormonas sexuais femininas.
Quando se estabelecem laços fortes entre pais e filhos, mas também entre pessoas apaixona-
das, esses vínculos têm vindo a ser associados ao efeito da oxitocina, outra hormona produzida no
hipotálamo. Pensa-se que a oxitocina chega a inundar o cérebro durante o orgasmo ou durante os
momentos finais do trabalho de parto75.
Na medida em que a oxitocina deriva da evolução de uma hormona, chamada vasopresina,
capaz de ajudar a fixar memórias de eventos recentes em função da aprendizagem, também é
possível que a oxitocina seja responsável pela capacidade de cimentar memórias inconscientes76.
Igualmente, quando conhecemos uma pessoa que nos impressiona, sabe-se que o cérebro liberta
oxitocina e, atendendo a que as endorfinas se ligam à oxitocina em particular durante os momentos
de separação, verifica-se uma típica agitação (produto de acção de endorfinas) antes da elevação
(interrompida) dos níveis de oxitocina, comum no amor sexual.
A «síndrome de Klüver-Bucy»77 é uma enfermidade violenta que leva a pessoa a simular uma
relação sexual com um objecto, por exemplo, ao meter qualquer coisa na boca. Já foi preso um
homem por pretender manter uma relação sexual com o próprio chão.
Na medida em que o lobo temporal (junto ao lobo frontal e por baixo da amígdala cerebral) se
liga à função sexual, a sua lesão leva ao tal comportamento inoportuno, ao não enviar sinais inibi-
dores ao núcleo ventromedial do hipotálamo.
Na síndrome descrita por Klüver e Bucy, as funções dos objectos não se distinguem.
«Um ser do sexo masculino estava ligado a um dispositivo semelhante a uma cadeira, com a cabeça imobilizada
com um método indolor. Nessa posição, era possível inserir-lhe um micro-eléctrodo fino no hipotálamo.
Um ser do sexo feminino estava atado a outra máquina semelhante, colocada a cerca de dois metros de distância.
O primeiro dispunha de um botão por meio do qual podia aceder à cadeira do segundo, próxima dele. Nessa
posição, podiam ter relações sexuais sem que o ser do sexo masculino tivesse que mover a cabeça. Portanto, era
possível registar a actividade cerebral a partir do momento em que o ser do sexo masculino via o ser do sexo feminino
até ao fim do acto sexual.
94 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
No ser do sexo masculino, a mais alta actividade (50 impulsos por segundo) foi registada por um neurónio na
área pré-óptica média do hipotálamo quando ele pressionou o botão para o aproximar do ser do sexo feminino. O
número de descargas diminuiu durante a actividade sexual e depois da ejaculação cessou quase completamente»
(Oomura, Aou, Koyama & Yoshimatsu, 1988).
Essa experiência foi realizada com macacos na Universidade de Kyushu/Quiuxo – Japão Me-
ridional.
Por esse e outros meios, sabe-se hoje que existem diferenças estruturais nos cérebros mascu-
lino e feminino, tanto no hipotálamo como no corpo caloso, tendo a mulher o corpo caloso (área de
transferência de informação entre hemisférios cerebrais) e a comissura cerebral anterior (por baixo
do corpo caloso, liga estruturas limbicas inconscientes dos dois hemisférios cerebrais) maiores do
que o homem, o que pode estar na base da consciência das mulheres sobre as suas emoções e as
percepções das emoções alheias79. Acresce o facto do hemisfério direito estar ligado a competências
que requerem maior emocionalidade80 e daí serem as mulheres a utilizá-lo com maior frequência
do que os homens na sua vida profissional. Em tarefas complexas elas usam os dois hemisférios,
enquanto eles utilizam o hemisfério mais adequado à função desejada.
Conhecem-se poucos estudos da função sexual em níveis avançados. Sempre foi mais fácil
correlacionar sensações narradas com condutas, do que realizar experiências sobre a sexualidade
humana81. Na exposição que se segue, a orientação seguida foi a análise de informação proporcio-
nada por Rita Carter82.
A partir do conhecimento clássico, sabe-se que o impulso sexual tem o seu centro no hipotálamo
(como foi observado na síndrome de Klüver-Bucy) mas, tal como acontece com outros fenómenos
cerebrais, esse impulso é irradiado para áreas límbicas e para o córtex cerebral. Ainda como outros
impulsos, divide-se o impulso sexual em componentes que se localizam no cérebro. Inclusive, os
neurotransmissores são relacionados com as hormonas cerebrais com implicações em comporta-
mentos sexuais e em sensações corporais.
Assim sendo, existe um circuito de recompensa de impulsos83: ao impulso sexual (gerado por
neurotransmissores excitatórios) segue-se a recompensa orgásmica (com a acção de um neuro-
transmissor, a dopamina) e desenrola-se o relaxamento (com a participação da hormona oxitocina).
95 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Foi em 1991 que a revista Science87 relatou o facto do cérebro de homens homossexuais ser
diferente do cérebro de homens heterossexuais. Esses estudos de investigação realizaram-se em
pacientes falecidos em consequência de terem contraído a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida.
Verificou-se nesses casos que os indivíduos tinham um núcleo do hipotálamo menor ligado ao com-
portamento sexual, sendo essa zona cerebral responsável pelo comportamento sexual tipicamente
masculino, como já ficou supracitado.
O corpo caloso também é maior em certos homossexuais.
Foi referido no capítulo II que em 1994 Dean Hamer, outro professor universitário, descobrira
um gene determinado transmitido por linha materna que influenciava a orientação sexual dos filhos
do sexo masculino. Disse-se que a hormona oxitocina desencadeia o amor sexual e o amor filial,
estando o funcionamento relacionado com as endorfinas. Foi retomada a importância da oxitocina
no capítulo actual.
O amor é hoje melhor conhecido do que no passado, o que não impede que ideais e crenças
tenham sempre baralhado as pessoas apaixonadas. Em alternativa, serão adiante narrados factos
e ilusões que determinaram orientações sexuais marcadas pela abstinência sexual.
O amor pode significar uma bênção, um bálsamo, mas também, como veremos, um veneno.
9. A bênção no amor
No início da nossa era, o amor consumava-se pela bênção do casamento, após ter sido pre-
viamente combinado.
Na Bíblia, conta-se o caso de Tamires que pretendeu desposar a jovem Tecla. Apesar de rico,
Tamires, desafortunadamente não casou com ela uma vez que esta optou pela adesão à conversão
à nova religião, recusando o matrimónio. Dessa desgraça acusou o homem que arrastara a noiva
para o celibato: Paulo de Tarso (o Apóstolo Paulo), morto no ano de 67. Tamires usou os seguintes
termos para o acusar e agredir88: «Este homem iniciou uma nova doutrina, extravagante e não esta-
bilizadora da espécie humana. Ele denegriu o casamento; sim, o casamento que pode considerar-se
o princípio, a raiz e a origem da nossa natureza.».
O amor pode significar, igualmente, uma ascensão alquímica89 como veremos em seguida.
Na Idade Média ocidental, o amor cortês opôs-se ao amor sexual, explicitado pela alquimia
medieval. Todavia, muito antes dessa época expandir dois modos de amar (amor cortês e amor
sexual), a alquimia, essa ponte do saber esotérico (para iniciados) formulada no Egipto Antigo,
sustentou amores nos Gregos, Árabes, Chineses e Indianos, povos onde surgiu e se desenvolveu.
Entretanto, um pregador da época, Robert d’Abrissel, atrairia a atenção popular ao assumir que as
senhoras da corte poderiam morrer no Inferno caso fossem (como o rei) adúlteras.
Talvez para o combater, o rei Guilherme introduziu na Europa poemas de amor, segundo o
modelo árabe do século VI, exacerbando o amor cortês e inspirando a nova poesia91 com a inaces-
sibilidade da mulher amada. O rei poderia assim camuflar intenções sexuais com um amor casto
que se tornaria símbolo de «pureza». Com a iniciativa do rei, o amor passou a constituir um mistério
divino, ao invés de um pecado.
Era o tempo dos sufis (iniciados na tradição mística islâmica) e um deles, Ahmad al-Ghazali,
colocara a possibilidade de se amar a beleza de Deus, colocando o amor pela mulher associado a
Deus.
Mais tarde, poetas árabes como Djalal al-Din Rumi idealizaram a mulher activa («...que vem
como um ladrão à noite») e Farid al-Din Attar achou mesmo que o seu «eu» iria eclipsar-se nela... A
sua identidade dissipava-se pela acção sedutora feminina. Terão sido os inúmeros poemas árabes92
a fazer com que o modelo de poesia ocidental se expandisse?
Foi assim que se desenvolveram os poemas de trovadores europeus que eram cantados às
suas damas sem intuito sexual.
Um moralista, Macabru93, afiançaria até que uma senhora para ser digna, na verdadeira acep-
ção da palavra, devia ser nobre, bonita e virtuosa. Nasciam, a partir de então, trovadores no Norte
de França, Inglaterra ou Alemanha, defensores de que a mulher «merece» honra cavalheiresca.
Pela alquimia, uma pseudo-ciência96, observa-se que o eu espiritual seria o produto do ouro
transformado, representando um novo alento ao simbolismo sexual que o amor cortês anulara. O
amor divino era reavivado entre nobres e cortesãos.
Desde o século XII, o «grande trabalho» para o alquimista correctamente motivado era trazer
«iluminação». Essa prática foi condenada pela religião católica medieval, considerando-a um desvio
do costume e ritual estabelecido. Todavia, as crenças alquímicas perpetuaram-se ao longo da Idade
Moderna. Tal como ocorrera nas sociedades clássicas ou distantes (Egipto, Grécia, China, América
do Sul…), também os reis desta época aliavam o poder espiritual ao poder terreno97.
Na mesma obra existe outra xilogravura com conotação sexual, em que um rei e uma rainha
estão nus e sentados na fonte do amor.
O amor viático98 consuma outra visão paradigmática do encontro amoroso, retomado no século
XIX por Richard Wagner (1813-1883).
Este terá dedicado em 1865 a ópera mágica Tristão e Isolda à sua amada, Mathilde, mulher do
seu protector suíço Otto Wesendonck, após o seu endividamento.
Wagner escreveu o libreto em alemão a partir de uma lenda celta99 onde se contava que um
par de jovens teria bebido o elixir do amor pensando tratar-se de uma poção mortal. Neste caso100,
o amor constituiu uma provisão para a morte.
Pouco sabemos da época em que se situa a estória. Os Celtas povoaram o País de Gales, a
Irlanda e a Gália, ainda que não deixassem textos escritos anteriores a tornarem-se cristãos101. Na
tradição celta mais antiga, Tristão e Isolda mantiveram uma relação adúltera102, tendo, posteriormente,
a tradição romanesca dado à lenda um carácter de amor imaculado e isento.
A lenda medieval celta de Tristão103 reconta-se a partir da edição clássica «Tristão e Isol-
da» :104
O tio de Tristão («tristeza»), o rei Marcos (em línguas celtas, Mark significa «cavalo»), dominou-o sempre. Viviam na
Cornualha – Inglaterra.
Um belo dia, aos pés do rei, caiu um cabelinho louro trazido por uma andorinha. Foi o bastante para ele desejar
casar com a menina que teria tão lindos cabelos. Para esse efeito, o sobrinho Tristão teve que se deslocar expressamente
à Irlanda. Não sabemos como foi detectada a origem do cabelo, mas talvez as andorinhas tivessem já a sua rota traçada
e descoberta no horizonte.
Primeiro, consta que Tristão teve que matar um dragão105 antes de pedir a mão de Isolda, a feliz eleita para prince-
sa. Na perspectiva wagneriana106, ele teve também de matar o noivo da moça, Morold, facto não desconhecido de Isolda,
denunciando-o apenas à sua aia fiel, Brangaine. Isolda disse a Brangaine ter passado a odiar Tristão pelo acto baixo e vil.
É mentira! Apaixonara-se por ele ao tratá-lo dos ferimentos graves.
Depois, Tristão e Isolda tiveram que encetar um longo percurso de barco («o barco do amor louco») até à Cornualha
e aí o amor aconteceu. Presume-se não ter sido intencional. O que não estaria previsto é que iriam beber, inadvertidamente,
um elixir de amor a pedido de Isolda:
- Brangaine traga-me uma bebida mortal.
Ao invés, a aia despejou o elixir do amor numa taça a pedido da mãe de Isolda.
Pior situação foi o facto de Isolda casar com Mark e amar Tristão.
Certo dia, encontrar-se-iam no jardim quando o rei fora caçar. Mas o poderoso soberano chegou a tempo de vê-los
loucamente enamorados.
Furioso, mandou o cortesão Melot que o acompanhava desferir um golpe mortal no pobre Tristão. O rei desejou matar
o sobrinho, sangue do seu sangue?
99 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Adultos e crianças gostam de conhecer as suas lendas e mitos, bem como as histórias de
outros povos, ainda que longínquos.
Como é possível ensinar História de Portugal sem fazer alusão às facetas do amor e aos seus
intervenientes? Muitas vezes esses episódios mudaram o rumo da História.
Existe uma estória sobejamente conhecida na História de Portugal contada por Júlio Machado
Vaz da seguinte forma: «...Tivemos um rei que se apaixonou e mataram-lhe a amada. Ele mandou
tirar corações pelas costas e trincou-os...».
Fez-se já menção a esses acontecimentos passados no século XIV, em que o amor enfurecido
e o amargo ódio marcaram o reinado de Afonso IV. Referimo-nos ao amor de Pedro (1320-1367) e
Inês de Castro. Ela tinha vindo para Lisboa, no séquito da prometida noiva do futuro rei.
Outra narração histórico-literária inglesa em que o amor e o ódio são recorrentes, é Otelo de
Shakespeare108. O ciúme e a vingança alimentam a trama passional e sangrenta.
Situa-se o retomar dessa ficção em Milão, em 1887, quando voltava à cena Otelo, o Mouro de
Veneza, na ópera de Giuseppe Verdi (1813-1901).
Nessa versão da tragédia109, apresentamos em forma de resenha o acontecimento fabuloso
que marcou os tempos.
No final do século XV, a cena decorreu em uma cidade à beira-mar da Ilha de Chipre.
Um navio veneziano transportava o exército chefiado por Otelo, um general mouro/sarraceno.
A sua tropa ganhou uma batalha contra os Turcos e todos pareceriam contentes. Reinariam em Chipre por mais tempo.
A excepção à boa disposição dos homens foi, nessa fase de glória, marcada por Iago, o Oficial de Marinha de Otelo.
Iago tinha ciúme do Tenente Cássio pela sua aceitação junto de Otelo, por isso embriagou-o e levou-o a lutar com Rodrigo,
um nobre veneziano.
100 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Na refrega, Montano, predecessor de Otelo no governo de Chipre, seria ferido sem intenção.
Como não podia deixar de ser, Otelo ficou furioso. De imediato destituiu Cássio do seu posto. Iago poderia ter ficado
contente, mas não foi assim que tudo se passou. Ainda desenvolveu outros actos por ciúme.
Nessa noite escura, Desdémona, filha de um senador, Bragâncio, encontrou-se ainda com o marido, Otelo. Pareciam
amar-se.
Era a ocasião mais propícia a Iago. Nessa etapa de paixão, Iago persuadiu Cássio a pedir a Desdémona que o aju-
dasse a reabilitar-se aos olhos de Otelo.
Entretanto, Otelo seria alertado por Cássio de que a mulher o traíra.
Na medida em que Desdémona defendeu Cássio junto do seu senhor, o marido ardente suspeitava já do pior. Otelo
era «pessimista».
Eis senão quando Iago tira o lenço a Desdémona para o colocar junto das coisas de Cássio. Aproveitava ainda, com
tempo à justa, para contar a Otelo um sonho de Cássio. Ele estaria apaixonado por Desdémona… Na conversa forjada,
Iago chegou ao ponto de dizer a Otelo que Cássio possuia o lenço dado por Otelo à sua esposa. Era mentira, mas Otelo
queria vingança.
Desdémona já se deitara, estafada. Ainda rezava quando Otelo foi ao seu quarto e, sem dó nem piedade, estrangulou-
a ali mesmo.
A esposa de Iago não foi conivente com as mentiras do marido. Ela chamava-se Emília. Sem esperar mais, Emília
foi encontrar-se com Otelo para lhe contar as maldades de Iago.
Iago fugiu e Otelo feriu-se de propósito com um punhal para morrer abraçado a Desdémona.
Otelo aborda sentimentos humanos. Caso contrário, sem se enunciarem naturais flutuações
afectivas, o que se ensina da natureza humana está truncado.
13. Três contos de fadas: O Capuchinho Vermelho, A Bela Adormecida e A Branca de Neve
Os contos para a infância, de forma subtil, preparam em particular as crianças para a vida adulta.
Existem adultos que se reconhecem nesses contos, entendidos como espaços de ilusão e de
criatividade. É o caso de Charles Dickens (1812-1870) que veio a afirmar o encantamento propiciado
por uma dessas narrações de Perrault: «A menina do capuchinho vermelho foi o meu primeiro amor.
Sentia que se pudesse ter-me casado com ela, teria conhecido a verdadeira felicidade».
A Bela Adormecida ou A Branca de Neve entendem-se como ficções sobre a menstruação110 e
sobre os perigos decorrentes do encontro com animais predadores, machos perigosos111.
Em A Branca de Neve, a história inicia-se com uma rainha que cose junto à janela de caixilho
em ébano/pau-ferro, enquanto neva lá fora... Ela pica-se, inadvertidamente. Chega a julgar que o
seu sangue é tão belo como a neve. Dessa ideia maluca, lembra-se de desejar ter uma menina que
seja «branca como a neve, vermelha como o sangue e negra como o ébano.»112.
E que pensar de O Capuchinho Vermelho? Apresenta-se, em seguida, uma gravura de 1869
de Os Contos de Perrault. O capuchinho está deitado com o lobo e conversam.
101 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
Era uma vez uma jovem que se deitara por baixo de uma árvore e que acordou aflita com o rugir de um leão muito
feroz. Levantando-se de um salto, viu à distância o monstruoso leão a correr para ela. Sem ter onde se esconder, fugiu do
102 O PRODÍGIO DAS HISTÓRIAS: VERDADE, CIÊNCIA E NUANCES DE AMAR
leão tão depressa quanto as suas pernas permitiam. O rugido do leão avisava-a de que tinha muito pouco tempo para se
salvar. Transida de medo, olhou em volta num último minuto e viu um penhasco. Mesmo antes de o reconhecer com nitidez,
estava a correr para ele para se sentir segura. Já muito perto do íngreme rochedo, notou ser este escorado por duas fortes
videiras que cresciam a partir da parte da frente. Nesse preciso momento o leão estaria prestes a agarrá-la com a pata,
quando ela subiu para o rochedo e arrebatou fortemente as videiras.
Logo que recuperou a respiração, a rapariga sentindo o coração bater, olhou o leão por baixo dela sossegado e
adormecido. Ao mesmo tempo, ouviu o rugido do leão. Confusa, certificou-se de que de facto o leão estava a dormir. Logo
depois apercebeu-se que estava outro leão a rugir.
Ela ficou pregada às vinhas enroladas e ouviu, só então, um som de roedor mesmo acima do seu ouvido direito.
Olhou para cima e viu um ratinho muito pequeno a roer a vinha.
Nesse instante, ela sentiu algo a roçar o seu ouvido esquerdo e, olhando novamente para cima, viu um rato preto,
minúsculo, a mordiscar a outra vinha.
Confiante no vigor das vinhas e pensando no tamanho pequeníssimo dos roedores que davam voltas estonteantes,
a menina anichou-se contra as vinhas e sentiu nelas um cheiro delicioso.
Mirando em volta, ela aspirava já a suculência de um delicioso morango encarnado, perto do tronco em que se encon-
trava. Fez-se prender mais fortemente, puxou-o para si e sentiu-se totalmente perdida nesse momento. Comia finalmente
o morango com prazer.
Poderiam ser tiradas ilações de viver até ao último momento agarrando um morango silvestre,
símbolo de prazer imediato, enquanto eventos nefastos nos impelem a perceber os nossos limites.
As aventuras e as desventuras das pessoas integram a via profusamente simbólica que se
liga ao irreal.
Notas