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FOTOGRAFIAS QUE

CONTAM HISTÓRIAS
Saberes e Fazeres da Agricultura Familiar
FOTOGRAFIAS QUE CONTAM HISTÓRIAS: SABERES E FAZERES DA AGRICULTURA FAMILIAR
1A EDIÇÃO - RIO DE JANEIRO - 2022
© 2022 - INSTITUTO DE IMAGEM E CIDADANIA RIO DE JANEIRO/ ECOMUSEU RURAL

Botelho, Marjorie de Almeida e Paolino, Claudio Marcio (organizadores) - Fotografias


que contam histórias: Saberes e Fazeres da Agricultura Familiar - Bom Jardim – RJ, 2022
1. Agricultura Familiar 2. Agroecologia 3. Patrimônio Cultural - Proteção 4. Patrimônio
Cultural Rural - Região Serrana 5. Fundação Nacional de Artes - Funarte
FOTOGRAFIAS QUE
CONTAM HISTÓRIAS
Saberes e Fazeres da Agricultura Familiar

Realização

Apoio
FICHA TÉCNICA

Organização
Marjorie Botelho e Claudio Paolino

Fotografia
Claudio Paolino

Pesquisadora
Marjorie Botelho

Fotos do Ecomuseu Rural


Thiago Nozzi

Projeto Gráfico
Marjorie Botelho

Famílias entrevistadas durante a pesquisa


Maria Oneida e Jorge Castro
Ludmila Zaiden e Diogo Busnardo
Nina Celli e Guilherme Erthal
Manuella Saldanha e Tomé Lemos
Patricia Guedes e Paulo Ricardo Rafael
Marjorie Botelho e Claudio Paolino

Transcrição das Entrevistas


Marina Murta e Ronalt da Silva Ribeiro

Revisão
Nívea Segreto

Versão Página na Internet


Julia Malafaia

https://ecomuseurural.wixsite.com/fotografias-que-cont

Instituto de Imagem e Cidadania Rio de Janeiro/Ecomuseu Rural


Sítio Córrego de Santo Antônio, s/n - Distrito de
Barra Alegre - Bom Jardim – Rio de Janeiro
Cep: 28.660-000 / Cel.: (22) 99929-1322
e-mail: ecomuseurural@gmail.com
facebook e instagram: Ecomuseu Rural
FOTOGRAFIAS QUE
CONTAM HISTÓRIAS
Saberes e Fazeres da Agricultura Familiar

DEDICATÓRIA

Dedicamos o livro Fotografias Que Contam Histórias: Saberes e


Fazeres da Agricultura Familiar às milhares de famílias
presentes no nosso Brasil profundo que dedicam suas vidas
semeando, cuidando e produzindo alimentos para garantir a
soberania alimentar.
FOTOGRAFIAS QUE
CONTAM HISTÓRIAS
Saberes e Fazeres da Agricultura Familiar

AGRADECIMENTOS

Agradecemos às famílias que compartilharam suas histórias e que nos


permitiram acompanhar e registrar o cotidiano em suas propriedades e aos
profissionais que estiveram envolvidos nesta aventura de contar as histórias
através de fotografias.
INDÍCE
Dedicatória 07

Agradecimentos 09

Fotografias que Contam Histórias - Marjorie Botelho 12

Um Rio de Janeiro de Muitos Rurais e Ruralidades - Emília Jomalinis 15

Claudio Paolino -Fotografando o Cotidiano das Comunidades Rurais 25

Gerações que Plantam em Barra Alegre 36


Maria Oneida e Jorge Castro - Boa Vista - Barra Alegre

Açaí Jussara Construindo Autonomia 48


Ludmila Zaiden e Diogo Busnardo - Vargem Alta - Nova Friburgo

Agroecologia na Fazenda Monte Cristo 70


Nina Celli e Guilherme Erthal - Monte Café - Trajano de Moraes

Agricultores de Capim 93
Manuella Saldanha e Tomé Lemos - Trajano de Moraes

Cuidadores de Animais e Economia Circular 116


Patrícia Guedes e Paulo Ricardo Rafael - Lumiar - Nova Friburgo

Cultura Como Resistência no Campo 138


Marjorie Botelho e Claudio Paolino - Barra Alegre - Bom Jardim
FOTOGRAFIAS QUE
CONTAM HISTÓRIAS
Saberes e Fazeres da Agricultura Familiar

O livro “Saberes e Fazeres da Agricultura Familiar” valoriza o importante papel da


agricultura familiar na garantia do direito à alimentação através de fotografias
que contam a história de famílias produtoras de alimentos e que valorizam a
cultura das comunidades rurais, envolvendo os municípios de Bom Jardim,
Trajano de Moraes e Nova Friburgo, localizados na região serrana, onde
concentra a maior parte da produção agrícola do Estado do Rio de Janeiro e que
possui diversas experiências de arranjos locais voltados para a preservação
ambiental e para um turismo sustentável.

Demarca-se, assim, a importância da produção agrícola destas comunidades


rurais que, a partir de meados do século XX, escoavam seus alimentos através de
tropas de mulas e onde muitos descendentes, imigrantes europeus, mantêm
vivas, até hoje, práticas de cultivo que foram repassadas através da oralidade, de
geração para geração, como a produção de broa no forno à lenha, do fubá em
moinho de d'água, de pomadas e tinturas com ervas medicinais, de produção de
bananada sem açúcar, entre outros.
Desta forma, as fotografias contam histórias sobre a importância de quem
produz o alimento, de quem alimenta o Brasil no sentido nutricional, ao mesmo
tempo que demarca a dimensão cultural dos modos de vida que se integram à
natureza e a importância de se buscar mais autonomia para viver no campo. De
acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura,
cerca de 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros e das brasileiras
vêm da agricultura familiar, que mantém viva a soberania alimentar do povo,
produzindo comida sem veneno, com sabor e gosto, com diversidade de
proteínas, valor nutricional e preservando os saberes e fazeres. Apesar das
histórias familiares serem distintas, podemos encontrar pontos em comum,
como a produção agroecológica e a busca de um bem viver, considerando
fundamentais a integração e a preservação ambiental.

Esperamos que cada história contribua para conhecermos um pouco mais da


agricultura familiar presente nos municípios de Bom Jardim, Trajano de Moraes e
de Nova Friburgo, onde se mesclam famílias de imigrantes, afro-brasileiros e os
novos rurais que vieram em busca de uma vida mais tranquila no interior do
estado do Rio de Janeiro, compartilhando estratégias encontradas pelas famílias
agrícolas da região serrana.
FOTOGRAFANDO O COTIDIANO
DAS COMUNIDADES RURAIS
Claudio Paolino - artista visual, fotógrafo e arte educador

Claudio Paolino, artista visual, fotógrafo e arte-educador, vem desenvolvendo atividades ao


longo de sua trajetória profissional envolvendo oficinas de fotografia, exposições, livros e
documentários sobre os movimentos sociais e os saberes e fazeres presentes na agricultura
familiar e nos territórios rurais.

Trabalhou no Centro Cultural da UERJ, no Centro de Memória do Centro Cultural do ISERJ e


para vários veículos alternativos e do movimento social. Realizou os documentários
“Caverna do Tempo” para o Museu Nacional e Prefeitura de Petrópolis; “Formiga no Meio
Ambiente” para o Ibase; entre outros. Realizou as exposições “Paisagem Cidade: Memória e
Patrimônio” no SESC Tijuca; “Pós-Chacina da Candelária” do CBDDC; “Marcha dos Sem Terra”
em parceria com a ASDUER; “Caminhada dos 500 anos/ Programa dos Povos Indígenas” em
parceria com a UERJ; “Saberes e Fazeres Rurais”, “Agricultura Familiar”, entre outros, em
parceria com o Instituto de Imagem e Cidadania. Teve suas fotos publicadas nas edições de
livros como Candelária/UFRJ, Jornal AfroReggae, Revista da UNE, CUT, entre outras.
FOTOGRAFANDO O COTIDIANO
DAS COMUNIDADES RURAIS
Claudio Paolino - artista visual, fotógrafo e arte educador

Ao longo destes últimos dez anos, tem estado à frente de inúmeros projetos voltados para a
valorização da agricultura familiar, desenvolvendo oficinas de educação patrimonial através
das artes visuais; produzindo livros sobre os saberes e fazeres do campo, além de
documentários abordando a diversidade cultural presente nas cantorias, na produção de
broa no forno à lenha, do fubá na moenda do moinho, entre outros. Produziu
documentários, tais como: Folia da Bandeira do Divino Espírito Santo, Rezas e Ervas, Toninho
– Mestre de Sabedoria Popular, Dona Jacira, Terrã Roma, entre outros. E livros como:
Agricultores do Estado do Rio de Janeiro, Patrimônio Cultural de Barra Alegre, Receitas de
Inhame, entre outros.

As oficinas que realiza de fotografia permitem aos participantes conhecerem o processo de


captura de imagens, através da construção de câmaras escuras e máquinas fotográficas
artesanais, estimulando o resgate da memória através do ato de desenhar com luz, tendo
criado uma metodologia de ensino que batizou como “alfabetizando o olhar”, e que foi
reconhecida pela UNESCO.

Suas exposições retratam o cotidiano dos movimentos sociais, possibilitando conhecer a


realidade dos povos do campo, da floresta e das águas e seus trabalhos circulam por
universidade e escolas, fomentando um olhar voltado para os movimentos sociais, para
agricultura familiar e para a cultura rural.
UM RIO DE JANEIRO DE MUITOS
RURAIS E RURALIDADES

O estado do Rio de Janeiro é conhecido por ser o mais urbanizado do país, com 96% de
sua população em ambiente urbano, de acordo com o Censo 2010, do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). Isso significa que se trata da Unidade da Federação com
maior percentual de sua população residindo em área urbana. É também o estado com
maioria significativa da sua população residindo na região metropolitana: 74,0% do total
da população residente no território fluminense. Decerto, muitos fatores nos explicam
esta condição do estado, tais como a cidade do Rio de Janeiro ter cumprido função de
capital do país entre 1763 e 1960, a vinda da família real portuguesa ainda durante o
período colonial, que chegou a dobrar número de moradores na cidade e, por fim, o fato
da atual capital e o interior do estado terem tido ao longo da história diversos estatutos
jurídicos, nem sempre compondo a mesma unidade político-administrativa.

Além destes elementos que fazem parte da geografia histórica do nosso estado, há
outros fatores que nos ajudam a compreender as dinâmicas rurais fluminense: a intensa
urbanização acompanhada da especulação imobiliária, a manutenção da concentração
fundiária e a inexistência e/ou ineficácia de significativas políticas agrárias e alimentares
consolidam este cenário de esvaziamento pelo qual passou o interior do estado e que
levou a uma considerável dependência do interior em relação à sua capital.

Num estado cujo desenvolvimento mira majoritariamente os setores de petróleo e gás e


o de serviços, os índices da atividade agrícola - produção, área ocupada e empregos -
têm registrado queda sucessivamente. Os dados relativos à área colhida são categóricos
em apresentar este quadro, visto que se registra redução em quase todas as
lavouras
entre 1985 e 2006. De acordo com a Pesquisa Agrícola Municipal, realizada pelo IBGE,
componentes básicos da alimentação brasileira, como arroz e o feijão, também
apresentam queda na produção, colocando inclusive a segunda maior região
metropolitana do Brasil numa frágil condição em termos de soberania e segurança
alimentar e nutricional. Dados recentes também indicam, lamentavelmente, a manutenção
da concentração fundiária, fator que contribui para este quadro de esvaziamento e para o
acirramento dos conflitos e da violência no campo.

A alta taxa de urbanização traz desafios para a permanência da agricultura, pois em


diversos casos vem associada à lógica da especulação imobiliária. Por fim, o turismo
também se constitui como um elemento importante de análise que, por um lado, pode ser
interpretado como uma possibilidade de atividade complementar à renda de famílias
rurais, à luz da ideia da pluriatividade da agricultura, mas ao mesmo tempo pode
constituir-se como uma ameaça para populações tradicionais do campo por motivos
diversos, dentre os quais a valorização de suas terras e a mercantilização desse espaço
estritamente para fins turísticos. Em síntese, a agricultura fluminense aparece sufocada de
um lado pela sua pouca visibilidade social e política e, de outro, pelo enorme peso que os
demais setores e o processo de urbanização possuem.

Este desafio, que apresenta contornos próprios e bastante críticos para a realidade
fluminense, não é “privilégio” nosso. Frente à tendência de crescimento das cidades e do
processo de urbanização no mundo, ampla literatura acadêmica tem se esforçado para
analisar a forma como estas transformações reverberam no espaço rural e no cotidiano de
quem produz alimentos no campo. Porém, vale destacar que parte dessa literatura mostra
as formas como o rural permanece e se reinventa, fazendo cair por terra o prognóstico
anunciado desde a revolução urbano-industrial sobre seu fim.
Pelo contrário, o que se apreende muitas vezes são manifestações de outras formas de
rural emergindo, que nos provocam a suplantar uma ideia de contradição tácita e
antagônica entre rural e urbano. Inclusive, se historicamente a noção de rural fora implícita
ou explicitamente associada à ideia de atraso e à carência de serviços - visão esta que
compromete a construção e condução de políticas para estas áreas – são diversos os casos
nos quais espaços rurais têm atraído novos habitantes, frente aos dilemas da urbanização.

Surge, então, para além da ideia de um rural, a existência de uma ruralidade, que pode ser
compreendida como uma forma de inserção do mundo rural no conjunto da sociedade, o
que significa compreender sua relação com a cidade, cada qual com sua função, numa
relação social de solidariedade. Ela diz respeito a uma forma de organização da vida social,
levando em conta, especialmente, o acesso aos recursos naturais e aos bens e serviços da
cidadania; a composição da sociedade rural em classes e categorias sociais e os valores
culturais que sedimentam e particularizam os seus modos de vida. Outro elemento chave
na construção desta categoria é compreender o espaço rural para além da atividade
agrícola, englobando outras sociabilidades e dinâmicas produtivas. Entendo, assim, que a
ruralidade envolve múltiplas identidades em construção.

Voltando ao nosso estado, frente a tantos desafios: afinal, qual o lugar do rural e do campo
no espaço fluminense? Apesar de, do ponto da construção estratégica de políticas, este
estado historicamente abrir mão de construir uma estratégia de desenvolvimento rural
que coloque o direito à terra e ao território e a produção de alimentos num lugar de
centralidade, a agricultura fluminense existe e resiste. Esta é a tônica que diversos atores
sociais do rural fluminense e suas distintas formas de fazer agricultura têm anunciado e
aos quais faço aqui coro.
Discorrer sobre a agricultura e o rural fluminense é um exercício de equilíbrio entre uma
necessária crítica à fragilidade da ação pública estatal, no tocante às agendas da agricultura
e da alimentação, ao mesmo tempo em que é imprescindível que se visibilize e se valorize
as diversas práticas agrícolas e as formas sociais presentes no rural fluminense, composta
por uma diversidade de sujeitos: quilombolas, indígenas, caiçaras, pescadores/as,
camponeses/as, agricultores/as produtores rurais, dentre outros/as.

Especialmente na região serrana do estado, a agricultura ainda apresenta um papel


importante. Ainda nos anos 1980, a agricultura era central como atividade econômica da
região. Ao longo do século passado e ainda hoje, toda a região serrana do estado se
consolidou como uma importante região produtora de alimentos, em especial para região
metropolitana. É notável o fluxo de caminhões que sobem e descem as serras, levando
alimentos in natura para a população carioca e da baixada fluminense. Nova Friburgo, por
exemplo, tem como perfil agrícola dominante as pequenas lavouras de trabalho familiar.

Trata-se de uma região de baixa mecanização em termos comparativos às grandes regiões


do agronegócio brasileiro, produtoras de commodities agrícolas. Nova Friburgo é um dos
maiores produtores de olerícolas, o maior produtor de couve-flor e o segundo maior
produtor de flor de corte do país, constituindo-se também como um dos berços da
agricultura orgânica e de experiências de agroecologia no estado do Rio. Segundo dados da
Cooperativa de Trabalho, Consultoria, Projetos e Serviços em Sustentabilidade (CEDRO),
que executa chamadas públicas de Assistência Técnica e Extensão Rural na região, um
terço dos trabalhadores friburguenses está no campo, o que equivale a cerca de 20 mil
pessoas.
Ao mesmo tempo em que a produção de alimentos permanece como importante atividade
nesta região, ela também tem se tornado palco de crescentes iniciativas de turismo rural,
como também se consolidou como espaço de destino de uma população constrangida
pelos problemas das grandes cidades, expressando assim significativo fluxo de turismo,
local de segunda e até mesmo primeira moradia. Este livro nos presenteia com histórias de
vida de pessoas cujas trajetórias em sua maioria não se originam na região serrana do Rio
e, muitas vezes, são atravessadas por experiências que transitam entre o rural e o urbano,
as ruralidades e as urbanidades. Mudar para o campo e fazer dali sua morada, na
contramão de um senso comum ainda existente que relaciona o rural ao atraso e ao
tradicional em oposição ao moderno, em que pese a fragilidade desse binarismo, sobretudo
como categoria explicativa da realidade brasileira, onde, como destacam pensadores como
Chico de Oliveira e Milton Santos, não se pode pensar moderno e tradicional como
opositores e, sim, como dois elementos que se emaranham entre si no cotidiano.

Enquanto parte significativa da agricultura tradicional da região foi alvo do suposto


“moderno” produtivismo tecnológico, à base de uso intensivo de agrotóxicos que têm
colocado especialmente a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras do campo em
situação de risco, destaco que estas histórias de vida são permeadas por uma relação
com o ambiente e a natureza e por práticas agrícolas percebidas como mais ecológicas
quando comparados ao modelo produtivo intensivo em agrotóxicos e pouco diverso em
sua produção. No cotidiano desses sujeitos sociais, cujas narrativas e práticas contribuem
na construção do rural agrícola, como também de um rural não agrícola, percebe-se a
construção de práticas agroecológicas – que envolvam a valorização do saber tradicional
em diálogo - e o aporte a partir de suas percepções sobre problemas ambientais e de
saúde. Inclusive, estas formas sustentáveis de produção cumpriram papel importante na
construção de experiências de agricultura orgânica na região, incluindo a criação da
Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro, a Abio, fundada no
município de Nova Friburgo, entre 1984 e 1985.

Decerto, dessas experiências individuais, há uma questão sociológica a ser explorada.


Quando analisado em conjunto, tem-se que esse fenômeno deixa de ser restrito à esfera
individual. Tais formas de "ida ao campo" poderiam apontar para formas organizativas
novas com características e limites a serem descobertos e definidos. Ainda que a oposição
entre urbano e rural esteja embasada em uma simplificação, isso não quer dizer que não
exista. De fato, há uma diferenciação notável em termos de morfologia social. Mais do que
separar urbano e rural de maneira dicotômica, porém, nos cabe apreender para refletir e
(re) pensar o rural (como também o urbano) em constante transformação, percebendo o
rural com espaço de potência e novas sociabilidades que abrem um novo fértil caminho
para ressignificações desses espaços e da relação existente ali entre sociedade e ambiente.
Escrever sobre as histórias de vida que compõem o tecido social do rural fluminense é uma
ferramenta importante na defesa desses territórios e da agricultura que ali existe.

EMILIA JOMALINIS
Mulher, feminista e militante pela agroecologia no estado do Rio de Janeiro. É mestra em Geografia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro e Doutora em Ciência Sociais pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em
Desenvolvimento Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Para mais textos sobre estas discussões:

ALENTEJANO, Paulo Roberto Raposo. Reforma agrária, território e desenvolvimento no Rio


de Janeiro. Tese de Doutorado, CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro: 2003.

ALENTEJANO, Paulo Roberto Raposo. Um breve balanço da agricultura e da política agrária


no estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas, 2012.

BITOUN, Jan; MIRANDA, Lívia, SOARES, Fernando, LYRA, Mª Rejane; CAVALCANTI, Jeremias-
Tipologia Regionalizada dos Espaços Rurais brasileiros. In Carlos Miranda (org.) Tipologia
Regionalizada dos Espaços Rurais brasileiros: Implicações no Marco Político e nas Políticas
Públicas. Brasília, IICA, 2017.

CARNEIRO, Maria José. Ruralidade: novas identidades em construção. Estudos Sociedade e


Agricultura, no.11, out. 1998.

CARNEIRO, M.J. Rural como categoria de pensamento. Ruris. 02 (01), março 2008

FONSECA, M.F.A.C. A construção social do mercado de alimentos orgânicos: Estratégias dos


diferentes autores da rede de produção e comercialização de frutas, legumes e verduras
(FLV) in natura no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRRJ (CPDA), 2000. Dissertação
de Mestrado.
MARAFON, Glaucio José (et al.). Geografia do Estado do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Gramma, 2011.

RIBEIRO, Miguel A. Tipologia das atividades turísticas: o exemplo do estado do Rio de Janeiro.
IN: Geo UERJ Revista do Departamento de Geografia. UERJ, RJ, n. 13, p.27-38, 2003.

RUA, João. Urbanização em áreas rurais no estado do Rio de Janeiro. In: MARAFON, G. J. &
RIBEIRO, M. F (orgs.). Estudos de Geografia Fluminense. Rio de Janeiro: UERJ, 2002. p.43-70.

STRAUCH, Guilherme de F. E.; PALM, Juliano Luis. Uma leitura da trajetória histórica de
construção da política estadual de agroecologia e produção orgânica (Peapo) no estado do
Rio de Janeiro. In.: SABOURIN, Eric et. Al. Construção de Políticas Estaduais de Agroecologia e
Produção Orgânica no Brasil: avanços, obstáculos e efeitos das dinâmicas subnacionais.
Curitiba: CRV, 2019
VEIGA, José Eli da. Nascimento de outra ruralidade. Estud. av. [online], vol.20, n.57, 2006

WANDERLEY, M.N.B. e FAVARETO, A. A Singularidade do rural brasileiro: implicações para as


tipologias territoriais e a elaboração de políticas públicas. IN Miranda, C. e Silva, H. (orgs).
Concepções da ruralidade contemporânea: as singularidades brasileiras. Brasília, IICA, 2013.
GERAÇÕES QUE PLANTAM EM BARRA ALEGRE
Maria Oneida e Jorge Castro - Boa Vista - Bom Jardim

Maria Oneida Sandra de Castro nasceu no distrito de Barra Alegre e Jorge Castro no município de
Trajano, no vilarejo conhecido como Monte Café. Ambos trabalham na agricultura desde
pequenos, pois seus pais eram agricultores. Eles se conheceram no distrito de Barra Alegre e se
paqueravam indo para a missa, caminhando pelas estradas, mas mantendo sempre uma
distância de quase um metro, pois naquele tempo não podia nem dar as mãos. Também
trocavam cartas já que não havia telefone. Até que Jorge pediu aos pais para namorar com ela e,
depois de quatro anos, se casaram e vieram morar no sítio que estão até hoje.

Ao longo destes anos, principalmente no início, passaram muitas dificuldades, pois não havia
estradas para carro, e tinham que fazer tudo a pé. Não havia encanamento, a água vinha de
banqueta e não tinha energia elétrica. Eles recordam que a primeira televisão em preto e branco
que compraram precisava de uma bateria de 20 kg, tipo de caminhão. Para carregar, precisava
levar na casa dos pais da Oneida, a fim de botar no gerador, o que permitia assistir apenas
metade das novelas, pois a bateria não dava. Depois compraram a geladeira, que era a gás, um
botijão de gás por mês, e assim foi até chegar a luz, há uns 30 anos, o que possibilitou terem um
pouco mais de conforto.

Eles estão casados desde 1976 e têm um casal de filhos e três netos. Moram no sítio São Jorge e
vivem da agricultura, produzindo diferentes culturas, ou seja, alimentos diversos como repolho,
batata inglesa, banana, taioba, pimentão, laranja, entre outros. Também são conhecidos na
região por conta da Folia de Reis e das inúmeras cavalgadas que realizam em dias festivos em
homenagem aos santos padroeiros.
Atualmente tem sido cada vez mais difícil ter mão de obra para trabalhar no campo. Eles dizem
que, se não colocar a mão na massa, não terá comida para colocar no prato de toda gente. A lida
no sítio é diária, tem serviço todos os dias, de segunda-feira a segunda-feira. Se a roça não
planta, a cidade não janta, diz Jorge Castro, que compartilha que a labuta é dura e, muitas vezes,
as pessoas não sabem o trabalho que dá. No entanto, eles seguem resistindo, dia e noite,
cuidando da plantação, para poder fazer chegar na mesa das pessoas um alimento produzido
com suor e dedicação. Seu filho mais velho e a nora trabalham na agricultura também e, hoje,
são quem garante a renovação geracional no campo.

Além do trabalho na agricultura, eles têm mantido viva uma importante manifestação popular
do nosso país, a Folia de Reis, conhecida na comunidade como Bandeira do Divino Espírito
Santo. A folia nasceu em 1976 e, desde então, nunca mais parou. Apenas no período da
pandemia do Covid-19 interromperam as atividades para manter os protocolos de segurança
previstos. Atualmente a folia envolve 25 foliões e, no período de dezembro a janeiro, visitam
diversos municípios da região serrana, como Duas Barras, Macuco, Cantagalo, Bom Jardim, Nova
Friburgo, entre outros.

Além das saídas da folia pela comunidade com os foliões e da participação nos circuitos pelos
municípios da região, eles mantêm em casa um oratório, o Santuário do Reisado, onde guardam
a bandeira, os instrumentos e o presépio. E realizam encontros de Folias de Reis em São José do
Ribeirão, onde convidam folias de reis da região, que se apresentam no coreto do distrito.
As cavalgadas acontecem há mais de 20 anos. Entre as mais antigas, está a cavalgada de Nossa
Senhora Aparecida, que acontece há 15 anos, sempre dia 12 de outubro, sendo considerada a
maior cavalgada do distrito de Barra Alegre em Bom Jardim, pois envolve mais de 300 cavaleiros.
As cavalgadas movimentam um recurso importante para a região: gera renda para quem
trabalha com selaria, pois vende arreio, para quem vende ferradura, para amansadores de
cavalos, entre outros.

Também fazem o encontro de fusca, conhecida como baratinha antiga, para divulgar o valor do
fusca para quem mora em comunidades rurais. Eles estão sempre lutando para valorizar a
cultura rural, pois acreditam que é importante preservar os modos de vida presentes no campo,
onde conviveram a vida toda.

Na pandemia mantiveram a venda de seus produtos para o CEASA, pois tinha pouco comprador
direto por causa do perigo do Covid-19, mas consideram que não foi ruim, pois puderam se
dedicar mais ao plantio e aumentar sua produção. Mas não tem sido fácil manter a produção,
pois atualmente os insumos estão muito caros. E quando a produção empaca, acabam perdendo
muito dinheiro. Contudo, como o prazer de plantar é grande demais, eles nunca param.
AÇAÍ JUSSARA CONSTRUINDO AUTONOMIA
Ludmila Zaiden e Diogo Busnardo - Vargem Alta - Nova Friburgo

Ludmilla Cavalcanti Zaiden nasceu em 5 de junho de 1988 no Mato Grosso, na cidade do


Alto Araguaia, oriunda de família de imigrantes libaneses. Diogo Busnardo de Mattos
nasceu no dia 6 de julho de 1986, em São Paulo. Eles se conheceram em um Congresso
de Biologia, pois ambos fizeram faculdade nessa área, mas ficaram anos sem se ver.
Mantinham contato trocando mensagens nas primeiras redes sociais que existiam
(Orkut, Mirc), até que viajaram juntos e começaram a namorar a distância. Quando se
formaram, foram morar juntos e tiveram dois filhos: Cainã e Catarina, um mineiro e
outro fluminense.

Eles chegaram na região serrana em 2016 e alugaram uma casa durante sete meses na
Fazenda Monte Cristo, no município de Trajano de Morais. Quando perceberam que
haviam encontrado o lugar que gostariam de morar, resolveram comprar um sítio, em
Vargem Alta, no município de Nova Friburgo. Inicialmente não queriam comprar nesta
localidade, conhecida como a segunda maior produtora de flor de corte do país, por
conta do uso intensivo de agrotóxico utilizado na produção de flores. A vida, no entanto,
os levou para essa localidade para plantarem as sementes da agroecologia.

A cultura predominante da propriedade é o açaí-jussara, parente do açaí da Amazônia, e


é considerado uma espécie chave no processo de regeneração das florestas. Na
agroflorestal, combina muito bem com a banana (assim como no prato), além de ser um
alimento rico em minerais e antioxidantes.
Quando chegaram na propriedade, não havia nada plantado. Através de vários mutirões,
foram plantando a jussara, consorciada com diferentes culturas, entre elas o abacate, os
cítricos, a lichia e as espécies de roça como milho, feijão, inhame, aipim entre outras.
Atualmente são 3 mil m² de sistemas implantados e 300 pés de jussara na propriedade.
A expectativa é que, em 2028, estejam colhendo na propriedade 9 toneladas de açaí,
pois a produção aumenta em sistemas agroflorestais.

A história do açaí acompanha Diogo, desde quando morava em Viçosa, onde aprendeu
a subir na palmeira e processar o fruto em um projeto que instituiu a Rede Jussara.
Atualmente uma das formas de geração de renda vem da produção de açaí tipo A que,
apesar de levar água na extração, tem uma consistência pastosa que não se encontra
na região.

O processo de escoamento tem sido basicamente através do “boca a boca”, pois a


produção é pequena pela falta de mão de obra e dinheiro para investimentos maiores.
Diogo sabe que a região tem um grande potencial, pois tem muita jussara e várias
microrregiões que acabam por ter frutos em épocas diferentes. Sempre que há colheita
acionam a rede de consumidores que já compram diretamente com eles e os pedidos
começam a chegar. A meta é ser um pólo “jussareiro” na região serrana.

Na propriedade tem uma cozinha de base comunitária. Querem aproveitar o turismo de


Vargem Alta para servir aos finais de semana o açaí colhido e processado no sítio, além
de petiscos e chope artesanal, produtos de alta qualidade, diferenciados que só irão
encontrar ali. Também querem oferecer visitas aos sistemas agroflorestais do sítio.
Outra importante forma de gerar renda vem das atividades desenvolvidas pela Ludmilla
que trabalha com aromaterapia, focando na autonomia e na saúde integral, em especial
com mulheres. Ela chegou a ter sua própria marca de cosméticos, mas atualmente
integra a equipe da empresa de óleos essenciais Dõterra, realiza atendimentos e faz
protocolos que permitem semear o autocuidado com o auxílio dos óleos essenciais.

Eles vivem buscando a maior autonomia possível, pois a missão é serem responsáveis
pelas ações que empreendem, seja no autocuidado, na saúde, na alimentação ou na
educação. O sítio, intitulado um sítio-escola, foi rebatizado com o nome Terra-Sol e a
proposta é ser um laboratório vivo e uma escola de práticas e saberes do bem viver,
fazendo com que o fazer seja sensato e o aprendizado aconteça na lida com a terra, no
cuidado com a saúde, na alimentação saudável e na educação diferenciada, onde o
indivíduo é inteiro e traz seus saberes, trocando e aprendendo com os saberes do outro.
AGROECOLOGIA NA FAZENDA MONTE CRISTO
Nina Ramos e Guilherme Erthal - Monte Café - Trajano de Moraes

Nina Celli Ramos nasceu em 07 de agosto de 1986. Vem de uma família que migrou nos
idos dos anos 80 da cidade do Rio de Janeiro para o sul de Minas Gerais e pode conviver
com unidades de conservação e com famílias que cultivavam orgânicos desde pequena.
Com o retorno da família para a cidade, sentia necessidade de voltar para roça e para
Minas. Foi fazer graduação em Biologia na Federal de Viçosa, onde participou de
movimentos agroecológicos, trabalhou no CTA/ZM (Centro de Tecnologias Alternativas
da Zona da Mata) e concluiu mestrado em Ecologia, focando em Agrofloresta e
Agroecologia. Guilherme Stutz Erthal nasceu em 24 de outubro de 1986 e é descendente
de duas famílias tradicionais do município de Bom Jardim, Stutz e a Erthal. Ele morou na
Fazenda Monte Cristo quando tinha entre 3 e 4 anos de idade, mas viveu boa parte da
sua adolescência e juventude em Nova Friburgo. Depois foi estudar agronomia na
Universidade Federal de Viçosa onde participou do grupo Apeti e de projetos de
extensão e que possibilitaram intercâmbios com os agricultores e mutirões em
propriedades rurais, integrando conhecimento teórico com o prático.

Neste contexto universitário, dos movimentos de agrofloresta e agroecologia, entre


reuniões, mutirões, estudos e grupos de maracatu em que se conheceram, ficaram
amigos e começaram a namorar. Atualmente têm três filhos, o mais velho, Joaquim, e
duas meninas, Cecília e Rosa. Já formados, vieram morar na Fazenda Monte Cristo,
localizada em Monte Café, município de Trajano de Moraes. A propriedade era de seu
bisavô, João Alfredo Erthal, mais conhecido como Manico, importante produtor de café
da região e onde morava seu pai Nelson Eduardo Erthal e seu tio Adilson Erthal.
Para eles, regenerar a terra tem sido o objetivo de suas ações, pois a agricultura
praticada pelos imigrantes que chegaram por aqui no século XVIII empobreceu o solo
com a monocultura de café. Quando chegaram por aqui, tinha muito capim gigante,
pasto degradado, carrapato e entulho. Foi um desafio transformar a parte da
propriedade, onde estão localizados, num sítio referência em agrofloresta da região.
Como na natureza o processo de regeneração leva tempo, primeiro ajeitaram uma das
casas que estava desocupada, depois ajeitaram outra, reconstruíram o galpão, foram
fazendo mutirões de plantio, plantando árvores, colocando literalmente a mão na terra.

Eles não tinham recursos, mas tinham o principal - a terra -, e também o conhecimento
teórico aliado às vivências agroecológicas vividas junto aos agricultores mineiros. Além
da vontade de querer produzir, da disposição e motivação para regenerar a propriedade
da família, de querer agroflorestar o mundo. E foi assim que começaram as plantações,
os manejos e as reformas. Se tivesse leite, faziam queijo e iogurte. Com a máquina de
desidratar faziam bananas, plantavam broto de girassol, pois tinha um retorno mais
rápido.

Com o tempo, foram melhorando a infraestrutura: construíram uma unidade de


beneficiamento, reformaram o engenho para fazer melado. Desde o início faziam feiras,
pois precisavam escoar os alimentos; tornaram seus produtos orgânicos certificados;
iniciaram atividades educativas oferecendo cursos de sistemas agroflorestais, agricultura
orgânica, certificação, insumos, entre outros, além de vivências e mutirões.
Eles desenvolvem uma agricultura regenerativa, onde é fundamental a aproximação do
homem com a natureza e a agricultura integra o ecossistema. A proposta deles é
conciliar a sustentação do ser humano com a regeneração dos ecossistemas, pois
normalmente o ser humano conserva uma área e degrada outra. E essa experiência que
está em curso tem se mostrado exitosa. Não é à toa que, hoje, são referência para
muitas pessoas que estão fazendo a transição da cidade para o campo ou da agricultura
tradicional para agroecologia e agrofloresta. Atualmente oferecem consultoria e
assessoria para várias famílias que durante a pandemia do Covid-19 vieram morar na
região serrana, e essa oportunidade tem sido muito gratificante para eles, pois podem
testar outros ambientes e contexto, desenhando agroflorestas em ambientes diferentes
dos deles.

Por conta do aumento da demanda de cursos e vivências, acabaram sentido a


necessidade de receber as pessoas no sítio e começaram a realizar atividades voltadas
para o turismo pedagógico e também para o ecoturismo, sempre priorizando as
atividades que desenvolvem na propriedade: produção em agrofloresta. Para eles, o
agroturismo pode ser uma grande oportunidade de conscientizar para uma agricultura
sustentável e ecológica, pois a natureza é a maior professora destes ensinamentos. E
assim seguem reajustando o percurso sempre, pois a natureza é dinâmica e para que a
atividade seja realmente regenerativa, precisa de podas e de novas sementes. E assim, vão
se desenhando, levando em consideração o processo de sucessão da própria natureza.
AGRICULTORES DE CAPIM
Manuella Saldanha e Tomé Lemos - Trajano de Moraes

Manuella Stefani Saldanha nasceu em 9 de outubro de 1990 e Tomé de Moraes Lavigne


de Lemos nasceu em 24 de setembro de 1986. Tomé se formou em Letras na PUC-RJ e a
Manu iniciou a faculdade de Biologia na UFRJ, mas ainda não concluiu. Eles se
conheceram através de amigos em comum, pois frequentavam muito o cenário musical
underground, onde Tomé costumava tocar com a banda de rock do qual participava.

Atualmente moram no Sítio Córrego Alto, que um dia fez parte da antiga Fazenda São
Lourenço, em Trajano de Moraes, considerada uma importante fazenda na região,
tendo sido uma das maiores produtoras de café nos anos 1850 e, posteriormente, de
produção de cachaça, conhecida como cachaça São Lourenço. Quando resolveram
morar na fazenda, quiseram resgatar a tradição, reativando o alambique para a
produção de cachaça, que batizaram de Cachaça do Tomé, mas como a produção não
era muito barata e precisava de muitas pessoas trabalhando, resolveram se dedicar a
outras frentes.

Manu e Tomé desejavam investir em algum tipo de produção que permitisse mais
segurança, por isso foram experimentando possibilidades no terreno, cedido pela mãe,
para ver o que seria mais viável naquelas terras, que estavam abandonadas e que
durante anos serviram apenas para pasto. Passaram um bom tempo plantando
orgânicos, mas enfrentaram um dilema, por conta da quantidade de capim, que por
mais que cortassem, seguia se expandindo.
A sensação que eles tinham era de que estavam sempre perdendo terreno para o capim.
Outro problema que enfrentavam era a ausência de assistência técnica para orientar
sobre práticas de cultivo, adubação, insumos orgânicos, entre outros. A solução que
encontraram foi migrar as atividades para a pecuária, tornando como se
autodenominam: agricultores de capim. A partir daí passaram a estudar e pesquisar
alternativas de assistência técnica e de geração de renda, e encontraram a Cooperativa
de Macuco e o projeto Balde Cheio do SENAR.

No Brasil, a pecuária extensiva tem sido a mais difundida, mas eles optaram por
produzir em áreas de piquete, conhecida como pecuária intensiva, onde o gado fica
numa área demarcada, enquanto as outras áreas ficam descansando por trinta dias.
Esse processo impede o pisoteio no solo, dando tempo do capim se regenerar,
permitindo que sempre tenha capim com uma altura que proteja o solo e que sempre
tenha capim para alimentar os animais. Eles também têm uma produção de bezerros,
pois as vacas precisam parir para darem leite. No entanto, para aumentar a produção,
precisam piquetear todas as áreas.

Atualmente tem 4 hectares de pasto e 1 de canavial, e apenas um é piqueteado. Para


aumentar as áreas de piquete, precisam investir em cercas e plantar árvores para fazer
sombra. Os animais que possuem na propriedade são uma mistura de gado europeu e
indiano e são chamados por seus nomes. As vacas são Jujuba, Rosinha, Samarica, Livi,
Solange, Boneca, Rosana e Madame. E o touro é conhecido como Cheiroso, além dos
bezerros Viola, Violeta, Beijoca, Maravilha, Lico, Talarico e Cravinho.
Eles se reconhecem como agricultores de capim, pois cuidam do pasto como uma
lavoura, pois entendem que o principal para uma boa produção é dar um bom alimento
para as vacas poderem se alimentar bem e assim gerar um bom leite para
comercialização. Atualmente vendem toda a produção que envolve queijos, requeijão e
iogurte. Em média, vendem de 7 a 8 peças por dia, e vão ao Rio de Janeiro a cada 20 dias
com aproximadamente 30 queijos, 30 requeijões e 50 litros de iogurte. Eles não têm
dificuldades de escoar sua produção, sendo a divulgação feita no “boca a boca”, através
de um site onde ofertam a disponibilidade e divulgam para os compradores.
Atualmente, o maior problema é aumentar a produção, pois precisam de mais matéria-
prima, no caso, de leite.

Outra forma de geração de renda tem sido a venda de bezerros e também a venda de
leite para a Cooperativa Macuco, da qual são filiados, o que permite uma venda
garantida. No início tiravam leite duas vezes ao dia, de domingo a domingo, para garantir
uma produção maior de leite, mas avaliaram que essa rotina era muito cansativa para os
animais e também para eles. Agora seguem o que chamam de “meio-termo”, tirando
leite apenas uma vez por dia, o que diminuiu a produção, mas deu mais qualidade de
vida na rotina. Da produção, uma parte segue para a Cooperativa e a outra eles
processam, o que tem permitido retornar as atividades de comercialização entre amigos
e em feiras.
CUIDADORES DE ANIMAIS E ECONOMIA CIRCULAR
Patrícia Guedes e Paulo Ricardo Rafael - Lumiar - Nova Friburgo

Patrícia Guedes, nascida em 24 de setembro de 1970, veio do município de São Pedro da


Aldeia, região dos lagos, e desde pequena sempre foi apaixonada por natureza e por
matas. Quando pisou em Lumiar, soube que havia encontrado a sua casa. Começou a
frequentar aos finais de semana com seus filhos, até que conheceu seu companheiro,
nascido em 7 de julho de 1977, no município de Nova Friburgo, com quem vive desde
janeiro de 2017.

Todos os dias eles acordam às 6h da manhã e começam a lida de cuidados com os


inúmeros animais que habitam a propriedade, como cavalos, cabritos, ovelhas, porcos,
galinhas, perus, patos, coelhos, entre outros, que só comem insumos da lavoura como
inhame, aipim, cana, capim, deixando a carne diferenciada, ou seja, caipira.

Eles dividem as tarefas para darem conta de tudo: enquanto um cuida da horta e do
horto de plantas (que tem várias espécies de suculentas, antúrios, entre outras
ornamentais), o outro vai tirar capim para alimentar cavalos e cabritas. Também dividem
as tarefas de limpeza do sítio, cuidados com o quintal, arrumação dos quartos da
hospedaria, mais uma alternativa encontrada para complementar a renda da família e
também uma forma de dar oportunidade a outras pessoas de conhecerem esse estilo
de vida.

Eles recebem muitos visitantes que se hospedam no sítio para curtir a natureza e
também para acompanhar as atividades diárias, participando de oficinas sobre ervas
medicinais, de produção de remédios caseiros, além de conhecer como se ordenha e se
produz leite de cabra. Eles também gostam de processar os alimentos que cultivam no
sítio e de fazer comida gostosa, com alimentos frescos, orgânicos e com uma carne
totalmente caipira. Então, vira e mexe, quem visita a propriedade, conhecida como Sítio
Recreio, se delicia com geleias, bolos, doces caseiros, galinha caipira, costelinha de
porco, e muito mais.

Ao longo destes anos, eles têm construído o que consideram uma economia circular,
tentando garantir que o sítio seja o mais produtivo possível, ao mesmo tempo que
preservam o meio ambiente e mantêm vivos os saberes e fazeres do campo. Assim, além
de produzir o próprio alimento, a produção de animais e de seus derivados, como
queijo, leite, ovos, entre outros, também têm sido comercializados para a população
local e para os visitantes, contribuindo para a geração da renda familiar.
Outra atividade que adoram fazer, e que fica na responsabilidade do Paulo, é preparar
potros para serem montados, possibilitando que o animal possa participar de
cavalgadas. Durante uns 2 meses e meio, os animais são amansados e ficam prontos
para cavalgar.

Na pandemia, conseguiram suprir suas necessidades alimentares com a própria


produção, mas para pagar as contas, e com a impossibilidade de executar atividades
como feiras, de hospedar visitantes, e de realizar oficinas, o casal encontrou nas redes
sociais uma alternativa de geração de renda. Começaram a divulgar, nas redes de
Whatsapp, a importância de se voltar para uma vida mais sustentável e, a partir daí,
surgiu o delivery, com entrega dos produtos e também a venda de animais para criação.
CULTURA RURAL COMO RESISTÊNCIA NO CAMPO
Marjorie Botelho e Claudio Paolino - Santo Antônio - Barra Alegre - Bom Jardim

Marjorie Botelho nasceu em 31 de Janeiro de 1972. É formada em Psicologia e mestra


em Educação. Claudio Marcio Paolino nasceu em 2 de julho de 1968, é fotógrafo e
professor de Artes. Eles se conheceram na Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
quando ambos cursavam suas graduações: ela, Psicologia, e ele, Artes. Em 2008,
buscaram uma qualidade de vida melhor ao lado dos filhos, Miguel Emílio Paolino e
Catarina Botelho Paolino. Também observando a ausência de equipamentos
educativos de cultura nas áreas rurais do interior do estado do Rio de Janeiro, eles
iniciaram o planejamento para a construção de um espaço cultural no município de
Bom Jardim, na comunidade rural de Santo Antônio, no distrito de Barra Alegre. Desde
então, desenvolvem ações de fomento à leitura e as artes em geral; de preservação do
patrimônio cultural, material e imaterial, presente nestas localidades; de fomento às
práticas agroecológicas, de saúde comunitária e de fortalecimento de políticas públicas
de cultura para áreas rurais. Atendendo ao longo desses anos mais de 12 escolas, bem
como a comunidade rural presente nas áreas rurais do distrito de Barra Alegre em
Bom Jardim.

O Ecomuseu Rural possui a Biblioteca de Artes Visuais Conceição Amaral Knupp, o


Galpão de Artes Mafort e a Biblioteca de Artes Visuais. Também tem uma cozinha
comunitária, um alojamento para hospedar grupos parceiros, colaboradores,
residentes artísticos, amigos do ponto de cultura rural, entre outros; além de galinheiro
e horta comunitária.
Estão numa área, em meio à Mata Atlântica, próximos à área de proteção de Macacu e
de Macaé de Cima, numa região considerada de interesse geológico por conta da
antiguidade de suas pedras, que remontam o período do deslocamento das placas
tectônicas. Uma de suas pedras - conhecida como Pedra Aguda - tem sua outra metade
na África.

A Biblioteca de Artes Visuais Conceição Knupp Amaral foi uma homenagem às mulheres
do campo. Seus livros fazem parte do prêmio Ludicidade do Ministério da Cultura,
recebido pela entidade por conta do reconhecimento do trabalho de valorização da
memória local com fotografia artesanal. Tem também um acervo constituído por livros,
dvd’s, cd’s de artes visuais indicados pela FUNARTE e uma exposição permanente de
máquinas fotográficas antigas. As ações da biblioteca visam fomentar a leitura visual e as
artes visuais, através de oficinas que envolvem diferentes linguagens artísticas, tais como
fotografia, cinema, escultura, pintura, entre outros. Também garante o acesso ao livro e
estimula a leitura através de atividades como contação de história, apresentação teatral,
dança e música, além de oficinas e diversas linguagens artísticas que estimulam a
criatividade e fomenta a produção artística.

O Galpão de Artes foi todo construído de madeira, pelo agricultor Zaga Mafort, e tem na
sua arquitetura a lembrança das construções realizadas pelos antigos moradores. Esse
espaço, batizado como Galpão de Artes Mafort, homenageia a família de mais esse
Mestre, que cumpriu um importante papel para o desenvolvimento dessa região na
época do plantio do café e, também, na preservação das folias.
Esse espaço tem sido ocupado por diferentes atividades, como apresentações de teatro,
de circo, rodas de conversa, ensaios do grupo folclórico, do mineiro pau, encontro de
folias, entre outros. Ele mede aproximadamente 60 m² e tem capacidade para 60
pessoas sentadas em cadeiras e quase o dobro de pessoas sentadas no chão e/ou em
pé.

O Ecomuseu Rural, reconhecido pela Superintendência de Museus da Secretaria de


Cultura do Estado do Rio de Janeiro e pelo Instituto Brasileiro de Museus, realiza ações
voltadas para a preservação da memória e do patrimônio cultural rural através da
realização de oficinas de educação patrimonial, educação ambiental, educação
alimentar, produção de livros, de documentários, de percursos e de inventários que
valorizam os modos de vida de quem mora no campo, além da agricultura familiar.

Ambos são responsáveis pelo conjunto de ações realizadas pelo Instituto de Imagem e
Cidadania, ao longo destes últimos quatorze anos, estando à frente de inúmeros
projetos voltados para a valorização da cultura presente nos territórios rurais, através
de oficinas de educação patrimonial, das artes visuais, da produção de livros sobre os
saberes e fazeres do campo, além de documentários abordando a diversidade cultural
presente nas cantorias, na produção de broa no forno à lenha, do fubá na moenda, do
moinho, entre outros. Ao longo dos anos, produziram documentários, dentre eles:
Folia da Bandeira do Divino Espírito Santo, Rezas e Ervas, Toninho Mestre de Sabedoria
Popular, Dona Jacira, Terra Roma, entre outros. E livros como: Agricultores do Estado do
Rio de Janeiro, Patrimônio Cultural de Barra Alegre, Receitas de Inhame, entre outros. A
produção deste livro integra as ações de valorização da cultura rural e da agricultura
familiar e agroecológica, partilhando histórias de famílias que estão no campo
contribuindo para garantir a produção de alimentos para a sociedade.
Realização

Apoio

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