FOUCAULT, M. (2003) A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber.
Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.203-222
O pensamento de Foucault acerca da vida dos homens infames é uma antologia de
existências, ou seja, uma coletânea de vidas breves encontradas por acaso nos livros e documentos resumidas em versos ou parágrafos. A questão que gira em torno dessas vidas é que, esses personagens de vida miserável, com excessos, misturas de obstinação sombria e perfídia permanecem por debaixo de palavras ditadas por instituições de poder. Foucault, portanto, se interessa em estudar as razões, instituições ou práticas políticas que definem os enunciados e essas existências-relâmpagos a partir de: (1) personagens reais, (2) existências obscuras e desventuradas, (3) contadas em algumas páginas ou frases, sendo o mais breve possível, (4) constituíssem uma parte da história minúscula existências da sua desgraça, de sua raiva ou sua incerta loucura, (5) que a partir dessas histórias nos criassem um efeito misto de beleza e terror. A presente composição reflexiva do filósofo persiste em textos que manifestassem a maior relação possível com a realidade, mas que constituíssem um instrumento de vingança, ódio, batalha, desespero ou ordem, desse modo, os fragmentos do discurso são carregados de armadilhas, armas, gritos, gestos, atitudes, intrigas que carregam a realidade tornando “esses discursos realmente atravessaram vidas: existências foram efetivamente riscadas e perdidas nessas palavras” (FOUCAULT, 2003, p. 207). Entretanto, a emergência desses elementos assustadores e dignos de pena vêm de um feixe de luz no qual Foucault compreende como o poder. Para o filósofo francês o choque dessas vidas infames que passariam despercebidas como se nunca tivessem existido com o poder que quis aniquilá-las ou apaga-las a evidencia em sua existência, deixando rastros e estabelecendo um jogo entre poder versus existência. A vida infame – traço da lenda negra – composta por rupturas, apagamentos, esquecimentos, cancelamentos encontra um jogo de circunstância atravessado pela vigilância dos responsáveis ou das instituições destinadas a conter as desordens, ou seja, são os mecanismos políticos e efeitos de discurso. Para tanto, o cristianismo organizou uma tomada de poder sobre o dia-a-dia em torno da confissão obrigatória e regular para identificar faltas banais, fraquezas, criar um jogo dos pensamentos, das intenções e dos desejos. O ritual da confissão compõe uma das técnicas de coação que impôs para todos dizer tudo para apagar. Porém ao final do século XVII o mecanismo da confissão torna-se quadrado, devido ao agenciamento administrativo e não mais religioso. A questão acerca disto é pautado em um mecanismo de registro e não mais no perdão, ou seja, ocorre uma passagem do poder sobre o cotidiano para o discurso das irregularidades e desordens, mas enquadrando procedimentos antigos como a denúncia, a FOUCAULT, M. (2003) A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.203-222 queixa, o relatório, a espionagem, o interrogatório, portanto, tudo o que se diz passa a ser registrado por escrito, se acumula e constitui dossiês e arquivos. As petições, cartas régias com ordens de prisão ou ordens do rei, os internamentos diversos, os relatórios e as decisões da polícia passam a ser os primeiros instrumentos a serem utilizados. Entretanto, Foucault direciona em seu estudo a questão das cartas régias, visto que essa arbitrariedade exerce um certo serviço público pelo despotismo do monarca. O que concerne neste aspecto das cartas régias é que, as ordens do rei não ocorriam de improvisos ou como símbolo da sua cólera, muito pelo contrário, na maior parte do tempo, estas ordens eram solicitadas contra alguém por seus familiares, vizinhos, padres ou algum outro membro representativo por alguma história obscura relacionada aos esposos injuriados e espancados, fortuna dilapidada, conflitos de interesses, jovens indóceis, vigarices, bebedeiras, devassidão e outras pequenas desordens. A carta-régia, então, opera no mecanismo da queixa e da denúncia a partir da humildade e insistente súplica ao soberano, nesse interim, devia estabelecer se essas desordens mereciam o internamento e por quanto tempo, então, a tarefa da polícia era recolher testemunhos, fazer espionagens e escutar todo murmúrio duvidoso para criar um sistema de prisão-internamento-punição, sendo definida pelo filósofo como lettre de cachet, esse sistema assegura a distribuição de um jogo complexo de demanda e respostas implicado a soberania política de súdito a súdito fazendo valer de técnicas tradicionais da autoridade e da obediência. Essas técnicas, por sua vez, jogadas corretamente, poderão se tornar um outro monarca terrível e sem lei: homo homini rex. De forma concisa, os dispositivos de petições, lettres de cachet com ordens de prisão, de internação da polícia fomenta diversos discursos que atravessa o cotidiano como disputas da vizinhança, briga dos pais e filhos, os desentendimentos dos casais, os excessos do vinho e do sexo, as disputas públicas e muitas paixões secretas. Essas pequenas desordens e variações individuais de conduta, vergonhas e segredos são oferecidos pelo discurso para as tomadas de poder. Todas essas coisas compõem um detalhe sem importância da vida comum, mas podem e devem ser escritas pois foram atravessas pelos mecanismos de um poder político.