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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

ROSAURA ANGÉLICA SOLIGO

“A EXPERIÊNCIA DA ESCRITA NO ESPAÇO VIRTUAL


– A VOZ, A VEZ, UMA CONQUISTA TALVEZ”

CAMPINAS
2015
ROSAURA ANGÉLICA SOLIGO

“A EXPERIÊNCIA DA ESCRITA NO ESPAÇO VIRTUAL


– A VOZ, A VEZ, UMA CONQUISTA TALVEZ”

ORIENTADOR: PROF. DR. GUILHERME DO VAL TOLEDO PRADO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas para obtenção do
título de Doutora em Educação, na área de concentração
de Ensino e Práticas Culturais.

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL


DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO ROSAURA ANGÉLICA
SOLIGO, E ORIENTADA PELO PROF. DR. GUILHERME DO
VAL TOLEDO PRADO.

CAMPINAS
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

“A EXPERIÊNCIA DA ESCRITA NO ESPAÇO VIRTUAL


– A VOZ, A VEZ, UMA CONQUISTA TALVEZ”

Rosaura Angélica Soligo

COMISSÃO JULGADORA:

Prof Doutor Guilherme do Val Toledo Prado


Prof Doutor Carlos Bernardo Skliar
Profa Doutora Renata Cristina O. Barrichelo Cunha
Prof Doutor Dario Fiorentini
Profa Doutora Ana Maria Falcão de Aragão

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

2015
Nota de gratidão

Considero que você, cara neófita, passou em mais uma prova em


que, ao deparar-se com o portão fechado e com o guardião à frente,
não esperou ser interrogada para entrar. Simplesmente abriu-a,
sabendo que, se a porta estava ali, era a sua porta e era preciso tomar
a melhor atitude e entrar no lugar que é seu por direito. Outras
portas virão, mas estarei lá dentro a te esperar!
Guilherme do Val Toledo Prado

Caros colaboradores1,

Começo esta nota de gratidão agradecendo ao meu orientador por ter me escrito há mais de dez
anos, em 2004, esta “autorização poética”, que uso como epígrafe. Não fosse você, Guilherme, hoje
meu amigo querido e meu mestre para sempre, eu certamente não teria chegado até aqui. Não
suportaria todos os “tem-quês” acadêmicos dos quais você me livrou sem pestanejar. Sei que não
fui a boa estudante que você desejou e merece. Mas você sempre soube que não seria possível
mais do que pude realizar.
Em seguida agradeço a todos os colaboradores da pesquisa, primeiro os do grupo “oficial” de
sujeitos e depois os colaboradores que atenderam ao meu pedido informal para que me
escrevessem se, quando, quanto e como pudessem.
Os primeiros:
Adail Sobral, Adriana Stella Pierini, Carla Clauber, Cristina Campos, Dalmo Ribas, Ester Broner,
Gloria Cunha, Guilherme do Val Toledo Prado, Hélida Portolani, Ingrid Lotfi, José Paulo Mendes
da Silva, Liana Arrais Serodio, Maíra Libertad, Marquinhos Gonçalves, Margareth Buzinaro,
Patrícia Yumi, Paulo Masson, Renata Barrichelo Cunha, Rosana Dutoit, Selma Rocha, Tamara
Abrão Pina Lopretti, Vanessa Simas, Walter Takemoto.
Dentre esses, o duplo agradecimento é para aqueles que também escreveram depoimentos sobre
os aprendizados na leituraescrita das Des|Amorosas, um projeto anterior à pesquisa (e explicado
mais adiante), mas que, em seu percurso, emergiu como fonte privilegiada de dados:
Adail, Adriana, Cristina, Hélida, Margareth, Patrícia e Vanessa.
E, ainda nesse primeiro grupo, agradeço especialmente aos companheiros que, em vários
momentos, me enviaram comentários, devolutivas, críticas, contribuições pontuais e muitas ideias:
Adriana, que fez também a revisão do texto antes do exame de qualificação e da defesa;
Renata, que não pôde participar da banca de qualificação, mas compartilhou, por escrito e
por telefone, contribuições muito valiosas para o texto, que só poderiam vir mesmo dela;
Adail, que nunca demorou mais do que umas poucas horas para me enviar resposta,
indicação bibliográfica, texto para estudo e revisão conceitual de alguns trechos da tese e
do resumo em inglês;

1
Nota iniciada em 14 de outubro de 2012 e terminada em dezembro de 2015.
Liana, Margareth, Masson e Vanessa, pela generosidade dos comentários dialogados, pelo
acréscimo de ideias e pelos escritos todos que muito me ajudaram e, sempre que possível,
foram incorporados ao texto;
Carla, por me lembrar algo óbvio: que o fato de nossa concepção de experiência
necessariamente pressupor aprendizagem torna redundante a expressão “experiência
formativa” – porque a experiência sempre será formativa;
e Guilherme, meu orientador, uma presença sempre atenta e solidária em minhas escolhas,
muito embora, às vezes, com a testa mais franzida do que eu desejaria...
Em seguida meu agradecimento é para o grupo de todos os demais colaboradores que, a meu
pedido, escreveram opiniões por e-mail ou no facebook:
Adriana Alves, Ana Sixx, Araguaí Garcia, Bete Evangelista, Cleane Santos, Edenilde Bezerra,
Edilson Souza, Elisabete Semeghini, Heidi Mara De Mare Fayad, Hélder Nogueira, Heloísa
Dias Martins Proença, Jozelia Regina Segabinazzi, Kathia Diniz, Lidiane Lobo, Maria Angela
Pinheiro, Maria Teresa Esteban, Paula Maria Scarlatti, Rita Benedita Mota de Morais, Sílvia
Palaia, Tânia Villarroel, Zilda Pavão.
Não posso dizer que vocês são coautores do texto que aqui está, pois no ato de escrita estive
fisicamente só, mas, com diferentes níveis de participação, cada qual, conforme a sua possibilidade,
foi parceiro essencial na produção de muitas das ideias que resultaram nesta tese. Devo esta tese a
vocês, porque, sem vocês, não resta a menor dúvida que o resultado seria outro.
Depois agradeço aos companheiros do GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
Continuada –, solidários e queridos, que contribuíram decisivamente para que eu pudesse
sistematizar, e tornar público neste texto, os procedimentos que adotamos para a produção dos
dados em nossas pesquisas:
Adriana Alves, Adriana Pierini, Carla Clauber, Carla Helena Fernandes, Glória Cunha, Liana
Arrais Serodio, Vanessa Simas, Wilson Queiroz e Guilherme, meu orientador.
E agradeço também aos membros da banca de qualificação, Carlos Skliar, Dario Fiorentini e Cristina
Campos, pelas sugestões preciosas que abriram outros horizontes de possibilidades para a tese. A
Carlos, minha gratidão é também por ter se tornado um amigo querido e um companheiro em
outros projetos de palavras sem pressa.
Feitas as referências a quem contribuiu de forma direta com o meu trabalho de pesquisadora e de
autora, registro agora minha gratidão aos que zelam por mim pessoalmente:
Minhas filhas, Maíra Libertad e Mayumi Morena, queridíssimas, que nunca me deixaram
sozinha um instante sequer, embora uma morando hoje no Rio de Janeiro e outra em
Salvador; embora sem nos falarmos diariamente; embora atropeladas, nós três, pelos
excessos do cotidiano. Sei muito bem que na viagem agitada que é a vida, em companhia
dessas mulheres guerreiras e amorosas, jamais se fica a ver navios. (Amor infinito por vocês,
meninas!)
Meus pais, Sydnei e Cidinha – mais conhecidos como Nonão e Noninha –, por cuidarem de
mim diariamente: com café da manhã, frutinha cortada no fim da tarde, carona, preces,
cartas, bilhetes, mimos de todo tipo, que é o que conta de fato nas relações amorosas –
afeto em atos. (Amor infinito por vocês, queridos!)
Meus amigos, também praticantes de afeto em atos, que renovam a cada dia minha certeza
absoluta de que a vida sem eles seria inviável. Nesse grupo incluo alguns “faceamigos”
também: pessoas que me incentivam, desejam boa sorte, enviam poemas, canções do
youtube, obras de arte, lindas mensagens que me comovem. Algumas delas, pessoalmente,
jamais encontrei!
Meu médico, Adailton Salvatore Meira, homeopata e amigo, que cuida da minha saúde há
bem mais de dez anos e nunca me deixou desamparada, nem nas piores horas.
Minha ajudante, Glorinha (Maria da Glória de Oliveira Gomes dos Santos), que de segunda,
quarta e sexta, quando não outros dias, cuida de tudo por aqui, especialmente das
comidinhas que garantem a cota diária de felicidade a que todos temos direito, ainda mais
porque são feitas com alegria.
Agradeço também à Gizah Garcia Leal, que revisou o texto final após a banca de defesa, com seu
estilo sempre generoso e atento às intenções que orientam as escolhas de quem escreve.
Agora, não por atribuir importância menor, muito pelo contrário, agradeço aos leitores potenciais
deste trabalho, com quem espero poder contar até o final na condição de leitores reais que
seguiram comigo. Ainda que os colaboradores a que fiz referência primeiro tenham uma
importância grandiosa nesta pesquisa, devo aqui confessar sem reservas que, em se tratando do
texto escrito, foi em vocês que pensei do começo ao fim, foi com vocês que dialoguei virtualmente
o tempo todo, foi para vocês que escrevi. Porque, se vocês não seguirem comigo, de nada terá
valido os anos todos de trabalho.
E não posso deixar de registrar aqui o meu sentimento de profunda gratidão às mulheres que, por
escreverem, viveram – e do outro lado do mundo ainda vivem – perigosamente, arriscaram tudo
para escrever ao longo da História, enfrentaram a tradição, a família e o medo de não ser, que
escreviam à noite quando todos dormiam, que se passavam por homens para poder publicar seus
textos e que (muitas delas) saíram da vida de forma trágica e desesperada. A elas dedico este
trabalho, pois elas estão culturalmente em mim; se assim não fosse, eu não poderia tê-lo escrito
assim.
Há alguns anos, Guilherme me presenteou com um livro chamado “Mulheres que escrevem vivem
perigosamente”, de Stefan Bollmann, e entendi que era um incentivo para eu continuar na zona
do perigo. Obedeci. E espero não desapontá-los.
Os olhos exigentes e generosos que me fitam de dentro do espelho são principalmente os olhos
de vocês, meus outros.
Como afeto,
Rosaura
RESUMO

Tendo como tema a experiência de escrita no espaço virtual, a pesquisa buscou responder à
questão “Em que circunstâncias, de que modo e por quais razões a comunicação escrita que
acontece no espaço virtual se constitui em experiência formativa para quem dela participa?”. Os
pressupostos centrais que orientaram o processo de construção da pesquisa foram estes:
as relações humanas são dialógicas e constituídas pela ação de sujeitos que produzem história,
cultura e realidades, sendo também por elas produzidos; a formação humana é o conjunto de
experiências de aprendizagem ao longo da vida; é preciso adentrar a pesquisa com todos os
nossos sentidos, nutrir-se em todas as fontes, considerar o conhecimento legitimado um guia e
não uma doutrina, narrar o vivido e pluralizar os modos de produzir ciência. A abordagem
metodológica se caracteriza pelo que foi chamado de pesquisa narrativa em três dimensões, por
articular intencionalmente as fontes narrativas de dados, um modo narrativo de produzir
conhecimento e o registro narrativo da pesquisa. Nessa abordagem, os dados foram produzidos
a partir de depoimentos escritos por 24 sujeitos, mas também do registro reflexivo produzido
pela pesquisadora desde o início do percurso. Além dessa peculiaridade da pesquisa, há outras:
o grupo de sujeitos foi considerado um grupo de colaboradores e também a pesquisadora e o
orientador fizeram parte dele; os autores tomados primeiramente como referência teórica foram,
sempre que possível, os próprios sujeitos de pesquisa; o saber da experiência teve igual relevância
que o conhecimento legitimado pelos processos de produção acadêmica; o registro da tese foi
um memorial de pesquisa em forma de cartas, cujos destinatários diretos são os leitores; embora
o texto seja predominantemente narrativo, ele é híbrido, já que comporta trechos em formas
textuais não narrativas, sempre que foram consideradas mais adequadas aos propósitos; e o estilo
da linguagem é resultado de um esforço de “literaturização” do registro. As análises evidenciaram
que a comunicação por escrito online é formativa para quem dela participa sempre que se
constitui em uma experiência de fato, por responder a algum tipo de necessidade pessoal que se
tenha: conhecer e conversar com pessoas, viver outras experiências que o cotidiano fora da tela
não garante, experimentar os efeitos de uma vida inventada, testar o reconhecimento e a aceitação
pessoal, dialogar sobre o que é de interesse, ampliar o conhecimento e o universo cultural,
integrar comunidades de semelhantes, fortalecer horizontalmente a identidade, protagonizar
movimentos, alienar-se um pouco da dura realidade ou simplesmente “jogar conversa fora”. Os
modos de aprender, de assumir a vez e mostrar a voz nos dispositivos de comunicação online
são outros, diferentes dos demais, à medida que passam invariavelmente pela linguagem escrita.
Todos os sentidos e efeitos pretendidos passam e se fazem pela palavra escrita, fato histórico
novo nos processos de interlocução direta. Com a possibilidade de ocupação do espaço virtual,
muitas pessoas até então sem-vez superaram essa sua condição e vozes até então caladas ou
silenciadas podem agora se manifestar de diferentes formas. Mas se essa circunstância
representará de fato uma conquista para todas as pessoas, ainda não é possível saber.
ABSTRACT

Having the experience of writing in the virtual space as theme, the research intended to answer
the question “Under what circumstances, how and for which reasons the written communication
that takes place in the virtual space constitutes a formative experience for those who participate?”.
The central assumptions which guided the process of building the research were: the human
relationships are dialogical and constituted by the action of subjects who produce history, culture,
and realities, and are also produced by them; human education is the set of learning experiences
through a lifetime; it is needful to step into the research with all senses, be nurtured by all the
sources, consider the legitimized knowledge as a guide and not a doctrine, narrate the lived
experience and pluralize the ways of making science. The methodological approach is
characterized by what was named narrative inquiry in three dimensions, once it intentionally
interlinks the narrative sources of data, a narrative way of producing knowledge and the narrative
recording of the research. In this approach, data were produced from the testimonials written by
24 subjects, but also from the reflexive records produced by the researcher since the beginning
of the journey. Besides this particularity of the research, there are others: the group of subjects
was considered a group of collaborators and the researcher and the advisor were also its members;
the authors primarily assumed as theoretical referential were the subjects themselves whenever
possible; knowledge coming from experience had relevance equal to the knowledge legitimized
by the academic production processes; the thesis’ recording procedure is a research memorial
using the format of letters whose direct recipients are the readers; although the text is
predominantly narrative, it is hybrid, since it comprises excerpts in non-narrative text forms,
whenever they were considered more adequate for the purposes; and the style is the result of an
effort of “literaturizing” the thesis’ recording. The analysis demonstrated that the online written
communication is formative to those participating in it, whenever it results in an actual experience
by answering some kind of personal need: to meet and talk to people, live experiences not
ensured by the everyday offline life, experiment the effects of an invented life, trial the personal
acknowledgment and acceptance, dialogue about what matters, broaden the knowledge and the
cultural universe, take part in communities of peers, strengthen horizontally the personal identity,
be protagonist in social movements, alienate a little from the harsh reality or simply make “small
talk”. The modes of learning, taking the turn and showing the voice are very particular in the
online communication tools, since they imply the written language. All the intended meaning and
effects require and are produced by the written word, which is a new historical fact within the
process of direct interlocution. Due to the possibility of occupy the virtual space, several people
once deprived from opportunities could overcome this condition, and voices hitherto silent and
silenced can now express themselves in different ways. But if this circumstance will represent an
actual achievement to those people, it is not yet possible to know.

Keywords: Experience, Writing, Online Communication, Narrative Inquiry, Education


... E a ilha desconhecida, perguntou o homem do leme, A ilha desconhecida é coisa que não existe,
não passa duma ideia da tua cabeça, os geógrafos do rei foram ver nos mapas e declararam que ilhas
por conhecer é coisa que se acabou desde há muito tempo, Devíeis ter ficado na cidade, em lugar de
vir atrapalhar-me a navegação, Andávamos à procura de um sítio melhor para viver e resolvemos
aproveitar a tua viagem, Não sois marinheiros, Nunca o fomos, Sozinho, não serei capaz de governar
o barco, Pensasses nisso antes de ir pedi-lo ao rei, o mar não ensina a navegar. Então o homem do
leme viu uma terra ao longe e quis passar adiante, fazer de conta que ela era a miragem de uma outra
terra, uma imagem que tivesse vindo do outro lado do mundo pelo espaço, mas os homens que nunca
haviam sido marinheiros protestaram, disseram que ali mesmo é que queriam desembarcar, Esta é
uma ilha do mapa, gritaram, matar-te-emos se não nos levares lá. Então, por si mesma, a caravela virou
a proa em direcção à terra, entrou no porto e foi encostar à muralha da doca, Podeis ir-vos, disse o
homem do leme, acto contínuo saíram em correnteza, primeiro as mulheres, depois os homens, mas
não foram sozinhos, levaram com eles os patos, os coelhos e as galinhas, levaram os bois, os burros e
os cavalos, e até as gaivotas, uma após outra, levantaram voo e se foram do barco transportando no
bico os seus gaivotinhos, proeza que não tinha sido cometida antes, mas há sempre uma vez. O homem
do leme assistiu à debandada em silêncio, não fez nada para reter os que o abandonavam, ao menos
tinham-no deixado com as árvores, os trigos e as flores, com as trepadeiras que se enrolavam nos
mastros e pendiam da amurada como festões. Por causa do atropelo da saída haviam-se rompido e
derramado os sacos de terra, de modo que a coberta era toda ela como um campo lavrado e semeado,
só falta que venha um pouco mais de chuva para que seja um bom ano agrícola. Desde que a viagem
à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar,
apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetecesse um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento,
nada mais. As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas
devem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu
destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se
como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz,
talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la. Então o homem trancou a roda do leme e
desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma
sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os
corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois,
mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do
outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré,
A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.”
José Saramago
SUMÁRIO
Nota de gratidão ................................................................................................................................................................................................
[Agradecimentos]
Primeira Correspondência
Parte I – BEM-VINDOS .................................................................................................................................................................................. 12
[Declaração de intenções e Apresentação geral]
Parte II – EM TEMPO ....................................................................................................................................................................................... 16
[Esclarecimentos adicionais após o exame de qualificação]
Segunda Correspondência
– A HISTÓRIA DESTA HISTÓRIA .......................................................................................................................................................... 20
[Memorial de pesquisa: Fundamentação, Abordagem Metodológica e Dados]
Resenha ...................................................................................................................................................................................................................... 20
Arquitetura preliminar do memorial de pesquisa ............................................................................................................. 23
O ponto de partida .......................................................................................................................................................................................... 25
Quem segue comigo ..................................................................................................................................................................................... 29
[Perfil dos sujeitos-colaboradores]
O mapa da Ilha Desconhecida se constrói ao navegar ............................................................................................. 37
Navegando em mar aberto .................................................................................................................................................................... 56
Cartografia da Navegação | Notas de Abril a Setembro de 2012 ................................................................................. 57
Cartografia da Navegação | Notas de Outubro de 2012 ..................................................................................................... 63
Cartografia da Navegação | Notas de Maio e Junho de 2013 ......................................................................................... 64
Cartografia da Navegação | Notas de Setembro a Dezembro de 2013 .................................................................. 66
Cartografia da Navegação | Notas de Abril a Junho de 2014 ......................................................................................... 68
Cartografia da Navegação | Notas de Setembro de 2014 a Novembro de 2015 ......................................... 70
O desejo e a deriva ......................................................................................................................................................................................... 72
[Abordagem metodológica]
Pesquisa narrativa em três dimensões ........................................................................................................................................ 74
Em busca dos dados contidos ............................................................................................................................................................. 88
[Organização dos dados]
- O que nos ensinam os sujeitos desta pesquisa – Teorização ......................................................................... 92
- Contribuições assinadas – Textualização .............................................................................................................................. 103
- No meio do caminho tinha um farol – Composição ................................................................................................. 120
Os dados revelam sentidos ..................................................................................................................................................................... 129
[Análise dos dados]
- Breve narrativa em diálogo com os colaboradores .................................................................................................... 130
Terceira Correspondência
– A CHEGADA À ILHA DESCONHECIDA E OS “APRENDIZARES” ................................................................... 154
[Considerações finais]
Correspondência Complementar
– MEMORIAL DE FORMAÇÃO ............................................................................................................................................................ 169
Venho por meio desta... ............................................................................................................................................................................. 169
E, agora, venho por meio desta... ..................................................................................................................................................... 190
Referências ............................................................................................................................................................................................................... 204
Apêndice
Cartas da Defesa ................................................................................................................................................................................................ 210
12

Primeira Correspondência

Parte I

BEM-VINDOS!
[Apresentação Inicial]

Lo primero es el cuerpo, lo que el cuerpo no puede dejar de sentir,


ni escuchar, ni mirar, ni pensar, ni decir, ni decirse. En cierta
manera creo en un lenguaje habitado por dentro y no apenas
revestido por fuera. Como la piel, también el lenguaje toma a veces
la forma de un latido cardíaco o de una agitación del respirar o de
un extraño y persistente movimiento; otras veces, se convierte en
muralla, en defensa, en contención. Me gustaría no utilizar el
lenguaje solo como recubrimiento o encubrimiento de la vida.
Quisiera ser capaz de un lenguaje como sentido. El lenguaje como
desorden, como desobediencia, como una suerte de rebelión frente
a un mundo que cada vez nos envejece más de prisa. Un lenguaje a
flor de piel. Una piel a flor de lenguaje.
Carlos Skliar

Caros leitores

Este texto nada valerá se não for lido e só vocês podem salvá-lo dessa insignificância.
Quando escrevemos teses com o propósito de que sejam lidas com desejo e interesse, o desafio é
grandioso e multiplicado – até que o texto se encerre e os primeiros leitores nos deem algum sinal,
jamais saberemos se tivemos êxito ou não. E esse intervalo de tempo, que coincide com o percurso
da pesquisa e dura sempre alguns anos, pode ser bastante tenso para um pesquisador que
pretende interessar genuinamente os leitores de sua tese. Para esse tipo de autor, o fim é apenas o
começo, pois, além do compromisso com o término do trabalho em um determinado prazo, ele
padece de uma aflição semelhante à de um escritor “de profissão”: se ninguém se interessar por
sua obra, o seu trabalho terá sido de certo modo em vão, pois produziu uma escrita que, mesmo
sendo a expressão de um ato criativo, não cumpre sua principal vocação – a leitura.
Eu sou esse tipo de autor e não suportaria destino tão trágico.
Vocês são os destinatários deste texto, e com ele pretendo fazer um jogo explícito de sedução para,
além de ganhá-los como leitores potenciais, não os perder pelo meio do caminho e, mais, poder
contar com apoio dos que, tendo extraído alguma lição desta experiência, puderem instigar e
enredar novos leitores.
Começo o jogo então com um argumento que se pretende convincente, uma livre adaptação do
que diz Ana Maria Machado2 a respeito da arte, citando as ideias de Levis Hyde3 sobre a “economia
de presentes”:

2
In Ilhas no tempo – algumas leituras. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2004.
3
HYDE, Levis. The gift: imagination and the erotic life of property. Londres: Vintage/Handom House, 1988.
13

Um autor reconhece sua capacidade potencial e – se for um pesquisador – a oportunidade


concreta que tem como acadêmico, que para ele funcionam como um presente recebido da vida.
Então, retribui esse privilégio com o presente do seu esforço, do seu trabalho, dedicando o seu
tempo para fazer tudo o que lhe cabe da melhor e mais original forma possível. Assim, a capacidade
que era a princípio potencial, aumenta, se amplia, se realiza em atos e ganha dimensões muito
maiores. E o produto que resulta de seu esforço – o registro escrito do seu trabalho de pesquisa –
funciona como um terceiro presente, agora oferecido aos outros – os seus leitores –, dos quais
espera, de presente, a leitura curiosa e a recomendação para que outros potenciais interessados
venham a fazê-la também.
Essa é a primeira intenção, que eu jamais poderia esconder de vocês, por serem parte desse ciclo
de presentes.
Outras explicações também merecem nota aqui e dizem respeito a algumas das principais escolhas
em relação à pesquisa e ao texto de registro, aos fundamentos, às diferenças entre o que aqui se
verá e o que em geral se encontraria em uma tese de doutorado.
Vamos então a elas.
Tenho hoje a convicção de que todo trabalho de pesquisa merece um tipo de cuidado do autor,
que é o que tenho chamado de “estética4 da coerência” – algo muito razoável, mas raramente
praticado – e que vocês entenderão de imediato: a relação orgânica entre conteúdo, forma e
registro. Dito de outro modo, isso significa o seguinte: o que se pesquisa, o modo de pesquisar e a
forma de comunicar por escrito o processo e os resultados do trabalho precisam estar em sintonia
– o que pressupõe que o texto de registro seja afinado, simpático, solidário com tudo o mais.
As principais escolhas em relação à pesquisa e ao texto final derivam, portanto, desse compromisso
em harmonizar esteticamente conteúdo-forma-registro. Para evidenciar de princípio o resultado
desse esforço, tanto quanto isso é possível em uma explicação resumida, segue um breve perfil do
trabalho que, em outras palavras mais breves, está contido também no resumo da tese. Essas
explicações serão detalhadas depois, sempre que necessário, ao longo do texto.

A ideia que deu sentido ao projeto:


Pesquisar a experiência5 de aprendizagem que acontece a partir da produção escrita e é
potencializada pelo uso da internet e seus múltiplos recursos.
A pergunta inspiradora da pesquisa:
Em que circunstâncias, de que modo e por quais razões a comunicação escrita que acontece no
espaço virtual se constitui em experiência formativa para quem dela participa?
O tema da pesquisa:
A experiência da escrita no espaço virtual.
O tema transversal:
A formação – considerada a partir de uma perspectiva ampla.

4
O sentido principal da palavra estética, neste texto, é relacionado ao que pode produzir efeitos agradáveis aos nossos
sentidos, à nossa percepção sensível, à nossa experiência de compreensão não apenas pela lógica da razão. Portanto, não
está diretamente relacionado ao conceito específico de estética defendido por Bakhtin, que é de grande importância e com
o qual concordo, mas aqui não está associado à palavra estética, quando a uso – segundo Bakhtin, estético/estética é sempre
produto de um acabamento reflexivo e elaborado do sujeito frente ao mundo ético representado pelo vivido.
5
O uso da expressão “experiência de aprendizagem” ou “experiência formativa” soará como redundância para alguns
leitores que compartilham da mesma concepção de experiência na qual se apoia esta tese: o que faz de uma vivência, de
uma passagem da vida, uma experiência é justamente o fato de ser formativa, isto é, de produzir aprendizagem. Mas, como
essa questão foi citada muito de passagem no resumo e somente mais adiante será tratada teoricamente, preferi por ora
manter a redundância.
14

O objetivo principal desde o princípio:


Compreender em que circunstâncias, de que modo e por quais razões a comunicação escrita que
acontece no espaço virtual se constitui em experiência formativa para quem dela participa, a partir
de seus próprios depoimentos.
O objetivo que se evidenciou no percurso:
Sistematizar o conhecimento produzido sobre a relação conteúdo-forma-registro e sobre o tipo
específico de pesquisa narrativa desenvolvida.
As fontes de dados:
Textos escritos por sujeitos que narram o que pensam sobre a experiência de se comunicar por escrito
pela internet.
O grupo de sujeitos-colaboradores da pesquisa:
Usuários da escrita na internet (24 pessoas), capazes de refletir por escrito sobre o que é objeto e
objetivo da pesquisa, que aceitaram contribuir com a produção do conhecimento no percurso do
trabalho.
O tipo de pesquisa:
O trabalho é um exercício de pesquisa narrativa em três dimensões articuladas: das fontes de dados,
do modo de produzir conhecimento e do registro. Isso porque os dados foram produzidos a partir
das narrativas escritas pelos sujeitos-colaboradores, o percurso do trabalho foi sendo registrado
progressivamente em uma narrativa reflexiva e compartilhada com o grupo e essa narrativa do
percurso – em construção permanente – foi parte constitutiva da produção de dados, e não apenas
uma forma de registro.
É, portanto, uma pesquisa qualitativa, que, pela natureza do tema e do objetivo, prescinde de dados
quantitativos e de recursos de comprovação convencional por incidência, recorrência ou outros
dispositivos similares. Como o desafio é compreender em que circunstâncias, de que modo e por
quais razões é formativa a experiência de se comunicar por escrito no espaço virtual, o uso de
instrumentos de produção de dados quantitativos não é necessário: cada um que escreve sobre o
que aprende nessa experiência, apesar da singularidade própria de cada pessoa, acaba por
“representar” outros tantos que por certo terão aprendizados muito semelhantes. Isso significa que
cada colaborador, ao escrever sobre si, diz de si, mas de algum modo, ainda que involuntariamente,
diz também de muitos outros com histórias parecidas; afinal, a realidade tem mostrado que, em
nenhum domínio humano, parece haver experiências sem pontos de identificação com outras. Como
nos lembra Ferrarotti (2010), “toda vida humana se revela, até nos seus aspectos menos
generalizáveis, como a síntese vertical de uma história social. Todo o comportamento ou ato
individual nos parece, até nas formas mais únicas, a síntese horizontal de uma estrutura social”.

Marcos conceituais:

Princípios

- As relações humanas são sempre dialógicas e constituídas pela ação de sujeitos que produzem
história, cultura e realidades e são também por elas produzidos.

- A formação humana é o conjunto de experiências de aprendizagem ao longo da vida.

Desafios metodológicos que adquiriram status de pressupostos na pesquisa6:


- Mergulhar com todos os sentidos na pesquisa.

6
Esses quatro desafios metodológicos são propostos por Nilda Alves em Decifrando o pergaminho – o cotidiano das
escolas nas lógicas das redes cotidianas. In OLIVEIRA, Inês B. Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de
saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. P. 13-38.
15

- Considerar o conhecimento legitimado um guia importante, mas sob suspeita – porque não se cria
o novo de joelhos para o estabelecido.
- Beber em todas as fontes.
- Narrar a vida e literaturizar a ciência.
Pontos principais de “cruzamento” entre as pesquisas de mestrado7 e doutorado:
A concepção de que formação é o conjunto das experiências de aprendizagem ao longo da vida.
A convicção de que forma é conteúdo.
A perspectiva metodológica de “pesquisa da pesquisa na pesquisa”, como um movimento de
produção de conhecimento em paralelo ao processo de investigação inicial.
A opção pela carta – na forma de uma narrativa pedagógica de natureza metacognitiva, endereçada
a leitores potencialmente interessados – como texto para registrar o percurso do trabalho e os
resultados possíveis.
O estilo da linguagem, resultado da tentativa de “escrever simples”, isto é, sem enfeites
desnecessários, sem excessos de erudição e, sempre que possível, com economia de palavras,
algumas graças literárias e algum humor.
A aspiração:
Se alcançados os dois objetivos principais, a aspiração é que esta pesquisa represente uma
contribuição significativa em relação ao tema da formação, especialmente no que diz respeito à
escrita como experiência formativa privilegiada dos que escrevem e à pesquisa narrativa em três
dimensões como experiência formativa privilegiada dos que pesquisam.

Essas escolhas acabaram por produzir transgressões em alguns modos convencionais de proceder,
porque, juntas, elas funcionaram como uma espécie de doutrina libertária a exigir
encaminhamentos ajustados ao percurso.
Assim será este texto: uma longa correspondência em que compartilho com vocês, leitores, os
caminhos trilhados, os atalhos, as vias abandonadas, os pontos de chegada, as razões e as emoções.
Em uma narrativa, pode eventualmente soar estranho explicitar as intenções logo de princípio,
como faço aqui. Mas, em respeito ao leitor, considerei essa uma necessidade em um texto que
transgride a forma convencional de registro de tese para situá-lo sobre o que encontrará.
O texto está dividido em três partes/correspondências centrais e uma complementar: Primeira
Correspondência – esta carta de boas-vindas e de apresentação do trabalho; Segunda
Correspondência – o memorial da pesquisa em que todo o trabalho é narrado; Terceira
Correspondência – as lições aprendidas; Correspondência Complementar – o memorial de
formação em que conto as experiências que imagino terem me feito ser quem sou.
Para que entendam melhor desde já, se comparada com o formato convencional de uma tese, a
Primeira Correspondência equivale à parte de Apresentação, a Terceira equivale às Considerações
Finais e a outra, mais longa, reúne tudo o mais que constitui uma pesquisa acadêmica: explicitação
dos conceitos, metodologia, apresentação das fontes de dados e análise dos mesmos. É esta que
vem a seguir.
Vocês são os leitores que projetei como possíveis e que agora, por força desta leitura acontecendo,
são os destinatários reais deste texto.
Sejam bem-vindos e recebam desde já o meu afeto por seguirem comigo.
Rosaura Soligo

7
Quem forma quem? - Instituição dos sujeitos. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação da Unicamp, 2007
16

Parte II

EM TEMPO.
[Esclarecimentos Adicionais]

Caros leitores

Esta Parte II da Primeira Correspondência foi escrita dois meses depois do exame de qualificação,
que aconteceu em 21 de julho de 2014, quando retomei a escrita para registrar o que fui
produzindo, até então, quase que só em pensamento. Se considerada uma linearidade cronológica,
portanto, seria o caso de inserir o que aqui está no final da tese. Mas, como algumas questões
abordadas pela banca me pareceram esclarecimentos importantes a vocês, antes de avançarem na
leitura do texto, achei necessário criar aqui esta parte.
Em primeiro lugar direi do título da tese. A proposta preliminar, anterior à qualificação, que era
”Experiências formativas em contextos comunicativos ‘virtuais’: o que a escrita tem a ver com isso?”,
passou a ser “A experiência da escrita no espaço virtual – a voz, a vez, uma conquista talvez”.
Essa mudança não tem a ver apenas com um arranjo melhor de palavras, evidentemente. O
deslocamento da palavra “escrita” para o centro do título é um reconhecimento de que a escrita
não só “tem tudo a ver com isso”, mas que a experiência de escrita é o tema da pesquisa. E que essa
experiência de escrita, no espaço virtual, é a pronúncia de uma voz que, não fosse essa
possibilidade, poderia se manifestar somente em outras ocasiões – ou, o que seria muito mais
lamentável, poderia estar calada, silenciada. É, assim, uma voz que ganhou uma vez. E, ao que
parece, essa é uma conquista nestes tempos em que vivemos. Mas não sabemos ainda se de fato
é. Talvez seja.
Depois, faço aqui outros esclarecimentos necessários em razão de algumas dúvidas e alguns
comentários da banca terem evidenciado que há escolhas cujas motivações devem ser explicadas.
Uma delas é que, nesta tese, a opção não foi, como em geral ocorre, identificar o problema de
pesquisa a partir de uma revisão bibliográfica relacionada ao tema. Isso porque, desde que me
interessei pelo tema, a perspectiva sempre foi investigar o que os próprios sujeitos colaboradores
da pesquisa contavam sobre a experiência pessoal de escrever e aprender nos espaços virtuais.
Além disso, a meu ver, essa escolha prescindiria do procedimento convencional de delinear uma
problemática a partir da revisão bibliográfica, dela extrair um problema e assim legitimar o percurso
da pesquisa. Como não encontrei na literatura nenhuma referência ou estudo a respeito de
narrativas sobre a própria escrita online e as respectivas aprendizagens pessoais nesse contexto,
concluí que a conduta habitual seria um encaminhamento pró-forma, portanto desnecessário, até
mesmo para legitimar a pesquisa, justo por não ter encontrado esses relatos de natureza
autobiográfica e metacognitiva.
O compromisso assumido desde o início, a partir dos ensinamentos de Nilda Alves (2001), de
mergulhar com todos os sentidos na pesquisa, tentar criar algo novo sem me pôr de joelhos para
o estabelecido, beber em todas as fontes e literaturizar a produção de conhecimento me pareceu
um desafio suficientemente grande, de modo que estaria justificado não me ocupar de convenções
prescindíveis por, na realidade, não fazerem falta.


Nos textos que se seguem não me dirigirei a vocês com esse cumprimento inicial típico das cartas por tratar-se de uma
mesma Correspondência.
17

Essa é, portanto, uma diferença que vocês encontrarão neste trabalho em relação a outras teses.
Mas não é a única; há outras, que comento a seguir.
A afirmação de que o registro da pesquisa foi feito de forma narrativa não significa a ausência de
outros modos de dizer, tampouco que o texto não seja do gênero tese. Do ponto de vista que eu
defendo, tendo como referência a perspectiva bakhtiniana8 de gêneros do discurso, caracterizar
um texto como narrativo é afirmar que nele predomina a forma narrativa, não que essa seja
exclusiva. Nesse sentido, os textos são sempre híbridos: uma narrativa comporta partes descritivas,
argumentativas, expositivas, que de resto não são a base de nenhum gênero, mas formas de
textualização que podem estar presentes em vários. Assim, esta tese foi escrita na forma de uma
narrativa, híbrida por natureza, como todas são, havendo nela argumentações, descrições,
enumerações, explicações, teorizações, diálogos (ainda que por escrito e não em tempo real) e
lições. Predomina a forma narrativa, aqui definida, sendo as outras praticadas quando necessário9.
A opção por sistematizar um modo de fazer pesquisa narrativa que é em parte igual e em parte
diferente de outros trabalhos alinhados a essa abordagem metodológica também é um ponto a
destacar. Porque os aspectos diferentes que relato podem causar algum estranhamento – e até
mesmo uma impressão de que os desdobramentos da pesquisa estão errados, contraditórios ou
incoerentes – por não serem exatamente os mesmos que se verificam em outras dissertações e
teses cuja proposta é também de investigação narrativa, fundamentada nos mesmos autores que
tomei como referência.
Nesta pesquisa e neste texto não há, como muitas vezes acontece nas dissertações e teses, um
alinhamento de fidelidade incondicional às concepções tomadas como referência teórica. O que
existe é um movimento intencional de composição – e não de polarização – de ideias e propostas
que podem ser relacionadas em combinações eventualmente ainda não experimentadas. Por
exemplo, o processo de organização dos dados produzidos com base nos depoimentos que recebi
dos colaboradores indicou a necessidade de separá-los em dois universos e tratá-los de modos
distintos: em categorias construídas a partir da leitura do material, o que resultou em uma
teorização de seus dizeres, e em uma narrativa composta com partes dos próprios depoimentos.
Fez sentido que assim fosse, e isso teve relevância maior do que a escolha por um modo apenas
pelo fato de essa ser a conduta mais habitual. O compromisso sempre foi o de encontrar o melhor
encaminhamento possível, tendo em perspectiva a realidade e a deriva da própria pesquisa. Essa é
a abordagem que desenvolvi também no mestrado, que achei por bem chamar desde então de
“pesquisa da pesquisa na pesquisa” e que me parece a mais compatível com o que acredito. A
convicção de que não se cria o novo de joelhos para o estabelecido talvez tenha sido a ideia para
a qual dediquei minha mais radical fidelidade.
A constatação da capacidade de elaboração teórica e de produção de uma reflexão metacognitiva
pelos sujeitos do grupo de colaboradores fez com que, rapidamente, fizesse sentido tomá-los como
referências teóricas, até porque ninguém melhor para teorizar a própria experiência do que os seus
proprietários, quando são capazes disso – e, nesse caso, eles eram, e muito. A proposta de
teorização de seus dizeres, à qual me referi antes, decorreu justo desta constatação. E o resultado
talvez seja o que vocês vão encontrar de mais transgressivo em relação aos procedimentos
convencionais de pesquisa.

8
Isto é, a partir do que defende Mikhail Bakhtin.
9
O que explico neste parágrafo aprendi em aulas de Adail Sobral. Aqui estão algumas referências que utilizo desde
então:
http://pt.slideshare.net/AdailSobral/gneros-discursivos-formas-de-textualizao-e-tipologia
http://pt.slideshare.net/AdailSobral/gneros-y-valoracin-29232217
18

Esse tipo de teorização – que talvez seja inédita em pesquisa, uma vez que não encontrei outras
assim – foi feita a partir da reunião, em blocos temáticos, numa espécie de síntese, do que disseram
os sujeitos que abordaram o mesmo assunto. Entretanto, o resultado desse processo trabalhoso de
edição criou uma circunstância atípica em relação à autoria. Sim, porque as opiniões dispersas dos
sujeitos, em vários depoimentos, se tornaram de fato formulações teóricas explícitas por obra desse
processo de edição; só que o texto final nem pôde ser considerado de autoria coletiva do grupo –
pois não foi elaborado “realmente” com todos, e sim por mim, que a distância organizei seus dizeres
– nem tampouco, do ponto de vista do conteúdo, um texto pessoal meu. E, de imediato, a
problematização dessa circunstância indicava um questionamento inevitável: quem for citar o texto
citará a mim, ou os sujeitos, ou nós todos? Essa interrogação provisória em nenhum momento me
fez desistir da ideia de evidenciar as contribuições dos sujeitos, como formulações teóricas, apenas
por não encontrar alternativa semelhante já experimentada antes em outras pesquisas, o que
permitiria acomodar o resultado sem mais senões. A solução então foi, na abertura da parte de
teorização, indicar que o texto final é uma elaboração de minha autoria, produzida por um
processo de edição de depoimentos dos quais são autores os sujeitos da pesquisa, não citados
nominalmente, mas com as respectivas falas originais transcritas na sequência, acompanhada dos
devidos créditos. E está recomendado, para quem for eventualmente citar algum fragmento, que
esse processo de produção deve ser de algum modo explicado.
Para que vocês entendam melhor, sem precisar se deslocar para a parte final do texto, eis um
exemplo do que estou chamando de teorização:
São muitos os fatores que interferem nos modos de as pessoas se comunicarem por
escrito na internet, como o grau de intimidade entre elas, a posição institucional que
ocupam ou o tipo de diálogo que acontece. Não é, portanto, exatamente o espaço da
interlocução o responsável pelos efeitos e pela qualidade do discurso. O que está em jogo
é o que acontece em nós, com ou sem interlocução. Porque somos nós a alimentar esses
diálogos conforme podemos, de onde estamos, com as ferramentas que temos, da
perspectiva que olhamos. A comunicação online se faz nos marcos da velocidade, porém
isso não significa que seja necessariamente superficial ou banalizadora. Pode ser breve,
profunda e desafiadora – isso dependerá dos sujeitos que interagem. E tudo se realiza
por meio da escrita, que torna viva e “falante” uma comunicação silenciosa.
Vejam... Nessa versão, assim com essa arrumação das ideias e das palavras, o texto é meu, uma vez
que a formulação foi pensada e escrita por mim. Mas o conteúdo foi composto a partir do que
disseram cinco colaboradores (cinco autores, portanto) ao longo de seus depoimentos, e não me
pareceu esteticamente razoável citar cada um em cada trecho recortado e composto com outros
no interior do parágrafo. O texto como tal, no entanto, seria uma impossibilidade não tivessem os
sujeitos dito o que disseram. É quase como se eu dissesse em um breve parágrafo que o homem e
a mulher são seres sociais, ao mesmo tempo produtores e produtos da realidade que vivem,
demasiado humanos em suas reações e escolhas, muitas das quais inconscientes. Não fossem as
contribuições teóricas de Marx, Nietzsche e Freud para a compreensão de quem somos nós afinal,
não seria possível fazer uma afirmação dessa natureza; mas, para fazê-la em duas linhas, nem
sempre será necessário citá-los. Não é? Também por isso acho justo considerar os sujeitos-
colaboradores da pesquisa como referências teóricas, mesmo que nem sempre citados
nominalmente.
Sim, talvez fosse muito mais simples procurar uma citação que se aproximasse do conteúdo desse
parágrafo que transcrevi (e de outros tantos do mesmo tipo) e então desenvolvê-la para ficar
parecida com o que aí está. Mas por quê?! Isso seria, de certo modo, uma traição a mim e aos meus
colaboradores. A mim, em razão do desejo de garantir a voz e a vez dos sujeitos da pesquisa, ainda
que eles nunca tivessem demonstrado qualquer intenção dessa natureza. E a eles, porque foram
19

essas pessoas queridas que me ensinaram boa parte do que hoje sei sobre o que pesquisei. Por que
daria crédito a outros então?!
Os demais autores que fundamentam a pesquisa e a tese, sempre que necessário, são
principalmente estes: António Bolívar, Boaventura de Sousa Santos, Carlos Skliar, José Contreras
Domingo, Dany-Robert Dufour, Denise Najmanovich, Jean D. Clandinin, Jerome Bruner, Jesús
Domingo, Maria Rita Kehl, Michel F. Connelly, Mikail Bakthin, Nilda Alves e Paulo Freire.
Por tudo isso, penso que a leitura deste texto será tanto mais produtiva para vocês – e mais
recompensadora para mim – quanto mais vocês conseguirem manter um olhar de estranhamento
generoso, isto é, desprovido de preconceitos, paciente com o inusitado e solidariamente curioso.
Rosaura Soligo
20

Segunda Correspondência

A HISTÓRIA DESTA HISTÓRIA

Se os mundos ficcionais são tão confortáveis, por que não


tentar ler o mundo real como se fosse uma obra de ficção?
Umberto Eco

Há histórias tão verdadeiras que, às vezes, parece que são


inventadas.
Manoel de Barros

Nossa própria existência não pode ser separada do modo


pelo qual podemos nos dar conta de nós mesmos. É
contando nossas próprias histórias que damos, a nós
mesmos, uma identidade. Reconhecemo-nos, a nós
mesmos, nas histórias que contamos sobre nós mesmos. E
é pequena a diferença se essas histórias são verdadeiras ou
falsas – tanto a ficção como a história verificável nos
proveem de uma identidade.
Paul Ricoeur

[Resenha]

Esta Segunda Correspondência é a narrativa escrita progressivamente a partir da compreensão que


me foi possível sobre os acontecimentos que constituíram a pesquisa, a reflexão a respeito deles e
os fragmentos de história produzidos “em pensamento” como resultado disso tudo. Teve início
como tal no dia 12 de outubro de 2012, mas é composta de episódios anteriores que estavam
arquivados na memória ou já anotados em outras páginas.
A perspectiva metodológica de “pesquisa da pesquisa na pesquisa”, que me inspira desde o
mestrado, e o desafio de praticar de forma intencional uma abordagem narrativa em que os dados
são produzidos também a partir da própria narrativa pressupõem um “narrar no durante” e não
somente após.
De modo geral, não é assim que ocorre nas pesquisas convencionais, quando a preocupação com
a organização das ideias de maneira inteligível para comunicar o que foi feito é uma tarefa que se
impõe ao final do trabalho.
Em uma pesquisa narrativa tal como resolvi experimentar, é inevitável narrar o percurso no
percurso. Por isso, esta Segunda Correspondência é um memorial da pesquisa inteira. Feita a
apresentação inicial na Correspondência anterior – uma declaração de intenções em respeito ao
leitor, que poderia eventualmente não se interessar por uma narrativa situada no lugar dos modos
expositivos de uma tese, ou até mesmo se sentir fustigado diante de uma transgressão inesperada
–, sinto que podemos caminhar juntos agora, vocês e eu, por trilhas que, embora a priori eu não
soubesse muito bem quais, nos levarão a lugares que – acho que isso posso garantir – justificam a
energia empreendida no percurso.
21

Na realidade, por precisar pessoalmente de uma rota ao menos esboçada – pois eu não suportaria,
depois de tudo, chegar a lugar nenhum, se é que isso é possível –, criei um conjunto de títulos que
me pareceram essenciais para orientar a narrativa com a certeza absoluta de que se trataria muito
mais de um amuleto do que de um mapa. Não importa. De qualquer modo me seria útil.
O primeiro conjunto de títulos está transcrito logo mais adiante: o Professor Guilherme, meu
orientador, sugeriu que eu o explicitasse de início, justo para que vocês e eu pudéssemos analisar
o quanto, por força da narrativa, ele foi plástico, transformando-se “no durante”.
Farei isso, mas não sem antes compartilhar dois aprendizados que considero da maior relevância
anunciar desde já.
O primeiro é que, mesmo que venha a se revelar nada mais do que um amuleto, a anotação a priori
de uma rota pretendida, assim como fiz, não é um exercício aleatório de estruturação do discurso
por preciosismo ou por reminiscências positivistas.
Quando mapeei virtualmente o caminho, as escolhas surgiram a partir da reflexão possível sobre a
pesquisa em andamento, dos fragmentos de narrativas construídos “em pensamento”, de uma
aposta no caminho a seguir, tendo em conta que aqui se trata de uma pesquisa acadêmica e não
de uma reflexão metacognitiva escrita apenas ao sabor de desejos e preferências que me movem.
Com isso quero dizer que, se acreditamos que o texto é a realização material de um discurso
produzido ‘na cabeça” (às vezes durante a escrita, às vezes bem antes), um roteiro como este talvez
possa ser considerado uma primeira síntese e não a inauguração de um alicerce.
O outro aprendizado, de certo modo relacionado a esse, é a compreensão (a mim possível
tardiamente) do conceito de gênero segundo a perspectiva de Bakhtin, que eu imaginava até
então entender, mas que de fato não havia compreendido muito bem quando comecei o
doutorado. Por mais que a escolha do texto no qual registramos a pesquisa se distancie do formato
canônico de uma tese, o gênero que estamos a produzir, quando se trata de uma pesquisa de
doutorado, é indiscutivelmente uma tese. Podemos utilizar uma abordagem narrativa de pesquisa,
podemos escrevê-la de modo pouco convencional, em versos até, ou fazer um filme, ou criar um
blog – como pensei a princípio –, mas o que na realidade estamos produzindo nestas circunstâncias,
mesmo que não pareça, é (e só pode ser) uma tese de doutorado. E, como tal, será sempre (ou
ainda) preciso garantir as características centrais desse gênero: a explicitação dos principais
conceitos, do percurso metodológico, da análise dos dados, das lições aprendidas.
Essa compreensão me foi possível pelo diálogo profícuo com o Professor Adail Sobral, também
sujeito-colaborador desta pesquisa. Eu imaginava saber o que era gênero, segundo a perspectiva
bakhtiniana, mas isso de fato só aconteceu quando ele me explicou que, se tomada radicalmente
essa perspectiva, não seria pertinente afirmar, como eu afirmava, que tinha havido uma
transgressão do gênero em minha dissertação de mestrado por ter sido registrada na forma de
cartas, e não segundo os cânones de uma dissertação. Disse-me ele que a transgressão tinha
acontecido quanto à escolha do texto de registro, diferente do convencional, o que não significa
transgressão propriamente do gênero. Por ser requerido pelo contexto em que está inserida a
pesquisa acadêmica, o gênero é “dissertação de mestrado” e, sendo assim, nesse contexto
específico, a carta – embora um gênero também – funciona, na realidade, como um simulacro de
correspondência, uma vez que está descaracterizada de sua função social real.
Essa explicação teórica, ancorada em um exemplo específico da minha própria experiência, foi
potente para reconfigurar a compreensão que eu tinha dos gêneros, tornando opaco – e, portanto,
passível de reflexão – o que para mim era transparente – por isso, não observável. Ou seja, o registro
enunciado, qualquer que seja o tipo, não tem poder suficiente de mudar, por si, a situação
enunciativa que demanda um gênero específico. Naquele momento, a situação enunciativa era a
de produzir uma dissertação para comunicar a realização de uma pesquisa de mestrado e submetê-
22

la a uma banca examinadora; não era uma correspondência de fato, inserida no contexto
comunicativo que dá sentido às cartas trocadas na “vida real”. E a história se repetiu: no doutorado,
a situação enunciativa pressupõe a realização de um gênero – a tese – para comunicar a produção
da pesquisa, e o texto escolhido para o registro foi novamente a carta, por favorecer e potencializar
uma aproximação maior entre mim e vocês.
Confesso que preferia bem mais a zona de conforto do meu (des)entendimento anterior, mas a
tomada de consciência é um fenômeno irreversível – não tem volta. Sigo agora desenganada desse
equívoco, o que lamentavelmente não impossibilita outros que por certo cometerei. E, por lealdade
à escolha metodológica que fiz, é preciso que eu diga que esse des-engano não foi um a priori, mas
uma conquista “no durante” da pesquisa.
Um certo alento, entretanto, veio a seguir. Refletindo comigo a esse respeito, Adail comentou que,
embora não se altere o gênero per si, algumas alterações nele acontecem quanto à posição
enunciativa do autor, mas que ainda não sabia quais seriam precisamente e que essas não dizem
respeito ao texto, mas à “voz autorizada” possível de cada ambiente institucional – afinal, gênero é
algo que se altera, permanecendo relativamente estável.
O que esse comentário me fez crer é que, com o tempo, mesmo sem saber muito bem quais serão,
é de se esperar que as transgressões mais miúdas possam reconfigurar as coisas a tal ponto que as
teses venham a se alterar de modo mais significativo. Se não por outra razão, ao menos para serem
lidas com mais interesse, mais desejo, mais prazer. E, se digo isso, entre outras tantas razões, é por
compartilhar da mesma preocupação com o desinteresse que as teses e dissertações provocam nos
leitores, manifesta por uma das leitoras de minhas “cartas do mestrado” – Hercília Vituriano – que,
em meados de 2014, assim me escreveu, e a quem agradeço as delicadas palavras:

Querida Rosaura,
Nestes dias retomei sua dissertação de mestrado, li novamente o prefácio e o posfácio – coisas de
Rosaura, que a tornam singular. Realmente você foi muito ousada, inteligente, criativa.
A escrita acadêmica não tem cumprido com o objetivo principal de ser formativa, especialmente
para os sujeitos que estão nela presentes na maioria dos casos – professores e alunos, quando se
trata de pesquisa em educação. Fico pensando: quem de fato lê essas produções? Quando
terminar o doutorado, penso em investigar essa questão, pois não há dúvidas que a produção
acadêmica cresceu muitíssimo nos últimos anos. Mas a leitura desse material terá crescido na
mesma proporção?
Por que essa escrita tem de ser tão “dura” para ser reconhecida como válida? Por que não torná-
la compreensível e prazerosa?!
Seus textos, entretanto, nos fazem pensar em possibilidades... Possibilidade de, quem sabe um
dia, a academia deixar de ser o que é, se tornar o que deveria ser. Ler seu texto nos faz pensar
sobre inúmeras questões, uma delas é como é importante estudar e escrever, porém sem perder
a ternura! Você conseguiu pôr a si mesma no texto que é a sua dissertação. Isso pouca gente
consegue fazer, pouca gente tem coragem para tal. Relendo-a vejo que você se apresenta sempre
como alguém que aprendeu com o que fez, e não como alguém que simplesmente conhece.

Vocês podem imaginar o efeito do depoimento de uma leitora como essa em uma autora como
esta, não? Além da alegria pelo presente que é uma crítica assim, o efeito mais estimulante é o
acréscimo de desejo em seguir adiante no mesmo caminho.
23

Arquitetura preliminar do memorial de pesquisa

Eis então o esboço da rota a que me referi há pouco, isto é, a primeira versão dos títulos internos a
esta longa carta que é a Segunda Correspondência, pareado com a versão final, que consta do
Sumário, para evidenciar as mudanças.

Segunda Correspondência Segunda Correspondência


A HISTÓRIA DESTA HISTÓRIA – A HISTÓRIA DESTA HISTÓRIA
[o memorial da pesquisa] [Memorial de pesquisa: Fundamentação, Abordagem
Resenha Metodológica e Dados]
[O que é esta Correspondência e a relação com os memoriais
do final] Resenha
O ponto de partida Arquitetura preliminar do Memorial de pesquisa
[de onde saiu a ideia da pesquisa e o que tem a ver com as O ponto de partida
inquietações da pesquisadora] Quem segue comigo
Quem segue comigo Perfil dos colaboradores
[perfil dos colaboradores e considerações sobre o grupo de
O mapa da Ilha Desconhecida se constrói ao navegar
sujeitos]
A onda que me leva, ela mesma é que me traz Navegando em mar aberto
[considerações sobre a escolha metodológica da investigação Cartografia da Navegação
narrativa] Notas de Abril a Setembro de 2012
O desejo e a deriva Notas de Outubro de 2012
[os primeiros efeitos da deriva: as permanências e mudanças Notas de Maio/Junho de 2013
que o percurso inicial produziu no projeto original]
Notas de Setembro a Dezembro de 2013
Navegando em mar aberto
Notas de Abril a Junho de 2014
[anotações sobre o percurso no percurso]
O mapa da Ilha Desconhecida se constrói ao navegar Notas de Setembro de 2014 a Novembro de 2015
[a fundamentação teórica: conceitos e autores principais] O desejo e a deriva
Em busca dos dados contidos Pesquisa narrativa em três dimensões
[a produção dos dados a partir do universo de informações] Em busca dos dados contidos
Os dados revelam sentidos - O que nos ensinam os sujeitos desta pesquisa – Teorização
[a análise dos dados] - Contribuições assinadas – Textualização
A chegada à Ilha Desconhecida - No meio do caminho tinha um farol – Composição
[os “achados” a partir dos dados e um olhar retrospectivo Os dados revelam sentidos
sobre o percurso]
- Breve narrativa em diálogo com os colaboradores

Com o andamento da pesquisa, comentarei as eventuais mudanças e suas respectivas razões.


Vejam que, sobre a importância de explicitar o caminho das escolhas, Norbert Elias (1994) diz o
seguinte:
É difícil deixar de pensar que, ao se reconstruir o desenvolvimento das soluções posteriores
e mais abrangentes de um problema documentando as diferentes etapas da investigação, o
acesso às etapas posteriores da solução torna-se mais fácil. Facultando-se ao leitor a
possibilidade de refletir sobre as limitações presentes nas soluções anteriores, ele é poupado
da dificuldade de tentar compreender as ideias posteriores como se houvessem surgido do
nada, sem nenhuma reflexão prévia, na cabeça de determinada pessoa (p. 9).
Concordo com o autor. Para que o registro de uma pesquisa seja uma narrativa pedagógica, é
preciso que revele, em vez de esconder, o processo de construção do conhecimento possível de
alcançar.
Por fim, acho importante explicar algo mais sobre a organização das informações desta tese.
24

Quando se inclui o memorial de formação como parte do texto, em geral ele vem no início,
justamente para situar o leitor sobre quem é afinal o pesquisador, autor do trabalho.
Optei por colocá-lo no final, como uma Correspondência Complementar. Isso não significa que seja
minha intenção que vocês leiam a minha história de formação apenas no final ou que eu a
considere tão insignificante que dei a ela um lugar de apêndice, sem muita importância. Não, não
é isso. Trata-se de um relato que eu prezo muitíssimo.
Entretanto, se estivesse no início, poderia deslocar a atenção da história da pesquisa para outras
histórias, o que não me pareceu razoável, até porque o memorial de formação é longo – composto,
inclusive, de duas partes – e escrito em um tom talvez mais literário e mais positivamente
descompromissado de interessar o leitor por tratar-se de uma narrativa autobiográfica, de uma
escrita mais intimista.
Assim caberá a vocês escolher o melhor momento para essa leitura, conforme os próprios critérios,
visto que a Correspondência Complementar é um texto “inteiro”, que não depende dos demais
para ser compreendido.
Outra questão que pode intrigá-los é a razão de uma tese que é inteira um memorial de pesquisa
ter em seguida outro, de formação, separado. Acontece que o memorial da pesquisa é uma
narrativa metacognitiva especificamente sobre a pesquisa e os aprendizados que se constituíram
em seu percurso, e o memorial de formação é uma narrativa metacognitiva sobre aprendizados
que se constituíram – e que me constituíram – ao longo da vida. Se misturados, poderiam ficar
densos demais e, compondo um único relato, poderiam obscurecer o que deve estar claro, em se
tratando de uma tese: o que a pesquisa me ensinou.
Evidentemente não separo a pesquisa da vida, claro que não. Afinal, todo pesquisador mora dentro
de uma pessoa. Mas achei melhor não misturar as pessoalidades que se atravessam no memorial
de formação – e que considero necessárias – com lições que não existiriam não fosse a pesquisa.
Eu, se fosse vocês, alternaria a leitura dos dois textos.
25

[O ponto de partida]

É no ínfimo que eu vejo exuberância.


Manoel de Barros

Penso que a ideia desta pesquisa nasceu principalmente da necessidade de fazer uma escolha
razoável, considerando, ao mesmo tempo, tema de interesse, estilo pessoal e reais condições de
produção. Não é uma escolha que tenha, digamos, muito glamour acadêmico, mas é assim que é.
O fato de manter uma forte dependência em relação à escrita, ter desenvolvido um gosto particular
por processos de produção coletiva e viver uma fase da vida profissional com boa parte do dia – de
segunda a segunda – escrevendo, lendo e me comunicando com pessoas pela internet fez com
que a opção mais “natural” fosse por uma pesquisa sobre a escrita praticada na internet e sua
potencialidade formativa. Isso não significa uma escolha comprometida apenas com interesses
pessoais individuais. A produção de conhecimento válido, útil e relevante foi sempre o que desejei
e valorizei como pesquisadora por entender que é preciso justificar o dinheiro público que
custamos ao participar de um programa de pós-graduação na universidade pública. E espero
nunca trair esse desejo.
O primeiro parágrafo do projeto apresentado, em 2010, para o processo seletivo é este:
A ideia que dá sentido a este projeto é a de pesquisar algo que a mim interessa intimamente: a
escrita. A escrita e a aprendizagem que por meio dela acontece, tanto para quem a produz, quanto
para quem dela produz leituras. A escrita e sua potencialidade formativa, portanto. Melhor: a
experiência autoformativa que acontece a partir da produção escrita. E que (hoje) é favorecida
pela internet e seus múltiplos recursos.
Haveria muitos temas interessantes a pesquisar relacionados aos projetos profissionais dos quais
participo, mas preferi algo que seguramente pudesse ter o poder de me arrastar e não me afastar
– da pesquisa. Isso porque, como dedico um tempo excessivo ao trabalho, não por escolha, mas
por necessidade, seria demasiado enfastiante, no tempo disponível para estudar, me debruçar justo
sobre o que me desgasta pelo excesso. Escolhi me dedicar a alguns temas de interesse que dizem
respeito à questão da pesquisa, a indagações antigas, ao exercício do pensamento metarreflexivo,
à relação conteúdo-forma, a transgressões nas formas de escrever o registro sobre tudo isso.
Em outras palavras, diria que procurei tomar decisões sábias para enredar a mim mesma: pesquisar
algo que me intriga, de uma forma que me instiga, adotar uma forma de registro que subverte os
estabelecidos, trabalhar com um grupo de sujeitos que “pensam comigo”, me desafiar a produzir
algum conhecimento novo e relevante, emergente da pesquisa.
Não fosse assim, com certeza eu fugiria das tarefas de pesquisadora aos sábados e domingos e
feriados e madrugadas, que é o tempo que, em geral, disponho para “fazer doutorado”. A vida não
me presenteou com a possibilidade de estudar e pesquisar em tempo integral, o que imagino ser
uma grande experiência...
Por isso, empenho-me em criar armadilhas para mim mesma, das quais intimamente não consigo
– e não quero – fugir. Tanto que, quando não tenho tempo de me dedicar à pesquisa de outro
modo, dedico-me em pensamento (enquanto caminho, vou ao mercado ou espero um
atendimento médico, por exemplo). Assim, quando chega a hora de fazer o que precisa ser feito,
tenho fragmentos de solução já mais ou menos rascunhados “na cabeça”.
Além dos encaminhamentos mais imediatos, há também as indagações recorrentes, desde que
escrevi o projeto de pesquisa para o processo seletivo, e que, na verdade, vinham de muito antes,
26

pois foram tomando forma na medida em que, me comunicando por escrito com muitas pessoas
pela internet, eu ia me perguntando sobre certos porquês. Estas, por exemplo:
Quais seriam as razões que mobilizam as pessoas – muitas delas que dificilmente escreveriam “no
papel” – a escrever e publicar seus escritos nos espaços da internet?
Por que o facebook se transformou em um fenômeno da proporção que se verifica neste país?
Será que o que se aprende nos processos de navegação pessoal e comunicação interpessoal na
internet contribui de algum modo para a qualidade da prática profissional das pessoas,
especialmente as que são da área da educação?
Seria possível incorporar, às ações de formação dos educadores, propostas ligadas ao uso da
internet que potencializem o desenvolvimento pessoal-profissional e a qualidade do trabalho
pedagógico?
Se uma das crises crônicas do ensino da língua na escola tem sido o fato de os alunos lerem e
escreverem pouco, como é que de repente, por conta da comunicação escrita que acontece pela
internet e pelo celular – uma comunicação que em geral é espontânea e responde principalmente
ao desejo e à necessidade de cada um –, verificamos que nunca se leu e se escreveu tanto? Mais:
que nessas circunstâncias, cada vez mais a leitura e a escrita formam parte de um verdadeiro vício?
Esse tipo de prática “emergente” de leitura e de escrita poderia ser “aproveitado” pela escola em
favor da proficiência no uso da linguagem?
Se o analfabeto funcional é o sujeito que aprendeu o bê-á-bá, mas não é usuário da língua escrita,
não consegue se expressar por escrito, tampouco compreender o que lê, será então preciso mudar
o conceito de analfabetismo funcional? Sim, claro, quem escreve aquela estranha língua nas
mensagens de SMS e nos bate-papos na internet não é um usuário proficiente frente à diversidade
de gêneros, mas é usuário, consegue se comunicar, entende o que lê, expressa-se em resposta às
suas próprias necessidades. E então?
Com respostas para essas questões, seria possível encontrar melhores caminhos para as propostas
de formação profissional e de ensino da língua?
Por aí vão as indagações... E penso que a pesquisa e a tese trazem algumas respostas para algumas
dessas perguntas.
E aqui talvez seja o caso de explicar um pouco melhor algumas “não escolhas”.
Sempre defendi que as pesquisas em educação precisam contribuir de algum modo com a escola
pública. Trabalho há anos em projetos de sistematização e ampliação do conhecimento sobre a
docência e, além disso, sou pesquisadora do GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
Continuada –, espaço de construção de um pensamento consistente sobre a escola e a qualidade
que ela deve ter.
Mesmo assim, minha pesquisa não tem como perspectiva principal incidir de forma direta na prática
pedagógica, pois a questão central, proposta desde o projeto apresentado no processo seletivo e
que foi se legitimando no percurso do trabalho, não diz respeito propriamente à docência. Isso não
significa, entretanto, que haja qualquer tipo de descompromisso frente à necessidade – que
reconheço e defendo – de toda pesquisa acadêmica trazer contribuições relevantes que justifiquem
o gasto de dinheiro público que representa.
Talvez o tempo longo, de mais de 20 anos, trabalhando com projetos de formação de professores,
reorientação curricular e produção de material didático, cuja pretensão sempre foi de subsidiar a
prática pedagógica, acabou produzindo uma certa des-culpa pelo fato de a pesquisa não ter esse
propósito em primeiro plano.
27

Claro que nunca esteve fora de perspectiva uma possível contribuição à docência: por exemplo, se
os dados indicassem que o uso da escrita em situações de comunicação pública na internet
contribui para a formação pessoal e acadêmica de alunos e professores (e todas as pessoas), para
que fiquem discursivamente mais capazes, intelectualmente mais fortalecidos e empoderados
como sujeitos, autores, escritores. Mas isso eu só soube no final.
O compromisso principal da pesquisa era trazer algum conhecimento novo sobre a potência da
escrita em processos de comunicação online e sobre metodologias de pesquisa qualitativa,
especialmente em relação ao que tenho defendido como estética da coerência conteúdo-forma-
registro.
Esse tipo de estética diz respeito, segundo penso, à necessária afinação – que poderia também ser
chamada de articulação orgânica – entre a forma de registro da pesquisa, o tema, os objetivos, a
fundamentação teórica, o percurso metodológico e o que mais houver a considerar. Assim, em
uma investigação sobre a eficácia de um determinado medicamento no tratamento de doenças
degenerativas, por exemplo, o mais adequado será uma abordagem quantitativa, com amostra
ampla e metodologias pautadas em comparações estatísticas, escrita na forma de um registro
sucinto destinado à comunidade científica e à indústria farmacêutica. Mas, em sendo um trabalho
no campo das ciências humanas, com uma perspectiva metodológica narrativa que pressupõe um
processo de “pesquisa da pesquisa na pesquisa”, entendo que as formas mais pertinentes de
registro são as que comportam uma narrativa pedagógica desse processo e permitam compartilhar
a reflexão metacognitiva possível durante o percurso.
Penso que podem ser boas contribuições, estas que me propus a produzir, não por subsidiarem
diretamente a docência, mas porque podem agregar algum conhecimento novo ao que hoje se
sabe a respeito da interlocução pela escrita e da abordagem qualitativa nas ciências humanas.
Mas, retornando às origens da questão da pesquisa e ao fato de não serem assim tão
espetaculares...
No tempo do mestrado, a história era bem mais envolvente. A narrativa do percurso metodológico
começa com ela. Sob o título “Um caso antigo”, compartilhei com os leitores a história da minha
questão, como passei anos tentando compreendê-la e como ela foi se redimensionando ao longo
do tempo.
Contei que, quando eu cursava a faculdade de Psicologia, nos idos anos 1970 do século passado,
li um texto que me arrebatou completamente10. Relatava um experimento realizado pelo psicólogo
David L. Rosenhan e outras sete pessoas que, não sendo portadores de nenhum tipo de
psicopatologia, apresentaram-se em diferentes hospitais psiquiátricos dos Estados Unidos com a
mesma queixa de ouvir vozes. Foram admitidos e tratados como doentes mentais, mesmo tendo
apresentado o tempo todo informações verdadeiras sobre a vida pessoal. A única mentira
combinada era a de que ouviam vozes, que foi suficiente para determinar o tratamento recebido,
a despeito de, no mais, apresentarem comportamento normal e, nas entrevistas de anamnese,
terem relatado sua vida comum de pessoas sãs.
Após descrever com mais detalhes o experimento, que se tornou uma grande experiência para
todos os participantes, comentei que, olhando o passado daqui, imaginava ter terminado a leitura
desse artigo com aquela sensação estranha que a consciência fulminante produz em nossos
sentidos. Talvez tenha pensado “Ainda vou pesquisar essa questão e escrever sobre isso”.

O nome do artigo original em inglês, publicado pela Revista Science em 1973, é On being sane in insane places (Ser são
10

em lugares insanos), publicado pela Revista Science em 1973.


28

Em seguida conto que, já como professora da escola pública, conheci outro experimento, o que
ficou conhecido como “profecia autorrealizadora”. Aquele, da década de 196011, em que os
pesquisadores Robert Rosenthal e Leonore Jacobson fizeram testes de inteligência em todos os
alunos de uma escola norte-americana e depois, aleatoriamente, selecionaram 20% deles,
informando aos respectivos professores tratar-se dos que haviam tido o melhor desempenho no
teste. Resultado: no final do ano letivo, os alunos considerados mais inteligentes apresentaram
desempenho significativamente superior aos demais.
E, por fim, conto que em seguida caiu em minhas mãos um livro de literatura infantil chamado ‘Era
urso?’, de Esdras do Nascimento, adaptação do texto original de Frank Tashlin, cuja história é curta,
com um enredo aparentemente simples, mas profunda, emocionante, maravilhosa. É a história de
um urso que hiberna na floresta, acorda depois de meses no pátio de uma fábrica construída
durante o inverno e, por mais que afirme ser um urso, é tratado como operário preguiçoso que não
quer trabalhar – um conto que me encantou pela delicadeza e pela violência, por ser uma metáfora
da dominação.
Como veem, eu tinha antes uma história mais poderosa para encantar os leitores das “cartas do
mestrado”...
Bem, de qualquer modo, andei testando a relevância da proposta desta pesquisa em várias
ocasiões, por via das dúvidas. Primeiro, quando, antes do processo seletivo, o projeto teve uma
versão preliminar enviada para várias pessoas analisarem e me enviarem críticas e sugestões – é
assim que faço sempre, pelo fato de acreditar ser esse o melhor modo de aprender com o outro
“no durante”. Todos disseram que a pesquisa poderia trazer contribuições importantes e sugeriram
acréscimos que enriqueceram o projeto original. Depois, o projeto foi discutido no GEPEC em abril
de 2012, e pude então ouvir a opinião favorável do Professor Rogério Adolfo de Moura, da
Faculdade de Educação da Unicamp, a quem coube a leitura crítica, e de outros colegas do grupo.
Nessa ocasião, saí da discussão bastante animada com tudo o que foi dito e proposto. Além disso,
em qualquer oportunidade, converso sobre as ideias que dizem respeito à pesquisa, pois gosto
sempre de saber o que pensam os outros para me orientar melhor.
Assim fui me convencendo de que teria razões suficientes para me orgulhar dos resultados deste
trabalho. Se, como dizem, a internet está produzindo uma revolução cultural que vai muito além
das formas de comunicação e acesso à informação, aprofundar a compreensão sobre tipos de
experiências que ocorrem nesses processos, a partir da perspectiva de um grupo de usuários
capazes de exercitar uma reflexão metacognitiva, certamente trará algum conhecimento útil que
ilumine nossas possibilidades de entender melhor o mundo em que vivemos e o que dele nos
interessa saber.

11
ROSENTHAL, R. e JACOBSON, L., ‘Profecias auto-realizadoras em sala de aula: expectativas dos professores como
determinantes não intencionais da competência intelectual’, In: PATTO, Maria Helena.S. (org.) Introdução à Psicologia
escolar. São Paulo: T.A. Queiróz, 1982.
29

[Quem segue comigo]


dentro da minha cabeça
mora uma penca de gente
... que fala pela minha boca
... penca de gente louca!
Jean e Paulo Garfunkel e Prata

Adail Sobral Marcos A Gonçalves


linguagem/docência no ensino superior educação matemática
Adriana Stella Pierini Margareth Buzinaro
educação/formação de professores educação/formação de professores
Carla Clauber da Silva Patrícia Yumi
educação/formação de professores docência no ensino fundamental
Cristina Campos Paulo Masson
educação e história arquitetura/arte/TI
Dalmo Ribas Renata Barrichelo Cunha
psicologia educação/docência no ensino superior
Ester Broner Rosana Dutoit
educação/formação de professores educação/formação de professores
Gloria Cunha Selma Rocha
música e educação história e política
Hélida Portolani Tamara Abrão Pina Lopretti
psicologia educação/alfabetização
Ingrid Lotfi Vanessa Simas
TI docência no ensino fundamental
José Paulo Mendes da Silva Walter Takemoto
TI e educação educação e psicologia
Liana Arrais Serodio Rosaura Soligo
música e educação educação/formação de professores
Maíra Libertad Guilherme do Val Toledo Prado
saúde, formação profissional e gestão educação/linguagem/docência no ensino superio

Essa é a epígrafe mais original que já fiz, preciso dizer.


30

Sim! Isso tudo, na página anterior, é uma epígrafe. E esses são os sujeitos e colaboradores principais
da pesquisa, nomeados pela ordem das fotos e com a indicação da respectiva área de atuação. São
companheiros generosos que se dispuseram a pensar comigo algumas respostas para as minhas
indagações. São principalmente deles os textos tomados como fontes de dados. E a eles agradeço
com reverência, pois este trabalho não seria possível – pelo menos não assim – se não tivessem
seguindo comigo.
São 24 sujeitos12, inclusive meu orientador e eu, sendo que evidentemente temos, nós dois, tarefas
adicionais e outras responsabilidades: eu, por ser a pesquisadora, e o Professor Guilherme, por ser
o meu guia. Também Adail Sobral teve duplo papel: além de membro do grupo, é um autor
reconhecido, com contribuições teóricas importantes para a pesquisa e para a tese.
O critério de escolha deste grupo foi a possibilidade de refletir por escrito sobre a condição de
usuário da escrita na internet e sobre o próprio processo de aprendizagem nesse contexto. E a
inclusão da pesquisadora, do orientador e de um autor de referência foi intencional: a ideia era, de
algum modo, problematizar o mito da implicação pessoal, do sujeito encarnado na pesquisa, da
neutralidade científica. E mostrar que, a depender do tema, essa perspectiva de sujeito encarnado,
que trato conceitualmente mais adiante, não causa nenhum prejuízo; muito pelo contrário.
Todos os participantes eram pessoas que eu já conhecia de algum modo no início da pesquisa,
razão de identificá-los como sujeitos-colaboradores mediante o critério de composição do grupo.
Apenas Adail e Ingrid eram conhecidos a distância – Adail, conhecido como linguista e estudioso
da linguagem, membro de uma comunidade virtual da qual participo passivamente (Comunidade
Virtual da Linguagem), e Ingrid, conhecida por ser membro de várias comunidades temáticas que
acompanho não muito de perto. Hoje conheço todos “pessoalmente”.
Alguns são companheiros do GEPEC – o Grupo de Pesquisa de que faço parte desde 2003 – e
amigos pessoais, uns mais íntimos, outros menos. É o caso de Adriana, Carla, Cristina, Glória, Liana,
Tamara e Vanessa. Outros foram e/ou são companheiros de trabalho em vários projetos: Walter,
Rosana, Margareth, Ester e Marcos. Outros ainda, foram companheiros da universidade, nos
tempos da graduação, reencontrados há poucos anos, depois de três décadas: Masson e Hélida.
Há amigos com quem, em um caso ou outro, compartilhei projetos acadêmicos ou profissionais:
Dalmo, José Paulo, Renata, Selma e Patrícia. E há a minha filha mais velha, Maíra, mediadora de
comunidades virtuais com milhares de participantes, uma das pessoas com maior competência de
pesquisadora que conheço e que, desde os tempos do mestrado, dialoga comigo sobre as
invenções possivelmente aceitáveis no reino da academia.
Apresento, logo mais, uma breve síntese do perfil do grupo, a partir do que foi dito por cada um
como resposta ao roteiro abaixo, organizado à moda dos cadernos de perguntas de antigamente.

À moda dos antigos cadernos de perguntas da adolescência

PERFIL PESSOAL

Meu nome:
Minha formação acadêmica:
Meu/s trabalho/s:
Atividade profissional de que mais gosto:
Passatempo preferido hoje em dia:
Alguns filmes que gostei muito de assistir:

12
Dos participantes do grupo inicial, apenas uma pessoa não permaneceu, porque a falta de resposta às mensagens me fez
supor que ela não desejava mais participar e estava sem jeito de me dizer.
31

Alguns livros que gostei muito de ler:


Viagens que mais gostei de fazer:
As experiências emocionais mais significativas para mim:
Se eu precisasse escolher uma única coisa para fazer no tempo livre, seria:
O que mais importa na vida:
Pessoas com quem aprendi muito:
Sobre a aprendizagem, penso o seguinte:
Sobre a amizade, acho isso:
E sobre o amor, penso assim:
Coisas que quero fazer antes de morrer:

PERFIL DE USUÁRIO DA INTERNET

Uso computador desde ...


Uso internet desde ...
Modalidades em que tenho participação ativa na net ( orkut, twitter, facebook ou outro similar; blog
pessoal; comunidade virtual; comunicação por e-mail; dispositivos de pesquisa, youtube etc):
Fico na internet ... horas, em média, por semana
Desse tempo, passo lendo ... horas, em média
Desse tempo, passo escrevendo ... horas, em média
O pior da internet: ...
O melhor da internet: ...
As melhores experiências que a internet me trouxe e traz: ...
O que só posso fazer porque sou usuário da internet: ...
A comunicação escrita pela internet tem estas vantagens e desvantagens: ...
O que tenho aprendido quando me comunico com as pessoas por escrito pela internet e não
poderia aprender se não fosse assim: ...
Quero ainda dizer que ...

Pode talvez parecer um pouco pueril demais uma proposta de perfil pessoal assim, mas o fato é
que, como o imaginário social em geral está atravessado por uma ideia mitificada do que vem a ser
uma pesquisa de doutorado, considerada como algo muito complexo e acima da capacidade das
pessoas comuns, pareceu-me prudente simplificar as coisas e criar uma certa leveza para não
afugentar ninguém, já que o grupo é composto também de participantes que não transitam pelas
trilhas acadêmicas. Inclusive enviei o meu próprio perfil preenchido para demonstrar o quanto era
simples e divertido de fazer. Deu certo: com algumas explicações repetidas e com os prazos de
entrega estendidos, depois de um tempo recebi todos os perfis preenchidos.
Bem, aqui eu poderia fazer uma tabela com todas as informações dos sujeitos do grupo, mas não
farei. Não me parece necessário. Considerem que, na epígrafe desta parte, as fotos deles estão
dispostas horizontalmente conforme a ordem dos nomes listados em seguida a elas e que a
formação/atuação de cada um está indicada também. Considerem também que, em 2015, a idade
do pessoal variava entre vinte e poucos anos e aproximadamente sessenta, sendo os mais jovens
da geração que só conhece por hipótese o que seria a vida sem a internet, e os mais velhos com
níveis diferenciados de proficiência como usuários de computadores e de internet: desde
“iniciados” em 2008 até os “pioneiros” dos anos 80 (1982/84) e que acompanharam todo o
32

processo de comunicação a distância que começou ainda antes do Netscape, nos tempos de BBS13.
Há também variação significativa nos níveis de “ligados na internet” e de participação nas redes
sociais, embora, ao final da pesquisa, todos possuíssem páginas próprias no facebook – no início,
uma pessoa do grupo não possuía e nem pretendia ter, mas, com o tempo, isso mudou.
Nem todos se conheciam até a formação do grupo e não houve nenhum encontro presencial
durante o percurso, Assim, os que não se conheciam pessoalmente, passaram a se conhecer
“somente” via comunicação online.
No mais, para vocês conhecerem um pouco sobre quem foram (e são!) esses meus companheiros,
penso que estes fragmentos são reveladores, pois dizem muito dos valores que eles têm.

AS EXPERIÊNCIAS EMOCIONAIS MAIS SIGNIFICATIVAS

Adail
A entrega amorosa; as boas amizades; reconciliações depois de conflitos; ver gente feliz, tendo ou não
participado da causa da felicidade; frustrações que trazem luz.
Adriana
É curioso que não me recordo sobre meu primeiro dia de aula, quando criança, mas me lembro de
uma experiência marcante, na antiga 6ª série, quando cheguei numa “nova” escola, transferida da
escola anterior. As aulas já tinham se iniciado há alguns dias, e fui levada a uma sala onde todos estavam
uniformizados e eu não. Lembro-me da roupa que usava, dos olhares curiosos que se dirigiam a mim,
da dor que sentia pela timidez, pela dificuldade que tinha em me inserir num grupo... O meu primeiro
estágio de regência no curso de magistério, aos 17 anos, numa segunda série. A aula seria sobre aves,
planejei texto sobre pássaros, problemas matemáticos (bobooocas...) sobre pássaros e, obviamente,
levei um canário de meu pai numa gaiola que foi e voltou aos balanços no transporte coletivo, naquele
dia... Minha primeira experiência como professora alfabetizadora numa escola particular em
Campinas. Tinha completado 18 anos e assumido uma classe de alunos que não tinham sido
alfabetizados na antiga pré-escola... A cerimônia de meu casamento foi um ritual marcante, a viagem
de lua de mel mais ainda, não exatamente pela potência de romantismo ou intimidade que
normalmente a caracteriza, mas, sobretudo pela falta de meus pais, pela distância de minha família...
As vezes em que engravidei... As vezes em que perdi os bebês que esperava... O momento que se
estendeu entre a notícia de que minha filha havia nascido e minha volta com ela para casa... O
momento em que vi meu filho pela primeira vez... O término de meu casamento e toda a descoberta
sobre uma nova mulher que se iniciou a partir de então... Dois relacionamentos amorosos, após o
divórcio, seu início e fim... Rever alguns colegas da adolescência e me enxergar nesse reencontro.
Carla
O nascimento de minhas filhas.
Cris
As experiências que me marcam e sempre deixam uma lembrança feliz. Na biblioteca vivi muitas delas,
também na sala de aula, quando resolvo sair de cena e me dedicar a ouvir as crianças e seus
questionamentos uns com os outros. A Defesa do Mestrado, a entrada no doutorado, alguns
momentos únicos e que não se repetirão nunca mais, vividos com a família e com amigos.

13
Netscape foi o primeiro navegador respeitável antes do Explorer, da Microsoft, e bem antes do Google Chrome. E BBS
era uma espécie de rede local onde se discava um número com o modem do computador pela linha telefônica e, depois
de um tempo, era então possível entrar num chat para bater papo com quem lá estivesse.
33

Dalmo
Nascimento dos filhos, morte de parentes e amigos, algumas situações da militância política,
nascimento dos netos, meu casamento com Ester.
Ester
Ser mãe, viver perdas, aprender com elas e seguir adiante. Viajar por longo tempo.
Gloria
Ser mãe, o conjunto da obra; algumas apresentações com a orquestra sinfônica e tocar no carnaval do
Recife pela primeira vez com 56 anos, depois de uma tendinite braba e de ter ficado quatro anos sem
tocar, trabalhando como gestora: eu posso, eu tenho a força!!!!! ainda...
Guilherme
Ao longo da vida, muitas experiências me marcaram, tanto aquelas relativas à morte (de meus avós
paternos, Inês e Roscio, muito queridos, de meu pai, Luiz Eduardo, amado, de minha amiga Mônica)
como aquelas relativas à vida (minha iniciação na Kabalah, meu reencontro com a Luciane, o
nascimento da Manuela e Felipe, minha defesa de mestrado). Tantas outras...
Helida
O parto, sem dúvidas!
Ingrid
O parto domiciliar da Serena.
José Paulo
Estranhamente não tenho nada de destaque e, ao mesmo tempo, tantos pequenos momentos que
foram/são marcantes.
Liana
Foram tantas. A última: estar num país sem conhecer ninguém, uma existência de fantasma. Foi a
maior emoção da minha vida. Não a melhor.
Maíra
Não consigo pensar em nenhuma especificamente.
Margareth
Dentre as positivas, com certeza, a maternidade, nascimento e primeiros anos de vida de meus filhos,
suas descobertas, minhas descobertas... Depois, mais adiante, a saída deles para o mundo, suas
descobertas, minhas descobertas [em especial ver minha filha, Clarissa, casando-se, depois, grávida...
assistindo mudanças em seu corpo e alma, gerando a maior riqueza de sua vida até então; aguardar
ansiosa o nascimento do neto, Augusto, e vê-lo e tê-lo ... coisa mais rica; e a mudança do filho pra
outro estado, com sua namorada cearense, depois de cinco anos de namoro pela internet... ]. Já as
negativas, aquelas relacionadas às perdas do pai e irmãos, todas em situação muito difícil de
encarar. Tudo isso misturado com fantasmas de um pequeno tumor no cérebro, ameaçando minha
saúde física e emocional em extensão e profundidade. Mais a descoberta de um homem companheiro,
mais que em todos os mais de 30 que estávamos juntos.
Masson
Saber que “realmente” sou filho da minha mãe – uma dicotomia entre ter ganho um presente da vida
e ter uma responsabilidade com ela. Ter trabalhado ao lado da Luiza Erundina na prefeitura de São
Paulo. Ter visto a chegada do homem na lua. Enxergar e tentar entender a pessoa que minha filha se
34

tornou. Ter ficado amigo do meu pai. Ler as poesias do meu avô. Ler uma carta psicografada pela
minha mãe. Saber que posso ser feliz com o que sou e tenho.
Paty Yumi
Quando meu olhar encontra o olhar de quem eu quero, abrindo-se os dois em sorrisos. Quando, logo
cedo, respiro o primeiro ar do dia enquanto o sol começa a acordar. Quando me sinto útil de alguma
forma para quem gosto muito ou para desconhecidos.
Rosana
O nascimento dos meus dois sobrinhos Guilherme e Ana Clara; a operação do coração do meu
sobrinho aos seis anos; a morte da Solange; meu trabalho do projeto Asinhas da Florestania Infantil,
conviver com meu cachorro Quim.
Renata
O nascimento dos meus filhos; a viagem com a família completa para comemorar 40 anos de
casamento de meus pais; as perdas de pessoas muito queridas (meus avós, um primo, amigos...)
Rosaura
O parto das minhas filhas e o êxtase que, sob certas condições subjetivas, o sexo produz.
Vanessa
Subir no palco para dançar, sendo que as mais significativas foram a primeira vez que apresentei uma
coreografia de minha autoria com um grupo que tive e quando apresentamos o show que produzimos.
Walter
Ver minhas filhas nascendo, a morte do meu pai.

Deu para ter uma bonita ideia, não?


Então, sem comentários, passo agora aos demais colaboradores que surgiram pelas curvas do
caminho.

Os outros colaboradores
Mais adiante, novos colaboradores se juntaram ao grupo original de forma imprevista, pouco
convencional e muito amorosa.
Foi assim:
Em dezembro de 2010, inventei um projeto coletivo no facebook, chamado Des|Amorosas, que
reúne microcontos de amor e desamor. A intenção principal era desmitificar a ideia predominante
de que só escreve histórias quem “nasce com o dom”, incentivar a escrita de histórias de amor por
toda pessoa que assim desejasse e demonstrar que não é preciso escrever um romance extenso
para narrar uma experiência que desperte interesse e emocione o leitor.
A proposta original era se desafiar a escrever um microconto de amor em no máximo 420
caracteres, extensão limite dos textos postados no status do facebook à época, mas isso logo
mudou, não apenas porque essa regra do facebook deixou de existir, mas porque a realidade e o
protagonismo dos autores arrastaram o projeto para onde ele deveria mesmo ir: com o tempo, os
textos passaram a falar de amores de todo tipo, não apenas de casal, e o formato original se
diversificou no gênero, na linguagem, na extensão do escrito, no estilo pessoal, no tempo da
narrativa, dentre outros aspectos.
35

Não sem empenho – e por vezes alguma insistência – de minha parte, logo o projeto se tornou um
grande sucesso, e criei então uma página específica para aninhar as histórias:
www.facebook.com/DesAmorosas
Em maio de 2014, passados três anos e meio do início do projeto, quando escrevi esta explicação
(pois até então estava aqui indicado apenas o título desta parte) havia quase 100 autores e 715
textos, sendo este o último publicado naquele momento14:

Des|Amorosa 715
Tinha uns pendores estranhos. Abria portas e janelas pelo meio da noite e as trancava, às vezes,
com o sol a pino. E nem era por causa de ventania. Nem sabia bem direito por que era. Também
quando mirava o mar, nem sempre o que via era mar e, às vezes, quando mergulhava na escuridão
da noite, vinham ondas espumadas verdeazular seu olho triste. E fazia buuu para o espelho toda
semana, de sexta no fim da tarde. Era assim enfim. Hora ou outra falava com seus botões, achava
pulgas atrás da orelha, tinha dores de cotovelo, caía quase de joelhos, dava tiros no próprio pé e
olhava para o umbigo com saudade de sua primeira morada. Viveu desse jeitinho até os cento e
cinco anos, sempre com um anel de doce no dedo e um girassol aninhado em seu cabelo de lua
cheia. [Rosaura Soligo]
A opinião geral, minha própria e dos leitores que deixam comentários nos posts, é que as histórias
atraem porque têm sempre algo familiar à própria experiência. Não raro, me escrevem dizendo que
“Aquela parece minha!”. E a experiência de escrever atrai porque as histórias já publicadas revelam
que não há nenhuma complexidade na escrita, a não ser o fato de que é o relato de algo pessoal
(ou ouvido dos outros) e porque não há regra que impeça a escrita. Tanto que, por um
determinando momento, em 2012, houve um processo muito potente de produção de histórias
em parceria, muitas delas on line, no ato. Este é um dos exemplos de texto criado em parceria:
Des|Amorosa 274
E eis que, de um ciclo forjado na dor, que encerra um mundo em que parecia só haver fruição,
renasce, a pouco e pouco, e cercado pelo temor, nada mais do que o inédito. Veio em ondas
leves pela fresta invisível da invisível janela que, a pouco e pouco, e inesperadamente, foi se
escancarando dentro dele. Carranca do véio Chico em estranhos mares
verdesazuladosesmeraldinos: deslizamentos marísticos. Sonda o inesperado e se faz um vislumbre
do inaudito. O que fiz do que fizeram de mim? - exclama, sartriano eco de arcanas dúvidas ad
hoc mas hic et nunc... De mim me fiz e fizeram ave de tempestade, herói do mau tempo – se diz
de repente. Mas não! Não é esse o destino unicamente. O inaudito, avesso doce que ele pressente
e ela jura existir, se esconde bem ali sob seu passo, só que em outro sentido. Sentidos em
revolução, fuga em massa de fixações de sentidos. Ele jura existir o que ela pressente, o já-dito,
mas este apenas percorre labirintos de apreensão em que se colhem orvalhos do avesso doce do
amargo odor de tempestades. Ela segue viagem, mas volta no mesmo instante. Não se pode
penetrar o futuro no desamparo. Toma-lhe os pés um a um e os põe em água de mar para adoçar
seus passos e aguçar seus sentidos. Esse cuidado lhe faz crescer asas nos pés, e ele, indo ao
encontro dela, a envolve em suaves afagos que lembram épocas outras em que o prazer, de tão
garantido, era-lhe invisível. Ela o contempla em verdesolhos e vê num lampejo o que ali sempre
estivera: amalgamados a um só tempo, em estado ainda bruto, movimento, vibração e perfume
de um grávido alvorecer. Um ciclone se apresenta de súbito, varrendo o desamparo que travava
a porta do futuro, impedindo a passagem, e abre-se assim um horizonte por ser. Lambendo as
feridas de batalhas passadas, eles se põem a caminhar, sem certezas senão a de que o que agora
os move é o que até então lhes faltava. [Adail Sobral e Rosaura Soligo]

14
No momento em que esta tese foi finalizada, tendo o projeto cinco anos, já eram 855 textos e 103 autores.
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Publicado em https://www.facebook.com/notes/des-amorosas/desamorosa-274-adail-sobral-e-
rosaura-soligo/364525416977770
E este é o registro da sequência de fragmentos que foram produzidos na tarde de 18 de novembro
de 2012, das 12:19 às 18:57:
Adail: E eis que, de um ciclo forjado na dor, que encerra um mundo em que parecia só haver
fruição, renasce, a pouco e pouco [sempre quis escrever isso! rs rs], cercado pelo temor…
Rosaura: nada mais do que o inédito. Veio em ondas leves pela fresta invisível da invisível janela
que, a pouco e pouco, e inesperadamente, foi se escancarando dentro dele
Adail: Carranca do véio Chico em estranhos mares verdesazuladosesmeraldinos: deslizamentos
marísticos. Sonda o inesperado e se faz um vislumbre do inaudito. O que fiz do que fizeram de
mim? - exclama, sartriano eco de arcanas dúvidas ad hoc mas hic et nunc...
Rosaura: De mim me fiz e fizeram ave de tempestade, herói do mau tempo – se diz de repente.
Mas não! Não é esse o destino unicamente. O inaudito, avesso doce que ele pressente e ela jura
existir, se esconde bem ali sob seu passo só que em outro sentido. ......
Adail: Sentidos em revolução, fuga em massa de fixações de sentidos. Ele jura existir o que ela
pressente, o já-dito, mas este apenas percorre labirintos de apreensão em que se colhem orvalhos
do avesso doce do amargo odor de tempestades. Ela segue viagem...
Rosaura: , mas volta no mesmo instante. Não se pode penetrar o futuro no desamparo. Toma-
lhe os pés um a um e os põe em água de mar para adoçar seus passos e aguçar seus sentidos.
Adail: Esse cuidado lhe faz crescer asas nos pés, e ele, indo ao encontro dela, a envolve em suaves
afagos que lembram épocas outras em que o prazer, de tão garantido, era-lhe invisível. Ela o
contempla em verdesolhos e
Rosaura: vê num lampejo o que ali sempre estivera: amalgamados a um só tempo, em estado
ainda bruto, movimento, vibração e perfume de um grávido alvorecer.
Adail: Um ciclone se apresenta de súbito, varrendo o desamparo que travava a porta do futuro,
impedindo a passagem, e abre-se assim um horizonte por ser. Lambendo as feridas de batalhas
passadas, eles se põem a caminhar, sem certezas senão
Rosaura: a de que o que agora os move é o que até então lhes faltava.
O exemplo poderia ser de outras histórias, pois nos meses finais de 2012 foram várias produções
desse tipo, em parceria de até quatro autores, mas esse texto é o único que conta com um registro
completo dos fragmentos criados em sucessão, pois resolvemos fazer a publicação do making of
nesta nota:
https://www.facebook.com/notes/rosaura-soligo/the-making-of-desamorosas-274-
produ%C3%A7%C3%A3o-em-parceria/445503425486284
São estes os autores das Des|Amorosas que se tornaram colaboradores da pesquisa, porque
escreveram, a meu pedido, sobre sua experiência de leituraescrita desses textos, sendo os sete
primeiros também colaboradores do grupo original:
Adail Sobral | Adriana Stella Pierini | Cristina Campos | Hélida Portolani | Margareth Buzinaro |
Patrícia Fujisawa | Vanessa Simas | Adriana Alves | Ana Sixx | Araguaí Garcia | Edenilde Bezerra |
Elisabete Semeghini | Heloísa Dias Martins Proença | Jozelia Regina Segabinazzi | Kathia Diniz |
Maria Angela Pinheiro | Maria Teresa Esteban | Paula Maria Scarlatti | Sílvia Palaia | Tânia Villarroel
| Zilda Pavão.
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[O mapa da Ilha Desconhecida se constrói ao navegar]

Sabedoria pode ser que seja


ser mais estudado em gente
do que em livros.
Manoel de Barros

Há sempre algo de traição


na comunicação
de um conhecimento.
Nietzsche

Por princípio, cabem aqui três confissões.


Uma é que esta foi uma parte difícil da travessia... O propósito é apresentar a vocês, do modo mais
organizado e sucinto possível, a fundamentação teórica da pesquisa, os conceitos, a abordagem,
os autores, enfim, quais os sentidos que me governam como pesquisadora e que orientam a
navegação. E a dificuldade reside na construção desse modo organizado e sucinto. Porque uma
coisa é ter para si os fundamentos e tomá-los de referência – afinal, toda prática, qualquer que seja,
não só de pesquisa, tem no comando um autor que, mesmo sem saber claramente, é portador de
teorias, ainda que por vezes muito pessoais. Então, em geral sabemos para nós próprios – ora mais,
ora menos, ora mais ou menos – por que fazemos o que fazemos. Mas outra coisa é evidenciar ao
outro, o que é sempre um desafio, especialmente em uma pesquisa cujo registro tem a vocação de
ser uma narrativa pedagógica, pois aí não cabe menos e nem mais ou menos.
Outra confissão é que esta parte do texto foi finalizada quase que junto com o registro da tese, na
versão apresentada para a banca de qualificação, e estava inserida após a explicitação do percurso
metodológico. Mas foi deslocada para este ponto por consideração a vocês: não seria justo que
viessem a conhecer os fundamentos apenas “lá adiante”. Isso significa que, diferente do que ocorre
numa narrativa convencional, quando é quase impossível “tirar do lugar” o que foi produzido a
certa altura da trama, nesse caso não só pôde como se revelou necessário – não sem ajustes, é
claro, porque, em se tratando do texto escrito, não há como deslocar trechos impunemente. Há de
se criar começos – como este – ou links ou coisa que o valha. Durante a leitura, portanto, tenham
em conta que o texto foi projetado para ocupar um lugar no final da tese e foi escrito já com a
pesquisa quase encerrada; por isso, não se assemelha muito aos capítulos teóricos convencionais
que habitualmente ocupam um lugar inicial nas teses.
Não que eu tenha entrado na pesquisa virgem de fundamentos, claro que não. Com mais de
cinquenta anos de idade e trinta e tantos de trabalho, graduação em pedagogia e em psicologia,
mestrado em educação, militância política no movimento estudantil, no partido, no sindicato e em
causas sociais, leituras em todas essas áreas e um esforço de postura investigativa diante da vida,
nem mesmo que eu quisesse seria possível.
Diz Christov (1998) que toda ação humana é pontuada por finalidades, intenções, imaginação,
desejos e vontades e que essas manifestações têm relação com as teorias. Destaca que “teoria e
prática são diferentes, mas andam juntas: às vezes de forma despercebida, às vezes de forma
refletida” (p.31-33). Entre a teoria de um autor que queremos tomar como referência e a prática ou
a realidade que pretendemos com ela fundamentar existem as nossas teorias. E essas são
construídas a partir daquelas que nos fazem sentido, de um conjunto de autores que tomamos
como nossos outros significativos, como interlocutores de certo modo – ainda que o diálogo
concretamente não aconteça porque eles, de fato, não falam conosco. A depender do tipo de
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trânsito que praticamos pelas teorias ao longo da vida, algumas referências se transformam em
matrizes de análise: são pressupostos com os quais “entramos” nas novas realidades que para nós
se apresentam. É o caso de uma pesquisa acadêmica: sempre temos pressupostos quando
começamos a trilhar o percurso, mas eles não podem ser lentes que, no lugar de expandir nossas
possibilidades de compreensão, ao contrário, nos impeçam de ver, ouvir, sentir e pensar a partir da
experiência que vivemos. Se funcionarem como essas lentes que nos turvam o olhar, roubarão toda
a potência formativa da experiência.
Acredito, como Contreras (2013), que a experiência é um acontecimento só possível como fruto do
vivido. É o que nos toca, nos deixa marcas, nos ensina, tem em nós um efeito pessoal e vai forjando
um modo de ser e estar no mundo, uma consciência dos sentidos do que se vive. Isso requer
disponibilidade para interrogar o vivido e refletir sobre ele, constituindo uma forma implicada de
agir, que não admite as coisas irem se passando simplesmente, que pressupõe pensar-se em relação
ao que acontece.
Acredito também, como Dewey (2010. p.118), que:
A experiência, nesse sentido vital, define-se pelas situações e episódios a que nos referimos
espontaneamente como “experiências reais” – aquelas coisas de que dizemos, ao recordá-las “Isso
é que foi experiência”. Pode ter sido algo de tremenda importância – uma briga com alguém que
um dia foi íntimo, uma catástrofe enfim evitada por um triz. Ou pode ter sido algo que, em termos
comparativos, foi insignificante – e que, talvez por sua própria insignificância, ilustra ainda melhor
o que é ser uma experiência. Como aquela refeição em um restaurante parisiense da qual se diz
“Aquilo é que foi uma experiência”. Ela se destaca como um memorial duradouro do que a
comida pode ser. Há também aquela tempestade por que se passou na travessia do Atlântico –
uma tormenta que em sua fúria, tal como vivenciada, pareceu resumir em si tudo o que uma
tempestade pode ser, completa em si mesma, destacando-se por ter se distinguido do que veio
antes e depois.
... A experiência singular tem uma unidade que lhe confere seu nome – aquela refeição, aquela
tempestade, aquele rompimento da amizade. A existência dessa unidade é constituída por uma
qualidade ímpar que perpassa a experiência inteira, a despeito da variação das partes que a
compõem. (DEWEY, 2010, p. 110)
E penso que tomar intencionalmente a pesquisa como espaço de constituição desse tipo de
experiência singular e estética contribui para refinar o pensamento sobre a realidade em que ela
acontece para enriquecê-la, ampliar seus horizontes, colocar certos óbvios sob suspeita, tomar
distância e conquistar outras dimensões de compreensão nem sempre alcançadas nos modelos
convencionais de investigação, alimentar a imaginação e a criação de novos inéditos. Entre muitas
outras possibilidades.
Não me parece possível fazer pesquisa da pesquisa na pesquisa a não ser assim. Sequer me parece
possível fazer pesquisa se não for assim...

Pois bem, iniciei este percurso com alguns marcos conceituais muito bem definidos e inegociáveis:
dois princípios gerais e quatro desafios metodológicos que adquiriram, também eles, o status de
pressupostos.
Um dos princípios é que as relações humanas são dialógicas e constituídas pela ação de sujeitos
que produzem história, cultura, realidades e são também por elas produzidos. O outro é que a
formação humana é o conjunto de experiências de aprendizagem ao longo da vida. E, a meu ver,
sem nenhuma incoerência com esses princípios, colocaram-se os quatro desafios metodológicos
que se transformaram em pressupostos já mencionados anteriormente: mergulhar com todos os
sentidos na pesquisa; considerar o conhecimento legitimado um guia sob suspeita, pois não se cria
o novo de joelhos para o estabelecido; beber em todas as fontes; narrar a vida e literaturizar a
ciência.
39

Quanto à última confissão, é que este não é um “capítulo” convencional de fundamentação com
uma extensa discussão teórica, resultado de pesquisa bibliográfica; é muito mais um painel de
importâncias conceituais e seus respectivos autores, porque a discussão teórica de fato acontece
onde deve acontecer – ao longo do texto, no contexto em que faz sentido para iluminar, ampliar,
expandir, fundamentar o que carece desses “a mais”.
Feitas essas três declarações, por várias razões achei que aqui seria necessário retomar um trecho
da dissertação de mestrado em que apresento as contribuições do exame de qualificação à
pesquisa por considerá-lo muito apropriado para explicar a delicada relação que tenho com as
palavras, mais ainda quando nomeiam conceitos cujos sentidos são especialmente importantes de
comunicar:
Terminadas as considerações feitas pelo Professor Rui Canário, comentei então o que pensava a
respeito de sua sugestão para que eu substituísse a expressão “militância na profissão” por outra
de sentido semelhante, já que que militância é uma palavra com a qual me identifico
profundamente. Apesar de também considerá-la ambígua, como alertou a banca, lembrei-me de
que no dia anterior, por ocasião do doutoramento de Renata Barrichelo, a Professora Vera Placco
havia feito uma belíssima defesa em favor das palavras que nos são caras e que “nos roubam” os
adversários, atribuindo-lhes outros sentidos muito diferentes dos que estimamos. Dizia ela que
não podemos deixar que nossas palavras sejam perdidas, porque assim nossas possibilidades de
dizer se limitam cada vez mais. Eu diria que precisamos militar em favor de nossas palavras...
Apoiada na justificativa da Professora Vera, argumentei que dificilmente abriria mão da militância,
porque, apesar dos múltiplos sentidos, a mim parece ser essa a palavra que diz melhor o sentido
que preciso, mesmo sendo necessário explicá-lo.

Assim, foi mantida a militância15 no texto final e reafirmada a militância em favor das melhores
palavras para dizer os sentidos pretendidos. E aqui, nesta tese, essas militâncias estiveram sempre
em perspectiva também, como vocês verão.
Passo a tratar agora dos conceitos que estavam dados ou que emergiram no curso da pesquisa.
Como o propósito, desde o projeto inicial com o qual concorri ao processo seletivo, sempre foi
investigar a experiência formativa de se comunicar por escrito pela internet, os conceitos de
experiência (como acontecimento singular que nos toca e de algum modo nos forma), de formação
(como experiência de aprendizagem), de escrita (para se comunicar com o outro) e de contexto
(comunicativo) estavam postos a priori. E, por esse critério, seria razoável considerar então que a
escrita na internet fosse um conceito relevante a desenvolver.
Entretanto, o enfoque do trabalho desde o início nunca foi a internet, mas sim a comunicação por
escrito, aquele tipo de comunicação que é formativa. No final das contas, o que de fato importa é
o que o que dizem os sujeitos. Sendo assim, a internet não é conteúdo central da pesquisa,
tampouco a escrita na internet um conceito, inclusive porque não creio que exista “uma escrita na
internet”, isto é, uma escrita específica para utilizar online. Nesse caso, o que existe são outras
condições de produção que produzem outro tipo de autor e de autoria – e também de
comunicação.
Então, como nunca foi objetivo da pesquisa a ênfase na internet ou na especificidade da escrita
online, considerei mais oportuno destacar o contexto – que, por um lado, é favorável à
comunicação, à interlocução e a certos tipos de aprendizagem e, por outro, circunscreve as
condições de produção – como merecedor, este sim, de um tratamento conceitual.

15
O conceito de militância na profissão foi definido como um tipo de atuação própria das pessoas que não poupam tempo
e esforços para desenvolver um trabalho de qualidade, que não se satisfazem com nada que não seja “o seu melhor”, que
em geral desempenham um papel instituinte não só no âmbito de sua atuação específica, mas na instituição como um
todo.
40

Se a pergunta da pesquisa é “Em que circunstâncias, de que modo e por quais razões a
comunicação escrita que acontece no espaço virtual se constitui em experiência formativa para
quem dela participa?”, e o objetivo sempre foi encontrar algumas respostas, a dimensão do
contexto rapidamente se evidenciou como relevante. Essa pergunta inicial representa o que, como
pesquisadora, eu não sabia a princípio como responder – e jamais saberei inteiramente, pois a
experiência humana é diversa e sempre aberta a possibilidades –, e a importância do contexto era
uma inferência preliminar que, no decorrer do processo de interlocução com o grupo de sujeitos-
colaboradores, foi se afirmando como convicção. Trata-se, assim, do que achei por bem chamar de
conhecimento emergente da pesquisa.
Esse tipo de conhecimento que emergiu e se constituiu no percurso é plural: são rotas alternativas,
atalhos, memórias, experimentações, intuições, conceitos, tanta coisa...
Foi no percurso – mais especificamente a partir do exame de qualificação – que se constituíram as
possibilidades de compreensão de algumas singularidades da escrita praticada no espaço virtual.
A partir das contribuições de Carlos Skliar, durante a conversa que aconteceu na banca, foi ficando
claro que, nos textos produzidos no contexto da pesquisa (aqui neste registro, inclusive), há
combinações peculiares de uma escrita marcada pelos sentidos ora de identidade, ora de
intimidade; ora de solidão, ora de alteridade; ora de exposição, ora de afirmar posição; ora de uma
língua pública, ora privada. O contexto comunicativo que se constitui na materialidade da internet
comporta essas variações e uma escrita híbrida.
Foi no percurso também que se evidenciou um dos objetivos que me guiou por longo tempo:
sistematizar o conhecimento sobre o tipo específico de pesquisa narrativa desenvolvida e sobre a
relação conteúdo-forma-registro. Surgiu no durante, não estava até então anunciado e nem
enunciado. Surgiu do movimento de deriva, como resultado das escolhas que fui fazendo pelo
caminho.
Foi no percurso que surgiu a ideia, que se transformou em convicção, da abordagem que na
realidade eu pretendia desenvolver: um tipo de pesquisa narrativa em três dimensões
intencionalmente articuladas – nas fontes de dados, porque os depoimentos dos sujeitos-
colaboradores são narrativas metacognitivas sobre o que aprendem; no modo de produzir
conhecimento, porque é narrativamente que se constituem as compreensões; e no registro, porque
a escolha do texto para documentar o trabalho é esta longa correspondência narrativa.
Aqui, vale uma explicação importante. Clandinin e Connelly criaram uma metáfora muito adequada
de espaço tridimensional da investigação narrativa, em que as dimensões são a temporalidade, a
relação individual-social e o lugar, para evidenciar que, nessa abordagem, o pesquisador estaria
sempre se deslocando em três movimentos: retrospectivamente-prospectivamente,
introspectivamente-extrospectivamente e contextualizadamente, isto é, situado em um dado lugar
(2011, p. 84). Entretanto, essas três dimensões que caracterizam a pesquisa narrativa – e, portanto,
também a minha – não são as mesmas a que me refiro quando digo “pesquisa narrativa em três
dimensões”. Foi o fato de a palavra dimensão ser a mais pertinente para dizer também dos três
lugares da narrativa, na pesquisa que realizo, que justificou o seu uso para nomeá-la, correndo o
risco de alguma incompreensão motivada pelo fato de uma mesma palavra aparecer com dois
sentidos diferentes no mesmo trabalho. A rigor, seria possível afirmar então que são seis as
dimensões desta pesquisa em dois níveis distintos: movimentos do pesquisador, a que Clandinin e
Connelly se referem, e dos lugares articulados da narrativa – fontes, modo de produzir
conhecimento e registro – a que me refiro.
O que chamei, na dissertação de mestrado, de “pesquisa da pesquisa na pesquisa” já era uma
abordagem narrativa, mas não havia ainda essa clareza, e já era também em três dimensões
porque, tal como agora, as fontes de dados eram narrativas; o movimento metodológico
41

pressupunha um narrar “no durante” que, por sua vez, também produzia dados; e o registro era
uma narrativa na forma de cartas. Quero, com isso, dizer que a investigação que eu fazia no período
de 2004/2007 tinha características próprias do que hoje chamo de pesquisa narrativa em três
dimensões, mas só veio a ser assim considerada desta vez, muitos anos depois, pela elaboração
teórica que me foi possível a partir da reflexão sobre a experiência em curso neste trabalho e a
partir do estudo que essa reflexão demandou. Portanto, este é um conhecimento emergente na
pesquisa de doutorado que pode agora nomear retrospectivamente a pesquisa do mestrado.
No mapeamento a seguir, essas informações estão dispostas de forma esquemática e, também
dessa forma, estão apresentados os conceitos que dão sustentação e consistência à abordagem do
tema e à sistematização da metodologia.
Então são estes os conceitos centrais, esquematizados logo mais abaixo: experiência, sujeito
encarnado, autoria, metacognição e escrita reflexiva, que dizem respeito tanto ao tema quanto à
metodologia. Outros dois – contexto favorável e relações dialógicas solidárias – são mais
relacionados ao tema, mas têm a ver também com a metodologia; e ainda outros dois – pesquisa
narrativa e conhecimento emergente – são relacionados especificamente à metodologia. As ideias
de interlocução e manifestação da subjetividade, que surgiram depois, atravessam todos eles, tal
como explico mais adiante. Os demais conceitos – tratados de passagem no curso do texto para
explicar ou contextualizar outros – são complementares: formação, narrativa, modos de
pensamento e gênero. Outros, ainda mais passageiros, não estão mapeados aqui.

Conceitos Centrais

TEMA METODOLOGIA
EXPERIÊNCIA
SUJEITO ENCARNADO
TRÊS DIMENSÕES

CONHECIMENTO
NARRATIVA EM

EMERGENTE
DIALÓGICAS
FAVORÁVEL

SOLIDÁRIAS
CONTEXTO

RELAÇÕES

PESQUISA

AUTORIA

METACOGNIÇÃO

ESCRITA REFLEXIVA

FORMAS E MOVIMENTOS DE

MANIFESTAÇÃO
INTERLOCUÇÃO
DA SUBJETIVIDADE
Conceitos Complementares
FORMAÇÃO | NARRATIVA | MODOS DE PENSAMENTO | GÊNERO

Os autores de referência em relação ao tema da pesquisa são primeiramente os próprios sujeitos-


colaboradores e, diante da necessidade de fundamentação em conteúdos por eles não abordados
ou não suficientemente abordados, outros autores vão sendo incluídos.
Por se tratar de um grupo com significativa capacidade de elaboração teórica – a partir do que
vivem, pensam, sentem, leem e escrevem – e por ser tema da pesquisa justamente a experiência de
escrita no espaço virtual, em certos casos recorrer a autores que estudaram esse assunto seria
apenas um procedimento acadêmico burocrático, já que, de modo muito pertinente, os próprios
sujeitos fundamentam suas afirmações, por vezes apoiados nos mesmos autores que, também eu,
tomo como referência. Além disso, alguns deles fundamentam muitos pesquisadores e seria um
contrassenso, portanto, eu sair em busca de outros teóricos.
42

Reparem nesta linda explicação de quem somos nós, afinal. Estou certa de que concordarão
comigo de que não teria sentido sair procurando alguma definição pelos livros nas bibliotecas por
aí quando um integrante do grupo de sujeitos-colaboradores já publicou esta, inteiramente
compatível com minha convicção pessoal:
Para Bakhtin cada sujeito é povoado por múltiplos outros; é, num certo sentido fragmentado
internamente e externamente, mas, mesmo assim, é um ser único e insubstituível, devido ao
“inacabamento” e à “situacionalidade”: não há identidade como um produto, mas um processo
de autoidentificação contínuo que começa com o nascimento e termina com a morte, os únicos
momentos em que cada sujeito está completamente sozinho. Dessa forma, o ser está em constante
transformação, e cada transformação nos ajuda a sermos mais aquilo que podemos ser a cada
momento, pois não há nenhuma essência humana, mas há um núcleo de ser que cada um de nós
identifica como eu, embora não totalmente consciente, um núcleo que é só é identificado por um
sujeito devido ao contraste de espelho que as outras pessoas oferecem a cada um de nós. Em
suma, em termos bakhtinianos não há identidade como produto, mas um processo de
autoidentificação contínuo que cada sujeito realiza, entre outros sujeitos, do nascimento à morte,
quando o sujeito deixa de existir, mas não os ecos refratados de seu existir. (Adail Sobral16)
Busquei então apenas uma referência complementar, que a mim pareceu necessária por razões
que vocês entenderão ao ler “O desejo e a deriva”, quando abordo a questão do “sujeito
encarnado”, conceito desenvolvido por Denise Najmanovich.
Merece também destaque especial aqui estes riquíssimos enunciados de outra pesquisadora do
grupo de sujeitos, Liana Arrais Serodio, que são fragmentos narrativos sobre o que produziu na
dissertação de mestrado, na tese de doutorado e, depois, como resultado da reflexão sobre as lições
aprendidas a partir da experiência da pesquisa nos dois casos.
Aqui, a narrativa é informação e formação. É dado de pesquisa e meio ou instrumento de
pensamento e comunicação. Assim como o pensamento permite que se invertam as ordens do
tempo, no sentido de que uma necessidade ou descoberta presente pode nascer quando se
recorda o passado ou se vislumbra um futuro desejado, permite que diversas linhas de tempo se
interpenetrem e, dessa forma, ajudem a ir organizando o pensamento – verbal – conforme o
próprio pensamento se organiza no exercício da palavra escrita, nesse caso. Tanto se escreve nesse
processo que outros aprendizados acontecem e acabam por ajudar na organização não só do
texto, mas do próprio pensamento. Iniciam-se buscas não delimitadas pelo método, mas no
método, que nem se imaginava a necessidade, e se tornaram conscientes em razão da escrita –
narrativa. Foram feitos estudos para descobrir acontecimentos e dramas semelhantes no passar
dos tempos e foram produzindo arquitetonicamente sua teoria e história. A história pessoal
produzida na interação e se tornando [interação] histórica humana (SERODIO, 2008, p.22).
No lugar de um método ou metodologia de pesquisa, o que apresento é a escrita narrativa como
evento, proposta a partir da vivência na narrativa assumida como uma abordagem dentro das
pesquisas qualitativas. Na escrita narrativa há uma característica de evento que dirige toda a
pesquisa, antes mesmo das letras. Esse método – nos perguntamos se é mesmo um método – (...)
implica participação e presença da pesquisadora, pois abrange um grande período de convivência
(...), com posterior retomada, no esforço de sistematizar uma ampla experiência e profusa
produção material, da qual alguns se tornaram dados de interpretação pontual e a maioria formou
o “fundo” – o contexto, a internalização, a cultura – que se reflete na forma (SERODIO, 2014,
p.12-13).
Descobri a escrita narrativa como evento, como acontecimento, como deriva da inventividade
modelizante primária (conceito da semiótica global de Sebeok), materializada na invenção da
própria escrita (como Ponzio traz em suas pesquisas fundamentadas em Bakhtin e Lèvinas e

Comunicação de título "A ontologia dialógica de Bakhtin e a questão da identidade", apresentado em inglês na XIV
16

BAKHTIN CONFERENCE, 2011, Bertinoro. Bologna: University of Bologna, 2011. Tradução do autor.
43

Sebeok) e daí objetivada na singularidade, tornada a teoria circunstanciada (como indicam os


últimos escritos de Bakhtin) ou as lições ou efeitos das nossas pesquisas, por exemplo.
O que fiz talvez não tenha exatamente a ver com um método de pesquisa [no sentido
convencional, genérico] nem mesmo (pontual e somente) com a pesquisa narrativa, a não ser que
essa visão da pesquisa narrativa que chamo de escrita narrativa como evento, escrita-evento, quem
sabe, procurando outras palavras: narrativa-evento, acontecimento narrativo, seja pressuposto,
pré-requisito ou, como prefiro, constituinte e constituída de um modo de pensar, pensando-me
no mundo. (...) Tenho visto outros acontecimentos narrativos em outros estilos de pensamento e
de escrita e de inventividade, outras formas-conteúdo e derivas em buscas de algo que aí não está,
ou não está para si. Parece estranho, afinal, toda pesquisa é a busca de algo, geralmente alguma
prova de algo que “todo mundo” sabe, por assim dizer, mas que precisa ser rebuscada e autorizada
e confirmada por uma cientificidade empiricista, racionalista, moderna, da qual não estamos
imunes, pois o gênero, a cultura, a corrente verbal – as palavras da mãe – nos precedem e nos
constituem. Mas, nós, que trabalhamos em escolas, sabemos que muito do que sabemos nem
sabemos que sabemos, então buscamos o que ainda não sabemos, por vezes sequer imaginamos
onde buscar, muito menos como! E isto é legítimo para quem faz pesquisa.
O que aqui compartilho é uma intuição... filosófica, sim, mas, por enquanto, intuição, que se fez
explícita no exercício de escrever sobre a minha própria investigação narrativa. Um dos
conhecimentos “novos” onde a deriva narrativa me levou é a escrita como evento, que divulgarei
logo mais nos meios científicos, buscando ampliar o tema no diálogo e legitimar o “achado” entre
outros grupos de pesquisa. Ou seja, a convicção, desde minha dissertação de mestrado, de que a
potência da narrativa está para além de informação (produção de dados), contextualização
(histórico-social), reflexividade (confrontação teórico-prática) e exotopia (distanciamento e
visibilização), constiuindo-se em formativa da própria expressão mental, como nosso orientador
mostra em sua dissertação de mestrado:
No meio da travessia, é de onde sai esta tese. E se ela sai da travessia, nada melhor que contar isto
(PRADO, 1992, p.1). (...) As relações que estabelecemos em nossas vidas, as inúmeras ações que
empreendemos nela geram mudanças na nossa consciência, que, aprimorada, transforma nossas ações,
e, consequentemente, mais uma vez, transmuta nossa consciência. É a vida que transforma e determina
(sem estar querendo dizer que este determinismo é único e diretivo) a consciência (PRADO, 1992, p.6).
Está para além, inclusive desse ser-conteúdo-forma-sentido. Penso que maior potencialidade
daquilo que temos convencionado chamar de pesquisa narrativa como alguns pesquisadores de
nosso grupo de pesquisa têm feito – e que é objeto especial de estudo nesta sua [da Rosaura]
investigação sobre escrita, para mim – é ser um instrumento de realização da capacidade humana
modelizante primária, chamada por Peirce “Pure Play of Musement” (apud SEBEOK, 1981, p.2).
Esta é a parte de minha pesquisa que a faz especialmente interessante para os avanços das
investigações sobre e na narrativa, nem que seja para virmos a descobrir que não precisava ser,
afinal. Veremos. (E-mail de 08.06.2014).
Eu diria que, além dessas contribuições, tanto da dissertação quanto da tese dessa autora, a
reflexão a posteriori, muito mais do que uma intuição, é uma formulação teórica relevante e
singular, subsídio para outros pesquisadores, não só para mim.
Assim como é uma formulação singular esta, sobre o que poderíamos chamar de uma “autoria
apropriada”, tal como a apresenta Adriana Stella Pierini, também do grupo de sujeitos, em uma
explicação que me enviou por e-mail:
Era um convite para pensar sobre o que, de uma prosa, resultou uma pesquisa. Mania bonita,
essa, que têm uns e outros de me fazerem pensar ainda mais do que me imponho...
Quando vi, já estava às voltas com uma reflexão sobre os efeitos que provocam, em nós, algumas
coisas que lemos na escrita de outros.
Para chegar ao que se trata, escolho – porque, no momento, é o que me parece um caminho mais
razoável – iniciar pela negação.
44

Quando afirmo que, como leitora, em alguns casos, deparo-me com algumas produções que me
fazem sentir como se fossem de minha própria autoria, penso que não se trata daquela admiração
pelo alguém que escreveu algo que nos lança à fruição desenfreada.
Também não se refere ao sentimento bom que nos invade quando nos deparamos com uma
escrita que nos acolhe, quando as palavras parecem se instalar confortavelmente em nós, porque,
de alguma maneira, vêm ao encontro de algo que carecemos, ou acreditamos, ou defendemos...
Ou, nem tampouco, numa escrita que, na contramão, nos mobilize, nos inquiete, nos remeta a
pensar sobre o que fazemos, sobre como agimos em determinado contexto.
Portanto, penso que seja algo diferente de um processo de identificação, quando, não raras vezes,
nos compenetramos do pensamento ou sentimento alheio, porque não entendo que esse
fenômeno de, digamos, “autoria apropriada” passe pelo sujeito-escritor ou pelo objeto-escrita,
mas sobretudo se configura como um evento que se aproxima da apropriação do próprio ato de
escrever.
A ideia da apropriação da autoria, portanto, diz respeito a duas dimensões distintas que se
compõem. Uma delas se refere ao que podemos chamar de conteúdo da escrita, que se relaciona
a um determinado contexto, quando tenho a percepção de que escreveria aquele texto daquela
maneira porque aquela ideia expressa algo (uma opinião, uma emoção, uma crítica...) que naquele
contexto exatamente expressa meu desejo. A outra, refere-se à forma, aos modos de escrever,
quando me alinho aos mesmos recursos de escrita utilizados por um “escritor outro”, marcando
determinado estilo, delineando características próprias, a despeito dos sentidos criados no ato de
ler. Algo para investigar... (2014)
E no que diz respeito à abordagem metodológica específica desta pesquisa (narrativa em três
dimensões), sendo o meu orientador e Vanessa Simas os pesquisadores que, junto comigo, têm
empreendido um esforço teórico de sistematização a partir de nossa própria experiência e de
alguns companheiros do GEPEC, são ambos as referências principais – e ambos do grupo de
sujeitos.
Vejam o que diz Vanessa Simas, por exemplo, quando, em seu texto de qualificação do mestrado17,
que lhe rendeu a indicação para o doutorado, faz uma relação de inquestionável qualidade teórica,
ética e estética:
Movo-me entre os tempos na medida em que no presente consigo ressignificar o passado e, com
isso, vislumbrar outros futuros, já mudando o presente da pesquisa. Ou, em outras palavras, me
remetendo ao aspecto da continuidade da experiência da teoria deweyniana, posso dizer que,
dessa perspectiva, a pesquisa atenta-se para a continuidade das experiências, vez que “em uma
experiência, o fluxo vai de algo para algo, à medida que uma parte leva a outra e que uma parte
dá continuidade ao que veio antes”. (DEWEY, 2010, p. 111)
Ao escrever “no durante” sobre a experiência vivida, seja quando se produz dados (porque o
pesquisador é também produtor de dados), seja nos momentos de registro da pesquisa ou na
análise, coloco-me inevitavelmente em um lugar exotópico (Bakhtin, 2010). Isto é, para escrever,
distancio-me do vivido e, de um outro lugar e, portanto, com outro olhar, consigo enxergar coisas
inalcançáveis antes, de onde estava. Possuo, assim, um novo olhar e uma nova escuta, possível a
partir dos novos sentidos que se constituem pela experiência de distanciamento, “estranhamento”
e ressignificação do vivido. Esse lugar que experimento implica uma reflexão sobre a ação que,
por sua vez, me permite tomar consciência, construir horizontes de possibilidades – e, para atingi-
los, modifico necessariamente o presente, produzindo, assim, conhecimento na/pela experiência
não só de narrar e investigar, mas também de inventar e reinventar as ações a partir de tomadas
de consciência.

SIMAS, Vanessa. A busca por um caminho partilhado na invenção de ser professora iniciante. Texto de Qualificação.
17

Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2014.


45

Ademais, a exemplo do que ocorre nos trabalhos de Clandinin e Connelly (2000a), também a
pesquisa que aqui realizo pressupõe um movimento: entre o social e o individual. Isso porque
todo o percurso é construído com o outro, ao tomar as interlocuções com o outro, os materiais
das crianças, os atos do outro em resposta aos meus e as minhas próprias narrativas, como fonte
de dados. Isso acontece também ao mirar o vivido “de outro lugar”, fazemos do eu um outro de
si próprio. Bakhtin muito bem explica como ocorre esse ir e vir nesse exercício de fazer pesquisa.
Ao momento da empatia segue sempre o da objetivação, ou seja, o de situar fora de si mesmo a
individualidade compreendida através da empatia – separando-a de si mesmo. Somente tal
consciência que retorna a si mesma confere forma estética, do seu próprio lugar, à individualidade
apreendida desde o interior mediante a empatia, como individualidade unitária, íntegra,
qualitativamente original. (...) O reflexo estético da vida viva não é por princípio autorreflexo da
vida em movimento, da vida em sua real vitalidade: tal reflexo pressupõe um outro sujeito da
empatia, que é extralocalizado. (BAKHTIN, 2010b, p. 61)
Esse movimento entre o social e o individual, pressupõe que o eu vá até seus outros, veja o mais
possível o que o outro lhe mostra de si, e vice-versa, e – tendo um excedente de visão possibilitado
pelo outro, ou por si mesmo enquanto outro de si – “volte” com um olhar ampliado,
potencializado, mais abrangente.
Ao aproximar e dialogar com os dados narrativos, já escrevendo a narrativa no/do percurso, avisto
novos horizontes, novos caminhos, novos inéditos. Dessa maneira, não só a pesquisa se faz na
interação com os outros, mas também eu, do lugar de professora-iniciante-pesquisadora, fui me
fazendo pesquisadora ao construir novos sentidos e inventar caminhos não previstos a partir do
que conseguia enxergar do outro e de mim mesma não só na relação com ele, o outro, mas
também comigo, quando outro de mim.
Pesquisar atentando-me para o tempo – passado presente e futuro – e para o social e o individual
é também atentar-me e pesquisar em um contexto, o que pressupõe, ao mesmo tempo, agir sobre
ele e o modificar, e também ser por ele modificado. Afinal, “toda experiência genuína tem um
lado ativo que, de algum modo, muda as condições objetivas em que se passam as experiências”
(DEWEY, 2010, p. 40).
Nesta pesquisa narrativa não poderia ser de outro modo: eu, minhas experiências – de investigar
e escrever – e o contexto da pesquisa modificam a mim mesma, as experiências que vão
acontecendo e o contexto, sempre dialeticamente, em todo o percurso. Por isso, ainda que se
tenha “um problema a compreender” e um plano esboçado para tanto, nunca saberia ao certo o
lugar de chegada até lá chegar. O exercício da reflexão por escrito “durante” a pesquisa
potencializa substancialmente a tomada de consciência e de decisões, o que nem sempre ocorre
quando o registro é realizado depois de desenvolvida toda a pesquisa.
Não é mesmo uma elaboração teórica preciosa? E por que razão então haveria eu de sair buscando
outras fontes? Busquei apenas as que entendi como necessárias, porque no grupo de sujeitos-
colaboradores não existia produção suficiente a respeito. Por exemplo, como nossa perspectiva
metodológica de pesquisa narrativa não é exatamente a mesma defendida e desenvolvida pelos
pesquisadores canadenses D. Jean Clandinin e F. Michael Connelly e pelos espanhóis Antonio
Bolívar, Jesus Domingo e seus colaboradores, foi preciso aqui apresentar suas ideias.
Tomo então emprestadas as explicações de Clandinin e Connelly.
Ainda que ao produzirem a obra “Pesquisa Narrativa: Experiência e História em Pesquisa
Qualitativa” (publicada em 2000, originalmente em inglês), a proposta fosse – como eles mesmos
afirmam – “não dizer o que é a pesquisa narrativa, definindo-a, mas sim criando uma definição a
partir da contextualização pelo recontar do que os pesquisadores de narrativas fazem”, tentei
compor uma meio-definição a partir de fragmentos literais espalhados pelo livro, numa espécie de
patchwork conceitual, espero que de bom nível.
Do ponto de vista gráfico, essa ”solução” é esteticamente ruim, mas, como tantas vezes nos alertou
Paulo Freire, às vezes é melhor “enfeiar” o texto para garantir certos compromissos mais
46

importantes, do que insistir na boniteza linguística ou gráfica – nesse caso, o propósito é ser mais
ou menos fiel ao desejo dos autores de não apresentar uma definição sucinta, compacta e
descontextualizada. Sim, porque esses fragmentos poderiam ser parafraseados e condensados, o
que por certo resultaria num texto mais elegante. Mas entendi que essa seria uma alternativa, por
assim dizer, deselegante com os autores.
Eis então, com títulos meus, algumas transcrições literais escolhidas ao longo das 250 páginas do
livro, em que Clandinin e Connelly caracterizam a concepção de pesquisa narrativa de onde
partimos. Uma rápida olhada na indicação das páginas permite compreender porque eu digo que
é um patchwork.
Narrativa e experiência: Pesquisa narrativa é uma forma de experiência narrativa. (...) Para nós,
narrativa é o melhor modo de representar e entender a experiência. Experiência é o que
estudamos, e estudamos a experiência de forma narrativa porque o pensamento narrativo é uma
forma-chave de experiência e um modo-chave de escrever e pensar sobre ela. Os pesquisadores
vivenciam a experiência da pesquisa que envolve a experiência que eles desejam investigar. (...) E
são sempre fortemente autobiográficos. (p. 40, 48, 120 e 165)
Espaço tridimensional: Discutimos os termos que optamos por usar em nossas pesquisas, que
derivam da visão de Dewey da experiência – especificamente: situação, continuidade e interação.
(...) Definido esse sentido do lugar fundacional de Dewey em nossa concepção sobre pesquisa
narrativa, nossos termos são: pessoal e social (interação); passado, presente e futuro
(continuidade); combinados à noção de lugar (situação). (...) Utilizando esse conjunto de termos,
qualquer investigação em particular é definida por esse espaço tridimensional: os estudos têm
dimensões e abordam assuntos temporais; focam no pessoal e no social em um balanço adequado
para a investigação; e ocorrem em lugares específicos ou sequências de lugares. Para os
pesquisadores narrativos é crucial saber articular a relação entre o interesse pessoal e o senso de
relevância e amplas preocupações sociais, no trabalho e na vida das pessoas. (p. 84, 85 e 166)
Entremeio: Enquanto trabalhamos no espaço tridimensional da pesquisa narrativa, aprendemos
a olhar para nós mesmos como sempre no entremeio – localizado em algum lugar ao longo das
dimensões do tempo, do espaço, do pessoal e do social. Mas nos encontramos no entremeio
também em outro sentido, isto é, encontramo-nos no meio de um conjunto de histórias – as
nossas e as das outras pessoas. (...) E o processo de negociação na relação de pesquisa está sempre
acontecendo. Pesquisadores narrativos também sabem que o óbvio nunca é esgotado e que os
mistérios estão sempre ligados também ao que nos parece óbvio. (p. 99, 109 e 117)
Problema de pesquisa: Pesquisadores narrativos são sempre constituídos em torno de uma
curiosidade particular (...), de um problema ou questão de pesquisa. Entretanto, essa
denominação (...) tende a representar equivocadamente o que acreditamos que seja o trabalho
dos pesquisadores narrativos. Questões e problemas de pesquisa carregam consigo as qualidades
da clara habilidade de definir e a expectativa das soluções, mas a pesquisa narrativa carrega muito
mais um senso de busca, de um “re-buscar” ou um buscar novamente. A pesquisa narrativa
relaciona-se mais com o senso de reformulação contínua em nossa investigação e isso está muito
além de tentar apenas definir um problema e uma solução. (p. 169)
Fontes de dados: Os registros, normalmente chamados de dados, são pensados por nós como
textos de campo. Assim o denominamos porque são criados, não são encontrados e nem
descobertos, pelos participantes e pesquisadores, com o objetivo de representar aspectos da
experiência de campo. (...) Os textos de campo auxiliam o pesquisador a mover-se retrospectiva
e prospectivamente em um completo envolvimento com os participantes e também
distanciamento deles. (...) Essa tensão (...) é, como em nossas relações pessoais do cotidiano, a
responsabilidade de não estar sozinho como pesquisador e nem como participante. Na pesquisa
narrativa, nossos textos de campo são sempre interpretativos, sempre compostos por um
determinado indivíduo, e num determinado momento. Como pesquisadores, podemos, por
exemplo, tirar uma fotografia de um determinado momento no tempo, mas essa fotografia é
apenas um contar, um lance, uma imagem. (...) Todos os textos de campo são representações
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construídas da experiência. (...) O que é central para a criação dos textos de campo é a relação
entre pesquisador e participante. (...) A relação do pesquisador com a história em andamento do
participante configura a natureza dos textos de campo e estabelece seu status epistemológico. (p.
133, 119, 121, 124, 149 e 136)
Sistematização e análise de dados: O pesquisador passa várias horas lendo e relendo os textos de
campo para construir um relato sintético ou resumido do que está neles contido. Apesar de a
análise inicial lidar com assuntos como características, lugar, cenário, enredo, tensão, finalização,
narrador, contexto e tom, essas questões se tornam cada vez mais complexas à medida que o
pesquisador busca essa releitura sem fim. Com os termos analíticos da narrativa em mente,
pesquisadores narrativos começam a tematizar narrativamente seus textos de campo. (p. 177)
Registro da pesquisa: O momento de começar a escrever um texto de pesquisa é um momento
cheio de tensão. Uma delas é a tensão associada com o deixar o campo e imaginar o que fazer
com o conjunto de textos de campo. (...) Considerando a noção de espaço tridimensional da
pesquisa narrativa, o escritor tenta compor um texto olhando retrospectivamente e
prospectivamente, introspectiva e extrospectivamente, situando a experiência dentro de um lugar.
(p. 186)
Esse livro de Clandinin e Connelly é uma das principais referências em se tratando de pesquisa
narrativa e é pouco provável que algum pesquisador que defenda essa abordagem não o cite. A
perspectiva metodológica de pesquisa narrativa em três dimensões (que Guilherme, Vanessa e eu
estamos nos esforçando por documentar) nasce dessa abordagem dos autores canadenses, mas o
fato de defendermos que o registro seja elaborado continuamente e se constitua, também ele, em
fonte de dados da pesquisa pressupõe diferenças relacionadas ao último tópico acima descrito:
para nós, não existe o momento de “deixar o campo”, após a pesquisa realizada, para “começar a
escrever”. Dessa diferença tratarei mais adiante.
Também é um subsídio muito importante o artigo ‘Relatos de Experiência e Investigação Narrativa’
(1995), dos mesmos autores, que integra a publicação de ensaios “Dejame que te cuente” (Larrosa,
Arnaus, Ferrer, Lara, Connelly, Clandinin e Greene), em que se encontram outros aspectos
importantes para caracterizar a pesquisa narrativa. Eis alguns, ainda com títulos meus:
Narrativa como objeto de estudo e como metodologia: Entendemos que a narrativa é tanto o
fenômeno que se investiga como o método da investigação. Narrativa é o nome dessa qualidade
que estrutura a experiência a ser estudada, e é também o nome do modelo de investigação a ser
utilizado para seu estudo. (...) A narrativa está situada em uma matriz de pesquisa qualitativa, posto
que está baseada na experiência vivida e nas qualidades da vida e da educação. (...) Elementos
importantes na investigação são: a relação de igualdade entre os participantes, a situação de
atenção mútua e os sentimentos de conexão. (p. 12, 16 e 19)
Fontes de dados: Diversos métodos de coleta de dados são possíveis, já que o pesquisador e o
participante trabalham juntos em uma relação de colaboração. Os dados podem ser coletados em
registros sobre a experiência compartilhada; anotações em diários; transcrições de entrevistas;
observações de outras pessoas; situações de narrar experiências, escrever cartas, produzir escritos
autobiográficos; em documentos (planejamento de aulas, por exemplo), materiais escritos, como
normas e regulamentos; ou através de princípios, imagens, metáforas e filosofias pessoais. (p.23)
Critérios de validade: Tal como outros métodos qualitativos, a pesquisa narrativa se pauta em
critérios distintos de validade, confiabilidade e generalização. É importante, portanto, não tentar
incluir a linguagem dos critérios da pesquisa narrativa na linguagem criada por outras abordagens.
Temos identificado a clareza, a verossimilhança e a transferibilidade como critérios possíveis. (...)
Mas cada investigador deve buscar e defender os critérios que melhor se ajustam ao seu trabalho
(p. 32)
Como Clandinin e Connelly possuem uma produção na qual, de um modo ou de outro, se apoiaram
os demais autores que hoje desenvolvem pesquisa narrativa no mundo todo, pareceu-me
imprescindível apresentar, tal como fiz acima, o que considero central na concepção que eles
48

defendem. Quanto aos pesquisadores espanhóis – Bolivar, Domingo, Fernández e colaboradores


–, eles optaram por denominar o que fazem de investigação biográfico-narrativa e explicam que:
Aquí hablamos de investigación biográfico-narrativa (lo que los alemanes llaman pädagogische
biographieforschung, los franceses l’approche biographique, los anglosajones biographical
research o narrative inquiry) y no de método biográfico-narrativo, porque (…) entendemos que
actualmente, más que una estrategia metodológica (como, por ejemplo, la entrevista biográfica),
ha llegado a ser un enfoque propio o perspectiva especifica. (BOLIVAR; DOMINGO;
FERNÁNDEZ 2001: p. 54)

Apesar de os autores canadenses e espanhóis nomearem de modo diferente o tipo de pesquisa


que desenvolvem – como investigação narrativa e investigação biográfico-narrativa,
respectivamente – não se verificam diferenças substanciais na produção deles e a citação acima
parece ser um reconhecimento disso.
Ainda que muitos pesquisadores no Brasil e em todo o mundo utilizem narrativas de diferentes
gêneros como fontes de dados em seus trabalhos, aqui não abordarei especialmente essa questão
porque o propósito não é caracterizar diferentes tipos de pesquisas que tomam como dados os
gêneros narrativos. O que considero relevante destacar é a pesquisa narrativa cujas características
principais estão apresentadas acima e desenvolvidas também, adiante, em “O desejo e a deriva”.
O fato é que este trabalho comporta dois processos paralelos de produção de conhecimento: sobre
a questão central da pesquisa e sobre o movimento metodológico de pesquisa narrativa em três
dimensões. As referências teóricas dizem respeito a produções paralelas, portanto. Também por
essa razão o esquema de conceitos (apresentado anteriormente) foi um recurso valioso para essa
dupla navegação à deriva – um movimento que, conforme já comentei, aconteceu já no mestrado,
com o que na época chamei de “pesquisa da pesquisa na pesquisa” e agora se aprofundou.
Bem, aqui neste lugar de explicitar as relevâncias conceituais, cabe um destaque: pelo menos duas
ideias centrais – contexto favorável e conhecimento emergente – não são aqui abordadas como
conceitos propriamente, pelo menos não no sentido de formulações teóricas devidamente
sistematizadas.
O primeiro termo coincide com uma expressão do senso comum, bastante utilizada, e o segundo
é uma construção bem específica da produção de um tipo de saber da experiência, que tem tudo
a ver com este tipo de pesquisa. Nesse caso, do “conhecimento emergente”, entendi que não seria
necessário adotar os conceitos de “paradigma emergente” ou “emergência”, porque, apesar de
guardarem semelhanças do ponto de vista do movimento que representam – de algo novo que
surge a partir do que existia –, a questão aqui tem a ver com a epistemologia da pesquisa, e não
com paradigmas mais amplos de conhecimento científico ou sistemas de redes horizontais. Nos
dois casos, preferi tratar essas ideias como realidades que acontecem e fazem sentido no âmbito
deste trabalho e, portanto, dei a elas um tratamento teórico que me pareceu mais compatível com
essa circunstância. Tanto “contexto favorável” como “conhecimento emergente” ganharam então
status de conceitos, por assim dizer, pela relevância situacional.
Foi em Contreras Domingo (2013 p. 129) que encontrei uma aproximação maior entre o que estou
aqui chamando de conhecimento emergente e o que o autor caracteriza como “saber da
experiência”. Segundo ele, o saber da experiência se constrói no contexto do vivido, está sempre
em movimento e se mantém em uma relação “pensante” com o que acontece e com o modo pelo
qual nos relacionamos com o que acontece. É um saber que tem a ver com nossas dimensões
subjetivas, pessoais, com a história que nos constitui como sujeitos a partir de onde vivemos, de
onde e como atuamos, do que e como pensamos. E pressupõe relações de aprendizagem sempre
atravessadas pela questão do imponderável e da alteridade. Trata-se de um saber paradoxal, pois
é sedimentado no vivido e orienta a ação; entretanto, é um saber sempre “nascente”, sempre se
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renovando, que revela uma qualidade essencial: contribuir para viver, de maneira receptiva, em
sua novidade, o movimento e as mudanças inerentes ao desafio de aprender. Tal como defende
Contreras, e também eu, “saber da experiência” é uma expressão para nomear esse “saber sábio”
que contribui para um estar no mundo com abertura e sensibilidade, produzido por quem se
empenha em criar continuamente sentidos para o que vive, pensa, sente e faz. Tudo isso o autor
diz ao abordar a atuação na educação, mas certamente não será diferente em relação à pesquisa.
Aqui devo dizer a vocês que, depois de escrito este texto (após o título “O mapa da Ilha
Desconhecida se constrói ao navegar” e antes do parágrafo a seguir), finalizei o processo de
organização dos dados e se evidenciaram então os organizadores conceituais que dizem respeito
aos “achados” e aos sentidos por eles revelados: Formas e movimentos de interlocução e Formas e
movimentos de manifestação da subjetividade. Esse é um bom exemplo porque contextualizado,
de “conhecimento emergente”, aqui considerado o “saber da experiência” como pesquisadora: um
tipo de conhecimento até então inexistente como tal, só possível por obra de um percurso que se
faz ao caminhar. E que só se produz pela ação-reflexão de um pesquisador encarnado em sua
pesquisa, que navega no entremeio do tempoespaço, do eu-nós e das narrativas: a narrativa que
vive e escreve pessoalmente e as narrativas que vivem e escrevem os sujeitos com os quais interage.
Nesse sentido, portanto, não faço nesta tese nenhuma distinção entre conhecimento (emergente)
e saber (da experiência).
Há, por fim, outro destaque importante a fazer, mas não sobre os conceitos, e sim sobre autores
que, muito além de referências teóricas apenas, são influências determinantes para mim, porque
inspiram o meu modo de escrever. Quando estamos desafiados a produzir uma outra forma de
registro que comporte ao mesmo tempo narrar a vida e literaturizar a ciência, os autores que nos
ajudam nessa aventura merecem ser citados tanto quanto os que nos subsidiam na compreensão
dos (outros) conteúdos. Se não por outra razão, no mínimo porque, em se tratando da linguagem,
forma é conteúdo. Seria uma enorme relação de nomes, caso eu fosse citar todos eles, mas acho
que não será injusto destacar os mais inspiradores: José Saramago, Manoel de Barros, Clarice
Lispector e Carlos Skliar. José e Manoel me autorizam a inventar jeitos peculiares de escrever, e
Clarice e Carlos me ensinam como isso pode ser feito emocionalmente. E, de todos, talvez Carlos
tenha sido o mais importante, justo porque se dedica explicitamente à linguagem e seus efeitos.
Não por acaso, faço referência e reverência a esse pequeno grupo de autores antes de me referir,
logo mais, aos demais.
A princípio, era minha intenção apresentar “oficialmente”, nesta parte da tese, os autores principais
e desenvolver o que é típico de um capítulo teórico convencional. Mas acabei mudando de ideia,
pois a eles está feita a devida referência ao longo de todo o texto, onde de fato mais importa, pois
é quando contribuem de forma substantiva para “iluminar” os temais tratados, ampliar minha
compreensão e, imagino, também a de vocês, leitores.
Optei por citar os autores cujas contribuições fundamentam a pesquisa. E, quando fizer sentido,
comentarei o que, dessas contribuições, merecer destaque fora de contexto – como já foi feito há
pouco para a caracterização de pesquisa narrativa.
Denise Najamanovich, por exemplo, é uma referência de grande importância não só porque é ela
que desenvolve o conceito de sujeito encarnado, um dos principais, mas porque a discussão que
faz sobre método representa exatamente o que penso a respeito. Assim, não são meros enfeites os
textos dela tomados como epígrafes em várias partes da tese. O destaque neste momento,
entretanto, é para a ideia de sujeito encarnado, que a autora tematiza quando se refere ao
pesquisador como alguém que se compõe em relação a tudo o que lhe acontece na vida e é capaz
de entrar no próprio quadro que produz.
50

Outros autores fundamentais, que contribuíram substantivamente para o conhecimento que me


foi imprescindível neste trabalho – em especial nos momentos de análise dos dados, do percurso e
das lições aprendidas – são Paulo Freire e Bakthin. Porque tornam possível expandir a compreensão
do que pode ser, afinal, o diálogo, a dialogia, a escuta, a interlocução, a alteridade.
Paulo Freire porque, no conjunto da sua obra, “perspectiva” esses processos e os coloca na
condição de compromissos político-ideológicos, de escolhas intencionais e militantes.
E Bakhtin porque nos ensina que esses são processos inerentes à nossa condição humana e porque
– se aceitarmos o desafio – nos carrega pela mão para conhecer a radicalidade do seu pensamento
que chega à mais funda das conclusões: estamos todos humanamente “condenados” ao diálogo,
à interlocução, à alteridade, em algum nível, mínimo que seja, mesmo que eventualmente não
queiramos. Outra vez é um membro do grupo de sujeitos-colaboradores a dizer como isso é
possível:

Da perspectiva de Bakhtin, dialógica é a linguagem em todas as suas manifestações. Se um sujeito


dotado de poder e autoritário pode impedir a expressão verbal de uma dada pessoa, nem por isso
pode ele impedir a presença da voz dessa pessoa: o simples fato de fazer calar uma voz é
reconhecimento de sua existência. O simples ato de afirmar que “a vida é bela” é entendido em
termos dialógicos como negação de alguma voz que disso discorda. Há variadas maneiras de
reagir a esse silenciamento, todas elas, para o dialogismo, dialógicas, ainda que variem as
circunstâncias de cada situação. Todas essas maneiras são dialógicas porque “endereçadas”
(dirigidas) por um sujeito a outros sujeitos (que influenciam o modo como o outro se dirige a
elas), considerando as posições relativas de cada sujeito: quem pode silenciar quem em que
situação, quem pode falar, quem deve calar etc.
(...) Bakthin propõe como “tarefa” do sujeito ir até o outro (ser eu-para-o-outro). Mas fazê-lo só é
positivo se se volta (se se pode voltar) para si mesmo (ser eu-para si) depois de mostrar ao outro
o que ele não pode ver sozinho e depois de ter visto o outro mostrando-nos o que não podemos
ver sozinhos. Dois pontos de vista (ao menos), duas consciências imiscíveis, afastam-se do
isolamento negativo quando vão ao encontro do(s) outro(s), não necessariamente para se
compatibilizarem, mas para conhecerem o que os distingue e, assim, se o desejarem, criarem um
terceiro ponto ou alterar os seus de alguma maneira.
Para Bakhtin, ser implica capacidade de mudar, mas cada sujeito o faz da sua forma: estamos
sempre mudando de acordo com as relações em que entramos. Adquirimos subjetividade ao nos
envolvermos cada vez mais em relacionamentos com cada outra pessoa nova. Adquirimos porque
cada relacionamento nos traz novos fragmentos sobre nós mesmos, e os usamos para sermos mais
o que somos, ou melhor, o que nós somos capazes de nos tornar. Os outros nos ajudam a sermos
mais os seres que podemos nos tornar para sermos cada vez mais completos, mas nunca com
uma teleologia fixa: estamos sempre nos completando. Assim, os sujeitos são um constante tornar-
se e não um ser fixo. Somos sujeitos apenas por sempre nos tornarmos sujeitos – e os sujeitos que
cada um de nós é. Somos não terminados e intermináveis. (Adail Sobral18).
Não são, estes, alimentos saborosos para a nossa compreensão de quem somos, de quem fomos,
de quem poderemos talvez vir a ser?
Ah, sim. Mas há, sobre as dialógicas relações, um algo meu a dizer aqui. A reflexão sobre o que teve
poder de instigar e potencializar a escrita dos muitos sujeitos que escreveram a meu convite, em
diferentes tempoespaços, no interior da pesquisa e nas páginas da internet, indicava, como seria
de se supor, um contexto de relações dialógicas. Mas essa formulação me soava incompleta de
algum modo e, para me livrar da insatisfação, tive de agregar um adjetivo que desse o tom do qual
eu sentia falta: e assim a expressão ficou sendo relações dialógicas “solidárias”.

SOBRAL, A. U. Bakhtin's Dialogical Ontology and the question Of Identity. Comunicação apresentada na THE XIV
18

BAKHTIN CONFERENCE, 2011, Bertinoro. Bologna: University of Bologna, 2011. Tradução do autor.
51

Que diferença faz esse adjetivo afinal? Quase toda.


Relações dialógicas solidárias são o que já seriam se não fossem intencionalmente solidárias, mas
são mais. Elas são obra de uma escolha. De modo geral, as condições de produção dos textos
tomados como dados desta pesquisa por certo foram as mais diversas e tiveram a ver com a vida,
a história, a experiência de escrita e de expressão dos “próprios” por cada um, além de muitas outras
circunstâncias que sequer sou capaz de imaginar. Entretanto, havia um ponto em comum, pelo
menos: a convicção de que o texto seria aceito solidariamente pelo leitor, fosse eu, como
pesquisadora, ou os demais colaboradores aos quais se destinaram. Havia um sentido de
comunidade de pares que instigou e encorajou a escrita compartilhada. Havia um contrato
implícito de colaboração entre pessoas que nem sempre se conheciam face-a-face. As relações
dialógicas se fizeram solidárias por isso. Não que uns e outros não tivessem lá os seus temores, as
suas inseguranças, os seus pensamentos recorrentes de “e se?”. Afinal, expor-se ao outro, a muitos,
ainda mais através do registro escrito, comporta sempre algum tipo de risco. Entretanto, havia uma
solidariedade implícita. De autores. De autores de uma escrita de si. É isso que eu chamo de
contexto favorável.
Penso que foi assim que se fez o contexto favorável: na certeza ou na impressão de que as relações,
além de dialógicas, seriam solidárias. Talvez tenha sido esse contexto a favorecer um certo sentido
de pertencimento que contribuiu para a resposta generosa ao convite para que me escrevessem.
E talvez tenha sido isso também a favorecer o exercício de uma escrita que, por vezes, era de
afirmação de uma identidade horizontal – possível num grupo de semelhantes – e, por vezes, de
desvelamento da intimidade ao tratar de gostos, hábitos, sentimentos e diferentes características
da presença no mundo. Essa oscilação aconteceu em diferentes níveis, a depender de quem era o
sujeito: alguns, ao escrever, falaram mais abertamente de si próprios e de seus processos pessoais;
outros falaram teoricamente, das pessoas em geral, mas na verdade pareciam estar falando de si
próprios.
A respeito dessa escrita pessoal, autoral e reflexiva, para dizer da própria experiência e dos próprios
pensamentos sobre si, sobre o mundo e sobre a vida, meu orientador e eu falamos em nosso
primeiro livro, publicado em 2005, que não por acaso (claro que não!) se chama “Porque escrever
é fazer história”:
O ato de escrever sobre a experiência vivida e sobre a própria aprendizagem não é uma tarefa
simples, pois exige, ao mesmo tempo, tomá-las como objeto de reflexão e documentá-las por
escrito. Essa escrita nem sempre é fácil e prazerosa. Porque a reflexão por escrito é um dos mais
valiosos instrumentos para aprender sobre quem somos nós e porque, de certo modo, nos livra
da exclusão – um tipo de exclusão que provoca anonimato das ideias, das opiniões, dos
pensamentos... um anonimato incompatível com o direito de autoria, passaporte para o mundo
dos senhores das palavras, dos atores que protagonizam a cena, dos fazedores de história. Esse
mundo pelo qual tanto lutamos.
Afinal – se ler possibilita acessar informação, conhecer o que era até então desconhecido,
produzir sentidos a partir dos textos escritos pelo outro, desejar muito mais leitura e o que com
ela se conquista –, dialogar, relatar, descrever, informar, comentar, explicar, analisar, discutir,
opinar, refletir e manifestar tudo o que se achar por bem, por escrito, possibilita o exercício da
necessária expressão. E da generosidade. E do compromisso. Não só com o outro, mas também
conosco. Com o outro porque essa é uma forma de compartilhar. E conosco porque a escrita
permite a cada um de nós se conhecer melhor e se dar a conhecer aos outros.
A escrita é sim uma atividade de risco. Qual? Ao que tudo indica, todos.
Entretanto, é também uma arma poderosa, se não por outra razão, porque seu destino é a leitura.
A escrita documenta. Comunica. Organiza. Eterniza. Subverte. Faz pensar. A nós mesmos e aos
nossos leitores. Mas é um ato difícil. Muito mais difícil do que a leitura.
52

Escrever pressupõe considerar mais ou menos simultaneamente o leitor – geralmente muitos


leitores – a quem o texto se destina; o propósito que mobiliza a escrita; o conteúdo; as
características próprias do gênero e do portador; todos os aspectos discursivos, gramaticais,
ortográficos; e, como se não bastasse, a difícil coordenação disso tudo e ainda a necessidade de
revisão do texto durante e após a escrita.
Escrever exige a todo o instante um deslocamento do autor, indo de sua posição de escritor para
a de leitor do próprio texto. Esse papel de analista do já escrito é o que permite, por assim dizer,
o controle de qualidade do ponto de vista do conteúdo e da forma. Aquele que escreve tem de
ser, quase ao mesmo tempo, autor, leitor e revisor.
Os textos escritos não são frutos apenas do que os escritores querem dizer, mas também do que
eles supõem ser de interesse dos leitores. Há um “contrato” implícito entre autor e leitor. Quem
escreve imagina um leitor empenhado em compreender o que o texto diz – tal como nos lembra
Paulo Freire, nenhum texto é suficientemente bom para dispensar o necessário exercício de
atribuição de sentido por parte de quem lê. Os leitores, por sua vez, esperam que os autores
estejam dizendo algo de fato interessante, algo que valha a pena ler.
Ou seja, o compromisso com uma escrita que permita comunicação e interação de fato – que seja
fruto da tentativa de aproximação, a máxima possível, entre o que se pretende dizer, o que
efetivamente se diz e o que pode ser compreendido – exige, do começo ao fim, escolhas de
natureza diversa e coordenação de procedimentos complexos... Para superar, nem sempre de
forma bem-sucedida, o fenômeno a que Mario Quintana já se referiu várias vezes, “a gente pensa
uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa
tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita”.
A escrita precisa servir a uma finalidade poderosa, responder a uma (pelo menos uma)
necessidade da qual não se pode fugir, satisfazer um desejo, muitos desejos de preferência. A
razão de ser é o que conta, nesse caso, talvez mais do que em qualquer outro.
O fato é que a experiência de escrever nos pode fazer melhores, muito melhores. E não há nada
que possa substituir nossa própria experiência de escrita. Essa é uma experiência intransferível.
Incomunicável. Pessoal. Única.
Ninguém poderá nos fazer aprender exatamente o que aprendeu com as leituras que fez e com
os textos que escreveu. E nós não poderemos ensinar exatamente o que aprendemos com as
leituras que fazemos e os textos que escrevemos.
Cada um terá de assumir o desafio, com todas as dores e delícias que ele traz. (Guilherme do Val
Toledo Prado e Rosaura Soligo19)
Mais de uma década se passou, desde a publicação do livro; nesse intervalo a internet produziu um
efeito grandioso no desejo de as pessoas escreverem; muita gente que não escrevia regularmente
passou a fazê-lo; e, no entanto, nem o tempo, nem a mudança das condições de produção, nem a
democratização das possibilidades de escrever minimizaram o risco, o desafio e as dificuldades da
escrita reflexiva. Mas sobre isso falarei adiante.
Para dar a ver a perspectiva de autoria e de escrita reflexiva destinada a documentar e compartilhar
os exercícios possíveis de metacognição daqueles que entraram no jogo desta pesquisa, penso que
essas primeiras considerações por ora bastam. A que tipo de exercício me refiro? O que se dá no
movimento de ação-reflexão e que permite tomar o escrever e o aprender como objetos de análise,
de registro, de explicitação e de compartilhamento.
Por fim... as formas e os movimentos de manifestação da subjetividade em curso.
Quando temos como pressuposto que o sujeito é ao mesmo tempo coautor e produto
singularizado da história e da cultura, as formas e os movimentos de manifestação da subjetividade

PRADO, G. V. T.; SOLIGO, R. Porque escrever é fazer história – Revelações, Subversões, Superações. 2ª. ed.
19

Campinas, SP: Editora Alínea, 2007.


53

terão de ser considerados, se pretendemos conhecê-lo melhor num determinado tempo histórico,
ainda que esse tempo seja o presente.
Neste tempo em que vivemos, será possível ser um sujeito encarnado e autoral, senhor da própria
ação-reflexão, consciente e responsável pelas escolhas que faz? Será possível assumir a palavra e a
assinatura do próprio discurso, ter em perspectiva o diálogo, a escuta, a alteridade, a interlocução?
Será possível produzir cultura, e fazer história, e escrever história, e analisar a si próprio e os modos
de estar no mundo? Será possível aprender sempre, inclusive sobre os processos de aprender, no
entremeio de um espaço-tempo determinado, de um pessoal-social inequívoco para o bem e para
o mal? Tudo indica que sim. Afinal, como diz Boaventura, a possibilidade é o movimento do mundo:
A possibilidade é o movimento do mundo. Os momentos dessa possibilidade são a carência
(manifestação de algo que falta), a tendência (processo e sentido) e a latência (o que está na frente
desse processo). A carência é o domínio do Não, a tendência é o domínio do Ainda-Não, e a
latência é domínio do Nada e do Tudo, dado que essa latência tanto pode redundar em frustração
como em esperança20 (SANTOS: 2002 p. 23).
Mas vivemos tempos difíceis, e tempos difíceis produzem modos de subjetivação por vezes difíceis
de compreender de imediato, se estamos justamente no entremeio, imersos no durante.
Em seu livro “O tempo e o cão” (2009), Maria Rita Kehl aborda alguns dos efeitos complexos
provocados pelo que ela considera uma brutalidade da relação dos sujeitos contemporâneos com
o tempo. A autora não se refere apenas a “estes nossos tempos difíceis”, mas ao tempo que vivemos
(ou não), que passa, que nunca tem o tamanho que desejamos, que tende a ser sempre curto,
insuficiente, corrido, por vezes perdido. Segundo ela,
Paradoxalmente, as mesmas inovações tecnológicas do passado destinadas a nos poupar o tempo
de nossas tarefas manuais e aumentar o tempo ocioso vêm produzindo um sentimento crescente
de encurtamento da temporalidade. Tal sentimento talvez tenha a ver com o encolhimento da
duração21. A vivência contemporânea da temporalidade é dominada por um subproduto das
ideologias da produtividade, as quais rezam que cada momento da vida deve ser aproveitado ao
máximo. O mandato “aproveite bem sua vida”, que poderia produzir alguns efeitos subjetivos
interessantes e criativos, torna-se estéril quando a ideia de “aproveitamento” se alia à lógica da
produção, da acumulação e do consumo. A obsolescência programada do passado e da memória
produz um sujeito permanentemente disponível, pronto a se desfazer de suas referências em troca
das novidades em oferta. Desligado do frágil fio que ata o presente à experiência passada, voltado
sofregamente para o futuro com medo de ser deixado para trás, o dito “consumidor” sofre com
o encurtamento da duração. Assim se desvalorizam o tempo vivido e o saber que sustenta os atos
significativos da existência. (p. 168)
E diz ainda:
As sociedades humanas são organismos vivos em permanente transformação. A proposição
marxista de que os homens fazem a história sem saber o que fazem remete diretamente ao que,
na vida social, permanece fora da consciência de seus agentes, mas também das formações de
linguagem que fornecem sentido à chamada “realidade” – que não passa de uma construção
coletiva de forte consistência imaginária. (p. 29)

20
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica
de Ciências Sociais, ISSN 0254-1106 número 63, 2002.
21
"A duração é algo mais importante que o presente. O presente – na verdade – não existe. O presente é uma mínima
partícula que vem empurrada pelo passado e já roendo o futuro. Entre antes e depois, a única coisa experimentada é a
própria duração. O futuro existe só enquanto projeção, o futuro não é nada, se não, a nossa fantasia". Henri-Louis Bérgson
in “Matéria e Memória”.
54

Se, como diz Boaventura, a possibilidade é o movimento do mundo; se, como diz Maria Rita Kehl,
as sociedades humanas são organismos vivos em permanente transformação, pode ser, sim, que
os processos de subjetivação ainda nos tragam boas surpresas. Por que não?
Vejam que Dany-Robert Dufour (2005), filósofo francês que, no curso do livro “A arte de reduzir as
cabeças”, dedica-se a problematizar como o capitalismo neoliberal tem produzido os sujeitos no
mundo atual, sugerindo que estamos vivendo uma mutação histórica na condição humana, no fim
das contas, conclui, a bem de nossa esperança:
Sou obrigado a constatar que a trágica destruição desse homem nos oferece como que uma
oportunidade inédita. Com efeito, encontramo-nos numa situação excepcional para o
pensamento. Tudo se encontra de perna para o ar. É preciso reconstruir tudo. (p. 210)
Estes tempos por certo estão forjando outras formas e outros movimentos de manifestação da
subjetividade. Não sabemos quais exatamente, porque isso nem sempre sabemos quando imersos.
Como diz Najmanovich, “teremos sempre um ‘buraco cognitivo’, uma zona cega que não podemos
ver e quase sempre ‘somos cegos a essa cegueira’” (p. 23).
Mas, com o tempo, descobriremos.
Os alcances que me foram possíveis, a partir das valiosas contribuições desses três autores – Santos,
Kehl e Dufour – que tomei como interlocutores a partir do momento que as formas e movimentos
de interlocução e manifestação da subjetividade se enunciaram como grandes temas no processo
de sistematização dos dados da pesquisa, compartilharei oportunamente com vocês.
Assim, a reflexão inaugurada nesta parte da tese prossegue e se aprofunda mais adiante,
especialmente quando explicito o percurso metodológico, os critérios de análise dos dados, os
achados pelo caminho – feito, como vocês sabem, ao sabor do caminhar – e as lições aprendidas.
O que vocês acabaram de ler, conforme comentei há pouco, foi trazido para “cá” por deslocamento,
do fim para o começo desta narrativa e desta correspondência. Seria falso, portanto, dar a esta
parte o tom e os sentidos de um texto nascido antes do restante, quando na realidade o tempo do
acontecimento narrativo só veio depois.
Se me ocupo com essa explicação, é por duas razões principais.
Uma é que Guilherme, meu orientador, sempre me aconselhou a ficar atenta a esse ponto. Dizia
que a escolha por uma narrativa como forma de registro, escrita no durante da pesquisa – porém,
não de modo linear e muitas vezes com várias partes sendo produzidas simultaneamente –, aliada
ao fato de o meu tempo presente não coincidir com o tempo presente de vocês, leitores, exigiria
um cuidado especial para garantir um texto inteligível. O leitor de uma narrativa invariavelmente
vai a ela com o seu repertório de leituras prévias e, mesmo sendo natural se surpreender com os
inusitados que encontra, é preciso ter respeito por suas expectativas. Então, procurei cuidar desse
aparente “detalhe”, mas não sei se consegui o suficiente. Fico pensando que por muito tempo vou
ainda encontrar – e é possível que vocês também – alguns erros de continuidade, como se diz no
cinema e na tevê, em que o resultado final do que assistimos é produzido pela edição de muitas
partes. De qualquer modo, conto com a paciência amorosa de vocês, pois escrevo um gênero – a
tese – na forma de um texto narrativo – a carta – que se organiza discursivamente segundo outros
critérios, criando desafios que exigem, às vezes, soluções pouco usuais.
Outra razão desse comentário é que escrever sobre a fundamentação da pesquisa quando ela está
praticamente no fim provoca um desejo crescente e muito justificado de tratar tudo logo de uma
vez – entretanto, parte da explicitação teórica é coisa que só se faz mesmo ao final do registro de
uma tese, e eu sei disso...
55

Quando o desafio é escrever a narrativa de uma experiência de pesquisa, no entremeio fértil dos
“acontecendo”, para produzir uma experiência singular de leitura naqueles que se interessarem por
conhecer o registro disso tudo, a contradição é que elas não coincidem no tempo... Seria muito
diferente narrar em tempo real para interlocutores contemporâneos.
Assim, para que vocês possam acompanhar o projeto discursivo que me guiou, saibam que daqui,
agora, na realidade, prossigo, lá mais adiante, com essa conversa a respeito de subjetivações, e
carências, e tendências, e latências em um mundo de pernas para o ar. Vou checar as rotas com os
mapas para tratar de explicar porque “Os dados revelam sentidos” (a parte destinada à análise final
dos dados). Enquanto isso, assim espero, vocês vão para o mar aberto que se anuncia na próxima
página. Estarei sempre com vocês, de algum modo, misteriosamente, lá e cá.
Mas também se vocês quiserem vir comigo lá mais para adiante, mais para o final, embora pouco
recomendado, nada os impede.
56

[Navegando em mar aberto]

Inventar aumenta o mundo.


Manoel de Barros

Na atualidade, depois de vários séculos sob o império do método,


hipnotizados ainda pelo discurso moderno, estamos começando –
ainda que timidamente – a sacudir-nos com o jugo desse feitiço
metódico, a navegar nos mares da incerteza e da criatividade. Mas
o preço que temos que pagar para isso inclui a renúncia à ilusão de
um saber garantido e absoluto. Essa não é uma tarefa simples, pelo
contrário, requer a aceitação de nossa finitude, de nossa limitação,
de nossa incompletude radical de todo conhecer. Não obstante,
essa é a única forma de abrir as portas à invenção, à imaginação, ao
destino e à diferença. Em contrapartida, pelo espaço assim
regenerado, poderá entrar o erro, mas, em caso contrário, não
temeremos nada mais que a eterna repetição do mesmo, do já dado.
Denise Najmanovich

Narrarei aqui parte dos episódios da travessia. Em uma pesquisa que se pretende pautada na
articulação conteúdo-forma-registro, o movimento no percurso é também o movimento na
narrativa, que produzirá, por sua vez, talvez, um movimento de deriva na leitura de vocês, leitores.
E devo dizer que, numa retomada destas notas para revisão, na manhã de 1º de maio de 2014,
ainda sob o efeito do encantamento provocado pelo texto de Carlos Skliar que acabara de ler e
transcrevo a seguir, pareceu-me inevitável, não por mera coincidência, inseri-lo justo aqui.
Entretanto, peço a todos a gentileza de uma substituição, no ato da leitura: onde está escrito “o
mundo’’ (quando destacado em itálico por mim), leia-se o mundo desta pesquisa. E terão vocês
então um texto não meu, que, no entanto, subscrevo.
... No se trata de un suelo que se pisa y otro, su contratara, el vacío oscuro y hondo donde
se yace. No se trata de prestar atención apenas al mundo que está por encima: también
está el mundo de antes y no es posible sentir y pensar el mundo sólo por aquello que
ocurre en su superficie, en el aquí y ahora estrecho, en la mezquindad del presente.
El mundo es un aroma de siglos. Una pronunciación incesante. Hacia atrás y hacia
delante. El mundo comienza, quizá, allí donde no lo vemos: en sus entrañas, en sus gases
retorcidos, en los minerales que nos sostienen. El mundo está boquiabierto. El mundo
se compone de todo lo que ahora vemos y escuchamos y tocamos, sí. Y lo que vemos,
escuchamos y tocamos nació antes, antes de nosotros, mucho antes del instante en que
pudiéramos saberlo.
Lo cierto es que mirar hacia atrás – o incluso hacia los lados – girar el rostro hacia el
tiempo que nos precede, leer sin coyuntura, leer sin el peso de lo actual, leer lo
desconocido, es un gesto ya antiguo, desusado, anacrónico, incluso sospechoso.
... Leer es una pausa. Las pausas suelen alargar el universo. Leer es detener el tiempo
que nos asigna este mundo e impedir que la máquina utilitaria del universo siga su camino
de masacres. Leer es dejar de hacer ruido. Leer es apoyar el cuerpo en un tiempo que
no vivimos, para intentar vivirlo. Leer es quitarse de la tiranía opaca de un único tiempo.
Leer es ese instante en que la conversación con los muertos se vuelve pura vida. Leer es
la detención que podría hacer más hondo al mundo. (Carlos Skliar)
57

Esse não é aquele o tipo de texto que, ao ler, vocês pensam: “Eu poderia ter escrito isto!”? Se for, eu
entendo. Comigo também é assim... Isso é o que Adriana Pierini chama de “autoria apropriada”,
que é quando sentimos intimamente que aquele texto é “nosso”, também é nosso.
Bem, se na Primeira Correspondência me ocupei de apresentar a vocês os dispositivos de
orientação desta “viagem”, era justamente para tranquilizá-los sobre nossas possibilidades de
chegar a salvo à Ilha Desconhecida e, agora, principalmente agora, poder lançar o texto ao sabor
do tempo sem temer desapontá-los por falta de um destino.
Para tornar inteligível esta história, de modo a mantê-los comigo, convictos de que a travessia não
será enjoativa e nem tampouco em vão, decidi produzir uma espécie de registro de bordo,
indicando as datas de algumas anotações que merecem destaque aqui. São narrativas reflexivas
sobre os episódios provocados por esse tipo de escolha pela deriva que se revelaram, ao mesmo
tempo, experiências singulares de navegação e faróis sinalizadores do percurso.

Cartografia da Navegação | Notas de Abril a Setembro de 2012

Após a primeira aula do doutorado, em fevereiro de 2011, tomei a primeira decisão importante em
relação à pesquisa e aqui transcrevo um fragmento do registro na época, tarefa da disciplina
“Reflexividade e Formação de Professores” que eu cursava22. Isso pelo fato de essa decisão, que
muito me entusiasmou, ter sido a primeira a ter perdido parcialmente a validade.
Para abordar o significado do movimento de deriva no percurso da pesquisa, pareceu-me um bom
começo...

Nasce uma ideia

A caminho do Acre em uma manhã de quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011, dia seguinte à


primeira aula do doutorado, lembrei-me de que foi também em um voo que encontrei resposta
para um problema complexo nos tempos do mestrado. Daquela vez eu precisava achar um título
que comunicasse a ideia central da pesquisa e o seu objetivo, mas que necessariamente fosse
curto – não queria os tradicionais “samba-enredos”, nem dois pontos, nem palavras em profusão
desnecessária, como ocorre geralmente nos títulos e registros de pesquisa.

Em uma viagem curta para o Rio, pensando no que fazer com aquela difícil equação, cheguei
ao que considerei um resultado elegante: “Quem forma quem? – Instituição dos sujeitos”. Um
nome que, com apenas seis palavras, de certo modo “explica” a pesquisa: uma pergunta que
anuncia mais ou menos indiretamente a concepção de formação e a afirmação da condição de
sujeito em três dimensões. A expressão “instituição dos sujeitos” remete a três sentidos bastante
diferentes (foi o que me dei conta na época): de sujeitos que são donos da instituição (entendida
como uma organização), de sujeitos que instituem (que “dão o tom”, que formam) e de sujeitos
também instituídos (formados, portanto). Ou seja, instituição entendida primeiro como
organização e depois, nos dois últimos casos, como processo.

Pois então... A solução de um problema complexo em 2007, a mais de onze mil pés de altitude,
produziu uma ilusão útil de que a essa altura as respostas que procuramos são favorecidas.
Então agora, algo semelhante talvez tenha acontecido... Desde que Guilherme e Ana
apresentaram os conceitos centrais da disciplina e trataram da questão do portfólio reflexivo,

22
Ministrada por meu orientador, Guilherme do Val Toledo Prado, e pela Professora Ana Maria Falcão de Aragão.
58

fiquei ruminando um ingrediente que, agora, depois de ler o texto da Professora Idália23,
indicado para estudo, alimentou a conclusão daquela manhã e certamente dará o tom na
realização da tarefa proposta por eles, de produzir um portfólio desse tipo ao longo do semestre.
Eis algumas das afirmações importantes feitas pela autora, que reúno aqui com critérios meus e
palavras próprias:

O portfólio reflexivo constitui uma narrativa múltipla, de natureza biográfica, que deve
evidenciar o fluir dos processos subjacentes ao modo pessoal como cada qual se apropria
singularmente da informação, reconstruindo o seu conhecimento prévio. Trata-se de um
diálogo entre diferentes vozes – a dos interlocutores diretos e as dos autores de referência
teórica que são convocados à reflexão, embora numa relação mais distanciada. Os portfólios,
pelo que transportam e significam relativamente ao seu narrador/autor, (também) trazem gente
dentro. Ou seja, devem ser lidos pelos que neles são convidados a interagir, com respeito
absoluto pelos modos e expressões singulares com que cada eu se manifesta (ou se oculta) para
melhor gerir a sua capacidade de ser, de fazer, de entender e de partilhar o mundo. Há um
continuado esforço para a passagem dos modos solitários de aprender, de fazer e de ser, a
outras possibilidades mais solidárias, porque comumente negociadas, partilhadas e interagidas.

Por essas e por outras, no voo para Rio Branco, fui tomada por três ideias que não mais me
abandonaram, embora, justo por isso, eu já preferisse talvez não as ter tido. Uma foi fazer o
portfólio proposto na disciplina em uma página da internet – um blog wordpress. A outra foi
documentar a pesquisa do doutorado na forma de um portfólio reflexivo hospedado nesse
mesmo blog (ainda que fosse necessária também uma versão impressa convencional, que nesse
caso seria bem enxuta e formal). E a outra foi, com esta primeira reflexão, inaugurar o registro
da tese e, pelo estreito vínculo com o conteúdo da disciplina, já começar a reunir os textos
relacionados ao início de pesquisa. Sim, porque, se o tema da pesquisa que me propus a realizar
seria justamente a aprendizagem que acontece nos processos de interlocução que têm lugar na
internet, nada mais coerente. Pelo menos, assim me pareceu...

E há também outro ponto nessa curva do caminho que talvez seja bom aqui lembrar: no
mestrado, a perspectiva metodológica construída foi a de “pesquisa da pesquisa na pesquisa” e
o registro, na forma de cartas aos educadores, tinha a pretensão de ser um exercício
metacognitivo, um diálogo reflexivo, uma narrativa pedagógica. No doutorado seria o caso de
radicalizar essa experiência. Pelo menos assim me pareceu...

Quem sabe, para além de uma pesquisa narrada e compartilhada no percurso da pesquisa, eu
já fosse capaz de uma investigação narrativa definida intencionalmente?

O blog, que era uma proposta já anunciada, desde o projeto apresentado para o processo seletivo
do doutorado, ampliada a partir das ideias que se adensaram no voo para Rio Branco, foi criado
ainda em fevereiro de 2011, assim que aprendi a manejar a ferramenta do wordpress
(http://wordpress.com/), que ficou com o layout que se vê a seguir, no endereço
http://aquidentrotemgente.wordpress.com/
A proposta original era postar no blog os registros parciais e o percurso da pesquisa, conforme
fossem acontecendo, e depois apresentá-lo como parte constituinte da tese, que teria, como se
exige institucionalmente, e apenas por essa razão, uma versão impressa convencional no formato
o mais convencional possível.

23
Os portfólios reflexivos (também) trazem gente dentro - Nota de Apresentação. Porto, PT, 2005.
59

Em 2011, os textos pessoais relacionados à pesquisa foram todos organizados no blog de modo a
não apenas registrar os eventos e as escolhas, mas principalmente minha experiência de
pesquisadora durante o percurso, já que a boa ideia sempre foi de um portfólio reflexivo com gente
dentro. E em 2011 o blog foi o lugar privilegiado desse portfólio, produzido com o cuidado e o
capricho que merece uma criação dessa natureza, misto de sala de estar com cozinha aberta à
visitação.
Por isso, criei categorias e páginas (ver à esquerda na imagem anterior e logo mais abaixo) para
facilitar a organização de todo o material postado e a circulação dos visitantes – um grupo bastante
restrito, composto apenas pelos sujeitos-colaboradores e por alguns convidados.
Em uma página específica, chamada “Para entender a ideia”, está a explicação da proposta inicial:
60

Aqui dentro moram e convivem dois portfólios: um deles é tarefa da Disciplina Reflexividade e
Formação do Professor (hospedado em Portfólio do percurso) e o outro é registro da pesquisa
de doutorado, que coincide com todo o espaço do blog e será a fonte da tese.

A respeito da tese, embrionária, o que até o momento está posto é o seguinte: a versão narrativa,
metacognitiva, reflexiva, com um sujeito pesquisador implicado, estará registrada neste blog em
forma de portfólio. E a tese a ser entregue em alguns anos, extraída do portfólio, terá o modelo
mais convencional possível.

Meu desejo é que a banca de qualificação e defesa compare os dois registros e lamente que, a
depender do tipo de pesquisa, as exigências da Academia estejam na contramão da produção
de conhecimento e que talvez valha a pena flexibilizar um pouco mais os protocolos, porque os
critérios de pertinência das escolhas (metodológicas e de documentação do trabalho) têm a ver
com a natureza do assunto e com os objetivos que se colocam.

Do mesmo modo que não será pertinente registrar uma pesquisa de ponta sobre células-
tronco em um portfólio reflexivo hospedado em um blog, também não será pertinente registrar
uma pesquisa sobre certos assuntos, relacionados, por exemplo, à interlocução de pessoas, em
um formato canônico de tese… Faz sentido?

O fato é que a ideia do blog, na realidade, não se revelou tão boa como a princípio parecia, pois
funcionou muito mais como um registro pessoal organizado e esteticamente melhor (bem melhor!)
do que as pastas comuns do computador, mas, verdade seja dita, não despertou muito interesse
naqueles que eram os seus destinatários principais.
Essa circunstância não prevista me desanimou em relação à suposta importância e à potência que
um espaço de registro virtual teria no processo da pesquisa, fazendo com que, a partir de 2012, por
longos períodos eu sequer o visitasse. Os textos de subsídio, as ideias, anotações pontuais e outros
materiais passaram a ser indicados em notas provisórias neste texto aqui, cuja arquitetura foi
projetada precocemente, e a se alojar lá mesmo nas pastas do HD.
O registro, portanto, sempre existiu, ora num espaço, ora no outro. As escolhas e os
encaminhamentos iniciais da pesquisa foram todos documentados no blog: o processo de
composição do grupo de sujeitos, em abril de 2011, a tentativa de ativar um grupo de e-mails para
comunicação simultânea entre todos e a perspectiva de um chat para discussão dos temas da
pesquisa – iniciativas que não decolaram, o que comentarei mais adiante. E lá estão outras tantas
ideias que ganharam forma e vigor, devidamente registradas nos espaços internos criados para
esse fim:

PÁGINAS

 1. ≡ para entender a ideia ≡


 2. AQUI -> comentários gerais
 3. autobiográficas
 × experimentos iniciais ×

ISSO AQUI É TUDO

 1. ≡ para entender a ideia ≡


 2. AQUI  comentários gerais
  ∞ portfólio do percurso ∞
 área de serviço  fabrilinks
61

 agradecimentos
 bibliografia
 considerações
 correspondência
 escaninho
 escolhas metodológicas
 frugais
 guar-dados
 imagens na retina
 matriz conceitual
 peneira de dados
 pipocas pedagógicas
 textos estudados
 varalzinho das ideias
 zoom (nos achados)
 umas e outras
 × experimentos iniciais ×
 3. autobiográficas

Está no blog, abrindo o espaço de Correspondência, por exemplo, a primeira mensagem que enviei
para os convidados a participar como sujeitos-colaboradores da pesquisa:

Em 26 de abril de 2011 19:19, Rosaura Soligo <rosaurasoligo@gmail.com> escreveu:


Caros,
A razão e a emoção desta mensagem é convidá-los para integrar o grupo de sujeitos-participantes da
minha pesquisa de doutorado.
O que pretendo com o trabalho de investigação e a razão deste convite vocês entenderão ao ler a
‘ficha’ do projeto, que segue em anexo.
Nos perfis dos sujeitos, elencados na 'ficha', certamente vocês identificarão um ou mais critérios que
justifica/m este convite.
Gostaria muito de contar com a participação de vocês neste percurso que se inicia e desde já aguardo
uma resposta boa.
Posteriormente, quando houver uma relação dos participantes que aceitaram caminhar comigo (que,
como é de se supor, eu espero serem todos os convidados), a lista de destinatários será aberta.
um grande abraço
Rosaura Soligo

Na página se encontram outras correspondências e outras tantas importâncias, pelo menos para
mim. Especialmente em Correspondências e Escaninho há muitas informações relevantes sobre o
processo inicial da pesquisa.
Para além do que previa o projeto com o qual fui aprovada no doutorado, é possível acompanhar
o período do início de 2011 até meados de 2012 pela cronologia dos encaminhamentos – e minha
reflexão sobre eles – por meio da navegação no blog.
Os marcos principais são os seguintes:
2011 - Fevereiro: Criação do blog http://aquidentrotemgente.wordpress.com/
62

2011 - Abril: Composição do grupo de sujeitos, seguida de comunicação com eles por e-mail |
Discussão do projeto de pesquisa no GEPEC, com leitura crítica do Professor Rogério Moura, do
LABORARTE - Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação da Unicamp | Elaboração do
perfil geral do projeto (que foi incluído depois na Primeira Correspondência e no mapa conceitual).
2011 - Setembro: envio da primeira solicitação aos sujeitos-colaboradores – o perfil para preencher,
já apresentado anteriormente.
2011 - Dezembro: criação da comunidade virtual (grupo de e-mails) e socialização dos perfis.
2011 - Ano todo: documentação no blog de todo o material da pesquisa e das reflexões que foram
possíveis até então.
2012 - Até Abril: leitura do perfil e demais escritos enviados pelo grupo de sujeitos e comunicação
com eles por e-mail.
2012 - Abril a Julho: escrita parcial dessas primeiras notas, complementadas posteriormente, e
solicitação do depoimento que se constituiu no instrumento principal de produção dos dados.
2012 - Agosto: sistematização e socialização dos depoimentos dos sujeitos.
2012 - Setembro: organização da estrutura preliminar da tese | Escrita da Primeira
Correspondência.
Bem, mas voltando agora à questão do registro, já não mais no blog, a realidade é que fui tomando
gosto por este texto aqui. E a perspectiva inicial de uma tese em versão impressa apenas para
atender as exigências acadêmicas e o desejo – uma provocação, na verdade – de instigar a
comparação entre o atraente portfólio reflexivo hospedado no blog e uma versão impressa em
formato canônico, o mais “quadradinho possível” perdeu completamente o sentido. Foi me
parecendo muito mais sedutor produzir este texto do modo como vocês estão lendo, também ele
“cheio de gente dentro”. Ele nasceu com a estrutura de um registro de pesquisa em setembro de
2012 a partir da elaboração de um sumário preliminar e da sua projeção como títulos em páginas
“abertas” para a escrita dos episódios desta narrativa. Como esses episódios não são
cronologicamente lineares, a narrativa foi sendo produzida a partir de vários acontecimentos, ora
em uma parte do texto, ora em outra. A primeira parte da tese escrita por inteiro foi a Primeira
Correspondência, produzida também em setembro de 2012, e ao longo do tempo ela pouco se
alterou.
As notas datadas que constituem esta Cartografia não são indicativas de quais foram os momentos
exatos de escrita ao longo do percurso, pois o texto passou por uma construção contínua. Elas são
apontamentos de marcos relevantes da pesquisa que explicitam a cronologia dos
encaminhamentos, e em parte foram produzidas no momento (por vezes, apenas com uma lista de
tópicos) e em parte, retrospectivamente.
No caso destas primeiras notas, o propósito foi compartilhar as rotas traçadas inicialmente e revelar
quais delas, embora projetadas, não se reverteram em caminhos de fato trilhados porque os
acontecidos empurraram a navegação para outros lados.
E vejam vocês o que acabou ocorrendo com a história do blog: com o passar do tempo, a ideia, que
parecia inteiramente abandonada pelo caminho, emergiu e se reconfigurou. No dia 28 de abril de
2014, novamente a 11 mil pés, em uma viagem de trabalho para Maceió, encontrei um novo
sentido para o blog e então, dois anos depois, vim aqui escrever este parágrafo que vocês estão
lendo agora, para compartilhar “em primeira mão” o destino que pensei para ele: talvez sua melhor
vocação seja a de se constituir como um espaço de registro a partir da qualificação ou da defesa
quando houver uma produção mais inteira e puder subsidiar pesquisadores interessados em
conhecer como se deu o processo de produção de conhecimento durante a pesquisa. Aí então a
63

perspectiva do portfólio reflexivo, que estava na origem da proposta, talvez faça mais sentido
também para os leitores, e não apenas para mim. E isso com toda certeza me animará a produzi-lo,
porque, sinceramente, sem leitores, a produção de um registro que se pretende público não tem a
menor graça e, portanto, não me seduz a empreender tempo e energia para fazê-lo acontecer.

Cartografia da Navegação | Notas de Outubro de 2012

Já comentei anteriormente que a ideia de produzir e sistematizar um conhecimento novo sobre


pesquisa qualitativa – especialmente no que diz respeito ao que chamo de estética da coerência e
à forma de desenvolver uma experiência de pesquisa narrativa em três dimensões – foi algo que
emergiu como objetivo “no durante” da pesquisa, isto é, no percurso do trabalho. Este, que talvez
fosse desde sempre um desejo inconsciente, evidenciou-se como propósito explícito por conta do
diálogo com o meu orientador e com outros interlocutores, além da reflexão pessoal sobre os
acontecimentos, as conversas e as inquietações que me movem.
Essa me parece uma informação necessária de compartilhar, uma vez que revela a plasticidade dos
a prioris e o movimento metodológico de deriva que caracterizam a pesquisa narrativa que escolhi
fazer. E confesso a vocês: já há muito convencida de que forma é conteúdo, temi ser arrebatada
por essa ideia de teorizar a metodologia a partir da própria experiência e perder o foco nos demais
conteúdos... Mas isso não aconteceu.
Pois bem, em setembro escrevi a Primeira Correspondência da tese a partir do perfil da pesquisa
elaborado em março/abril (para a discussão do projeto no GEPEC), que por sua vez foi feito com
base na versão do projeto com a qual concorri no processo seletivo que, por sua vez, quando
organizada, contou com contribuições importantes de vários leitores críticos. Com isso, quero dizer
que, embora modificado, ampliado, melhorado, o perfil tem um núcleo central que sempre se
manteve e isso se deve a duas razões principais.
Uma é que, por desejar propor uma pesquisa narrativa construída e documentada “no durante”,
cujo percurso é muito atípico, e portanto pouco conhecido, no período de elaboração do projeto
(em 2010) eu estava muito mobilizada para entender a relação entre os elementos constitutivos de
um trabalho de pesquisa – problema, tema/objeto, objetivo, metodologia, instrumentos de
produção de dados etc. – e poder inventar o meu próprio modo e estilo, porém sem destituir o
trabalho da sua condição de pesquisa de fato, sem desconsiderar que a situação é de produção de
uma tese de doutorado. Ou seja, pretendia conhecer para transgredir, porém sem descaracterizar.
Então, por conta do que me foi possível aprender com os interlocutores, que na época fizeram a
análise crítica do projeto, ele ficou razoavelmente bem explicitado desde o início.
E outra razão é que nunca pretendi fazer mudanças substantivas na proposta original e, por isso, o
essencial sempre se manteve.
Compartilhar com vocês as escolhas na introdução – a Primeira Correspondência – foi um modo
de esclarecer o plano da navegação para poder em seguida experimentar a transgressão da deriva.
Nas “Notas anteriores” comentei alguns desses movimentos ao sabor dos ventos e os efeitos
produzidos no percurso. E nestas, agora, há outros movimentos a destacar.
Um deles tem a ver com o memorial de formação. Foi precisamente em outubro que comecei a
escrevê-lo e foi, portanto, a essa altura do trabalho que concretizei as ideias, explicadas no início da
Segunda Correspondência, de inserir essa parte no final da tese, de incorporar na íntegra o
memorial produzido para a dissertação de mestrado e de diferenciar memorial de pesquisa e de
formação. Essas possibilidades só se tornaram de fato possibilidades porque a liberdade de escolha
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assim permitiu. E essa liberdade, convenhamos, obriga a um redobrar de atenção e a um cuidado


com as escolhas, pois são “assinadas”, autorais, de minha quase inteira responsabilidade. A
curiosidade obstinada por entender a anatomia de uma pesquisa acadêmica sobre a qual eu
comentava há pouco tinha a ver com esse desejo de alguma radicalidade na transgressão: sendo
eu a responsável pela produção de inéditos viáveis, pelas rotas de uma viagem à Ilha Desconhecida,
teria de saber o necessário suficiente sobre ilhas conhecidas. A ideia de que é possível e necessário
criar inéditos viáveis, defendida por Paulo Freire, e a sentença de Bakhtin de que somos sempre
responsáveis por nossos atos estiveram sempre a me inspirar e me afligir.
Essas afirmações de um e outro sempre estiveram, por assim dizer, tatuadas no leme:
Inédito viável é algo de sonho e utopia que vai se forjando na realidade por obra daqueles que não
se intimidam diante de limites e dificuldades. (FREIRE: 1997)
Sem dúvida, a escrita de correspondências seguidas umas das outras – a Primeira, a parte inicial da
Segunda e a Complementar, dos memoriais – trouxe, nesse período, uma compreensão ampliada
dos acontecidos, dos planos e dos percursos. Sim, porque se a escrita é plataforma de lançamento
à reflexão, quanto mais e mais reflexivamente se escreve, maior a compreensão possível. Ação-
reflexão-ação é isso, não é? Fazer, pensar para fazer melhor, fazer melhor e pensar melhor e tudo
de novo outra vez.
A cronologia dos encaminhamentos desse período foi esta:
2012 - Outubro: início da escrita do memorial do doutorado, que é complemento do anterior, do
mestrado, mantido na íntegra.
2012 - Agosto a Outubro: diálogo com os sujeitos-colaboradores que demonstraram interesse em
“trocar ideias” comigo sobre os próprios depoimentos, as dúvidas, as hipóteses.

Cartografia da Navegação | Notas de Maio e Junho de 2013

Por alguns meses, no que diz respeito à escrita, dediquei-me especialmente ao memorial, que foi
escrito com palavras sem pressa e sempre que possível (em meio a uma rotina profissional bastante
conturbada), com muito prazer e zelo pelas escolhas de palavras. E assim se estendeu por mais de
um ano, de outubro de 2012 a junho de 2014, ganhando uns poucos ajustes depois. No mais, as
ideias e os fragmentos de textos da tese foram produzidos muito mais em pensamento, o que não
significa um resultado menos relevante, de forma alguma.
Desde que, há muitos anos, como professora alfabetizadora, pude compreender que produzir
textos e produzir textos por escrito são processos diferentes, pude também compreender que os
textos são elaborados em pensamento, de forma por vezes mais e por vezes menos organizada, a
depender do estilo do autor, do quanto tem ou não claro aquilo que pensa e de sua habilidade de
traduzir ideias em palavras, pensadas ou escritas. Depois, então, quando aprendi com Bruner
(2002) que pensamos predominantemente de modo narrativo, contraí a plena convicção de que a
impossibilidade concreta de produzir por escrito o texto da tese – por falta de tempo, local
apropriado ou coisa que o valha – não significa, em absoluto, a pausa na produção da tese, se
estivermos com ela em pauta no pensamento. Assim, mesmo em momentos de pouca escrita, a
pesquisa e a tese sempre estiveram em movimento, produzindo-se continuamente. Porque nunca
deixei de me “pré-ocupar” com elas.
É desse período um episódio importantíssimo: a criação de um grupo no facebook para o qual foi
inicialmente pedido um depoimento, por meio de uma mensagem inbox, tal como se vê abaixo:
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Queridos,
Hoje escrevo para pedir. rs
Escolhi vocês, dentre os autores de Des|Amorosas – por serem aqueles que, segundo minha
percepção, se engajaram sensivelmente na escrita dos textos ou se interessaram pela publicação de
escritos que já existiam – e gostaria de saber a opinião de todos em relação a duas questões:
◦ Como tem sido para vocês a experiência de escrever/publicar esses textos nas Des|Amorosas e
que aprendizados essa experiência trouxe, se é que houve algum aprendizado.
◦ Como tem sido a experiência de ler esses textos e que aprendizados têm trazido, se é que há
aprendizados.
Alguns de vocês já sabem que minha tese de doutorado é sobre o que aprendemos com a
comunicação escrita na internet e, portanto, a opinião de vocês sobre as duas questões acima será
uma contribuição fundamental.
Se quiserem, será também muitíssimo bem-vinda a reflexão de vocês sobre o que têm aprendido, de
modo geral, com a comunicação escrita na internet (caso já não tenham me enviado isso antes ou
tenham algo mais a dizer).
Gostariam que escrevessem por aqui, para que os demais destinatários desta mensagem também
possam ler as opiniões de vocês, mas, se preferirem, podem me enviar por e-mail.
Só posso prometer a vocês, em retribuição, minha gratidão para todo o sempre e um destaque
especial nos agradecimentos iniciais da tese.
E, se puderem me escrever nos próximos dias, agradeço mais ainda, pois vou começar a organizar
os dados da pesquisa. Não precisa ser nada muito elaborado e nem revisado, nem nada: me interessa
mesmo é a opinião de vocês.
um beijo e aguardo,
Rosaura

O retorno a essa proposta foi impressionante, superou todas as expectativas que eu tinha e fez
emergir uma fonte de dados da pesquisa não prevista até então – e sobre ela comentarei mais
adiante.
Dois outros episódios dignos de nota nestas Notas ocorreram em junho de 2013, quando fiz uma
leitura de tudo o que já havia escrito neste texto e em outros fragmentos produzidos fora dele para
serem incluídos depois: o "des-engano” em relação ao conceito de gênero, segundo Bakhtin,
comentado de início, e a identificação de conceitos emergentes que mereciam aprofundamento a
partir da reflexão fomentada pela narrativa do já feito “no durante”: os conceitos de sujeito
encarnado e de autoria.
Claro que, se considerarmos a temática da pesquisa, esses conceitos, como outros tantos, de certo
modo seriam até “inferíveis” a priori, desde o projeto original. Entretanto, se considerarmos a
abordagem metodológica adotada, a priori eles seriam apenas eventuais possibilidades: só o curso
da navegação poderia confirmar ou não os possíveis-necessários. Em uma pesquisa como esta, o
critério de validade está nos acontecidos e acontecendo, e não nas projeções virgens de realização.
E assim emergiu também a perspectiva de desenvolver a própria ideia de “conhecimento-
emergente” pela pertinência no contexto da pesquisa.
A cronologia dos encaminhamentos foi esta:
2013 - Maio/Junho: Elaboração de ajustes conceituais e definição de encaminhamentos teóricos |
Formação de um grupo no facebook de autores de histórias para a Série Des|Amorosas e
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solicitação de depoimentos sobre a experiência de leituraescrita dos textos desse projeto |


Realinhamento dos conceitos.

Cartografia da Navegação | Notas de Setembro a Dezembro de 2013

Esse foi um período de princípios. Iniciei a sistematização da abordagem de pesquisa narrativa em


três dimensões, dos procedimentos metodológicos de produção dos dados utilizados por
pesquisadores do GEPEC, do mapeamento de conceitos e dos dados da pesquisa. O resultado
desse processo está registrado nos “capítulos” da tese que tratam dessas questões.
Guilherme, meu orientador, fez uma leitura minuciosa da versão do texto à época e sugeriu
encaminhamentos importantes com vistas ao texto de qualificação.
E também neste período se intensificou a comunicação com os sujeitos-colaboradores, pois o
processo de produção dos dados foi suscitando análises parciais, e delas foram emergindo questões
compartilhadas com eles, como ilustra a mensagem abaixo, enviada por e-mail (dentre outras
tantas).

2013/8/13 Rosaura Soligo <rosaurasoligo@gmail.com> escreveu:


Queridos,
Além das questões que eu havia destacado dos depoimentos enviados por vocês, nos últimos dias
surgiram novas boas provocações, trazidas por muita gente (para grupo aqui ou em mensagens
privadas só para mim). Listei todas a seguir para facilitar, de modo que quem quiser opinar possa
escolher uma ou outra (ou todas rs):
1. As grandiosas mudanças culturais produzidas pela internet, em especial pelas redes sociais, que
dizem respeito à ampliação impressionante do uso da escrita para favorecer a comunicação
com/entre as pessoas, hoje, em boa parte “viciadas” nesse tipo de comunicação (e também por
SMS) que exige necessariamente ler e escrever.
2. O papel que as redes sociais, especialmente o facebook, têm assumido na formação das pessoas –
às vezes péssima, no caso de crianças e jovens.
3. O fato de que, com o uso cada vez maior da leitura e escrita por crianças e jovens (em seus
celulares e computadores), o conceito de analfabetismo funcional por certo terá de mudar, uma
vez que esses jovens se tornam progressivamente usuários proficientes da escrita, muito embora
dos tipos e nos gêneros menos “requintados”.
4. A impressão de que a internet, especialmente por meio das redes sociais, criou a possibilidade
de um protagonismo empoderante, vinculado a todo tipo de causa, inclusive a causa
própria. Parece haver uma certa exacerbação da suposta condição de “sujeito dos dizeres”,
apoiada na prática (antes impensável em larga escala) da publicação sem editor.
5. A tensão gênero-texto no momento de escrever nossas dissertações e teses, quando a opção é por
registros narrativos, agora considerando também as últimas ponderações do Adail:
“Embora não se altere o gênero per se, ainda assim se promovem algumas alterações nele
quanto à posição enunciativa do escrevente-autor, mas que ainda não sei quais são
precisamente. Não tem nada a ver com o texto em si, mas com a 'voz autorizada' possível de
cada ambiente institucional. Afinal, gênero é algo que se altera permanecendo relativamente
estável.”
6. A possibilidade de, pelo menos em certas partes da tese, “trazer” os autores de fundamentação
da pesquisa muito mais “através” dos sujeitos/colaboradores (vocês) do que do recurso exaustivo
e enjoativo (para o meu gosto) do “segundo Fulano ...”. Guilherme me sugeriu “ir trazendo quem
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necessário for, conforme a pertinência, todos como ‘outros igualmente significativos’” e (acho
que, também nesta mesma direção,) Ester lembrou/comentou:
“Sobre esse assunto, lembrei imediatamente das páginas que abrem o nosso livro ‘Porque
escrever é fazer história’, onde você e Guilherme escreveram ‘Um colóquio sobre os riscos’,
aquela conversa imaginária com poetas, pensadores, educadores, filósofos, escritores, como
se estivessem todos reunidos em uma ágora, em plena eternidade, além das fronteiras que nos
separam de tudo e todos. Ali o devir tese já anunciava outra cartografia do saber, potente e
desterritorializado, em conexões que fabulam e criam órbitas e referentes distintos, enredando
pensamentos, conceitos, experiências e sensações. Ali já se podia entrever uma imensa rede
de ideias se formando, como hoje se diz, com as ‘cabeças nas nuvens’.”
E Adail também falou a esse respeito:
“O problema a meu ver não é ter ou não fundamentação teórica. Pode-se partir da teoria que
se quiser, mas é preciso estabelecer critérios de análise em todo trabalho com dizeres alheios,
para não se cair em algum impressionismo.
Se examinares os vários depoimentos aqui, do ponto de vista da identidade dos sujeitos nesse
ambiente digital, de sua imagem de sujeito, e se deixares claro que vais fazer isso, tentando ver
como se situam do ponto de vista de sua formação, poderás ser fiel a dois senhores, o Senhor
das Teses e o Senhor dos Teus Sonhos. (...) Há margem para esse, digamos, ‘viés’.”
7. Esta, que é específica da discussão de alguns autores de Des|Amorosas, projeto de leitura/escrita
que se unifica em torno de um propósito transversal comum: “a escrita de si”, ainda que disfarçada
de literatura:
O impressionante fenômeno que ocorre com algumas pessoas quando leem o texto do outro e
sentem como que um “suspiro de susto” por dois tipos de sentimento: o de profunda
identificação com o dito/escrito e, mais do que isso, um fenômeno meio surrealista de “autoria
por apropriação” (tal como nomeou Adriana Pierini), que é quando, ao ler, de imediato a gente
se sente “também autor” do texto/dizer do outro. Hoje mesmo aconteceu comigo quando ouvi o
Carlos Skliar declamando em espanhol, liiiindamente, isto aqui que transcrevo em “meu mau”
português:
“A distância mínima entre dois corpos não é a palavra óbvia, e sim o mais tímido dos silêncios.
Por isso, às vezes é melhor calar, não para dizer amor, mas para escutá-lo.” (Carlos Skliar)
Que eu me lembre, por ora, são essas sete questões, para que vocês, se puderem, se divirtam
pensando/compartilhando a respeito, de preferência até o fim deste mês (mas podendo também ser
depois, claro, como sempre, que o que me interessa é que opinem e não que se preocupem com
prazos).
Beijos,
Rosaura

Esse tipo de comunicação sempre aconteceu, às vezes frequentemente e às vezes com intervalos
maiores. Porém, a “conversa” quase sempre foi apenas comigo, ainda que eu sempre socializasse
com todos as mensagens recebidas, convidando-os a opinar, a se manifestar, debater – e ainda que
fosse evidente (porque muitos me disseram isso) que parte considerável do grupo, mesmo sem se
manifestar, acompanhava tudo de perto.
Com um grupo de autores das Des|Amorosas, entretanto, o diálogo efetivamente ocorreu, e de
maneira muito produtiva, pelo facebook, o que comentarei em outros momentos, mais adiante.
Como se vê na mensagem acima, a ideia de, sempre que possível, tomar os sujeitos-colaboradores
como referências teóricas privilegiadas surgiu a essa altura, em agosto de 2013.
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A cronologia dos encaminhamentos foi esta:


2013 - Junho a Agosto: intensificação do processo de interlocução com os sujeitos.
2013 - Setembro a dezembro: início de um processo focado na sistematização de características
importantes da pesquisa - abordagem narrativa em três dimensões, procedimentos metodológicos
de produção dos dados (utilizados por pesquisadores do GEPEC), mapeamento de conceitos e
dados da pesquisa / esboços iniciais de análise que fizeram emergir questões interessantíssimas
compartilhadas com os sujeitos.
2013 – Novembro: agendamento da qualificação para 21 de julho de 2014.

Cartografia da Navegação | Notas de Abril a Junho de 2014

O primeiro semestre de 2014 foi um tempo de intensa produção escrita desta narrativa. Agendada
a banca de qualificação para 21 de julho, foi inevitável um balanço geral e um esforço de
sistematização das ideias, o que implica um exercício redobrado de reflexão, sempre que possível
compartilhada, de modo a “ir para a escrita” como se vai para uma aventura possível e não para o
caos. Também esse foi um momento fértil, como foram outros anteriormente, porém agora com
esse tom e compromisso de sistematização/explicitação, já que a perspectiva sempre foi escrever
uma narrativa pedagógica – isto é, um texto que ao mesmo tempo evidencia os acontecimentos
que considero mais relevantes e também, tanto quanto possível, os processos que levaram a esses
acontecimentos ou a eles se seguiram.
O resultado foi o texto final de qualificação, com especial destaque – por esse enfoque pedagógico
– para as partes que dizem respeito à explicitação da metodologia, dos conceitos, do processo de
organização e análise dos dados, da teorização das falas dos sujeitos. Os acontecimentos narrativos
que tiveram lugar nesse período e a reflexão produzida por eles indicaram a necessidade de
deslocamento e inversão da ordem de algumas partes do texto já escrito.
Foi desse período o balanço sobre a proposta inicial do blog e do portfólio reflexivo, comentada
retrospectivamente e de passagem nas primeiras Notas desta Cartografia.
O fato é que me enganei em relação a esses espaços virtuais e à importância que poderiam ter para
aqueles que elegi como interlocutores e que eram seus destinatários principais. Enganei-me
também quanto ao papel de uma comunidade virtual – que tentei criar com o grupo de e-mails e
o chat, mas que nem chegaram propriamente a acontecer, e depois com um grupo no facebook,
que pouco durou – para favorecer a participação dos sujeitos (do grupo original) em uma discussão
coletiva. A interlocução de todos aconteceu quase sempre apenas comigo (embora minhas
mensagens fossem endereçadas a todos), mesmo eu tendo investido para que a discussão se
ampliasse. E, mesmo quando isso ocorreu, pela natureza do assunto e pela forma como foi
abordado, foi porque as pessoas envolvidas já se conheciam e conviviam em espaços comuns, o
que sem dúvida facilitou o diálogo.
O curioso é que, apesar da frustração que os enganos costumam provocar, na realidade a não
participação dos colaboradores no que poderia vir a ser um processo de interlocução coletiva
nunca me desapontou. Até porque, se considerado o diálogo estabelecido quase que somente
comigo, (“assistido” por todos que recebiam as mensagens diretamente ou depois, encaminhadas
por mim para todo o grupo), as contribuições ao meu processo de compreensão foram muito
significativas, como se pode verificar na mensagem transcrita nas Notas de setembro a dezembro
de 2013.
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Formei um grupo no facebook, incluindo todos os sujeitos que eram usuários na época, mas não
foi muito longe. Os tipos de mensagens eram assim:

31/7/2013 00:19
Queridos,
Cá estou novamente, agora com parte dos dados da pesquisa mais ou menos organizada.
Seguem pra vocês três arquivos anexos:
1. Jul. 2013 - Dados destacados a partir dos depoimentos dos sujeitos-colaboradores da pesquisa 2.
Texto da Margareth - complemento ao anterior 3. FB Desamorosas - Conversa de 10 de maio a 24
de junho
1. O primeiro é a reunião de trechos dos depoimentos de todos vocês, “recortados” a partir dos
critérios explicados logo na primeira página do texto. Em relação a esse arquivo, gostaria de fazer três
destaques, para os que ainda não tiveram oportunidade de ler:
- O texto da Lidiane, que discorda de coisas bem interessantes; a história da Maria, que se comunica
com um homem através de poemas de outros autores que não eles dois; e o que Cristina Campos
fala sobre os alunos com os quais se comunicava de Milão pelo facebook.
Gostaria que lessem especialmente o primeiro texto, quanto for possível, e que me escrevessem algo
a respeito até o final de agosto, podendo também ser depois, se vocês estiverem com o tempo muito
apertado.
Este “algo” pode ser o que lhes ocorrer: desde se mudou ou não a opinião de vocês em relação ao
que escreveram há vários meses, até se aprenderam algo novo ou se querem comentar o que disseram
todos, ou alguns dos demais colaboradores. Tudo vale.
Aqueles que não puderem/quiserem permanecer no grupo de sujeitos-colaboradores também
poderão sair, sem nenhum problema ou constrangimento, mas peço que me avisem agora.
2. O segundo arquivo é um complemento ao primeiro, enviado nesses dias por Margareth, embora
o texto seja “antigo”.
3. O terceiro é um texto que resultou da conversa estabelecida sobre a série Des|Amorosas pelo
grupo de autores mais assíduos. Nesse caso, a ideia foi discutir com quem tem uma prática comum
de leitura/escrita na internet (das desamorosas), visto que no grupo de sujeitos-colaboradores a
experiência de uso da escrita na web é bastante heterogênea e nem todos escrevem desamorosas.
Por fim, há também um quarto material, muito rico, no link
https://www.facebook.com/notes/rosaura-soligo/the-making-of-desamorosas-274-
produ%C3%A7%C3%A3o-em-parceria/445503425486284
sobre o processo de produção coletiva de desamorosas. Ao acessá-lo (se desejarem), observem que
os primeiros comentários aparecem ocultos por serem muitos.
A ideia é que possamos compartilhar aqui as opiniões sobre o que cada um desejar a respeito da
experiência de se comunicar pela escrita na internet.
Um abraço e desde já e mais uma vez agradeço por tudo.
Rosaura Soligo

Na realidade, acho que sempre tive uma intuição que veio depois a se tornar uma hipótese para
mim muito razoável: o fato de não haver uma experiência concreta compartilhada (somente
reflexões pessoais socializadas) foi insuficiente para que o grupo se mobilizasse – investindo tempo
e energia na comunicação com todos – e para que se instaurasse a reflexão coletiva que
inicialmente eu imaginava possível. Até porque, ao fim e ao cabo, a pesquisa é minha e os
colaboradores são colaboradores, e não pesquisadores. O tempo demandado por esse tipo de
atividade acaba sendo incompatível com as rotinas pessoais e profissionais que todos temos, sem
contar que o pesquisador é quem possui tarefas institucionais a serem cumpridas e, por essa e por
outras razões, também é ele a priorizar as atividades de pesquisa sempre que pode.
70

Entretanto, houve um subgrupo – de autores das Des|Amorosas – que de fato se tornou um grupo
de interlocução sobre a experiência compartilhada e estabeleceu um diálogo tão profícuo sobre as
lições aprendidas nesse contexto, que acabou se constituindo em fonte de dados da pesquisa –
não previsto a princípio e da maior importância, no final das contas.
Tendo em conta a hipótese de que a experiência compartilhada é determinante nesses casos, não
chegam a surpreender esses desdobramentos...
Com o intuito de aproveitar ao máximo as contribuições do grupo original de sujeitos, em abril de
2014 tive uma ideia. Resolvi reunir todas as reflexões que eles me enviaram – e que não seriam
tomadas como dados por não se reportarem à experiência pessoal, mas eram subsídios valiosos
para a compreensão da questão da escrita na internet – em um único arquivo, com os textos
sequenciados segundo uma ordem temática mais ou menos organizada. Esse tipo de organização
sugeria um colóquio composto pelas vozes dos colaboradores que se ocuparam desse assunto (não
foram todos a escrever sobre a escrita na internet para além da própria experiência). Chamei essa
compilação de textos de “Um colóquio virtual sobre a escrita e a internet” e logo em seguida a
enviei aos respectivos autores para que verificassem se a edição que fiz não teria prejudicado os
sentidos pretendidos.
E, ora, vejam vocês... (Isto que se segue é uma inserção feita no final de maio de 2014.)
Logo depois de escritas as explicações acima, ponderando sobre o fato de não ter havido
comunicação direta entre o grupo original de sujeitos, eis que uma participante do grupo –
Margareth, uma das que mais colaborou e a quem também aqui aproveito para agradecer mais
uma vez – enviou o arquivo do colóquio fictício todo comentado e, em seguida, seus comentários
foram comentados por Adail. Quer dizer, o colóquio que era mais ou menos fictício, por iniciativa
dela tornou-se então mais real. Ambos não conversaram em tempo real, mas estabeleceram um
diálogo entre eles e com os textos dos demais que é uma verdadeira maravilha: para os meus
critérios, um grande presente. Esse material compôs o texto de qualificação como Apêndice 1, mas,
por não dizer respeito propriamente aos dados da pesquisa, resolvi deslocá-lo da tese para o blog
https://aquidentrotemgente.wordpress.com/
A cronologia dos encaminhamentos foi esta:
2014 - Abril a Junho de 2014: Balanço dos três primeiros anos da pesquisa | Finalização do texto
de qualificação | Organização do “Colóquio” | Reordenamento do texto | Apresentação do
capítulo metodológico no GEPEC (em 20/05) | Textualização dos depoimentos dos sujeitos e envio
a eles para checagem | Teorização do conteúdo trazido pelos sujeitos | Caracterização do perfil do
grupo de sujeitos | Retomada da proposta do blog Aquidentrotemgente como um projeto de
reforma.

Cartografia da Navegação | Notas de Setembro de 2014 a Novembro de 2015

O período que se seguiu ao exame de qualificação, em julho de 2014, foi um tempo de processar
os acontecidos na pesquisa, na banca e na tese, de modo a encontrar os melhores caminhos –
aqueles que me fossem possíveis identificar ou pressentir – para as novas rotas e os acertos nas já
previstas. Nesse sentido, houve um tempo de alternância entre a produção de fato escrita e a
produção “na cabeça”.
A princípio me dediquei às mudanças no título da tese, o que significou também redirecionar o seu
foco. Assim, o que antes era “Experiências formativas em contextos comunicativos ‘virtuais’: o que
71

a escrita tem a ver com isso?” passou a ser “A experiência da escrita no espaço virtual – a voz, a vez,
uma conquista talvez”.
Depois priorizei a revisão do que exigia acertos, começando pelas contribuições do Professor Dario
Fiorentini à concepção de pesquisa narrativa em três dimensões, tratada logo a seguir. Havia um
equívoco relevante a ser corrigido, segundo ele: até então, as três dimensões narrativas eram
apresentadas como fontes de dados, registro da tese e metodologia da pesquisa. Porém, a
metodologia inclui as três dimensões descritas no texto, não podendo, portanto, ser uma delas.
Certamente! O que estava nomeado como metodologia da pesquisa era, na verdade, o modo de
produzir conhecimento, e esse acerto foi feito de imediato.
Então passei a redigir a Parte II da Apresentação, explicitando conceitualmente a abordagem de
gênero/texto, tal como defendida na tese, e explicando melhor alguns aspectos que mereciam
aprofundamento.
A seguir, em uma leitura cuidadosa do texto inteiro, e tendo em mãos todas as considerações da
banca, fui fazendo, aos poucos, uma revisão de tudo o que meu orientador e eu julgamos
pertinente, de modo a reformular certos trechos, suprimir outros, acrescentar pequenos detalhes e
produzir o que ainda faltava, que não era muito. Faltava apenas “Os dados revelam sentidos”, uma
breve narrativa em diálogo com os colaboradores, e a “Terceira Correspondência”, que reúne as
lições. Ou, como se costuma dizer nas teses mais convencionais, o capítulo de análise de dados e
as considerações finais.
Acrescentei pequenos detalhes no memorial de formação, li muitos textos de subsídio,
especialmente os que abordam a experiência e o saber da experiência – pontos que ganharam
maior aprofundamento a partir de então – e tentei acionar o que havia de melhor em minha
capacidade de síntese para escrever as lições e, por fim, o resumo. Produzir o resumo de uma tese
é uma tarefa muito difícil, a meu ver, pois a situação é de explicar centenas de páginas em uma
apenas.
Bem, nesse processo de revisão cuidadosa, ficou claro que, apesar do meu grande afeto pelo
“Colóquio”, seria preciso retirá-lo da tese, conforme comentei há pouco, pois o que nele havia de
contribuição para compreender a questão da pesquisa já estava incorporado nos dados. Portanto,
não tinha sentido mantê-lo, mesmo como Apêndice.
Com a mudança do nome e, de certo modo, também do foco da tese, desenvolvi intencionalmente
uma presença atenta nas plataformas que frequento no espaço virtual, procurando pistas que
pudessem me ajudar a compreender, tanto quanto isso é possível hoje, se a voz e a vez que
passaram a ser assumidas por muitos de nós em razão da internet, e que parecem representar um
avanço importante, seriam de fato uma conquista. Isso é algo que trato lá mais para o fim.
Então foi isso.
A seguir, na próxima página, as necessárias maiores explicações sobre as escolhas metodológicas
e o percurso traçado por elas.
72

[O desejo e a deriva]

Prefiro as linhas tortas, como Deus.


Manoel de Barros

Renunciar à ideia de um método único que nos conduza sempre à


verdade, e que a garanta, não implica de nenhuma maneira que
estamos dispostos a desistir da utilização de instrumentos ou
dispositivos, técnicas e procedimentos. Só implica ao que não
anteporemos o método à experiência, que não cremos que haja um
só caminho ou um só dispositivo adequado para pensar, explorar,
inventar ... conhecer ... Renunciar ao método não implica cair no
abismo do sem sentido, mas abrir-se à multiplicidade de
significados.
Denise Najmanovich

Que tipo de pesquisa é esta, afinal?


Na Primeira Correspondência, expliquei que
Este trabalho é um exercício de pesquisa narrativa em três dimensões articuladas: das fontes de
dados, do modo de produzir conhecimento e do registro. Isso porque os dados foram produzidos
a partir das narrativas escritas pelos sujeitos-colaboradores, o percurso do trabalho foi sendo
registrado progressivamente em uma narrativa reflexiva e compartilhada com o grupo e essa
narrativa do percurso – em construção permanente – foi parte constitutiva da produção de dados,
não apenas uma forma de registro.
É, portanto, uma pesquisa qualitativa, que, pela natureza do tema e do objetivo, prescinde de dados
quantitativos e de recursos de comprovação convencional por incidência, recorrência ou outros
dispositivos similares. Como o desafio é compreender em que circunstâncias, de que modo e por
quais razões é formativa a experiência de se comunicar por escrito no espaço virtual, o uso de
instrumentos de produção de dados quantitativos não é necessário: cada um que escreve sobre o
que aprende nessa experiência, apesar da singularidade própria de cada pessoa, acaba por
“representar” outros tantos, que por certo terão aprendizados muito semelhantes. Isso significa que
cada colaborador, ao escrever sobre si, diz de si mas de algum modo, ainda que involuntariamente,
diz também de muitos outros, com histórias parecidas. Afinal, a realidade tem mostrado que em
nenhum domínio humano parece haver experiências sem pontos de identificação com outras.
Como nos lembra Ferrarotti (2010), “toda vida humana se revela, até nos seus aspectos menos
generalizáveis, como a síntese vertical de uma história social. Todo comportamento ou ato
individual nos parece, até nas formas mais únicas, a síntese horizontal de uma estrutura social.”

Achei melhor citar aqui o texto integralmente do que tentar, por convenção, dizer com outras
palavras o que aí está. A mim parece, esse, o começo mais justo para as maltraçadas linhas dessa
história de desejos e derivas.
Minha convicção é de que são os o quês e os porquês da pesquisa que justificam os comos, ou seja,
as escolhas metodológicas. E penso que a coerência estética entre conteúdo e forma deve incluir
também o texto escolhido para o registro. Direi então dessas relações.
73

Um estudo feito por Esteban (2010, p. 128 a 144)24 sobre os vários tipos de pesquisa qualitativa, a
partir de classificações propostas por diferentes autores, oferece uma possibilidade de
“enquadramento” geral para a abordagem que me propus a desenvolver. Segundo os referenciais
apresentados pela autora, não será demais adjetivá-la tão generosamente, como a seguir.
A pesquisa que desenvolvi é aberta e flexível à medida que se constitui na travessia; é culturalmente
contextualizada (isto é, não há criação de nenhuma situação artificial e nem variáveis controladas);
holística (porque não toma os dados isoladamente, mas sempre contextualizados e relacionados);
humanista e constituída a partir da experiência do/s sujeito/s tal como é vivida e sentida por ele/s;
interpretativa e focada na compreensão das pessoas em seu próprio âmbito de referência; pautada
na convicção de que todos os cenários e perspectivas (possíveis de identificar) têm valor e são
dignos de estudo, desde que relacionados à questão central do trabalho. É uma pesquisa voltada
não propriamente para o concreto, mas para os indícios, às singularidades; pautada na análise
contínua e progressiva das informações disponíveis para a produção de dados; válida pela
coerência epistemológica; comprometida ética e esteticamente com a produção de novos
conhecimentos e de uma narrativa pedagógica expressiva, construída a partir de um pensamento
metacognitivo da pesquisadora, pessoalmente implicada, que compartilha fragmentos
autobiográficos relacionados ao tema e toma a si mesma como uma fonte importante de dados,
especialmente pelo exercício de reflexão sobre o percurso da pesquisa.
Quando entendi que minha pesquisa era (ou poderia com o tempo vir a ser) tudo isso foi realmente
uma surpresa! Nunca imaginei um perfil de tamanha amplitude e importância. E a situação não foi
de adjetivá-la por minha própria conta e risco. Esse entendimento (e essa caracterização) aconteceu
a partir de uma tarefa proposta na disciplina “Metodologias de Pesquisa Qualitativa” (a que me
referi antes), que desafiava cada pesquisador do grupo a identificar pontos em comum de seu
próprio trabalho com as inúmeras tipologias apresentadas no livro.
A autora, Esteban, faz um rastreamento minucioso de diferentes tipos de investigação qualitativa
existentes até o momento do seu estudo (publicado originalmente em 2003). Pelos critérios que
apresenta e sem medo de parecer pretensiosa, penso ser possível defender que, em resumo, esta é
uma pesquisa qualitativa aberta, humanista, holística, interpretativa, contextualizada
culturalmente, focada na reflexão metacognitiva dos sujeitos sobre suas experiências singulares,
comprometida com a produção de conhecimento novo e com coerência epistemológica,
registrada na forma de uma narrativa pedagógica escrita por uma pesquisadora que é autora,
escritora e sujeito/personagem. Na realidade, a investigação narrativa não figura, no estudo de
Esteban, como uma abordagem relacionada exatamente a todos esses atributos. Foi a análise da
descrição de cada um deles e a observação das características da pesquisa que desenvolvi que
tornou possível essa conclusão.
Com tantas adjetivações, não pretendo enfeitar a abordagem, mas esclarecer – a mim mesma,
inclusive – que há um campo da pesquisa qualitativa em ciências humanas em que o meu trabalho
se situa. Não é, portanto, uma experimentação descolada do que já foi legitimado pelas ciências
humanas.
E farei aqui o que me parece principal: explicitar o tipo de proposta a que me desafiei a “encarar” –
uma pesquisa narrativa, fundamentada nos pressupostos defendidos por Clandinin e Connelly,
Bolívar, Domingo e colaboradores, apresentados anteriormente em “O mapa da Ilha Desconhecida
se constrói ao navegar”, que não vou aqui retomar do mesmo modo, como marcos conceituais,
uma vez que lá isso já foi feito, pela importância teórica para a fundamentação desta tese.

ESTEBAN, Maria Paz Sandín. Pesquisa Qualitativa em Educação – Fundamentos e tradições. Porto Alegre: Artmed,
24

2010.
74

Pesquisa narrativa em três dimensões articuladas

Considerando que as pesquisas podem ser narrativas em três “lugares” – nas fontes de dados, no
modo de produzir conhecimento e no registro da tese/dissertação –, este trabalho foi uma
experiência narrativa em todos eles. E essa não foi uma escolha fácil de administrar no curso da
pesquisa por várias razões.
Se a coerência estética entre fontes de dados, modo de produzir conhecimento e registro sugere
facilidades óbvias pela suposta ausência de contradições acentuadas, essa é uma conclusão
enganosa.
Primeiro porque não há muitos exemplos semelhantes que possam servir de referência, já que, do
ponto de vista das abordagens de pesquisa, esse é um caminho relativamente novo.
Depois porque, se por um lado é certo que a convergência das escolhas favorece uma articulação
coerente, de maneira que a escrita progressiva de uma narrativa do processo é inclusive parte do
modo de produzir conhecimento, por outro existe uma tensão permanente entre o registro
narrativo na forma de cartas e o gênero tese – que, como sabemos, em um trabalho de doutorado,
é o que se há de produzir.
A certeza de que essa tensão gênero-registro é um acontecimento da pesquisa que merece
destaque na explicitação metodológica que passo a fazer foi o que me levou a iniciá-la justamente
pelo registro, em vez de tratá-lo por último, como talvez fosse mais lógico.

O registro

Para compreender melhor os efeitos provocados pela tensão a que me refiro, é fundamental
considerar os modos de pensamento, tal como nos ensina Bruner (2002). São formas de pensar
que se realizam nos discursos manifestos nos textos escritos.
O autor argumenta que há dois modos distintos e complementares de pensamento: narrativo e
lógico-científico – ou paradigmático. São modos diferentes de funcionamento cognitivo que
remetem a modos diferentes de organização da experiência e de construção da realidade. E eu
diria que remetem também a modos diferentes de organização do discurso e do texto.
Assim Bruner define o modo lógico-científico:
Esse modo de pensamento se apoia em argumentos lógicos e funciona como uma tentativa de
preencher o ideal de um sistema formal de descrição e explicação, que lança mão de
procedimentos de caracterização ou conceitualização e das operações pelas quais as categorias
são estabelecidas, instanciadas e relacionadas umas às outras para formar um sistema. Seu arsenal
de conectivos inclui, do lado formal, ideias como a de conjunção e disjunção, hiperonímia e
hiponímia, implicação estrita e os dispositivos pelos quais as proposições gerais são extraídas de
afirmações em seus contextos particulares. A grosso modo, trata de causas genéricas, de seus
estabelecimentos e faz uso de procedimentos para assegurar a referência comprovável e testar a
veracidade empírica. Sua linguagem é regulada por necessidades de consistência e de não-
contradição. Seu domínio é definido não apenas por elementos observáveis aos quais suas
afirmações básicas se referem, mas também pelo conjunto de mundos possíveis que podem ser
gerados logicamente e testados contra os elementos observáveis – ou seja, é conduzido por
hipóteses fundamentadas. (...) Busca transcender o particular, cada vez mais em direção à
abstração, e no final renuncia, por princípio, a qualquer valor explicativo que diga respeito ao
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particular. Há uma insensibilidade na lógica: vai-se até onde nossas premissas e conclusões e
observações nos levam, deixando-se de lado alguns enganos a que até mesmo os lógicos estão
propensos.” (p.13-14).
E sobre o modo narrativo de pensamento, o autor afirma:
Esse modo de pensamento trata de ações e intenções humanas ou similares às humanas e das
vicissitudes e consequências que marcam o seu curso. Ele se esforça para colocar seus milagres
atemporais nas circunstâncias da experiência e localizar a experiência no tempo e no espaço. (...)
A história tem que construir dois panoramas simultaneamente. Um é o panorama da ação, onde
os constituintes são os argumentos da ação: agente, intenção ou objetivo, situação, instrumento,
algo que corresponde a uma “gramática da história”. O outro é o panorama da consciência: o que
os envolvidos na ação sabem, pensam ou sentem ou então não sabem, não pensam ou não
sentem. Os dois panoramas são essenciais e distintos. (...) Paul Ricouer afirma que a narrativa é
construída sobre a preocupação com a condição humana: as histórias atingem desenlaces
cômicos, tristes ou absurdos, enquanto que os argumentos teóricos são simplesmente conclusivos
ou inconclusivos. (p.14-15).
Realizados na linguagem, os dois modos de pensamento podem ser igualmente convincentes, mas
com perspectivas bem distintas. O modo lógico-científico é convincente porque se apoia em provas
empíricas, proposições, uso de categorias e conceitos, relações de causalidade, generalizações em
busca de uma verdade universal, consistência teórica comprovada. Já o modo narrativo é
convincente porque busca verossimilhança, apresenta condições prováveis entre dois eventos,
transgride a consistência podendo ser contraditório, transcende o particular e tenta abstrações. Um
se caracteriza pela corrida ao encontro “da verdade”; o outro, pela construção de uma coerência
verossímil.
Como se vê, o desafio de registrar a tese – gênero compatível com o modo de pensamento lógico-
científico – em forma de carta – texto consonante com o modo de pensar narrativo –, além de criar
continuamente (bons) problemas a resolver, requer um conjunto de cuidados para que não se
perca de vista o fundamental: no final das contas, a exigência institucional é de produção de uma
tese, e não de outro gênero.
Nesse sentido, a escritora espanhola Rosa Montero nos lembra que:
Todos os gêneros têm suas normas, e a princípio é preciso ater-se a elas para praticá-las bem.
Você não pode escrever uma peça de teatro como se fosse um ensaio, porque provavelmente
ficaria uma coisa chatíssima; e não deve escrever um ensaio como se fosse poesia, porque é bem
possível que lhe faltasse rigor. Da mesma maneira, também não pode escrever um romance como
se fosse jornalismo, senão fará um romance ruim. Depois, é claro, todos esses limites podem ser
ignorados e ultrapassados...
O fato é que alguns desses bons problemas são, na verdade, dificuldades consideráveis. Porque
escrever a tese em um tipo de registro narrativo, cujas características são “antagônicas” ao tipo de
pensamento/discurso lógico-científico vinculado historicamente à composição convencional das
teses – introdução, objetivos, justificativa, problema, metodologia, análise de dados e conclusão –
é um exercício permanente de construção por desconstrução.
Além do que o registro narrativo na primeira pessoa do singular, no caso do meu trabalho, tem
outra especificidade a considerar, nem um pouco simples: por se tratar de um memorial de
pesquisa, seguido de um memorial de formação (a Correspondência Complementar), ambos
escritos como cartas, a situação acaba sendo de produção de um discurso (auto)biográfico. E,
quando é assim, aquele que escreve desempenha três papéis de sujeito a um só tempo: autor,
escritor e personagem. Ainda que eventualmente possa soar ficção literária, esse tipo de registro é
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uma escrita de si, datada, contextualizada, nascida de uma experiência pessoal sensível. O
personagem, nessa circunstância, protagoniza a cena em relação à experiência de pesquisador, à
autoria do texto e à escrita que produz para “reter” a narrativa e comunicar um conhecimento que
considera válido. É sujeito nesses três lugares, portanto. É um sujeito encarnado.
A esse respeito nos ensina Najmanovich (2001: 28):
O sujeito encarnado é o nome de uma categoria heterogênea, facetada e de limites difusos. Uma
categoria não clássica, já que os elementos que a formam não compartilham de uma propriedade
comum, mas têm entre si um “traço de família”. ... Cada um pode compor a sua própria categoria
em relação à experiência, aos cruzamentos teóricos, estéticos, éticos, afetivos, eróticos e emotivos
que inclua seu próprio devir como sujeito encarnado. No meu devir pessoal se destacam na trama
matizada de experiências a de ser amante e mãe as dores dos partos de minhas filhas e de minhas
ideias, o prazer imenso de dar à luz, de criar, de nutrir, de crescer, o sofrimento pelos seres
queridos e o deleite por eles, a paixão amorosa que me une ao meu marido e a paixão dolorosa
que me separa dos torturadores, o ritmo de minha respiração e o de meus hormônios, o prazer
que a arte me produz e o desprazer do ruído e da podridão.
Enfim, como todos os sujeitos encarnados, nossas categorias se desenvolvem na trama evolutiva
de nossa vida, estão inseparavelmente ligadas à nossa experiência social e pessoal, às tecnologias
cognitivas, sociais, físico-químicas, biológicas e comunicacionais com as quais convivemos.
Najmanovich diz que a tomada de consciência dessa condição de sujeito encarnado tem algumas
consequências importantes. Uma delas é o que a autora chama de “torcimento do espaço
cognitivo”, que nos faz “entrar dentro do quadro” que pintamos, participando de uma dinâmica
criativa de nós próprios e do mundo com o qual estamos permanentemente em relação. Outra é o
entendimento de que o conhecimento humano acontece sempre a partir de uma perspectiva
determinada. Outra ainda: como o que é objeto de nosso conhecimento está sempre de algum
modo relacionado a nós mesmos, o conhecimento necessariamente implica interação, relação,
transformação mútua, codependência e coevolução. E mais outra: teremos sempre um “buraco
cognitivo”, uma zona cega que não podemos ver e quase sempre “somos cegos a essa cegueira”.
(p. 23)
E a consequência das consequências?
Um sujeito encarnado paga com a incompletude a possibilidade de conhecer. (NAJMANOVICH:
2001: 23)
Assim, não é tarefa fácil produzir conhecimento quando contraímos essa consciência irreversível
da nossa condição de sujeito responsável por nossas escolhas e não escolhas. Ela própria, a autora,
diz assim:
Hoje estamos começando a legitimar modelos de pensamento não lineares, tanto na ciência,
como na arte e na vida de relação. Não obstante, não é simples dar lugar a novas metáforas para
poder abrir nosso espaço cognitivo a novas narrações. (NAJMANOVICH: 2001: 22)
Não é simples dar lugar a novas metáforas para poder abrir nosso espaço cognitivo a novas
narrativas – eu diria.
Nesse fio de navalha, o cuidado com o uso da linguagem é imperativo: o desafio será sempre achar
um ponto de ancoragem dos sentidos pretendidos, assim como se fosse a terceira margem do rio.
Porque não será possível abusar dos efeitos polissêmicos de certas escolhas literárias, como seria
pertinente em narrativas de ficção, tampouco abusar dos recursos que em geral se utiliza para
produzir efeitos de (suposta) objetividade, como é esperado em registros de pesquisa cujo
propósito é documentar conhecimento científico. Nem toda a lealdade com a linguagem, nem
todo zelo para não a banalizar, nem toda obstinação por garimpar as palavras mais generosas para
77

tornar inteligível o que se quer dizer poderão bastar em um contexto assim escorregadio. Há e se
construir, por desconstrução, um estilo compatível.
Nesse contexto de produção de uma pesquisa que se pretende uma narrativa sem-deixar-de-ser-
pesquisa, potencializado pela tensão gênero-registro a que me referi, a energia do autor-escritor
que o pesquisador encarna terá de ocupar-se em favorecer a máxima aproximação possível entre
o que pretende dizer, o que efetivamente diz – neste complexo contexto de produção – e o que
pode vir a compreender o leitor. Um esforço que poderá ser infrutífero, como muito bem sabemos,
porque a compreensão é sempre uma prerrogativa inalienável do leitor, que tem o verdadeiro
poder na produção final de sentidos no momento da leitura.
Minha preocupação com vocês, leitores, tem a ver com a convicção de que, ao fim e ao cabo, quem
lê é que “manda” nesse processo e não há nada capaz de mudar essa circunstância.
Em minha dissertação de mestrado comentei de passagem a afirmação do escritor Jorge Luis
Borges (2000: p. 38) que “o importante sobre a metáfora é ser sentida pelo leitor ou pelo ouvinte
‘como’ uma metáfora”. Diz ele que quando algo é simplesmente insinuado, há uma espécie de
hospitalidade em nossa imaginação, que a coisa sugerida é mais potente que a coisa defendida. E
empresta as palavras de Emerson para sugerir que os argumentos não convencem porque são
apresentados ‘como’ argumentos – e assim podemos contemplá-los, podemos refletir sobre eles,
ponderá-los e acabar por fim decidindo contra eles.
Entretanto, saber que no processo de comunicação das ideias pode haver uma receptividade muito
maior em relação às metáforas, que parecem não afirmar nada exatamente, mas apenas sugerir,
não permite utilizá-las em profusão o tempo todo, é este o fato. Afinal, aqui temos uma tese e não
uma narrativa ficcional.
A consciência, inesquecível para mim, da existência de vocês, leitores, é uma prova de fogo.
Quando um pesquisador tem como interlocutores apenas os membros de uma banca
examinadora, e não os leitores, quaisquer que sejam, tudo deve ser bem mais fácil. Mas isso também
não posso afirmar, porque esse nunca foi o meu caso.
Bem, passado esse desabafo, volto então ao assunto.

As fontes

Das três dimensões narrativas de uma pesquisa como esta, a que considero menos complexa –
talvez também porque mais exercitada por pesquisadores de diferentes abordagens, que têm
deixado ótimas contribuições – é a das fontes de dados. Depoimentos orais, histórias de vida e de
ficção, memoriais, entre outras narrativas, há muito são utilizados nas pesquisas em ciências
humanas e é grande o repertório de trabalhos desse tipo que podemos consultar. A importância
atribuída a esse material como fonte de dados é fruto da compreensão de que as narrativas são
formas privilegiadas de compartilhar as experiências e refletir sobre elas, e essa perspectiva vem se
evidenciando e se disseminando há vários anos.
Isso foi possível à medida que a hegemonia do positivismo começou a ser questionada e os
referenciais teórico-metodológicos predominantes nas ciências naturais não se mostravam
adequados para compreender questões das ciências sociais. As consequências, segundo Souza
(2007, p. 64-65), foram “a emergência de uma concepção científica mais acessível à pluralidade do
saber humano” e “a perspectiva da complexidade como estruturante da existência do ser no
mundo”. É quando os pesquisadores trazem para a pesquisa a voz dos sujeitos; quando
78

depoimentos e textos sobre si e sobre experiências vividas tornam-se fontes de dados; quando a
singularidade passa a ser considerada.
Nesse sentido, Souza (2007, p. 64) aponta a importância do trabalho com a memória, ao dizer que
rememorar é sempre um ato de reflexão e autorreflexão, que trabalhar com a memória institucional
ou individual é construir um “olhar retrospectivo e prospectivo no tempo e sobre o tempo
reconstituído como possibilidade de investigação e de formação”. E destaca que as narrativas são
privilegiadas nesse processo. Os pesquisadores que trabalham com narrativas como fonte de dados
têm como propósito compreender como os sujeitos da pesquisa vivenciaram determinada
experiência e que sentidos atribuem ao vivido.
Com o tempo, também o processo de análise de dados provenientes dessas fontes ganhou uma
perspectiva narrativa em alguns trabalhos. A chamada “análise narrativa” (Bolívar: 2002) pressupõe
que, a partir das narrativas dos sujeitos – tomadas como fontes de dados –, o pesquisador
componha uma narrativa própria que torne significativos os dados. Nesse tipo de abordagem, a
busca é sempre por elementos distintivos e específicos que revelem o caráter único e próprio de
cada caso, isto é, a singularidade. E os critérios são, além da singularidade, a autenticidade e a
coerência.
Cury (2013) explicita como isso acontece, tendo em conta sua própria experiência do que chama
“análise narrativa de narrativas”:
Tal análise não será tomada como um julgamento de valor do outro a partir do que foi relatado,
mas como um arrazoado das compreensões em uma trama de escuta atenta ao que foi dito, sem
fixar um cenário definitivo. A tentativa proposta é, face às várias versões apresentadas, trabalhar
cada uma delas, já que são sempre lacunares, considerando-as como modos dos narradores se
narrarem e constituírem suas verdades como sujeitos (GARNICA, 2007, p. 61), admitindo
sempre uma certa distinção entre o que é vivido e o que é narrado. A análise narrativa
desempenharia o papel de constituir o significado das experiências dos narradores mediante a
busca de elementos unificadores e idiossincráticos, buscando com isso um desvelamento do
modo autêntico da vida individual dos depoentes e da situação/contexto investigada/o. (p. 158)
E, em seguida, complementa:
No caso de uma análise narrativa (de narrativas), a ênfase está na consideração de casos
particulares e o produto dessa análise aparece como uma nova narrativa, a explicitação de uma
trama ou de argumentos que tornem os dados significativos não em busca de elementos comuns,
mas no destaque do que é singular e que, em suma, não aspira à generalização. O papel do
investigador neste tipo de análise é configurar os elementos dos dados em uma história que os
unifica e dá significado a eles com a intenção de mostrar o modo autêntico da vida individual sem
manipular ou distorcer a voz de cada narrador (ou depoente) a favor de uma versão pré-
estabelecida. A trama pode estar construída de forma temporal ou temática, mas o importante é
que possibilite a compreensão de por que algo aconteceu. Aqui, a proposta é a de revelar o caráter
único de um caso individual e proporcionar uma compreensão de sua complexidade particular
ou de sua idiossincrasia (BOLIVAR, 2002, p. 52). Na análise narrativa de narrativas, o
pesquisador desempenha o papel de constituir significados às experiências dos narradores
mediante a busca de elementos unificadores e de alteridade. (p.160)
Bem, mas isso tudo, a rigor, embora diga respeito às fontes de dados, já é parte do modo de
produzir conhecimento.
79

O modo de produzir conhecimento

Feitas essas breves considerações sobre as dimensões de registro e fontes de dados, passo agora
ao modo de produzir conhecimento. O exercício permanente de construção por desconstrução
ocorre também nesse caso. A escolha por uma metodologia narrativa, por uma construção
progressiva, por uma abordagem de “pesquisa da pesquisa na pesquisa” pressupõe aceitar a deriva
como movimento inevitável na travessia.
Humberto Maturana (2001) desenvolve, na Biologia, a ideia de deriva, que é potente também nas
ciências humanas, especialmente em pesquisas como esta, pois permite vislumbrar algumas
possibilidades de escolha no curso da travessia:
“Organismo e meio vão sempre juntos (...). Existe uma palavra para esse fenômeno, uma
palavra que nós usamos com um certo desdém, ou para fazer uma conotação depreciativa:
a palavra deriva. A palavra deriva faz referência ao seguinte: a um curso que se produz,
momento a momento, nas interações do sistema e suas circunstâncias” (2001: p.81).
E Maria Teresa Esteban (2003) empresta essa ideia para tratar da pesquisa do/no cotidiano e afirma
que estar à deriva não significa se mover indiscriminadamente para qualquer direção, pois os
deslocamentos são demarcados pelas interações que se apresentam como possíveis:
Para o estudo de contextos complexos, a noção de deriva apresenta uma evidência sobre como
o/a pesquisador/a (...) faz escolhas, em consonância com as relações, nas quais interage, que
ajudam a promover uma organização do processo de pesquisa (...); a ressaltar determinados
acontecimentos entrelaçados a tantos outros que permanecem ignorados na dinâmica da
pesquisa; a tratar algumas informações como mais significativas do que outras; a escolher os
sujeitos e teorias com que dialoga. Portanto, a selecionar seus dados, organizá-los e interpretá-los.
A seleção, entre tantos caminhos possíveis, não é arbitrária; do mesmo modo que a interpretação
dialoga com as possibilidades que vão sendo constituídas na história de interações recorrentes
do/a pesquisador/a. (p.133)
Em várias passagens da tese procurei dar a ver este processo a que a autora se refere: os objetivos
que surgiram no percurso, os conceitos emergentes dos dados, os equívocos, os desapegos, as
correções de rota em relação a escolhas anteriores, os encantamentos contraídos na deriva.
Antes, porém, desejo falar do desejo que – junto com a deriva e não por enfeite – é parte integrante
não só do título desta parte. O desejo é quase oficialmente constitutivo de uma pesquisa narrativa
como esta.
Não estiver o pesquisador movido pelo desejo de – antes de avistar a Ilha Desconhecida – navegar
em mar aberto ao sabor da deriva e da esperança, tendo o mapa à mão e atenção aos sinais mais
sutis, com os olhos cravados no horizonte e a memória acesa, certamente o caminho não será este.
Pesquisa narrativa não é para navegantes conservadores, assustados com as intempéries e as
trapaças do vento. A cada pesquisador conforme a sua necessidade, de cada pesquisador
conforme a sua capacidade. Meu orientador soube ajustar este plano e me pôr em movimento. E
confiou em mim.
Também vocês precisarão confiar. Porque se estiverem acostumados a viagens controladas com
itinerário e destino preciso, em mares de calmaria, e quiserem experimentar a possibilidade
alternativa de seguir aqui comigo, terão de confiar que não os deixarei enjoar, naufragar, nem se
arrepender. E que chegaremos, sim e salvos, à Ilha Desconhecida. As águas para nós são virgens,
meus sentidos e os propósitos da pesquisa guiam o leme, não há mapas infalíveis, não há ínfimos
desprezíveis. Protagonizamos todos a história, e ela se produz por escrito como conto de aventura.
E – mesmo assim e por isso mesmo – chegaremos lá.
80

Para adentrar o quadro produzido nesta viagem, conforme já comentei, assumi o compromisso de
pôr em prática as recomendações defendidas por Nilda Alves25 como movimentos necessários ao
pesquisador interessado em “começar a compreender a complexidade ordinária dos sujeitos
cotidianos”26 (ALVES, 2001, p. 14-16):

O primeiro movimento se refere ao fato de que a trajetória de um trabalho assim precisa ir


além do que foi aprendido com as virtualidades da modernidade, na qual o sentido da visão
foi exaltado. É preciso executar um mergulho com todos os sentidos no que desejo estudar.
Pedindo licença ao poeta Drummond, tenho chamado esse movimento de o sentimento
do mundo. O segundo movimento a ser feito é compreender que o conjunto de teorias,
conceitos e noções que herdamos das ciências criadas e desenvolvidas na chamada
modernidade e que continuam sendo um recurso indispensável não é só apoio e
orientador da rota a ser trilhada, mas, também e cada vez mais, limite ao que precisa ser
tecido. Esse processo estou chamando de virar de ponta cabeça. Para ampliar os
movimentos necessários, creio que o terceiro deles, incorporando a noção de
complexidade, vai exigir a ampliação do que é entendido como fonte e a discussão sobre
os modos de lidar com a diversidade, o diferente e o heterogêneo. Creio poder chamar esse
movimento de beber em todas as fontes. Por fim, vou precisar assumir que para comunicar
novas preocupações, novos problemas, novos fatos e novos achados é indispensável uma
nova maneira de escrever, que remete a mudanças muito profundas. A esse movimento
talvez se pudesse chamar de narrar a vida e literaturizar a ciência.

Mergulhar com todos os sentidos no que desejamos estudar; virar de ponta cabeça os modos
convencionais para poder trilhar um caminho válido, tendo consciência de que a herança das
ciências instituídas se constitui ao mesmo tempo como referência e restrição; beber em todas as
fontes para entender a complexidade e a diversidade que se atravessam por nossos temas e nossos
percursos; encontrar um novo tipo de registro que comporte ao mesmo tempo narrar a vida e
literaturizar a ciência: eis as provas de fogo para qualquer pesquisador culturalmente marcado pelo
positivismo que ainda predomina nas concepções e práticas valorizadas na pesquisa em ciências
humanas.
Provas inevitáveis nesta aventura de conhecimento que é a pesquisa, a história, a vida...
Aqui, leitores, eu poderia encerrar o trecho com essa bonita frase de efeito e passar adiante, ao
exemplo, sempre um bom argumento, ainda que nem sempre pareça.
Entretanto, prometi a mim mesma que colocaria em uns poucos parágrafos uma formulação clara
do tipo de pesquisa narrativa que desenvolvo, porque não encontrei suficientemente explicitada
como eu pretendia uma definição teórica possível de adotar como referência, assim sem tirar nem
pôr. Foi em CLANDININ e CONNELLY (2000), BOLÍVAR (2005) e DOMINGO, J. (2001) que
encontrei as referências fundamentais, porém, ainda que delas não haja o que tirar, entendi que
haveria, sim, algo a pôr.
Tal como explicitado em “O mapa da Ilha Desconhecida se constrói ao navegar”, quando faço a
apresentação inicial dos conceitos-chave desta pesquisa, a abordagem de investigação narrativa
desses autores pressupõe tomar narrativas como fonte de dados e adotar um método narrativo de

25
Decifrando o pergaminho – o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In OLIVEIRA, Inês B. Pesquisa
no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. P. 13-38.
26
Embora a perspectiva metodológica desta pesquisa não coincida exatamente com a abordagem de pesquisa do/no
cotidiano, praticada por Nilda Alves e seu grupo, os movimentos que a autora propõe são totalmente compatíveis e por
isso tomei-os como referência e como conselhos de uma parceira experiente.
81

pesquisar, que em certos casos pressupõe analisar narrativamente os dados, produzindo um relato
próprio em diálogo com os dizeres dos sujeitos. Também o registro escrito da pesquisa – a
dissertação ou tese – pode acontecer de forma narrativa, mas não necessariamente.
Pois bem, a reflexão em especial sobre esses três aspectos, aliada à observação dos procedimentos
desenvolvidos em minha pesquisa de mestrado e agora nesta, produziu aquela sensação incômoda
de que estamos, sim, fazendo as mesmas coisas, mas também parece que não. Dessa percepção
difusa nasceu um desejo de compreensão mais profunda que resultou na explicitação
metodológica que me comprometi comigo mesma a fazer e que aqui está.
Antes, porém, cabe uma explicação importante.
O desenho da abordagem de pesquisa narrativa em três dimensões foi construído em um processo
de diálogo entusiasmado com o meu orientador e a pesquisadora Vanessa Simas, da equipe do
GEPEC. Essa conversa começou em 2013 e se intensificou depois, quando Vanessa, também
orientanda do Professor Guilherme, com uma pesquisa de mestrado muito semelhante à minha,
do ponto de vista metodológico, foi para a Espanha fazer um estágio na Universidade de Granada,
justamente com o Professor Jesus Domingo, da equipe de Antonio Bolívar. A sistematização das
ideias tomou forma em meados de 2014, quando assumimos o desafio de explicitar, por escrito e
de forma organizada, a abordagem que fomos construindo no curso da pesquisa e no calor das
discussões – por telefone, por skype, por e-mail, como fosse – para os nossos textos de qualificação.
Os avanços de compreensão conquistados nesse sentido motivaram a escrita coletiva do artigo
“Pesquisa narrativa em três dimensões”, apresentado no VI CIPA - Congresso Internacional de
Pesquisa (Auto)Biográfica, no Rio de Janeiro, em novembro do mesmo ano.
Passo agora a comentar a que ponto chegamos com nossos avanços de compreensão. Neste
trecho, até o próximo título, para ser justa com meus companheiros, adoto a primeira pessoa do
plural, visto tratar-se de uma produção a três.
Partimos das considerações feitas por CUNHA e PRADO (2007) quando, tomando como referência
FIORENTINI (2004), ampliam um pouco os critérios adotados por esse autor para considerar como
pesquisa o processo de produção de conhecimento que tem lugar também na escola, e não apenas
nos programas de pós-graduação. CUNHA e PRADO (2007: p. 65-66) afirmam que a situação é de
pesquisa sempre que temos: uma questão para a qual intencionalmente buscamos respostas,
soluções, alternativas; o “diálogo” com interlocutores, “outros significativos”, que trazem
contribuições para a compreensão da questão que se investiga – autores que estudaram o assunto,
colegas de trabalho e demais profissionais, amigos que ajudam a pensar; organização e análise das
informações disponíveis para compreender e encontrar respostas, soluções, alternativas para a
questão e, de preferência, uma reflexão sobre o percurso que vai desde a definição do que se
pretendia investigar até os resultados, ainda que provisórios ou parciais; e algum tipo de registro
que documente isso tudo, com vistas à socialização, por se tratar de assunto de interesse de outros
profissionais.
Esse posicionamento em relação ao que é a produção de conhecimento decorrente de um
processo de pesquisa, com o qual concordamos; a convicção de que pensamos
predominantemente de um modo narrativo e, portanto, a depender da natureza do que se
investiga, é mais pertinente a adoção de uma metodologia de produção de dados ancorada na
narrativa progressiva do percurso; e a ausência até então de uma definição de pesquisa narrativa
que explicasse teoricamente tudo o que pensamos e procuramos realizar nos instigaram a explicitar
nossa abordagem e a nomeá-la como pesquisa narrativa em três dimensões, pelas razões a seguir.
Segundo nossos critérios, pesquisa narrativa em três dimensões é um tipo de pesquisa em que são
narrativas as fontes de dados, a forma de registro e também a forma de produzir conhecimento
durante o percurso. Esse tipo de abordagem pressupõe um modo de produzir conhecimento
82

narrativamente “no durante”, porque a narrativa reflexiva, escrita em progressão, é, ao mesmo


tempo, registro (da tese/dissertação) e fonte permanente de dados (complementar às narrativas
dos sujeitos); portanto, constitutiva da metodologia da pesquisa.
Para que fique mais claro o sentido de o texto escrito ser fonte permanente de dados, eis alguns
exemplos – que por serem específicos da minha pesquisa, a eles me refiro novamente no singular.
Enquanto eu escrevia o memorial de formação, o que aconteceu aos poucos durante o período de
mais de um ano, foram muitos os momentos em que a reflexão sobre o meu próprio processo de
aprendizagem indicou pistas sobre o que, das informações disponíveis nos depoimentos dos
sujeitos, seria interessante considerar como dados. Também a produção do mapeamento
provisório dos conceitos foi um momento privilegiado de considerar possibilidades que até então
não estavam postas, e o mesmo aconteceu ao longo desta narrativa da abordagem metodológica,
que, pode até não parecer, estendeu-se por vários meses.
Narrar “no durante” é, portanto, o espaçotempo de cruzamento entre modo de produzir
conhecimento e registro. É a expressão de um movimento contínuo de ação-reflexão por escrito
no entremeio da pesquisa, do começo ao fim. E é um modo da narrativa, ao mesmo tempo,
constituir-se como produto desse movimento e de produzi-lo. Dialeticamente.
Paulo Freire (1987) – ao referir-se não à pesquisa acadêmica e seus registros, mas sim à produção
de conhecimento de modo geral – dizia da circularidade e da boniteza trazida pelo binômio ação-
reflexão. Com o tempo, talvez para fortalecer o lugar da experiência nesse processo, outros autores
preferiram ação-reflexão-ação, que nos parece só um modo mais enfático de dizer a mesma coisa.
O fato é que fomos construindo e fortalecendo a convicção de que seria incoerente com nossa
abordagem de pesquisa narrativa a escrita do texto somente ao final, como em geral ocorre. Esse
processo dialético em que a narrativa se constrói progressivamente a partir da reflexão sobre a
prática de pesquisa, e esta (também) a partir da narrativa possível até então é, segundo hoje
pensamos, uma das principais características da pesquisa narrativa em três dimensões, que são,
como se vê, intencionalmente articuladas.
Talvez não seja demais fazer aqui uma referência à relação entre reflexão e reflexão por escrito,
entre narrativa e narrativa escrita. Ainda que façamos a defesa da escrita como potencializadora da
reflexão – como plataforma de lançamento a níveis cada vez mais refinados de compreensão do
real, do vivido, do pensado –, sabemos muito bem que é possível refletir mesmo quando não
escrevemos, até mesmo quando não falamos. E, se considerarmos que o pensamento se constitui
predominantemente de modo narrativo, também essa constatação nos permitirá compreender que
não narramos apenas ao falar e escrever, mas também ao pensar/refletir. Portanto, a narrativa
reflexiva sobre a pesquisa não acontece apenas nos momentos de escrita, mas sempre que o
pesquisador se “pré-ocupa” com sua pesquisa – pelas indagações, suposições, decisões e outras
ruminações analíticas – de modo que, quando se põe a escrever, opera com uma narrativa que já
se produziu antes em seu pensamento, ainda que por fragmentos, ainda que desorganizada, ainda
que cheia de lacunas ou de forma caótica.
O momento da escrita será então o momento de pôr ordem nas coisas – a ordem possível para o
momento. Por isso, nos parece que a opção pela produção de uma narrativa escrita da pesquisa só
depois do processo de produção e análise dos dados representa uma dificuldade desnecessária e
uma escolha pouco compatível com a convicção de que escrever ajuda a pensar melhor, a refletir
com mais clareza e a tomar consciência do que era até então inconsciente. E se a intenção for
também de produção de dados pela narrativa do percurso, então esse tipo de escolha de escrever
apenas no final pode ser um erro.
Outro aspecto a destacar é que, diferente de pesquisadores que consideram mais pertinente a uma
investigação narrativa a pergunta da pesquisa surgir no percurso, e não a priori, nosso
83

posicionamento metodológico (e ideológico) é de que a pergunta esteja desde sempre colocada,


em perspectiva, a despeito de tudo poder mudar por força dos acontecimentos em uma viagem
que pressupõe navegação à deriva. Ocorre que a navegação à deriva sem ao menos um sonho,
um desejo, alguma ideia em relação ao destino seria como viajar por viajar... Sem dúvida, essa é
uma escolha elegante em narrativas que pressupõem o caminho forjado no próprio caminhar, mas
a nosso ver incoerente em se tratando de pesquisa acadêmica, a menos que o objetivo seja
justamente investigar o que acontece quando não se tem predefinida nenhuma pergunta
desencadeadora.
Afinal, tem razão o Gato de Alice: para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve. E, nesse
tipo de pesquisa narrativa que nos desafiamos a desenvolver, está fora de cogitação a ideia de que
todo caminho é igual.
Além da importância de ter sempre em perspectiva a pergunta da pesquisa e o objetivo que lhe
confere existência enquanto tal para dar sentido à deriva, há outra razão que justifica essa nossa
escolha, especialmente de um determinando ponto do percurso para adiante: a relevância que tem
a pergunta da pesquisa no processo de produção dos dados.

A produção de dados como fonte de conhecimento emergente

No GEPEC, de modo geral, tem sido uma prática cada vez mais frequente entre nós, pesquisadores,
não adotar categorias teóricas – de organização dos dados – definidas a priori, nas quais as
informações e os dados são depois “encaixados”. Porém, muitos de nós definimos, sim, o que se
poderia chamar de categorias, mas a posteriori. Nós as nomeamos eixos organizadores, eixos
temáticos, blocos temáticos – dentre outros –, mas, na verdade, se analisados com rigor
epistemológico, concluiremos que são categorias forjadas no processo, como resultado de um
intenso trabalho de análise e teorização do pesquisador.
Pelo fato de recusarmos intencionalmente os métodos rígidos e positivistas de fazer ciência e por
ter sido comum as fontes de dados das nossas pesquisas serem narrativas, quase sempre temos
assumido a perspectiva metodológica do chamado Paradigma Indiciário de Análise, postulado por
Ginzburg. Dessa perspectiva metodológica “a linguagem é tomada como elemento vivo que
permite analisar e compreender o real, reconhecendo a pluralidade de sentidos que podem ser
atribuídos a esse real e a possibilidade de ir além do que está exposto” (Lopretti: 2013).
Conforme Ginzburg (1989), é nos sinais involuntários, nas miudezas, que aparece o aspecto mais
certo da individualidade do autor. E, se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais,
indícios – que permitem decifrá-la. Ou seja, nos sinais, nas pistas, nos indícios é possível alcançar
novas compreensões da realidade, aspectos não imediatamente visíveis, ligadas às experiências
concretas e suas características peculiares.
Tal como afirma Lopretti (2013), “neste procedimento de análise, não se estabelece uma técnica
pré-definida com etapas específicas, pois o procedimento de análise será definido com base nos
objetivos, nas especificidades dos dados e do próprio contexto da pesquisa, e nas características
pessoais do pesquisador, sempre tendo em vista os pressupostos teóricos apresentados e que irão
fundamentar a análise”.
Entretanto, quando as pesquisas têm um enfoque metacognitivo, nem sempre o Paradigma
Indiciário de Análise nos parece uma abordagem necessária. Isso porque ou seu autor investiga a
própria prática profissional – e toma como fonte de dados seus registros reflexivos –, ou porque é
fonte de dados as narrativas de outros sujeitos – que refletem sobre o processo pessoal que é objeto
84

de análise27. Quando é assim, a reflexão sobre o próprio processo de aprendizagem tende a já


trazer em si, por seu autor, um “considerar os indícios”, de modo que, no momento da análise dos
dados, pode acontecer de o pesquisador julgar desnecessário perscrutar os registros à procura de
indícios ocultos ou não percebidos até então, especialmente quando a busca tem sido por eles todo
o tempo.
Nesse caso, será mais pertinente outro procedimento: selecionar, a partir do material analisado, o
que possa evidenciar possibilidades de resposta à questão da pesquisa, tendo em conta o seu
objetivo.
A observação minuciosa de como procedemos – eu e boa parte dos pesquisadores do GEPEC – no
processo de produção dos dados a partir do universo de informações disponíveis em nossas
pesquisas tem revelado modos muito semelhantes, o que me instigou a sistematizar esta que passei
então a considerar uma metodologia “nossa”, embora nem todos os pesquisadores do grupo
adotem e embora outros pesquisadores de outros tantos grupos desenvolvam também.
Para confirmar se não havia uma compreensão enganosa, organizei uma versão preliminar do que
segue explicado adiante e, por sugestão do Professor Guilherme, enviei aos pesquisadores que
desenvolvem procedimentos metodológicos parecidos, solicitando uma análise criteriosa e um
parecer crítico. Boa parte deles respondeu, rápida e generosamente28, e o que aqui está é uma
versão por eles legitimada do percurso metodológico de produção dos dados – semelhante-mas-
singular – nas pesquisas que desenvolvemos:
 Inicialmente o material que se toma como universo de informação – amplo, aberto, diverso,
mutante e, por isso mesmo, não raro, um tanto caótico – é olhado/lido uma ou mais vezes para
as primeiras aproximações. E esse contato amistoso, mesmo que não intencionalmente, já
comporta um exercício embrionário de análise, pois o pesquisador é um sujeito encarnado, de
olhar perscrutador, e, desse lugar, fará sempre suas leituras em busca de pistas.
 Tendo em perspectiva a pergunta da pesquisa e o objetivo que se tem, outras leituras
acontecem, agora com o propósito de selecionar/destacar, do universo de
informações, aquelas que possam contribuir para encontrar respostas possíveis à questão
central que mobilizou a pesquisa e o pesquisador. Entendemos que os dados são produzidos,
e não “coletados”, justamente por esta razão: os dados são produzidos a partir das informações
coletadas ou já disponíveis de antes da pesquisa como resultado das escolhas do pesquisador.
 Por vezes, tanto o problema quanto o objetivo, indicados no projeto inicial, acabam passando
por um processo de desconstrução do seu estado “original” e ganham novos sentidos, o que
significa que os dados são, sim, produzidos a partir das informações disponíveis, mas como
resultado de um trabalho ativo e reflexivo do pesquisador. Estando aberto à possibilidade de
fazer o caminho ao caminhar, o pesquisador vai reconfigurando o que estava posto e
produzindo dados a partir de sua reflexão não apenas sobre as informações, mas sobre o que
“alcança” da pesquisa, uma vez que desfruta do privilégio do distanciamento (o possível) que
permite um olhar estrangeiro para o próprio percurso. Trata-se de um distanciamento de
tempo, considerando o momento em que a pesquisa foi inicialmente projetada, e um
distanciamento no olhar do pesquisador, que agora já é outro em razão do que estudou, do
que pensou, do que dialogou com outros, do que viveu e do que passou agora a ver. Ou seja,
este é um processo de produção de conhecimento que se dá genuinamente no movimento de
ação-reflexão-ação. Também por esse motivo, os possíveis agrupamentos dos dados tendem a

27
Como é o caso da minha pesquisa.
28
Carla Clauber, Carla Helena Fernandes, Adriana Pierini, Adriana Alves, Liana Arrais Seródio, Glória Cunha, Vanessa
Simas e Wilson Queiroz, a quem agradeço especialmente.
85

começar se delinear de algum modo, muito embora não seja esse o propósito principal neste
momento.
 Os achados nesse movimento vão sendo examinados e agrupados por proximidade temática,
o que, não raro, resulta num ir-e-vir prolongado e em reagrupamentos, buscando a maior
redução possível na quantidade de grupos que serão tomados como referência.
 Nesse processo de organização dos dados em campos semânticos, núcleos temáticos ou eixos
organizadores, cada pesquisador utiliza um ou mais recursos com os quais se identifica –
destaque das relevâncias no material impresso ou em cópia do arquivo original (com marcas
em negrito ou sombreado colorido ou ambos), copy-paste de trechos semelhantes e/ou
“representativos”, quadros, tabelas ou outro tipo de recurso mais compatível com a natureza
das informações que se tem ou com o estilo pessoal. Esses dispositivos exigem outros modos
de pensar que favorecem o processo de seleção e a organização dos dados porque evidenciam
recorrências, relações, lacunas, ausências.
 Por fim, os grupos, campos, núcleos ou eixos são nomeados do modo considerado mais
pertinente para evidenciar a que se referem.
Quando há o compromisso ético e estético de mergulhar com todos os sentidos na pesquisa, de
virar de ponta cabeça os modos convencionais de proceder para forjar um caminho válido e de
entender a complexidade e a diversidade transversal aos nossos percursos, penso que esse modo
de trabalhar com os dados é muito pertinente.
Em vez de enquadrar o modo de fazer a pesquisa em modelos preconcebidos, assumimos esse
desafio práxico de construção de categorias de organização dos dados a posteriori. Entretanto, a
negação da perspectiva positivista de categorias definidas sempre a priori, que motivou a
construção, por muitos dos pesquisadores do GEPEC, de outros procedimentos metodológicos e
de outras palavras em seu lugar, a meu ver acabou por obscurecer por algum tempo a natureza
desse processo, que é, sim, de categorização – só que a partir dos dados produzidos no interior da
própria pesquisa e não de uma matriz já pronta “de antes”. Quando é assim, “de antes”, a tendência
é ocorrer um fenômeno semelhante ao que se dá no mito de Procusto29, que em nada se parece
com a abordagem que defendemos e praticamos. Com isso, quero dizer que, embora raramente a
palavra categoria seja utilizada em nosso grupo de pesquisa em razão dos sentidos que ela
sentencia, o procedimento que adotamos é de categorização dos dados, como se pode verificar no
percurso metodológico acima descrito.
Guarda semelhança com esse nosso modo de composição de categorias a partir dos dados
produzidos a metodologia de análise proposta por Aguiar e Ozella (2006) e explicitada em seu
artigo “Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição de Sentidos”.
A metodologia de análise dos autores propõe, a partir de alguns instrumentos de apoio, a
identificação de pré-indicadores que servem de base para a construção de indicadores, que, por
sua vez, permitem chegar a núcleos de significação.
Utilizamos procedimentos mais singularizados e instrumentos produzidos caso a caso e, por isso,
segundo nos parece, mais compatíveis com a perspectiva epistemológica que inspira nossos

29
Procusto era o apelido de Polípemon (ou Damastes), personagem da mitologia grega que costumava atrair viajantes
solitários para a sua pousada, oferecendo-lhes abrigo para passar a noite. Lá havia dois leitos de ferro, um menor que o
outro, que ele oferecia ao visitante a depender de sua altura. Depois, tendo este adormecido, Procusto dominava-o e
tratava de adequar o corpo às medidas exatas do leito: se o hóspede era alto e os pés sobressaíssem da borda, ele os
amputava com um machado; se fosse baixo e houvesse espaço de folga, os membros eram estirados com cordas e roldanas.
Foi assim, em razão do perverso castigo que aplicava a suas vítimas, que passou a ser chamado de Procusto, que significa
estirador. Sua estranha obsessão teve fim, entretanto, quando Teseu o obrigou a se deitar em seu próprio leito, atravessado,
e cortou todas as partes do corpo que sobraram para fora.
86

trabalhos, que é a de priorizar procedimentos de sistematização e síntese construídos conforme a


situação específica da pesquisa. Esse “jeito próprio”, no entanto, acaba por aumentar nossa
responsabilidade de pesquisadores em relação às escolhas a fazer, pois é preciso que cada um trilhe
uma rota peculiar para encontrar seus próprios procedimentos. O que há de comum entre nós é
um percurso compartilhado por afinidade, circunstância que não elimina a singularidade do
percurso de cada pesquisador porque não há um compromisso selado de afinidade por princípio:
se a pesquisa tiver o poder de nos arrastar para outra direção, por uma ou por outra razão, será
mais ajuizado seguir do que permanecer pregando doutrinas. Concordamos com Bakhitin quando
diz:
Cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um
dos atos de que se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto, porque a vida
inteira na sua totalidade pode ser considerada como uma espécie de ato complexo: eu ajo com
toda a minha vida, e cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento do meu viver-
agir. (Bakhtin, 2010, p44)
O processo de produção de dados assim desenvolvido, como se pode ver, é uma fonte de
conhecimento emergente para o pesquisador, isto é, fonte de um valioso “saber da experiência”.
Como afirma Contreras Domingo (2013 p. 131-132), já citado anteriormente, esse é um tipo de
saber que pressupõe uma relação pensante, pessoal, sensível e criativa diante dos desafios, nem
sempre claros ou previsíveis; um modo de “ir sabendo” e de “ir sabendo-se”; uma disposição de não
cristalizar o sabido e o feito, mas, ao contrário, pensar encaminhamentos, perguntar-se pelos
sentidos e desenvolver a capacidade de sempre reviver, atualizar, ressignificar esses sentidos no
exercício do fazer. Trata-se, portanto, de um saber sustentado em primeira pessoa, que se cultiva
ao pôr em jogo a própria subjetividade, a própria história, os recursos e as capacidades pessoais.
Trata-se de um saber paradoxal, pois é sedimentado no vivido e orienta a ação. Entretanto, é um
saber sempre nascente, sempre se renovando, que revela uma qualidade essencial: contribuir para
viver, de maneira receptiva, em sua novidade, o movimento e as mudanças inerentes ao desafio de
aprender.
No entanto, como nem só de saber da experiência se sustenta o processo de produção dos dados
da pesquisa, procurei outros fundamentos. E descobri que, quando se trata da análise e da
interpretação de dados de pesquisa qualitativa, GOMES (2011: 77), tomando como referência o
que propõe Minayo (1992) e citando-a, defende o que chama de uma proposta dialética para a
análise:
A autora citada denomina sua proposta de método hermenêutico-dialético. Nesse método, a fala
dos atores sociais é situada em seu contexto, para melhor ser compreendida. Essa compreensão
tem, como ponto de partida, o interior da fala. E, como ponto de chegada, o campo da
especificidade histórica e totalizante que produz a fala.
Muito embora eu não tivesse como pressuposto um paradigma clássico para tratar dados – ou pela
via da análise do discurso ou pela via da análise do conteúdo, como habitualmente é de se esperar
–, porque sempre me pareceu mais coerente encontrar a melhor forma de proceder a partir do que
os dados indicariam, o fato é que Gomes faz uma abordagem interessante para pesquisas como
esta, porque defende uma metodologia híbrida de análise, se considerado o discurso e o conteúdo.
O autor afirma os dois pressupostos que sustentam esse tipo de proposta: não há consenso e nem
ponto de chegada no processo de produção de conhecimento, e a ciência se constrói numa relação
dinâmica entre a razão daqueles que a praticam e a experiência que surge na realidade concreta.
E diz ainda que esses pressupostos se sustentam na ideia de que os resultados de uma pesquisa em
ciências sociais são sempre uma aproximação da realidade social, que jamais poderia ser reduzida
a nenhum tipo de dado de pesquisa e devem, portanto, ser encarados com a provisoriedade que
merecem.
87

Quando explica o significado de categoria, no contexto da metodologia que defende, Gomes


comenta que a palavra está ligada à ideia de classe ou série, que diz respeito a elementos ou
aspectos com características comuns ou inter-relacionadas e que trabalhar com categorias implica
agrupar elementos, ideias ou expressões em torno de conceitos capazes de abranger tudo isso. Diz
ainda que as categorias podem ser estabelecidas antes de tudo ou a partir dos dados; que, quando
antes, são conceitos mais gerais e mais abstratos e, quando depois, são mais específicas e mais
concretas; que a perspectiva, segundo ele, é de o pesquisador estabelecer categorias antes e depois
e compará-las.
Confesso que, de tudo, o que não fez muito sentido para mim foi esse último ponto: até o momento
nunca me fez falta esse tipo de a priori. Penso que basta a categorização feita a partir dos dados.
Mas entendo que a contribuição desse autor é importante, porque favorece a compreensão de
que, em um processo de produção de dados como o que fazemos, as categorias estão presentes;
mesmo que com outros nomes, são criações do pesquisador e não existem para enquadrar e
formatar a realidade, mas para iluminá-la de algum modo.
Entretanto, é importante destacar que a explicitação do processo de categorização que descrevi
como parte do percurso metodológico de produção dos dados diz respeito à organização dos
dados e não propriamente à análise. Sim, ao organizar, sempre analisamos, mas é diferente: ainda
que tenham estreita relação, uma coisa é um dispositivo de organização e outra, é um dispositivo
de análise.
Como se pode ver, para que esse processo todo aconteça em razoáveis condições de produção,
uma pergunta de pesquisa bem colocada é fundamental; do contrário, as escolhas podem vir a se
descolar dos propósitos que deram sentido à pesquisa. Também por isso defendemos que a
pergunta esteja em perspectiva desde o início, ainda que possa vir a se transformar por força de
novas – e melhores – possibilidades trazidas pelo movimento de deriva.

Por fim

A explicitação de como tudo isso se deu especificamente no meu trabalho vem a seguir, mas antes,
para dar um acabamento provisório a esta parte, retomo a questão das diferenças entre a pesquisa
em três dimensões e o que defendem Clandinin e Connelly, Bolívar, Domingo e colaboradores ao
fundamentar a abordagem de pesquisa narrativa.
São duas as diferenças principais. Uma é a articulação intencional das três dimensões narrativas da
pesquisa: fontes de dados, modo de produzir conhecimento e registro. E a outra é a opção por um
registro narrativo produzido continuamente, que não é apenas o registro final do pesquisador –
fruto de uma análise narrativa em diálogo com os dados ou da escolha de um gênero narrativo
para documentar a pesquisa –, e sim um modo de pesquisar-narrando-e-narrar-pesquisando no
durante, no percurso, o que traz novos dados à investigação e é parte constitutiva da metodologia.
Os autores tomados como referência defendem um lugar de pesquisador situado, situado no
entremeio da inevitável dimensão pessoal-social, no entremeio do movimento passado-presente-
futuro, no entremeio das histórias dos sujeitos de sua pesquisa – a própria, inclusive. Também eu
defendo essas mesmas escolhas ideológicas e epistemológicas, porém há outra: o entremeio da
experiência da pesquisa como condição de produção do registro. Por isso, o registro é progressivo;
por isso, é necessariamente uma narrativa que documenta o conhecimento emergente da
experiência. No meu caso, é uma correspondência narrativa construída por obra do desejo e da
deriva em busca da Ilha Desconhecida.
88

[Em busca dos dados contidos]

Caros leitores... terei de ser honesta com vocês: esta parte da travessia foi, de todas, a mais árdua
para mim. É relativamente longa, pedagógica, garante algumas surpresas boas (eu acho) e não há
turbulências dignas de nota.
A narrativa que aqui se inicia diz respeito ao processo de produção dos dados a partir do universo
de informação que tomei como referência. A análise mais formal, em diálogo com a contribuição
teórica necessária para iluminar a compreensão dos achados, virá depois. Aqui, o propósito é
evidenciar como se deu a produção dos dados e as teorizações que, a partir deles, me foram
possíveis.
E começo, então, pelo começo.
Tomei inicialmente, como universo de informação, os depoimentos enviados pelos sujeitos-
colaboradores como resposta a um pedido meu, que foi este:

Em 7 de abril de 2012 10:35, Rosaura Soligo <rosaurasoligo@gmail.com> escreveu:


Caros colaboradores,
Gostaria de pedir a vocês que, se possível, escrevam um primeiro depoimento pessoal sobre o que
aprendem a partir da interlocução que desenvolvem por escrito na internet – considerando as
modalidades e as ferramentas que têm o hábito de utilizar com mais frequência, quaisquer que sejam
elas.
Evidentemente, não tenho nenhuma intenção de que vocês se ocupem com uma formulação teórica
(a menos que desejem), mas sim com um relato pessoal sobre o que as possibilidades de participação
nesses contextos comunicativos "acrescentam" de experiência ou, se preferirem, na experiência de
vocês.
Os depoimentos podem ser muito breves ou longos, rascunhados, parciais, preliminares ou
conclusivos, a depender do que julgarem mais pertinente, uma vez que estamos em diálogo e, na
experiência e na narrativa autobiográfica, quem manda é o autor-protagonista (rs).
Um grande e desde já agradecido abraço.
Rosaura Soligo

Conforme chegavam esses textos, eles eram lidos em primeiro lugar para “degustação”, como
ocorre sempre que recebemos um escrito esperado. Depois, com um olhar mais perscrutador, em
busca dos dados possivelmente “contidos” e depois, em relação aos textos dos outros sujeitos – e,
às vezes, tudo isso ao mesmo tempo.
Em seguida, tendo como referência a pergunta de pesquisa – “Em que circunstâncias, de que modo
e por quais razões é formativa a experiência de comunicação escrita no espaço virtual?” – e o
respectivo objetivo, que era encontrar algumas respostas possíveis para essa questão, fiz várias
leituras dos escritos a mim enviados para identificar e destacar trechos que pudessem responder
de algum modo à pergunta ou a ela se relacionar, ainda que indiretamente.
Reuni todos os escritos em um único arquivo com pouco mais de trinta páginas e salvei-o
novamente com outro nome, para poder manter um original e fazer alterações no outro conforme
a necessidade.
No segundo arquivo, eliminei todas as informações que não diziam respeito ao tema da pesquisa,
mantendo apenas as informações que poderiam se converter efetivamente em dados.
Destaquei em duas cores as informações que considerei mais relevantes para a produção dos
dados: em uma, as referências feitas diretamente à experiência pessoal, e em outra, as reflexões
89

sobre temas relacionados à pesquisa de modo geral que poderiam eventualmente ser tomadas
como contribuições teóricas.
Depois esse material foi lido várias vezes e, em meio a essas leituras, acabei considerando oportuno
separar os dois tipos de informação e montar dois arquivos separados.
Compilei os textos em uma sequência que me pareceu pertinente para encadear as ideias dos treze
autores que se dedicaram a espontaneamente escrever uma análise mais geral – nem todos fizeram
isso, uma vez que a proposta original era registrar o aprendizado pessoal. Tive então a ideia de criar
uma espécie de colóquio fictício entre esses os autores (e isso já comentei de passagem nas Notas
de Abril a Junho de 2014), tal como já havíamos feito antes meu orientador e eu – Guilherme
Prado, em sua dissertação de mestrado, e ele e eu, em um livro que organizamos30. A memória de
uma avaliação muito positiva por parte de alguns leitores nos dois casos me instigou a repetir esse
formato pouco convencional, mas muito interessante a meu ver, pois tende a potencializar e
enriquecer a leitura. Surgiu então “Um colóquio virtual sobre a escrita e a internet”.
Enviei o Colóquio para que os trezes autores o complementasse, se necessário, uma vez que, a essa
altura, haviam se passado dois anos da escrita do primeiro depoimento.
Como recebi o texto lindamente comentado por uma pessoa do grupo, que levou a sério a ideia
do colóquio e, portanto, estabeleceu uma interlocução com cada um dos autores, enviei então o
arquivo comentado para todos do grupo, para que, mesmo sem ter feito originalmente esse tipo
de análise geral, pudessem também comentar, se desejassem. Em seguida outra pessoa comentou
também, dialogando com a primeira – e minha hipótese anterior, de que a ausência de
conhecimento compartilhado havia sido talvez o motivo de não ter se constituído uma discussão
efetiva entre os membros do grupo perdeu então parcialmente o sentido e fiquei entusiasmada.
Esse Colóquio com os comentários figurou como apêndice do texto de qualificação, mas depois,
com um grande pesar, acabei por retirá-lo da versão final da tese. Quando me dei conta de que
meu encantamento com esse material tinha muito mais a ver com o fato de ser um bonito e
generoso exercício dialógico, de um tipo inusitado, do que com a efetiva contribuição para o
processo de produção de dados – pois seus tópicos relacionados com a questão da pesquisa, na
realidade, já eram dados – me rendi às evidências. Assim, para mantê-lo como uma contribuição
acessível a quem desejar conhecer esse texto delicioso composto a várias vozes, decidi publicá-lo
no blog https://aquidentrotemgente.wordpress.com/.
Quanto ao outro arquivo, que reúne a parte dos depoimentos que diziam respeito mais
diretamente à experiência pessoal de comunicação por escrito pela internet, passou a ser então o
material com o qual eu trabalharia para a produção de dados. Nesse arquivo acrescentei outros
dizeres – comentários, reflexões, ponderações – que circularam posteriormente e que se
acrescentavam aos da primeira vez.
O material foi sendo relido, e o respectivo arquivo gravado com outro nome, de modo que, a cada
novo arquivo, mais uma vez o texto ia sendo reduzido até ficar o mais resumido possível.
A versão mais reduzida serviu de base para que os conteúdos fossem agrupados, por proximidade,
em blocos temáticos. Esse é um processo trabalhoso que pressupõe reunir com cuidado as
informações que são de algum modo relacionadas entre si: às vezes elas são, mas à primeira análise
não parecem, e às vezes elas não são, mas sugerem uma proximidade óbvia que só se verifica
enganosa quando vamos refinando a análise. De qualquer modo, como sabemos, a categorização
de informações por afinidade temática, por mais objetividade que se pretenda, é sempre resultado

PRADO, G. V. T. Da Busca de Ser Professor. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação da Unicamp. 1992. |
30

PRADO, G. V. T.; SOLIGO, R. Leitura e escrita: dois capítulos desta história de ser educador. In PRADO, G. V. T.;
SOLIGO, R. Porque escrever é fazer história – Revelações, Subversões, Superações. Campinas, SP: Editora Alínea, 2007.
90

das escolhas de quem esteve no comando – e na autoria – desse processo atravessado por
subjetividades nem sempre alcançáveis.
Bem, depois novos destaques foram feitos (em negrito) para evidenciar para mim mesma as
relevâncias e favorecer a nomeação dos blocos temáticos de agrupamento.
Os blocos/categorias foram revistos várias vezes em algumas experimentações para agrupar de
outro modo e voltar atrás e mudar de ideia de novo, isso até chegar à forma considerada melhor,
tendo em vista a questão da pesquisa. Por fim, foram nomeados com expressões consideradas mais
pertinentes para mostrar a que se referiam, ficando assim:

Formas e movimentos de interlocução


- Linguagem escrita como via de interlocução
Formas e movimentos de manifestação da subjetividade
- Protagonismo e empoderamento pessoal
- Que sujeito é este que estamos conhecendo?
Entretanto, o que era para ter sido o fim desse processo, inaugurou, de certo modo, um recomeço.
Porque a leitura, repetidas vezes, desse material produziu em mim a ideia e o desejo crescente – ao
qual evidentemente me submeti – de teorizar o conteúdo apresentado pelos sujeitos, e organizado
conforme os critérios acima, antes de passar à análise formal dos dados em diálogo com outros
autores. Sim, com “outros autores”, pois, nesse caso, como eu já havia anunciado, meus autores de
referência inicial são os próprios sujeitos-colaboradores.
O que chamo de recomeço diz respeito ao processo que, com as partes que se seguem, tentarei
evidenciar. Foram muitas horas de tempo seguido e de concentração para que eu pudesse
concretizar o compromisso que assumi comigo de ser fiel e delicada com os “meus sujeitos”. E,
sinceramente, espero ter conseguido algum êxito nesse sentido.
A primeira parte – O que nos ensinam os sujeitos desta pesquisa – é resultado da minha tentativa
de teorizar o que eles me escreveram e que, a meu ver, diz respeito mais diretamente à pergunta
da pesquisa colocada desde o princípio. Tudo o mais que eles escreveram, que me pareceu não ter
relação direta com a pergunta, está contido apenas no Colóquio. E há reflexões que estão lá e cá.
Esse esforço de teorização não é o que em pesquisa narrativa se chama de análise narrativa – um
texto narrativo em que o pesquisador escreve em diálogo com as narrativas dos sujeitos. Embora
produzido inteiramente em diálogo com os dizeres dos sujeitos, como resultado de um processo
de interação radical com suas ideias, não se trata aqui de uma narrativa, mas de um texto
predominantemente expositivo, tal como são os textos teóricos – e essa escolha foi intencional, não
um deslize. Nesse movimento, tentei – o quanto isso é possível – penetrar na lógica discursiva dos
sujeitos e, agrupando o que disseram de semelhante, dar um tratamento lógico-científico com o
intuito de legitimar seus dizeres como fundamentação teórica relevante para a tese.
Sim, porque os depoimentos em estado original, narrativos, certamente não soariam como
fundamentação teórica aos leitores preocupados com essas convenções, ainda mais tendo vindo
dos próprios sujeitos. E, além disso, qualquer pesquisa acadêmica terá de evidenciar suas
referências teóricas, que, como sabemos, se organizam sempre no interior de um discurso lógico-
científico. Então me pareceu muito razoável redigir ao modo lógico-científico as contribuições
teóricas a mim apresentadas, em geral, narrativamente.
Os acréscimos que fiz ao que disseram os sujeitos, em termos de conteúdo, foram poucos e, nesse
caso, apenas para preencher o que considerei lacunas decorrentes de comentários feitos muito de
passagem ou então complementos que me pareceram necessários quando as ideias estavam
colocadas, porém de forma incompleta. De qualquer modo, como sou, também eu, sujeito da
pesquisa, entendi que tinha esse “direito”.
91

O fato de, nesse tipo de arrumação dos dizeres, a apresentação de citações literais ou comentadas,
com muitas indicações de autoria, aspas e recursos do tipo, comprometer demais a qualidade
estética, a meu ver, necessária a um texto escrito, foi o que justificou a opção por estas duas partes
tal como foram aqui organizadas.
A segunda parte – Contribuições assinadas – é um dos materiais a que me referi anteriormente
quando disse da versão reduzida dos depoimentos que serviu de base para que os conteúdos
fossem agrupados, por proximidade, em blocos temáticos. Como eu editei os depoimentos, de
modo a não só reduzir mais de trinta páginas em somente catorze, mas também agrupar os dizeres
por aproximação, encaminhei para o grupo, pedindo que cada um me dissesse se os sentidos do
que haviam dito em diferentes momentos, no período de dois anos, não tinham sido adulterados
por algum tipo de obsessão de pesquisador nesse processo de textualização.
Enviei a eles este pedido por e-mail:

Caros colaboradores,
Nesse arquivo estão reunidos (ainda sem revisão final) os trechos de tudo o que vocês disseram –
não só no depoimento inicial, mas sempre que disseram algo nas “conversas”, com alguma ordem
razoável, visto que alguns de vocês escreveram várias vezes em diferentes circunstâncias – que
podem responder à minha pergunta de pesquisa. A bem da verdade, talvez eu tenha que
redimensionar a pergunta de pesquisa a partir do que vocês disseram, mas isso já é outra história...
Pois bem, quando se trabalha com depoimentos orais em uma pesquisa, geralmente o que ocorre
para colocá-los por escrito é um processo chamado “textualização”, que é a transcrição pelo
pesquisador do que foi dito, mas com algum ajeito para a condição de texto escrito, que é então
submetido aos respectivos autores para que digam se se reconhecem ali.
Aqui não ocorreu bem isso, porque o que aconteceu na realidade foi uma edição, por mim, dos
textos escritos por vocês. Portanto, a rigor, o que se segue nem foi exatamente escrito por vocês,
nem por mim, nem por nós de comum acordo... Tendo em conta que, em se tratando da
linguagem, forma é conteúdo, ao alterar a forma dos textos (reunindo trechos sobre o mesmo
assunto, reordenando, completando ideias subentendidas, criando links etc), mesmo com todo o
cuidado, eu também alterei de algum modo o conteúdo. Portanto, agora preciso de mais uma
delicadeza: que cada um leia o trecho seguinte ao seu nome e veja se se reconhece nele.
Em princípio, isso não seria necessário, porque já organizei tudo em blocos/categorias temáticas,
que é o que de fato vou analisar. Entretanto, pretendo manter esses textos no capítulo de análise
para que o leitor possa entender de onde eu tirei as categorias, uma vez que pretendo que a tese
seja uma narrativa pedagógica. E aquele outro material que circulou (e foi inteiramente comentado
pela Margareth e pelo Adail), o Colóquio, se manterá exatamente da forma que está, com
acréscimos e comentários destacados e tudo, pois ali há contribuições valiosas.
Aqui há alguns textos que eu trouxe de lá, embora não fosse essa a ideia inicial, porque, nos
acréscimos que foram feitos por alguns de vocês, havia questões que aqui deveriam estar e também
porque as falas de todos vocês, quando analisadas com cuidado, foram me fazendo crer que a
pergunta da pesquisa talvez devesse ser redimensionada.
Meu pedido não é para que escrevam nada, tá? Apenas que leiam e, se no recorte-e-cole destrocei
os sentidos do que pretendiam dizer ao escrever, que me digam, para que eu repare a falha.
Um abraço desde já agradecido! Rosaura
Como vocês podem ver por essa explicação aos colaboradores, tudo o que está documentado no
Colóquio e foi considerado um acréscimo necessário aos dados que já existiam foi incluído.
Passo então, primeiro, à parte de teorização e depois, à de textualização das contribuições do grupo
original de sujeitos.
92

O que nos ensinam os sujeitos desta pesquisa – Teorização

Penso que aqui vocês poderão compreender a potência das contribuições do grupo e a razão dessa
escolha inusitada por um processo de edição por blocos, no lugar de citar pequenos trechos dos
depoimentos originais e comentá-los um a um.

FORMAS E MOVIMENTOS DE INTERLOCUÇÃO

Na realidade somos seres relacionais que desejam estar em contato uns com os outros, com-viver.
O mundo virtual é um dos meios apenas. E as interlocuções se alteram a depender dos meios. Não
só pela questão da proximidade/distanciamento, mas também porque há níveis, formas e redes
distintas de interlocução. Se considerarmos que há sempre interlocução, interação, na ausência ou
na presença, real ou virtual, a Web “apenas” altera a maneira como isso acontece.
Nesse meio – nesse contexto – todo tipo de sentimento humano tem lugar, pois os que aí estão
são seres humanos em processo de interlocução: desde a alegria e o riso incontrolável até a
profunda tristeza diante do sofrimento do outro ou a indignação diante da injustiça.
O que a internet possibilita é a exposição do que ocorre em nós, que estamos alimentando os
diálogos todos, que respondemos uns aos outros, organizamos melhor os pensamentos (talvez
nem todos nós, talvez nem todos os pensamentos, talvez nem em todas as situações) justamente
porque essa resposta se manifesta pela escrita. Nesse caso, o processo de comunicação escrita com
o outro é mais ou menos como ler um livro e dialogar com ele, mas com o autor presente, que
responde às perguntas e faz outras, traz algo mais vivo, constrói junto do lugar que ocupa. E com
outro tempo para organizar os pensamentos, significar e ressignificar o que pensamos e o que
pensa o outro. Lemos, significamos, lemos outras coisas, vivemos, ressignificamos, escrevemos e,
enfim, respondemos... Por quanta coisa não passamos para, assim desse modo, responder a alguém
em um diálogo mais reflexivo sobre a vida, sobre a profissão, sobre o futuro? Nós mudamos no
curso da conversa e, junto, muda também a qualidade do que vamos escrever.
Podemos, por exemplo, aprender muito trabalhando numa modalidade em que a relação se faz à
distância, porém tão intensa como se estivéssemos fisicamente juntos. Se o grupo de trabalho é
afinado nas concepções, uma pequena sugestão pode suscitar inúmeras ideias de criação. Nesse
processo de produzir a distância, a muitas mãos, podemos nos tornar mais íntimos da vida uns dos
outros, entre um e-mail ou uma conversa sobre o próximo encaminhamento, contando sobre
sentimentos, os anseios, as dúvidas, as mobilizações internas, os acontecimentos. Mesmo em
condições nem sempre favoráveis, é possível praticar a amorosidade em relação ao outro, o
encorajamento, a solidariedade. E assim pode se ampliar também a compreensão sobre a nossa
própria constituição como pessoa, sobre a própria subjetividade a partir dos relatos, dizeres,
conselhos, recomendações, desejos e partilha de experiências.
Com certeza, aprende-se muito nesse tipo de comunicação escrita, mas há aprendizados que não
estão diretamente ligados ao fato de se trabalhar online, e sim à qualidade da interlocução.
O computador não substitui o olhar, o humano, claro que não, mas se a experiência de interlocução
(pessoal ou profissional) online for muito intensa, por vezes temos a impressão de que o encontro
presencial se segue ao último “encontro” a distância, e não à última vez que houve, de fato, um
encontro presencial. Tudo acontece, de certo modo, como ocorre na vida fora da tela, e de vez em
quando melhor, quando há uma interação profunda com o outro. Há amigos virtuais com os quais
estabelecemos uma relação afetiva forte, praticamos demonstrações de carinho e gratidão e
93

abrimos nossa intimidade, preenchemos certos vazios da vida. E essas demonstrações de afeto
especial melhoram a nossa autoimagem e autoestima, pois afinal estas são construções que
dependem sempre do outro.
Muitos são os fatores que interferem nos modos de as pessoas se comunicarem por escrito na
internet, como o grau de intimidade entre elas, ou a posição institucional que ocupam, ou o tipo
de diálogo que acontece. Não é, portanto, exatamente o espaço da interlocução o responsável
pelos efeitos e pela qualidade do discurso. O que está em jogo é o que acontece em cada um, com
ou sem interlocução. Porque somos nós a alimentar esses diálogos conforme podemos, de onde
estamos, com as ferramentas que temos, da perspectiva que olhamos. Sim, a comunicação online
se faz nos marcos da velocidade, porém isso não significa que seja necessariamente superficial ou
banalizadora. Pode ser breve, mas profunda e desafiadora, ainda mais se potencializar o
conhecimento e a criação – isso dependerá sempre dos sujeitos que interagem.
E tudo se realiza por meio da escrita, que torna vivo e “falante” um tipo de comunicação “silenciosa”.
Nesse tipo de comunicação também acontecem descontinuidades e silêncios. Sem trocar uma
sílaba sequer com o outro, por exemplo, é possível que ele vá entrando em nós com suas histórias,
sua vida, seu modo de vê-la, nos pluralizando. Esse é também um nível de interlocução. Por outro
lado, nem sempre a interlocução acontece como poderia – mas isso é comum nas relações que se
dão presencialmente. Quanto, de fato, dialogamos ou monologamos, ainda que tenhamos a
intenção de materializar nosso discurso e torná-lo parte do outro? Muitos dos que defendem com
afinco a arte do diálogo, na realidade não estão abertos para as interlocuções possíveis, o que se
verifica em vários tipos de relação.
Os grupos temáticos ou de discussão, por exemplo, que são comunidades instituídas de fato ou
têm funcionamento de comunidades, embora não sejam oficialmente, refletem um pouco essa
heterogeneidade.
Por um lado, grupos assim instigam o desejo de escrever e compartilhar - que é umas das grandes
forças da internet, esse trabalho coletivo não presencial - e o estreitamento de relações pautadas
em afinidades de todo tipo. Em relação à experiência de produção e ao compartilhamento de textos
sobre a docência, por exemplo, – como é o caso das “pipocas pedagógicas”31 – ou sobre as relações
amorosas – como é o caso das “des|amorosas” –, o resultado é um efeito de
“encontro/pertencimento”, tanto de quem escreve quanto de quem lê, da maior importância,
segundo a opinião dos que participam dos grupos.
As “pipocas” são potentes e deliciosas porque legitimam o sonho de que existe outra maneira de
fazer a escola, uma maneira mais prazerosa e a favor de crianças, adolescentes e jovens. São
potentes também porque são narrativas escritas e não orais – com certeza o contar ao vivo roubaria
a chance de imaginar as cenas, os contextos, os momentos, e o brilho se perderia ao menos em
parte.
As “des|amorosas” e outros textos “sobre as coisas da vida” têm também essa abertura para a
imaginação, e o tipo de efeito da opinião dos leitores em seus autores é igualmente poderoso. Uma

31
Pipoca pedagógica é um gênero praticado pelo grupo de professores que participa do GEPEC (Grupo de Estudos e
Pesquisas em Educação Continuada) da Faculdade de Educação/Unicamp. É um tipo de crônica do cotidiano escrita por
professores, uma breve narrativa de acontecimentos que têm lugar na escola e cujos protagonistas são o aluno, o professor
e principalmente a relação entre ambos. Trata-se de outro tipo de registro sobre a prática, bem diferente dos registros mais
formais com os quais estamos habituados: nesse tipo de texto o autor não faz uma reflexão explícita, mas narra uma
história, um episódio da história de sua prática pedagógica que suscita reflexão no leitor.
94

dessas autoras32 conta que, quando tornou público um texto seu em um circuito maior do que os
raros amigos que eram seus leitores, teve um retorno muito construtivo, tanto no que se diz respeito
ao diálogo criado com os que leram, elogiaram e deram opiniões, quanto para se firmar um pouco
mais no que considerava um terreno arenoso – a escrita pública – e descobriu um sem fim (muito
maior do que imaginava) de possibilidades e respostas que um único texto pode suscitar quando
“cai” num grupo receptivo. Saber que foi lida, que sonharam com ela (como lhe disseram), foi muito
instigante e se criou um ciclo, segundo ela: as pessoas comentam o que escreve, ela escreve coisas
para as pessoas comentarem, e assim o “apertar o botão de enviar” é muito mais refletido, por muito
mais vezes. Os leitores mudaram e assim ela mudou também a forma como se mostra – já tinha em
si todas as alegrias do mundo em escrever e conquistou as alegrias do mundo em compartilhar
esses escritos e receber respostas que alimentam novas escritas.
Entretanto, a depender da natureza, dos participantes e do funcionamento dos grupos, também
pode ocorrer um processo de exclusão. Por vezes, numa discussão online, as pessoas selecionam o
que querem responder, o que querem ler, e ignoram o restante – e, portanto, excluem tanto os
dizeres quanto os seus autores, sem que de fato o exercício e o direito à discussão estejam
garantidos. Quando é assim, poucos realmente participam e em geral, destes, menos ainda
enfrentam o debate e expressam a sua opinião. Isso também ocorre nos grupos que se encontram
fora da tela, mas sendo a distância e via escrita parece que ficam favorecidos certos mecanismos de
invisibilização e de exclusão.
Sim, é preciso aprender certas normas de conduta nessa outra materialidade que é a internet, para
evitar excessos, gafes e inadequações, como entrar em conversas que não nos dizem respeito,
tentar inutilmente agradar “gregos e troianos”, ferir as pessoas por falta de atenção a elas ou ao
impacto que pode produzir o que dizemos, tudo isso. Mas o que acontece de fato é que, sendo um
meio, os sujeitos que nele interagem carregam inevitavelmente a si próprios para o seu interior. São
eles que manejam a ferramenta. Para o bem e para o mal.

Linguagem escrita como via de interlocução

O uso da linguagem escrita como via de interlocução online tem produzido efeitos importantes em
muitos usuários.
Naqueles que são mais proficientes e, consequentemente, refletem sobre os textos que produzem,
um desses efeitos é, por um lado, o cuidado consciente com a forma de escrever, considerando o
leitor e suas possibilidades de compreensão. Por outro, o cuidado em compreender os sentidos
produzidos e pretendidos pelos autores dos textos lidos, uma vez que a escrita – sendo intencional,
endereçada a destinatários concretos e, no caso da internet, não submetida à censura externa – é
sempre a materialização de dizeres pretendidos a leitores específicos. Mesmo assim, por vezes, há
uma zona de indeterminação meio insolúvel das compreensões em diálogos que acontecem por
escrito, pois os interlocutores não estão “em presença” para se resolverem com os seus
desentendimentos.
Especialmente quando se trata de escrever instruções para orientar a ação das pessoas, é preciso
praticar o exercício de deslocamento para o lugar do outro de um modo quase obsessivo, para
tentar antecipar suas dúvidas, possíveis incompreensões e assim aprimorar a escrita para que ela
possa comunicar, tanto quanto possível, o que se pretende.

32
Patrícia Fujisawa, que começou timidamente com um blog de poucos visitantes e passados três anos já publicou seu
primeiro livro pois algum lugar deve ser, pela Editora Medita, em 2014. É parte do grupo de sujeitos-colaboradores e
escreveu o que é aqui comentado em seu depoimento para esta pesquisa.
95

O cuidado com a forma tem a ver também como o grande alcance da escrita, quando é esse o
caso: se muitos vão ler o que escrevemos, se muitos desses nem sabemos quem são, é preciso cuidar
o mais possível do que lerão. Além do que, ao que tudo indica, a leitura na internet tende a ser mais
rápida (do que em portadores mais convencionais) e, sendo assim, a depender do tipo de escrito,
é preciso redobrar a atenção porque a leitura rápida ou aligeirada pode ser traiçoeira.
Muitos de nós – e dos que escrevem o que lemos – seremos conhecidos pelo que publicamos não
sabemos quem são os desconhecidos que lerão o que escrevemos, não temos controle sobre o
efeito das nossas escolhas, sobre o impacto causado por elas e nem sobre a interpretação que farão.
E a forma com a qual nos expressamos pode produzir resultados indesejados. Assim, sabendo ou
imaginando que muitas pessoas vão ler o que escrevemos, ou mesmo que será uma apenas, mas
precisará compreender “direitinho” o que queremos dizer, a tendência é melhorar nossa
performance de autor. A preocupação em “dizer melhor virtualmente” às vezes tem por trás um
pensamento do tipo: “se fosse ao vivo, eu falaria isso desse modo. Mas como não é, preciso escrever
melhor”.
Essa relação mais reflexiva com a escrita tende a produzir uma aprendizagem sobre a forma que
escrevemos, nos comunicamos e tentamos nos fazer entender.
E quando a situação é de escrita de si, portanto de textos mais intimistas e com um nível maior de
exposição pessoal, ela pode funcionar como uma espécie de “pensar alto”, um pensar que se torna
público. Se aquele que escreve tem consciência de suas intenções e dos efeitos que a escrita poderá
produzir, fará inevitavelmente o exercício reflexivo sobre o que/como afinal deve escrever, se quer
que saibam isso ou aquilo a seu respeito, mesmo que sejam textos ficcionais, que, a despeito de
nem sempre serem metáforas autobiográficas, podem assim ser considerados. Esse exercício,
quando acontece de modo consciente, acaba obrigando o autor a olhar para o que de sua vida
privada deseja que vá a público. E isso com certeza é um importante aprendizado de si, provocado
pelo desafio de compartilhar textos de ordem mais pessoal, especialmente quando vão ser lidos em
circuitos públicos “abertos”, como os blogs e as redes sociais, sobre os quais não se tem nenhum
controle depois de pressionada a tecla “publicar” – a menos que se exclua em seguida.
O fato é que a escrita sinaliza, realiza e concretiza de algum modo quem somos, para nós mesmos
e para os leitores. Não apenas quando é publicada. Mas, por certo, quando é, há de se redobrar o
cuidado por conta da zona indeterminada de compreensões. O exercício de buscar a máxima
aproximação possível – uma vez que não há coincidência que se possa esperar – entre que se
pretende dizer, o que efetivamente se diz e o que pode vir a ser compreendido torna-se um desafio
mais constante quando a escrita é frequente e pública.
Já por e-mail, com interlocutores escolhidos, o processo é mais “protegido”, mais semelhante à
prática milenar da correspondência por cartas, só que com intervalos muitíssimo mais rápidos entre
enviar a mensagem e receber uma resposta, às vezes de minutos de diferença. Nesse caso, pode
acontecer uma escrita intencionalmente tecida para partilhar sentimentos e refletir sobre eles –
uma escrita que contribui não só para organizar pensamentos, mas também para redimensionar
os próprios sentimentos. Isso ocorre quando existe espaço para dialogar sobre o que sentimos a
partir do que escrevemos para o outro sobre nós ou sobre nossa relação com ele. A depender do
momento e do tipo de experiência que estão vivendo os que se escrevem, os escritos podem ser
muito encorajadores e, em determinadas situações, criar as condições para ir muito mais longe no
diálogo sobre si do que seria possível conversando “pessoalmente” – pois a comunicação por
escrito, em contextos de acolhimento, não raro permite abordar questões sobre as quais nem
sempre se teria coragem de partilhar “olho no olho”.
96

Esses são contextos de interlocução e partilha por escrito de informações, conhecimentos,


reflexões, sentimentos, confidências que tendem a se configurar como experiências tão formativas
que podem evidenciar inclusive o que no diálogo presencial passaria despercebido.
Quando a proposta é de escrever sobre a prática profissional, especialmente para compartilhar
reflexões com um grupo de pares, o que habitualmente se verifica é que novas relações vão
surgindo a partir do que escrevemos, pensamos, questionamos, lemos, lembramos, vivemos,
queremos ser. E se as pessoas respondem, dão uma devolutiva sobre o que escrevemos, a
tendência é surgir outras novas questões, outras interpretações, outras ações. O distanciamento
que o ato de escrever favorece para quem escreve, aliado ao fato de que o outro, ao analisar os
nossos escritos com o seu olhar de leitor externo à nossa experiência, pode contribuir para
desacostumar o nosso próprio olhar são dois ingredientes da maior importância nesse movimento
de interlocução pautado na linguagem escrita.
E hoje é possível compartilhar processos de, tanto quanto isso é possível, “pensar junto com o
outro”. Se a experiência da revisão digital há muito já interfere nos nossos modos de pensar, pela
mobilidade e deslocamento possível de palavras e trechos, escrever um texto em conjunto,
utilizando o recurso do google docs, por exemplo, quando um os autores podem estar em lugares
diferentes, escrevendo separadamente, mas ao mesmo tempo e no mesmo documento aberto na
tela, é uma experiência singular. Observar o outro quando pensa – vendo como escreve, quando
muda de ideia e apaga, quando reescreve de outro modo, quando vai para outra parte do texto,
quando revisa – permite imaginar como ele “pensa” a organização do discurso de um modo que é
quase como assisti-lo pensar o que escreve. Uma situação de compartilhamento inimaginável até
bem pouco tempo.
Com os recursos todos que hoje existem, a distância física e geográfica de familiares, amigos e
colegas de trabalho, às vezes inevitável, é de certo modo atenuada pela comunicação online. E, se
a interlocução só é possível por essa via, se não há como sentar frente a frente com o outro e dizer
algo mais, pois o algo mais tem que estar ali por escrito, a exploração da potencialidade dos
recursos é fundamental.
Quando desejamos acolher, nos solidarizar, demonstrar nossa tristeza ou alegria com o que
aconteceu (e o outro está presente apenas emocionalmente, mas em outro lugar geográfico),
ocorre um fenômeno interessante: a criação e o uso inventivo de uma grande variedade de
recursos para produzir efeitos “emocionais” na escrita – abuso da pontuação, interjeições
inventadas (como own e humpf), palavras e expressões de sentido modificado, palavras mais típicas
da comunicação oral (por vezes, inclusive, escritas como se pronuncia), emoticons (ícones utilizados
para estados emocionais) – que, em presença física, se resolveria “simplesmente” com um abraço.
Quer dizer, a impossibilidade física do abraço cria a necessidade de muitos pequenos “gestos
escritos” que, mesmo compreendidos pelo outro na boa intenção, não o substituem jamais.
A liberdade material e a vitalidade que a escrita vem ganhando com grande rapidez é incontestável.
Assim como o empenho, nas conversas informais online – possivelmente por acontecerem em
tempo real sincronizado, imediato – em “tornar a escrita o mais oral possível” como forma talvez de
“presentificar” o diálogo. Escritas com transgressões ortográficas intencionais são cada vez mais
frequentes para produzir esse tipo de efeito de forma divertida, como “cazamigas”, “oncetá?”,
“comassim?”, dentre muitos. Isso mostra que a comunicação escrita não depende do que possam
dizer as gramáticas, os dicionários, as reformas ortográficas. E assim os escritos vão deixando de ser
cativos deste ou daquele privilegiado e vão viajando pelos continentes, traduzidos em tantas
línguas e virando outros, inclusive nos sentidos que apenas uma mudança de vírgula pode
provocar.
97

Tudo leva a crer que essa liberdade de expressão por escrito tem um efeito benéfico em muita
gente – em uns porque, ao menos em certos contextos mais privados, podem agora escrever como
bem quiserem; em outros porque se encantam em ver a língua se modificando por força do uso
que dela é feito, assim mais democraticamente. Talvez apenas os que tomam para si a tarefa de
guardiões da norma padrão estejam descontentes com essa bem-vinda celebração criativa da
expressão. Entretanto, como não poderia deixar de ser, surgem também os embates e as tentativas
de cerceamento, em especial nas redes sociais, daquilo que se considera pouco razoável de circular,
não propriamente no que diz respeito ao uso da língua, mas sim à veiculação de conteúdos. Isso
vai desde a crítica aos que noticiam, como fatos relevantes, o que fazem em sua rotina diária –
“Comi ovo com catchup hoje no café da manhã”, por exemplo – até o combate a grupos políticos
que pagam cabos eleitorais para caluniar os adversários e espalhar mentiras pela rede em tempos
de eleição.
Sim, o uso da linguagem escrita como via de interlocução na internet tem produzido efeitos de
grande importância. Em todos os sentidos, inclusive nos piores possíveis.

FORMAS E MOVIMENTOS DE MANIFESTAÇÃO DA SUBJETIVIDADE

Denise Najmanovich (2001), tal como dito antes, nos ensina que “sujeito encarnado” é o nome de
uma categoria não clássica, heterogênea, facetada e de limites difusos. Cada um de nós pode
compor a sua própria categoria em relação à experiência, aos cruzamentos teóricos, estéticos,
éticos, afetivos, eróticos e emotivos que inclua nosso próprio devir como sujeito encarnado. Isso vai
acontecendo na trama evolutiva de nossa vida, está inseparavelmente relacionado à nossa
experiência social e pessoal, às tecnologias cognitivas, sociais, físico-químicas, biológicas e
comunicacionais com as quais convivemos. Podemos “entrar no quadro” que pintamos,
participando de uma dinâmica criativa de nós próprios e do mundo, podemos considerar que o
conhecimento humano acontece sempre a partir de uma perspectiva determinada e que está
sempre de algum modo relacionado a nós mesmos, mas pagamos com a incompletude a
possibilidade de conhecer e, por essa e por outras, padeceremos inevitavelmente de uma espécie
de “buraco cognitivo”, uma zona cega que não podemos ver e, pior, quase sempre “somos cegos
a essa cegueira” (p. 23).
Vivemos um tempo histórico que rapidamente vem produzindo diferentes formas – e por vezes
inusitadas – de manifestação da subjetividade. E a internet tem a ver com isso.

Protagonismo e empoderamento pessoal

A possibilidade e incrível facilidade de disseminar, em tempo recorde na internet, ideias, posições,


criações e qualquer tipo de mensagem, aliadas ao fato de que todo mundo pode ser – ou tentar
ao menos se passar por – intelectual, artista, escritor, fotógrafo, film maker é, com certeza, uma
novidade histórica. O que se publica não carece passar por editores, audições, bancas, pelo crivo
de nenhuma “autoridade”. Em princípio, toda pessoa pode ter sua própria tribuna, sua página, sua
#hashtag33, sua assinatura. Some-se a isso a incontestável rapidez com que tudo acontece e a
sensação de ubiquidade, de estar presente ao mesmo tempo em todos os lugares, e não será difícil
constatar o quanto isso tudo gerou, sem dúvida, um sentimento de empoderamento pessoal

33
Hashtags são compostos pela palavra-chave de um assunto abordado antecedida pelo símbolo #. Permitem reunir num
único espaço todas as publicações que levam a sua marca. As hashtags viram hiperlinks dentro da rede, indexáveis
pelos dispositivos de busca – qualquer usuário pode clicar nas hashtags ou buscá-las pelo google, por exemplo, para ter
acesso a todas as publicações reunidas.
98

naqueles que vivem essa experiência. Afinal, agora é possível “estar no comando” da produção de
obras próprias rapidamente compartilháveis com muita ou pouca gente, a depender apenas do
desejo.
É de se supor que, nessas condições, o sujeito se sinta mais senhor de sua própria história, não só
pelo fato de inventar a si mesmo e poder “assinar sua obra”, mas também por poder, de algum
modo, controlar o que dá a ver de sua vida, criando, por assim dizer, uma “versão editada”, uma
vida mais ou menos inventada, à medida que torna público somente o que quer, geralmente a
“parte boa”: o ponto alto das viagens, as melhores fotos de família, os pratos que deram certo, os
encontros ruidosos de amigos, as poses mais sorridentes. E tudo, cada vez mais, em selfies. Isso de
narrar a vida, ainda que em pequenos fragmentos, reveste-a de um sentido mais relevante, mais
digno e talvez contribua de algum modo para o sujeito dar mais valor a si mesmo, prestar atenção
em quem é – ainda que somente na parte que vale a pena mostrar ao outro. E, a rigor, pouco
importa que seja parcial, romanceada, imaginada, sonhada. Enquanto publica infinidades de fotos,
músicas, escritos, ali mesmo, naquele tempo real em que está colocando em evidência os
fragmentos de sua história, sob a ótica que mais lhe agrada ou que sonhou para si (e que pudesse
aquela parte ser o todo inteiro!), está vivendo tudo isso. Se traz um acréscimo de autoestima, se
melhora a qualidade de sua vida emocional do ponto de vista pessoal, está muito bem justificado
– muito melhor assim do que enriquecer a indústria farmacêutica que faz propaganda enganosa
de pílulas da felicidade.
Além dessa história das invenções pessoais, há outras faces da autoria na pauta do dia. Ainda que
a rigor nenhum texto seja totalmente autêntico ou que todo texto seja híbrido em conteúdo, forma
e, de certo modo, também em autoria, há na internet três variações principais de autoria atribuída:
quando o sujeito não indica o autor do texto, por considerar irrelevante ou por pretender sugerir
que é seu; quando delega a um autor reconhecido a assinatura do seu próprio texto; e quando
muda o nome do autor de um texto conhecido por alguma razão, nesse caso já mais difícil de
alcançar. Isso talvez pudéssemos considerar um abuso produzido pelo excesso de empoderamento,
uma, talvez, represália à longa ditadura das convenções excludentes. Mas não sabemos ao certo.
A rigor, já é antiga essa prática: quando a escrita pública era um privilégio de poucos, havia
escritores que atribuíam a autoria de certos textos a outros, por vezes fictícios. Havia mulheres que,
para poder publicar, passavam-se por escritores homens, e havia aqueles que projetavam em seus
personagens passagens ou características autobiográficas. Quando a escrita pública se torna
agora, ao menos potencialmente, um artefato cultural ao alcance de todos, cada qual se vale dos
recursos que lhe parecem mais razoáveis – o que varia muito conforme o repertório pessoal e os
valores que orientam as escolhas de cada um – para poder dizer por escrito o que deseja.
A comunicação online tem outras formas de empoderamento dignas de nota. Uma delas é o que
poderíamos chamar de fenômeno “plus de si”. Os recursos tecnológicos que hoje existem, se bem
explorados, nos empoderam de uma maneira tão impressionante que parecem extensões de nós
mesmos. Uma pessoa que dialoga com outra, por exemplo, com o google, os dicionários e suas
pastas do HD rapidamente acessíveis, desfruta de um “acréscimo de si mesma” à medida que pode,
durante a conversa, procurar palavras, informações, conceitos e uma infinidade de coisas em
curtíssimo espaço de tempo. E será uma prerrogativa sua dizer ou não ao seu interlocutor se sabia
“de antes” ou se pesquisou “no durante”. Esse “plus de si” nem sempre compartilhado com o outro,
mais o gosto ou a necessidade de produzir uma vida inventada na melhor versão e criar
personagens para protagonizar em seus cenários fantasiosos, talvez estejam por trás de muitos
fracassos de relacionamentos que saem do online e ganham a rua – e, quando isso acontece, é
como se o sujeito estivesse incompleto. Sem contar que pode haver em seu outro, por suas
respectivas necessidades, um sem fim de projeções que só fazem agravar os desencontros.
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Para além desse conjunto de possibilidades de produção pessoal, há ainda a mudança no status
de consumidor de informação que é também empoderante: as notícias mais importantes sobre o
país e o mundo estão disponíveis na internet, assim como os programas de tevê, os filmes, os
museus, as programações de arte e cultura, curiosidades de todo tipo em sites os mais diversos. E
há o youtube e o google e os dicionários e os dispositivos de tradução e tanta coisa. Além disso,
para um usuário das redes sociais sem muito tempo para navegar, há sempre a chance de ser “bem
relacionado”, isto é, ter “amigos” informados ou descolados que fazem a pré-seleção da informação
que pode lhe interessar.
Sem dúvida a internet “aproxima” lugares, pessoas, mundos e tempos. É enorme a possibilidade de
acessar e interagir nos domínios do conhecimento humano e, mais ainda, de acessar pessoas, seus
mundos, outros mundos, outras histórias, outras teses e teorias sobre o mundo que queremos e
que os outros querem. O desconhecido pode estar por um triz, e nos sentimos ali e aqui ao mesmo
tempo, fazendo diferença. Se a relação com o tempo e a distância física é de natureza psicológica
e a internet de fato interfere positivamente nessa relação complexa, então estamos passando por
uma revolução de grandes proporções.
É certo que a maior parte do que hoje aprendemos na internet poderíamos aprender mesmo sem
ela, mas também é certo que aprendemos com pessoas que jamais conheceríamos de outro modo.
Conectados, podemos saber hoje muito mais, e mais rapidamente, o que se passa no mundo, nos
movimentos sociais, nas artes, nos eventos culturais. A internet é uma grande ferramenta para
potencializar a aprendizagem. Ou seja, por si, nada ensina. Mas possibilita aprender com os outros:
pelas informações compartilhadas, pelas conversas não presenciais quando a presença física não é
acessível, pela comunicação com desconhecidos, conhecidos apenas por suas escritas, com a vida
que aí pulsa de algum modo, com os movimentos que acontecem, com o correr do mundo aí
registrado e sempre em mudança, com a experiência de escrever e trocar com muitos. Sem essa
ferramenta não teríamos chance de aprender tanto como hoje podemos, pessoal e
profissionalmente. Tudo o que é publicado e circula, mesmo que não faça sentido para nós, pode
nos levar a refletir e, se assim for, de algum modo, ensina.
Quem for curioso e perspicaz, terá muito a ganhar nesse processo. Porque poderá relacionar
produtivamente a diversidade que encontra online com as situações vividas, e essas relações podem
provocar novas reflexões sobre o mesmo assunto ou deslocá-lo para outros, favorecendo outros
aprendizados. Alguém que se mude para outro país, por exemplo, vivendo dificuldades em geral
inerentes a essa circunstância, ao explorar os recursos de comunicação e informação que hoje
existem, muito provavelmente se sentirá mais confiante e seguro para se deslocar à medida que
pode pesquisar o que precisa, simular possibilidades, organizar planos, checar com antecedência.
O que aprendemos a respeito de nós mesmos, dos outros, das relações humanas, da escrita, de
como escrever nesse tipo de materialidade, do que a escrita revela e esconde, dos diálogos, dos
monólogos é invariavelmente obra nossa. A ferramenta “apenas” amplia muito nossas
potencialidades.
Entretanto, como meio e ferramenta, a internet é, sem dúvida, poderosa também para formar
opinião pública, instaurar valores, incentivar atitudes e criar hábitos ou tendências.
Isso se verifica, por exemplo, quando alguém se sente excluído de seu círculo de amigos por não
participar das redes sociais em situações como desconhecer a realização de eventos porque a
informação circulou apenas nas redes, ou saber por terceiros que foi publicado algo a seu próprio
respeito, que seria de âmbito privado. Nesse caso, é como se os outros frequentassem “lugares”
inacessíveis, dos quais se está excluído; entretanto, lugares onde não se deseja estar. Há
peculiaridades do convívio nas redes sociais – como julgar que a informação que ali circula atinge
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a todos e falar da vida privada mais do que é habitual em outras circunstâncias – que podem soar
demasiado estranhas para os não usuários.
Se esse exemplo sinaliza o que tende a acontecer com quem não acompanha as tendências do seu
grupo de convívio (a participação nas redes sociais, no caso), há situações que mostram – o que é
muito mais sério – o quanto é hoje complexo o processo de formação de crianças e adolescentes
(por essas mesmas redes).
Quando, nas redes sociais, encontramos adolescentes e jovens que conhecemos crianças - dos
quais guardamos as melhores memórias de uma infância com práticas construtivas e solidárias de
convivência -, às vezes o que constatamos pode ser desolador em razão do nível surpreendente de
certezas, intolerância, descaso com o outro, falta de amizade e de ética nos posts que publicam.
Para defender suas verdades e preferências, seu modo de viver, pensar e ver o mundo, por vezes
funcionam no limite da barbárie, afastando-se dos valores construídos na infância sobre amizade,
convívio, relacionamento humano, e passando a praticar o preconceito e a discriminação, inclusive
uns contra os outros. Quando isso ocorre, o temor é de que as redes sociais estejam hoje
“educando” as crianças numa dimensão muito maior (e muito pior) do que seria razoável. E não se
tem ainda consciência da gravidade desse fenômeno.
O protagonismo e o empoderamento pessoal têm, portanto, sua face perversa. Essa talvez seja uma
circunstância inevitável. Afinal, ao menos em tese, podemos ser hoje muito mais produtores de
nossa obra pessoal e de nossas narrativas, muito mais encarnados como sujeitos, mas somos
também produzidos cultural e historicamente pelos contextos em que vivemos, sejam eles os
pequenos grupos de convívio quase privado ou a grande aldeia global conectada.
Como sugere Dufour (2005), pode estar se completando diante de nossos olhos uma mutação
histórica na condição humana. E afirma que “a lógica neoliberal produz sujeitos que, funcionando
precisamente na lei do mais forte, ainda reforçam essa lógica” (p. 198), mas que esse novo “sujeito
precário” é também uma vítima. Segundo ele, “Tudo se encontra de perna para o ar. É preciso
reconstruir tudo.” (p. 209).
Sim, é preciso reconstruir tudo.

Que sujeito é este que estamos conhecendo?

Um sujeito “virtualmente” encarnado, um “sujeito precário” ou tudojuntomisturado?


A prerrogativa de tomar a palavra e dela fazer o uso que bem entender, de opinar sobre qualquer
assunto, de praticar a invenção de si e de publicar narrativas pessoais editadas – um direito
adquirido sem nenhuma luta, convenhamos... – tem produzido uma zona de afirmação de
dimensões bastante complexas de subjetividades neste tempo que vivemos. Nesse processo se
evidencia uma confusa mistura de relações públicas e privadas, chegando por vezes ao
desnudamento da intimidade em um circuito desprotegido; a um excesso de enunciação que
parece ser muito mais um “pedido de socorro” do que propriamente tentativa de interagir com o
outro; e a determinadas situações que, observadas mais de perto, sugerem um desamparo de
grandes proporções. Digamos, de novo, que melhor assim do que enriquecer a indústria
farmacêutica, se de fato essa atuação propositiva estiver no lugar do que seriam psicopatologias,
de maior ou menor proporção. Mas, por vezes, os excessos são constrangedores, quando não
absurdos, como os exemplos de discussão de problemas muito íntimos em rede.
Na vida “inventada” que se pratica – que talvez pudéssemos considerar um modo amplificado de
proceder, pois esse fenômeno parece tão antigo quanto a humanidade –, as representações e
autorrepresentações podem ser mais ou menos distorcidas, a depender do sujeito. E não é possível
101

saber até que ponto a valiosa liberdade que o ambiente virtual oferece não facilitará a produção
de distorções, levando-o a vestir a fantasia do personagem que inventou.
Também esse não é um fenômeno novo, tampouco produzido pela internet. Se é verdade, como
sugere Stuart Hall (2006, p. 07-22), que o que existe hoje é um sujeito que não tem identidade fixa,
essencial ou permanente, não há aí nada propriamente novo. O autor diz que “a identidade torna-
se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida
historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há
identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas.”.
É de se supor, portanto, que esse fenômeno pode ser potencializado. Afinal, protagonizar uma
narrativa inventada, ainda mais de nossa própria autoria, em certas circunstâncias terá um efeito
momentâneo muito mais desejável do que tocar a vidinha insossa ou a vida dura fora da tela. E
outra vez o que se verifica é apenas a popularização em larga escala dos acontecidos em círculos
restritos: por mais que seja desagradável admitir, não ignoramos que entre os artistas, escritores e
autores que admiramos na versão pública – pelo talento, virtuosismo, originalidade e brilhantismo
intelectual – e a figura humana concreta que cada um é na vida privada há, às vezes, um abismo,
por assim dizer, incompreensível.
De qualquer modo, a criação de personagens, avatares e múltiplas identidades pode ser, sim, uma
solução inventiva de certa qualidade estética no mundo virtual. Mas quando essas invenções saem
da tela e se alojam em relacionamentos fisicamente reais, o risco de provocar problemas e
frustrações é quase inevitável. E também o inverso pode ser uma decepção: conviver com a faceta
virtual de quem conhecemos primeiro na vida real do dia a dia, ainda mais quando há uma enorme
distância entre a imagem projetada e a que encaramos no cotidiano. Afinal, uma coisa é saber lidar
com os recursos, os códigos e as normas de conduta na internet, e outra muito diferente é saber se
relacionar no convívio “de carne e osso”.
A tendência a mobilizar imagens de si – online ou fora da tela – mais, ou menos, dissonantes, a se
relacionar de modo mais, ou menos, semelhante, escutar e considerar mais, ou menos, o
interlocutor com o qual dialoga é algo que tem a ver com os valores e as limitações que encarna o
sujeito. Não surgiu com a rede mundial de computadores.
Uma pessoa que se vicia nas redes sociais, que não consegue se desligar de seu smartphone,
mesmo nos encontros familiares ou de amigos, que tem uma necessidade insaciável de informação
de todo tipo, sem a internet arranjaria outros objetos de compulsão que talvez não fossem
observáveis. A conduta de manter-se conectado durante a maior parte do tempo, a rigor, não é
consequência dos aparelhos; é favorecida e instigada por eles.
Pessoas mais atentas a si próprias admitem que mantém uma vigilância intencional para não se
conectar demais, porque entendem que a comunicação online pode afastá-las das relações
presenciais, retirá-las do próprio cotidiano, dispersá-las, produzir uma alienação do entorno – com
a demanda inesgotável de trabalho e o ímpeto de responder a ela, sem controle, correriam o risco
de trabalhar todo o tempo.
Tudo leva a crer que a internet entrou na vida humana de uma maneira definitiva. Tanto que muita
gente afirma ter a impressão de estar conectada desde sempre, tal é o grau de interação e presença
da internet em seu dia a dia. Outras pessoas, em contrapartida, afirmam que as típicas atualizações
sincrônicas nesse domínio são devoradoras do tempo e dos lugares de dentro e de fora delas; que
o tsunami de informações que invadem a tela é uma overdose grandiosa demais e que sentem
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necessidade de estar em silêncio, consigo mesmas, escutando e trabalhando as vozes internas que
por si só já assopram responsabilidades, sentimentos, desejos e pensamentos.
Entre a relação de fissura e o desejo de afastamento, há relações interessantes a destacar,
entretanto. Permanecer online ao trabalhar no computador, por exemplo, pode criar uma
possibilidade benéfica de alternância, se não para descansar, pelo menos para mudar o foco da
atenção. E isso tende a provocar uma “conversa paralela com os botões” a respeito dos assuntos
que entram pela via do online. De qualquer modo, nesse caso, o descanso não existe...
Também quando o convívio online com as pessoas é muito maior do que o convívio presencial,
essas interações ganham uma importância grande porque o repertório afetivo é mobilizado e
afetado por esses outros que só não estão presentes fisicamente, mas ali estão. Quando é assim, há
quem consiga tornar o diálogo virtual tão real que ambas as partes não querem que a conversa
acabe nunca.
Se a tendência é que os relacionamentos afetivos se realizem também virtualmente – ou, às vezes,
quase que só virtualmente –, será preciso aprimorar as formas de convivência online. Porque se
esse tipo de comunicação pode esconder ou mascarar inseguranças, incertezas, dúvidas, medos,
necessidades, desejos, será preciso aprender a lidar com isso tudo a distância, conforme for se
evidenciando, para que os relacionamentos não venham a fracassar por problemas de
comunicação, como diria Bauman (2004). É preciso, agora, também encontrar “respostas virtuais”
para essas questões.
Entretanto, talvez tenhamos de admitir também que nem todas as respostas virtuais, por melhores
que sejam, servirão para resolver problemas reais de alta complexidade, como é o caso das
transformações radicais que porventura queiramos produzir em nós mesmos. Ainda que escrever
possa se constituir em um processo reflexivo, especialmente quando se insere num contexto de
troca de correspondência, em que se tece a leitura de um texto com a escrita de um outro e que
resulta em dois textos ligados de forma indissociável, por mais rico que seja isso tudo, ainda assim
pode se revelar insuficiente para produzir efeitos transformadores em nossos modos de agir, sentir,
pensar. A comunicação online por escrito, tomada de forma isolada, por certo não bastará. Porque
as relações interpessoais são sustentadas em bases objetivas e subjetivas, parte das quais nenhum
dos sujeitos que interagem tem consciência de que existem, tampouco dos seus efeitos. A forma
como “vamos até o outro” é sempre atravessada por nós mesmos no que diz respeito às nossas
expectativas, fantasias, “pré-conceitos”.
Esse tipo de processo de mudança só acontece quando o sujeito sente a necessidade de superar
algo que o incomoda, que lhe provoca mal-estar, muito mais do que lhe é possível suportar, e já
não encontra mais mecanismos de defesa que lhe ofereça uma zona de refúgio ou conforto.
Habitualmente as relações são repetitivas e circulares nos conflitos, problemas e incômodos. Após
um determinado tempo, passam a fazer parte da rotina, do cotidiano, perdendo o poder de
estranhamento, a capacidade de provocar o espanto, a surpresa e, portanto, de desestabilizar. E aí
cristalizam-se os processos, as respostas, e já não mais acontece a reflexão sobre o que importa. As
transformações possíveis dependerão – como tudo o mais, sempre – do sujeito, que para o bem e
para o mal está no comando de suas escolhas: se ele não fizer intimamente a escolha pela mudança,
com certeza o aparato tecnológico não lhe trará nenhuma ajuda nesse sentido.
Sim, e que sujeito é esse forjado pelos tempos da comunicação online? Um sujeito “virtualmente”
encarnado, um “sujeito precário” ou “tudojuntomisturado”?
O fato é que ainda não sabemos...
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Contribuições assinadas - Textualização

Se o que vocês acabaram de ler é resultado do exercício de teorização dos dizeres dos sujeitos, sem
a indicação de autoria pelas razões comentadas antes, a seguir será possível conhecer as
contribuições com a indicação precisa dos respectivos autores. Evidentemente que, por terem sido
editadas (como eu disse, houve uma redução para um terço do que havia no arquivo original),
talvez soem um tanto fragmentadas a um olhar mais cuidadoso do leitor. Mas penso que nem
poderia ser diferente, e – o mais importante – os autores me asseguraram que em nenhum caso
adulterei os sentidos no processo de edição.
Antes, entretanto, faço uma breve consideração, que me parece oportuna neste ponto, quando
vocês já leram a teorização e poderão agora identificar os autores das ideias a partir dos seus
próprios textos.
Se vocês são leitores habituais de dissertações e teses, por certo perceberam que esse modo de
apresentar os dados produzidos a partir das fontes é bastante diferente de como ocorre, em geral,
nos registros de pesquisa, uma vez que a teorização aqui não está referenciada pontualmente em
“evidências” indicadas nas escritas dos sujeitos, caso a caso, de forma explícita e direta – que é o
procedimento convencional.
Talvez possa parecer um tanto exigente propor que vocês leiam, em dois formatos, os “mesmos”
conteúdos. Mas tenho convicção de que esta será uma experiência de leitura instigante por duas
razões principais. A primeira delas é que assim será possível conhecer um exemplo de produção
que imagino pouco familiar à maioria de vocês: a produção de um discurso teórico coeso (pelo
menos a intenção é de que assim seja) a partir de depoimentos de vários sujeitos que tratam da
própria experiência em relação a uma prática comum a todos – a escrita online. A outra razão é
que cada um de vocês poderá checar, por si mesmo, se esse exercício empenhado de minha parte
tem de fato coerência, qualidade, consistência e validade, como eu pretendia.
Sim, tudo poderia ter sido feito como geralmente se faz. Mas não. Meu propósito sempre foi tomar
as contribuições dos sujeitos colaboradores como fundamentação teórica em primeiro plano, e
nenhuma outra escolha metodológica me pareceu melhor para esse propósito pelas razões já
comentadas em outros momentos, mas também por outra: tenho um amor indisfarçável pelo saber
da experiência. Acho-o estética e ideologicamente valioso. Acho que valorizá-lo é um modo de
encorajar cada pessoa a compartilhar o seu. Acho que se as pessoas se convencerem da
importância que isso tem, se sentirão mais empoderadas, menos encolhidas diante do
conhecimento produzido pelos meios convencionais e legitimados, como em geral acontece.
Que diferença tem? Tem toda. Sabem por quê? Porque o conhecimento legitimado nós
“consumimos” a partir da produção dos pesquisadores, dos estudiosos, dos cientistas. E o saber da
experiência nós produzimos por nós mesmos, no contexto da vida acontecendo e a partir do que
conhecemos das contribuições deles. Sim, porque todo saber da experiência contém, de algum
modo, o conhecimento a que teve acesso quem o produziu.
De fato, eu aprendi com os meus companheiros de pesquisa. Na verdade, fui aprendendo o tempo
todo “no durante”. A teorização que vocês leram jamais poderia existir dessa forma se as referências
teóricas fossem apenas as legitimadas por publicações especializadas, reconhecidas na
comunidade acadêmica. Porque em relação ao tema desta pesquisa – a experiência de escrita no
espaço virtual – nada poderia ser mais informativo do que a reflexão dos sujeitos que refletem sobre
a própria experiência de escrita no espaço virtual, o que não é, até onde pude pesquisar, o enfoque
das publicações disponíveis.
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E talvez seja oportuno dizer desde já que, mais adiante, no momento da análise dos dados – na
parte “Os dados revelam sentidos” – alguns fragmentos desses textos que aqui estão são retomados
para subsidiar as afirmações que faço.

Seguem então as contribuições, agora devidamente assinadas.

Guilherme do Val Toledo Prado


Na comunicação pela internet, o exercício de escrever e se expor gera quase sempre uma zona de
indeterminação das compreensões e tenho maior cuidado com a escrita, considerando o leitor nesse
contexto sem presença física. É preciso lidar com essa realidade de entendimento/desentendimento
consecutiva e imanente nas/das relações pessoais. A escrita, para mim, nesses contextos gera mais
coisas que não sei do que coisas que sei e posso ter, quiçá, algum controle.
Minha insuficiente implicação pessoal na interação estabelecida com as pessoas pela internet, não sei
bem por quais razões, me impede de, por essa via, aprofundar uma compreensão sobre mim e sobre
os outros, além de, a tomar por mim, criar uma “desconfiança” do quanto de fato a escrita nessa
materialidade “revela” sobre o outro.
Penso que falta de conexão visual produz em nós um efeito de não se expor de um modo, digamos,
genuinamente presencial.

Adail Sobral
A condição humana é a de seres relacionais, que desejam estar em contato uns com os outros, com-
viver. O virtual é apenas o meio, o recurso, porque, para além dele, há o contato humano, o aprender
com o outro, que talvez seja a razão de nosso existir.
A realidade dita virtual é em minha vida um poderoso instrumento, porque produziu ampliação dos
contatos e maior compreensão de mim mesmo, pois considero que, quanto mais outros
conhecermos, mais sabemos quem somos, ou estamos sendo.
Só se pode não ser outros conhecendo os outros que nos constituem, e que o fazem precisamente
por nos mostrar aspectos do que somos de seu ponto de vista exclusivo. Assim, o que caracterizo
como irredutivelmente eu depende de “conhecer os outros” e ser constituído por eles. Quanto mais
outros conheço, mais sou eu. Isso nada tem de individualismo, mas de individualidade: ninguém
pode ser eu, coube só a mim ser eu.
Na Web, existe sempre o risco do exagero, da indiscrição, de excessos que também podem criar
distância; há por vezes mistura de relações públicas e relações privadas. Assusta-me ver o
desnudamento público da intimidade, pessoas que contam todos os detalhes da vida no facebook,
mas isso me serve para mostrar os processos atuais de subjetivação, e mesmo o triste desamparo de
quem se sente, ou está, isolado de outros com quem possa ter intimidade, e assim se mostra
publicamente. Talvez seja, em alguns casos, um sintoma de solidão, de desamparo.
Há um nível de mistura público/privado, entretanto, que não se pode evitar: se eu sou hoje, para o
bem ou para o mal, uma figura pública, posso selecionar o que quiser, mas essa imagem pública (ou
melhor, imagens públicas) persiste. Textos muito pessoais por vezes chocam a imagem que se tem,
por exemplo. Eis um problema da Web: criar conflitos de imagens. O fato é que não há liberdade
absoluta e as pessoas pagam pelo que fazem.
Nunca fugiremos de representações, autorrepresentações, valores, preconceitos etc. E uma coisa é
esse fato; outra é que, de fato, essas representações e autorrepresentações podem ser mais ou menos
distorcidas. E não sei até que ponto a liberdade que o ambiente virtual dá – e que julgo positiva –
não poderá também facilitar as distorções, levar a pessoa a se ver, no ambiente não digital, tal como
se vê nele, ou então tornar públicos aspectos de si que deveria manter em particular.
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Conhecemos a imagem projetada de cada um, a pessoa em discurso. E as escolhas vão bem além da
gramática etc. Atingem a própria imagem do sujeito, sua projeção de imagem, sua posição no mundo.
A seleção no discurso, seja na net ou alhures, é, como eu disse um dia, “a conspiração de tudo”, e
produz numerosos efeitos: desejados, indesejados, pensados, não pensados etc. A Web de certo
modo disfarça isso; dá a impressão de que escolhemos apenas o que queremos mostrar.
Há uma vida “inventada” na Web. Mas não haverá também em todo dizer, em todo ser? Será que
não “escolhemos” sempre o que queremos compartilhar com o outro? E, ao mesmo tempo, será
que de fato controlamos essas nossas escolhas?
E parece que é mais fácil consertar as coisas via Web do que pessoalmente. O contato fisicamente
próximo não ameaçará mais, porque é preciso lidar com a imagem fisicamente presente da pessoa?
Via telefone não será mais “assustador” do que via mensagens de celular (SMS) ou na Web? É o que
me parece.
Somos lidos, por vezes alguns segundos depois – rapidez nem sempre equivale a irreflexão, pois
pode ser, por exemplo, soltura. Isso também tem o lado da exigência: se vou ser lido logo por várias
pessoas, tenho de cuidar mais, tornear mais. O cuidado com a forma é maior, a lapidação etc.
Parece-me ainda, e posso estar errado ou não saber bem o motivo, que lemos com bem mais rapidez
na internet do que lemos um livro.
Quanto à interlocução, acho que ela se altera com esses meios. Não só pela questão da
proximidade/distanciamento, mas também porque permite criar graus, níveis, formas e redes
distintas de interlocução. O facebook, por exemplo, serve para criar várias dessas redes. Quando se
posta em público, para amigos íntimos, para amigos em geral e para um ou mais amigos em
particular, está-se interagindo com diferentes redes de interlocução, e, de modo geral, a “face” que
se mostra a cada rede não é a mesma. Há um sem número de pessoas que conheci primeiro na Web
e com quem mais tarde tive contatos que se mantiveram, se interromperam, continuaram de maneira
menos intensa ou se intensificaram. Duvido que sem isso eu tivesse interagido com tantas pessoas. E
essas interações também nos ensinam a interagir, a ser mais quem somos, porque é desse contraste
com o que “não sou eu” que vou apreendendo as nuanças de “quem sou eu”. Logo, há uma
especificidade no contato que a Web permite.
Não é porque não nos dirigimos diretamente a uma dada pessoa que o que ocorre em nós não tem
interação, interlocução. Porque somos a soma de nossas relações sociais. Mesmo depois de o outro
ir embora ou mesmo deixar de existir, estamos dialogando com ele. Porque “esses outros vão
entrado em nós”, são parte de nós. Por vezes, pessoas diretamente próximas de nós estão mais
distantes do que algumas que estão distantes.
Se considerarmos que há sempre interlocução, interação, na ausência ou na presença, real ou virtual,
a Web “apenas” altera as maneiras como isso acontece. A recusa de “interlocuções possíveis” não
tem que ver com o meio, mas com a disposição da pessoa. Quem quer aprofundar o nível ou grau
de interação, de interlocução, de escuta, o faz, ou não, em qualquer circunstância. Talvez, por vezes,
o excesso de enunciação na rede seja menos uma tentativa de interagir do que um pedido de socorro.
De vez em quando a gente sente falta do outro com quem falamos na Web.

Walter Takemoto
Ainda que escrever possa se constituir em um processo reflexivo, especialmente quando se insere
em um processo de troca de correspondência, por exemplo, em que se tece a leitura de um texto
com a escrita de um outro, e que resulta em dois textos ligados de forma indissociável, por mais rico
que possa se constituir, por si só não é capaz de ter um efeito transformador que possa prescindir de
outros meios ou recursos se o que se procura é a transformação de fato.
A comunicação mediada por recurso tecnológico, ou a tradicional carta ou o registro escrito em
qualquer outro portador, tomado de forma isolada não é suficiente para provocar transformações
radicais nos indivíduos.
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As relações interpessoais são sustentadas em bases objetivas e subjetivas, partes das quais nenhum
dos sujeitos tem consciência da existência, nem mesmo dos sintomas que se expressam e interferem
nas relações. Não há, também, isenção na análise que se faz do outro, posto que essa será sempre
impregnada de uma carga grande das expectativas e preconceitos de que se é portador.
O processo de mudança só existe quando o sujeito sente a necessidade de superar algo que o
incomoda, que lhe provoca dor internamente, muito mais do que lhe é possível suportar, e já não
encontra mais mecanismos de defesa que lhe ofereça uma zona de refúgio ou conforto.
Normalmente as relações são repetitivas e circulares em relação aos conflitos, problemas e
incômodos. Após um determinado tempo, passam a fazer parte da rotina, do cotidiano, perdendo o
seu estranhamento, a capacidade de provocar o espanto, a surpresa e, portanto, de ser
desestabilizador. E aí cristalizam-se os processos, as respostas, e já não provocam a reflexão sobre o
que importa.

José Paulo Mendes da Silva


Como o Zygmunt Bauman, que discorre sobre a liquidez, rapidez e superficialidade dos
relacionamentos na sociedade pós-moderna, penso que “um fracasso no relacionamento é muito
frequentemente um fracasso na comunicação’. E como o Stuart Hall, que “o sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um
‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de
tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”. A comunicação escrita
na internet favorece isso. E a criação de avatares, personagens e outras identidades em qualquer
relacionamento têm grandes chances de acarretar problemas.

Maíra Libertad Soligo Takemoto


Na internet há uma incrível facilidade de disseminar ideias, posições, criações em tempo recorde,
sem grandes pré-requisitos, sem “avaliação por pares” prévia, a baixo custo. Isso deve ter se iniciado
com blogs e ganhado força com as redes sociais que vieram a seguir.
Todo mundo pode ser intelectual, artista, escritor, fotógrafo, film maker, o que quiser. Basta ter um
computador, uma câmera digital, um teclado, alguma ideia na cabeça e o impulso de se mostrar ao
grande/pequeno público. Não precisa passar por editores, audições, bancas, pelo crivo de uma
“autoridade”. Para o bem e para o mal.
E conviver com a faceta virtual de quem a gente conhece na vida real pode ser extremamente
informativo ou decepcionante.

Ingrid Lotfi
Na internet não se sabe quem receberá a mensagem e não se tem controle sobre o impacto causado
do outro lado, se bom ou ruim, ou como será interpretado.
A forma com a qual nos expressamos pode modificar profundamente o resultado que esperamos no
plano coletivo.
A internet é um recurso poderoso para o compartilhamento de informações e a influência da opinião
pública. E exatamente por ser uma ferramenta poderosa, exige de nós a reflexão sobre o que
queremos com o que escrevemos, quem queremos atingir e qual o nosso objetivo.
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Selma Rocha
Acho a experiência da escrita no tempo, ou nos tempos, um desafio. Porque tanto o tempo interno
quanto externo estão em diálogo com a velocidade, o que, em nossa época, às vezes produz o tempo
homogêneo e vazio.
A comunicação na internet se faz nos marcos da velocidade, mas não precisa, a meu juízo, ser
superficial. Ela pode ser breve e profunda, desafiadora, desde que lance sempre a possibilidade de
nexos com o conhecimento e a criação. Na internet podem ser percebidas descontinuidades,
silêncios. Pode ser explorada a diversidade, dando-se voz a quem queira falar e visibilidade aos que
queiram ler.
Creio que o problema está na intenção e na forma como a comunicação se desenvolve. A internet e
as redes sociais não precisam ser banalizadoras.
As redes sociais podem contribuir para democratizar abordagens analíticas e profundas na medida
em que possibilitam, como no caso do facebook, o convite à leitura, à análise, ao debate, à apreciação
de diferentes manifestações artísticas. O facebook favorece que sejam constituídos roteiros de
abordagens, apreciações, conversas e diversão, a construção e a difusão de significados e nexos. Tudo
depende de como se utiliza o meio e o tempo. Tudo depende do repertório e da mobilização da
criatividade. Os processos educacionais formais e informais requerem hoje investigação e
compreensão sobre como as crianças e jovens lidam com esses meios de comunicação para que haja
mediação possível quando se pretende construir conhecimento.

Paulo César Ferrari Masson


Sabendo ou imaginando que alguém vai ler, a gente melhora a capacidade de inventividade, a vontade
de escrever melhor, e a gente se redescobre escrevendo.
Os grupos potencializam o desejo de escrever e compartilhar informações, filmes, imagens, o que se
gosta e se acha relevante para os outros: não haveria outro lugar onde se pudesse exercitar isso... o
que é, por si, umas das grandes forças da internet – esse trabalho coletivo não presencial.
O que me interessa nessa história é a possibilidade que temos hoje de acessar e interagir nos domínios
do conhecimento humano e, mais ainda, de acessar pessoas, seus mundos, outros mundos, outras
histórias, outras teses e teorias sobre o mundo que queremos e os mundos que os outros querem.
Podemos fazer filme, música, estar ali e aqui ao mesmo tempo e fazer a diferença. Um rolezinho
atemporal nos shoppings do mundo todo.
Isso, a meu ver, tem sido uma revolução e tanto. Se vai servir para que nosso mundo seja melhor,
mais humano, mais generoso e interessante também não sei. Depende sempre de quem vai ter mais
energia para juntar as coisas aos seus interesses. Pode ser para qualquer lado. Vou continuar torcendo
para que seja do lado que eu tenho certeza que é o melhor, para mim e para todos. Muita gente
pensou assim ao longo da história. Mas nunca tantos puderam opinar e interferir nessas certezas.

Renata Barrichelo Cunha


Tenho a sensação de que ao me dedicar à comunicação virtual, eu me afasto das relações presenciais,
fico alheia ao meu entorno. E me disperso também. Como a demanda de trabalho é inesgotável e
como acho que tenho que esgotá-la, vou perdendo o contato com meu próprio cotidiano e com as
pessoas.... Corro o risco de ficar produzindo todo o tempo! Isso me assusta e é assim que tento
manter uma certa vigilância.

Rosana Dutoit
Às vezes tenho a impressão de que sempre estive conectada, tal é hoje o grau de interação e presença
da internet no meu dia a dia.
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Há uma aprendizagem sobre a minha própria forma de escrever, de me comunicar e me fazer


entender.
Há a necessidade de escrever da forma mais limpa e objetiva possível para seja entendido o que
quero dizer e, especialmente, quando se trata de explicar. É preciso fazer à exaustão o exercício de
se colocar no lugar do outro para antecipar as suas dúvidas, incompreensões e assim aprimorar a
escrita para que ela possa comunicar exatamente o pretendemos.
Estar conectada enquanto trabalho amplia a reflexão sobre o conteúdo do que é lido, provocando,
muitas vezes, uma “conversa particular comigo mesma” – em paralelo ao que estou fazendo – sobre
o assunto que me chamou a atenção.
E há situações em que há maior exposição de si mesmo. Escrever mensagens mais intimistas por
vezes é um pensar alto, um pensar que se torna público. Aprendo com isso também. Fico no
exercício do que devo escrever, como escrever, se quero que saibam isso de mim, mesmo que sejam
historinhas fictícias (caso do blog). Nesse exercício, acabo procurando o lugar onde a mim possa ser
confortável colocar o privado que vai se tornar público.

Carla Clauber
Hoje o maior número de pessoas com quem convivo encontro pela internet.
Em todo caso, sinto-me tocada porque o outro está em mim: afetando meu ser! Talvez tudo isso seja
possível porque meu repertório afetivo, ao ser mobilizado pelo outro, também se altera e me
transforma.
Aprendo sobre mim na medida em que essas interações me atravessam na relação virtual com o
outro. Essas aprendizagens já não estão mais descoladas do meu jeito de aprender.
Às vezes também se sofre. São e-mails que trazem notícias tristes: comunicam perdas,
acontecimentos tristes com pessoas queridas, amores desfeitos...

Adriana Stella Pierini


Não reconheço propriamente o que aprendo ao me comunicar por escrito via internet, mas sinalizo
o quanto a escrita realiza de mim em si, e o quanto eu “me faço”, “me concretizo” ao escrever.
Por e-mail acontece uma escrita mais elaborada, mais intencionalmente tecida, que pretende partilhar
sentimentos e acontecimentos com interlocutores escolhidos. Uma escrita que favorece (como toda
escrita) a organização de pensamentos, mas que tem me auxiliado (e muito!) a redimensionar
sentimentos. Seria isso possível? Seria essa uma aprendizagem possível? Aprender a refletir sobre
sentimentos a partir do que escrevo para um meu outro sobre mim e/ou sobre a minha relação com
um outro-outro?

Vanessa Simas
Tendo sempre a relacionar a diversidade do que encontro na internet com situações vividas/pensadas
por mim. Essas relações estabelecidas provocam novas reflexões acerca do mesmo assunto, ou me
desloca para outro. Essas reflexões podem vir a ser aprendizagens e, portanto, a internet seria um
espaço que movimenta isso.
A partir do momento em que escrevo, novas relações vão surgindo sobre o que escrevo, penso,
questiono, leio, lembro, vivo, quero ser. Quando escrevo e as pessoas me dão uma devolutiva, novas
questões, outras interpretações e novas ações surgem.
Talvez a maior aprendizagem que a internet possibilite é o que ocorre em nós – que estamos
alimentando esses diálogos –, vez que esse instrumento enriquece o diálogo à medida que ocorre de
maneira escrita também, no qual todos que respondem uns aos outros organizam melhor seus
pensamentos por justamente essa resposta se manifestar pela escrita.
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Esse diálogo é mais ou menos como ler um livro e dialogar com ele. Mas o outro presente ali, que
responde as suas perguntas e te coloca outras, traz algo mais vivo, constrói junto, do lugar que ocupa.
Isso também ocorre quando temos espaço de diálogo presencial, mas talvez o diferencial esteja no
tempo que temos (quando esse movimento se dá pela internet) para organizar os pensamentos,
significar e ressignificar o que pensamos e o que pensam. Lemos, significamos, lemos outras coisas,
vivemos, ressignificamos, escrevemos e, enfim, respondemos... Olhe por quanta coisa uma pessoa
passa para responder a alguém – ela muda, e junto a qualidade do que vai escrever também muda.
Hoje, muito mais do que antes, por morar fora do meu país, leio e falo com pessoas que não conheço
pessoalmente, comunico-me com as terras além mar, faço planos, roteiros e organizo logísticas para
chegar e ficar sozinha por uns dias em um lugar que não é meu país, não fala minha língua materna,
tampouco minha língua “irmã”. Em outras palavras, a internet aproxima lugares, pessoas, mundos.
A partir do momento em que a informação é, através dessa ferramenta, compartilhada com toda e
qualquer pessoa que a ela tenha acesso (inclusive por nós, se assim desejarmos que seja), mundos
passam a não mais ser tão desconhecidos.
Ao precisar viajar sozinha, as informações disponíveis online faziam com que eu me sentisse mais
segura para partir só, pois chegaria sabendo onde estava, como ir de um lugar a outro e o caminho a
fazer (por mais que me perdesse depois). Poder saber antes me dava segurança, me mostrava a
possibilidade de ir para onde desejava, mesmo que não falasse ou entendesse a língua do lugar.
Talvez isso tenha me ajudado a compreender que nada é um bicho de sete cabeças quando se trata
de sair sozinho pelo mundo, vez que estavam disponíveis informações que me ajudavam a traçar
roteiros e logísticas. Assim, pude me sentir mais confiante e segura.
Não sei se aprendo com a internet algo que não aprenderia sem ela, mas sei que aprendo com
pessoas que não leria e não conheceria se a internet não existisse. Não saberia muito do que sei sobre
o que passa no mundo; de arte também saberia menos, inclusive saberia menos de eventos culturais
em que porventura poderia ir... A internet potencializa o que poderia acontecer sem ela, talvez seja
também uma grande ferramenta para ampliar as aprendizagens. Sem esse instrumento, eu aprenderia
menos porque o mundo não estaria tão interligado e os diversos tipos de informações não me seriam
tão disponíveis. Por isso, ela potencializa aprendizagens.
Sem internet, durante esse tempo em que estivesse distante, teria perdido as muitas chances que tive
de aprender com pessoas daí, ao conversar; não poderia ter escutado uma frase e logo contestado e
gerado uma outra contestação e, assim, chegar coletivamente a compreensões. A internet não me
ensina, mas possibilita que eu aprenda com os outros: pelas informações que colocam disponíveis,
pelas conversas quando a presença não é possível, com desconhecidos que nunca vi, mas conheço
por suas escritas.
Eu não aprendo com a internet, eu aprendo com a vida disponível nesse instrumento, com os
movimentos possíveis a partir dele, com as informações muitas, com o correr do mundo registrado
ali e sempre em mudança e com a possibilidade de escrever e de trocar com muitos.

Tamara Abrão Pina Lopretti


Tenho me apropriado da escrita (e também leitura) via internet como forma de comunicação e
partilha de informações, conhecimentos, reflexões, sentimentos, confidências, sendo essa uma escrita
que vem me formando, exercendo influência tanto na minha vida pessoal como na minha vida
profissional. Destaco especificamente a escrita produzida na troca de e-mails com amigos, familiares,
marido, em grupos de estudo e pesquisa, com alunos e em grupos de trabalho.
A escrita via internet, mais especificamente nos e-mails, é uma escrita que me encoraja e, em
determinadas situações, me permite muito mais do que a própria fala em uma conversa, pois muitas
vezes recorro a esse suporte para estabelecer conversas e confissões que talvez pessoalmente não
teria coragem de partilhar.
A possibilidade de estabelecer uma interlocução com meus pares de modo mais aprofundado,
reflexivo, podendo ir mais a fundo em questões que de fato me tocam e me mobilizam, talvez pelo
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próprio distanciamento que o ato de escrever proporciona, também faz da escrita produzida via e-
mail, por exemplo, um elemento muito importante na minha constituição como pessoa humana.
Nessas trocas, aprendo a conhecer/compreender com mais clareza, de modo mais consciente,
questões, informações, sentimentos que às vezes no próprio diálogo presencial passam
despercebidas.
O fato de passar a morar longe de todos os meus familiares e amigos contribuiu para que eu
recorresse ainda mais ao uso da internet e da escrita nesse suporte, seja via e-mail, seja em minha
página do facebook, um outro recurso que tenho utilizado com uma frequência quase que diária
para me comunicar com pessoas queridas.
Nesse contexto pude exercer um outro tipo de atividade dentro da minha profissão, que foi participar
da produção de material didático, uma experiência completamente formativa, considerando que
pude aprender muito com o grupo de profissionais que participou desse projeto.
Eu e as demais colegas da equipe moramos, cada qual, em uma cidade diferente. Presencialmente
realizamos cerca de duas ou três reuniões, onde todo o processo de planejamento, pesquisa,
elaboração e produção aconteceu a distância, sendo a internet, com suas ferramentas, como e-mail e
bate-papo, nosso grande suporte no desenvolvimento do trabalho.
Nunca imaginei o quanto poderia aprender trabalhando nesse formato, onde a relação se faz a
distância, porém tão intensa como se nos reuníssemos presencialmente. As ideias para o material
foram sendo construídas em conversas que tínhamos no bate-papo, quando uma pequena sugestão
abria possibilidade para inúmeras ideias de criação. Depois costurávamos e combinávamos a partir
daquela conversa o que cada uma faria... Após esse momento de produção individual, os arquivos
produzidos eram enviados por e-mail a todas do grupo, que opinavam marcando todo o material
com cores e sugestões sobre como avançar, melhorar, aprofundar... Uma verdadeira lapidação entre
trocas constantes. E, nesse processo de produzir a distância, com muitas mãos, fomos também nos
tornando mais íntimas da vida umas das outras; entre um e-mail ou uma conversa sobre o próximo
passo a ser dado na produção, contávamos como estávamos no sentindo, o que havia nos acontecido,
nossos anseios, nossas dúvidas, nossas mobilizações...
Eu, que particularmente vivia um momento muito especial em minha vida pessoal, a minha primeira
gestação, em cada e-mail dizendo das etapas que vinha realizando na produção do trabalho, das
dúvidas e das ideias novas, dizia também sobre como estava meu bebê, o que acontecia de novo
conosco naquela semana e ouvia/lia em contrapartida mensagens e desejos de felicidade, alegria,
encorajamento... Uma relação constituída virtualmente, mas completamente intensa, fazendo com
que cada uma de minhas parceiras se tornasse amiga muito querida. Eu e uma das companheiras
ainda não nos conhecemos pessoalmente, mas ela com certeza tem um lugar muito especial na minha
vida, tendo me escrito um dos e-mails mais lindos e mais sensíveis que já recebi, quando soube da
minha qualificação do doutorado.
Em meio ao trabalho constante e intenso, em condições nem sempre favoráveis, praticamos
intensamente nossa amorosidade e encorajamento umas com as outras. Através da tela do
computador, em uma escrita que ganhava sentido e amplitude potencializada pela velocidade e
alcance proporcionado pela internet, fui ampliando o meu repertorio profissional, ampliando meus
saberes e conhecimentos. E, com isso, eu ampliava também a minha compreensão sobre a minha
própria constituição como pessoa, sobre minha própria subjetividade a partir dos relatos, dizeres,
conselhos, recomendações, desejos e partilha de experiências de minhas parceiras que se
materializavam através da escrita veiculada pela internet em uma intensa troca de mensagens por e-
mail.
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Marcos Antonio Gonçalves Júnior


Pela comunicação escrita que acontece na internet, “não sou eu. Não sou só eu. Sou eu com o
computador. Isso faz toda a diferença, pois é como se eu pudesse mais’.
Tive uma experiência recente de escrever um texto em conjunto com uma colega. Escrevemos
utilizando o google docs, de modo que os dois podiam estar em suas casas escrevendo
separadamente, mas no mesmo documento aberto ali na tela. Escrevíamos juntos ao mesmo tempo.
Era como se eu pudesse observar como ela pensava, já que via como escrevia, apagava, reescrevia,
mudava de local, revisava, enfim.
Com certeza, aprende-se muito nesse tipo de comunicação escrita, mas há aprendizados que não
estão diretamente ligados ao fato de se trabalhar online.
O computador não substitui o olhar, o humano, claro que não, mas se a experiência de interlocução
(pessoal ou profissional) for muito intensa a distância, pela internet, a sensação ao encontrar a pessoa
pode ser de tê-la encontrado fisicamente no intervalo dos encontros presenciais, quando isso, na
realidade, não aconteceu.
Quando a interlocução, em um projeto de trabalho como o que compartilhamos, é somente via
internet, quando não dá pra sentar frente a frente e dizer algo mais, pois o algo mais tem que estar
ali por escrito, nos comentários, direcionados muitas vezes a alguém que nem o rosto conheço, a não
ser por aquelas fotinhas pequenas dos perfis, a exploração da potencialidade dos recursos todos
disponíveis é fundamental. Isso talvez ajude um pouco, mas bem sabemos o quanto precisamos re-
re-revisar as coisas já ditas, né? No entanto, posso considerar um aprendizado essa busca por tentar
“dizer melhor” virtualmente. É quase um modo meu de pensar assim: se fosse ao vivo, eu diria isso,
apontaria aquilo, mostraria tal e tal coisa, mas, como não é, preciso “escrever melhor”. Mas sei que
isso não se dá assim tão simples e talvez eu não tenha “escrito melhor”, mesmo porque esse melhor
precisa estar relacionado com um melhor pra quê, mas isso me fez tentar usar e explorar os recursos
disponíveis.
Nos encontros presenciais que tivemos durante nosso trabalho a distância, nos primeiros minutos eu
me sentia nu, despreparado, sabe como? Sou um pouco tímido, mas parecia ter algo mais. Algo que
não sentia, por exemplo, quando nos encontrávamos semanalmente antes, quando ainda não
fazíamos esse trabalho juntos. O Marquinhos, com quem você trabalhou nesses últimos meses a
distância, era um cara preparado, você mesmo disse: sabido. Mas você não trabalhou comigo. Não
era eu. Não era só eu. Ao trabalharmos, ao comentarmos sobre algo profissional, ao dizer “sabe
aquilo daquela aula...”, o Marquinhos, normalmente de memória fraca, era um Marquinhos
“memorioso” virtualmente, com o arquivo da aula aberto, os de outras aulas também, anteriores e
posteriores, o arquivo de controle de revisão contendo comentários meus e coisas que fiz ou anotei
sobre aquela aula, com planilhas de controle para saber o que faltava e o que já tinha feito em tal
documento, com o google aberto e às vezes buscando termos ou ideias sobre aquilo que era foco de
discussão (me certificar de um conceito, ver se aquela palavra existe, se foi empregada corretamente,
ver se não há uma contexto melhor para aquilo, ver se há uma imagem melhor, enfim... O São
Google aceita o que der e vier na telha), além de estar com minha biblioteca pessoal aqui do meu
lado ao esticar do braço (naquela estante onde falei que fica aquele livro de capa dura que povoa
meus sonhos...). Você não conversava somente com o Marquinhos, mas com o “Marquinhos com”:
com tudo isso e mais o que eu podia alcançar pra trabalhar e fazer o melhor com o que devíamos
fazer. E, para você ter uma ideia, uma mesinha de ferro ficava ao meu lado aqui com alguns dos bons
livros que usava pra revisão matemática, além de um dicionário, um livro de história da matemática
e mais uma coisa ou outra. Fora as planilhas, os documentos digitais que tenho aqui, a internet pra
navegar, embora tudo sempre passasse por um crivo pessoal, por um modo de avaliar as informações,
um modo construído na experiência em já ter lidado com revisão anteriormente. Ficava tentando
imaginar como seria a “Rosaura com”...
Assim, quando me encontrava com você, me sentia quase nu, um pobre Marquinhos sem seus
“coms”. Sentimento passageiro, pois no decorrer dos encontros ia lembrando que há outras coisas a
trocar ao vivo e somente ao vivo: os gestos, os olhares, os cheiros, enfim. Talvez você nem percebesse
o meu estranhamento. Talvez eu diga estranhamento por pensar agora sobre esse passado recente.
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Mas era estranho. Isso me lembra até os casos que escutamos sobre namoros ou amizades online
que duram um bom tempo, mas aí chega a hora de se conhecer pessoalmente e dá aquela ansiedade,
frustração. Mas também não era só isso, pois não se tratava de pintar alguém que não sou. Tratava-
se de realizar um trabalho, limpar um teto muito alto, usando pernas de pau. Podíamos limpar aqui
do chão, esticando o braço ou com uma vassoura. Mas, não. Usamos a tecnologia de tal modo que
ela parecia ser parte de nós.
Aí, cara a cara, me sentia sem uma parte de mim.
Entende o que eu digo, você trabalhou com o Marquinhos com a tecnologia. Ele pode mais com ela.
E você também. Assim, nós fizemos coisas que talvez não faríamos se estivéssemos somente
trabalhando presencialmente. Ou faríamos? Ou havia a carta, antes? As bibliotecas?
Isso talvez seja algo que me ficou desse processo todo, marcou-me.

Hélida Portolani
O e-mail é mais formal, no enquadre das antigas cartinhas e é um recurso para se comunicar com
quem não faz parte da rede social (e permite a troca de mensagens em power point). Já o uso
facebook por vezes exige autocontrole porque “vicia”.
Encontros com muitos amigos do passado e fazer novos amigos no presente por vezes preenchem
os vazio da vida, o vazio do social, do estar junto e junto de muita gente, de socializar. Há amigos
virtuais com quem se troca coisas muito profundas e que configuram uma relação afetiva forte; há
interações familiares, demonstrações de carinho e gratidão de uns pelos outros; encontros fora da
rede com velhos conhecidos reencontrados na rede. E as demonstrações de afeto especial melhoram
a autoestima e autoimagem.
Conhecemos pessoas pelo que publicam e há interação com muitos assuntos, por vezes até
contraditórios entre si.
É possível rir às gargalhadas e estar em embates afetivos nada fáceis, por vezes magoantes... Triste
por saber de sofrimentos. Até mesmo por ser bloqueado ou ter que bloquear alguém. Acontecem,
às vezes, foras e gafes por descuidos, gente entrando em conversas que não lhes dizem respeito.
Inicialmente, eu tinha uma certa preocupação em contentar “gregos e troianos”, mas depois foi
passando. Quase sempre minha opção é pelo status off line no chat para poder fazer o que deseja.
É preciso aprender a se comportar, como ser ético e não ferir as pessoas, como ser seletivo ao mesmo
tempo sem deixar de ser atencioso, principalmente com os que requisitam, controlar a tendência a
opinar, dar palpites. E também cuidar da página, pequena tribuna daquilo que quero contar sobre o
que sinto e penso. Às vezes escrevo textos mais pessoais, mais inspirados em minha página.
Tudo isto é desenvolvimento, é relacionamento, é aprendizagem, crescimento. E quem liga tudo? A
escrita! Tornando esta comunicação “silenciosa” bem viva e falante.
O virtual e o real são sinônimos, guardadas as devidas peculiaridades. Tudo acontece como ocorre
na vida real, e às vezes melhor, porque é possível dimensionar mais gente neste social virtual e
interagir de forma profunda com pessoas que não se conhece do que em uma situação presencial,
quando acabamos de conhecer alguém.
Há dois aprendizados ainda a destacar:
• A objetividade do conteúdo e a rapidez da interação virtual via escrita.
• A tentativa constante de tornar a escrita o mais oral possível. Principalmente a escrita em tempo
real, sincronizado, imediato. A comunicação via internet se apoia em recursos tecnológicos, tornando
a escrita híbrida com símbolos que permite o diálogo presentificado. Considero isto inovador,
enriquecedor e prazeroso.
Na internet o tempo todo rolam as notícias mais importantes sobre a conjuntura nacional e mundial.
Isso é ótimo, pois quase não vejo TV e leio pouco jornal; portanto, atualizo-me inevitavelmente.
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Outras atualizações são sobre o universo cultural. Aprendi a apreciar novas músicas e recordar
preciosidades das velhas produções. Ver dicas boas de filmes, teatros e outros acontecimentos.

Patrícia Fujisawa
Mudanças na minha vida pessoal me levaram a querer mostrar um tanto mais do que tenho e não só
a ser espectadora de até então: um blog com endereço ainda não disponibilizado para muitas pessoas.
Compartilhado, a convite, um dos escritos do blog em um no grupo de e-mails, envio depois de
muito pensar, com retorno extremamente construtivo, tanto no que se diz respeito ao diálogo criado
com os que me leram, elogiaram e deram seus pitacos, quanto para me firmar um pouco mais no
que eu considerava um terreno arenoso.
Há um sem fim de possibilidades e respostas que uma única mensagem pode suscitar quando
colocada em um grupo de e-mails. Algumas pessoas que não responderam por via alguma da
internet, mas soube de seus comentários pessoalmente ou pela voz de outros. De alguma forma,
saber que me leram, que sonharam comigo, foi motivador a ponto de, instantes depois, eu enviar o
endereço do blog para várias pessoas que não sabiam de sua existência. Saldo positivo novamente,
criou-se um ciclo: as pessoas pitacam o que escrevo, eu escrevo coisas para elas pitacarem.
Assim o apertar o botão de enviar é muito mais refletido, por muitas vezes. Meus leitores mudaram
e, assim, mudei também a forma como me mostro. Mas nada de lamúrias, só prazeres. Já tinha em
mim todas as alegrias do mundo em escrever, agora tenho construído as alegrias do mundo em
compartilhar esses escritos, receber respostas que alimentam novas escritas.

Gloria Cunha
O que aprendo – sobre mim mesma, sobre os outros, sobre as relações humanas, sobre a escrita,
sobre a escrita nesse tipo de materialidade que é a internet, sobre o que ela revela e/ou esconde,
sobre os diálogos, sobre os monólogos – é o mesmo que na vidinha real. A ferramenta só aprimora
o que a mão que a usa sabe fazer de melhor…
A Interlocução significa.

Ester Broner
Redes sociais afetivas, profissionais, contatos, trabalhos compartilhados, pesquisas, arquivos de
memória, atualização em progressão geométrica e aritmética. Mestrado, Doutorado, publicações.
Seleção diária de prioridades, responsabilidades, informação. Afetividades. Conectividades.
Percepções. Turismo virtual. Atualizações sincrônicas devoradoras do tempo e dos lugares de dentro
e de fora e dos jardins.
Tsunami de informações que invadem a tela. Não raro, tenho sentido necessidade de estar
em silêncio, comigo, escutando e trabalhando vozes internas que por si só já assopram
responsabilidades, sentimentos, desejos e pensamentos.
Também preciso dizer que me apraz demais a experiência sensível, o toque, a presença, e então o
tecido do sofá, o desenho do tapete, o quentinho de uma manta, as mãos que folheiam as páginas
do livro, um vaso bem composto, um quadro na parede, sem contar os olhos, a voz ou gestualidade
de um interlocutor, muito me interessam e interferem profundamente em minhas disposições para
o mundo. Diria que essas coisas todas se colocam no espaço como se fossem meu jardim de inverno.
A experiência da revisão digital interfere na fluidez do pensamento, recortando e colando,
reencontrando os lugares, as palavras, o fio de Ariadne.
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Liana Arrais Serodio


Estando a milhares de quilômetros de casa, se não fosse o skype, acho que tinha voltado pro Brasil
em dois meses. Porque é muito difícil estar longe de casa e não ter qualquer coisa parecida com um
olhar de alguém que te reconheça segundo você é, segundo os seus/dos outros [re-conhecidos] olhos,
porque te olham de outro jeito, como se você fosse outrora e não aquela que acabou de chegar, coisa
de louco? Pois fez todo o sentido pra mim. Como são os olhos dos outros que agora passaram a ser
estranhos, você se perde e deixa de existir... foi muito difícil.... Me senti como uma alma penada sem
purgatório (rs). Se ficasse sem o skype para conversar, sem google e blogs para obter informações,
fazer traduções, nossa, seria impossível, nem posso imaginar. A entrada no cérebro de outro sistema
cultural é um baque violento. Porém enriquecedor.

Cristina Campos
A coisa que mais aprendi sobre comunicação by net foi me calar e a me retirar do debate em um
grupo virtual. Aprendi que num grupo grande de debate as pessoas selecionam o que elas querem
responder, o que elas querem ler, o restante elas podem excluir: as conversas e as pessoas. Isso é o
mais grave: em tempos modernos podemos simplesmente excluir as pessoas, sem dar direito ao
debate à exaustão. Nos grupos de discussão, acho que quase sempre podemos contar quantas pessoas
participam realmente dos debates virtuais e, mais ainda, dessas poucas pessoas, quantas de fato não
têm medo de fugir dele e expressar a sua opinião.
Ano passado participei de um Curso de Formação de Gestores online e aprendi muito sobre a
necessidade de desenvolver paciência num trabalho em equipe a distância. Notei que talvez a
possibilidade de trabalhar em qualquer hora do dia ou da noite atrapalhe um grupo de pessoas que
ainda não conseguiu se organizar para tal. Isso me fez pensar muito nessa coisa da internet e sobre o
tipo de comunicação que ela nos leva a aprender a produzir. Talvez uma das primeiras coisas que
eu tenha aprendido foi “ouvir/ver” o teclado, já que muitas vezes a distância não permite ouvir/ver a
pessoa. Então faço do teclado seu olhar e das teclas, sua fala.
Aprendi que quando se usa letra maiúscula para digitar o texto inteiro é igual a um grito, e passei a
entender o grito. A gente não grita; só quando está nervoso, bravo ou com medo. Grita também de
felicidade, então entendo que letras maiúsculas também podem significar abraços, uma coisa que a
comunicação real nos tira, porque, quando estamos felizes e nos encontramos com o outro, um
abraço dá conta de tudo.
Outras pessoas conseguem “fazer” da máquina uma espécie de “gente”, tornam o diálogo virtual tão
real que ambas as partes não querem que a conversa acabe. Resta saber se essas pessoas são as
mesmas que em um encontro na vida real tornam a vida de todos mais felizes ou se elas apenas têm
mais facilidade em lidar com a máquina.
Se o futuro do mundo for a comunicação virtual, teremos que aprender a “acolher” virtualmente
também. Se esse tipo de comunicação esconde as inseguranças, incertezas, dúvidas, medos, penso
que precisamos ter respostas virtuais a tudo isso também.
Em relação às pipocas pedagógicas (crônicas do cotidiano da escola escritas por educadores e que
circulam num grupo de profissionais ligados ao GEPEC, nosso grupo de pesquisa), penso ser um
lance de “encontro/pertencimento”, seja de quem escreve ou de quem lê. Se olharmos as pipocas
com o olhar do outro, elas nos possibilitam achar o prazer de ser professor e estar na sala, apesar de
tudo o que dizem. E entender o aluno, a escola, as políticas públicas.
Ler uma pipoca e comentar, imaginar que existe outra maneira de fazer a escola, uma maneira mais
prazerosa. Nesse caso, o grande lance é ela ser virtual. Porque nos “obriga” a imaginar as cenas, os
momentos, o brilho que têm as pipocas que o contar ao vivo tiraria...
Agora, de verdade, penso ser inviável pensar o mundo sem essa comunicação. Para falta de luz,
usamos velas, de água, compramos... agora, sem conexão, a coisa pega.
Tenho me comunicado com alguns (ex) alunos pelo facebook ultimamente. Esse processo tem sido
uma viagem, porque tenho me dado conta do quanto conhecemos nossos alunos só enquanto são
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nossos, não importa se em um ano ou dez. Mas como nossos, na lida diária da sala, eles são sempre
meigos, amigos e eternos. E, na realidade, estou aprendendo a olhar esses alunos, meninas e
meninos, com um olhar diferente de quando olhava para eles anos atrás. Agora estou aprendendo a
olhar não como professora, mas amiga, e para eles, não como crianças, e sim adolescentes.
Digo que estou aprendendo a olhá-los porque mudaram, fizeram e se constituíram como
adolescentes. Então o que faço hoje é isso: olho, percebo, compreendo e dialogo com esses
adolescentes que um dia foram crianças, e procuro, nesse espaço, compreender o “durante”, entre
2008 e 2012. Nos diálogos comigo, continuam sendo aquelas crianças que gostavam de brincar de
Pirata e Herói, acreditavam em Sedna e na sua Prô Rôbo. Comigo continuam felizes e a questionar
sempre meu planeta e minha deusa. Lembram-se das atividades, das histórias lidas e contadas, das
maluquices que todos fazíamos em sala de aula. E dizem sempre que eram felizes e sabiam.
Mas o que procuro compreender no “durante”, entre 2008/2012, está em suas páginas do facebook,
orkut, MSN e twitter. A constituição de adolescente veio carregada de certezas, intolerância, descaso,
falta de amizade e outras coisas que percebo em cada post que publicam. Procuro encontrar tudo o
que construímos antes...
Os amigos da época não existem mais, são alvos de críticas ferrenhas, zombarias constantes e de
palavrões e violência para defender suas verdades e ídolos, como Lady Gaga, Justin Bieber, o Mundo
K-pop, One Direction, seus times de futebol.
As meninas deixaram há muito de ser princesas, e isso é bom, mas se aproximaram, e muito, da
barbárie, ao defenderem um tipo de homem sem respeito. E, ao expor a mulher que para elas não
é perfeita, esquecem-se de que expõem a si mesmas.
Para defender suas verdades e ídolos, seu modo de viver, pensar e olhar o mundo, estão longe da
humanização e beirando a barbárie. Claro que quando penso nisso não posso deixar de pensar que
esses adolescentes também se constituíram nesse meio, nesse novo modelo do capitalismo, com a
globalização e as redes sociais.
As crianças de 2008 do Antes, no Durante viraram vítimas dessas redes sociais que as afastaram
Depois da humanização e de tudo o que aprendemos e debatemos sobre amizade, pessoas e a
essência do ser. Esqueceram-se dos amigos, do respeito às diferenças, de que todos têm direito e,
principalmente, que se a cor amarela for a minha preferida, todos têm direito ao verde, ao azul e até
ao cinza, porque pessoas humanas têm gostos diferentes, ainda bem!
O horror e a intolerância com a escola me espantam. Postam músicas tipo “maldita escola, maldita
escola...” (ritmo de Malditos Pôneis). Quando pergunto por que, respondem sem nem pensar
“porque a escola era boa só quando a gente era Pirata e você era Robô”. Não acreditaria se um
professor dessas “crianças” (para mim sempre serão aqueles pequenos) chegasse e me contasse sobre
os comportamentos e piadas feitas em sala de aula; sempre acharia que ele era o culpado.
Tento refazer com cada um deles as rotas de Pirata e ver se consigo buscar dentro de cada um a
criança que era; mas não, o adolescente “criado” pelas redes sociais está mais presente e forte.
Ao mesmo tempo dialogo com outros de 1993/94, que já são adultos, mas usuários das mesmas
redes sociais. Quando surgiram as primeiras redes, muitos já estavam no fim da adolescência, e por
isso acredito que se constituíram adolescentes e adultos de maneira diferente e conseguiram manter
ainda um pouco da humanidade. Conversamos sempre sobre escola e escuto cada um falar sobre
suas vitórias ou fracassos dentro dela, mas de uma outra maneira, ainda existe humanidade até para
revoltar-se contra a escola.
Falamos também sobre os grupos em que cada um deles milita. Uns são homossexuais e defendem
suas bandeiras sempre de maneira zelosa, outros são religiosos; ainda há os atletas e os que se
definem como solitários – e, para estes, as redes sociais vieram dar outro sentido à vida e ao direito
a “ficar na minha casa e saber sobre o mundo”.
Acho que a escola e os pais não perceberam ainda que as redes sociais são mais fortes que as TVs
ou o Rádio, e que são elas que estão “educando” nossas crianças.
116

As redes sociais colocaram todas as pessoas dentro de uma mesma visão de mundo; todos
compartilham tudo e ninguém partilha nada.
Então é isso: na realidade estou “aprendendo” gente, pessoas, comportamento humano. A olhar,
entender, buscar os caminhos que trilharam e trilham na vida que agora é escancarada nas Redes.
Procuro entender de onde vieram e para onde vão.
O processo de “aprender” gente não é tarefa fácil, mas me atrai, porque essa gente que eu quero
aprender, já foi “lida” uma vez. Então será uma retomada de “lição de gente que estuda gente”.
Agora me resta estudar o processo Gente + Redes Sociais para achar o resultado.
Enfim, tomando a internet de modo geral, tudo o que é postado, mesmo que eu não adote como
verdade, me obriga a refletir e a pensar.

Margareth Buzinaro
No mundo da internet, uma pessoa talvez possa se sentir mais dona, digamos assim, de sua própria
história, pelo fato de poder “controlar” melhor, talvez, os limites dos relacionamentos ou das
“partes”, “faces” de sua vida que pretende compartilhar... Uma vida meio inventada...
Acho fantástico e concordo que isso de narrar a vida (nos blogs e no FB, por exemplo), ainda que
em pequenos fragmentos soltos, ganha um sentido mais relevante, mais digno e contribui para as
pessoas darem mais valor à própria vida É como se as pessoas pudessem parar para prestar mais
atenção à própria existência... Juntar os pedacinhos de sua história ou separá-los, ressignificando cada
episódio vivido... Olhar para o que realmente sente e pensa... Reelaborando, “re pensando”... Ainda
que valha a outra colocação, anterior, da possibilidade de as pessoas “controlarem” suas narrativas,
justamente a partir do ponto mais significativo para elas. E dane-se aquilo que possa parecer
romanceado, imaginado, sonhado ou de fato vivido, a partir das publicações das pessoas... Afinal,
enquanto as pessoas publicam zilhões de fotos, músicas, escritos... ali, ali mesmo, naquele tempo real
em que estão publicando suas histórias, do ponto de vista que mais lhe agradam ou que sonharam,
pudesse ser assim, estão vivendo aquilo... E pouco importa se, ao saírem de sua janela virtual e derem
de cara com sua sacada, num dia cinzento, a vida perca um pouco daquela cor toda... Tudo isso, é
claro, guardadas as devidas proporções entre o saudável e a absoluta fuga da realidade.
Creio que há muitos fatores que interferem nos modos de as pessoas se comunicarem, como o grau
de intimidade entre os interlocutores ou os níveis da relação que está dada em razão da posição que
ocupam. Ou seja, não seria exatamente o espaço de interlocução o responsável pelos
efeitos/qualidade do discurso... Mesmo no caso de escritas lidas, relidas e revisadas para a posterior
publicação, a possibilidade de restringir ou selecionar os interlocutores, por exemplo, pode regular
mais do que a correção gramatical e ortográfica, o uso de figuras de linguagem, de jargões próprios
de determinado grupo organizado por certo vínculo, e mais um tanto de outros fatores que
linguísticos, estéticos, éticos ou ainda outros.
Sobre a interlocução... A comunicação entre pessoas de determinados grupos com interesses mais e
menos comuns, via e-mail, ocorre não só com mais elasticidade, digamos, como com mais eficiência
ou possibilidade de sucesso, justo por conta dos tempos e do viável para cada um, além de a
interlocução ser mais verdadeiramente possível por haver uma expectativa real e recíproca de
participação entre os membros. A interlocução se cumpre de algum modo, entre todos ou quase
todos que estão envolvidos em algum processo comunicativo virtual dessa ordem, seja por conta de
um trabalho que está sendo desenvolvido, uma campanha, um combinado para uma viagem... e tanta
coisa... Diferente de uma rede social onde, embora haja a expectativa de interlocução, ela quase
sempre não acontece, mesmo quando em subgrupos criados dentro da rede para publicações que
talvez sejam do interesse de todos, inclusive. Nem mesmo as ferramentas que existem para simular
uma possível interlocução como o “curtir” ou utilizar um emoticon, que pode sinalizar que um
comentário foi lido por seu destinatário, são utilizadas por todos.
A grande sacada da aprendizagem na internet é justo esta: o que acontece em nós, com ou sem
interlocução... Porque alimentamos esses diálogos conforme podemos, de onde estamos, com as
117

ferramentas que temos, da perspectiva que enxergamos... O que a princípio pode propor a ideia de
que retroalimentamos de modo vicioso, nossas próprias crenças e valores, com nossos pré-conceitos,
ou preconceitos se preferir, projeções e introjeções... Mas, eu juro que não creio, de modo algum,
que isso seja possível. Pois, seja como for, esse possível modo de ver as coisas do mundo, as coisas
do mundo estão muito mais próximas, dentro de nossas casas, na palma de nossas mãos; e se
multiplicam de tal modo perante nossos olhos, que são muitos os ângulos dos quais se pode ver os
outros – com suas constâncias, contradições, suas idealizações visionárias, ao mesmo tempo
retrógradas. E, mesmo sem trocar uma sílaba com quem quer que seja, esses outros vão entrando
em nós com suas histórias, suas vidas ou seus modos de vê-las... Vão pluralizando-nos.
Tenho pensado no quanto existe, de fato, interlocução, sejam nas relações humanas ali, cara a cara,
ou nas relações ditas virtuais. O quanto dialogamos ou monologamos, a despeito de nossas intenções
de materializar nosso discurso e torná-lo parte do outro, recebendo do outro sua parte, naquilo que
passou a ter novo sentido, assim que compartilhado, via monólogo ou diálogo, quando trata-se de
comunicação verbal.
As defesas do dialogismo muitas vezes me pegam, nem tanto pelo fato de, paradoxalmente, eu ser
do mundo das palavras e dos silêncios – talvez porque isso seja meio assumido por mim. Mas, muito
mais pelo fato de observar em meu meio que bom tanto das gentes, que defendem com afinco a arte
do diálogo, não está aberto para as interlocuções possíveis, considerando a diversidade de pontos de
partida, de vista, de construção histórica... dos seres com quem compartilham suas proposições...
Talvez, por isso, tenha me chamado muito a atenção os movimentos de recepção e reelaboração de
si, do outro e do mundo, meio solitários, quando falo do fenômeno das aprendizagens via internet.
Meio que, novamente num ponto-contraponto do dito pela Vanessa, via a ideia de ler um livro...
Não, muitos livros... E ouvir muitos discos... E assistir a muitos filmes... E visitar museus... E andar
pela cidade... E ad infinitum...
Estou tentando olhar pra um montão de gente que conheço... Algumas conhecidas antes da net e
com quem mantenho também relacionamento online; outras que descobri, de modo inesperado, e
cuja ideia de retomar contato me maravilhou e continua maravilhando; outras, familiares, cuja
presença na rede me faz estar perto mesmo estando longe e ter notícias, e ver as fotos dos pequenos
crescendo, e as conquistas profissionais, e achando fantástico; outras de grupos, formados como este,
com gente, em sua maioria, que só conheço virtualmente, em torno de um objetivo criado, levantado,
proposto e mediado por alguém que entende mais de juntar gente do que eu... Olho pra todo mundo
e vejo a gente que essa gente é, pode ser, eu possa supor que seja, talvez não seja... E olho pra mim,
estando com elas muito pouco, online, é bem verdade, que o tempo não permite muito... Aí penso
que, com cada grupo, mantenho um relacionamento virtual bem parecido com o que viveria se as
encontrasse nos tempos e espaços que me seria possível viver com elas... Ou seja, sem a possibilidade
de sentir a pulsação, a respiração, ou o olho no olho, com a intensidade e sensibilidade necessária
pra se viver isso... Ou o inverso, com tudo isso posto na roda... Com a profundidade ou
superficialidade que cada espaço de circulação e encontro me/nos permite.
E agora vou continuar tentando pensar como seria com as outras pessoas todas, que nem conheço,
de jeito nenhum, mas que formam as multidões pelo mundo, com dedinhos nos teclados e olhos
fissurados na tela...
Bem, o que apreendo com as experiências no facebook? Não sei se aprendo coisas... mas seguem
minhas observações, elucubrações... assim enumeradinhas:
1. Há uma coisa que sempre me intrigou em relação à linguagem verbal, desde a tal História: Vossa
Mercê, Vosmicê, vancê, você, cê, vc... Bem, o que eu quero dizer é da vitalidade da língua... Mais do
que elemento vivo, mutante: cheia de energia, vigor, força... Não enquanto sistema, apenas, mas
enquanto “ato” que permite a comunicação, as relações. Isso está favorecido.
2. Muito se publica, no face, ao menos entre meus amigos, mensagens com abreviaturas inventadas
e modos diferentes de escrever determinadas expressões. Há uma tendência de se imitar sotaques,
na escrita, como o mineirês, o carioquês... Além de dialetos e expressões bem peculiares, relativas
aos modos de as pessoas falarem (para além de questões regionais, ou de jargões profissionais, coisas
118

do tipo), como expressões próprias da infância, por exemplo. Outro tipo de escrita que enche as
páginas de graça são o que talvez pudéssemos chamar de onomatopeias, mas que não são exatamente
onomatopeias. São tentativas, das mais variadas, não exatamente de imitar sons, sei lá... Mas, traduzir
sensações por meio de letras repetidas, sílabas emboladas, palavras criadas com a finalidade de nada
dizer... Além da escrita fora do padrão, propositadamente, para causar algum tipo de impacto... Ou
a publicação de fotos de cartazes, faixas, placas, das mais diversas, com escritas também das mais
diversas, fora dos padrões, ora na forma de crítica, ora na forma de endosso, fazendo circular as mais
variadas hipóteses que nosso povo tem, sobre como escrever determinadas palavras. E isso tudo e
mais outros modos de utilizar a escrita me fazem crer que a comunicação escrita se dá, independente
do que possam dizer as gramáticas, os dicionários, as reformas ortográficas (acordos???)... Ou
qualquer crítica que se possa fazer aos diversos sistemas de ensino que organizam a educação do
nosso país. Que a liberdade de expressão, pode, sim, começar pela forma como as pessoas utilizam
o que aprenderam para transgredir o que supõem excessos. E mais outras coisas que não dou conta
de escrever por agora.
3. A questão da autoria ganhou o infinito. À parte a história toda de que nenhum texto é totalmente
autêntico ou de que todo texto é híbrido em conteúdo, forma e, claro, autoria, minha questão é mais
sobre quem é mesmo que disse, inicialmente, alguma coisa bastante bem dita e divulgada num dado
gênero... E bem de uma determinada forma e conteúdo, portanto, e não de modo diferente. Quase
patrimônio da humanidade, ambiguamente falando, sabe? E vai que, se via e-mail a autoria dos textos
já ganhavam multiplicidade, no facebook sempre me surpreendo com ditos que não me parecem
possível terem sido ditos pelos ditos autores a que se atribui autoria... E frases de efeito, provérbios,
pequenas parábolas e fábulas livres, leves e soltas, como se de autoria de pessoas que as citam...
enfim. Isso tudo me traz um certo encantamento, mais uma vez, pela liberdade que os escritos vão
ganhando, deixando de serem cativos deste ou daquele e viajando pelos continentes, traduzidos em
tantas línguas e virando de outros, inclusive nos sentidos que apenas uma mudança de vírgula pode
provocar. São plaquinhas, legendas para fotos, textos que procuram traduzir imagens múltiplas e
seriadas. E daí que muitos novos autores anônimos vão surgindo também, pois fotos, por exemplo,
vão sendo publicadas, acompanhadas de verdadeiros poemas, muitas vezes compostos de uma única
palavra ou verso, que, no contexto, propõe sentidos outros àquilo que se vê na imagem... que vai
sendo compartilhada, compartilhada, compartilhada... e ganhando o mundo. Ou ainda, ganhando
como autoria o nome de blogs, sites ou páginas do próprio face... e o mundo das ideias de quem
compartilhou. Aliás, é surpreendente a linguagem que vai se constituindo, nascendo, na comunicação
entre as múltiplas linguagens: são poemas recitados em lindas interpretações dramáticas por artistas
que admiramos, ou animados por criações das mais incríveis, por artistas gráficos, jovens cineastas...
E lá estão as letrinhas todas, em legendas, mais uma vez, nos vídeos e videoclipes que circulam por
esta rede adentro (e afora).
4. No quesito autoria, ainda. De diferente modo, penso que nunca se leu tantos textos jornalísticos.
São artigos de opinião, crônicas, notícias... Que ganham as páginas e vão sendo compartilhados, e
discutidos, e questionados... E sempre me pergunto o quanto se aprende com todo esse movimento
que vai plugando as pessoas no mundo dos acontecimentos cotidianos que dizem respeito à maioria
de nós, humanos, brasileiros, profissionais desta ou daquela área, estudante, cidadão... deste nosso
país e do mundo.
5. Outra questão que, por fim, gostaria de comentar trata ainda da questão da autoria, mas tem
conotação diferente. No caso, trata-se de algumas propostas de criação de textos dentro de gêneros
que vão nascendo e se multiplicando pela rede. Propostas de como criar um pequeno conto de amor,
poemas coletivos a partir de uma imagem ou palavra que vão agregando ideais conexas e desconexas,
mas que, no fim, criam um efeito surpreendente. Campanhas que vão ganhando a forma escrita na
forma de frases de efeito que vão se somando ou se dividindo e fazendo nascer outros enredos que
passam a compor os escritos do mundo virtual.
Não sou capaz de dizer o quanto passei por um processo de estranhamento em relação a esse
processo todo de comunicação escrita, mas posso afirmar que sempre olhei pra esse caminho que a
linguagem escrita vem percorrendo neste mundo dito virtual, tão real e vivo, com uma paixão ao
119

revés... Uma espécie de encantamento pela liberdade material que a escrita vem ganhando,
acompanhada, casada mesmo, por outras linguagens absolutamente possíveis e legítimas.
Talvez seja essa questão da liberdade de escrever à parte de um tudo ou quase dito por aqui o que
mais tem me encantado e inquietado... Não pelos produtos, cada um, em si, mas pela liberdade que
me sugere as múltiplas possibilidades de criação... para o bem e para o mal...
Depois de ditas coisas diversas sobre o registro escrito nas suas formas mais ou menos formais e
sentidos e possibilidades e multiplicidade de autoria e mais sobre as muitas outras linguagens e tanta
coisa, o que me ocorre dizer é algo que vai um pouco na contramão do que disse até o momento.
Trata-se de uma espécie de cerceamento justamente a essa certa liberdade de expressão ou
circulação, da qual vinha falando até aqui... E que me faz pensar no histórico dos eventos tal como
ocorrem, como se constroem e desconstroem com o passar do tempo e das exigências que vão se
colocando, ditadas por não sei quem, não sei o porquê ou com que objetivo.
Bem, tudo isso pra falar das formas de repressão que vão nascendo ou se relevando conforme ponho
tento nelas... Nesse veículo que me parecia lugar de ser livre... Deixe-me ver se consigo desenvolver:
...E aí as pessoas postavam mensagens nas quais comunicavam que iam dormir, ou comer algo em
algum lugar, ou sei lá mais o que... Algo bem comum até... Até que outras começaram a publicar
coisas do tipo: “Ainda bem que existe facebook. Já imaginou ter que ligar pra 300 amigos para avisar
que vai dormir”... E outros semelhantes. Ou, ao contrário. As mesmas pessoas que contam detalhes
do seu dia a dia, numa rede social, publicar seguidamente mensagens do tipo: “Sabe por que Deus
deu uma vida para cada pessoa? Para que cada um cuidasse somente da sua”. E mais umas
incongruências parecidas com essas duas que citei, só para exemplificar com o mais corriqueiro e
não com questões outras, mais graves, como declarações explícitas de preconceitos diversos que,
enfim, me fazem pensar vez ou outra: “Que lugar é esse e que relações são essas que se estabelecem
entre as pessoas?... Que características materiais possui esse veículo, essa esfera de comunicação?
Há normas, padrões, meios de controle que podem reger algo que parece de domínio tão popular?
As redes sociais reproduzem, reforçam, inibem crenças, valores e costumes comungados fora dela?”.
Ou: “As redes sociais deflagram mais fortemente as incoerências subjetivas e quase invisíveis que
vivemos em nosso cotidiano?’.
Enfim... que lugar é esse que esses veículos, redes sociais todas, se é que se possa dizer assim, têm
ocupado na vida das pessoas?

Caros leitores, assumir, na pesquisa, a radicalidade poética de que o caminho se faz ao caminhar, se por
um lado requer um permanente estado de alerta, um zelo multiplicado com os sinais, os toques, os
ruídos e outros sentidos, por outro, autoriza inéditos que, no final das contas, podem vir a ser as
melhores surpresas.

O gosto estético que desenvolvi por praticar um olhar estrangeiro diante de tudo, para aprender
continuamente a partir da própria experiência – o único jeito que conheço, afinal – trouxe-me de
presente um inesperado pelo caminho. Tal como anunciei já na Nota de Gratidão, e depois na referência
aos “Outros Colaboradores”, um projeto que em princípio nada tinha a ver com a pesquisa – o
Des|Amorosas –, acabou emergindo como um farol com dados, por assim dizer, “na bandeja”. É a esse
respeito a próxima parte. E a ela se seguirá a análise mais formal dos dados todos.
120

No meio do caminho tinha um farol – Composição

Bem, retomando os já ditos para relembrar, Des|Amorosas é um projeto coletivo de produção de


histórias de amor e desamor que são publicadas em uma página do facebook desde 2010:
www.facebook.com/DesAmorosas34.
Como uma das recorrências maiores – verificadas nos comentários das postagens e em mensagens
enviadas diretamente para mim – era a reação de surpresa e satisfação das pessoas por se
identificar com os escritos e com os respectivos autores, algumas comentando que se sentiam
inclusive, de algum modo, também autoras, achei que seria o caso de “aproveitar” essas opiniões
por serem não apenas tocantes, mas revelarem aprendizados significativos.
Pedi então que os autores desses comentários35 escrevessem um depoimento sobre o que
aprendem com a experiência de escrever e ler as histórias “des|amorosas”, uma vez que, em boa
parte, eram eles a manifestar essas opiniões e, por isso, foram compondo espontaneamente uma
espécie de comunidade informal de “conversadores” sobre as lições aprendidas com esses escritos.
Alguns inclusive se tornaram autores das histórias justamente por se identificarem com elas (em
conteúdo e/ou forma) e, de certo modo, o que diziam “representava” o que diziam muitas outras
pessoas cujos comentários eram bem semelhantes, mas com as quais eu não tinha intimidade
suficiente para pedir um depoimento para minha pesquisa.
Esse encaminhamento me pareceu importante pelo fato de os aprendizados explicitados por esses
escrevinhadores de histórias de amor e desamor terem uma experiência compartilhada – a de
escrever e ler as “des|amorosas” –, situação diferente dos participantes do grupo original de
sujeitos-colaboradores que me escreveram sobre aprendizados relacionados a modalidades
diversas de uso da escrita na internet.
O fato é que, em pouco tempo, vários autores das histórias (sete dos quais membros do grupo
inicial de sujeitos-colaboradores) enviaram suas opiniões e, nesse caso, o processo de produção de
dados foi um pouco diferente, conforme explico adiante.
Os três procedimentos iniciais foram os mesmos do processo anterior, a partir dos depoimentos do
grupo original, isto é:
Conforme chegavam esses textos, eles eram lidos primeiro para eu conhecer as opiniões, depois,
com um olhar mais perscrutador e depois, buscando relações com os demais textos que chegaram
– e, às vezes, tudo isso ao mesmo tempo.
Em seguida, tendo como referência a pergunta da pesquisa – Em que circunstâncias, de que modo
e por quais razões é formativa a experiência de comunicação escrita no espaço virtual? –, fiz
algumas leituras dos escritos, procurando identificar algumas respostas possíveis.
Reuni tudo em um único arquivo e salvei-o novamente com outro nome, para poder manter um
original e fazer alterações no outro, conforme a necessidade.
Porém, a seleção de fragmentos nesse caso foi feita também com base na pergunta específica
apresentada ao grupo – O que aprendem com a experiência de escrever e ler as histórias
“des|amorosas”? – e o caminho seguido daí por diante foi um pouco diferente, como explico a
seguir:

34
No momento da finalização da tese, passados cinco anos, o projeto reunia 855 textos de 103 autores.
35
Alguns deles também membros do grupo inicial de sujeitos-colaboradores da pesquisa, como já informado.
121

No segundo arquivo, reuni todos os depoimentos em uma sequência que me pareceu a mais
adequada para compor um único texto sobre os aprendizados com a experiência de leitura e escrita
das “des|amorosas”. Os textos enviados foram editados apenas em duas circunstâncias: para criar
links entre uns e outros e para eliminar redundâncias e eventuais incoerências que se evidenciaram
ao reuni-los em uma espécie de relato único em primeira pessoal do singular. No mais, foram
sempre mantidos os escritos originais. Os textos de cada autor foram destacados com letras de
diferentes cores e devidamente identificados.
Em seguida, salvei um novo arquivo e, tanto quanto possível, eliminei as marcas de autoria
individual, de modo que o texto, a partir de então, apesar de composto por mim, passou a ser
virtualmente “de autoria do grupo”.
Enviei então o arquivo para os autores, explicando as razões e os procedimentos que me fizeram
chegar a esse resultado e solicitei que eles indicassem os trechos com os quais não se identificavam,
de modo que eu pudesse eliminá-los para que o texto se restringisse, por assim dizer, a um
“conteúdo comum”. Ou seja, embora não escrito de fato por todos – portanto, nesse sentido, da
produção escrita propriamente, é um simulacro de texto coletivo –, seria um registro a refletir, de
algum modo, o pensamento manifesto por todos (ou o que consegui alcançar do que
manifestaram), ainda que a experiência pessoal relatada “pertença” a cada um.
Depois destaquei em duas cores as informações que considerei mais relevantes: em uma (azul), as
referências feitas diretamente à experiência pessoal, e em outra (amarelo), a teorização sobre
experiência relatada. Depois, novos destaques foram feitos (em negrito) para evidenciar outras
relevâncias.
Por fim, esse material foi analisado, considerando as categorias construídas no processo anterior de
tratamento dos dados que vieram do grupo original.
Sendo assim, os dados da pesquisa foram produzidos a partir de dois grupos de narrativas e tiveram
tratamento diferenciado nesse processo. No caso dos depoimentos enviados pelo grupo original,
eles foram primeiro organizados por tipos de aprendizagem, em seguida passaram por um
processo de teorização feito por mim e depois foram tratados narrativamente – e isso se verá na
parte seguinte, em “Os dados revelam sentidos”. Já no caso dos depoimentos dos “outros
colaboradores”, foram primeiro tratados narrativamente e depois “olhados” a partir dos temas
emergentes do material do primeiro grupo.
Para minha surpresa, não houve nenhuma sugestão de corte no texto de composição que produzi,
os autores afirmaram que o acabamento e o tom ficaram excelentes, muitos disseram que por vezes
não conseguiram diferenciar seus escritos de outros e, mais surpreendente ainda, houve indicação
de trechos que foram considerados por alguns como “mais seus do que os seus próprios”.
A ideia desse tipo complementar de “modo de sistematização dos dados” surgiu a partir de vários
comentários – de muitos desses autores inclusive – de que há textos, como as “des|amorosas”, por
exemplo, que, por dizerem tão completamente o que pensamos, chegamos a achar que são nossos
sem que deveras sejam... O resultado pode ser assim considerado, portanto: escrita de minha
autoria, por composição a partir de textos escritos por vinte e um autores, que passou a ser um
texto de todos à medida que todos afirmaram se sentir identificados com o que nele está dito.
É o que segue. E aqui não se trata de uma teorização, como a que foi feita com o material do outro
grupo, tampouco de uma análise narrativa minha, em diálogo com as narrativas desses autores. O
que vocês lerão aqui, depois de uma pequena introdução, após as aspas, é uma composição, um
amálgama de dizeres, uma – por assim dizer – narrativa mestiça.
122

Des|Amorosas – ou Como é possível nascer um nós

Composição de Rosaura Soligo

A questão aqui é propor a experiência da leitura em comum como um dos jogos


possíveis do ensinar e do aprender. E, simultaneamente, estabelecer o que esse
jogo tem a ver com a experiência da liberdade, essa curiosa relação de alguém
consigo mesmo à qual chamamos liberdade, e com a experiência da amizade,
com essa curiosa forma de comunhão com os outros que chamamos de amizade.
... Dar-se como texto para ser lido por muitos é oferecer-se como abertura para
o múltiplo. E responder – lendo – ao texto é encarregar-se de algo comum e
constituir uma comunidade que não é a do consenso, mas, sim, a da amizade.
Porque esse algo comum que congrega os leitores está, de saída, dividido em si
mesmo, distendido, esparramado, disseminado, pluralizado, heterogeneizado.
... Comunidade que é a amizade cúmplice daqueles que foram mordidos por um
mesmo veneno. A amizade consiste em haver sido mordidos e feridos pelo
mesmo, haver sido inquietados pelo mesmo.
... A amizade da leitura não está em olhar um para o outro, mas em olharem
todos na mesma direção. E em ver coisas diferentes. A liberdade da leitura está
em ver o que não foi visto nem previsto. E em dizê-lo.
... A palavra que se toma, não se toma porque se sabe, mas porque se quer,
porque se deseja, porque se ama. Ao tomar a palavra, não se sabe o que se quer
dizer. Mas se sabe o que se quer: dizer!
... Enfiar-se na leitura é em-fiar-se no texto, fazer com que o texto teça, tecer
novos fios, emaranhar novamente os signos, produzir novas tramas, escrever de
novo ou de novo: escrever!

Isso tudo foi dito por Jorge Larrosa (2000), em “Pedagogia profana – danças, piruetas e
mascaradas”36. Tratava ele da experiência de leitura compartilhada, em público, não
propriamente do tipo de leitura que tem lugar na internet. Mas o fato é que nenhum texto
poderia caracterizar melhor o que pretendem provocar nossas des|amorosas, esse espaço de
recriação de nossa experiência sensível. Por isso o tomo de empréstimo. Jorge certamente não
há de se incomodar...

“37Quando li pela primeira vez uma des|amorosa, tive um encantamento. Pensei: que coisa mais
bonita! Que sensibilidade... Sempre gostei das palavras – temos uma amizade antiga. Gosto de palavras
sozinhas, de palavras que, juntas, se harmonizem tão bem que nem dá para repensá-las sozinhas. Gosto
do balanço das palavras – às vezes elas dançam tango até... A série Des-amorosas me deu o privilégio
de compreender que sempre é tempo de praticá-las. Como assim, escrever? Nessa vida de luta pelo
trabalho perfeito, pelo pragmatismo, pela competência... Escrever? Pra quem? O quê? Quando
escrevi a primeira des|amorosa veio a resposta: “escrever porque...” e não ‘escrever por quê?’. Claro
que é, que nem dizia João Cabral, como catar feijão. Cuidado, esmero, paciência. De certo modo

As reticências que antecedem os parágrafos marcam supressões no texto original.


36

Contribuíram para a composição deste texto: Adail Sobral | Adriana Alves | Adriana Stella Pierini | Ana Sixx | Araguaí
37

Garcia | Cristina Campos | Edenilde Bezerra | Elisabete Semeghini | Hélida Portolani | Heloísa Dias Martins Proença
| Jozelia Regina Segabinazzi | Kathia Diniz | Margareth Buzinaro | Maria Angela Pinheiro | Maria Teresa Esteban |
Patrícia Fujisawa | Paula Maria Scarlatti | Sílvia Palaia | Tânia Villarroel | Vanessa Simas | Zilda Pavão.
123

minha vida mudou. Passou a fazer mais sentido pertencer ao facebook, e mais sentido ainda à
comunidade de escritores – eu disse escritores?!...
Sempre escrevi para mim e para, quem sabe, alguém ler meus escritos. Poder compartilhar e, ainda
de quebra, receber o presente da leitura de tantos leitores e às vezes até de seus elogios é muito bom.
Os comentários são sedutores e nos motivam a escrever mais e mais, muitas vezes sem censura ou
freios de qualquer tipo. Os textos são ótimos, e lê-los é terapêutico. Nós percebemos em outros textos,
vemos que muitas experiências são semelhantes às nossas e nos sentimos, de fato, pertencendo a uma
comunidade. Vemos que tem gente que pensa como nós, que pensa diferente, que pensa melhor
naquele aspecto e nos percebemos mais humanos, iguais e diferentes! Há um clima amigável,
carinhoso, que cria intimidade e convida à troca, a escrever, a ler, a comentar, a refletir em silêncio, a
sentir e a sentir-se parte de um grupo de (des)conhecidos. Nesse espaço há silêncio, reflexão, emoção,
mas jamais solidão. É um lugar de encontro, de bons encontros.
Atualmente, seja em que situação estiver, quando vejo alguma de|amorosa saindo do forno na página,
não consigo deixar de ler. Não são poucas as vezes em que entro no facebook e vou logo garimpar o que
foi publicado de bom na Des|Amorosas ou o que poderá estar inventando a sua criadora para botar gente
na roda da escrita... e o quanto as pessoas estão envolvidas com essas propostas cheias de SER, que só ela
mesma me parece capaz de inventar, e com esse tanto de gente que é capaz de agregar... Tenho por ela
um encantamento, e o resultado disso é, além de produzir escritos para as suas propostas, me fartar de
ler os escritos de todos desse grupo. Daí que escrever des|amorosas é uma espécie de orgulho que faz
com que eu me sinta parte do encanto, do encantamento, da encantadora. Esse pertencimento faz com
que eu me sinta mais gente.
Willian Plomer disse que “a criatividade é o poder de conectar o desconectado”. Para mim, essa frase
diz muito do que penso sobre esse projeto... Podemos criar e expressar essa criatividade e, melhor
ainda, compartilhar com muitos, independente de quantos likes ou comentários uma publicação possa
receber! Esse espaço é democrático, atraente, convidativo. Tenho vontade de escrever mais, só que
infelizmente tem me faltado tempo...
E, refletindo sobre o meu processo pessoal de participação nessa experiência, dei-me conta de que
acompanhei a série por um tempo, mas não escrevi de imediato. Para escrever – embora eu goste
bastante de fazê-lo – é preciso uma certa coragem. Tornar nossas escritas públicas, para outros, além
de nós mesmos, é sim um ato de coragem – é nisso que penso ao tentar refletir sobre essa série que
mobilizou e mobiliza tantas escritas... Coragem porque também nos revelamos pela escrita e, se for
uma escrita não formal, ensaios de literatura, como temos experimentado, tentativa de exaurir
sensibilidades, a exposição fica maior ainda. Quantas e quantas vezes li as des|amorosas, tentando
conhecer um pouco mais sobre seus autores... Conhecer aquilo que não se revela nos encontros
profissionais ou outros encontros da vida corrida, mas revelam-se no olhar, no toque, na forma de
dialogar com a vida e com o mundo.
Por mais que eu soubesse que as histórias amorosas compartilhadas não eram necessariamente
confissão da vida íntima de seu autor, sempre ficava em mim uma chance de conhecer um pouquinho
mais do lado humano de tantas pessoas que se embrenharam nesse tipo de escrita aqui.
Há algum tempo venho pensando que toda forma de relacionamento sempre nos ensina algo.
Acompanhar as postagens, parar o trabalho e subtrair desse tempo um tempinho para relaxar,
descontrair, pensar na própria vida, é algo que me tem sido proporcionado pela leitura das
des|amorosas. Assim como quando paro para escrever. A escrita é algo que me mobiliza para além
de outras experiências. Escrever é pensamento em movimento, é rebelião de sentimentos e emoções
em combate com a razão. É impressionante pensar como a escrita sobre a vida, desse jeito mais
rapidinho, é mobilizadora...
Escrever para quem? De que jeito? Essas são questões que já não se colocam mais do mesmo jeito...
A internet deixou mais gostoso o processo da escrita, porque rapidinho todos veem, rapidinho a
interação acontece, rapidinho há contribuições. Acho que a internet dá um colorido a mais, coloca
uma dose de pimenta nesse processo. Possibilita que o texto seja menos formal, mais diário, que
aconteça quando o desejo se mostra. E assim, fica mais fácil de ser escrito e também de ser lido. Muitas
vezes acontece de repente... abro o computador, um novo texto se mostra e leio assim sem planejar...
124

Lendo uma nova ideia, um novo causo, uma nova reflexão entra na minha cabeça ocupando espaço,
crescendo com o fermento do que vivi. A Des|Amorosas, como uma janela aberta pra diferentes
paisagens, trouxe as angústias, dúvidas, alegrias, incertezas de muitos... E eu me vi normal, não
alienígena, mas alguém que se debate nessa imensidão de sentimentos que muitas vezes nos afogam,
e que nem por isso deixa de nadar, atravessar mares e achar as turbulências deliciosas...
A leitura dos textos é um momento de distração, assim como é o facebook. Sempre li muito, desde
pequena, mas hoje, pelos afazeres todos da vida, tem sido difícil manter o pique de leitura. Quando
venho me divertir no facebook, aproveito, entre uma bobagem ou outra, para ler coisas com conteúdo,
como as des|amorosas. E repito: adoro ler esses textos! Tem horas que parece até que fui eu a
escrever. E tem horas que fico olhando e não entendo bem. Chorei com alguns, ri com outros, me
diverti, me emocionei. Copiei frases, guardei expressões e quero mais. Não estou só. Quero mais –
queremos mais. Considero um momento cultural e quero vida longa para a Des|amorosas! E se nos
envolvemos com esse projeto, foi porque de alguma forma amamos a leitura, a escrita, a comunicação
entre pessoas.
Cada dia mais encontro na escrita uma possibilidade de reflexão mais aprofundada sobre as questões
que perpassam minha vida. Escrever e depois reler o escrito, por vezes em tempos diferentes, ajuda-
me num diálogo que primeiro é comigo (já considero esse diálogo uma interlocução fundamental, pois
me ajuda a conhecer-me melhor) e, depois, mas não menos importante, com tantos outros.
O fato é que esse espaço maravilhoso de interlocução escrita me conquistou por inteiro, uma conquista
que foi me invadindo aos poucos. Primeiro porque apreciava ler algumas histórias, embora não lesse
todas, até que um dia senti uma vontade incontrolável de escrever, compartilhar histórias reais e
fictícias, mote para reflexões com outros. A escrita imediata, postada rapidamente e com a mesma
velocidade comentada pelos colegas, instiga significativamente o desejo de escrever.
Fui descobrindo que o ambiente virtual pode ser um meio de aproximação entre pessoas e ideias. Essa
descoberta modificou minha relação com as redes sociais, pois a princípio considerava as trocas que
ocorriam nesse espaço frias, distantes. Atualmente, tenho em minha rede de relações virtuais pessoas
que ainda não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente, mas que já gosto muito pelas ideias que
compartilhamos em textos e postagens diversas.
As histórias partilhadas me ensinam e, por serem curtas, tornam possível a leitura imediata sem tanto
prejuízo aos afazeres do momento. Gosto demais de ler, mas a realidade é que os textos muito longos
têm ficado por meses esperando uma brecha para serem lidos. Já essas histórias de amor, memória,
infância posso ler imediatamente. Os textos curtos, porém de forma alguma menos densos, podem
ser lidos e comentados em poucos minutos, e essa potência de leituraeescrita veloz, acompanha meu
ritmo frenético no que tem sido viver neste mundo sem deixar de lado a sensibilidade e a humanidade
que o compõe.
E gosto de escrever para esse grupo porque, de alguma forma, sinto-me acolhida, sei que o que escrevi
será lido e poderá suscitar uma reflexão coletiva.
Conhecemos aqui a imagem projetada de cada um, a pessoa em discurso. Sempre escrevo para alguéns
e, portanto, com alguéns, mas essa vantagem da mídia, de sermos lidos por vezes alguns segundos
depois, é instigante. E isso também tem o lado da exigência: se vou ser lido logo por várias pessoas,
tenho de cuidar mais, tornear mais. Parece-me que na internet lemos com bem mais rapidez do que
lemos um livro.
E sabe o que descobri? Um verdadeiro narcisismo pela própria criação. Gosto de todos os meus
pequenos textos aqui escritos. E quando alguém faz algum comentário sobre um escrito meu, de
imediato eu não sei muito bem como me comportar, o que exatamente dizer... E vejo o quanto todos
nós, humanos, gostamos de contar histórias. Como se tivéssemos nascido pra isso... As histórias podem
ser das mais diversas e o romantismo (ou a falta dele) pode ser arranjado e rearranjado com a
linguagem escrita, na forma dessas pequenas narrativas – sim! Aprendi a economizar palavras, a
sintetizar as ideias! – que, em algum momento, cada autor parou para pensar, criar, escrever... e
rearranjar, e brincar de ser escritor de verdade para sempre.
125

Participar, fazer parte desse grupo faz com que eu me sinta escritor/a de verdade, em extensão e
profundidade, em conteúdo, forma, estilo. Estou sendo capaz de escrever substanciados conteúdos
com tão poucas palavras que chego a pensar que copiei de alguém, tão incapaz que era há bem pouco
tempo; ou, por outro lado, multiplicar palavras quando não tenho nada a dizer, de fato, só para exercer
este ofício que agora arranjei: escrever des|amorosas e afins. Escrevê-las tem sido, antes de qualquer
coisa, escrever para mim. O título da série me provocou... Des|Amorosas... Gosto da expressão. O
prefixo agrega o que é de muitos jeitos, ao mesmo tempo. Não classifica. Não fragmenta. Não exclui.
Nem escrevo tanto, mas o que me move é intenso. O que escrevo não é brincadeira. Quando escrevo
aqui, falo do que sinto, do que penso, do que vejo, do que vivo. E arrumo os sentimentos, para ajeitar
as ideias. E quando as leio, assim, ajeitadas por mim, sempre me revejo. Sempre. Elas ecoam depois
que vão para a tela. Depois, feito criança que faz tarefa e aguarda a devolutiva, não raras vezes espero
as “curtições”, os comentários. Gostei muito quando vi meu texto publicado pela primeira vez e mais
ainda quando as pessoas curtiram e comentaram – é interessante ver o eco que as palavras podem
causar no outro... E assim tem sido. Fico esperando, para ver o que elas, as palavras-ideias,
provocaram. Espero, para ver o que elas, as palavras-ideias, desarrumam em mim. Nem sempre
consigo ler todas as des|amorosas. Algumas, pelo seu conteúdo-forma-conteúdo, me fisgam mais vezes
que outras. Algumas me movem a algum diálogo. Nalgumas, mergulho. E me calo.
E penso em como o ato de escrever me constitui: o ato de escrever essas histórias, assim como quando
escrevo outros textos mais reflexivos, potencializa mudanças, reflexões e aprendizagens e, por isso,
também me constitui. Veja: quando paro para escrever uma des|amorosa, ponho-me sempre a pensar
em alguma vivência; ao escrever, penso no vivido; muitas vezes, organizo e reorganizo meus
pensamentos; organizo tudo aqui dentro de mim, porque, ao parar e dar um acabamento estético ao
vivido, posso enxergar a situação de uma maneira outra, diferente da primeira, da segunda e da terceira
visão que tive; ao escrevê-las, consigo tirar lições da situação e, colocando-me num lugar distanciado,
perceber encantos e desencantos também.
Portanto, ao escrever esses textos, ponho-me num movimento de refletir sobre os acontecimentos da
minha vida – muitos deixaria lá quietos em algum lugar dentro de mim, se não me pusesse a escrever
– e, assim, alcanço/tenho mais consciência das aprendizagens decorrentes das relações com o outro e
com os eus que ora vêm à consciência, ora ficam submersos em algum canto.
E, quando leio os textos dos outros, enxergo-me nas palavras/vivências alheias e, assim,
aprendo/penso/reflito sobre mim a partir da experiência do outro. Tudo isso possibilita um
autoconhecimento, favorece um crescimento pessoal, é uma tomada de consciência de como aprendo
o que aprendo. Conheço um pouco mais sobre mim e sobre o outro e sobre as relações que
estabelecemos.
A questão é que, ao escrever, os sentimentos íntimos afloram e nos surpreendem. Fico relendo como
faço ao olhar uma pintura que acabei de experimentar e que está a me dizer coisas, algumas que agora
parecem ter sido sempre óbvias, mesmo antes de ter existência. E, quando é assim, meu eu mais
profundo se manifesta – é uma experiência sensível que dá sentido e corpo a sentimentos vagos.
Isso me faz pensar que algumas coisas íntimas precisam ser ditas de alguma forma porque estão em
nós e vão nos enchendo por dentro. Se o sentimento for de dor, nos enchem de dor de um jeito que
falta espaço para outras sensibilidades, como as de prazer e alegria. Escrever, então, é um jeito de
esvaziar, de abrir espaço para se encher de outras coisas e depois ter necessidade de esvaziar de novo
e e e...
Esse tipo de conversa por escrito é muito potente para mim porque, diferente da conversar olho no
olho, posso voltar ao texto e entender de um outro jeito o que foi dito antes. Outro jeito porque, depois
de escrever e compartilhar o escrito, já não se é mais a mesma pessoa, as sensações não são as mesmas.
Olho no olho também é muito bom ao conversar, mas mobiliza outros processos de reflexão. A
humanidade talvez seja a mesma. Talvez a humanidade da escrita e da conversa olho no olho seja a
mesma se os princípios forem de amor e respeito ao humano.
Escrever, no fim das contas, é mais um instrumento para dar a ver ao mundo o que somos. Talvez por
isso escrever aproxima, mas às vezes também distancia. Quando aproxima, na relação com o outro
126

podemos nos fortalecer, podemos encontrar apoio para a mudança do olhar. Mudar nunca é ser
sozinho. É necessária uma rede. E a escrita ajuda a tecer essa rede, porque tem muitos outros inscritos
quando escrevemos. Todos os outros que, de alguma forma, dialogam conosco, na vida.
Contar com um grupo de pessoas com a mesma vontade de escrever para compartilhar, e assim
dialogar com outras pessoas os acontecimentos da vida, me motiva a aprender em um “espaço” de
interesse comum.
Ao ler as escritas minhas e dos outros, e os comentários que elas geram, encontro formas outras de
entendimento das diversas configurações das relações amorosas. Meu vivido parece ser fonte de
aprendizados para os outros também. Vejo uma generosidade de partilha de estilos de escrita e de
experiências.
Além disso, o convite à escrita de textos curtos – que sempre foi a proposta da Des|amorosas – permite
“encaixar” a escrita na rotina sempre cheia de afazeres: assim, não me “desligo” do processo de
produção textual e me reconheço autor/a. E assim praticamos uma escrita de outro tema, além dos
assuntos sobre os quais estamos mais acostumados no cotidiano. Narrar histórias, pessoais ou não, que
tratam de temas geralmente de pouca circulação nos espaços em que vivemos – como, por exemplo,
os relacionamentos amorosos – potencializa aprendizados que, por me constituírem, ampliam também
os modos de ver/conceber o outro. Acredito que esse exercício é uma forma de autoconhecimento,
uma vez que, ao escrever, preciso pensar sobre o que sinto e como dar ao tema uma forma escrita.
E existe também a dimensão do prazer de pertencer a esse grupo de pessoas interessadas no mesmo
tema, e o fato de poder publicar/expor textos que geram outros e que encorajam outros autores a
também produzir, a também escrever.
Sinto-me assim numa conversa contínua, em que uma história puxa outra e vamos compartilhando
nossas experiências, sonhos, decepções, esperanças, descobertas. E aí me reconheço em algumas
histórias, me emociono com outras, me surpreendo, me solidarizo, fico sempre curiosa para ler a nova
história.
Produzir um fragmento de arte, da vida real ou não, partilhar com o outro cheiros, perfumes, sabores,
onde cada um vai sentir do seu jeito e a sua maneira... Ficar próximo de quem você nunca viu,
emocionar-se com o seu escrito, lembrar-se de coisas suas tão pessoais, tão secretas... Esses momentos
únicos de cada um, e partilhados com todos, são pura vida, emoção e humanização. É lindo isso! E eu
me sinto feliz de participar e acompanhar de algum modo a vida de tantos que não conheço, mas com
quem reparto fragmentos desse nosso viver.
Meu horizonte se ampliou, minhas possibilidades de pensar, minha energia e minha saúde também.
Escrever des|amorosas me fez perceber o quanto eu poderia ir mais longe, poderia voar, tinha essa
sede. Foi um divisor de águas, na verdade... Esperar que alguém goste ou comente aquela ideia que
brotou na nossa cabeça e colocamos para fora é muito gratificante. E a leitura dos textos é uma delícia
porque permite ver a diversidade de ideias e estilos, cada um com seu jeito próprio de se expressar,
com sua assinatura... É especial fazer parte desse projeto. Tanto que às vezes contamos, por escrito,
fatos não revelados a quase ninguém. É uma experiência única esta: desabafar, tirar de nós algo que
nos prendia, nos libertar de algum modo... E vemos que aquilo que nem sempre conseguimos
compartilhar com o outro é possível pela escrita de uma des|amorosa.
Penso que a palavra liberta. A palavra me liberta. Sou do tipo que, quando se analisa, se joga nas
pedras, quer entender a dor em si mesmo para não produzir dor em quem mais ama. Participar desse
projeto me possibilita, em outro espaço, me libertar. Significa poder dividir minha dor e alegria.
Também é o lugar em que me emociono com as palavras de outros, que nem conheço. Mas que têm
essa vontade, também, de se libertar pela palavra. Adoro estar aqui, dividir, multiplicar vida. Vida real
de gente de verdade.
Tenho pensado muito sobre essa questão do aprender. E quanto mais eu penso, mais eu chego à
conclusão de que ninguém ou nada ensina nada a ninguém. E, apesar de meu vocabulário ser ainda
inadequado para dizer exatamente o que desejo, e eu me pegar de vez em quando ainda dizendo
“Porque eu aprendi isso com tal pessoa” ou frases do tipo, penso que as situações da vida nos
provocam ou não a ir em busca do que acreditamos que seja uma relação de conhecimento.
127

O que quero dizer é que, quando comecei a escrever des|amorosas, outras coisas parecem ter me
provocado anteriormente, e continuarem fazendo parte, e a comporem junto com o que eu escrevia
nos momentos subsequentes. Nada é sozinho... Não posso dizer que foi esse projeto que me
modificou. Mas também. Foi o material de que ele é feito? É o significado que dei a cada frase? Foi a
maneira que permiti que ele fosse modificando a minha vida? Foi o que instigaram em mim as pessoas
que dele participam? Sim... foram me provocando e fazendo com que eu repensasse posicionamentos
sobre minhas atitudes, sem que tivessem essa pretensão – elas vieram desarmadas com suas histórias.
E o ataque pacífico foi certeiro... Funcionou muito mais do que sessões de terapia ou passeatas em
grupo... Não era obrigação, era ludicidade – e é isso que eu acho que falta em muitos projetos: desde
escolas até relacionamentos, eu arriscaria dizer... Se não for divertido eu ir me encontrar pelos olhos
dos outros, não vale... não tem graça, muito menos envolvimento.
E foi também o que a pessoa que me convidou a escrever aqui, dona da ideia, me provoca em presença.
Foi o que eu gostei e não gostei de cada escrito, mas sem juízos morais – somado ao espaço que criei
em mim, que tornou possível algumas emoções voltarem a dançar dentro de mim e eu me perguntar
se queria permanecer com o meu ponto de vista ou se valia agora mudar de porto. A escrita mesmo
era uma desculpa pra eu me relacionar. Foi uma máscara que usei tentando esconder quem eu era,
mas revelando até para mim que meus sentidos estão muito além de um ponto ou ação no tempo.
Posso me reinventar, e tudo que passei ou passo não precisa ser tão definitivo. E acho que essa é uma
característica da escrita. Tentar alcançar o tempo pra eternizar algo... Mas só eternizamos quando isso
muda a cada leitor ou a cada vez que alguém lê um escrito por mais de uma vez, encontrando novos
sentidos para as mesmas palavras. E isso torna o anonimato íntimo da autoria algo misterioso e
encantador. O que é, afinal, que faz com que alguém se identifique ou não com o que eu escrevo? E
o que faz com que eu mergulhe tão fundo em sentires e palavras de alguém que não conheço
presencialmente?
O que me era invenção ninguém sabe, nem saberá. E o que era meu ou eu achava que era foi
profanado e ajuda a diminuir a gravidade de que eu não encontrava um lugar dentro da minha história.
Muitas vezes não me vi ao reler algum texto meu; outras muitas, me vi em profundidade numa história
que não era minha, pelo menos a princípio. É a mágica da autoria; está além das pessoalidades! E, ao
mesmo tempo, há algo de humano que nos une a todas as pessoas: a vontade de ser amado e todos os
percalços que enfrentamos nessa busca heroica – que já não importa como definitiva ou passageira,
pois é isso que faz a vida valer a pena!
Na verdade há aqui uma conversa boa sobre a vida. Vida que nos faz ir e voltar. Muitos de nós nos
afastamos por um tempo, mas logo acabamos retornando. O que está por trás desta mobilização toda?
Por que nos interessamos tanto por essas trocas que acontecem aqui, a partir dessas histórias
des|amorosas? O texto da Patrícia (abaixo), além de lindo e muito bem escrito, me fez pensar mais
sobre a vida de cada um de nós e a necessidade de espaços que viabilizem nossas sensibilidades.
Escrever é uma possibilidade. Ter interlocutores para essa escrita, e não quaisquer interlocutores, mas
um grupo que acabou se aproximando por afinidades que, em muitos casos nem se imaginava ter, é
singular. Nos aproximamos pelo texto, pela escrita e pelos ditos dos escritos.
A cada texto que leio sinto que a proximidade de sentimentos, emoções e experiências nos tornam
realmente próximos, mesmo que nunca nos tenhamos visto, assim dessa forma mais comum, com os
próprios olhos. E é isso o que me encanta. Através dos sentimentos uns dos outros vamos nos
reconhecendo e nos vendo espelhados nesses tantos textos. Assim, muitos de nós não nos conhecemos
pessoalmente, mas vamos nos tornando mais íntimos pela escrita. Acho que preciso dizer novamente
que gosto de fazer parte dessas reflexões porque aprendo muito com elas. Passo a conhecer um
pouquinho mais de mim e de todos os outros com os quais vou tecendo diálogos. Uma experiência
também singular!

Por fim, uma linda narrativa da Patrícia Fujisawa:


“Ela se escrevia. Se contava em uns textos curtos, de leitura corrida, sem tantas interrupções que,
mais tarde, se enquadraram no que a Madrinha chamou de Des|amorosas. Nesse movimento de
escrita de si, tencionava narrar da forma mais intimista e real possível todos os sentimentos e
sensações que aquela história em que era a personagem principal poderia sugerir. Os mais
128

significativos escritos foram, por coincidência do destino ou por previsível empenho, os que mais
gostara, os que mais relera, os que mais alcançavam comentários, os que vivera intensamente. Ela,
que sempre fora medrosa em amar, viu nos escritos de si uma forma de se mostrar um tanto mais
mulher, de se permitir um pouco mais de paixão e sensibilidade. Foi ali nas des|amorosas de si
que se colocou no lugar de quem já havia sido, se viu como personagem, e o que antes era dor,
pôde, então, ser reescrito em outras linhas, ganhando novos contornos, tornando o passado lírico.
Trazia o passado ao presente já sem tantos receios de ser, aceitava-o como houvera sido: algumas
histórias de aprendizados tristes, sim, mas acontecimentos grandiosos o bastante a ponto de
auxiliá-la a enxergar, sentir e ver tudo o que podia, da forma que queria. Das Desamorosas,
pensava, tinha aquela latência do contar o tema comum de jeito novo, de ser lida por quem não
conhecia. Nas poucas linhas, a gana de se escrever, se mostrar como nunca, de transitar livremente
entre o ser e o estar enamorada, desiludida, (des)enganada, apaixonada, saudosa, amada.”
Como se vê, e isso a poeta Adelia Prado vive a repetir, é preciso se despir do orgulho da razão
para produzir qualquer tipo de arte, que, sendo arte, é sempre uma atividade sensível, capaz de
tocar as pessoas emocionalmente. Acho que a série Des|Amorosas acaba por fazer este convite
velado às pessoas: produzir um fragmento de arte em situação de nudez da razão.”

Imagino que, tal como eu, durante a leitura, em um ou outro momento, vocês devem ter pensado
que não seria justo desprezar essa chance que surgiu no caminho como um farol. Agarrei-a
amorosamente, e os frutos que dela nasceram alimentaram não só o meu prazer de leitora, como
também o meu orgulho de autora do projeto e os dados em busca dos quais eu andava, como
pesquisadora.
E aqui há um destaque importante a fazer: tanto no caso da textualização e teorização dos
depoimentos dos sujeitos do grupo original, como neste caso, dos colaboradores “agregados”, o
trabalho de edição não foi nada fácil. Quando acreditamos que, em se tratando de linguagem,
forma é conteúdo, editar dessa maneira os textos produzidos por outras pessoas, buscando garantir
obstinadamente o conteúdo do discurso e os sentidos pretendidos, é uma quase impossibilidade.
Mas, ancorada neste frágil “quase”, desafiei-me a fazer isso com a maior lealdade de que fui capaz,
mesmo sabendo que nesse processo o conteúdo pode sucumbir, a despeito das melhores
intenções ao intervir na forma – para alterar a ordem das informações, eliminar redundâncias,
complementar o que parecem ser lacunas, criar links e outros procedimentos do tipo. Isso se faz,
por assim dizer, ‘no fio da navalha” entre a razão e a loucura, porque exige um exercício de
deslocamento para tentar penetrar na lógica do outro, no discurso do outro, de muitos outros, o
que pressupõe uma capacidade de alteridade que, a rigor, nenhum humano possui. Fui só até onde
deu, portanto.
Para minha satisfação – e espero sinceramente que não só por isso – os autores dos textos originais
“assinaram embaixo” nos três casos: da textualização dos depoimentos (quando as assinaturas são
mantidas), da teorização (quando as assinaturas não mais existem e o discurso deles referencia o
meu) e aqui nesta composição (assinada por mim) de textos produzidos separadamente por eles.
A seguir, compartilho os sentidos que consegui alcançar a partir desse processo todo. Preferi
separar a questão da produção e da análise dos dados não porque sejam de fato separadas, mas
para favorecer a explicitação de como aconteceram, visto que o compromisso assumido desde o
início, desde antes de tudo, na verdade, foi o de escrever uma narrativa pedagógica que pudesse
evidenciar o curso e o movimento da pesquisa e o percurso de construção do meu conhecimento
como pesquisadora. A meu ver, explicar como aconteceu o movimento de produção dos dados e
só depois como se consolidou o processo de análise contribui para organizar a narrativa de um
modo mais inteligível do que se fosse tudo ao mesmo tempo. Tentei, assim, construir uma espécie
de plataforma de lançamento para a análise que se segue.
129

[Os dados revelam sentidos]

Não se pode dizer como a vida é,


como a sorte ou o destino trata as pessoas,
a não ser contando a história.
Hannah Arendt

Daqui por diante, caros leitores, houve uma mudança na rota prevista para este texto, e isso
aconteceu após o exame de qualificação. Naquele momento, ainda que em versão preliminar,
estavam praticamente finalizadas as partes anteriores da tese, assim como o memorial, e apenas
esboçado em linhas gerais o conteúdo desta parte e da seguinte. Isso significa que, além dos ajustes
sugeridos no que já estava escrito, havia dois textos importantes por escrever: o de análise dos
dados e o de lições da experiência.
Pois bem, tendo em conta as ponderações da banca e as reflexões que foram possíveis a partir
delas, ocorreu-me que a melhor forma de proceder em relação ao texto de análise dos dados seria
produzir uma narrativa endereçada aos sujeitos, dialogando com eles sobre suas contribuições, os
aprendizados que me foram possíveis a partir delas, o conhecimento que pude produzir em busca
de respostas para a pergunta da pesquisa. Uma carta... A escolha que me pareceu mais compatível
com esta tese, escrita na forma de uma longa correspondência, foi uma carta (dentro da outra).
Esses desdobramentos – experimentar um tipo de análise narrativa e um registro na forma de carta
aos colaboradores – não estavam nos meus planos até o exame de qualificação.
Assim, peço licença a vocês, leitores, para, por algumas páginas, endereçar a escrita aos sujeitos da
pesquisa, que passam agora, circunstancialmente, a ser os destinatários privilegiados e em primeiro
plano. Isso que poderia parecer talvez uma incoerência ou uma indelicadeza com vocês, na
verdade é um modo de ser justa com eles. Acredito que vocês compreenderão essa necessidade e
se sentirão leitores solidários, mesmo não sendo, por algum tempo, os destinatários principais do
texto como vem acontecendo até o momento.
Passo então a me dirigir especialmente aos sujeitos colaboradores da pesquisa e desta tese.
130

Breve narrativa em diálogo com os colaboradores

Os Outros:
o melhor de mim sou Eles.
Manoel de Barros

Queridos parceiros,

Esta pesquisa, como muitos de vocês sabem, é uma afirmação de possibilidades nem sempre
consideradas bem-vindas no território dos trabalhos acadêmicos. Algumas delas, por certo,
causarão estranhamento a um leitor pouco receptivo a formas não muito usuais de movimentação
no interior da pesquisa e de registro de uma tese.
Nesse sentido, penso que talvez duas escolhas difíceis de considerar de imediato como válidas, por
esses leitores mais preocupados com certas convenções da pesquisa e da forma de documentá-la,
sejam os trabalhos de teorização e composição feitos a partir dos dizeres de vocês – no primeiro
caso, um trabalho com os textos dos colaboradores iniciais, e no segundo, dos colaboradores
agregados depois, autores de depoimentos sobre as des|amorosas.
Sim. Porque o mais habitual é o pesquisador encaminhar sua análise, ilustrando-a com fragmentos
dos dizeres dos sujeitos para justificar suas afirmações e seus argumentos.
Não me pareceu esse o melhor a fazer, porque a meu ver seria insuficiente desse modo. Afinal, meu
desejo sempre foi compor com vocês uma compreensão sobre a questão da pesquisa. Então, por
que não compor alguns textos junto com vocês, não é?
E assim fiz. Os textos que resultaram desse processo de junção das ideias – no caso da textualização,
em uma exposição teórica, e no caso da composição, em uma narrativa em primeira pessoa –
reúnem, algumas páginas antes, os dizeres de vocês sobre o que considerei importante para
compreender a questão da pesquisa, claro que já com alguma análise, mas não propriamente o
que se convencionou chamar de análise de dados.
Isso é o que faço a seguir, experimentando um tipo de análise narrativa dos dados, modalidade
que, com o tempo, vem se tornando mais frequente na pesquisa narrativa e que, segundo Bolívar
(2002), pressupõe reunir dados e vozes, configurando uma nova narrativa; evidenciar elementos
que revelam especificidades e singularidades dos sujeitos; tomar como critérios a autenticidade, a
coerência e o caráter único dos dizeres. Esse procedimento requer do pesquisador a produção
narrativa de uma análise em diálogo com os dizeres dos sujeitos. Muito embora quem adote essa
abordagem não privilegie a carta como gênero narrativo para o registro de sua análise, considerei
que, em uma tese escrita em forma de correspondência, seria o mais justo e o mais coerente.
Se eu não tivesse optado por esse caminho ao término do trabalho de sistematização dos dados
produzidos a partir dos textos de vocês, o momento seguinte seria diferente. Seria a hora de passar
a qualificar esses “achados” com fundamentação teórica validada, num processo de triangulação
entre os dizeres de vocês que se constituíram em dados, a contribuição de autores que se
dedicaram a aprofundar o conhecimento sobre temas diretamente relacionados aos achados e o
meu posicionamento de pesquisadora em relação a isso tudo.
Relembrando:
A pergunta da pesquisa – Em que circunstâncias, de que modo e por quais razões a comunicação
escrita que acontece no espaço virtual se constitui em experiência formativa para quem dela
131

participa? –, sempre em perspectiva, orientou-me no grande mar de informações trazidas por


vocês, e os dados aos poucos foram sendo produzidos até que, olhando para o que revelavam,
escolhi estes dois enunciados organizadores: Formas e movimentos de interlocução e Formas e
movimentos de manifestação da subjetividade. Isso significa que tudo o que vocês disseram e
considerei relevante para compreender a questão inicial foi reunido em dois blocos assim
nomeados. E, no interior deles, emergiram três subtemas: Linguagem escrita como via de
interlocução, Protagonismo e empoderamento pessoal e Que sujeito é este que estamos
conhecendo?. Esses subtemas não serão tratados aqui um a um, e sim ao longo das considerações.
Pois bem, o fato de considerar vocês como referências teóricas em primeiro plano – afirmação de
outra possibilidade que pode também causar estranhamento –, aliado às reflexões que me foram
possíveis depois do exame de qualificação, indicou este caminho da análise narrativa como mais
apropriado, e por ele vou.
O que muitos de vocês afirmaram em seus depoimentos, ou deixaram subentendido, ajudou-me a
compreender que somos sujeitos de um tempo histórico complexo, capaz de produzir rapidamente
outras formas de subjetivação, parte delas evidenciadas pela possibilidade de interlocução online,
que é o mote desta pesquisa.
Encontrei em Boaventura de Sousa Santos, Maria Rita Kehl e Dany-Robert Dufour algumas
referências importantes para entender melhor essas formas de subjetivação – não no que se refere
à interlocução online propriamente, porque esses autores não se dedicaram a esses temas, além do
que, a esse respeito, considerei as contribuições de vocês muito pertinentes como fundamentação.
Isso porque não só vocês produziram reflexões consistentes a partir da própria experiência de
comunicação online e da própria reflexão sobre os processos que estão em curso, mas porque parte
de vocês se alinha (talvez até mesmo sem saber) com o pensamento de Bakhtin, principal referência
desta tese para compreender como acontece a interlocução pela linguagem. Alguns, inclusive,
desenvolvem conceitos bakhtinianos em suas pesquisas e em outros estudos. No início da tese há
citações de Adail, Liana e Vanessa, que exemplificam como lidam com esses conceitos.
E há aqui outra formulação sua, Adail, que define o campo conceitual em que nos situamos – você,
eu e outros destinatários desta carta também –, relacionado diretamente à questão da interlocução
com o outro pela linguagem:
Bakthin propõe como a “tarefa” do sujeito (em seu contra-hegelianismo kantiano-materialista
dialético-fenomenológico): é preciso ir até o outro (ser eu-para-o-outro) – mas fazê-lo só é positivo
se se volta (se se pode voltar) para si mesmo (ser eu-para si) depois de mostrar ao outro o que ele
não pode ver sozinho e depois de ter visto o outro mostrando-nos o que não podemos ver
sozinhos. Dois pontos de vista (ao menos), duas consciências imiscíveis, afastam-se do isolamento
negativo quando vão ao encontro do(s) outro(s) não necessariamente para se compatibilizarem,
mas para conhecerem o que os distingue e, assim, se o desejarem, criarem um terceiro ponto ou
alterar os seus de alguma maneira. A Bakhtin não agrada o isolamento/insularidade absolutos,
mas na verdade certo isolamento constitutivo, isto é, deve-se ser individual, eu-para-si, mas
também relacional, eu-para-o-outro, e criar a totalidade de si mesmo, sempre instável, a partir dos
atos isolados de si que vêm dos outros (cada um de uma maneira!). (...) Também em Bakhtin há
algo que marca a estabilidade idem e a oscilação ipse do sujeito: somos sendo, não já sidos, ainda
que nos perpasse algo que nos diz "sou o sujeito x, não y...n". Somos muitos, múltiplos,
fragmentados, e ainda assim unos – sempre provisoriamente. 38
Essa afirmação vem de um território de ideias onde convivem muitos dos dizeres de vocês e meus
também.

Comunicação de título "A ontologia dialógica de Bakhtin e a questão da identidade", apresentado em inglês na XIV
38

BAKHTIN CONFERENCE, 2011, Bertinoro. Bologna: University of Bologna, 2011. Tradução do autor.
132

Quando você diz o que transcrevo abaixo, Walter, certamente parte de referências conceituais da
psicologia, sua área de formação, mas esta reflexão, a meu ver, não só é afinada com a perspectiva
bakhtiniana, como tem relação com o que explica Adail.
As relações interpessoais são sustentadas em bases objetivas e subjetivas, parte das quais nenhum
dos sujeitos tem consciência da existência, nem mesmo dos sintomas que se expressam e
interferem nas relações.
Creio que o mesmo ocorre quando, ao citar Stuart Hall, você diz assim, José Paulo:
Penso, como o Stuart Hall, que “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão
sendo continuamente deslocadas”.
Ou quando você diz de si, Carla:
O outro está em mim, afetando meu ser. Talvez tudo isso seja possível porque meu repertório
afetivo, ao ser mobilizado pelo outro, também se altera e me transforma.
E também você, Ester:
Me apraz demais a experiência sensível, o toque, a presença, e então o tecido do sofá, o desenho
do tapete, o quentinho de uma manta, as mãos que folheiam as páginas do livro, um vaso bem
composto, um quadro na parede, sem contar os olhos, a voz ou gestualidade de um interlocutor,
muito me interessam e interferem profundamente em minhas disposições para o mundo.
E você, Liana:
É muito difícil não ter qualquer coisa parecida com um olhar de alguém que te reconheça segundo
você é, segundo os seus/dos outros [re-conhecidos] olhos, porque te olham de outro jeito, como
se você fosse outrora e não aquela que acabou de chegar.
Ou você, Margareth:
Creio que há muitos fatores que interferem nos modos de as pessoas se comunicarem, como o
grau de intimidade entre os interlocutores ou os níveis da relação que está dada em razão da
posição que ocupam. Ou seja, não seria exatamente o espaço de interlocução o responsável pelos
efeitos/qualidade do discurso... São muitos os ângulos dos quais se pode ver os outros – com suas
constâncias, contradições, suas idealizações visionárias, ao mesmo tempo retrógradas e, mesmo
sem trocar uma sílaba com quem quer que seja, esses outros vão entrando em nós com suas
histórias, suas vidas ou seus modo de vê-las... Vão pluralizando-nos.
Entendo serem esses breves fragmentos, apenas alguns, garimpados dos textos que vocês me
escreveram, suficientes para evidenciar que, mesmo na pluralidade de referências de cada um,
compartilhamos um campo comum de ideias sobre as relações interpessoais e a interlocução com
o outro – um campo que tem ressonância no pensamento de Bakhtin, do qual alguns pressupostos
são apresentados e desenvolvidos por Adail neste texto que há pouco transcrevi.
E, houvesse aqui a necessidade de registrar algum pressuposto emblemático, não com minhas
próprias palavras, eu me repetiria citando o poeta: Sim. O melhor de mim sou Eles, os Outros.
Assim, por tudo o que já se disse sobre formas e movimentos de interlocução – seja nos momentos
de textualização (quando o texto de cada um foi editado/reduzido), de teorização (quando os
textos de todos os que trataram do mesmo tema foram agrupados) ou de composição (quando os
depoimentos sobre as desamorosas foram fundidos em uma única narrativa) – considerei um
excesso retomar aqui os dizeres de vocês com o propósito de, a meu ver desnecessariamente,
fundamentá-los melhor, caso a caso, com outras referências teóricas.
133

Então, o que se segue é o que me pareceu oportuno e necessário: uma breve topicalização
comentada das principais contribuições para o entendimento das peculiaridades e dos efeitos da
interlocução online, principalmente porque, assim reunidas, elas se adensam e se fazem ainda mais
importantes como produção intelectual de um grupo em que a maioria não é pensador por
nenhum tipo de exigência profissional – é uma gente curiosa e sabida que “apenas” pensa.
Em seguida, quando me parecer necessário, complementarei os comentários com subsídios
teóricos que ampliam a compreensão desses processos.
Os trechos que selecionei aqui são fragmentos, quase sempre miúdos, dos textos que compõem as
contribuições assinadas que foram incluídas anteriormente na tese, mas lá os escritos de vocês
foram reunidos apenas para apreciação do leitor, sem nenhum tipo de análise.
Adiante, após esta parte que se segue, a análise e a fundamentação teórica dirão respeito muito
mais ao que pode favorecer o entendimento das formas e dos movimentos de manifestação da
subjetividade, uma vez que vocês não o abordaram como um tema, de modo explícito, embora
tenham deixado uma porção de pistas.
Não por acaso, começarei falando de você e suas explicações, Marquinhos. Ler o seu depoimento
produziu em mim uma emoção especial, por muitas razões. Uma delas é que, para refletir sobre os
aprendizados possíveis no processo de comunicação pela escrita online, você se reporta a uma
experiência compartilhada justamente comigo, o que, claro, abduziu-me na mesma hora para
dentro dessa sua reflexão impressionante, aqui transcrita novamente:
O Marquinhos com quem você trabalhou nesses últimos meses à distância era um cara preparado,
você mesmo disse: sabido. Mas você não trabalhou comigo. Não era eu. Não era só eu. Ao
trabalharmos, ao comentarmos sobre algo profissional, ao dizer ‘sabe aquilo daquela aula...’, o
Marquinhos, normalmente de memória fraca, era um Marquinhos memorioso virtualmente, com o
arquivo da aula aberto, os de outras aulas também, anteriores e posteriores, o arquivo de controle de
revisão contendo comentários meus e coisas que fiz ou anotei sobre aquela aula, com planilhas de
controle para saber o que faltava e o que já fiz em tal documento, com o google aberto e às vezes
buscando termos ou ideias sobre aquilo que era foco de discussão (me certificar de um conceito, ver
se aquela palavra existe, se foi empregada corretamente, ver se não há uma contexto melhor para
aquilo, ver se há uma imagem melhor, enfim... o São Google aceita o que der e vier na telha), além
de estar com minha biblioteca pessoal aqui do meu lado ao esticar do braço (naquela estante onde
falei que fica aquele livro de capa dura que povoa meus sonhos...). Você não conversava somente
com o Marquinhos, mas com o ‘Marquinhos com’: com tudo isso e mais o que eu podia alcançar
pra trabalhar e fazer o melhor com o que devíamos fazer. E, para você ter uma ideia, uma mesinha
de ferro ficava ao meu lado aqui com alguns dos bons livros que usava pra revisão matemática, além
de um dicionário, um livro de história da matemática e mais uma coisa ou outra. Fora as planilhas,
os documentos digitais que tenho aqui, a internet pra navegar, embora tudo sempre passasse por um
crivo pessoal, por um modo de avaliar as informações, um modo construído na experiência de já ter
lidado com revisão anteriormente. Ficava tentando imaginar como seria a ‘Rosaura com’... Assim,
quando me encontrava com você, me sentia quase nu, um pobre Marquinhos sem seus ‘coms’.
Sentimento passageiro, pois no decorrer dos encontros ia lembrando que há outras coisas a trocar
ao vivo e somente ao vivo, os gestos, os olhares, os cheiros, enfim. Talvez você nem percebesse o
meu estranhamento. Talvez eu diga estranhamento por pensar agora sobre esse passado recente.
Mas era estranho. (...) Entende o que eu digo, que você trabalhou com o Marquinhos com a
tecnologia? Ele pode mais com ela. E você também. Assim, nós fizemos coisas que talvez não
faríamos se estivéssemos somente trabalhando presencialmente. Ou faríamos?
Queridos... se vocês porventura não tinham muita clareza do que é uma reflexão metacognitiva,
eis um exemplo que dificilmente deixará dúvidas. Essa é, inclusive, outra das razões que me
encantou em seus escritos, Marquinhos, e isso eu já lhe disse: a sua capacidade de refletir sobre si
mesmo, um talento corajoso e raro.
134

A ideia do “com”, esteticamente ambígua – por sugerir os lugares da internet, que são sempre
“pontocom” –, é uma lindeza que me fez sorrir à primeira lidinha, quando você disse: “Não sou eu.
Não sou só eu. Sou eu com o computador. Isso faz toda a diferença, pois é como se eu pudesse
mais”.
Foi a leitura desse seu escrito que me ensinou o quanto certos usos da internet podem expandir
nossas possibilidades de ser e estar no mundo, e foi a partir de então que a questão do
empoderamento se fortaleceu como um tema no percurso da pesquisa que aconteceu daí por
diante.
Por quê?
Porque não era um autor qualquer descrevendo teoricamente um processo. Era alguém
compartilhando sua própria experiência de maneira reflexiva, honesta, sincera, lúcida. Como não
amar?
E você ainda usou uma imagem poderosa: “Era como limpar um teto muito alto, usando pernas de
pau. Podíamos limpar aqui do chão esticando o braço ou com uma vassoura. Mas, não. Usamos a
tecnologia de tal modo que ela parecia ser parte de nós.”.
Depois teve também o seu comentário sobre como é quase possível hoje observar o outro
pensando:
Tive uma experiência recente de escrever um texto em conjunto com uma colega. Escrevemos
utilizando o google docs, de modo que os dois podiam estar em suas casas escrevendo
separadamente, mas no mesmo documento aberto ali na tela. Escrevíamos juntos ao mesmo tempo.
Era como se eu pudesse observar como ela pensava, já que via como escrevia, apagava, reescrevia,
mudava de local, revisava, enfim.
Muito obrigada, Marquinhos. Nenhum outro autor poderia ter me ensinado tanto sobre o que
eu precisava saber a respeito disso que você me contou!
E sobre outras vantagens que pode ter a interlocução online aprendi também contigo, Tamara,
quando conta sinceramente sobre o seu processo pessoal:
A escrita via internet, mais especificamente nos e-mails, é uma escrita que me encoraja e, em
determinadas situações, me permite muito mais do que a própria fala em uma conversa, pois muitas
vezes recorro a esse suporte para estabelecer conversas e confissões que talvez pessoalmente não
teria coragem de partilhar... Nessas trocas, aprendo a conhecer/compreender com mais clareza, de
modo mais consciente, questões, informações, sentimentos que às vezes no próprio diálogo
presencial passam despercebidas.
Com o seu relato, pude pensar melhor sobre um tipo de experiência profissional que eu vivo há
muitos anos e que reconheci semelhante à que você conta:
Através da tela do computador, em uma escrita que ganhava sentido e amplitude potencializada pela
velocidade e alcance proporcionado pela internet, fui ampliando meus saberes e conhecimentos e,
com isso, ampliava também a compreensão sobre minha constituição como pessoa, sobre minha
própria subjetividade a partir dos relatos, dizeres, conselhos, recomendações, desejos e partilha de
experiências que se materializavam através da escrita veiculada pela internet, em uma intensa troca
de mensagens por e-mail.
Também você fala de algo semelhante, Adriana Pierini:
É uma escrita que favorece (como toda escrita) a organização de pensamentos, mas que tem me
auxiliado (e muito!) a redimensionar sentimentos. Seria isso possível? Seria essa uma aprendizagem
possível? Aprender a refletir sobre sentimentos a partir do que escrevo para um meu outro sobre
mim e/ou sobre a minha relação com um outro-outro?
135

É verdadeiramente especial essa sensação de que há quem sinta, pense e aprenda de um jeito
parecido com o nosso. Por isso, esses textos de vocês me arrebataram...
Depois, ainda nesse movimento de olhar para a própria aprendizagem, vêm suas
considerações, Rosana, muito reveladoras:
Há uma aprendizagem sobre a minha própria forma de escrever, de me comunicar e me fazer
entender. É preciso escrever da forma mais limpa e objetiva possível para que seja entendido o que
quero dizer. E, especialmente quando se trata de explicar, é preciso fazer à exaustão o exercício se
colocar no lugar do outro para antecipar as suas dúvidas, incompreensões a assim aprimorar a escrita
para que ela possa comunicar o pretendemos.
Estar conectada enquanto trabalho amplia a reflexão sobre o conteúdo do que é lido, provocando,
muitas vezes, uma “conversa particular comigo mesma” – em paralelo ao que estou fazendo – sobre
o assunto que me chamou a atenção.
E há situações em que uma maior exposição pessoal acontece. Ao escrever mensagens mais
intimistas, por vezes o que ocorre é um pensar alto, um pensar que se torna público. Aprendo com
isso também. Fico no exercício do que devo escrever, como escrever, se quero que saibam isso de
mim, mesmo que sejam histórias fictícias. Nesse exercício, acabo procurando o lugar onde a mim
possa ser confortável colocar o privado que vai se tornar público.
Não fosse você compartilhar essa sua reflexão, Rosana, eu não teria aprendido sobre isso que você
diz ser “uma conversa comigo mesma em paralelo” e nem teria concluído de maneira tão pertinente
o que é esse “pensar que se torna público”. Além do que, pude me enxergar completamente na
descrição que você faz sobre o empenho em tentar um deslocamento para o lugar do outro
quando a escrita tem o propósito de explicar o que pretendemos. Muito bom!
Então vem você, Carla, com essa lindeza de conclusão, que é um jeito experiencial de dizer que há
uma revolução em curso nos nossos modos de aprender, como afirmam muitos teóricos:
Aprendo sobre mim, na medida em que as interações online me atravessam na relação virtual com
o outro. Essas aprendizagens já não estão mais descoladas do meu jeito de aprender.
Acho, entretanto, que você aprende sobre você também – e talvez principalmente – porque tem
um compromisso consigo mesma de pensar sobre si no percurso da vida. Muitos vivem experiências
semelhantes, mas não pensam nelas porque não se ocupam de qualquer tipo de reflexão voltada
para a autoconsciência.
E aí vem você, Renata, com suas hipóteses sobre si mesma que podem explicar o estilo de muitos
de nós:
Tenho a sensação de que ao me dedicar à comunicação virtual, eu me afasto das relações presenciais,
fico alheia ao meu entorno. E me disperso também.
Penso que a consciência dessa possibilidade é útil para assumirmos o comando de nossas escolhas
em relação ao tipo de interlocução que de fato desejamos a cada momento. Afinal, é como você
diz, Adail:
A interlocução se altera com os meios. Não só pela questão da proximidade/distanciamento, mas
também porque é possível criar graus, níveis, formas e redes distintas de interlocução. Se
considerarmos que há sempre interlocução, interação, na ausência ou na presença, real ou virtual, a
web “apenas” altera as maneiras como isso acontece. Quem quer aprofundar o nível ou grau de
interação, de interlocução, de escuta, o faz, ou não, em qualquer circunstância.
Mas há também os desconcertos da pesquisa... Você pergunta ao sujeito “O que você acha que
aprende...?” e ele te responde sinceramente “Não sei o que aprendo”. Foi o que aconteceu contigo,
não foi, Adriana?
136

Não reconheço propriamente o que aprendo ao me comunicar por escrito via internet, mas sinalizo
o quanto a escrita realiza de mim em si, e o quanto eu “me faço”, “me concretizo” ao escrever.
E de certo modo aconteceu também contigo, não foi, Margareth?
Bem, o que aprendo com as experiências no facebook? Não sei se aprendo coisas... mas seguem
minhas observações, elucubrações...
Você então, Guilherme, com uma afirmação deste tipo, mesmo sem querer, sendo o meu
orientador poderia ter provocado uma mudança radical no tema da pesquisa:
A escrita, para mim, nesses contextos, gera mais coisas que não sei do que coisas que sei e posso ter,
quiçá, algum controle. Minha insuficiente implicação pessoal na interação estabelecida com as
pessoas pela internet, não sei bem por quais razões, me impede de, por essa via, aprofundar uma
compreensão sobre mim e sobre os outros, além de, a tomar por mim, criar uma ‘desconfiança’ do
quanto de fato a escrita nessa materialidade ‘revela’ sobre o outro. Penso que a falta de conexão
visual produz em nós um efeito de não se expor de um modo, digamos, genuinamente presencial.
Dito assim, dessa maneira, talvez possa parecer que essas respostas de nada servem a um
pesquisador interessado justo em saber sobre os aprendizados que conseguem perceber os sujeitos
de sua pesquisa. Mas isso não é verdade.
Essas respostas me ensinaram que pessoas com destacada capacidade metarreflexiva podem de
fato não ter ainda se dado conta dos efeitos de certas práticas em seus processos formativos, o que
não significa que não estejam atentas a eles, muito pelo contrário.
E essas respostas ajudaram a redirecionar o meu olhar para a pergunta da pesquisa a partir da
banca de qualificação. Sim. Porque o Professor Carlos Skliar ponderou, na ocasião, que havia quem
dissesse que não sabia ao certo o que aprende e que, talvez, o ponto a considerar não fosse
exatamente os aprendizados dos sujeitos, mas sim as suas vozes.
Pronto: achei o rumo que nem estava procurando!
Claro: Se a pergunta inicial, que suscitou os depoimentos, era...
O que vocês percebem que aprendem quando se comunicam por escrito pela internet – o que
aprendem sobre vocês mesmos, sobre os outros, sobre as relações humanas, sobre a escrita, sobre a
escrita neste tipo de materialidade que é a internet, sobre o que ela revela e/ou esconde, sobre os
diálogos, sobre os monólogos, sobre... qualquer coisa?
... e se vieram essas respostas sobre “não seis”; se veio a sua resposta, Glória (muito semelhante a
algo que você também disse, Vanessa), de que o que você aprende é o mesmo que na vidinha real,
que a ferramenta só aprimora o que a mão que a usa sabe fazer de melhor; e se vieram outras
tantas reflexões importantíssimas sobre os processos envolvidos nesse tipo de interlocução, que,
entretanto, não diziam respeito ao processo pessoal de seus autores, sim, o mais ajuizado seria pôr
o foco no que se evidenciava como mais relevante: a voz, a palavra dita, a contribuição de cada
um.
E então, como pesquisadora, passei a valorizar igualmente não apenas os aprendizados, mas o que
cada um de vocês tinha a dizer sobre o tema da pesquisa: a experiência de escrita no espaço virtual
– a despeito de, às vezes, não ser a própria experiência somente.
Em seguida, atenho-me mais a fragmentos dos depoimentos de vocês em que o processo pessoal
não foi abordado exatamente como tal, em si, mas é o pano de fundo (pelo menos assim me
pareceu) de tudo o que foi dito.
Você, por exemplo, Ingrid, diz assim:
137

Na internet não se tem controle sobre o impacto causado do outro lado, se bom ou ruim, ou como
será interpretado. A forma com a qual nos expressamos pode modificar profundamente o resultado
que esperamos no plano coletivo.
Com certeza!
Você, Vanessa, de modo peculiar, faz uma analogia muito interessante – e inesperada – da
interlocução online com a leitura de um livro:

O diálogo possível na internet é mais ou menos como ler um livro e dialogar com ele. Mas com o
outro presente ali, que responde as suas perguntas e te coloca outras, traz algo mais vivo, constrói
junto, do lugar que ocupa.
É potente essa sua ideia de que o diálogo possível é meio como uma leitura interativa, com a
presença de um outro solidário.
Também sobre esse tipo de diálogo falou você, Margareth:
A grande sacada da aprendizagem na internet é justo essa: o que acontece em nós, com ou sem
interlocução... Porque alimentamos esses diálogos conforme podemos, de onde estamos, com as
ferramentas que temos, da perspectiva que enxergamos.
Sim! Porque os dedos que pressionam os teclados são parte constitutiva de um sujeito que faz
escolhas o tempo todo, a partir de sua história, de suas necessidades e expectativas, de onde os
seus pés pisam. Um sujeito feito de passado, futuro e presente e que nesse meio tempo vai se
presentificando, vai se fazendo e se refazendo continuamente na relação com o outro.
Então você evidencia, Hélida, que é mesmo um sujeito que está no comando das teclas, claro,
quando faz afirmações do tipo:
Há amigos virtuais com quem se troca coisas muito profundas e que configuram uma relação afetiva
forte; há interações familiares, demonstrações de carinho e gratidão de uns pelos outros; encontros
fora da rede com velhos conhecidos reencontrados na rede. E as demonstrações de afeto especial
melhoram a autoestima e autoimagem. É possível rir às gargalhadas e estar em embates afetivos nada
fáceis, por vezes magoantes.
É preciso aprender a se comportar como ser ético e não ferir as pessoas; como ser seletivo, ao mesmo
tempo sem deixar de ser atencioso, principalmente com os que nos requisitam; controlar a tendência
a opinar, dar palpites. E também cuidar de página, pequena tribuna daquilo que quero contar sobre
o que sinto e penso.
Tudo acontece no virtual como ocorre na vida real, e às vezes melhor, porque é possível dimensionar
mais gente nesse social virtual e interagir de forma profunda com pessoas que não se conhece do que
em uma situação presencial quando acabamos de conhecer alguém.
O uso do facebook por vezes exige autocontrole, porque “vicia”.
As formas de comunicação online, como você lembra muito bem, exigem um aprendizado dos
códigos, das normas de convivência e de como apresentar a página que é um suporte para o que
desejamos contar sobre o que sentimos e pensamos. A pequena tribuna, como você diz, Hélida, é
portadora de nós, de uma parte de nós. Não é?
E você, Cristina, com esta sua preocupação, fez-me pensar em algo que nunca havia me ocorrido
e que achei de grande importância:
Se o futuro do mundo for a comunicação virtual, teremos que aprender a “acolher” virtualmente
também. Se esse tipo de comunicação esconde inseguranças, incertezas, dúvidas, medos, penso que
precisamos ter respostas virtuais para tudo isso também.
É uma linda conclusão.
138

Sobre a questão do empoderamento, que Marquinhos comentou de dentro de sua experiência


pessoal, também falam vocês, Hélida, Patrícia e Maíra. De diferentes perspectivas.
Você, Hélida, quando compartilha esta sua observação:
Na internet o tempo todo rolam as notícias mais importantes sobre a conjuntura nacional e mundial.
Isto é ótimo, pois quase não vejo TV e leio pouco jornal, portanto atualizo-me inevitavelmente.
Outras atualizações são sobre cultura. Aprendi a apreciar novas músicas e recordar preciosidades das
velhas produções. Ver dicas boas de filmes, teatros e outros acontecimentos.
Você, Patrícia, quando confessa:
Já tinha em mim todas as alegrias do mundo em escrever, agora tenho construído as alegrias do
mundo em compartilhar esses escritos, receber respostas que alimentam novas escritas.
E você, Maíra, quando afirma, sem nenhuma ilusão, que o poder que se conquista não é “só para
o bem”. De fato. Concordo contigo.
Na internet há uma incrível facilidade de disseminar ideias, posições, criações em tempo recorde,
sem grandes pré-requisitos, sem prévia “avaliação por pares”, a baixo custo. Todo mundo pode ser
intelectual, artista, escritor, fotógrafo, film maker, o que quiser. Basta ter um computador, uma
câmera digital, um teclado, alguma ideia na cabeça e o impulso de se mostrar ao grande/pequeno
público. Não precisa passar por editores, audições, bancas, pelo crivo de uma “autoridade”. Para o
bem e para o mal.
Nessa mesma perspectiva do empoderamento, e destacando que há uma face negativa que não
se pode desconsiderar, também vocês escreveram, Margareth e Cristina, e julgo importante
retomar aqui.
Você diz assim, Margareth:
No mundo da internet, uma pessoa talvez possa se sentir mais dona, digamos assim, de sua própria
história, pelo fato de poder “controlar” melhor, talvez, os limites dos relacionamentos ou das
“partes”, “faces” de sua vida que pretende compartilhar... Uma vida meio inventada... É como se as
pessoas pudessem parar para prestar mais atenção à própria existência... E dane-se aquilo o que possa
parecer romanceado, imaginado, sonhado ou de fato vivido, a partir das publicações das pessoas...
Afinal, enquanto as pessoas publicam zilhões de fotos, músicas, escritos... ali, ali mesmo, naquele
tempo real em que estão publicando suas histórias, do ponto de vista que mais lhe agradam ou que
sonharam, pudesse ser assim, estão vivendo aquilo... E pouco importa se, ao saírem de sua janela
virtual e derem de cara com sua sacada, num dia cinzento, a vida perca um pouco daquela cor toda...
Tudo isso, é claro, guardadas as devidas proporções entre o saudável e a absoluta fuga da realidade.
É mesmo... Essa é a face positiva que diz respeito a uma qualidade de vida emocional, ao que tudo
indica, melhorada. Se os autores dessas narrativas de si não passarem a acreditar que elas
coincidem exatamente com a vida como um todo, talvez elas lhes tragam benefícios traduzidos em
maior estima por si mesmos, em maior poder assumido pessoalmente, por exemplo.
E aí, considerando essa questão do poder assumido – agora, negativamente –, o que Cristina
comenta é da maior importância, porque diz dos efeitos de uma formação ideológica que hoje
acontece, por obra dos que assumem, sem editores convencionais, o poder de produzir opinião
pública discriminatória e preconceituosa, servindo-se das vantagens da multiplicação acelerada e
da ausência de mecanismos de controle. O que temos visto com muita frequência é a fabricação
em larga escala e a ampla disseminação de visões de mundo desprovidas de respeito humano e de
ética, o que afeta especialmente os adolescentes. Nesse sentido, Cristina, o seu depoimento é, como
se costuma dizer, “um soco no estômago”:
Tenho me comunicado com alguns (ex) alunos pelo facebook ultimamente. Esse processo tem sido
uma viagem, porque tenho me dado conta do quanto conhecemos nossos alunos só enquanto são
“nossos”... Estou aprendendo a olhar esses alunos, meninas e meninos, com um olhar diferente de
139

quando olhava para eles anos atrás, (...) porque mudaram, se fizeram e se constituíram como
adolescentes... Nos diálogos comigo, continuam sendo aquelas crianças que gostavam de brincar...
Mas o que procuro compreender “no durante”, entre 2008 e agora, está em suas páginas das redes
sociais. A constituição de adolescente veio carregada de certezas, intolerância, descaso, falta de
amizade e outras coisas que percebo em cada post que publicam. Procuro encontrar tudo o que
construímos antes... Os amigos da época não existem mais, são alvos de críticas ferrenhas, zombarias
constantes e de palavrões e violência para defender suas verdades, seus ídolos, seus times de futebol.
As meninas deixaram há muito de ser princesas, e isso é bom, mas se aproximaram, e muito, da
barbárie, ao defender um tipo de homem sem respeito e, ao expor a mulher que para elas não é
perfeita, esquecem-se de que expõem a si mesmas. Para defender suas verdades e ídolos, seu modo
de viver, pensar e olhar o mundo, estão longe da humanização. Claro que quando penso nisso não
posso deixar de pensar que esses adolescentes também se constituíram nesse meio, nesse novo
modelo do capitalismo, com a globalização e as redes sociais.
As crianças de 2008 (...) esqueceram-se dos amigos, do respeito às diferenças, de que todos têm
direito e, principalmente, que se a cor amarela for a minha preferida, todos têm direito a preferir o
verde, o azul e até o cinza, porque como pessoas humanas têm gostos diferentes, ainda bem! Acho
que a escola e os pais não perceberam ainda que as redes sociais são mais fortes que as TVs ou o
Rádio, e que são elas que estão ‘educando’ nossas crianças.
Quando li o seu texto pela primeira vez, Cris, foi de um fôlego só e com aquela sensação ruim no
corpo. Porque, claro, nós estamos vendo, não é de hoje, o que circula pelas redes sociais e como
vão se constituindo rapidamente visões de mundo muito conservadoras, retrógradas, reacionárias.
Mas é muito mais arrebatador conhecer os efeitos desse processo a partir da voz de uma professora
comprometida com a formação ética de seus alunos, que narra como tem sido a experiência de
reencontrá-los algum tempo depois, ouvi-los e acompanhar suas páginas na internet.
Nesse caso, o empoderamento dos que fabricam esse tipo de opinião pública desprovida de
qualquer ética que possamos considerar razoável é diretamente proporcional ao enfraquecimento
dos valores que consideramos “do bem”. Daí, talvez, venham os piores efeitos da comunicação
online.

Então volto outra vez para as suas ponderações, Margareth:


Não sou capaz de dizer o quanto passei por um processo de estranhamento em relação a esse
movimento todo de comunicação escrita, mas posso afirmar que sempre olhei pra esse caminho que
a linguagem escrita vem percorrendo neste mundo dito virtual, tão real e vivo, com uma paixão ao
revés... Uma espécie de encantamento pela liberdade material que a escrita vem ganhando,
acompanhada, casada mesmo, e por outras linguagens absolutamente possíveis e legítimas. Talvez
seja essa questão da liberdade de escrever (...) o que mais tem me encantado e inquietado... Não
pelos produtos, cada um, em si, mas pela liberdade que me sugere as múltiplas possibilidades de
criação... para o bem e para o mal.
E você conclui o seu pensamento a esse respeito com duas perguntas muito oportunas:
As redes sociais reproduzem, reforçam, inibem crenças, valores e costumes comungados fora dela?
Ou as redes sociais deflagram mais fortemente as incoerências subjetivas e quase invisíveis que
vivemos em nosso cotidiano?
Quais seriam as respostas, não é? Ainda não sabemos ao certo... Mas acho que já percebemos que
a participação no espaço virtual amplifica consideravelmente certas dimensões da existência que
existiam no real de até então.
Então você nos lembra, Selma, de que é preciso entender a relação das crianças e jovens com esses
meios para conseguir fazer a mediação necessária:
140

Os processos educacionais formais e informais requerem hoje investigação e compreensão sobre


como as crianças e jovens lidam com esses meios de comunicação para que haja mediação possível
quando o propósito é a construção de conhecimento.
É mesmo verdade: os modos de aprender, de se comunicar e de se relacionar estão se
transformando. E sabemos muito pouco a esse respeito. Estamos mais ou menos como os peixes
que, mergulhados na água, não sabem o que ela de fato é.
Não por acaso deixei para o final desta parte um fragmento de seus muitos escritos, Masson, que
agradeço especialmente não só porque concordo por inteiro, mas porque é uma conclusão
redondinha, que eu não seria capaz de elaborar tão bem. Além disso, preciso me redimir contigo;
enfim, aqui, depois de mais de três décadas, você é, sim, um revolucionário! E, para os demais
leitores, vai uma nota de rodapé, explicando a razão desse comentário reparativo39.
O que me interessa nessa história é a possibilidade que temos hoje de acessar e interagir nos domínios
do conhecimento humano e, mais ainda, de acessar pessoas, seus mundos, outros mundos, outras
histórias outras teses e teorias sobre o mundo que queremos e os mundos que os outros querem.
Podemos fazer filme, música, estar ali e aqui ao mesmo tempo e fazer a diferença. Isso, a meu ver,
tem sido uma revolução e tanto. Se vai servir para que nosso mundo seja melhor, mais humano, mais
generoso e interessante também não sei. Pode ser para qualquer lado. Vou continuar torcendo para
que seja o lado que eu tenho certeza que é o melhor, para mim e para todos.
Vou continuar torcendo também, meu amigo!
Por fim, refiro-me agora a vocês, demais colaboradores não citados nominalmente nessa parte até
agora: Adriana Alves, Ana Sixx, Araguaí Garcia, Edenilde Bezerra, Elisabete Semeghini, Heloísa Dias
Martins Proença, Jozelia Regina Segabinazzi, Kathia Diniz, Maria Angela Pinheiro, Maria Teresa
Esteban, Paula Maria Scarlatti, Sílvia Palaia, Tânia Villarroel e Zilda Pavão. E também a Dalmo Ribas,
que, embora integrante do grupo original de sujeitos, não escreveu um depoimento em resposta
à minha solicitação, mas ficou espalhando ocasionalmente afirmações como esta pelo facebook,
que tomei como sendo para mim:
Hoje, sei que emprego os mesmos nomes, as mesmas palavras e conceitos para definir coisas
diferentes; a consciência de tais barbarismos foi se construindo como a autopercepção do meu rosto
ao conversar comigo mesmo, viva voz, diante do espelho. Assim tem sido reaprender a escrever,
nomear, semantizar nesse solilóquio que vai se tornando grafia na lousa cibernética conhecida por
Internet. Ficou mais fácil conhecer minhas representações; ficou mais difícil entendê-las. Talvez seja
uma fase...
(Era para mim, não era Dalmo?!)
Queridos colaboradores agregados no percurso, quando vocês disseram o que pensavam-sentiam
ao ler e escrever as des|amorosas, ajudaram-me a entender o que eu imaginava, mas não
conseguia direito alcançar: o efeito desses textos intimistas em certos leitores.
Já comentei anteriormente o quanto esse projeto, que nem estava previsto como fonte de dados,
acrescentou à compreensão do tema da pesquisa pelo fato de ser portador de uma experiência
compartilhada, que traz outras dimensões do processo de interlocução por escrito na internet não

39
Masson e eu somos os protagonistas desta história que registrei em 2012 (ele, o que chegou, e eu, a mocinha, claro),
depois de trinta anos, na forma de des|amorosa:
“Chegou meio esbaforido à reunião dos companheiros que acertavam os rumos da revolução, com um atraso de meia
hora por conta de uma noite de amor. A mocinha que coordenava a conversa, no salto de sua petulância, virou-se pra ele
e disse: ‘Ah! quer dizer que é assim? Viu que horas são, por acaso? Pois saiba que desse jeito vamos muito mal: com esse
tipo de atitude, o companheiro mostra que não é um bom revolucionário!’. Precisou passar mais de trinta anos para que
tirassem isso a limpo, em uma festa. Sim. Em uma festa. Porque a revolução continua inalcançável, como que pendurada
na aba do chapéu: conforme eles andam, ela vai sempre um pouco mais para o futuro. Ou para o passado, talvez...”
[Rosaura Soligo]
141

abordadas nos depoimentos do grupo inicial, uma vez que nesse caso cada um tratou da própria
experiência e não da participação em um projeto comum.
Assim, depois de conviver por muito tempo com a intuição de que era preciso considerar os
depoimentos de vocês como fontes de dados importantes e com a falta de clareza de como
proceder, acabei chegando à conclusão de que era necessário reuni-los de uma forma diferente. E
surgiu então a ideia da composição – um relato em primeira pessoal do singular, a refletir, de algum
modo, o pensamento manifesto por cada um, a partir de sua própria experiência pessoal. Essa ideia
foi se constituindo assim, conforme comentei antes, porque alguns de vocês afirmavam que as
des|amorosas são histórias a dizer, por vezes, tão completamente o que pensamos-sentimos que
chegamos a achar que é como se elas fossem nossas. O escrito final é, por assim dizer, uma narrativa
mestiça, que eu assino como autora da composição, mas os textos reunidos são de vinte e um
autores – os citados há pouco e também Adail, Adriana Pierini, Cristina, Hélida, Margareth, Patrícia
e Vanessa, que participaram dos dois grupos.
Ainda que esteja destacada no início da tese, penso que sua formulação, Adriana Pierini, é muito
pertinente também aqui, para explicar esse processo de “dizer tão completamente”, quando o que
parece mesmo é que os textos são de nossa própria autoria.
Você diz que, no seu caso, isso acontece não propriamente por admiração pelo autor; nem mesmo
pelo sentimento bom de se deparar com uma escrita que acolhe, quando as palavras vêm ao
encontro de algo que precisamos, ou acreditamos, ou defendemos; tampouco porque o texto
mobiliza, inquieta, remeta a pensar sobre o que fazemos, sobre como agimos em determinado
contexto... Você afirma que esse fenômeno é diferente, é uma espécie de “autoria apropriada” que
não passa pelo sujeito-escritor ou pelo objeto-escrita, mas muito mais – ou tão somente – pelo leitor
que vive um processo de – por assim dizer – apropriação do ato de escrever.
E conclui lindamente que,
A ideia da apropriação da autoria, portanto, diz respeito a duas dimensões distintas, que se
compõem. Uma delas se refere ao que podemos chamar de conteúdo da escrita, que se relaciona
a um determinado contexto, quando tenho a percepção de que escreveria aquele texto daquela
maneira porque aquela ideia expressa algo (uma opinião, uma emoção, uma crítica...) que naquele
contexto exatamente expressa meu desejo. A outra refere-se à forma, aos modos de escrever,
quando me alinho aos mesmos recursos de escrita utilizados por um “escritor outro”, marcando
determinado estilo, delineando características próprias, a despeito dos sentidos criados no ato de
ler (Pierini, 2014).
Claro que isso que você explicita, Adriana, nem sempre ocorreu com os simpatizantes das
des|amorosas. Pode ser que alguns de fato se identifiquem com os autores e/ou com os textos ou
com ambos. Pode ser que outros sentissem assim como você e nem soubessem, vindo a ter essa
consciência apenas ao ler o que você escreveu. A voz de todos eles, cada qual com suas respectivas
explicações, compõe o coro a que achei oportuno chamar de “Des|Amorosas – ou Como é possível
nascer um nós”.
A escuta desse coro, muitas vezes, provocou em mim a vontade emocionada de uma retribuição,
que faço agora:
142

E de repente nasceu uma comunidade de escritores

Queridos,
Quando inventei esse projeto a que chamei Des|Amorosas, meu desejo era convidar ao texto as pessoas
que não escrevem ou que escrevem pouco por achar que não têm nada importante o suficiente a dizer,
que valha um registro e uma publicação.
Era dezembro de 2010 e, na época, eu jamais poderia imaginar que essa ideia, a princípio meio modesta,
se viabilizasse tão completamente e, passados anos, ainda tivesse essa vitalidade toda que ainda hoje se
vê, em 2015. Mais de uma centena de pessoas se animaram a escrever histórias de amor e desamor,
reais ou fictícias, que somam hoje 855 textos, a meu ver, admiráveis.
Nunca me ocorreu que eu fosse acabar assistindo, quase sempre em silêncio, alguns de vocês a processar
os sentimentos mais fundos ao escrever as pequenas histórias, fragmentos ficcionais, alguns de uma frase
apenas, quase sempre na terceira pessoa e em tom literário. Histórias inventadas sim e, talvez, muito
mais ainda, histórias da experiência, com as paixões, angústias, perdas, conquistas, tudo.
Isso, que sinto ser o melhor desse projeto coletivo, devo dizer que não estava no script.
Olhando “daqui”, tive certeza muitas vezes de que a escrita era, como diria Clarice Lispector, uma
salvação.
Se eu nunca tivesse me metido em nenhuma outra iniciativa de incentivo à escrita, essa experiência por
si só bastaria para a minha satisfação não apenas por me fazer feliz, mas por reafirmar, mais uma vez, a
convicção de que a militância para que todas as pessoas assumam a palavra e escrevam seus próprios
textos vale muito a pena. Porque o efeito desse tipo de escrita é empoderante. E isso não tem preço.
No início da tese, quando apresentei em linhas gerais os marcos conceituais da pesquisa, citei Guilherme
do Val Toledo Prado e a mim mesma40 para fundamentar a questão da escrita. Quando publicamos o
livro “Porque escrever é fazer história”, em 2005, dissemos logo na apresentação que a reflexão por
escrito pode ser um dos mais valiosos instrumentos para aprender sobre quem somos nós e também
uma forma de nos livrar, de algum modo, da exclusão. Exclusão provocada pelo anonimato das ideias,
das opiniões, dos pensamentos – o que é incompatível com o direito de autoria, passaporte para o
mundo dos senhores das palavras, dos atores que protagonizam a cena, dos fazedores de história, esse
mundo pelo qual tanto lutamos!
Afirmamos que o registro da experiência pode ser, ao mesmo tempo, uma atividade de risco, uma arma
poderosa e um ato de generosidade. Sim, porque não é fácil se expor; porque as palavras quando lidas
têm consequências; porque compartilhar o que pensamos, sentimos e fazemos pode ser uma atitude
humanizadora, para o outro e para nós mesmos, ao revelar nossas semelhanças, nossos traços comuns,
nossas fragilidades. Defendemos que a escrita precisa servir a uma finalidade poderosa, responder a
uma (pelo menos uma) necessidade da qual não se pode fugir, satisfazer um desejo, muitos desejos de
preferência. Ousamos dizer que escrever pode mesmo nos fazer muito melhores. E que não há nada
que possa substituir nossa própria experiência de escrita. Essa é uma experiência intransferível.
Incomunicável. Pessoal. Única. Cada um terá de assumir o desafio, com todas as dores e delícias que
ele traz.
Ler as des|amorosas escritas por vocês e depois os seus depoimentos sobre a experiência de leitura-
escrita desses textos me fez crer que talvez muitos concordem com essas posições que Guilherme e eu
defendemos há bem mais de uma década.
Pensei isso por causa de afirmações assim como estas, de vocês: “escrever des|amorosas é uma espécie
de orgulho, que faz com que eu me sinta parte do encanto, do encantamento, da encantadora – esse
pertencimento faz com que eu me sinta mais gente’; “de certo modo minha vida mudou quando comecei
ler-escrever esses textos”; “para escrever – embora eu goste bastante – é preciso uma certa coragem e
também é preciso de coragem para tornar nossas escritas públicas, porque também nos revelamos pela

PRADO, G. V. T.; SOLIGO, R. Porque escrever é fazer história – Revelações, Subversões, Superações. 2ª. ed.
40

Campinas, SP: Editora Alínea, 2007.


143

escrita. E se for uma escrita não formal, tentativas de literatura como temos experimentado, de exaurir
sensibilidades, a exposição fica maior ainda”; “cada dia mais encontro na escrita uma possibilidade de
reflexão mais aprofundada sobre as questões que perpassam minha vida – escrever e depois reler o
escrito, por vezes em tempos diferentes, ajuda-me num diálogo que primeiro é comigo (já considero
esse diálogo uma interlocução fundamental, pois ajuda a me conhecer melhor), e depois, mas não menos
importante, com tantos outros”.
Percebem o quanto essas são reflexões potentes sobre a própria experiência?! Só tenho a agradecer a
todos vocês, que não se furtaram ao convite para serem de fato colaboradores neste projeto de
compreensão de uma questão que inicialmente era apenas minha e que, no percurso da pesquisa, passou
a ser de muitos.
Em minha banca de qualificação, o Professor Carlos Skliar comentou – e ele tem mesmo razão – que
identidade, intimidade e alteridade são dimensões que se misturam nas escritas desta tese. Disse ele que
a intimidade é como se fosse o segredo da identidade e que, ao dizer do outro, cada um de nós diz
também de si próprio, o que sem dúvida constitui um tipo de alteridade. Acho isso também.
Apesar de as des|amorosas serem, quase sempre, relatos em terceira pessoa do singular, reparem só
nestas afirmações que vocês fizeram em seus depoimentos: “algumas coisas íntimas precisam ser ditas
de alguma forma porque estão em nós e vão nos enchendo por dentro; se o sentimento for de dor, nos
enchem de dor de um jeito que falta espaço para outras sensibilidades, como as de prazer e alegria;
escrever então é um jeito de esvaziar, de abrir espaço para se encher de outras coisas e depois ter
necessidade de esvaziar de novo e e e...”; “ao escrever essas histórias, os sentimentos íntimos afloram e
nos surpreendem – é uma experiência sensível que dá sentido e corpo a sentimentos vagos”; “ao
escrever, consigo tirar lições da situação e, colocando-me num lugar distanciado, perceber encantos e
desencantos também”; “escrever, no fim das contas, é mais um instrumento para dar a ver ao mundo o
que somos”; “tem muitos outros inscritos quando escrevemos – todos os outros que de alguma forma
dialogam conosco, na vida”; “escrever de|amorosas tem sido, antes de qualquer coisa, escrever para
mim”.
Ao ler as “confissões” que se seguem, fui me dando conta do quanto, de uma forma muito mais intensa
do que a habitual, a leitura dessas histórias se mescla com um processo simultâneo de produção de
textos pessoais: “tem horas que parece até que fui eu a escrever”; “vemos que tem gente que pensa como
nós, que pensa diferente, que pensa melhor naquele aspecto e nos percebemos mais humanos, iguais e
diferentes!”; “como uma janela aberta pra diferentes paisagens, esses textos trouxeram as angústias,
dúvidas, alegrias, incertezas de muitos... e eu me vi normal, não alienígena, mas alguém que se debate
nessa imensidão de sentimentos que muitas vezes nos afogam e que nem por isso deixa de nadar,
atravessar mares e achar as turbulências deliciosas...”; “quando leio os textos dos outros, me enxergo nas
palavras/vivências alheias e, assim, aprendo/penso/reflito sobre mim a partir da experiência do outro;
tudo isso possibilita um autoconhecimento, potencializa um crescimento pessoal, é uma tomada de
consciência de como aprendo o que aprendo; conheço um pouco mais sobre mim e sobre o outro e
sobre as relações que estabelecemos”; “muitas vezes não me vi ao reler algum texto meu, outras muitas
me vi em profundidade numa história que não era minha, pelo menos a princípio; há algo de humano
que nos une a todas as pessoas: a vontade de ser amado e todos os percalços que enfrentamos nesta
busca heroica – que já não importa se definitiva ou passageira, pois é isso que faz a vida valer a pena!”.
Mais uma vez, eu fico aqui pensando: como não amar? Quanto pude aprender e reaprender com vocês!
E como tudo isso que estou citando já foi dito, até mais completamente, em algumas páginas atrás, na
narrativa composta a partir dos textos de vocês, não vou ficar repetindo. Mas relaciono a seguir as razões
apresentadas por vocês quando disseram dos efeitos da experiência de se sentirem em comunidade ao
participar do grupo de leitores-escritores de des|amo8rosas.
Foram estas: o sentido de pertencimento a uma comunidade de gente que ama a leitura, a escrita, as
histórias pessoais e a comunicação com o outro; os encontros que acontecem nesse “lugar” e o clima
amigável, carinhoso, que cria intimidade e convida à troca, a escrever, a ler, a comentar, a refletir em
silêncio, a sentir e a sentir-se parte de um grupo de (des)conhecidos; o acolhimento e a certeza de que
os escritos pessoais podem contribuir para encorajar o outro a escrever, para ajudá-lo a refletir; a
possibilidade de conhecer melhor o lado mais humano do outro; perceber-se no texto do outro, o que,
144

por vezes, produz um efeito terapêutico; sentir-se numa conversa contínua, em que uma história puxa
outra e são compartilhados sonhos, experiências, decepções, esperanças, descobertas; ficar “próximo”
de quem jamais se viu, se emocionar com o seu escrito, partilhar esses momentos únicos de emoção e
humanização.
Por fim, acrescentando ao que Marquinhos já comentou lindamente sobre o processo de
empoderamento pessoal trazido pela comunicação online, de sentir-se “com”, eis aqui o que considerei
evidências desse movimento subjetivo nos dizeres de vocês, com outros sentidos: “meu horizonte se
ampliou, minhas possibilidades de pensar, minha energia e minha saúde também: escrever
des|amorosas me fez perceber o quanto eu poderia ir mais longe, poderia voar, tinha essa sede e, por
isso, foi um divisor de águas, na verdade”; “quando alguém gosta ou comenta aquela ideia que brotou
na nossa cabeça e colocamos para fora é muito gratificante”; “às vezes contamos, por escrito, fatos não
revelados a quase ninguém”; “é uma experiência única esta: desabafar, tirar de nós algo que nos prendia,
nos liberta de algum modo e vemos que aquilo que nem sempre conseguimos compartilhar com o outro
é possível pela escrita de uma des|amorosa”; “aqui é um lugar em que me emociono com as palavras
de outros, que nem conheço, mas tem essa vontade, também, de se libertar pela palavra”; “não posso
dizer que foi a participação neste projeto que exatamente me modificou... as pessoas foram me
provocando com os seus textos e fazendo com que eu repensasse posicionamentos sobre minhas
atitudes, sem que tivessem essa pretensão – elas apenas vieram, desarmadas, com suas histórias... e isso
funcionou muito mais do que sessões de terapia ou passeatas em grupo”.
O que aqui se colocam são aspectos um tanto diferentes dos que Marquinhos abordou, porque dizem
respeito a uma perspectiva que se atravessa na experiência compartilhada de leitura-escrita de textos
sobre nossas pessoalidades, nossas humanidades, nossas coisinhas mais íntimas. Praticamos nas
des|amorosas uma “escrita de si”, quase sempre fantasiada de terceira pessoa do singular.
E preciso lhes dizer, meus caros, que é muito impressionante o nível refinado de autorreflexão praticado
por vocês. Às vezes, é de tirar o fôlego!
Para finalizar este meu agradecimento à generosidade de todos, peço licença para fazer um plágio
descarado e, no parágrafo abaixo, tomar como minhas palavras ditas por alguns de vocês:
O fato é que nos aproximamos pelo texto, pela escrita e pelos ditos dos escritos. A escrita mesmo era
uma desculpa pra eu me relacionar. O que é, afinal, que faz com que alguém se identifique ou não com
o que eu escrevo? E o que faz com que eu mergulhe tão fundo em sentires e palavras de alguém que
por vezes nem conheço presencialmente? A cada texto que leio, sinto que a proximidade de
sentimentos, emoções e experiências nos tornam realmente próximos, mesmo que nunca nos tenhamos
visto, assim dessa forma mais comum, com os próprios olhos. E é isso o que me encanta. Através dos
sentimentos uns dos outros, vamos nos reconhecendo e nos vendo espelhados nesses tantos textos.
Não me despeço aqui, porque seria um pouco estranho, já que continuamos nos encontrando por aí,
mas quero deixar registrado de público que vocês podem contar sempre comigo, caso precisem de uma
palavrinha solidária!
Um abraço amoroso, especial e sem pressa
da Rosaura
145

Outros fundamentos

O discurso capitalista é algo loucamente astucioso... anda


às mil maravilhas, não poderia andar melhor. Mas,
justamente, anda rápido demais e se consome41.
Lacan

Daqui por diante, passo a dialogar com as contribuições dos demais outros que me ajudaram a
compreender os temas que emergiram do processo de produção de dados: incluo agora os teóricos
que direta ou indiretamente abordam esses temas. Conforme comentei anteriormente, embora
outros sejam citados, os principais autores são Mikhail Bakhtin, Dany Dufour, Maria Rita Kehl e
Boaventura de Sousa Santos – respectivamente, dois filósofos, uma psicanalista e um sociólogo,
todos com um traço em comum que considero da maior importância: o fato de transitarem por
várias áreas do conhecimento.
Não serão retomados aqui todos os conceitos apresentados no início da tese, uma vez que penso
estarem bem localizados, suficientemente, por lá. Priorizarei o que diz respeito aos temas que
emergiram do processo de produção dos dados e que não foram tratados de forma explícita pelos
colaboradores da pesquisa em suas reflexões.
Começo com os movimentos e as formas de manifestação da subjetividade. Ou melhor, com o
contexto em que esses movimentos acontecem e essas formas se constituem. O que se segue nada
mais é do que uma breve análise destes tempos em que vivemos e algumas de suas consequências.
Nesse sentido, as ponderações assertivas do filósofo francês me pareceram um bom princípio.
Dufour (2010, p. 62), ao comentar a trilogia de que é autor – A arte de reduzir as cabeças, O divino
mercado e La cité perverse – aborda os efeitos da economia de mercado sobre outras dimensões
que ele chama de economias: a psíquica, a semiótica, a política e a simbólica. Afirma que todas se
encontram articuladas entre si e, para ilustrar, apresenta alguns exemplos, dos quais destaco o que
considero emblemático do contexto em que estamos imersos.
Segundo o autor, os efeitos da economia de mercado podem atingir dimensões que parecem, a
priori, contrárias a qualquer submissão às leis do mercado, como, por exemplo, a dimensão
psíquica, com uma saída do enquadramento freudiano clássico da neurose e uma entrada no
enquadramento pós-neurótico em que predominam a perversão, a depressão e o vício:
A perversão porque é a patologia mais adaptada quando se visa, em qualquer circunstância, um
jeito de ganhar, já que se trata de dar sempre uma volta no outro, de sempre desconfiar dele ou
de fazer dele um meio de sair vencedor. Assistimos também a pulsões de se apossar do outro, a
formas sugestivas de ostentação que se manifestam por vezes até nas mais altas esferas do Estado.
Quanto à depressão, resumindo, ela remete àquilo que acontece quando os indivíduos não
dispõem dos meios da perversão necessária e passam a degenerar ante os próprios olhos. Sabe-
se que hoje a depressão pode atingir 20 a 30% da população. Sabe-se, por outro lado, dos lucros
que a indústria farmacêutica aufere com essa patologia. Quanto ao vício [uso abusivo de drogas],
é a consequência lógica de um mundo que promete a satisfação pulsional generalizada. É
exatamente isso a economia de mercado, uma vez que o mercado é aquele que oferece sempre
um produto, um objeto, um serviço, um fantasma, capaz de satisfazer qualquer que seja o apetite.
(2010, p. 64)

41
In Conferece à l’université de Milan, 12 de maio, 1971, inédito (citado por Dufour, 2005).
146

Afirma também que:


Da mesma forma que no intercâmbio mercantil é preciso ganhar a qualquer custo, na troca
discursiva é preciso dar a última palavra. É o triunfo dos sofistas, da esfera dos comunicadores e
do storytelling management, que corresponde à arte de contar às pessoas histórias que elas
querem ouvir. (p. 64)
E conclui:
Hoje são, então, todas as nossas economias – aquelas nas quais vivemos – que estão doentes. A
consequência é inevitável: nossa geração foi “sacaneada” pelo Mercado e a de nossos filhos está
seriamente arriscada a ser mais ainda, se não fizermos uma intervenção – e já dispomos de alguns
sinais inquietantes. (p. 64)
Dufour explica que as consequências se espalham em várias esferas, dentre elas a relação consigo
mesmo, com o outro, com o transcendental, com o político, com o saber, com a lei, com a arte, com
o inconsciente...
E, em relação a essas esferas, exemplifica com dez “mandamentos”, dos quais destaquei apenas
três, por considerá-los inclusores dos demais:
“Aceitarás ser conduzido pelo egoísmo... e farás parte tranquilamente do rebanho dos
consumidores!”
“Utilizarás o outro como um meio para alcançar teus fins!’
‘Poderás venerar todos os ídolos à tua escolha, contanto que adores o deus supremo, o Mercado!”
O uso de “mandamentos”, nesse caso, acentua a gravidade desse processo complexo que o autor
pretende evidenciar. Mas esse recurso irônico é muito pertinente para desnaturalizar o que, cada
vez mais, vai se impondo na realidade como posturas naturais diante da vida, do mundo, do outro,
de tudo.
Dufour (2005, p. 10-11) diz que o capitalismo consome o homem, que é bem possível perdurar
uma discreta antropofagia sob o progresso e que a grande novidade do estágio neoliberal em que
nos encontramos é a redução das cabeças, a redução dos espíritos. O autor defende que estão
perdendo rapidamente o contorno (ele fala, por vezes, que estão em extinção acelerada, mas não
sei se concordo por inteiro com essa ideia radical) as formas filosóficas modernas de sujeito que
têm sido referência para pensarmos nosso estar-no-mundo – o sujeito crítico, submetido ao
imperativo moral da liberdade, nascido nos anos 1800 por obra de Kant, e o sujeito neurótico, preso
na culpabilidade compulsiva, nascido cem anos depois por obra de Freud.
Segundo ele
Hoje os homens são solicitados a se livrar de todas sobrecargas simbólicas que garantiriam
suas trocas. O valor simbólico é, assim, desmantelado, em proveito do simples e neutro
valor monetário da mercadoria, de tal forma que nada mais, nenhuma outra consideração
(moral, tradicional, transcendente, transcendental...) possa entravar sua livre circulação.
Daí resulta uma dessimbolização do mundo. Os homens não devem mais entrar em
acordo com os valores simbólicos transcendentes; simplesmente devem se dobrar ao jogo
da circulação infinita e expandida da mercadoria. (...) Essa mutação radical no jogo das
trocas traz consigo uma verdadeira mutação antropológica. A partir do momento em que
toda garantia simbólica das trocas entre os homens tende a desaparecer, é a própria
condição humana que muda. (...) O neoliberalismo, como todas as ideologias
precedentes desencadeadas durante o Século XX (o comunismo, o nazismo...), quer a
fabricação do homem novo. Mas a grande força dessa nova ideologia com relação às
precedentes diz respeito a que ela não começou por visar o próprio homem por meio de
programas de reeducação e de coerção. (...) A nova montagem do indivíduo se efetua em
nome de um “real” no qual é melhor consentir do que a ele se opor: ele deve sempre
parecer doce, querido, desejado, como se se tratasse de entretenimentos (exemplos: a
147

televisão, a propaganda...). Bem cedo veremos que formidável violência se dissimula atrás
dessas fachadas soft. (p. 14-15)
Assim, sobre a transformação das formas filosóficas modernas de sujeito, Dufour conclui que nestes
tempos que vivemos, com esses contornos e tendências, não convém o sujeito crítico, submetido
ao imperativo moral da liberdade, tampouco o sujeito neurótico, preso na culpabilidade
compulsiva, mas sim um sujeito precário, acrítico e psicotizante, isto é, aberto a flutuações
identitárias, pronto para todas as conexões mercadológicas. Assim, o cerne do sujeito vai dando
espaço ao vazio do sujeito, um vazio, segundo o autor, aberto a todos os ventos...
Mas, a despeito dessa análise um tanto dramática, até mesmo ele afirma a convicção de uma
esperança, quando diz:
Em todo lugar onde há ainda instituições vivas, isto é, ali onde nem tudo ainda está
completamente desarranjado, nem esvaziado de toda a substância, há resistência a essa
forma dominante. Afirmar que uma nova forma de sujeito está a ponto de se impor na
aventura humana não equivale, pois, a dizer que todos os indivíduos vão sucumbir a ela
sem combate.
E, a propósito das resistências a que Dufour se refere, e para que não pareça essa apenas uma vaga
esperança esvaziada de acontecimento, transcrevo aqui fragmentos de uma palestra do jornalista
José Arbex na Universidade Católica de Salvador, em abril de 2015.
Começou sua fala assim:
Faço questão de lembrar, neste debate, um dado que nós costumamos não exatamente
esquecer, mas deixar de lado, não levar em consideração de forma suficientemente grave,
como na minha opinião deve ser levado, que é o fato de estarmos falando de uma história,
de um momento da história humana em que existe um bilhão de famintos na face da
terra. Esse é para mim o elemento definidor de qualquer discussão sobre a conjuntura
atual. Qualquer discussão que esqueça esse dado é, no meu entendimento, uma discussão
falsa. Porque um bilhão de famintos significa que hoje 1 em cada 7 seres humanos está
passando fome. Se somarmos famintos com desnutridos, o resultado é metade da
humanidade. É esta a humanidade hoje... Por outro lado, a Oxfam, uma organização da
Universidade de Oxford que pesquisa a fome, publicou recentemente uma estatística,
que para mim é o outro elemento definidor da discussão e que se não levarmos em
consideração estaremos fora de qualquer realidade: 85 famílias no mundo acumulam o
mesmo capital que metade da humanidade (ARBEX, 2015).
Mas finalizou sua exposição densa de realidade, citando acontecimentos históricos de efeitos
auspiciosos até nos mais pessimistas, eu acho:
Ainda bem que ninguém controla a história. Se alguém dissesse, em 20 de dezembro de
2000, que daí a poucos dias senhoras muito bem vestidas de classe média estariam
saqueando supermercados de Buenos Aires, e a população estaria na rua enxotando
deputados do Congresso argentino e que teriam quatro presidentes enxotados na Casa
Rosada em menos de três meses, seria considerado um louco incurável. E aconteceu
exatamente isso quinze dias depois. Se alguém dissesse, em outubro de 1989, que daí a
um mês cairia o Muro de Berlim, seria considerado igualmente louco. E quem previa
que em junho de 2013 ia ter dois milhões de pessoas na rua (nas Jornadas de Junho)? E
tinha! O que estou querendo dizer com isso? É que existem coisas acontecendo na
história que apontam soluções que não somos capazes ainda de prever. (ARBEX, 2015).
Penso que nessa mesma direção, das possibilidades, coloca-se Boaventura de Sousa Santos, que ao
comentar as conclusões de seu projeto de investigação “A reinvenção da emancipação social”, diz
assim:
Em primeiro lugar, a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada
do que o que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante.
148

Em segundo lugar, essa riqueza social está a ser desperdiçada. É desse desperdício que
se nutrem as ideias que proclamam que não há alternativa, que a história chegou ao fim,
e outras semelhantes. Em terceiro lugar, para combater o desperdício da experiência,
para tornar visíveis as iniciativas e os movimentos alternativos e para lhes dar
credibilidade, de pouco serve recorrer à ciência social tal como a conhecemos. No fim
de contas, essa ciência é responsável por esconder ou desacreditar as alternativas. Para
combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência
social. Mais do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade. Sem
uma crítica do modelo de racionalidade ocidental dominante pelo menos durante
duzentos anos, todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais
alternativas que se julguem, tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e
descrédito. (2002 p. 23)
Portanto, há que se produzir novos olhares para o real acontecendo em diferentes dimensões. Mas
não pretendo me estender numa análise detalhada do mundo contemporâneo, pois não é esse o
propósito desta tese. Inclusive, esses autores abordam aspectos diferentes, mas que considero
complementares e, desse ponto de vista, essenciais para ampliar, um pouquinho de nada talvez, a
nossa compreensão da realidade de onde emergem atualmente os movimentos e formas de
subjetivação e de manifestação da subjetividade – esse sim o tema em questão aqui.
Evidentemente este conjunto de quase quarenta pessoas composto por vocês – 23 do grupo
original de sujeitos e 14 do grupo de colaboradores agregados – não faz parte da metade
desgraçada da humanidade composta por famélicos e desnutridos. E, muito embora não façam
parte também das menos de cem famílias que dominam economicamente o mundo, vocês são
privilegiados em vários sentidos e sabem disso. Então, claro, as questões objetivas de sobrevivência
básica às quais Arbex se refere não dizem respeito diretamente a vocês – e nem a mim. Mas as
questões subjetivas destacadas por Dufour, produzidas pelo andar histórico da carruagem no
território econômico descrito de forma nua e crua por Arbex, dizem respeito a todos nós. Sim, os
processos contemporâneos de subjetivação se constituem no contexto objetivo de um mundo
capitalista em que se polariza metade da humanidade com as condições de sobrevivência
seriamente comprometidas e poucas famílias que acumulam capital equivalente a todos esses
bilhões de pessoas.
Na orelha de apresentação do livro “O tempo e o cão”, de Maria Rita Kehl, Adauto Novaes condensa
o que a autora aborda em diferentes momentos sobre o mundo contemporâneo, quando diz que
Tal como é hoje, este mundo nos propõe uma vida de automatismos de toda espécie,
ignorância, ingenuidade, inércia, fraqueza, velocidade, repetição (e sua insidiosa
intoxicação do mesmo), um estilo de vida que suprime ou deforma outros mundos
possíveis. (...) Vivemos o tempo da impaciência e da não reflexão. Mais: a vida moderna
transforma a fisiologia do nosso espírito, da nossa percepção e principalmente daquilo
que fazemos e do que se faz conosco a partir de nossas percepções.
E no interior do livro, reportando-se a Jacques Lacan e Theodor Adorno, Maria Rita Kehl discute os
efeitos desse contexto na constituição da subjetividade:
Os “meios combinados de agir sobre o psiquismo” a que se referia Lacan em 1947 –
quando dizia de uma “manipulação combinada de imagens e paixões já utilizada com
sucesso contra nosso julgamento, nossa resolução, nossa unidade moral, e que dará
ocasião para novos abusos de poder” – me parecem coincidir com o advento da indústria
cultural analisado por Adorno naquele mesmo ano do pós-guerra.
A diferença de parâmetros teóricos entre os dois autores não impediu que, nos anos
subsequentes, ao final da Segunda Guerra Mundial, tanto Lacan quanto Adorno tenham
se mostrado atentos à eficiente manipulação da subjetividade obtida por meio dos
chamados meios de comunicação de massas – limitados, na época, ao cinema e ao rádio.
149

A televisão já existia, mas sua expansão data da década de 1950. A definição dos meios
de comunicação como um conjunto de meios de agir sobre o psiquismo se aplica ainda
com mais vigor ao que veio a ocorrer nas décadas seguintes, com o advento da televisão.
Observem que Lacan percebeu que a manipulação das novas mídias, combinando
imagens e paixões, afeta as dimensões mais importantes da subjetividade. (...) Apesar das
diferenças conceituais no horizonte do pensamento desses dois autores, já se adivinhava
a transformação da indústria cultural em sociedade do espetáculo. (...) A indústria
cultural, segundo Adorno, realizou maldosamente o homem como um “ser genérico”
, como um “mero exemplar”. Como “mero exemplar” genérico da espécie ele é ao
mesmo tempo “todos” e ninguém. A um só tempo desamparado e desviado de sua
vida singular, torna-se disponível para o consumo de quaisquer novidades (...) fascinado
pelo cortejo das mercadorias. (p.288-291)
Essas ponderações, se concordarmos com elas, mostram que os processos de manipulação que
hoje vivemos não têm nada de propriamente novo, mas, com o advento da internet, sem dúvida
estão amplificados e potencializados – pós-modernizados, como diriam talvez os que discutem a
realidade atual dessa perspectiva.
No início da tese, apresentei algumas contribuições importantes de Maria Rita Kehl sobre a relação
que temos com o tempo em sua velocidade crescente, sobre os efeitos produzidos em nós pela
brutalidade desse tipo de relação. E, em palavras dela, aqui acrescento:
A depressão é a expressão do mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem-
adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo
e, como já se tornou chavão, do consumo generalizado. A depressão é sintoma social
porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e
ordena a vida social desta primeira década do século XXI. Por isso mesmo, os
depressivos, além de se sentirem na contramão do seu tempo, veem sua solidão agravar-
se em função do desprestígio social da sua tristeza. (p. 22)
O fato é que estamos atravessando mares difíceis e cada qual está tentando de algum modo
sobreviver à agitação das ondas para tentar chegar não se sabe bem onde, talvez – quem sabe? –
à Ilha Desconhecida.
Como será possível sobreviver?
Lembrando Nietzsche, Agamben (2009) faz uma interessante afirmação, que talvez nos dê alguma
pista:
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo aquele que
não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto,
nesse sentido, inatural; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento
e desse anacronismo, é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu
tempo. A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo,
que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias. (...) Aqueles que coincidem
muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a essa aderem perfeitamente
não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem
manter fixo o olhar sobre ela. (...) Gostaria de propor agora uma segunda definição de
contemporaneidade: contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo,
para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles
experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que
sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do
presente. (p. 58-59-62).
Seriamos, nós, os sujeitos desta pesquisa, esse tipo de personagem contemporâneo? Aquele que
não se confunde com o peixe que se confunde com a água do aquário por nela estar mergulhado
e não saber sequer que ela existe?
150

Teríamos nós a capacidade de olhar para a própria experiência e escrever mergulhando a pena no
que quer que seja o presente?
Poderíamos nós, em algum nível, ainda que ínfimo, produzir aquele tipo de possibilidade que
Boaventura de Sousa Santos (2002 p. 23) diz ser o movimento do mundo? Forjado nas faltas
manifestas, nas tendências anunciadas, nos devires?
Se for assim, e se tiver mesmo razão Franco Ferrarotti quando diz que “o nosso sistema social
encontra-se integralmente em cada um dos nossos atos, em cada um dos nossos sonhos, delírios,
obras, comportamentos; a história deste sistema está contida por inteiro na história da nossa vida
individual” (2010, p. 26) – e se o inverso também for verdadeiro, isto é, com nossos passos movemos
de algum modo a história – as possibilidades que são e fazem o movimento do mundo aí estão.
Porque em nós “estão” muitos outros. E ninguém controla o movimento do mundo, não é?
Quando nossa compreensão caminha por essas vias, há de ser em Bakhtin que fundamentaremos
radicalmente nossa esperança, se precisarmos de algum fundamento. Não é à toa que Valdemir
Miotello afirma que:
Se hoje conseguimos reconhecer Bakhtin como um dos grandes pensadores do século
XX, e certamente o teórico que mais deve influenciar as Ciências Humanas no decorrer
do século XXI, isso se deve à qualidade dos debates instaurados com os grandes
estudiosos contemporâneos seus ou que o antecederam. Tal amplitude se deve ao fato
de Bakhtin desenvolver uma nova visão a respeito das ciências humanas e do homem,
que passa pela comunicação, pelo diálogo.
E o que diz Bakhtin sobre o diálogo?
Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico
(esse se estende ao passado sem limites, e ao futuro, sem limites). Nem os sentidos do
passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis
(concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no
processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em qualquer momento do
desenvolvimento do diálogo existem massas imensas de sentidos esquecidos, mas em
determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais
sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto). Não
existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. (2011, p. 410)
Para Bakhtin, são sempre dialógicas as relações, porém
A concordância é uma das formas mais importantes de relações dialógicas. A
concordância é muito rica em variedade e matizes. Dois enunciados idênticos em todos
os sentidos (“belo clima!” – “belo clima!”), se realmente são dois enunciados pertencentes
a diferentes vozes e não um só enunciado, estão ligados por uma relação dialógica de
concordância. Trata-se de um acontecimento dialógico nas relações mútuas entre os dois
e não de um eco. Porque também podia não haver concordância (“não, o tempo não está
muito bom”). (2011, p. 331)
Penso que, embora não com enunciados idênticos na forma, mas muito semelhantes no conteúdo,
e nos sentidos, nos muitos sentidos, experimentamos – vocês e eu – muitas concordâncias em
nossos escritos, o que me permitiu produzir a textualização e a composição que foram usadas para
organizar os dados aqui-agora analisados.
A mim parece que essa forma dialógica especial de relação foi dando um sentido de “nós”, de
pertencimento, de comunidade, que nos fortalece horizontalmente.
Se vivemos tempos difíceis e estamos na travessia para outros que não sabemos bem quais, se em
muitos casos temos vazios no olhar, por falta de acontecidos que nos sirvam de âncora para encarar
os acontecendos, melhor ter não apenas esperança, mas convicção. E que convicção há de nos
151

servir? A de que, em tempos de Ainda-Não, entre o Nada e o Tudo, podemos inventar inéditos em
nossa vida pessoal e na vida social que compartilhamos com sujeitos assim como nós, semelhantes,
diferentes, singulares.
Para que não nos reduzam as cabeças, para que não nos misturemos com a água do aquário, para
que estejamos cada vez mais encarnados em nossa condição de sujeitos (ainda que não saibamos
muito bem que condição é esta), para que possamos produzir luzes ao escrever com a pena
mergulhada nas trevas, para que não venhamos a nos entregar à depressão ou ao vício de
antidepressivos e outras drogas, para que não caiamos na tentação de nos ajoelhar para o Mercado
e rezar seus mandamentos, para que não estejamos cegos diante dos sinais da história
incontrolável quando ela nos exigir perspicácia e militância, havemos de contar uns com os outros.
O outro, afinal, nos constitui. Isso Bakhtin repetiu por toda a vida e esta é uma afirmação
emblemática do seu pensamento:
O homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira,
olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro (2011, p.
341).
Acho que temos tirado muitas lições da experiência de nos movimentar por essas dimensões a que
ele se refere como constitutivas de nossas relações na vida: eu-para-mim, outro-para-mim e eu-para-
o-outro:
Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o
outro, através do outro e com o auxílio do outro. Os atos mais importantes, que
constituem a autoconsciência, são determinados pela relação com outra consciência (com
o tu). (2011, p. 341)
O fato é que Bakhtin é um pensador que por vezes tomamos como referência – se é que se pode
dizer dessa forma – mesmo sem saber, o que me parece um bom sinal.
Bem, caros colaboradores, isso tudo para dizer que com esse trabalho de análise – e com outras
tantas reflexões que aqui não estão registradas, para não estender demais esta correspondência –
encontrei algumas respostas para a questão de pesquisa que me acompanhou desde o início,
aquela já velha conhecida: Em que circunstâncias, de que modo e por quais razões a comunicação
escrita que acontece no espaço virtual se constitui em experiência formativa para quem dela
participa?
Como vocês puderam acompanhar na parte anterior, as respostas vêm do coro de vozes que se
encontram em “O que nos ensinam os sujeitos desta pesquisa”, “Contribuições assinadas” e “No
meio do caminho tinha um farol”.
Assim, a partir do que disseram vocês, do que estudei a respeito e do que pude pensar a partir disso
tudo, eu diria que a resposta, construída a partir de frações de um conhecimento emergente, no
final das contas é simples: a comunicação por escrito online é formativa para quem dela participa
sempre que se constitui em uma experiência de fato, por responder a algum tipo de necessidade
pessoal que tenha. Mesmo que desconheça parcial ou inteiramente qual é, porque nem nunca
pensou sobre ela... Necessidade de conhecer e conversar com pessoas, de viver outras experiências
que o cotidiano fora da tela não garante, de experimentar os efeitos de uma vida inventada, de
testar o reconhecimento e a aceitação pessoal, de dialogar sobre o que lhe interessa, de ampliar o
conhecimento e o universo cultural, de integrar comunidades de semelhantes, de fortalecer
horizontalmente a identidade, de protagonizar movimentos, de se alienar um pouco da dura
realidade, de simplesmente “jogar conversa fora”, de..., de..., de...
E diria que os modos de aprender, de assumir a vez e mostrar a voz, nos dispositivos de
comunicação online, são outros, diferentes dos demais, à medida que passam invariavelmente pela
152

linguagem escrita. Todos os sentidos e efeitos pretendidos passam e se fazem pela palavra escrita,
fato histórico novo nos processos de interlocução direta.
Sendo assim, frente ao enunciado-título da tese – A experiência da escrita no espaço virtual: a voz,
a vez, uma conquista talvez –, a reafirmação é de que, sim, sem dúvida, com a possibilidade de
ocupação do espaço virtual, muitos até então sem-vez superaram essa sua condição e não só
passaram a ter vez, mas também (como diria você, Marquinhos) a ser com. E vozes até então
caladas ou silenciadas podem agora se manifestar de diferentes formas.
Agora, se essa circunstância representa de fato um conquista, ainda não sabemos. Mesmo com as
evidências indicando que a internet está provocando, inequivocamente, uma revolução cultural,
que o uso das tecnologias de informação e comunicação tem modificado de forma radical os
modos de aprender e que a mudança de condição de sem para com vez e voz parece ser
irreversível, como os dispositivos capitalistas se atualizam muito rápido, ainda não sabemos se a
comunicação online será muito mais um modo de dominação (como já eram os meios de
comunicação de massa até então existentes) do que de empoderamento.
Talvez fosse o caso de analisar a questão de perspectivas diferentes para arriscar algumas hipóteses.
Que efeito terá essa chance trazida pela internet – de ter vez e voz – na metade desvalida da
humanidade, nas poucas famílias biliardárias e nos demais outros? Quanto a nós, vocês e eu, esta
pesquisa já mostrou que nos sentimos pessoalmente empoderados, mas o fato é que somos só uma
pequena parte desse todo heterogêneo.
De qualquer modo, ainda que seja de se supor (ou constatar) que, para a elite dominante, a internet
represente mais um dispositivo de manipulação das pessoas, agora em escala mundial e acelerada,
também temos visto o quanto os blogs independentes e as redes sociais podem se constituir num
espaço importante de resistência à informação manipulada e numa trincheira para disseminar
informação verossímil. Quanto às grandes massas consumidoras de notícias, possivelmente ainda
terão por muito tempo a televisão (e seus poderosos mecanismos de formação de opinião) como
fonte principal, mas começam a surgir análises de que é provável que a internet venha a ganhar
cada vez mais o espaço que hoje ocupa a televisão. E aí... bem, aí ainda não sabemos.
Não era meu propósito, como pesquisadora, ir além da questão de pesquisa para a qual considero
os “achados” suficientes como contribuições à compreensão que eu buscava. Mesmo assim, acabei
encontrando muito mais do que procurava. Encontrei, por exemplo, esta hipótese e esta convicção
ao mesmo tempo: estão se constituindo rapidamente formas e movimentos de manifestação da
subjetividade em consequência das mudanças produzidas pela internet, pelo acesso ao espaço
virtual e às possibilidades de diferentes formas de registro. Não me parece possível afirmar que
essas circunstâncias sejam propriamente capazes de produzir novos modos de subjetivação – o
que, a meu ver, tem muito mais a ver com os efeitos do atual estágio do capitalismo neoliberal. Mas
as novas formas de manifestação da subjetividade sim.
O acesso a práticas até então inacessíveis para muita gente parece estar provocando um frisson
exagerado de protagonismo que, como tal, pode no final das contas ser apenas uma ilusão, mas
parece funcionar como átimos de felicidade para muitos.
A abundância de selfies em circunstâncias as mais inusitadas – que parecem revelar, por vezes,
uma necessidade meio desesperada de demonstrar o pertencimento ao mundo, aos
acontecimentos e às relações sociais –, a tendência à afirmação – muitas vezes categórica – de
opiniões sobre todo tipo de coisa, a participação “ativa” – que parece ser crescente – em
movimentos virtuais sem sair da cadeira, a exibição reiterada da parcela considerada exitosa da vida
pessoal e também a transformação da fronteira entre público e privado, ao que tudo indica,
evidenciam hoje formas diferentes de manifestação da subjetividade.
153

Sim, o conteúdo demasiado humano dessas posturas não é exatamente novo, diria Freud, ou
mesmo Fernando Pessoa que, em seu Poema em linha reta, confessou, há quase um século, sua
“surpresa” pelo fato de todos os outros serem “tão diferentes”. Constatou o poeta que os humanos
da época nunca levaram porrada, nunca foram ridículos, nem enxovalhados, nem infames, nem
covardes, mas, ao contrário, sempre campeões em tudo, verdadeiros príncipes em tempo integral.
E se pergunta, ao final: “Onde é que há gente no mundo?”.
Pois então... novas formas, velhos conteúdos. Mas se é mesmo verdade que forma é conteúdo,
então há mudanças relevantes na pauta do nosso tempo.
Por ora, é o que achei importante dizer a vocês.
A seguir, na Terceira Correspondência, direi do que aprendi com esta viagem à procura da Ilha
Desconhecida e do que sou capaz de enxergar ao tentar mirá-la agora, com alguma distância que,
bem sei, pode ser apenas imaginada. Talvez eu possa, assim, também entender melhor quem sou.
Antes, porém, agradeço a todos, mais uma vez, por terem aceitado o convite de virem junto e me
contarem, às vezes muito intimamente, as suas histórias mais caras.
Saudações amorosas, queridos.
Rosaura Soligo
154

Terceira Correspondência

A CHEGADA À ILHA DESCONHECIDA E OS “APRENDIZARES”


[Considerações Finais]

ENTÃO,
Pela hora do meio-dia, com a maré,
A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar,
à procura de si mesma. (José Saramago)
DISSE A MULHER AO VÊ-LA:
aprendizagem é a palavra que, ela sim, ramifica e desramifica uma
pessoa; ela enlaça, abraça; mastiga um alguém cuspindo-o a si
mesmo, tudo para novas géneses pessoais. estas palavras são para
pessoas que se autorizam constantes aprendicismos. modos.
maneiras. viveres. até sangues.
aprendizar não é repessoar-se? (Ondjaki)

E LANÇOU AO MAR OS MAPAS:


Tudo o que é pensado por muito tempo se torna suspeito.
(Nietzsche)

Antes que eu própria comece a suspeitar dos das lições aprendidas42, vou tratá-las aqui, em tempo
hábil, com reverência e respeito, começando pelas não respostas e seguindo, nesta ordem, para
conjecturas ou imaginações, convicções e esboços de teoria. Também em relação às lições
apresentadas nas “Cartas do mestrado” fiz algo parecido. Nos dois casos, tentei obstinadamente
me salvar do “ímpeto científico” pelas certezas absolutas que rondam um pesquisador, (ainda mais)
às vésperas de se tornar doutor. Espero ter conseguido. Mas, também, nunca se sabe...
Aproveito para confessar que, como a leitura de vocês – destinatários desta Correspondência – só
poderia ser do texto já finalizado, depois da tese publicada, acabei por tomar outros olhos como
referência durante os anos em que escrevi este registro. O texto é, portanto, “rodado”, uma vez que
muitos já leram, ainda que parcialmente, para me ajudar na difícil tarefa de aproximar, tanto quanto
possível, o que eu pretendia dizer do efetivamente dito e do que (por um exercício de imaginação
criativa) seria de se supor que vocês viessem a compreender.
Como podem perceber, nunca os perdi de vista nesses anos todos.
O que aqui se segue é um texto curto, com lições garimpadas dos registros de viagem já
compartilhados. Não esperem grandes novidades.

Chamarei as lições aprendidas também de aprendizares, emprestando o sentido criado por Ondjaki, tal como está na
42

epígrafe desta página.


155

As não respostas

Já não há perguntas que queiram sê-lo: todas se foram cabisbaixas em busca


da Razão Aparente. Hoje as perguntas preferem repousar, enterrar-se. ...
Por isso, em vez de perguntas, habitamos, quietos, a tirania absoluta da
Resposta: dá-me uma resposta, te dou uma resposta, nos damos uma
resposta, damos a resposta. Sobram as respostas. O que faz falta é pergunta/s
sem resposta/s.
Carlos Skliar

Por não desejar habitar a tirania absoluta da Resposta, achei prudente começar então pelas não
respostas.
A primeira delas, uma dúvida recorrente, fiel companheira, presente nas piores horas, é se os
“resultados da pesquisa” de fato têm aquela relevância toda que nas melhores horas parecem ter.
Como descobri que esse é um fantasma que assombra quase todo pesquisador, convivi
pacificamente com ele apoiada no velho e bom argumento que, sob certas circunstâncias, os
processos podem ter muito mais importância do que os resultados finais. Essa desconfiança
ocasional em relação aos resultados e o investimento em um processo que – na emergência de
resultados finais pouco relevantes – por si só se justificasse criaram a necessária insatisfação diante
de tudo que não fosse o melhor possível, nesse caso, claro, segundo meus próprios critérios.
Outra não resposta diz respeito ao “talvez” a que se refere o título da tese e a própria tese. Será de
fato uma conquista significativa, para todos, a possibilidade de dar voz à voz, e de fazer valer de
vez a vez, ao transitar e se comunicar por escrito no espaço virtual?
Então... Do meio da travessia não sabemos ainda, porque não se pode sair da ilha para mirá-la nesse
ponto.
Já nos demos conta de que a participação neste novo mundo conectado em rede potencializa as
oportunidades e amplifica consideravelmente certas dimensões da existência que figuravam no
real de até então, mas não como agora. Entretanto, será essa uma conquista em favor da nossa
humanidade, que é o que mais importa, afinal? Se, conforme dizem as pesquisas que os telejornais
andam a divulgar em horário nobre, diminui cada vez mais o tempo em que os usuários da rede
são capazes de se manter desconectados, será essa uma conquista? A indigência do olhar alheio,
que parece ser um fenômeno tão antigo quanto o mundo e já estudada por tantos, não estará
tomando uma proporção, por assim dizer, quase patológica? Ou será emocionalmente benéfico
saber que “muitos são assim como eu” e poder contar com a confirmação “inequívoca” de que “os
outros me veem”, “os outros me curtem”, “os outros me comentam”, os “outros me compartilham”?
Não sabemos ainda.
E os dispositivos de dominação ideológica não se fortalecerão ainda mais, a ponto de, quando
postas na balança, as conquistas se mostrarem proporcionalmente irrisórias?
É possível. Mas certeza, certeza mesmo, não temos.
Esta tese afirma um posicionamento convicto de que as possibilidades de comunicação online, que
são novas na história do mundo, tendem a alterar de forma positiva e substancial os modos de
pensar, de aprender, de ler, de escrever e também de se relacionar, de ocupar o tempo, de buscar
conhecimento e entretenimento, tanta coisa. Isso, com certeza. Mas não serão os que já dispõem
dos recursos cognitivos mais sofisticados para pensar, para aprender, para ler, para escrever e
156

também as melhores condições objetivas para se relacionar, ocupar o tempo, buscar conhecimento
e entretenimento os maiores beneficiários?
É de se supor. Mas, mesmo assim, não estará valendo?
O que essas conquistas reais significarão, do ponto de vista da nossa condição humana e da nossa
posição de cidadãos do mundo, ainda não é possível alcançar. Apenas desejar.

As conjecturas ou imaginações

A vida, a nossa vida, a sua, a minha, a de todos, é um absoluto


caos, uma confusão que a nossa imaginação tenta organizar
inventando, inventando... A vida nunca é clara, definitiva, segura,
firme. A vida é paródica, contraditória.
Rosa Montero

A imaginação é a louca da casa.


Santa Teresa de Jesus

Desde que escrevi o projeto de pesquisa para o processo seletivo, relacionei algumas indagações
recorrentes que, na verdade, vinham de muito antes. Foram tomando forma na medida em que,
me comunicando por escrito com muitas pessoas pela internet, eu ia me perguntando sobre certos
porquês:
Quais seriam as razões que mobilizam as pessoas – muitas delas que dificilmente escreveriam
“no papel” – a escrever e publicar seus escritos nos espaços da internet?
Por que o facebook se transformou em um fenômeno de proporções tão grandiosas em nosso
país?
Será que o que se aprende nos processos de navegação pessoal e comunicação interpessoal na
internet contribui de algum modo para a qualidade da prática profissional das pessoas,
especialmente as que atuam na área da educação?
Com base nas respostas a essas questões, seria possível incluir, nas práticas de formação dos
educadores, propostas que potencializem o desenvolvimento pessoal-profissional e a qualidade
do trabalho pedagógico?
Se uma das crises crônicas do ensino da língua na escola tem sido o fato de os alunos lerem e
escreverem pouco, como é que de repente, por conta da comunicação escrita online – um tipo
de comunicação que em geral é espontânea e responde ao desejo e à necessidade de cada um
–, verificamos que, ao menos do ponto de vista quantitativo, nunca se leu e se escreveu tanto?
Mais: temos constatado que, nessas circunstâncias, cada vez mais a leitura e a escrita são parte
de um verdadeiro vício. Esse tipo de prática emergente de leitura e de escrita poderia ser
“aproveitado” pela escola em favor da proficiência no uso da linguagem?
Se o analfabeto funcional é o sujeito que aprendeu o beabá, mas não é usuário da língua escrita,
não consegue se expressar por escrito, tampouco compreender o que lê, será então preciso
agora alterar o conceito de analfabetismo funcional? Sim, claro, quem escreve aquela estranha
língua nas mensagens online em tempo real nem sempre é um usuário proficiente frente à
157

diversidade de gêneros... Mas é usuário, consegue se comunicar, entende o que lê, expressa-se
em resposta às suas próprias necessidades. E então?
Com respostas a essas questões, seria possível encontrar melhores caminhos para as propostas
de formação profissional e de ensino da língua na escola?
Essas perguntas não foram objeto de investigação direta, mas a reflexão que me foi possível no
tempo da pesquisa trouxe algumas quase respostas imaginadas, que compartilho a seguir.
O fato é que as pessoas se movem por suas necessidades. Aquelas que não escreveriam de maneira
espontânea “no papel” passaram a escrever e publicar seus escritos na internet muito
provavelmente porque essas práticas respondem a alguma necessidade que elas têm e que as
mobiliza para, agora, fazer o que antes, em outras condições, não fariam. E, de algum modo, esta
tese trata dessa questão em diferentes momentos.
Quanto ao facebook, parece ter se transformado num fenômeno de proporções grandiosas pela
mesma razão: por responder às necessidades que talvez já existissem e fossem de outro modo
resolvidas (ou não) pelas pessoas, provavelmente nas antigas redes sociais não virtuais (clubes,
igrejas, confrarias, comunidades e outros grupos), que agora julgam encontrar na rede social virtual
respostas mais eficazes. Por certo, o efeito de “os outros me veem”, “os outros me curtem”, “os outros
me comentam”, os “outros me compartilham” tinha matizes diferentes nas antigas redes, mas agora
ganhou proporções muito maiores. Esse é só um exemplo, entretanto. As necessidades têm
naturezas diversas, não apenas essa mais narcísica. A respeito dela, Contardo Calligaris (2007)
escreveu: “Numa sociedade narcisista, cada um depende excessivamente dos outros. Somos
desprovidos de essência: sou filho SE meus pais me amam, sou pai SE meus filhos gostam de mim,
sou psicanalista SE pacientes e colegas me reconhecem, sou colunista SE você aguentou ler até
aqui. O espelho que nos define não é o de Narciso, é o da bruxa da Branca de Neve, um espelho
que interrogamos, ansiosos”. O facebook parece ser a rede social virtual que mais está contribuindo
para aprofundar essa característica da nossa sociedade.

É de se supor, sim, que os aprendizados que acontecem nos processos de navegação pessoal e
comunicação interpessoal online contribuam para a qualidade da prática profissional das pessoas
– não sei se especialmente as que são da área da educação – porque as dimensões pessoal-
profissional são indissociáveis, como está sempre a nos lembrar António Nóvoa (2009). O
profissional mora dentro de uma pessoa – se a pessoa aprende, o profissional que a pessoa é
também aprende, mesmo que a princípio possa não saber ainda fazer bom uso das lições nas
situações de trabalho.
Tendo em conta essas imaginações que voaram, quase todas, “por fora” da pesquisa, parece
possível incluir, sim, nas práticas de formação de educadores, propostas que potencializem o
desenvolvimento pessoal-profissional e a qualidade do trabalho pedagógico. Desde que tenham
de fato esse propósito, e não o do manejo de recursos simplesmente, é de se esperar que propostas
desse tipo possam vir a contribuir não só para as práticas de formação, como também de ensino
da língua e da linguagem.
Os educadores comprometidos com a formação de leitores e escritores passaram as últimas
décadas inventando projetos de leitura e escrita para dar sentido social a essas práticas, interessar
os alunos, engajá-los e animá-los. Os resultados por certo melhoraram nesses casos, mas o que se
verifica é que nem sempre foram os mais satisfatórios, se consideradas a expectativas desses
educadores. O que se verifica é que, com o avanço da escolaridade, em geral os alunos que se
constituíram como leitores e escritores muito mais atendem à demanda escolar do que vibram com
as propostas.
158

Então surgiram os microcomputadores e celulares – e suas ferramentas de acessar informação e


potencializar a comunicação. E, em poucos minutos históricos, tiveram o poder de colocar crianças,
adolescentes, jovens e adultos (idosos incluídos) na condição de usuários da leitura e da escrita –
aquela mesma leitura e aquela mesma escrita que muitos deles detestavam praticar na escola.
Mesma leitura e mesma escrita?!... Não. Definitivamente não são as mesmas. E são todas as crianças
e todos os adolescentes, jovens e adultos – idosos incluídos? Não. Claro que não. E por razões
socioeconômicas e socioculturais, como bem sabemos.
Na realidade, as oportunidades não estão democraticamente distribuídas nas diferentes classes
sociais e faixas etárias, mas vocês devem estar percebendo, assim como eu, que a tendência se fez
de modo rápido e é crescente. Quanto à leitura e à escrita, não são as mesmas porque a escola
quase sempre escolariza essas práticas a tal ponto que elas perdem o viço, o encanto, a potência, a
importância, a vocação de ser resposta a uma necessidade pessoal. Mas, realizadas de forma
espontânea nos computadores, tablets e celulares, essas práticas são a via de acesso para a
satisfação de necessidades e desejos que crianças, adolescentes, jovens e adultos – idosos incluídos
– não querem de jeito algum deixar sem resposta. Tanto que, não raro, chegam a se tornar
dependentes, e já começam a surgir tratamentos específicos para as compulsões mais graves.
Não foi a escola – instituição cuja função social é/seria formar leitores e escritores praticantes – que
incendiou o desejo das pessoas em adotar a leitura e a escrita como prática cotidiana com interesse,
desejo e satisfação. Isso está acontecendo por obra dos próprios sujeitos, que encontraram nessas
máquinas que podem manejar a oportunidade de se comunicar “de verdade”, encontraram a
chance de serem donos das próprias escolhas, de o que/quando/como ler e escrever.
Mas penso que é possível, sim, aproveitar essas práticas de leitura e de escrita emergentes da
comunicação online para desenvolver e ampliar a proficiência no uso da linguagem. Se nunca se
leu e se escreveu tanto como agora – ainda que as leituras e escritas que são feitas em geral estejam
muito aquém dos tipos valorizados na escola –, o principal parece estar dado: o hábito dessas
práticas, ainda que em contextos extraescolares. Há de se ter, então, “apenas” criatividade para
partir do que já acontece e fazer bom uso em favor da proficiência nas circunstâncias e nos
contextos comunicativos que a escola valoriza.
António Nóvoa (2014) tem falado sobre o que considera as três revoluções que estão acontecendo
“debaixo dos nossos olhos e perante uma certa indiferença da nossa parte”. Sua convicção é de
que a primeira revolução diz respeito à aprendizagem e é impulsionada pela tecnologia – como
foram revoluções na história do mundo a invenção da escrita e, séculos depois, do livro impresso –
, porque estão se transformando definitivamente os modos de aprender. A segunda diz respeito à
sala de aula, porque o modelo isolado de quatro paredes lá no corredor, com um professor que
transmite conhecimento igual para todos (supondo ensinar a muitos como se fossem um só), está
em franca decadência. E a terceira revolução diz respeito à ideia de escola como único
estabelecimento portador e detentor do conhecimento, porque as ferramentas de acesso à
informação e à comunicação online desconstroem a todo instante essa concepção hoje antiga e,
por essas e por outras, vai se constituindo um entendimento de que é a cidade – e não mais só de
escola – o território educativo.
Se Nóvoa de fato tem razão no que diz respeito a essas revoluções, estamos em plena travessia, na
passagem de um tempo para outro. Os leitores não são mais os mesmos, os escritores não são mais os
mesmos, os analfabetos funcionais e os alfabetizados funcionais não são mais os mesmos, os modos de
aprender e de se relacionar não são mais os mesmos, o acesso ao conhecimento não é mais o mesmo, o
mundo em que vivemos não é mais o mesmo. Não é possível que somente a escola siga sendo a mesma.
159

No exame de qualificação, o professor Dario Fiorentini deu pela falta, no texto, de um tratamento mais
significativo sobre a questão da leitura, e penso que ele tinha razão. Foi pensando em seus argumentos a
esse respeito que escrevi o que se segue.
Diz um amigo meu, Renato Souza, sobre as formas de acessar conhecimento, ler e interagir com a
informação, que incorporou ao seu estilo a fragmentação e a multiplicidade de referências. Diz que
tem a impressão de agora ler e escrever muito mais, interagir muito mais com as pessoas, refletir
mais sobre uma quantidade cada vez maior de assuntos e, assim, aprimorar a escrita e leitura –
diferente de quem confessa e lamenta ter se tornado um leitor pior depois da internet, por não ser
mais capaz ler livros inteiros, parecendo julgar ser esse o único critério de leitura adequada. Mas diz
também que o estilo de interagir com a informação escrita é diferente dos modos mais
convencionais de leitura porque é mais “recortado” e usa esta citação de Compagnon (2007) sobre
citação por considerá-la sob medida para explicar como esse processo acontece:
Quando cito, extraio, mutilo, desenraízo. Há um objeto primeiro, colocado diante de
mim, um texto que li, que leio; e o curso de minha leitura se interrompe numa frase.
Volto atrás: releio. A frase relida torna-se fórmula autônoma dentro do texto. A releitura
a desliga do que lhe é anterior e do que lhe é posterior. O fragmento escolhido converte-
se, ele mesmo, em texto, não mais fragmento de texto, membro de frase ou de discurso,
mas trecho escolhido, membro amputado; ainda não o enxerto, mas órgão recortado e
posto em reserva. Porque minha leitura não é monótona nem unificadora; ela faz explodir
o texto, desmonta-o, dispersa-o. É por isso que, mesmo quando não sublinho alguma
frase nem a transcrevo na minha caderneta, minha leitura já procede de um ato de citação
que desagrega o texto e o destaca do contexto. (p.13)
Penso que comigo também acontece um pouco assim. Mas com certeza não é possível generalizar
esse como um estilo de todos os leitores. Desse modo procedem certos leitores proficientes, e o
exercício constante desse estilo recortado e autoral parece não prejudicar, tampouco impedir, a
leitura densa de um texto longo.
Talvez esse processo não aconteça com todos os leitores proficientes. E talvez esse estilo
fragmentado acabe por prejudicar os leitores sem muita proficiência, que podem, eventualmente,
se dar por satisfeitos com um estilo aligeirado quando ainda não conquistaram os modos mais
refinados de leitura. Mas isso são conjecturas, imaginações.
De qualquer modo, se assim for, a escola terá muito a fazer para formar leitores capazes de ler (e
também escrever) textos de diferentes gêneros, em diferentes contextos comunicativos, com os
estilos pertinentes a cada caso.
160

As convicções

Não sei de tudo, quase sempre quando nunca.


Manoel de Barros

Aqui tratarei brevemente das convicções. Primeiro as conquistadas com a experiência da pesquisa,
e depois, de outras antigas, aquelas mais suspeitas, porque pensadas já por muito tempo. São
pressupostos.
Uma das convicções mais fortes que hoje tenho e pratico é a de que nossos enganos acontecem o
tempo todo, mas, se considerado o nosso próprio ponto de vista, jamais no aqui e agora do
presente. Nossos enganos estão todos no passado. Quando estamos enganados, jamais sabemos.
Só depois que passa.
Vivemos, por vezes, no limite máximo da exaustão, o exercício do “E se?”, tentando antecipar
futuros prováveis para nos proteger dos inusitados que possam nos fragilizar ou enfraquecer. Mas
o curso da vida é incontrolável – e da pesquisa também. Ainda mais quando escolhemos respeitar
a deriva e praticar a presença atenta durante a viagem para construir alguma sabedoria a partir da
experiência.
Pois bem, o fato de ter me proposto a produzir uma narrativa pedagógica recomendou iniciar
falando justamente das convicções que se revelaram enganos – citarei apenas os dois que me
parecem principais como exemplos.
Um deles, comentado nas Notas da Cartografia, era de que a documentação da tese seria em um
blog, e o registro impresso em papel seria um texto, o mais convencional possível. Essa foi uma das
primeiras decisões que tomei, antes mesmo de passar no processo seletivo, quando elaborei o
projeto, e depois segui com ela por vários meses. Tanto que no blog criado para essa finalidade, no
início de 2011, assim se lê:

(...) A versão narrativa, metacognitiva, reflexiva, com um sujeito pesquisador implicado,


estará registrada neste blog em forma de portfólio. E a tese a ser entregue em alguns anos,
extraída do portfólio, terá o modelo mais convencional possível.
Meu desejo é que a banca de qualificação e defesa compare os dois registros e lamente
que, a depender do tipo de pesquisa, as exigências da Academia estejam na contramão
da produção de conhecimento e concluam que talvez valha a pena flexibilizar um pouco
mais os protocolos, porque os critérios de pertinência das escolhas (metodológicas e de
documentação do trabalho) têm a ver com a natureza do assunto e com os objetivos que
se colocam.
Mas a intenção desse tipo de provocação didática logo sucumbiu ao meu amor pelo texto escrito.
Além do que, o blog não interessou suficientemente os sujeitos colaboradores da pesquisa a ponto
de fazê-los frequentadores daquele espaço. E, como não tenho nenhum entusiasmo em escrever
apenas para registrar, sem ter leitores que me deem algum tipo de retorno, abandonei a ideia
original, que me parecia a mais original das ideias. É, acontece... E havia abandonado o próprio
blog até que, no balanço realizado no início de 2014 e registrado nas Notas de Abril a Junho, fiz
uma análise a esse respeito – e vocês devem se lembrar. Foi quando percebi, tal como explico nas
Notas, que me enganei não só em relação ao blog e à importância que ele poderia ter para aqueles
escolhidos por mim como interlocutores e destinatários principais, mas também quanto ao papel
de uma comunidade virtual criada com o grupo de e-mails e o chat, mas que nem chegaram
propriamente a acontecer. A interlocução de todos aconteceu quase sempre apenas comigo
161

(embora minhas mensagens fossem endereçadas a todos), mesmo eu tendo investido para que a
discussão se ampliasse. E, quando isso ocorreu, pela natureza do assunto e pela forma de
abordagem, foi porque as pessoas envolvidas já se conheciam e conviviam em espaços comuns, o
que sem dúvida facilitou o diálogo. Portanto, a importância que tudo isso tinha para mim não
contagiou meus companheiros de viagem, que portavam, cada qual, suas próprias prioridades.
O outro engano tem a ver com o Colóquio produzido com as reflexões dos sujeitos que me
enviaram contribuições valiosas sobre a escrita e a internet, mas que não diziam respeito
diretamente à questão da pesquisa. Esse texto, chamado “Um colóquio virtual sobre a escrita e a
internet”, figurou como apêndice do texto de qualificação, mas depois verifiquei que o mais
importante a fazer mesmo era me desapegar afetivamente dele e retirá-lo da tese, visto não ter
relação direta com o que eu pretendia compreender com a pesquisa – e, quando tinha, já havia
sido incorporado aos dados. Decidi então publicá-lo no blog, que passou a ter como finalidade se
constituir em um espaço de interlocução sobre a tese com todos os leitores que se interessassem.
Passo agora então às convicções que se afirmaram no processo e ainda não se revelaram enganos.
Espero que assim perdurem.
No exame de qualificação, ouvi do Professor Carlos Skliar que a pesquisa a que me propus a fazer
era também um “pesquisa-me”. De fato. Não havia ainda pensado a respeito, mas foi isso mesmo.
E, de imediato, lembrei-me da epígrafe que abre o memorial de formação do mestrado (transcrito
logo mais), um texto de Paul Valéry que diz assim: “Não há nenhuma teoria que não seja um
fragmento, cuidadosamente preparado, de uma qualquer autobiografia”. A pesquisa foi sim uma
investigação também de quem sou como pesquisadora e, claro, como pessoa. Nesse sentido, a tese
acaba por ser, de algum modo, um registro autobiográfico cuidadosamente preparado, tecido com
fragmentos de identidade, de intimidade e de alteridade que se atravessam no texto, alternando
posições, exposições e composições com os outros que seguiram comigo.
Nessa aventura dupla, procurei ser fiel ao que nos ensinam Clandinin e Connelly (2011) ao
combinar essas alternâncias nas diferentes dimensões a que se referem: do pessoal-social, do
passado-presente-futuro, dos contextos situados. Procurei articular meu interesse pessoal com a
relevância social que a pesquisa poderia vir a ter. Foi, portanto, uma decisão muito refletida a
escolha pela abordagem da pesquisa narrativa e por um tipo de registro que pudesse se constituir
em um texto pedagógico a evidenciar, para outros pesquisadores e leitores interessados, os
caminhos e descaminhos deste trabalho.
E a linguagem desta narrativa pedagógica foi o mote de outras convicções.
Nunca me pareceu possível “trans-formar” o modo de fazer a pesquisa sem “trans-formar” o modo
de fazer o registro. A ideia de que forma é conteúdo – trazida da dissertação de mestrado – inspirou
o que chamei de estética da coerência conteúdo-forma-registro afirmada como um guia na
Primeira Correspondência, escrita em setembro de 2012.
Li uma vez, não me lembro onde, que para entender a diferença entre transformação e mudança,
quando se considera a possibilidade dessa diferença, é preciso recorrer à química. Desse ponto de
vista, as mudanças seriam alterações reversíveis – como acontece com a água, cujo estado pode
passar de líquido para sólido e para gasoso e de novo para líquido –, e as transformações seriam
alterações irreversíveis – como acontece quando se junta tinta azul e tinta amarela, formando uma
mistura verde.
Nada entendo de química, nem sei se a relação tem pertinência, mas ela me pareceu uma boa
imagem para ilustrar que o registro de algo transformado não poderia jamais ser o mesmo “de
antes”. Tomei essa imagem como emblemática das necessárias transformações também no registro
da tese. Depois, quando me dei conta do que diz Najmanovich (2001) sobre não ser nada simples
162

abrir o espaço cognitivo para novas narrações, ainda mais “de dentro do quadro”; do que diz Nilda
Alves (2001) sobre a necessidade de narrar a vida e literaturizar a ciência; do que diz Adail Sobral
(2012) sobre as diferenças entre o gênero tese a as formas textuais narrativas; e do que eu mesma
penso (e já constatei na pele) sobre as consequências que enfrentamos por escolher o caminho
das transgressões na forma que (sempre) implicam transgressões no conteúdo, tive plena
convicção de que, sabendo disso tudo, o desafio de escrever seria complexo.
Afinal, a situação era de um gênero escrito na forma de outro, na perspectiva de criar possibilidades
de narrar um modo não linear de produzir conhecimento, considerando a deriva como movimento
legítimo e o compromisso assumido de me aventurar num exercício encarnado de literaturização,
sem abusar, entretanto, de recursos ambíguos ou polissêmicos, por se tratar de uma tese e não de
uma narrativa ficcional. E, sem abusar, tampouco, dos recursos que em geral se utilizam para
produzir efeitos de (suposta) objetividade, como é esperado em registros de pesquisa cujo
propósito é documentar conhecimento científico. E, ainda mais, sabendo que, com a concepção
de pesquisa transformada, não haveria nenhum estado anterior para o qual eu pudesse voltar,
ilesa, se por des)ventura me sentisse incapaz de encarar a tarefa. Sim, seria preciso construir, por
desconstrução, um estilo compatível.
Vocês podem imaginar o quanto este foi, digamos, um projeto singular de escrita. E confesso que
foi isso tudo que me instigou a seguir adiante e apostar que a Ilha Desconhecida estava, sim,
esperando-me em algum lugar e que valeria todo o esforço para encontrá-la. Vocês devem se
lembrar de que já adiantei no resumo o quanto essas convicções funcionaram como uma doutrina
libertária a não só permitir, mas exigir, escolhas compatíveis e ajustadas ao percurso que poderiam
eventualmente soar pouco familiares ou inesperadas a leitores com um olhar mais acostumado aos
registros acadêmicos convencionais.
Mas o fato é que nunca perdi a esperança de que vocês, leitores, fossem capazes de vir comigo, de
se entranhar no texto e de até estranhá-lo, porém com generosidade. Apostei que contaria com
um olhar solidário de vocês, criticamente solidário, e essa aposta foi de fato a única companhia que
eu tive nos momentos de solidão nos quais uma escrita como esta acontece. Foi também o que me
impulsionou a ousar um pouco nas escolhas que resultaram em um texto híbrido entre o gênero e
a forma de registrá-lo: penso que diagramação, epígrafes, referências e outros aspectos textuais
estão submetidos muito mais à condição de uma narrativa que se pretende literaturizada do que
de um texto acadêmico canônico, de vocação lógico-científica.
Outra convicção que já existia como pressuposto e que se confirmou e se fortaleceu foi a de que a
produção de um movimento de “pesquisa da pesquisa na pesquisa” só comporta a prioris que não
impeçam o movimento. Considerar que as relações humanas são dialógicas e constituídas pela
ação de sujeitos que produzem história e cultura e realidades e que são também por elas
produzidos, que a formação humana é o conjunto de experiências de aprendizagem ao longo da
vida, que forma é conteúdo e que é preciso mergulhar com todos os sentidos na pesquisa, colocar
sob suspeita o conhecimento legitimado, beber em diferentes as fontes, narrar a vida e literaturizar
a ciência em nenhum momento atrapalhou as rotas e as escolhas durante o percurso; só favoreceu.
Por fim, neste espaço destinado às convicções que ainda não se transformaram em enganos,
preciso dizer da minha certeza de que um fenômeno digno de estudo são os grupos do whatsapp
que se expandiram recentemente – de familiares, amigos, colegas de trabalho. Se houvesse tempo
ainda, eu própria os estudaria e incluiria os resultados nesta tese para tentar compreender melhor
o que acontece com as pessoas que participam desses grupos nos moldes mais convencionais –
enviando fotos de si mesmas nas mais diferentes circunstâncias; memes e vídeos de autoajuda,
louvação religiosa e piadas; mensagens salvadoras de todo tipo; comunicados urgentíssimos, em
geral apocalípticos e sem assinatura, que devem ser repassados imediatamente; emoticons em
163

profusão, com sinais de positivo, aplausos, amém, beijo, flores e outros desejos; saudações de bom
dia, boa tarde, boa noite e outras mais inusitadas; kkkkkkkkks e hahahahahas; dentre outros
recursos de comunicação multimodal. Confesso que ainda não entendi muito bem, acho que mais
pelos excessos do que por existirem, até porque eu mesma faço uso de alguns deles. Talvez seja
preconceito de minha parte, uma vez que não me identifico muito com esses modos de
funcionamento – embora reconheça a potência do whatsapp como espaço informativo,
incrivelmente rápido e eficaz, que permite, por exemplo, a organização de atividades profissionais,
eventos públicos e celebrações de ordem privada em tempo recorde. O que mais me intriga, na
realidade, é a conduta de certos conhecidos da vida real nesses grupos, que, se não lesse com os
próprios olhos, talvez eu duvidasse de que fossem quem são. Fico me perguntando se o fato de se
tratar de um espaço virtual supostamente protegido, mais privado do que as redes sociais abertas,
é o que faz emergir nas pessoas certas dimensões emocionais “inteeeensas” que eu não imaginava
que elas tivessem.
164

Esboços de teorias?

Certa vez, num vilarejo, havia sete cegos e um guia que os acompanhava. Um dia,
todos escutaram um forte estrondo. Os cegos insistiram para que o guia os
ajudasse a sair e a se aproximar... da coisa. O primeiro tocou numa presa do
elefante e disse: – “Cuidado, é uma arma de guerra, um sabre!”. O segundo tocou
no rabo, dizendo: – “Não, é um objeto útil para o trabalho, uma corda!”. O
terceiro tocou numa orelha e afirmou: – “Acalmem-se, amigos, é apenas um
abanador!”. – “Ah, não!”, disse o quarto, que fora de encontro ao flanco do
elefante, – “Estão nos cercando, é uma parede!”. – “Todos estão enganados”,
afirmou o quinto, que acabara de tocar na tromba: – “É uma cobra enorme e se
enroscou no meu braço!”. O sexto, que tocara numa das patas, caiu na risada: –
“Ora, é uma árvore! Sinto o tronco e posso abraçá-lo!”. – “De jeito nenhum!”,
entusiasmou-se o sétimo, – “Trata-se de terra boa, quente e úmida!”. Acabara de
cair numa das imensas bostas do elefante.
Fábula de origem indiana, recontada ao jeito de Dany-Robert Dufour (2010)

Caros leitores,
As lições que apresento aqui foram escritas quando faltava apenas um mês para a defesa. Estavam
pontuadas, mas ainda sem acabamento. É inevitável um certo tom de despedida.
Fiquei muito tempo pensando por onde iniciar o fim desta Correspondência antes que vocês
passassem para a próxima...
E me pareceu pertinente começar então pelo que chamei de mapa conceitual da pesquisa, já
apresentado anteriormente, e que na verdade é um esquema bastante simples:

Conceitos Centrais

TEMA METODOLOGIA

EXPERIÊNCIA
NARRATIVA EM TRÊS

SUJEITO ENCARNADO
CONHECIMENTO
EMERGENTE
DIALÓGICAS
SOLIDÁRIAS
FAVORÁVEL

DIMENSÕES
CONTEXTO

RELAÇÕES

PESQUISA

AUTORIA

METACOGNIÇÃO

ESCRITA REFLEXIVA

FORMAS E MOVIMENTOS DE

MANIFESTAÇÃO
INTERLOCUÇÃO DA SUBJETIVIDADE

Conceitos Complementares
FORMAÇÃO | NARRATIVA | MODOS DE PENSAMENTO | GÊNERO

Uma das maiores lições aprendida com a pesquisa talvez tenha sido esta: a viagem de um/a
pesquisador/a tem sempre um mapa, ainda que escondido, ainda que inacabado, e quanto mais
estiver à vista, mais poderá protegê-lo/a dos perigos da travessia.
165

Reparem no que se pode ler nesse mapa: pesquisa narrativa em três dimensões assinada por uma
autora que, em contextos favorecidos por relações dialógicas solidárias, encarnada
intencionalmente na própria experiência e atenta aos sinais que podem se converter em
conhecimento emergente, produziu uma reflexão metacognitiva, compartilhada por escrito com
seus leitores, sobre formas e movimentos de interlocução e de manifestação da subjetividade.
Poderia ser também esta a leitura: pesquisa narrativa em três dimensões com sujeitos autores que,
em contextos favorecidos por relações dialógicas solidárias, encarnados intencionalmente na
própria experiência, alimentaram o conhecimento emergente da pesquisadora, que se desafiou a
produzir uma reflexão metacognitiva, compartilhada por escrito com seus leitores, sobre formas e
movimentos de interlocução e de manifestação da subjetividade.
Poderiam ser também outras as leituras. De qualquer modo, trata-se de um mapa a orientar as rotas
e as leituras.
Penso que seria quase impossível chegar à Ilha Desconhecida sem ter em mãos pressupostos
“abertos” que legitimassem as escolhas do caminho e sem um rascunho cartográfico desse tipo.
Foi assim que cheguei. E, qual não foi minha surpresa ao perceber que, trazida pela maré, pela hora
do meio dia, a Ilha Desconhecida surge, como eu, à procura de si mesma.
Foi preciso tomar fôlego para, antes de lançar ao mar os mapas, que nenhuma utilidade teriam em
outras viagens, compartilhar os aprendizares da travessia em busca de alguma resposta, incerta
que fosse.

O que se segue é uma breve retomada das lições que foram se constituindo em busca de possíveis
respostas. São parte dos aprendizares todos que me repessoaram – usando palavras de Ondjaki.
Sim, porque os aprendizares incluem necessariamente as não respostas. E, em relação às respostas,
como bem sabemos, Leonardo43 nos ensinou e a fábula apenas reafirma, que todo ponto de vista
nada mais é do que a vista de um ponto.
Vamos então a elas, vistas do ponto em que eu me encontrava como pesquisadora.
A possibilidade de comunicação online ampliou significativamente o universo de usuários da
linguagem escrita, os usos da escrita e a vitalidade da língua.
Tomo aqui como argumento primeiro algumas evidências trazidas pela pesquisa e depois os efeitos
inequívocos de uma experiência pessoal.
Vejam... A distância física, o grande alcance dos textos que se tornam públicos, o fato de a escrita
nos expor ao dar a ver quem somos e o que pensamos, de não haver controle sobre os efeitos das
nossas escolhas de palavras na interpretação dos leitores e de sermos responsáveis pelo que
dizemos – à medida que não há intermediação institucional entre nós e nossos interlocutores – são
circunstâncias que, em usuários proficientes, tendem a produzir certos efeitos de cuidado no que
diz respeito à função comunicativa da escrita. Os principais, que pude identificar nas falas dos
sujeitos e que posso alcançar com minha própria reflexão são os seguintes: relação mais reflexiva
com a escrita; maior preocupação com as formas de escrever; maior conhecimento de como
escrever e se fazer entender; tentativa de deslocamento para o lugar do outro, de modo a antecipar
suas possibilidades de compreensão, buscando aproximar ao máximo o que pretendemos dizer, o
que efetivamente conseguimos dizer e o que pode vir a ser entendido. Além do que, a liberdade
de expressão que hoje experimentamos – em conteúdo e forma – produz transformações
inequívocas na escrita, benéficas e bem-vindas porque geradas pela vitalidade e pela força do uso.
Isso, como diria Paulo Freire, é uma belezura, ainda que os guardiões conservadores da chamada

43
Leonardo Boff em A águia e a galinha.
166

norma culta se envenenem com seu ódio particular dos outsiders que somos nós aos seus olhos
mortos.
Com a internet, a escrita ganhou usuários. Nem todos proficientes, é fato. Mas, se considerada a
dimensão quantitativa e a situação anterior às práticas de comunicação online, é possível afirmar
que nunca se escreveu e nunca se leu tanto em nosso país.
A experiência pessoal a que me referi antes, e que passo a relatar, é também um dado nesse sentido.
Quando, em 2010, decidi fazer um perfil no facebook, ocorreu-me que aquele estranho território
poderia vir a ser mais do que parecia predestinado a ser. Surgiu então a ideia de usá-lo como um
espaço de escrita pessoal de pequenas reflexões e histórias e também de incentivo às pessoas para
que fizessem o mesmo, como já expliquei antes. O desafio foi a experimentação de uma escrita
curta, já que à época o limite de um post era 420 caracteres, e o convite insistente foi para que os
leitores da minha página entrassem nessa roda potencialmente infinita de histórias, o que acabou
acontecendo.
Em cinco anos, foram seis séries, comentadas de forma breve a seguir.
A primeira – inspirada em Solidão Urbana, que naquele tempo o psicanalista Contardo Calligaris
escrevia no Twitter – foi Invenção Humana44. Depois foi a vez de O Herói e a Princesa45, uma
reflexão bem-humorada sobre os tipos que protagonizam os relacionamentos de casais. E, por fim,
veio “Des|Amorosas”, uma série que até hoje não se encerrou, tem no momento46 cinco anos, mais
de cem autores e de 850 textos: www.facebook.com/DesAmorosas.
Des|Amorosas ganhou página própria no facebook e nesses anos todos abrigou algumas
“minisséries”: “Memórias infantes”, “Nascimentos” e “Confissões inventadas”, respectivamente sobre
infância, parto e amor declarado. Houve um momento, inclusive, em que as produções
aconteceram online, em parceria. Foram muitas situações desse tipo, especialmente em 2012, e
“Produção em parceria”47 é uma delas, conforme já comentei. A potência e a singularidade dessa
experiência compartilhada de leituraescrita das desamorosas motivaram, como vocês sabem, sua
inclusão com fonte de dados da pesquisa.
No curso dessas séries surgiram iniciativas paralelas que não chegaram a se estender muito, mas
permanecem ativas. São elas: Cabeça-coração, Amizade em Atos e Amor em Atos48.
Tantos anos mediando essas produções com destino público têm me mostrado que a possibilidade
de comunicação online “produziu”, sim, novos usuários da escrita – gente que, não fosse assim,
muito provavelmente permaneceria sem escrever ou escrevendo muito pouco apenas no espaço
privado. E o fato de essa experiência de mediação e a pesquisa acontecerem ao mesmo tempo
acabou por potencializar a reflexão decorrente de uma e de outra.
Quanto ao que pude aprender sobre esses novos usuários, os efeitos das práticas de leitura e escrita
que emergiram da comunicação online em suas experiências de interlocução por escrito e as

44
Invenção Humana: https://www.facebook.com/notes/rosaura-soligo/inven%C3%A7%C3%A3o-
humana/456729071030386
45
O Herói e a Princesa: https://www.facebook.com/notes/rosaura-soligo/o-her%C3%B3i-e-a-
princesa/293304074039554?pnref=story
46
Em novembro de 2015.
47
Produção em Parceria: https://www.facebook.com/notes/rosaura-soligo/the-making-of-desamorosas-274-
produ%C3%A7%C3%A3o-em-parceria/445503425486284
48
Cabeça-coração: https://www.facebook.com/notes/rosaura-soligo/cabe%C3%A7acora%C3%A7%C3%A3o-fragmentos-
sobre-o-abismo/545248908845068
Amizade em Atos: https://www.facebook.com/notes/rosaura-soligo/amizade-%C3%A9/533933169976642
Amor em atos: https://www.facebook.com/notes/rosaura-soligo/amor-em-atos-e-outros-atos-de-amor/518306008206025
167

conquistas que podem de fato representar achei melhor tratar nas considerações acerca das não
respostas e das imaginações, já que a pesquisa não alcançou respostas conclusivas a esse respeito.
Aqui, só posso afirmar com toda a certeza que estamos diante de uma conquista, talvez... Mas não
sabemos. Só o futuro dirá.
E aqui também posso afirmar que a prerrogativa de tomar a palavra por escrito e dela fazer o uso
que bem entender, de opinar sobre qualquer assunto, de praticar a invenção de si e de publicar
narrativas pessoais editadas, de ser o próprio editor das publicações – um direito adquirido sem
luta... – vem produzindo um espaço de afirmação e de manifestação de subjetividades que também
só entenderemos melhor adiante. O que me foi possível compreender já está dito em outras
passagens. Destaco apenas algumas das singularidades da escrita praticada nesse contexto virtual:
as circunstâncias comunicativas e as condições de produção dos escritos que se constituem na
materialidade da internet dão lugar a combinações peculiares marcadas pelos sentidos ora de
identidade, ora de intimidade, ora de solidão, ora de alteridade, ora de exposição, ora de afirmar
posição, ora de uma língua pública, ora privada.
Talvez a ampliação das possibilidades de escrita e de leitura, entretanto, tenha produzido alguns
prejuízos à atmosfera típica dessas práticas. Sim, porque quando tenho acesso facilitado aos textos,
bastando para isso acessar um link, posso ir deixando sempre certas leituras para depois, não é? E,
quando é possível publicar meus próprios textos a qualquer momento, e tenho pressa de fazê-los
chegar aos leitores para que o retorno seja rápido, pode acontecer de os textos terem sua produção
um tanto banalizada, desprovida – quem sabe? – dos sentimentos de cuidado e ruminação
característicos dos escritores zelosos. Seria, no caso, o excesso, a intensidade e a rapidez assumindo
o lugar da duração prolongada da experiência. Mas isso também não sabemos ao certo ainda, nem
era esse um propósito da pesquisa.
Boaventura (2002 p. 2), em sua bem-aventurada e cristalina lucidez ao analisar as “ausências” e as
“emergências”, diz assim:
“A experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que o que a
tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante. Essa riqueza
social está a ser desperdiçada. É desse desperdício que se nutrem as ideias que
proclamam que não há alternativa, que a história chegou ao fim, e outras semelhantes.
Para combater o desperdício da experiência, para tornar visíveis as iniciativas e os
movimentos alternativos e para lhes dar credibilidade, de pouco serve recorrer à ciência
social tal como a conhecemos. No fim das contas, essa ciência é responsável por esconder
ou desacreditar as alternativas. Para combater o desperdício da experiência social, não
basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso, é necessário propor um
modelo diferente de racionalidade. Sem uma crítica ao modelo de racionalidade
ocidental dominante pelo menos por durante duzentos anos, todas as propostas
apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas que se julguem, tenderão a
produzir o mesmo efeito de ocultação e descrédito.”
Como eu não seria capaz de elaborar uma crítica ao modelo de racionalidade ocidental dominante,
nem era isso o que esta pesquisa pretendia, fiz o que pude: coloquei sob suspeita certos
estabelecidos e tentei instituir uma experiência honesta de autoria, como pesquisadora e como
escritora, com todas as imperfeições que são de se esperar nos acontecimentos esperançosos da
vida real.
Que convicção há de nos servir ao protagonizar esses acontecimentos? A de que, em tempos de
Ainda-Não, entre o Nada e o Tudo, podemos inventar inéditos em nossa vida pessoal e na vida
social que compartilhamos com sujeitos assim como nós, iguais, diferentes, singulares. Ah, sim! Mas
isso eu já havia dito, não é?
168

E termino estas notas breves sobre os aprendizares com um fragmento que escrevi na dissertação
de mestrado, emblemático dos temores que à época me assolavam:
Nas primeiras páginas do livro “O antropólogo e sua magia” (SILVA, 2000, p.9) se lê o
seguinte: “Em um dos ritos de iniciação da cabula, modalidade de culto afro-brasileiro
registrada em fins do século XIX, o adepto deveria entrar no mato com uma vela apagada
e voltar com ela acesa, sem ter levado meios para acendê-la, e trazer, ainda, o nome do
seu espírito protetor”. (...) Essa passagem foi tomada como uma metáfora para as
encruzilhadas da pesquisa, quando não sabemos ao certo onde vamos parar...
Desde então constatei que meu temor era o inverso: o que me inquietava era a
possibilidade de entrar no mato com uma vela já acesa, que jamais se apagasse e, portanto,
voltar com ela no mesmo estado, sem ter feito por merecer a chama. E, pior, trazendo o
nome de um espírito protetor que eu sempre soube qual era...
Meu medo era de que, ao fim e ao cabo, a pesquisa fosse um blefe, pelo excesso de
certezas a priori e pela impossibilidade de me surpreender. Mas talvez tenha sido esse
medo a me salvar, porque redobrei a vigilância no percurso da pesquisa. E me surpreendi.
(SOLIGO: 2007)
Desta vez fui salva novamente. Não só pela vigilância, mas por ter escolhido navegar à deriva à
procura da Ilha Desconhecida. E com muita gente junto.
Até a próxima!
Rosaura Soligo
P.S. “Quando sabemos muito pouco, é como se esse pouco não existisse. Quando sabemos muito, é como
se esse muito não existisse. Escrever é retirar da sombra a essência do que sabemos. É disso que a escrita
se ocupa. Não do que acontece aí, não das ações que se praticam aí, mas do aí em si. Aí é esse o lugar e
o propósito da escrita. Mas como chegar a ele?” (Karl Ove Knausgard)
169

Correspondência Complementar

MEMORIAL DE FORMAÇÃO

O texto a seguir é um memorial escrito em forma de carta para compor a dissertação de mestrado
que defendi em 2007. O fio condutor de toda a narrativa é o conceito de formação, entendida
como o conjunto de experiências de aprendizagem ao longo da vida. Não é, portanto, um texto
autobiográfico produzido a partir das memórias mais significativas da vida, mas sim das memórias
que dizem respeito à minha formação pessoal e profissional. Como essas experiências de
aprendizagem fazem parte de uma história que já aconteceu, não vi nenhum sentido em fazer
outro memorial para relatar os mesmos acontecimentos. Por isso, aqui está transcrito o texto
integral de 2007, complementado, na sequência, por uma narrativa que reúne os aprendizados
dos últimos anos, constitutivos da minha formação, porém não decorrentes diretamente do
processo de pesquisa, razão de não estarem incluídos na Segunda Correspondência.

Venho por meio desta...

Campinas, março a julho de 2007.

Caros educadores,

Peço desculpas de me deixar expor assim, diante de vós;


mas considero que é mais útil contar aquilo que vivemos
do que estimular um conhecimento independente da
pessoa e uma observação sem observador. Na verdade,
não há nenhuma teoria que não seja um fragmento,
cuidadosamente preparado, de uma qualquer
autobiografia.
Paul Valéry

Venho por meio desta contar a vocês certos acontecimentos que parecem importar no momento
em que finalizo o registro de minha pesquisa de mestrado.
Primeiro devo dizer, entretanto, que este início de conversa me é muito caro, porque “Venho por
meio desta” foi o nome que escolhi para o capítulo de um livro que deveria ser um artigo e foi uma
carta. “Porque escrever é fazer história” é o nome do livro.
O que aqui vou compartilhar com vocês são algumas passagens da minha vida que, acredito,
“explicam” a pessoa/profissional que hoje sou, o que valorizo, os caminhos que escolho trilhar.
Importa esse assunto aqui? Tenho certeza que sim.
Idália Sá-Chaves (2002) nos esclarece brilhantemente a esse respeito:
O quadro teórico no qual o investigador se move e que corresponde ao seu próprio quadro
conceptual constitui um referente que pode ser duplamente perspectivado. Em primeiro lugar e, se
numa visão retrospectiva, ele constitui a síntese pessoal do seu percurso social de vida, quer naquilo
170

que foi a dimensão formal e intencionalmente formativa desse percurso, quer na dimensão informal
e multidimensional do próprio acto natural de viver, tendo por isso uma determinação histórica e
individual e uma natureza instável, dependente e complexa (p.29).
Em segundo lugar e, se numa perspectiva prospectiva, esse mesmo quadro conceptual é um sistema
aberto às circunstâncias que, num futuro imediato, o questionem nos seus fundamentos, na sua
organização interna e na sua racionalidade intrínseca, criando desse modo as condições para a sua
mudança e reorganização. Digamos então que nessa abertura e nessa dependência do por vir se
concretizam as condições da sua própria evolução e desenvolvimento. (p.29-30).
O conjunto das Correspondências que compõem a dissertação de mestrado configura, na verdade,
um memorial de pesquisa metacognitivo, um registro metarreflexivo – ou seja, um texto analítico
que explicita como se deu o processo de construção de conhecimento durante o trabalho, o que,
segundo a perspectiva de formação aqui assumida, tem estreita relação com a história de vida de
quem o escreve. Sendo assim, as experiências constitutivas da autora-pesquisadora que narra
reflexivamente o seu processo de aprendizagem assumem uma relevância que em outro tipo de
registro talvez não tivesse. Sem contar que, como bem nos lembra António Nóvoa (1992a;1992b)
e outros tantos defensores da perspectiva metodológica das histórias de vida, nossa trajetória como
pessoa “está” em todas as outras.
Como em geral é uma dificuldade escolher as passagens mais relevantes que vamos narrar sobre
nós mesmos, pois elas são sempre muitas e nem sempre temos claro qual é o melhor critério, resolvi
tomar como referência o enunciado que formulei já nas primeiras páginas da dissertação para
explicitar a concepção de formação em que acredito. Isso não só para me orientar, mas para fazer
um exercício de escrita autobiográfica baseada no que eu própria afirmo serem experiências
formativas ao longo da vida. Assim, o que se segue é um memorial de formação em que conto
como minhas aprendizagens – as que são mais evidentes para mim no momento – foram se
constituindo a partir
do convívio com familiares e/ou pessoas significativas desde a infância, da escolaridade/da vida
acadêmica, do estudo, das leituras, do acesso às mídias, da pesquisa, da produção escrita, das
amizades, das viagens, das situações-problema vividas, da reflexão pessoal e compartilhada, da
interlocução com pessoas tomadas como referência, da discussão das ideias, da psicoterapia, da
militância em grupos ou movimentos, da participação nas instituições, da atuação profissional, do
contato com a espiritualidade, da possibilidade de interagir com as artes, as manifestações
culturais, a literatura e todo tipo de conhecimento (SOLIGO, 2007).
Tentarei não cansá-los com muitas pessoalidades...
As experiências de vida – e penso que também os traços de personalidade – forjaram em mim
características bastante acentuadas que definem o modo de me relacionar com o mundo. Creio
que, acima de tudo, as pessoas que se constituíram em referências para mim foram decisivas no
meu percurso de aprendizagem.
Começarei falando das mulheres de minha família, pois, se me transformei em uma pessoa
guerreira, deve ter sido muito por conta delas.
De minhas “bisas” não tenho muito que dizer. A não ser da Nona – a Amélia –, que um dia,
suspeitando que meu avô estava na zona do meretrício do vilarejo em que morava, e onde vim a
morar depois que nasci, paramentou-se de calça, bota, chapéu e capa e, vestida de homem, foi lá
conferir se era mesmo verdade.
Nada muito mais das bisavós, que eram aparentemente submissas a seus italianos maridos em
terras brasileiras.
Das avós já há mais o que contar. Uma delas, a Vó Ana, mãe de minha mãe, era uma pessoa doce,
que se casou e ficou viúva três vezes e morreu de câncer antes de envelhecer. Para a casa dela me
171

mandavam com a missão de “buscar flor de maracujá” toda vez que em minha casa era preciso
tratar de um assunto inadequado aos ouvidos infantis. E a missão dela era me enganar, o que fazia
ternamente. Nunca levei a tarefa a efeito, pois sequer havia maracujás plantados em seu quintal...
A outra, a Vó Austrália – sim, era esse mesmo o nome dela! –, teve grande influência em minha
vida, para o bem e para o mal, como se costuma dizer. Morei com ela toda a infância, um ano e
meio só nós duas, porque minha mãe, professora, ingressou na rede pública lá na fronteira do
estado. Meu pai e meu irmão foram junto, e eu fiquei para estudar.
A Vó era uma mulher valente, dominadora, que perdeu o marido com pouco mais de trinta anos e
assumiu a fazenda, a condição de chefe de família e o comando de tudo. Essa minha avó sempre
teve um certo gosto por assumir o comando, mesmo quando não sabia ao certo para onde ir, tanto
que, à direção de um Fordinho 29, meteu-se no rio de nossa fazenda porque não acertou o rumo
da ponte. Por causa dela – ou talvez não... – desenvolvi umas predileções, acho. Ela cortava meu
cabelo, costurava minhas roupas, comprava meus sapatos. O cabelo tinha que ser curto; as saias e
os vestidos, mais compridos do que eu pretendia; os sapatos, necessariamente femininos. Daí que
passei mais de 25 anos usando cabelo comprido, adorava minissaia e gosto até hoje de botinas de
cano alto, tipo masculino, bem daquelas que ela dizia que eu escolhesse qualquer coisa menos
essas. Mas, como vocês devem estar pensando, tudo isso pode ser coincidência e não impertinência
minha com ela. Até porque gosto de costurar, de cortar cabelo – e hoje até uso um tipo curto – e
de comprar sapatos femininos, de salto alto e tudo, muitos que eu nem uso quase.
Ela me comparava infinitas vezes com a prima boa: a que fala baixo, tem compostura para sentar,
vai à igreja, escolheu ser médica, não cria caso. Eu não: falo alto, principalmente se o assunto mexe
comigo, sento de modo deselegante, não tenho religião, não entendo muito bem por que as
pessoas querem estudar medicina e crio caso, invento moda, transgrido um pouco.
De tudo, o que mais me impressionou na Vó Austrália é que ela teve Mal de Alzheimer e se tornou
uma pessoa apática, dependente, sem viço. Exatamente o contrário do que sempre foi, ainda que
algumas marcas tenham perdurado, pelo menos nos raros momentos em que era dona de suas
próprias escolhas: a elegância, o desejo de fazer valer sua vontade, a acidez na crítica aos
comportamentos dos quais discordava (todos os diferentes dos seus).
Minha relação com a memória e com as memórias mudou muito depois que a Vó adoeceu. Na
verdade, mudou a minha relação com quem somos nós, afinal, e o que fazemos da própria
existência.
Uma vez, passando uns dias na casa de meus pais, em uma madrugada, encontrei-a
completamente nua no banheiro, desorientada, sem saber o que estava fazendo ali sem roupa e o
que pretendia afinal. Reafirmei, nessa dura passagem que me arrebatou, a convicção de que é
preciso viver intensamente a vida porque ela passa, e gente ativa, forte e guerreira que nem a Vó
– eu, por exemplo – pode acabar ficando naquele estado degradante e infeliz. Reafirmou-se em
mim a certeza de que é preciso viver os dias e amar as pessoas como se não houvesse amanhã.
No rastro das mulheres-referência, tinha uma Tia Maria, irmã de meu avô paterno, professora dessas
que trabalha quase a vida toda na Delegacia de Ensino, que se manteve solteira a vida toda, fumava
muito, bebia um pouco, jogava baralho e contava piadas. Não posso imaginá-la em uma sala de
aula ensinando crianças, que, como sabemos, quase sempre precisam de uma professora afetiva e
pacienciosa. Ela não seria capaz... Era uma mulher aparentemente de vanguarda para a época, eu
diria. E isso é o que me encantava. O tom transgressivo que ela tinha. Foi rica um dia, porque meu
bisavô era um grande fazendeiro, e essa circunstância lhe presenteou algum repertório-extra. Vê-
la devorada por um câncer de pulmão, no leito de um hospital de servidores públicos, praticamente
sozinha, sem poder fumar e nem divertir a si mesma e às pessoas foi muito triste. Reafirmou-se
172

novamente em mim a certeza de que é preciso viver os dias e amar as pessoas como se não
houvesse amanhã.
E tem minha mãe, uma guerreira que não perdeu a ternura jamais. Se tenho alguma doçura em
mim, certamente foi herança dela.
Nunca poderei esquecer que, quando fiquei grávida de minha primeira filha, aos 20 anos, em
circunstâncias inesperadas e pouco razoáveis, a primeira coisa que ela disse foi “E você está bem,
minha filha?”. Nunca poderei esquecer que ela é uma mãe que perdeu um filho de 13 anos, em
um dia de Natal, afogado em um açude de fazenda, e que sobreviveu, não se tornou uma criatura
amargurada e nem perdeu a fé na vida. A ela devo muito do que eu sou, inclusive a minha profissão
de professora.
Sim, porque minha mãe insistiu tanto para que eu fizesse o Curso de Magistério que eu fiz. Nunca
fui de me curvar a vontades que não me fazem sentido, como era aparentemente o caso, mas
acabei obedecendo, talvez porque sua argumentação mexeu com alguma parte oculta de mim.
O fato é que, desde que eu quis ser algo na vida, quis ser psicóloga. Nunca titubeei quanto a isso.
E professora eu afirmava que jamais seria, porque aquilo não era vida que se pudesse desejar –
assim me parecia, vendo minha mãe, primeiro professora de zona rural, depois tendo que se afastar
de mim porque foi parar em uma escola em Nova Canaã, lá para lá de Santa Fé, depois fazendo
faculdade à noite e acordando de madrugada para lecionar (era assim que ela falava na época),
depois... depois... depois...
Não tinha eco aparente em mim uma proposta de cursar o Magistério, como se pode imaginar.
Mas, contra certos fatos definitivamente não há argumentos: meu pai havia empobrecido na
década de 60, precisou vender a fazenda que tínhamos para pagar dívidas de empréstimos com
pessoas físicas e jurídicas e minha mãe, que nunca atendeu à reivindicação dele para deixar de
lecionar – porque, afinal, ele era um fazendeiro rico e não precisava que a mulher trabalhasse –,
acabou por algum tempo nos sustentando a todos com seu salário de professora.
Talvez tenha sido esse o ponto. Minha mãe dizia que a profissão de professora certamente não me
faria mal algum; bastava olhar para nossa própria situação e constatar o quanto foi oportuna para
ela, para todos nós.
Fui fazer Magistério em um período e colegial no outro, para prestar vestibular de Psicologia, meu
grande sonho.
E entrei na faculdade de Psicologia aos dezessete anos, e aos dezoito me formei professora em nível
médio, e aos dezenove comecei eu a lecionar, e há 29 anos trabalho na área da educação, de
“onde” não pretendo sair tão já. Nunca trabalhei profissionalmente com Psicologia, nunca mais
desejei isso para mim – mudei definitivamente o rumo de minhas escolhas. Mas essa já é outra parte
da história, que nem sei se vou contar.
No rastro das mulheres-referência, há outras fundamentais. Mas ainda sobre minha mãe, quero
destacar algo que foi e é decisivo em minha formação: uma de suas máximas recorrentes, que –
em discurso e atos – herdei e passo adiante, é a de que “quem não tem nada a perder, tem tudo a
ganhar”. Talvez como sagitariana, com certas influências marcantes de Aquário no mapa
astrológico, eu devesse mesmo ser assim, mas suspeito que a ousadia, as iniciativas aparentemente
inúteis em causas tidas como perdidas, o otimismo com que aguardo respostas para essas iniciativas
e às vezes uma certa “cara-de-pau” frente a determinadas circunstâncias talvez tenham muito mais
a ver com esse ensinamento materno que se transformou em sabedoria também para mim.
E sem querer encompridar muito esse capítulo da minha narrativa biográfica, porque ainda há os
homens-referência, vou citar apenas três outros grupos de mulheres: o de minhas filhas, o de
173

minhas amigas e o de minhas valorosas companheiras de trabalho. Duas filhas, algumas amigas –
não muitas, que o meu critério para assim considerá-las é a possibilidade de trocar intimidades e
isso é para poucas – e muitas companheiras de trabalho. Todas queridíssimas, guerreiras, éticas,
criativas na invenção de si mesmas, militantes na vida e na profissão. Parte delas, por essas suas
características, como não poderia deixar de ser, compõem o grupo de sujeitos da minha pesquisa.
E não tomem as poucas linhas a elas dedicadas aqui como um desprestígio, que a questão não é
essa: ou eu as colocaria assim em um único parágrafo ou encheria páginas e páginas de uma
narrativa emocional sobre encontros, acontecimentos, conquistas, aprendizagens de toda a sorte.
Não seria elegante isso aqui.
Sem contar que há ainda as mulheres que não conheci pessoalmente, mas me ensinaram muito
através de suas ideias, de suas histórias, de seus textos, de suas microrrevoluções... especialmente
aquelas maravilhosas mulheres com as quais nossa feminilidade propositiva se forjou, mulheres que
abriram caminho para trilharmos a nossa própria história com outros matizes.
Como são muitas e algumas integram a bibliografia deste trabalho, citarei apenas uma, por quem
tenho profunda admiração: Lou Andréas Salomé (1861-1937). Romancista, poeta, ensaísta,
psicanalista, pioneira do modernismo europeu, autora de cartas e diários interessantíssimos –
infelizmente destruídos em parte, de comum acordo com os amigos com quem se correspondia,
por ela considerar sua intimidade de seu exclusivo interesse. Uma linda russa que, entre outros
figurões, encantou a Nietzsche, Freud, Wagner e Rainer-Marie Rilke, de quem foi amante por vários
anos – ele 14 anos mais jovem, ela casada com um homem bem mais velho com quem nunca se
relacionou sexualmente. Uma metáfora linda que já se usou para caracterizá-la é esta: “Quando
Lou se interessava apaixonadamente por um homem, nove meses depois esse homem dava à luz
um livro”.
Vejam a lucidez e a sensibilidade desta mulher, que há mais de cem anos escreveu o seguinte:
O entusiasmo que se apodera de nós no amor a nenhum outro é comparável. É desencadeado
pelo próprio fato de um ser novo, estranho (pressentido talvez e antecipadamente desejado, mas
nunca apreendido na realidade), nos dar um primeiro impulso – que não provém do meio
formado pelos conhecidos e familiares, nos quais há muito nos fundimos, e que são apenas o
nosso reflexo. Por isso receamos, sempre que a embriaguez cede lugar à moderação, quando dois
seres humanos se conhecem demasiadamente bem, que se evapore a atração pelo novo – e é por
isso que os primeiros momentos da embriaguez amorosa, na luz incerta, vacilante do seu início,
não possuem apenas um encanto indizível, mas também uma violência, tão singularmente
fecunda no seu desencadeamento, que subverte todo o ser e faz vibrar a alma inteira, de um modo
que não voltará a acontecer depois.
É certo que, a partir do momento que o objeto do amor se torna infinitamente conhecido – tendo
apenas sobre nós o efeito de um ser próximo e familiar, não mais o de um símbolo de
possibilidades e energias vitais desconhecidas –, termina a embriaguez amorosa, no sentido
rigoroso do termo (SALOMÉ, 2005, p.16).
Gosto de Lou Salomé porque ela não falava apenas do lugar de quem teoriza genericamente, mas
de quem tematiza a própria experiência. Esse tem sido sempre um desafio epistemológico para
mim, e também por isso me identifico com ela.
Bem... quase todas as outras pessoas-referência na minha formação são homens. Meu pai, alguns
poucos professores, alguns amigos.
Meu pai é parte de minhas moléculas. Penso que uma carta que escrevi para ele há algum tempo
pode explicar melhor do que outras palavras que eu dissesse agora o que isso significa:
174

Pai,
Você, eu e muitos de nós sabemos o quanto pais e filhos se fazem mal e bem uns aos outros. É
da relação humana essa circunstância. Contra isso não há nada que se possa fazer. Os consultórios
dos terapeutas estão cheios de gente tentando se acertar com os males-e-bens dessa complexa
relação.
Não posso – nunca pude, na verdade – esconder de você alguns desses prejuízos.
Mas – porque talvez isso eu nunca tenha feito direito – hoje quero te falar das lições, que são
muito maiores, muito superiores, muitas vezes mais importantes. Das boas lições. Das heranças.
Dos presentes. Das conquistas. Dos benefícios.
Acho que posso dizer, sem ser leviana ou inconsequente, que a minha melhor parte eu devo a
você. Por herança direta ou por um esforço de superação, para me diferenciar.
De você herdei boa parte da parte boa do meu caráter e do meu jeito de ser – a preocupação
com os outros, a generosidade (que é a preocupação posta em prática), a compreensão de que
amor e briga não são antônimos, a indisfarçável capacidade de demonstrar os sentimentos, o
prazer de conversar com as pessoas, a indignação com o absurdo, o ímpeto pelo posicionamento
diante dos fatos, a postura ética, a total ausência de oportunismo, a determinação, a capacidade
de trabalho, o perfeccionismo, o prazer do conhecimento, o gosto pelas questões filosóficas mais
sem-resposta, pela psicologia, pela leitura...
E também algumas características mais sem importância – a crença de que coisas quebradas quase
sempre têm conserto, o talento de acomodar objetos em prateleiras, caixas e porta-malas, o hábito
de não usar carteira, o gosto pelas piadas, o prazer de ganhar livros de presente, a preferência
pelas camisas brancas e sapatos pretos, a fisionomia.
Outras características minhas são uma construção pessoal, às vezes nem tanto original, muitas
delas por tentativa de me diferenciar, superar você, encontrar o meu próprio rumo. A crença de
que tudo vai dar certo, o gosto pelo desafio, o esforço de aceitação das diferenças, o cuidado com
a saúde e a alegria de viver acho que são as principais dessa categoria.
[...] Tenho um profundo orgulho de você e estou plenamente satisfeita com o pai que tenho.
Muito obrigada.
Amo muito você.
Tua filha

Creio que não é preciso dizer muito mais... Apenas que uma de minhas recordações-referência49 –
aquelas que, como as madeleines do Proust, tem o poder de acionar, em grandes doses, o que
pensamos ser o passado – tem meu pai como personagem.
Lá por abril ou maio de 1969, fui morar de novo com minha família. Minha mãe tinha conseguido
se remover de Nova Canaã para Meridiano, e fui transferida da escola de Catanduva, onde morava
com a Vó Austrália, para uma escola chamada carinhosamente de EELAS50, onde cursaria o daí por

Recordações-referência, segundo JOSSO (2002, p.20 e 31), são recordações simbólicas do que o autor de uma narrativa
49

autobiográfica compreende como elementos constitutivos de sua formação: “significa, ao mesmo tempo, uma dimensão
concreta ou visível, que apela para nossas percepções ou para imagens sociais, e uma dimensão invisível, que apela para
emoções, sentimentos, sentidos ou valores’. É o que Marcel Proust, em seu Em busca do tempo perdido atribui às
madeleines, biscoitos em forma de concha do mar, capazes de "evocar” o passado, tal como ele descreve (aqui, de modo
mais reduzido, conforme o livro em quadrinhos, de Jorge Zahar Editor, publicado no Brasil em 2004): “– Ora! Uma
madeleine? – Um prazer delicioso me invadiu, isolado, sem noção de sua causa. De onde viria aquela intensa alegria?
Sentia que estava ligado ao sabor do chá e das madeleines, mas que o transcendia infinitamente, não devia ser da mesma
natureza. A verdade que busco evidentemente não está no sabor, mas em mim. O sabor a despertou em mim... Preciso
recomeçar dez vezes... Tudo bem, o que palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a recordação visual, que, ligada a
esse sabor, tenta trazê-lo a mim. Alcançará a superfície de minha consciência lúcida esta lembrança, o instante remoto... E
de repente a lembrança surgiu. Aquele sabor era do pequeno pedaço de madeleine que, aos domingos, minha tia Léonie
me oferecia...’
50
Escola Estadual Líbero de Almeida Silvares, em Fernandópolis/SP.
175

diante da 5ª série. Eu estava em pânico por ter de entrar em uma turma que já tinha uma trajetória
de meses, no meio do semestre letivo, sem conhecer ninguém, ninguém. Não sei bem por que, eu
tinha de ir até a sala de aula sozinha, o que me apavorava. Mas meu pai furou o cerco das normas
todas, passou uma conversa na Dona Dalva, inspetora de alunos, e me levou até a porta da classe.
Não tem preço e nem possibilidade de esquecimento uma atitude assim, tanto que é essa uma de
minhas principais memórias-referência...
E não posso deixar de citar um outro pai que tive, meu tio, que eu amava profundamente e que
não me ensinou valores muito relevantes, mas me possibilitou o exercício de um amor paterno
redentor, regenerador, compensador. Infelizmente, ele morreu envenenado por picadas de abelha
e até hoje não tive condições de processar a perda. Por isso não me dedico a esse drama e penso
apenas nas alegrias que pude desfrutar na infância, quando ele morava conosco.
Quanto aos professores, os fundamentais em minha vida, foram todos homens e quase todos dessa
mesma escola: Diógenes, Dito, Seu Rui.
Seu Rui era o professor de Química do 2º grau, um homem gordo e simpático que fazia crer que
Química não era algo assim tão desprezível. Até a tabela periódica, com ele, fazia algum sentido.
Mas eu gostava dele acima de tudo porque era tolerante conosco, adolescentes quimicamente
alterados por hormônios e necessidades afetivas.
Dito era o professor de Português e regente do coral. Com ele aprendi que poderia cantar até
mesmo em latim. Pois não é que ele nos levou para cantar em um Encontro de Corais no Teatro
Municipal de São Paulo! E, se caso eu tivesse alguma dúvida em relação à minha capacidade de
escrever, acho que ele teria me feito acreditar piamente que eu era uma boa escritora. Dito me
dava dez e fazia comentários com críticas favoráveis e incentivos em profusão.
Diógenes já era algo além. Vou me dedicar aqui a contar um pouco mais a respeito dele, talvez por
vingança, como ao final vocês verão.
Diógenes era o queridinho dos alunos, alvo dos sentimentos mais... por assim dizer... humanos de
seus colegas professores. Era o professor de Matemática, que trabalhava com propostas de
dinâmica de grupo – que nos pareciam muito bem encaixadas nas aulas, pois tinham a ver com o
conteúdo matemático e com o relacionamento interpessoal dos alunos e não com outros
propósitos que movem as pessoas a enfiá-las no meio de aulas e cursos. Além de ser um professor
de Matemática que se fazia gostar, e também à disciplina geralmente pouco sedutora que
lecionava, coordenava um grupo de teatro na escola e também grupos de jovens (estes fora da
escola) que se interessavam em fazer com ele um tal Curso de Criatividade. Esse curso tinha como
aporte conceitual a Teoria da Organização Humana e seus 14 sistemas sociais específicos
desenvolvida por Antonio Rubbo Muller, algo que, à época, década de 70, se relacionava com os
estudos de Cibernética Social, em que o sociólogo Waldemar de Gregori era uma referência. E, até
onde pude entender, tinha a ver também com algum tipo de ação da CNBB (Confederação
Nacional dos Bispos do Brasil) dedicada à formação do que era chamado de “homem ecumênico”
ou “homem evangélico” ou algo do tipo. Na verdade, penso que, ao fim e ao cabo, tratava-se de
um grupo de formação e autoajuda para adolescentes, que, se não estou enganada, era uma
experiência única com jovens, pois esse tipo de grupo se destinava originalmente a adultos.
O fato é que esse professor, sua forma de lidar com os jovens e o curso que desenvolvia conosco
verdadeiramente nos formou (acho que) a todos. Aqui não me dedicarei a problematizar a
fundamentação teórica do curso e do professor, o que não me parece o caso, mas sim os efeitos
produzidos nas pessoas que tiveram essa experiência – e aí, evidentemente, estou tratando dos
efeitos produzidos em mim e em alguns de meus amigos mais próximos, com os quais converso a
respeito até hoje, e não de todos os participantes, que eram muitos, embora eu arriscaria dizer que
algum efeito formativo essa experiência produziu em todos. Aprendíamos a nos analisar com base
176

na tal Teoria dos 14 sistemas (que tenta abarcar as diferentes dimensões da nossa vida), a nos falar
uns aos outros o que sentíamos e a nos empenhar para ser o melhor que podíamos não por
qualquer imposição da ordem do dever-ser externo, mas por um compromisso (estético, eu diria)
de arrancar de dentro de nós mesmos o nosso melhor simplesmente porque isso era o melhor que
tínhamos a fazer... Passados mais de trinta anos, é assim que me é possível “olhar” para esse
acontecimento do meu passado, e eu diria que acredito não ser este um olhar fantasioso, porque
tenho ainda os materiais e algumas anotações da época que li recentemente e me surpreendi com
os procedimentos de análise que eu utilizava no curso aos quinze anos de idade...
Bem, o curso acabou tornando-se uma instituição chamada O Curso. Fazíamos O Curso. E também
começaram e depois se ampliaram os problemas. Tínhamos de nos reunir em algum lugar – na
casa de alguém que tivesse um espaço adequado –, mas os familiares não podiam participar porque
não estavam inscritos, e tampouco podiam saber exatamente o que lá acontecia porque tínhamos
um contrato de grupo de não levar “para fora” o que ali era tratado. Os tempos eram os de ditadura
militar – logo, qualquer agrupamento, mesmo que de adolescentes, era suspeito... E, pior talvez,
aquele bando de meninos e meninas tinha uma adoração por aquele professor acima do razoável
para o gosto de suas famílias...
Creio que não é preciso ir muito mais longe para que vocês possam compreender a revolução que
isso provocou na cidade, até porque havia também vários grupos de adultos que se reuniam
regularmente. E ninguém sabia o que acontecia nesses grupos!
“Coincidentemente” o nosso querido Diógenes de então, que era também funcionário do Banco
do Brasil, pediu transferência para uma agência em Brasília e, de repente, se foi. Ficamos nós, “sem
pai-nem-mãe”. Houve uma série de cartas a princípio, que depois deixaram de existir.
O fato é que nunca me conformei com aquela saída à francesa de meu querido mestre, tampouco
com a interrupção da correspondência, tampouco do que veio depois.
Ao longo das três décadas que se transcorreram desde a sua transferência, de vez em quando o
procurei – até onde eu sei, fui a única que fez isso. E sempre o encontrei, nos diferentes lugares por
onde passou. E sempre entrei em contato, por meio de uma carta escrita em meu nome e de meus
amigos que, assim como eu, desejavam reencontrá-lo. E ele nunca respondeu.
A última vez foi quando, há poucos anos, o descobri em uma busca na internet: mora em Campinas,
exatamente onde moro agora! Achei que era coincidência demais e novamente lhe enviei duas
cartas (vejam trechos a seguir), a última junto também de uma foto com legenda, indicando quem
era quem.

Caro Diógenes,
Eis-me aqui, Rosaura, depois de anos, tentando um contato novamente!
Minha secretária encontrou-o em Campinas, pela internet. Foi ela quem falou contigo
recentemente, dizendo-se de um jornal, por minha orientação. Eu queria confirmar se havia
encontrado o Diógenes certo no lugar certo, ou se era apenas uma coincidência.
Resolvi então lhe mandar esta cartinha para, quem sabe, tentar trazê-lo de volta para o convívio
de umas tantas pessoas que, a despeito do tempo passado, continuam tendo por você o maior
carinho e uma enorme saudade.
[...] De vez em quando, em nossos encontros, inevitavelmente nos lembramos de você, que teve
uma importância enorme na nossa formação pessoal, como sabe muito bem.
[...] Seria demais sonhar com a tua presença em um encontro nosso?
[...] Não sei se você se lembra de toda essa gente, mas o que posso lhe assegurar, Diógenes, é que,
se você vier nos encontrar, apesar de termos fisicamente envelhecido um pouco (só um pouco!),
177

em certa medida todos nós continuamos absolutamente os mesmos. Você terá a nítida impressão
de que é como se tivéssemos nos visto na semana passada. Já passamos anos sem nos ver, e a
impressão é sempre a mesma quando nos reencontramos!
Você não vai se arrepender de se dar essa chance de nos reencontrar e de nos dar o presente do
seu retorno para o nosso convívio.
Será uma grande alegria para todos nós!
Aguardo resposta.
Um forte e carinhoso abraço
Rosaura

Diógenes,
Escrevi a você no final do ano passado, convidando-o para a minha festa de aniversário e dando
notícias de nossa turma, que ainda se reúne, quase toda, até hoje. Como você não respondeu e
também não compareceu, resolvemos dar um tempo.
Mas queremos que saiba que estamos por aqui.
[...] Só falta você querer nos encontrar.
Sabemos o número do seu telefone e, como bem sabe, também o seu endereço. Mas não iremos
lhe assombrar, se você não quiser.
O que queremos é que você sinalize com algum aceno, qualquer que seja...
Poderíamos fazer um encontro em minha casa. Eu me encarrego de convidar as pessoas. E a você
só cabe um único gesto: dizer sim.
Qualquer que seja a situação, vamos adorar – haverá muita alegria nesse encontro e certamente
muitas lágrimas de emoção, porque continuamos todos tão exagerados, intensos, afetivos,
interessantes, solidários, irreverentes e ainda seus fãs como há trinta anos.
Se quiser, podemos fazer um grande encontro e achar os desgarrados de muito tempo – não
tenha a menor dúvida que não faltaria ninguém...
Aguardamos seu sim. Ou algum sinal.
Um grande abraço
Rosaura
PS. Para nós, não tem a menor importância se você estiver muito diferente e não pensar nada do
que pensava antes. Nós não apenas envelhecemos trinta anos, amadurecemos também. Fique
tranquilo.
PS2. Acho que só ficaríamos um pouco decepcionados se você agora fosse malufista... Mas, em
sendo você, talvez até isso relevássemos...

Nenhuma resposta. Ne-nhu-ma res-pos-ta! Novamente!


Daí uma amiga desse grupo, a mais valente segundo os nossos critérios, dispôs-se a telefonar para
a casa dele. E, às 20 horas de um certo dia, todos os demais, mesmo os que não acreditam nessas
tolices, deveríamos estar mentalizando para que tudo desse certo. O que vocês imaginam que
aconteceu? O que teriam feito vocês no lugar dele?
O cidadão, aposentado como bancário e ainda professor de Matemática em uma escola estadual
de Campinas, disse simplesmente: “Me esqueçam. Não quero encontrar vocês. O passado para mim
ficou lá atrás”. E, pior, meu ex-querido Mestre me humilhou – a mim especialmente. Disse à minha
amiga que às vezes pensa que deveria talvez me procurar porque, afinal, tinha sido eu quem,
durante mais de trinta anos, nunca desistiu de encontrá-lo e sempre esteve no seu encalço!
Decidi então que, caso ele aparecesse em minha porta, eu o trataria como um desconhecido e
sequer lhe dirigiria a palavra. Mas ele não veio. E nem virá.
178

Vou poupá-los de minha análise sobre esse desfecho porque não quero ser deselegante, tampouco
injusta.
Mas não posso deixar de admitir que esse professor me formou. Não é à toa que, mesmo
desprezada por ele, dediquei tantos parágrafos a esse pedaço fundamental da minha história.
Porque talvez o meu interesse pela psicologia, pela educação, pelo autoconhecimento, pela
formação e pela aprendizagem tenham a ver com ele. Ou não...
E, para não ser injusta, citarei de passagem as únicas mulheres professoras a quem me ocorre fazer
alguma referência: Dona Darci e Dona Dagmar, que não tiveram uma relevância assim tão
marcante em minha vida. A primeira foi minha professora da primeira série, cuja lembrança mais
querida que tenho é a de que me deu um vestido de cambraia de linho cor-de-rosa pintado à mão.
Entrei na escola aos seis anos recém-completados, já alfabetizada por minha mãe pelo tal chamado
método global – “Onde está o patinho?” foi a cartilha de minhas primeiras letras – e o que mais me
marcou mesmo foi o vestido que me deu Dona Darci... A outra, Dona Dagmar, uma baiana
minúscula de cabelos muito pretos, foi diretora da escola de minha adolescência e eu gostava dela
porque o “baianês” que ela falava me soava transgressivo e, portanto, muito bem-vindo. Sem contar
que – o melhor – ela era liberal. Vocês não podem imaginar a diferença que faz em uma escola
uma diretora que apoia as inovações trazidas/produzidas pelos professores! Era lá que treinávamos
basquete fora do horário das aulas, que fazíamos o curso de teatro, que ensaiávamos o coral, que
tínhamos aulas de Matemática com dinâmica de grupo... Eu amava aquela escola. Era lá onde eu
passava a maior parte do dia, feliz, feliz, feliz. Lá aprendi a exercitar a cidadania. E a defender os
direitos que precisam ser defendidos. Embora, em tempos sinistros de ditadura, nunca nenhum
professor tivesse feito qualquer referência a respeito. Talvez a minha indisfarçável preferência pelos
atos, e não pelos discursos, tenha se fortalecido nessa escola e por causa dela, por causa d’EELAS.
Não incluí entre as professoras uma pessoa que foi uma referência importante para a minha
formação – Telma Weisz – uma vez que a tomei muito mais como orientadora do que como
professora, até porque não a conheci em funções propriamente docentes, mas sim formadora de
um grupo de estudo. Convivemos muito de perto de 1988 a 2001, e nesses 13 anos aprendi a maior
parte do que sei sobre alfabetização. Com ela aprendi coisas muito importantes, e o que me parece
pertinente destacar aqui é um tipo de conhecimento “inclusor”, ou seja, que nos permite
compreender outras tantas coisas. Um exemplo é como se dá a construção do conhecimento. Foi
com Telma que aprendi o quanto é dialética a relação entre o sujeito que aprende e o que é objeto
de sua aprendizagem. Eu trazia essa perspectiva epistemológica de minha formação anterior, como
estudante e militante estudantil, mas os exemplos concretos de como isso ocorre de fato aprendi
analisando como as crianças se alfabetizam e estudando as teorias que fundamentam esse
processo. Telma foi a primeira pessoa que eu vi relacionar, do ponto de vista epistemológico,
marxismo e construtivismo, e essa relação me pareceu consistente, ajuizada, esteticamente
acertada. Ela me ensinou a ser rigorosa com o que está escrito e a não me encantar com certas
coisas só porque estão escritas, só porque estão bem escritas. Como dizia ela – e certamente deve
dizer até hoje – “o papel aceita tudo”.
Na sequência dos orientadores, eu deveria tratar do papel do Guilherme em minha formação, mas
não farei isso, pois já falei bastante dele. Penso que a única coisa a acrescentar aqui é que Guilherme
é o orientador mais querido. Com ele aprendo pelo diálogo, pela discussão fraterna, pelo riso, pelo
dito e também pelo não dito. É o suficiente.
Por essa mesma razão – não redundar além da medida –, citarei apenas de passagem a importância
formativa da reflexão pessoal e compartilhada, da discussão das ideias e da interlocução com
pessoas tomadas como referência. Afinal, venho tratando do valor desse tipo de experiência para
a minha formação desde a página inicial de agradecimentos. Quero apenas comentar brevemente
179

sobre a discussão das ideias. Alguns dos sujeitos desta pesquisa, com suas histórias e seus
argumentos, trouxeram-me à consciência que assistir e/ou participar do embate de ideias é uma
oportunidade de aprendizagem singular. Depois, discutindo essa questão com Guilherme, ele, com
suas histórias e seus argumentos, fez-me perceber algo que me havia escapado a princípio: a
potência formativa do embate de ideias, quando somos protagonistas, pode ser comprometida,
prejudicada, inviabilizada até, quando o contexto é competitivo e as pessoas, mais do que debater,
querem, pelo menos metaforicamente, destruir umas às outras. É verdade. Aprendemos muito
mais51 quando o embate do qual participamos acontece em um contexto fraterno, de discussão
real, de escuta, de complementaridade. Entretanto, assistir ao embate protagonizado por outras
pessoas sempre pode acrescentar – é o que aconteceu comigo ao assistir filmes de julgamento e
discussões políticas em que os dois lados têm argumentações igualmente consistentes.
E já que toquei no assunto... a militância política, então. Fui militante de organização política de
esquerda, do movimento estudantil, do movimento de mulheres (muito de passagem), do
movimento de professores da rede pública e do Partido dos Trabalhadores, do qual sou uma das
fundadoras em minha cidade da época. Agora, minha militância é em favor da aprendizagem dos
alunos e dos profissionais da educação. E o que aprendi nessas diferentes manifestações da luta
social? Muitas coisas, mas principalmente duas, acho: que a capacidade de se indignar e jamais
tomar as injustiças como “naturais” é o que nos pode fazer guerreiros, e que o desejo e o
compromisso de ser pessoas melhores têm um efeito decisivo na militância pelas causas que
consideramos justas. Quais outras? Bem, participar ativamente de um movimento social explicita a
nós mesmos a nossa condição de fazedores de história. E assim se amplia a nossa compreensão de
quem somos e das possibilidades que podemos construir com as próprias mãos. Desse modo, talvez
essas experiências tenham acentuado a minha tendência de produzir invenções e reinvenções das
coisas que estão ao meu alcance e também de mim mesma. Talvez tenham me feito um sujeito
mais instituinte...
Quanto ao contato com a espiritualidade, que em certos casos produz uma atuação militante, no
meu não teve esse efeito. Minha busca por respostas nesse âmbito teve razões muito mais filosóficas
do que religiosas, semelhantes às que me levaram a, algum tempo depois, estudar astrologia por
uns meses: o desejo de compreender se nossa história já estava escrita desde antes de nos
tornarmos nós mesmos ou se o nosso destino é obra das circunstâncias objetivas e subjetivas que
vivemos e das nossas escolhas, ainda que nem sempre muito conscientes, nem sempre muito
intencionais.
A esse respeito tenho a dizer duas coisas.
Uma – a mais simples – é que tive a sorte de estudar astrologia com um físico que não acreditava
em misticismo e que dizia que o mapa astrológico indica apenas as tendências do sujeito e só serve
como recurso de autoconhecimento e não para adivinhação do futuro: quem transforma ou não
as tendências em realidade é ele, o sujeito, o dono da história. Dizia que horóscopo de jornal é uma
bobagem e que às vezes a configuração do restante do mapa tem mais força na determinação das
tendências do que o signo solar e o signo ascendente. Assim, senti-me autorizada a acreditar em
astrologia e, embora não bote fé em previsões de futuro e em horóscopo de jornal, leio-o quase
todo dia, assim só para ver o que se diz sobre o que pode acontecer...

51
Em junho de 2014, no momento da revisão geral deste texto para a banca de qualificação, eu já não pensava mais deste
modo. As experiências pessoais que vieram depois da escrita deste memorial me fariam dizer que em contextos favoráveis,
com relações dialógicas fraternas e solidárias “aprendemos muito mais despreocupadamente”, se é que se pode dizer
assim. O embate de ideias, em contexto de discussão acirrada, de disputa pessoal e de grande stress, por vezes pode ensinar
tanto ou mais.
180

Outra coisa – esta bem mais complexa – é que ter a justiça como um valor me impede de ser
misericordiosa: não suporto a ideia de uma pessoa possa fazer mal aos outros por toda a vida e
depois, em um ato genuíno de arrependimento, obter o perdão divino por todo o mal feito. Sou
cartesiana nesse sentido: “olho-por-olho-dente-por-dente”, que essa história de perdão me parece
um mau exemplo para os maus. Daí que a hipótese da reencarnação, lá pelos meados da
juventude, pareceu-me a mais justa: “aqui se faz, aqui se paga”. E, o que não pagou, volta
necessariamente para pagar depois. Ou então vai para o limbo, ou vai para o inferno, se a coisa for
hedionda. Depois, quando entrei na Universidade e fui parar no movimento estudantil e na
esquerda, a regra do jogo era não crer no Além, em Deus, nos Santos, nos Orixás, nem em nada.
Até aniversário era desvio pequeno-burguês, vejam só... O excesso de questões com que me
ocupava na época, em plenos dezessete anos, e os inúmeros dragões a liquidar não me permitiram
justapor os preceitos do marxismo-leninismo e o apelo político-ideológico pela não-crença com os
preceitos da doutrina espírita que, embora pouco consolidados talvez por falta de tempo,
demonstravam-se úteis para lidar com a perda de meu irmão no ano anterior. Abandonei o assunto
pela impossibilidade de me relacionar com uma contradição para a qual não tinha tempo e energia
a dedicar. Fiquei com as possibilidades compatíveis, como, por exemplo, a crença na luta armada
como uma alternativa razoável, pois tinha total coerência com a perspectiva do “olho-por-olho-
dente-por-dente”, do “não tem perdão”, do “aqui se faz, aqui se paga”. Mas devo dizer, para encerrar
esse episódio, que me foi muito útil essa opinião supostamente hegemônica de que aniversário era
desvio pequeno-burguês... Talvez tenha sido muito por causa disso que nunca acreditei, assim cem
por cento, nos ensinamentos dos companheiros, da Organização, da Esquerda, dos teóricos da
Revolução: quem defende uma ideia como essa não merece crédito algum, mas, por outro lado e
ao mesmo tempo, quem defende uma ideia como essa também pode defender brilhantemente
outras, tantas, da maior pertinência e com a maior sabedoria... Assim, fui me obrigando a
desenvolver minha capacidade crítica e a não ter adoração incondicional por nada, nem por
ninguém, o que considero, também esse, um dispositivo de formação da maior importância.
Passo então à experiência da psicoterapia. Fui paciente de duas profissionais, uma de orientação
junguiana e outra de orientação psicanalítica, mas não das mais ortodoxas. Foram duas
experiências singulares, das quais extraí muitas lições e que muito me acrescentaram em
conhecimento sobre mim mesma e sobre quem somos nós, humanos demasiado humanos.
Também com elas, as psicoterapeutas, não tive uma relação de subserviência intelectual. Eu tinha
um grande afeto pelas duas, partia do pressuposto de que elas detinham um conhecimento que
poderia me ajudar, não desenvolvia resistência aos encaminhamentos, mas também não me
submetia passivamente a análises que me pareciam sem sentido – em situações assim,
invariavelmente eu pergunto, questiono, argumento, explico... Para que saibam mais ou menos a
que me refiro, certa vez uma delas perguntou por que eu não procurava alternativas para ampliar
meus ganhos financeiros, sugerindo que isso lhe parecia necessário e possível, quando,
concretamente, eu não tinha, naquele momento, a menor chance de considerar essa ideia. A outra,
em uma ocasião, enveredou por uma hipótese de que eu talvez me atrasasse em algumas sessões
porque não valorizava suficientemente aquele tempo de encontro. Daí tive de explicar para ela
umas tantas vezes o que significa sair de uma escola em que você é coordenadora para ir fazer
análise três quarteirões mais abaixo: as mães lhe grudam pelo caminho, ou você tem de atender
uma pessoa que quer ser recebida e não agendou, ou uma criança se machuca, e por aí vai.
Tal como no caso anterior, fui depurando a capacidade crítica de separar o que era pertinente do
que era um deslize à toa. E, em qualquer caso, sempre considerei, a todos, humanos e, nessa
condição, suscetíveis a enganos que não desqualificam de forma alguma as “sacadas” brilhantes
na maioria das outras vezes. Assim, fui passando também a usar comigo o mesmo critério: acredito
que também eu tenho direito ao erro, ao engano, ao deslize, desde que não seja intencional, desde
181

que eu esteja dando de mim o melhor. Embora possa parecer a princípio contraditório, hoje sou
ao mesmo tempo exigente e tolerante, tanto com os outros quanto comigo.
Por fim, para ser justa, embora eu não me sinta no direito de contar o fato em detalhes, preciso
dizer que uma dessas profissionais de quem fui paciente me decepcionou de modo radical. Eu já
não fazia mais análise com ela, mas pedi uma sessão para tratar de um assunto específico. E, qual
não foi minha surpresa, quando de repente eu estava sendo humilhada por ela sem ter a menor
ideia do que era aquilo e qual a razão... O fato de ter um “preconceito positivo” em relação a ela
não me permitia entender que situação era aquela e eu precisei de uns dez minutos depois da
despedida para poder processar o absurdo.
Com ela aprendi que, em algumas pessoas, até mesmo em um psicoterapeuta, posso mobilizar
reações... por assim dizer... pouco razoáveis. Ao que me parece, isso ocorre quando esse tipo de
gente sente que, para os seus critérios, estou sendo “abusada”, ou seja, que não estou me
colocando no meu devido lugar... Essa constatação, embora dolorosa, me foi muito útil: passei a
ser ainda mais cuidadosa para não ocupar mais espaço do que seria de se esperar em certas
circunstâncias.
E continuo acreditando na importância da psicoterapia para todos que podem desfrutar dessa
experiência, tanto que estou me preparando para retomá-la, evidentemente não com aquela
profissional.
Para que não pensem que eu sou boazinha e que deixo as coisas assim “por isso mesmo”, devo
dizer que me vinguei desse estranho ser humano por quem nutria o meu melhor afeto e
reconhecimento: quando me dei conta do absurdo a que ela havia me submetido, quando entendi
o que era aquilo tudo, liguei para o telefone do consultório fora do horário de expediente e deixei
uma mensagem na secretária eletrônica da qual ela não deve ter se recobrado completamente até
hoje. Pena não poder contar essa história com todas as letras, por razões que eu não posso também
dizer quais são – por certo, vocês aprenderiam muito se a conhecessem.
Vou agora tratar em bloco do que tradicionalmente está mais relacionado com a ampliação do
conhecimento de todas as pessoas – a escolaridade, o estudo, as leituras, o acesso às mídias, a
pesquisa, a produção escrita, a fruição das artes, das manifestações culturais, da literatura e de todo
tipo de conhecimento...
Começarei de onde tudo começou: sou filha de mãe professora, como sabem, e de um pai letrado,
que precisou abandonar o Ensino Médio inacabado para compartilhar tarefas de chefe de família
com o irmão e a mãe por conta da morte do pai.
Assim, aos quatro anos de idade eu afirmava saber ler e, desafiada a mostrar como o fazia, apontava
para o escrito e, movimentando o dedo na direção correta, pronunciava “liro-liro-liro-liro”, dando-
me por satisfeita. Aos cinco, ia para a escola rural em que minha mãe dava aulas, na vila onde
morávamos, e ficava copiando as lições que ela anotava na lousa – e, em casa, aprendia a ler,
procurando “Onde está o patinho?”. Aos seis recém-completos, fui matriculada na primeira série,
“como ouvinte”, por não ter idade suficiente, na mesma escola rural. Mas já sabia ler.
Fiz uma terceira série multisseriada e uma quarta série só de meninas (!), aí já em uma escola na
cidade, onde fui morar com minha avó por conta daquela história de minha mãe ter ingressado
como professora lá na fronteira do estado. No meio da quinta, mudei-me e foi quando aconteceu
aquele episódio com o meu pai que contei há pouco.
Sempre estudei em escolas públicas até o final do Ensino Médio. Eram consideradas de boa
qualidade para os padrões da época, mas não posso dizer que a escolaridade me garantiu uma
cultura geral razoável. Na verdade, até hoje me sinto defasada nesse domínio.
182

Eu era considerada excelente aluna: curiosa e interessada em pesquisar e aprender, embora


estudasse pouco (talvez por falta de necessidade), leitora proficiente (mas de restrito repertório
literário), boa escritora (principalmente de cartas, diários e trabalhos escolares), participante de
tudo o que aparecia para fazer, principalmente fora da sala de aula. Mas o fato de morar em uma
cidade do interior do estado não favoreceu a ampliação do meu horizonte cultural: além das
oportunidades serem poucas, também no meu grupo familiar a fruição das artes não era um valor
cultivado. Cinema, literatura, teatro, música, dança, artes plásticas... tudo isso fazia parte muito mais
do que me faltava. Televisão também não havia em minha casa, até meus doze anos, e então
também as informações que chegavam por essa via não me eram familiares. O modelo de
“televizinho” (como chamávamos na época), permitia ver uma novela, um concurso de miss, nada
além. Na verdade, no centro de minhas memórias de infância, nesse território mais... digamos...
cultural, estão as músicas no alto-falante da igreja, o terço itinerante das novenas, as festas típicas
da vila – com seus leilões cheirando a leitoa assada, homens dançando catira, andores e criancinhas
vestidas de anjo na procissão – e... o circo! O circo era o pedaço móvel de um mundo encantado a
nos fascinar... Vinha só de vez em quando e, até voltar, as cores, os barulhos, os sustos e o sabor do
riso fácil ficavam ali vivinhos, tatuados na parte melhor das lembranças. Adorava o circo. Adoro
circo!
Quando cheguei à Universidade, eu era uma mocinha que usava bastante bem as capacidades
que tinha, mas sem muito repertório. Eu sequer sabia que vivíamos uma ditadura militar feroz em
plenos anos 1970! Havia mesmo muitos dragões a liquidar...
Daí, como logo comecei a trabalhar e rapidamente me engajei no movimento estudantil, fui
aprender a fazer e estudar política, e as artes ficaram para o segundo plano. É bem verdade que eu
ia a vários espetáculos de música, ao teatro eventualmente, ao cinema com mais frequência, mas
não posso afirmar que, como estudante universitária, ampliei significativamente o meu
conhecimento das artes. Acho que foi o conhecimento de música o que mais desenvolvi nessa
época: com alguns amigos do interior, eu havia aprendido a apreciar certos gêneros – alguns
tocavam, e um especialmente tinha uma grande coleção de discos e me ensinava muita coisa – e
então fui me tornando melhor conhecedora dos gêneros musicais. Quanto às outras formas de
manifestação cultural e artística, só algum tempo depois de me tornar profissional da educação é
que fui “correr atrás do prejuízo”, como se costuma dizer popularmente. Não me lembro ao certo,
mas creio que entrei pela primeira vez em um museu quando já era professora... E foi somente
depois que ingressei no mestrado, há pouco tempo, portanto, que fiz uma incursão mais radical
pela literatura e pelo cinema. Costumo brincar que faço um programa de autoformação paralela
nessas áreas, pois tenho assistido a muitos filmes e lido literatura o quanto me é possível no curto
tempo de que disponho. Agora, pensando melhor a respeito, compreendo que é isso mesmo o que
acontece: um processo de autoformação.
A leitura dos memoriais escritos pelos sujeitos de minha pesquisa me ensinou muita coisa, conforme
já disse tantas vezes. Mas há uma que quero destacar aqui. Analisar as experiências de algumas
colegas que contam o quanto foi dramática a entrada na Universidade pública – um mundo novo
e desconhecido, no qual se sentiam completamente estrangeiras – permitiu-me olhar com outros
olhos para a minha própria experiência. Conclui que foi uma sorte, para mim, ter ingressado em
uma Universidade privada sem tradição. O que eu trazia era suficiente para que ali eu me
destacasse, ao passo que, se tivesse ingressado em uma Universidade pública tradicional, talvez me
sentisse tão “ninguém” quanto as colegas que relataram seu sofrimento diante de um discurso a
princípio inatingível, de relações interpessoais marcadas pela arrogância intelectual e da falta de
acolhimento com os que chegam sem o repertório valorizado naquele espaço.
Acho que o melhor da Universidade, no meu caso, foi a combinação de três ingredientes especiais
que produziram uma química poderosa para o meu desenvolvimento pessoal: o descobrimento, a
183

militância e a produção de “inéditos viáveis”. A Universidade era apenas o contexto: a instituição


formadora mesmo era a vida universitária. No processo de descobrimento, nas várias formas de
militância e na invenção de inéditos viáveis conheci intimamente o homem com quem vivi mais de
duas décadas, que amei com o meu melhor (e às vezes pior) afeto e com quem partilhei a magia
da produção da vida. É o pai de minhas filhas. Mas sobre ele já falei de início, nos agradecimentos,
e prometi não me repetir aqui.
Para não ser de todo injusta com as oportunidades que tive, devo dizer talvez que a formação
profissional obtida com a passagem pela Universidade me trouxe, sim, alguns benefícios.
A graduação em Psicologia, na verdade, não se converteu em exercício profissional oficial – sim,
porque extraoficialmente faço aconselhamento de casais em crise, dou apoio psicológico a amigos
carentes de orientação e coisas do tipo. E, se querem saber, dizem que sou bem boa nesse
território.... Tanto que fundei, inclusive, uma página na internet para tratar de um assunto que me
é muito caro – as relações humanas52. Lá escrevo outras coisinhas também – por exemplo, os
resultados de uma pesquisa informal que desenvolvo sobre as relações amorosas, nas horas vagas
desta pesquisa aqui, a oficial. É. E, por falta de outro link melhor em outro parágrafo, aproveito para
dizer que sou uma profunda admiradora das TICs – as tecnologias da informação e comunicação.
Hoje tenho dependência química do computador, seja para e produção/edição de texto, seja para
pesquisa e comunicação pela internet. Vivo muito bem sozinha, sem telefone, sem carro, mas não
mais – jamais – sem a internet funcionando. Aliás, eu, meu pai, minhas filhas e a maior parte de
meus amigos.
Quanto à formação em Pedagogia... bem... sobre isso acho que não vou me pronunciar. Diria
apenas que serviu para eu obter um diploma e ascender na carreira como servidora pública, o que
já nem sou. No mais (desculpem os que defendem a enorme relevância dos cursos de Pedagogia),
em relação à formação específica, profissional, não serviu para quase nada, tal como aconteceu
também com os sujeitos da minha pesquisa.
E no fim desta viagem pelas sendas formativas que me constituíram, vou falar sobre as viagens
outras. Viajei muito, muito, muito nos últimos dez anos, por conta do tipo de trabalho que realizo.
Recentemente, em um revival desse período, escrevi o seguinte:
Rio Branco, Manaus, Boa Vista, Belém, São Luís, Barra do Corda, Fortaleza, Maracanaú, Sobral,
Russas, Natal, João Pessoa, Maceió, Batalha, Recife, Olinda, Pau d'Alho, Salvador, Camaçari,
Irecê, Porto Velho, Vilhena, Cuiabá, Goiânia, Brasília, Campo Grande, Cassilândia, Bataguaçu,
Rio de Janeiro, Itaperuna, Niterói, Vitória, Aracruz, Belo Horizonte, Três Corações, Curitiba,
Ponta Grossa, Maringá, Toledo, Loanda, Faxinal do Céu, Joinville, Porto Alegre. E
Itaquaquecetuba, Suzano, Mogi das Cruzes, Arujá, Jacareí, Guarulhos, Osasco, Angatuba,
Itapeva, Campos de Jordão, Olímpia, Ribeirão Preto, Valinhos, Campinas, Hortolândia, Jundiaí,
Campo Limpo Paulista, Caieiras, Cajamar, Presidente Prudente. Em São Paulo. E São Paulo. E
umas cidades lá no México também. Fora o que devo ter esquecido.
Já trabalhei em todos esses cantos nos últimos dez anos... às vezes por horas, às vezes por dias, às
vezes por anos... Eu quero uma casa no campo. Outra vez.
Não é difícil imaginar o quanto aprendi nessas andanças. Pessoas, palavras, culturas, lugares,
fazeres. Desnecessário comentar. Aprendi fundamentalmente a enxergar a óbvia diferença que há
entre homens e homens, homens e mulheres, mulheres e mulheres, crianças e crianças, adultos e
crianças, a depender de onde vivem e para onde olham. Emprestando a metáfora que utiliza Walter
Benjamin em “O Narrador”53 – do camponês, que, em seu mundo restrito, se aprofunda nas coisas,

Para os que quiserem conhecer, o endereço é http://fragmentosdeumdiscursoamoroso.zip.net/


52

Benjamin, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política. São
53

Paulo: Brasiliense, 1994 (obras escolhidas, v.1).


184

e do marinheiro, superficial conhecedor dos muitos mundos por onde passa – eu diria que
experimentei os dois lugares e me tornei uma pessoa melhor porque, desse ponto de vista, sou
híbrida.
Mas devo confessar que as viagens mais importantes para mim foram a primeira, quando aos
quatorze anos saí do meu estado, e a primeira e única para a Europa, quando saí do meu país e
atravessei o mar rumo ao Velho Mundo para abraçar Morena, minha filha que não encontrava há
dez meses, e pisar em lugares com mais de 500 anos! Esse gosto de primeira vez a gente nunca
esquece.
Passo a tratar agora do que ficou para o fim não por acaso ou por ser irrelevante, muito pelo
contrário: as experiências profissionais, algumas, aquelas que penso serem as mais significativas.
Meu percurso profissional se fez a partir dos seguintes “lugares”, por vezes simultâneos: professora,
formadora de professores, coordenadora pedagógica de uma escola (portanto, formadora
também) e assessora de projetos de reorientação curricular, formação de professores, produção de
material pedagógico escrito e videográfico e implementação de políticas públicas na educação.
O que mais me marcou? Difícil dizer.
Mas eu diria que a experiência como professora, especialmente como professora alfabetizadora, foi
a mais dura, a mais estruturante, a mais educativa, a mais formativa. Na educação, hoje não tenho
dúvida, nada é tão difícil como ser um professor competente. E acho que essa convicção só me é
possível porque durante todo o tempo em que fui professora, minha perspectiva era esta: ser
competente. Nesse sentido, posso dizer que aprendi essa lição pela força da experiência.
Não vou cansá-los com uma longa narrativa sobre meus quase trinta anos na educação, pois seria
um contrassenso. Mas vou compartilhar algumas recordações-referência que me parecem importar
porque evocam experiências que são constitutivas da minha identidade profissional e da pessoa
que hoje sou.
Quais?
O primeiro dia em que dei aulas e tinha certeza que as crianças sabiam que era a minha primeira
vez.; o dia em que tive de ensinar divisão de números racionais e não sabia porque 0,...  0,... dá no
que dá; o dia em que levamos as crianças para conhecer o Play Center e uma das mães que foi nos
ajudar se apavorou completamente por não encontrar um de seus tantos filhos na hora de voltar
– mas ele não havia ido!; o dia em que levamos as crianças no Museu do Ipiranga e elas não
entravam de forma alguma no museu porque ... nunca tinham visto um jardim na vida e não
queriam sair de lá!; o dia em que uma aluna veio assustada do banheiro porque tinha saído um
bicho enorme de dentro dela (uma lombriga); o dia em que dei um safanão em um aluno que me
mandou para “aquele lugar”; o dia em que descobri que uma aluna recém-ingressante na escola já
sabia ler fluentemente, e eu não conseguia compreender como isso era possível; o dia em que
descobri que minhas colegas me achavam uma mocinha ingênua cheia de ilusões na cabeça; o dia
em que meu aluno foi para a aula armado com uma pistola; o dia em que meu outro aluno, amigo
desse do revólver, me perguntou, ofendido, porque eu gostava mais do amigo dele do que de
todos os demais; o dia em que o Antonio, meu aluno mais desinformado das coisas do mundo da
escrita, me respondeu “eu sei que aí tá escrito meu nome porque foi você que me avisou”; o dia em
que descobri que o mais importante nem é o professor ter uma prática inovadora, mas acreditar
verdadeiramente que todas as crianças podem aprender.
São muitos dias, como se vê. Memórias de professora. Por que são referências para mim? Porque
essas lembranças evocam as inquietações que me colocavam em movimento, porque mostram
quem eu era, porque são indícios das experiências que me formaram.
185

Como eu disse há muitas páginas, jamais pensei desejar ser professora!


Mas o fato é que, quando lá me vi meio por acaso, em pleno exercício da docência, dei-me conta
de que não podia desistir, porque, se eu pouco sabia, havia quem soubesse ainda menos... E as
crianças não merecem tanto desconhecimento do que fazer com elas na escola.
Entendo muito bem que não há propriamente como ter capacitação a priori para lidar com certas
situações, como lombrigas, pistolas, alunos que passam totalmente da conta, mães desorientadas,
crianças fascinadas com jardins e coisas do tipo. Mas um professor precisa saber porque há crianças
que dão respostas como o Antonio, que não entendia por si mesmo por que aquilo era o seu nome;
e com crianças que já sabem o que ninguém nunca ensinou; e o que fazer quando prefere os alunos
“complicados” e não percebe que os outros percebem; e como ensinar a ler, e como ensinar divisão
e como ensinar tudo o mais para que as crianças aprendam o que é de seu direito aprender na
escola!
Por tudo isso fiquei sendo professora e depois fui fazer outras coisas que poderiam ajudar os
professores, e acho que é o que farei enquanto viver. Vez ou outra digo que estou cansada, que
vou largar tudo e vender sanduíche na praia, mas acho que isso não vai acontecer...
O que quero comentar aqui, pois afinal esse é o tema da pesquisa, é a minha relação com as
instituições em que trabalhei – lembrando que, tal como anunciei na Primeira Correspondência,
estou usando a palavra “instituição” também para denominar os locais de trabalho, as
organizações, os estabelecimentos.
Por contraditório que possa parecer, não creio que a cultura predominante na maioria das escolas
onde fui professora “me formou” do ponto de vista profissional... Pelo menos não positivamente.
Assim me parece. Acho que o que me formou foram, sim, as situações-problema que se colocavam
a partir da cultura hegemônica na escola. E as situações-problema vividas na sala de aula, com os
colegas da escola, com as crianças, com as famílias, comigo mesma, diante dos tantos, tantos, tantos
não-saberes a superar.
A pior experiência foi na escola em que eu era tratada, muito mais do que nas outras, como uma
mocinha ingenuazinha, cheia de ilusões. Eu sugeria os encaminhamentos que me pareciam mais
razoáveis para as crianças aprenderem a ler (fruto do que eu estava estudando54) e elas, as
professoras em final de carreira, diziam que nada daquilo dava certo, nada daquilo podia funcionar,
nada daquilo era razoável. Foi umas das piores experiências profissionais de minha vida, e eu só
desejava que chegasse a hora de me inscrever para a remoção, porque aquilo ali (aquela cultura
conservadora, cristalizada) não tinha a menor chance de mudar e me fazia muito, muito, muito mal.
Porque, afinal, defender a revolução (conceitual que seja) não é algo para se fazer sem aliados, em
completa solidão! Não foram poucas as vezes em que fui para casa chorando de raiva ou de tristeza
pelo que via acontecer naquele lugar, uma escola bem-conceituada, considerada uma das
melhores do bairro...
Um dia, quando sei lá por qual razão, precisei me atrasar uns minutos e perdi o ônibus habitual,
cheguei em casa meia hora depois do transporte escolar deixar as minhas filhas (na época com
cinco e seis anos) e me deparei com Maíra, a mais velha, descascando uma maçã para a Morena
com uma faca (aos meus olhos, na hora) enoooooooorme, sorrindo para mim ao me ver, como se
aquele fosse (e era!) um grande feito seu: alimentar a si mesma e à irmã enquanto a mãe não

54
Devo dizer que o que mais me impulsionou a estudar os processos de alfabetização foi a observação de como minha
filha mais velha aprendia a ler aos cinco anos de idade, contrariando a minha vontade e todas as crenças que eu tinha até
então sobre como se aprende. As crianças nos formam sempre que conseguimos compreender o que elas nos dizem em
palavras e atos ou, pelo menos, quando nos inquietamos genuinamente diante do que não conseguimos enxergar, do que
não conseguimos entender, e daí vamos atrás de explicações que nos respondam os porquês.
186

chegava. Todas as lágrimas que chorei abraçada com elas eram de desolamento: “O que é que eu
estava fazendo naquela escola ridícula enquanto minhas filhas tentavam se virar sem mim?”.
Não fiquei nem um ano. Na primeira oportunidade, fui para outra e aí as coisas melhoraram até
que bem. Havia gente mais comprometida com a aprendizagem das crianças, professores
interessantes, uma diretora bem disponível, crianças da favela próxima que por força da lei tiveram
que ser matriculadas lá (do contrário possivelmente não seriam...), uma unidade de educação
especial vinculada, no mesmo espaço, que atendia alunos com todo tipo de deficiência.... O
convívio com a diversidade era inevitável, por conta dessas circunstâncias e o resultado, para o meu
gosto, muito bom. Matriculei minhas duas filhas lá e hoje todas nós avaliamos que essa foi uma
escolha positivamente decisiva para a formação delas.
Mas havia outra circunstância que acabou contando a meu favor nessa escola. Eu tinha estudado
bastante os processos de alfabetização – justo aquelas coisas desprezadas pelas minhas colegas da
outra escola – e o que eu havia aprendido... por assim dizer... “agora estava na moda”. Daí que no
momento em que resolvi trabalhar de portas fechadas, disposta a não discutir nada com ninguém,
para não sofrer a pressão e o desgaste vividos no ano anterior, fui “descoberta”. E a coordenadora
achou por bem me “mostrar” na Delegacia de Ensino (assim chamava, na época). Fiquei famosa
em pouco tempo, não porque soubesse grande coisa, mas porque o pouco que eu sabia era o que
se esperava que os professores se interessassem em aprender. Dei uma porção de depoimentos em
cursos e eventos, recebi muita gente em minha sala de aula, e até a TV Cultura de São Paulo foi
filmar a minha classe.
Caros colegas, vocês sabem muito bem o quanto o reconhecimento profissional conta
favoravelmente em nossa vida!
Eu tinha uma gratificação nunca experimentada antes: primeiro porque contava com um
conhecimento que favorecia resultados mais positivos com as crianças (e que agora eu podia usar),
depois porque a escola via algum valor em mim, mesmo muitos colegas não concordando com
nada do que eu fazia. Tanto que são desse tempo alguns dos episódios marcantes a que me referi:
o do meu aluno armado, o do outro que me repreendeu pela preferência indisfarçável pelo amigo,
o do Antonio e suas peculiaridades cognitivas, o de meus alunos passando no fim do ano para a
classe de uma professora extremamente tradicional (mas que acreditava na capacidade de
aprender de todas as crianças). No contexto que agora eu vivia, tudo isso me parecia “enfrentável”,
razoável, solucionável de algum modo. Um contexto favorável ao nosso crescimento potencializa,
fortalece, consolida nossas tendências e a poderosa força dos nossos desejos.
Essa escola foi a única em que trabalhei como professora que me formou de um modo positivo não
só pela necessidade de resolver problemas e de lutar contra o estabelecido. As outras não. Mas
pode ser que eu tenha me esquecido...
Nessa época é que comecei a estudar com Telma Weisz, na Secretaria Estadual da Educação de
São Paulo, em um grupo que foi muito importante para mim, porque era ao mesmo tempo um
espaço de estudos e de tematização da nossa prática com as crianças. Tudo o que eu não sabia
sobre uma didática organizada a partir da perspectiva de aprendizagem do sujeito comecei a
conhecer ali, seja por conta das discussões propriamente, seja pela interlocução informal com
colegas que se tornaram para mim referência, justo porque sabiam muito mais sobre o que me
faltava: o conhecimento de como alfabetizar. Nesse sentido, minha maior referência – e até hoje –
é a Rosa (a Rosa Maria Antunes de Barros), a melhor professora alfabetizadora que conheço neste
país, com quem tenho a honra de conviver até agora, passados quase 20 anos!
E nesse grupo, claro, permaneci por vários anos.
187

Depois de doze anos professora, alfabetizadora em vários deles, fui trabalhar, na Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo, com formação continuada de professores alfabetizadores.
Estava o Professor Paulo Freire à frente da Secretaria e eu, então professora da Rede Municipal, de
currículo debaixo do braço, marquei uma audiência com Ana Maria Saul, assessora do gabinete,
para, literalmente, oferecer-me para trabalhar na Administração, uma vez que um antigo
companheiro de luta sindical, “agora” coordenador do núcleo regional a que minha escola estava
vinculada, achou que “por enquanto” não havia nenhuma contribuição que eu pudesse oferecer.
E acabei indo trabalhar sob a coordenação dele...
Confesso que foi um desafio.
Os saberes profissionais que a duras penas construímos no exercício da docência não são
transferíveis para outros lugares... Os problemas são bem outros.
Mas “acabou dando tudo certo”, embora a uma determinada altura eu tenha decidido voltar para
a escola, por razões que não vêm ao caso neste momento. Daí reduzi a “militância” ao meu próprio
núcleo, especialmente ao trabalho de minha equipe, não fui mais às reuniões gerais, e aí foi possível
prosseguir até o final da Administração.
Se o contexto dessa experiência profissional foi formativo? Muito. Tanto em minha equipe
específica quanto no núcleo havia um clima bom, um sentido de grupo, crenças compartilhadas,
trabalho solidário, aprendizagens construídas coletivamente, discussões produtivas (e improdutivas
também) e uma dose necessária de alegria. Problemas a resolver, então, a todo instante, em todas
instâncias. Aprendi muito.
A grande lição?
Quando a realidade testa, o maior desafio para uma pessoa até então engajada, radical, de
princípios sólidos, é garantir a coerência entre o discurso e a ação. Alguns não conseguiram... Acho
que a incoerência é assim como um vício: não se pode ceder a primeira vez, sob o risco de reincidir
sempre e, pior, achar natural.
Depois desses quatro anos, fui “inventar uma escola”. É. Uma escola de pais que queriam para os
seus filhos um projeto educativo de vanguarda. Participei da equipe que elaborou o projeto,
discutiu com as famílias, selecionou os professores, implantou a escola e assumiu a coordenação
pedagógica.
Foi uma experiência profissional ímpar para mim e para os colegas que viveram os primeiros anos
da escola. Formativa. Especial. Singular. Tudo de melhor que relataram os autores dos memoriais
que vocês leram acontecia por lá. Mas, lamentavelmente, a escola padeceu do mesmo problema
que arruinou várias como ela nos anos 90: a impossibilidade de compatibilizar variáveis excludentes
– manter-se pequena, com um projeto de alta qualidade e custo baixo. A escola era paga, porém
sem fins lucrativos e, a princípio, embora pequena, não tinha problemas financeiros aparentes
porque contava com um caixa, resultado de um sistema de depósito feito por cada família,
equivalente à joia de um clube. Entretanto, com o passar do tempo, esse recurso foi se esvaindo ao
mesmo tempo em que se agravou a crise econômica – havia um grande contingente de pais
bancários, que tiveram o salário achatado nesse período, e foi muito triste ver muitos dos que
arregaçaram as mangas para “inventar” a escola precisarem transferir seus filhos por não poder
mais pagar por ela.
Quais as lições?
Muitas. Foram todas experiências formativas. As boas, as não tão boas, a ruins também. Mas há
uma que vou contar a vocês, porque tem tudo a ver com o assunto desta pesquisa.
188

Um contexto solidário, colaborativo, de aprendizagem efetiva tem o poder de mobilizar nas pessoas
“o seu melhor”, mas não tem o poder de mudá-las completamente, tampouco de evitar que o lado
obscuro – que há em todos nós – se manifeste quando é posto à prova.
Vivemos uma crise na escola, que começou por uma razão aparentemente banal e acabou virando
uma “bola de neve” que provocou enorme sofrimento no grupo, resultando em muitos de nós
doentes, sem ânimo, infelizes.
Qualquer um de nós, e quem mais tivesse acompanhado os quatro primeiros anos da história da
escola, jamais poderia imaginar que um grupo como o nosso – coeso, afetivo, com enorme
capacidade de resolução de problemas – pudesse ficar naquele estado, à mercê de suas próprias
(e muitas das quais desconhecidas) limitações.
Aprendemos (não sei se todos, mas muitos de nós) que não estamos imunes às mazelas provocadas
por nossas fragilidades, mesmo quando os contextos são de acolhimento, de amizade, de parceria
de fato e predomina uma cultura “do bem”. O contexto institucional e a cultura que permeia o
funcionamento das coisas podem muito, mas, claro, não podem tudo. E, hoje não tenho a menor
dúvida, em se tratando das instituições educativas, esse muito-mas-não-tudo é suficiente para que
conte a favor do desenvolvimento pessoal e profissional dos educadores e, consequentemente,
ainda que de modo indireto, da aprendizagem dos alunos.
Essa lição, das mais caras, forjou minha atuação nos trabalhos que desenvolvi daí por diante:
sempre que tive algum poder de “dar o tom” nas equipes, nos espaços de trabalho, nas instituições
por onde passei e tenho passado, procuro cuidar com especial empenho desse espaço formativo
que geralmente sequer é tomado como tal: o modo de as coisas funcionarem no cotidiano.
Fiz parte da equipe de coordenação nacional de um programa de grande complexidade,
desenvolvido pelo Ministério da Educação em parceria com algumas universidades e com
secretarias de educação de todo o país – o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores
– PROFA. E também no âmbito de uma rede grandiosa de profissionais, espalhada por mais de 20
estados, pudemos experimentar “outros” modos de funcionar e a possibilidade concreta de
produzir microrrevoluções, de inventar e fazer acontecer inéditos viáveis, de instituir o novo, o
melhor, o mais.
A fé nesse “é possível” tem ido comigo para todos os lugares. E não me arrependo, embora por
vezes seja muito alto o preço...
E, para encerrar definitivamente esta conversa de camponês-marinheiro sobre lições aprendidas,
vou tocar de passagem naquilo que se atravessa por todas as outras aqui relatadas: os dragões –
as situações-problema enfrentadas na caminhada. Se ensinam? Ensinam. Mais do que tudo na vida.
O medo, a perda, o desamparo, a decepção, a necessidade, a encruzilhada, a inexperiência, a
ansiedade, o inusitado, a paixão, o desejo, a aventura, o desconhecido, a invenção de si e das coisas.
Como diz o Larrosa (2001, p.5),
é experiência aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que nos acontece e, ao passar-nos, nos
forma e nos transforma... esse é o saber da experiência: o que se adquire no modo como vamos
respondendo ao que vai nos acontecendo [...] e no modo como vamos dando sentido ao
acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as
coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece...
A pesquisadora que assina este trabalho de investigação foi tocada e transformada por esses
acontecimentos. Por outros também. Mas esses outros não parecem vir ao caso agora. Que, afinal,
aqui o desafio era exercitar uma narrativa pedagógica, levando em conta a concepção de formação
que orienta este trabalho. Ou seja, uma narrativa de como as aprendizagens foram se/me
constituindo a partir da convivência com familiares, amigos e outras pessoas significativas; das
189

práticas mais convencionais de acesso ao conhecimento (a leitura, o estudo, a pesquisa, a produção


escrita, o uso de tecnologias de comunicação e informação, o acesso às diferentes formas de mídia);
das oportunidades de autoconhecimento e ampliação da visão de mundo e da cultura geral (as
viagens, a participação em grupos e movimentos sociais, a experiência da psicoterapia, o
desenvolvimento da espiritualidade, a fruição das artes, das manifestações culturais, da literatura);
da reflexão pessoal e compartilhada; da interlocução com o outro; da discussão das ideias; das
situações-problema vividas; da experiência profissional nas instituições de trabalho. Era só isso.
Reparem que há uma radicalidade estética na afirmação aparentemente óbvia de Leonardo Boff,
quando diz que todo ponto de vista é a vista de um ponto, quando diz que os olhos veem a partir
de onde pisam os pés...
Rosaura

PS. Recebi o texto abaixo como resposta à carta-síntese enviada aos sujeitos que escreveram
memoriais e aos que não puderam escrever, mas responderam o questionário final. Fiquei muito
emocionada com o que disse minha amiga e resolvi inseri-lo aqui porque me pareceu o melhor
lugar.

Para a Personagem Minha Amiga Rosaura:


Tenho saudades daqueles nossos tempos, daquele mundo onde tudo podia ser possível.
Saudades daquele nosso mundo mágico onde as regras não eram seguidas, onde a linha do real era
desconsiderada a fim de fazer valer os nossos sonhos e as nossas verdades.
Sem falar daquele sentimento libertário, tão embriagador, da apropriação do prazer nas oportunidades
do aprendizado.
Acho que você ainda é movida por esses sonhos, é só ver como se determina a essas lutas para o
entendimento e a solução dos problemas crônicos da área da educação.
E ainda acredito que são essas determinações que podem tirar o povo desse atraso...
Zaura, ainda fazemos parte da tribo que tem planos de transformar o Brasil em uma nação próspera!!!!
Um grande abraço deste espírito inquieto, para esse outro espírito inquieto e determinado.
muitos beijos
Sonia Mirio
190

E, agora, venho por meio desta...

[Memorial de formação com as experiências de aprendizagem posteriores a 2007 ou percebidas


depois]

Campinas, outubro de 2012 a dezembro de 2015.


isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além.
Paulo Leminski

Caros leitores,

Quando escrevemos um memorial de formação para compor o registro da nossa pesquisa, uma
dúvida acaba sendo inevitável: o que, afinal, vale a pena relatar? Encontrar essa resposta é
encontrar o ponto de intersecção entre as experiências de aprendizagem mais relevantes de
compartilhar e a possibilidade de manter os leitores – no caso, vocês – interessados e livres do tédio,
o que, convenhamos, é somente uma hipótese, pois a rigor isso não há como saber. Um desafio
quase intransponível, portanto.
Para minimizar o problema, considerei prudentes duas iniciativas. Uma foi situar o memorial de
formação na parte final da tese como um complemento, de modo que os leitores possam optar por
não seguirem com a leitura se não desejarem, sem prejuízo da compreensão da tese. A outra foi
“trazer” o memorial escrito durante a pesquisa do mestrado na íntegra, sem nenhum tipo de edição.
Assim, por um lado, fico mais à vontade para estender a narrativa se preciso for – o que não
aconteceria se, posto no início, o memorial acabasse sugerindo uma leitura necessária para o
entendimento da pesquisa. E, por outro, mantido o mesmo texto que compõe a dissertação de
mestrado, posso não apenas circunscrever o relato ao período seguinte, mas também evidenciar
as experiências que não foram abordadas em 2007 talvez por falta de consciência, na época, do
quanto, de fato, se constituíram em lições para mim e, portanto, são constitutivas de quem hoje
sou.
A esse respeito há uma situação particularmente interessante a relatar de princípio. Quando, em
maio de 2013, fui instigada a escrever sobre a importância de Paulo Freire em minha formação,
fiquei muito impressionada com a consciência reduzida que eu tinha do quanto esse pensador foi
fundamental para mim. Transcrevo parcialmente aqui o texto, uma carta, para não perder a riqueza
dessa escrita no “no ato”.
191

Caríssimo Mestre Paulo Freire,

Diante do convite a escrever para o Seminário “Fala outra Escola” sobre tua importância em
minha formação, não resisti ao ímpeto de me dirigir diretamente a ti porque, ao reunir fragmentos
de meus “encontros” contigo, tomei consciência de que ela é muitíssimo maior do que eu
imaginava.
Primeiro porque tu me ensinaste uma lição inclusora de outras tantas: que respostas para
perguntas que não foram feitas são, por assim dizer, uma falta de juízo pedagógico.
Essa lição ancorou alguns pressupostos que orientaram minha prática profissional como
professora, como coordenadora pedagógica, como formadora e como autora de material de
subsídio para professores e material didático para alunos. E também, e talvez principalmente,
minha militância na vida.
O primeiro pressuposto é que o destinatário de nossa ação, que se pretende formativa, é um
sujeito constituído por sua história pessoal, que constrói seu próprio conhecimento e, portanto,
nossas respostas bem-intencionadas a perguntas inexistentes revelam um método autoritário, por
mais éticos que sejam nossos propósitos.
Outro pressuposto é que, para conhecer o sujeito real que está diante de nós, é preciso tentar se
pôr em seu lugar (apenas tentar, porque esse deslocamento, concretamente, é uma
impossibilidade) e, para tanto, há que se ter um olhar sensível, uma escuta atenta e paciência
suficiente.
Um terceiro é que, se as perguntas não existem conforme nós, educadores, esperamos, o desafio
é gestá-las para que nasçam e se multipliquem de modo que nossas desejadas respostas passem
então a ser respostas a necessidades que em princípio não existiam, mas passaram a existir para
os sujeitos com os quais trabalhamos. "Partir da realidade", "considerar a história" e "valorizar os
saberes" nada tem a ver com práticas espontaneístas e ausência de intervenção pedagógica.
E, por fim, o quarto deles: por tudo isso, seja com os alunos na sala de aula ou com os profissionais
nos espaços formativos, o "x" da equação pedagógica é quando problematizar e quando responder
de pronto, ou, dito de outro modo, quando ajudar a construir soluções pessoais e quando
informar diretamente.
Há muitas outras lições, evidentemente, mas destaquei essas aqui porque, até onde pode chegar
minha consciência, elas são mais constitutivas da profissional que hoje sou.
E quero falar da enorme satisfação de poder me encontrar pessoalmente contigo várias vezes:
uma na escola de pais em que fui coordenadora, numa tarde deliciosa, e outras tantas na Secretaria
de Educação de São Paulo durante alguns anos – tu, secretário e eu, aprendiz de formadora.
Tive o privilégio de participar dos encontros que tu fazias com as equipes e dos diálogos que esses
encontros sempre representaram. Tive a responsabilidade de compor a equipe que editou aquele
vídeo em que tu falavas com todos professores da rede municipal de São Paulo e que foi passado
em todas as escolas logo no início de tua gestão. Tive também a petulância de brigar bastante com
certos “companheiros” que, segundo eu mesma, não agiam de acordo com os princípios que tu
sempre defendeste, e também eu. Quero que saibas que meus cabelos brancos começaram a
teimar desde aí. Foram tempos ao mesmo tempo férteis e difíceis para mim. Porque o exercício
do poder é uma prova inequívoca dos valores que de fato se tem, e não gostei do que vi em uns
e outros com quem me desencantei eternamente.
Depois dessas últimas lembranças, para mim bem tristes, fui dar uma espiada no youtube – é...
agora temos esse recurso que é um poderoso paliativo em certas circunstâncias. E qual não foi
minha surpresa quando, já logo de cara, acho dois filmes mais ou menos breves (sim, porque
contigo nenhuma conversa era breve!) de encontros em que estava eu lá te ouvindo, um deles
justamente no núcleo onde eu trabalhava. Grata surpresa, Professor!
192

Ao assistir a esses registros, fui me dando conta de que talvez eu tenha aprendido mais te ouvindo
do que te lendo... É certo que talvez eu já tivesse uma tendência a fazer falas e escritas mais ou
menos irreverentes, atravessadas por histórias vividas e por algum humor, mas, pensando agora,
acho mesmo que foi tu a me “autorizar” a fazer essas graças, como acho que foi tu que me inspirou
a falar publicamente de amor. O exercício desta escrita agora me fez desconfiar disso tudo – veja
só que produtiva boniteza, como tu dirias, é esta brincadeira de escrever.
E, vejas que coisa... quando defendi minha dissertação de mestrado, foi uma surpresa e uma
emoção ouvir de uma das docentes da banca que o meu estilo de escrita revela um grande cuidado
com o leitor e uma amorosidade que ela reconhecia como semelhante à que se atravessa pelos
teus escritos. Para mim, avaliação melhor impossível! Não bastasse isso, tempos depois, essa
mesma docente me enviou o registro de uma aula dela na universidade em que comparava
afirmações tuas e minhas. Mal pude crer, e de novo fiquei comovida. O fato é que em geral não
percebemos o óbvio, como dizia teu amigo Darcy... e não temos consciência de certas marcas
constitutivas de quem somos.
E, já que estou falando do mestrado, preciso te dizer que o registro da pesquisa foi feito na forma
de cartas, que eu pretendia que fossem (e parecem que são mesmo) narrativas pedagógicas, tanto
pelo conteúdo quanto pela forma. E também nesse caso me inspirei em ti. Transcrevi inclusive o
que disse o Alípio Casali, na capa de “Pedagogia da Indignação”, quando te cita: "fazia algum
tempo que um propósito me inquietava: escrever umas cartas pedagógicas em estilo leve que
pudesse recolocar a educação no espaço do coloquial e do afetivo e reencontrar o essencial da
educação – o diálogo que compartilha e provoca". Quis fazer o mesmo e alguns dizem que
consegui.
Rosaura

Fiquei um tanto atônita com essa tomada de consciência das marcas de Paulo Freire em quem sou,
que eram até então inalcançáveis para mim... Embora teoricamente admitimos que é assim mesmo,
que nem sempre compreendemos porque pensamos ou sentimos ou agimos desta ou daquela
forma, embora saibamos que há em nós um território nebuloso e movediço a que se achou por
bem chamar de inconsciente – tão misterioso que nem espaço físico ocupa –, na hora em que
somos iluminados por essa consciência irreversível, produzida no exercício da escrita, é bem
estranho. Fica uma sensação meio desagradável de que somos muito pouco esclarecidos em
relação a nós mesmos... E, ao mesmo tempo, fica também uma sensação agradável de que, se
tivermos desejo e empenho, escrever é um modo de adentrar a nebulosa, algo parecido com uma
convicção íntima de que, se tudo nos faltar, a escrita estará sempre ali, a nosso dispor e a nosso
favor.
Penso que também a escuta sincera do outro sobre nós é uma contribuição valiosa nesse sentido.
Depois que Lilian Mary, minha prima e melhor amiga da primeira infância, compartilhou comigo
suas sensações durante a leitura do memorial de 2007, pude aprender um pouco mais sobre mim
mesma. Disse-me em um encontro num dia de festa, um tanto desapontada, não ter encontrado
naqueles meus fragmentos autobiográficos o tempo em que convivemos e ter se perguntado se
aquele teria sido um tempo sem importância para mim. De pronto respondi a ela que não, claro
que não – como poderia? – e que vários de meus amigos também estranham em mim a falta de
lembrança de certos episódios dos quais eles se recordam intensamente e discorri uns tantos
minutos a esse respeito. Mas o fato é que depois de ouvi-la assim de repente e de ver seus olhos
interrogativos, fiquei por dias, muitos, a pensar sobre essa passagem...
E me dei conta de que talvez eu tenha, como se diz, “jogado a criança com a água do banho”. O
“apagamento na memória de um tempo da minha infância, em que minha prima querida
protagonizava comigo a cena e os bastidores, parece não ter muito a ver com os esquecimentos
episódicos de acontecidos meio sem relevância geral no curso da vida, aqueles a que meus amigos
193

me remetem – a atitude de um professor, a perda de um objeto, a vitória em um jogo esportivo,


essas coisas.
Imagino que deve ter acontecido algo mais ou menos assim, dizendo metaforicamente: por ser um
espaçotempo de certas pedras no caminho – considerados meus critérios posteriores do que,
naquele tempo, poderiam ser pedras no caminho para uma criança pequena –, acabei por
empurrar para a sombra também as alegrias infantes de um percurso cheio de vitalidade, quando
Lilian e eu vivíamos a brincar incansavelmente no alicerce da casa velha, a dar risadas à toa das
bobagens que dizíamos, a chupar laranjas descascadas pelo tio, a derrubar árvores de natal e a
enterrar ovos de bolos que deram tão errado que sequer chegaram ao forno.
As observações de minha prima, única amiga que tive até os dez anos de idade, ensinaram-me mais
uma vez que, invariavelmente, o passado é um lugar que olhamos “daqui”.
Bem, de todo modo, caros leitores, o critério de escolha de quais experiências narrar em todos estes
fragmentos autobiográficos que compõem os dois memoriais (ou as duas partes do memorial de
formação) é sempre o mesmo: são os que dizem respeito a lições aprendidas em alguns desses
contextos formativos, sobre os quais tratei longamente na dissertação do mestrado:
o convívio e a interlocução com pessoas que se tornaram referências, a escolaridade, o estudo, as
leituras, o acesso às mídias, a pesquisa, a produção escrita, as amizades, as viagens, as situações-
problema vividas, a reflexão pessoal e compartilhada, a discussão das ideias, a psicoterapia, a
militância em grupos ou movimentos, a participação nas instituições, a atuação profissional, o
contato com a espiritualidade, a possibilidade de interagir com as artes, as manifestações culturais,
a literatura e todo tipo de conhecimento...
Ainda sobre as experiências que permanecem ocultas da consciência por uma estranha névoa de
esquecimento, preciso dizer algo – e isso só me foi possível escrever após a defesa, quando me dei
conta de uma delas. Em nenhum dos memoriais me referi ao período de quinze anos em que estive
(e por muito tempo devo permanecer ainda) na coordenação do Instituto Abaporu de Educação e
Cultura. Foi, inegavelmente, um dos períodos mais importantes e férteis para o meu
desenvolvimento profissional-pessoal. Tão essencial que se naturalizou, se atravessou em mim,
ficou transparente e, portanto, pouco perceptível. Também na dissertação de mestrado isso
aconteceu, não no memorial, mas na sistematização do conceito de formação – esse do parágrafo
anterior. A participação nas instituições e a atuação profissional, que eram objeto de análise na
pesquisa, só foram incluídas no enunciado transcrito acima no momento de finalização do texto, e
na época fiquei muito impressionada com esse lapso, pois o que era de se esperar que fosse mais
evidente foi justo o que me passou despercebido. Redobrei a vigilância, na esperança de evitar
repetições desse tipo, mas voltou a acontecer e por certo não terá sido a última vez.
A atuação no Instituto Abaporu me levou para muitos lugares e projetos inesquecíveis de parceria,
em vários municípios e estados que pude conhecer “por dentro”, vivendo, em muitos casos, a
deliciosa experiência de inventar inéditos. Essa década e meia foi um tempo fértil de diversificar o
trabalho e produzir muito: foram propostas de formação inicial, formação continuada e certificação
profissional, orientações curriculares, subsídios para profissionais da escola, documentação da
prática dos educadores, material didático para alunos, vídeos educativos, avaliação de projetos,
assessorias, coordenação de equipes bastante numerosas.
Para que vocês tenham ideia da complexidade de muitas dessas ações, destaco quatro, as três
primeiras no estado do Acre e a última, no Maranhão: produção de material didático e formação
de agentes de educação para atuar no Programa Asinhas da Florestania, de educação infantil
domiciliar para crianças de 4 e 5 anos, em regiões de difícil acesso; coordenação da equipe com
dezenas de autores envolvidos na produção de mais de 80 livros didáticos e guias de orientação
para a Educação Rural; elaboração e desenvolvimento de uma proposta de formação destinada a
194

todos os professores do Ensino Fundamental II e Ensino Médio para abordar especialmente o


trabalho com procedimentos de estudo na sala de aula; e organização da logística e da pauta do
curso preparatório em 19 regiões, coordenação da equipe de formadores e elaboração da prova
de certificação de 1400 gestores do estado todo.
Como vocês podem ver, o não registro dessas experiências, antes, nem de longe significa que
tenham sido irrelevantes...

O que hoje sei

Tivesse o poeta Manoel de Barros dito que a morte é uma coisa indestrutível55, seria essa a epígrafre
deste memorial. Porque algumas das lições existenciais mais importantes que aprendi dizem
respeito, ainda que por vezes de modo indireto, justo com essa coisa indestrutível que é a morte.
São principalmente essas lições que conto agora. E começo pela mais inclusora talvez...
Tenho hoje mais de cinquenta anos. Já de antes, aos quarenta e poucos, a convicção de que, na
melhor das hipóteses, metade da vida já acontecera, colocou-me ‘geograficamente” em uma
desconfortável, mas privilegiada, condição de visibilidade: se já se passou metade ou mais, o que
quero para mim daqui por diante?
O que pensei e escrevi na época retrata esse olhar para os caminhos:
Esta é uma hora de vida que fazemos o possível para desembaçar a memória e a imaginação e daí
olhamos para trás, olhamos para frente, olhamos para trás, olhamos para frente, para trás, para
frente... e pensamos radicalmente no que construímos até então e no que ainda desejamos no
daqui por diante. Não é um momento fácil, nem é preciso dizer... porque, para todos os efeitos,
nos vemos diante de nós mesmos e do efeito implacável das escolhas feitas e do efeito provável
das escolhas por fazer.

Boa parte do melhor de mim hoje é fruto das reflexões que me foram possíveis nos últimos dez
anos, atravessada por um olhar de soslaio para a morte, sempre ali, em seu devido lugar.
Sim, porque quando, aos quarenta e poucos, se olha para um casamento de vinte e cinco anos,
bodas de prata praticamente, fruto de uma experiência de arrebatamento amoroso singular, e se
decide com o parceiro que prosseguir não é o melhor porque há ainda muita vida por viver, mas
não para sempre e nem apequenada de sua grandiosidade, essa é uma lição forjada pelo inexorável
de que o sempre não é infinito.
Descasados, fomos trilhar novos caminhos. Foi quando me apaixonei de novo pela vida, pelas
pessoas, pelos lugares, pelos livros, pelos filmes e até pelo desconhecido de mim mesma. Mudei de
cidade para estudar, fiz novos amigos, guardei meu relógio, priorizei o essencial, deixei de me
incomodar com miudezas sem importância, cortei o cabelo, passei a pintar as unhas, comecei uma
coleção de rolhas de vinhos degustados com os amigos e às vezes só. E, talvez o mais importante
para aprender sempre e infinitamente: agucei o olhar estrangeiro para as coisas mesmas e para as
enganosas aparências.
A formação pessoal que se constituiu nos últimos anos é resultado dessa atitude em relação ao
presente e, mergulhada nas mudanças desse período, não tive suficiente distanciamento para
torná-las opacas e mirá-las reflexivamente quando escrevi a narrativa metacognitiva que veio a ser
o memorial da dissertação de mestrado. Farei isso agora.

55
A afirmação do poeta é de que “morrer é uma coisa indestrutível”, o que talvez não seja exatamente o mesmo...
195

Mas prometo ser breve, pois um amigo me alertou de que a leitura do memorial anterior é densa –
que, segundo ele, arrasta o leitor para prosseguir sem pausa. Tentarei então poupá-los de detalhes
desnecessários que, em um texto autobiográfico, só fazem sentido mesmo ao próprio autor, e, além
disso, sugiro que não façam uma leitura ininterrupta. Se, nas Correspondências anteriores, as
pausas na leitura poderiam eventualmente prejudicar a compreensão, exigindo uma ou outra
retomada, aqui nesta narrativa não é assim.
O fato é que a última década foi marcada por dois momentos distintos e complementares: quando
o indestrutível da morte me faz olhar para o futuro e me enche de urgências em relação ao presente
– e falo disso no memorial de 2007, desta certeza fulminante de que é preciso viver a vida e amar
as pessoas como se não houvesse amanhã – e quando esse mesmo indestrutível me faz mergulhar
no passado em busca de fragmentos perdidos da minha história e de quem sou afinal, autora e
protagonista do meu destino.
Hoje esses momentos se alternam. Mas isso é hoje. Nem sempre foi assim. O primeiro movimento
foi olhar com ousadia a imprevisibilidade do daqui por diante para estimar possíveis. O segundo,
olhar com respeito a irreversibilidade do daqui para trás para compreender as tramas ocultas até
mesmo para mim e recosturar o tecido quando somente alinhavado, malfeito ou esgarçado. Afinal,
como sugere Benjamin e não me canso de repetir, o passado é um lugar que olhamos daqui. E,
sendo assim, é direito nosso uma dose de projeção retrospectiva.
Então vou me deter no daqui para trás.
Alguns meses antes de fazer cinquenta anos, resolvi que faria uma festa grandiosa, um desejo
antigo, e convidaria os principais amigos de diferentes épocas. Iniciei uma busca dos que haviam
se perdido pelo caminho ao mesmo tempo em que vasculhava os álbuns e caixas de fotografias à
procura daquelas que mais diziam de minha amizade com eles para poder digitalizar e enviar por
e-mail antes da festa, de modo a instigar o desejo de aceitarem meu convite. Porque eu os queria
comigo na virada dos meus cinquenta anos!
Até onde alcanço, a aventura de reconstruir o passado começou aí.
Muito do que passou em minha vida, esqueci, a verdade é essa. Sempre tive uma memória bastante
seletiva, segundo critérios muito próprios. Isso significa que, tal como já disse de passagem, não
tenho a mais vaga lembrança de coisas das quais quase todo mundo se lembra e, por outro lado,
guardo muito vivas certas recordações de pequenos episódios, objetos, imagens, cheiros, sabores,
sonhos que me marcaram, e também passagens que parecem insignificantes, e por vezes ninguém
tem.
Por essas e por outras, este tempo de reconstruir o tempo que se foi tem sido uma experiência
emocional palpitante, porém mais ou menos impossível de narrar racionalmente.
Depois de alguns encontros com amigos vindos do passado antes, durante e depois da festa de
aniversário – gente querida com quem convivi intensamente na vida privada –, seguiram-se
encontros com companheiros de militância no Movimento Estudantil – gente com quem convivi
em um momento especialmente marcante em minha história, quando nasci para a possibilidade
de protagonizar uma história coletiva na vida pública. No período que vai de setembro de 2009 a
maio de 2012, aconteceram dois encontros maiores com amigos pessoais, quatro encontros
maiores com companheiros de militância e vários encontros menores com uns e outros, claro,
aqueles de maior afinidade nos dois grupos. E, aos encontros presenciais, somaram-se infinidades
de e-mails nos períodos de preparação e sucessivos day after, que, de certo modo, funcionam como
encontros em pequenas doses, por vezes com elevada concentração de conteúdo emocional.
Depois disso, em junho de 2012, aconteceu outro fenômeno digno de nota: foi criado no facebook
um grupo chamado “Amigos de Fernandópolis”, que, em apenas um mês, reuniu mais de mil
196

participantes de pelo menos três gerações que viveram na “minha” cidade nas últimas décadas.
Mergulhamos todos – especialmente os mais velhos – em um revival coletivo e em um processo de
reconstrução da memória dos anos dourados, com direito não só a compartilhar lembranças de
um tempo muito bom, mas também fotos, músicas e preferências da época – e principalmente
histórias. Nada ficou esquecido: o cinema, a praça, o clube, o footing, a missa, a escola – em especial
os acontecidos fora da classe –, os bailes, as serenatas, as festas, os passeios nas fazendas, os pontos
de encontro todos. Tudo, claro, como não poderia deixar de ser, marcado por um movimento de
ao mesmo tempo supervalorizar e romantizar o passado, o que talvez seja esperado de quem, a
certa altura da vida, precisa ter certeza de que ela valeu a pena. E, de mais a mais, no final das
contas, nossas histórias são tudo o que temos, não é mesmo?
Vejam que tentei operar aqui o “milagre” da descrição de três anos em um parágrafo – longo,
reconheço, mas um apenas. Sei muito bem que não faria sentido escrever um romance
autobiográfico, embora fosse possível, se necessário: a riqueza, a intensidade e a potência formativa
dessa experiência por certo resultariam em uma aventura psicológica capaz de interessar muita
gente.
O que aprendi nesse processo? A primeira lição, um pouco óbvia teoricamente, é que eu era mais
do que eu sabia ser. Para simplificar, é o seguinte: descobri enganos a meu próprio respeito que –
para ser bem honesta – muito mais me encantaram do que me desapontaram. Como seria longo
– e por vezes não muito prudente – relatá-los com as merecidas explicações, vou contar a vocês
um episódio anterior, de outros tempos, que é emblemático desse tipo de engano a que me refiro.
Como já disse antes, tive um irmão que morreu afogado aos treze anos em um dia de Natal. E o
que isso significou, vocês podem imaginar... Eu tinha dezessete, não havia aprendido ainda a nadar
direito e, desde então, passei anos dizendo que tinha medo de viajar de barco, principalmente se
fosse pequeno. Certa vez fui trabalhar por uns dias em Manaus e a pessoa que estava comigo
sugeriu que fizéssemos um daqueles passeios típicos, em barcos grandes. Achei que não teria
problema algum, porque é assim quase um navio, mas acontece que a programação e o tempo
não eram compatíveis com nosso interesse e disponibilidade e eis que então ela propôs que
alugássemos uma voadeira – aquele tipo pequeno de barco a motor onde cabem quatro pessoas
ou um pouco mais. Fui. Normalmente. Sem nenhum apavoramento. Apenas tive a prudência de
colocar colete salva-vidas e não tive medo hora nenhuma, pelo menos até onde eu me lembro.
Algum tempo depois, em uma viagem de trabalho para Foz do Iguaçu, após uma passagem
profissional das mais surrealistas, e inenarrável por escrito, fui fazer aquele passeio em que o barco
vai quase debaixo das cascatas e também não tive medo algum.
Recentemente, conversando a esse respeito com uma amiga, ela comentou que não lhe parecia
bem assim a história do engano em relação a mim mesma, que entendia que vamos mudando com
o tempo, superando aos poucos nossas limitações. Sim, com certeza isso ocorre, mas nesse meu
caso a situação era outra: eu desenvolvi uma fantasia de que tinha um medo enorme, porém
inexistente na realidade, tanto que, sem nenhum empenho de minha parte, sucumbiu ao primeiro
teste – o que significa que, sem dúvida, era um engano.
Vocês percebem que estou querendo que entendam, por esse exemplo, sobre os outros exemplos
que não darei? Aprendi que nós, demasiado humanos, somos pessoas que inventamos coisas
estranhas a nosso próprio respeito e que muitas vezes nos impedem de fazer escolhas essenciais
para nós mesmos. E comentei com essa minha amiga outro episódio ilustrativo dessa inconsciência
sobre quem somos nós afinal: uma vez, assistindo a uma entrevista do Ariano Suassuna, ele
comentou que com cinquenta anos descobriu que detestava café e que tinha passado toda a vida
tomando café todo santo dia, sem se dar conta de que não gostava, como se fosse algo normal,
necessário, natural. É mais ou menos a mesma coisa.
197

Concretamente, eu desconhecia em mim a capacidade de mergulhar em experiências emocionais


de tamanha radicalidade, como aconteceu nesse período de (por vezes) deriva, que acabaram me
levando até mesmo para a flutuante Ilha Desconhecida. Como vocês sabem, os gregos, que tudo
inventaram, inventaram mitos que vivem culturalmente em nós, e com eles, três possibilidades de
tempo: Chronos, o tempo opressivo do relógio; Kairós, o tempo da oportunidade; e Aion, o tempo
do acontecimento que se faz em lampejos de eternidade. Aion é o que se vive na Ilha
Desconhecida. Quando voltamos de lá, olhamos para a morte de outro jeito, porque lá ela
simplesmente não existe. E essa ausência de morte, ainda que ocasional, reconfigura a nossa
relação com a vida. É um ensinamento da experiência esse... e tive o privilégio de conquistá-lo,
ainda que em pequenos fragmentos.
Comentados esses enganos positivamente surpreendentes que tiveram efeitos formativos para
mim essenciais, como vocês podem imaginar, passo a outro aprendizado, do qual confesso que
tenho me orgulhado um pouco, fruto do convívio com as diferenças nas relações interpessoais.
Nem sempre voluntário, nem sempre pacífico, mas sempre reconstituinte de quem sou.
Direi de dois tipos de experiência: a relação afetiva “escolhida” com alguns amigos de quem gosto
especialmente e a relação com meus pais, que embora antiga, desde que nasci, foi redimensionada
a partir de 2007, quando, depois de morar por mais de vinte anos em cidades diferentes, voltamos
a morar perto, quase juntos na verdade, porque hoje em dia no mesmo andar de um mesmo
prédio.
Com meus pais, por onde começo, tudo pode se resumir em poucas palavras, o que não simplifica
em nada a dupla complexidade da questão: de um lado, o convívio permanente com certas
diferenças é difícil, e de outro, o fato de não compartilharmos o cotidiano durante duas décadas
contribuiu para que eu criasse uma falsa imagem de mim mesma, por atribuir a nós diferenças na
realidade inexistentes e que, no dia a dia, se mostram semelhanças por vezes desconcertantes.
Eu não diria que nossos ídolos ainda são os mesmos (pois não somos muito afeitos a ídolos e nem
coincidem as nossas referências), mas que as aparências hoje em dia (acho que) não me enganam
não. A impressionante semelhança nossa em certos traços, justo alguns dos que mais me
incomodam, produziu, um impacto que talvez vocês possam imaginar. E, nesse sentido, a
coincidência nos traços admiráveis, desejados e para mim positivos não garantiu nenhuma
compensação, por tratar-se de uma certeza já muito antiga e, por isso, sem efeito residual.
A impossibilidade de apagar a consciência adquirida do que deles em mim se repete, a despeito de
não ser essa a minha intenção existencial desde os dourados tempos de mocinha, me fez uma
pessoa intimamente mais humilde, é esse o fato. E só por isso comento aqui. Porque a humildade
de quem se vê repetindo o que critica pode até ser teoricamente formativa, e uma atitude sensata
sob todos os aspectos, mas isso não significa que conseguiremos desenvolvê-la em nós apenas por
sabê-la adequada e recomendável. Tenho conseguido... alguns pequenos avanços, eu diria. Talvez
nem representem tanto, mas certamente me fizeram uma pessoa melhor. Quando é assim, a
humildade ensina.
E, no que diz respeito às diferenças propriamente, são dois os aspectos a destacar. Um é o
posicionamento político do meu pai e suas decorrências, especialmente em épocas de eleição. Meu
pai é uma pessoa linda, justa e generosa na vida privada, mas é politicamente conservador quando
analisa a vida pública. Minha mãe, justa e generosa também, já é otimista em relação às mudanças
e aos projetos sociais todos, quantos houver, quanto mais, melhor. Para evitar desgastes maiores,
passei a não encompridar esse tipo de conversa e jamais discutir, a não ser em circunstâncias
impossíveis de ignorar. Não é uma atitude fácil para mim, porque ignorar objetivamente a fala do
outro “não sou eu”, ainda mais quando em meu próprio território. Mas os avanços têm sido
198

bastante razoáveis, eu diria. Por mais paradoxal que possa parecer uma afirmação deste tipo, diria
que talvez o não-diálogo proferido, em certas circunstâncias, é uma forma generosa de amor.
O outro aspecto – que é a forma de lidar com o tempo – já é bem mais complexo, pois tem a ver
com a convivência no cotidiano e não com episódios ocasionais.
Vivemos ciclos de vida distintos, com diferentes demandas e formas de responder a elas. Meus pais,
ambos com mais de setenta e cinco anos, estão em uma fase de realizar tudo com antecedência,
com tempo sobrando, com planejamento, com zelo e atenção, o que, apesar do meu gosto pessoal
por esse estilo, estou no momento impedida de adotar no dia a dia. Para quem mora lado a lado,
faz junto a maioria das refeições, desloca-se de carro pela cidade e tudo o mais que vocês podem
imaginar, às vezes é uma desproporção e um desgaste que, se ficam sob controle (e ficam!), é por
empenho de parte a parte. Esse esforço de ajuste funciona invariavelmente, para mim, como um
espaçotempo de reflexão sobre meus mecanismos pessoais de hoje em dia e os que terei quando
mais velha, possivelmente muito semelhantes, visto que, quanto mais envelhecemos, mais nos
damos conta do quanto as aparências de antes não mais enganam quando chega o depois...
Sobre a experiência de convívio diário com meus pais depois de duas décadas e das lições
aprendidas, é isso o que me parece importante dizer aqui.
Quanto ao convívio com os amigos que miram os acontecidos e os acontecimentos da vida por
outras lentes, priorizei refletir sobre aqueles com os quais compartilhei/compartilho uma
convivência intencional.

As diferenças de compreensão a que aqui me refiro não são as grandiosas e excludentes, que dizem
respeito a temas que envolvem valores mais profundos, como contra ou a favor da pena de morte,
contra ou a favor da qualidade de vida para todos, contra ou a favor do preconceito, contra ou a
favor da ética nas relações públicas e privadas... Esse tipo de diferença dificilmente permitirá um
diálogo real, no máximo um debate, em geral inútil, com o intuito de convencer o outro a mudar
de posição, pelo exercício de convencimento.
Refiro-me às diferenças que, sob certas circunstâncias, permitem um diálogo de verdade. Ou seja,
comportam uma conversa produtiva em que cada um expõe e procura entender o ponto de vista
do outro fraternalmente, com respeito e interesse genuíno. Isso só é possível quando as visões de
mundo e opiniões diferem, mas não se constituem em divergência radical. E, para ter escuta real,
para poder acolher a fala e as ideias do outro, quando não coincidentes com as nossas, é preciso
ter gosto estético pelo diálogo, desprendimento de si e afeto sincero. Isso quando a intenção é
conhecer – e não combater – o seu pensamento, do qual a fala é somente a dimensão audível.
A questão é que, por não conseguirem silenciar sua própria opinião para ouvir a do outro, mesmo
estimando-o verdadeiramente, há pessoas que não exercitam a escuta “real”, especialmente
quando as ideias não convergem – sim, porque ouvir opiniões complementares às próprias é fácil
e é de se esperar que nesse caso haja interesse real em saber o que o outro pensa. A impossibilidade
de escuta ativa, nesse caso, faz com que, por vezes, a postura seja até de uma elegância polida de
“deixar o outro falar”, mas, enquanto isso, a atitude não é um escutar de fato, mas sim um esperar
a vez de tomar ou retomar a palavra. Esse tipo de suposta comunicação – um simulacro
malsucedido, na realidade – tende a funcionar como uma sucessão de monólogos em turnos.
Portanto, apenas o afeto não basta: o compromisso ideológico e o amor pelo diálogo mais a
capacidade de atenção concreta são também essenciais.
Pois bem, em relação a algumas pessoas – portadoras de outras ideias e, consequentemente, de
outras palavras e modos de ser – com quem tenho conseguido praticar uma escuta e uma conversa
verdadeiras, aconteceu um processo semelhante ao que chamo de “apaixonamento”. Nada a ver
com paixão erótica, quando se deseja o outro sexualmente, e pouco a ver com paixão intelectual,
199

pois o encantamento, nesse caso, não é com a potência intelectual, mas com o tipo de pessoa que
o outro é. A explicação mais simples talvez seja mesmo esta: é um sentimento de admiração intensa
que acontece quando nos encantamos com o tipo de pessoa que o outro é. E acabamos por tomá-
lo como referência.
Há muitos anos me convenci que as relações amorosas de casal têm muitas versões não
necessariamente coincidentes: amor, paixão, atração sexual e opção por compartilhar o cotidiano
são quatro sentimentos distintos em relação ao outro, que podem acontecer cada qual sem os
demais, ainda que a cultura predominante e nosso ideal romântico tentem sempre fazê-los coincidir
– produzindo, com sabemos, frustrações de todo tipo. O fato é que podemos ter amor, mas não
paixão; podemos ter paixão que parece amor, mas acaba de repente como começou e ficamos com
a pergunta “Como pude?”; podemos nos sentir sexualmente atraídos, sem que isso signifique amor
ou paixão; podemos ter amor e atração pelo outro, mas não estar propriamente apaixonados e
nem com planos de conviver sob o mesmo teto; podemos compartilhar o cotidiano (e, como dizem,
“comer o pão que o diabo amassou” juntos), mas não haver nem amor, nem paixão e nem atração
sexual, o que, aliás, é bem comum.
Essa convicção, de que são quatro movimentos em relação ao outro e não um apenas, permitiu-
me entender sem muita dificuldade esse tipo de apaixonamento a que me refiro, que não resulta
em um desejo erótico e sexual, mas em um desejo de estar por perto e de ser correspondido em
nossa admiração. No mais, muita coisa é parecida: a necessidade de conversar infinitamente, de
compartilhar a história e os planos futuros, de saber o que o outro acha de tudo, de agradá-lo, de
ajudá-lo. Tal como na paixão erótica, há também uma recorrente lembrança do outro, saudade e,
como não poderia deixar de ser, porque somos demasiado humanos, alguns sentimentos menos
nobres a depender das pessoas e circunstâncias envolvidas como ciúme, inveja e projeções que
com o tempo não encontram ressonância e eventualmente causam problemas.
Não me parece que chamar de paixão intelectual esse tipo de sentimento “dê conta” de tudo o que
ele é, pois nisso que eu descrevo o que encanta no outro é muito mais o jeito de ser, seu modo de
estar no mundo, sua relação com a vida e não capacidade cognitiva, conhecimento e cultura geral.
Há um sociólogo italiano, chamado Francesco Alberoni, que nos idos anos 70 ficou muito
conhecido por ter escrito um livro chamado “Enamoramento e amor”, no qual trata do que
acontece quando nos enamoramos, estabelecendo relações com o que acontece a partir do
engajamento das pessoas nos movimentos sociais. Ele aborda a relação de casal, mas boa parte do
que comenta é pertinente a esse tipo de sentimento a que me refiro. Por isso, usarei a palavra
“apaixonamento”, tomando de empréstimo a caracterização feita pelo autor para o que ele chamou
de enamoramento (para mim, sinônimos), que adotei com alguns ajustes:
Apaixonamento seria então o estado nascente de um movimento coletivo a dois, que tem estreita
relação com os grandes movimentos coletivos da história. Nos dois casos, o tipo de forças que está
em jogo pertence à mesma categoria: os sentimentos de solidariedade, renovação e alegria de
viver. A vida intelectual também se amplia, pois é possível aprender muito, estabelecer novas
relações até então não percebidas, compreender melhor as questões em pauta. A diferença
fundamental reside no fato de que o apaixonamento, ainda que seja um movimento coletivo, só
acontece entre duas pessoas, e encontram-se, ambas, no plano do extraordinário.
Se me dedico um pouco mais a esse ponto é por duas razões principais: uma é nunca ter lido nada
sobre apaixonamento que não fosse erótico ou intelectual, e outra é que considero esse um
contexto afetivo dos mais favoráveis para o diálogo real com o outro e, consequentemente, para
aprender a partir da experiência de conhecê-lo – e a nós mesmos, por comparação.
O apaixonamento pelo tipo de pessoa que o outro é pode acontecer na relação entre pessoas que
se tornam amigas, colegas de trabalho, professor-aluno ou qualquer outra em que haja uma
200

admiração desse tipo – entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, homens e homens, com
diferentes idades, estilos de vida, classe social, culturas distintas, sem que isso represente um
problema, como às vezes ocorre nas relações de casal.
Como no caso dos outros tipos de apaixonamento, também esse geralmente ocorre quando se
acabou de conhecer alguém ou quando se começa a conviver mais de perto com alguém que se
conhecia somente a distância. Ou seja, é o início de um processo fértil de interação humana, o
“estado nascente” do relacionamento, um período de descobrimento do outro, de curiosidade
genuína por conhecê-lo a fundo. Tudo isso favorece a escuta, o interesse sincero por saber e
acolher o ponto de vista do outro, o desejo de compartilhar os próprios, o respeito à diferença.
Nesse contexto privilegiado para o diálogo fraterno, a escuta não significa apenas uma atitude
respeitosa de ouvir o outro porque é seu direito falar, mas principalmente a expressão do desejo
sincero de conhecer o que ele tem a dizer. Paulo Freire (1996, p.119) dizia que
Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no
sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para
a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. Isto não quer dizer,
evidentemente, que escutar exija de quem realmente escuta sua redução ao outro que fala. Isto
não seria escuta, mas autoanulação. A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a
capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar.

Possivelmente a nenhum de nós ocorrerá discordar de que contextos afetivos, amistosos, amorosos
não apenas favorecem, como potencializam a escuta, a alteridade, a escuta alteritária, o diálogo, as
relações dialógicas, o aprender com o outro e sobre o outro, o apreender o outro.
Entretanto, tal como acontece nos demais tipos de apaixonamento, o conhecimento e a
familiarização com aquele que o outro se revela com o tempo – que pode não coincidir bem, ou
pouco coincidir, com as projeções e expectativas inaugurais típica dos extraordinários inícios
afetivos – tende a produzir o fim do fascínio de antes. Aí, das duas uma: mesmo não coincidente
com o imaginado, o outro revelado continua despertando admiração e afeto, embora sem o
deslumbre que havia, ou é tão grande a distância entre ambos que não resta nenhuma admiração
especial.
Talvez essa seja a prova de fogo da capacidade de aceitação da diferença e de diálogo real, pois a
fertilidade do contexto perdeu, assim, parte de sua potência. O empenho há de ser maior para que
não se perca o principal, se de fato houver compromisso ideológico e amor por relações
intencionalmente alteritárias e dialógicas. E como nossa formação cultural é autoritária e
dogmática, por vezes o empenho precisa ser redobrado e mantido sob vigilância, pois a diferença
e a diversidade não têm lugar – a não ser, por vezes, no discurso. O mote do dogmatismo que nos
constitui é, quase sempre, converter o outro – sempre errado ou equivocado, se não tiver opiniões
coincidentes ou ao menos parecidas com as nossas – às escolhas certas e adequadas, ao melhor
caminho.
Pois bem, tomando o apaixonamento (geralmente efêmero) e a relação autoritária (predominante
do ponto de vista cultural) como dois polos opostos, podemos então considerar que o compromisso
de estabelecer diálogos que signifiquem um exercício de interlocução e alteridade intencional, que
produzam interações realmente formativas, é um desafio tão grandioso nas relações humanas que
pode acontecer de nunca conseguirmos vencê-lo. Porque o contexto extraordinário que o favorece
em geral tem existência curta e a formação cultural de todos nós, na prática, tende à dizimação da
diversidade. Além do que o encantamento produzido pelo desconhecido que instiga e seduz,
produzindo um delicioso jogo de descobrimento pode, com o tempo e por circunstâncias várias (e
isso não é raro), vir a se converter em uma relação de disputa movida pela atitude insistente de
marcar posição em relação ao outro. E esse acaba por ser um anticontexto de aprendizagem.
201

No final das contas, o que andei aprendendo com os vai e vem da vida é que, se amamos o diálogo,
teremos de aceitar sinceramente a diferença – não as incompatíveis, claro, que essas já são
incompatibilidades, impossíveis sequer de considerar. Do contrário, não poderemos jamais conviver
de forma fraterna com os membros dissonantes da nossa espécie.
Como essa convivência fraterna é para mim um valor, um desejo e um desafio, acabei adotando
uma posição que considero imprescindível, mas é com toda certeza um desconforto. Em relação à
real aceitação da diferença, estou sempre de olho na coerência teoria-prática, discurso-ato,
convicção-atitude. Na minha e na dos outros. E talvez tenha sido essa posição de vigília o que até
hoje mais aproximou e mais afastou as pessoas de mim. Talvez.
Antes de finalizar, quero ainda dizer uma palavrinha sobre o processo de lucidez compulsória que
adquiri ao acompanhar duas amigas, das mais queridas, em seus tratamentos de câncer, e conviver
com outra, igualmente querida, que perdeu sua filha de 28 anos de um dia para o outro. Livraram-
se, as duas primeiras, dos males que de repente lhes surpreendeu e estão por aí muito bem,
animadas com a vida, produzindo inéditos; e a outra me ensinou lições para toda a vida, que eu
não seria capaz de narrar por enquanto. Mas o fato é que, de novo, a proximidade nem sempre
sutil da morte me ensinou mais uma vez, e radicalmente, a importância de viver o presente com
uma atitude de pertencimento real, a importância das escolhas com as quais tecemos o nosso
destino, a importância de uma presença atenta e sensível no mundo.
Também as demonstrações inesquecíveis de amizade e solidariedade das quais pude desfrutar nos
últimos tempos são lições para todas as vidas...
Encerro este memorial com uma carta que escrevi para mim mesma pouco antes dos 50 anos. E
descobri, ao achá-la casualmente, que talvez o marco do processo de mudança pessoal que
compartilhei com vocês nestes fragmentos autobiográficos seja esta carta, de alguns meses antes,
e não a retirada das fotografias dos álbuns, como eu imaginava...

Domingo, 19 de abril de 2009

[A realidade é o que fazemos com ela]

Meus tios fizeram bodas de ouro e viemos à festa.


No embalo deste interregno-família no curso da vida, passei o dia de hoje na casa onde vivi a infância,
atualmente uma casa de fim-de-semana no vilarejo que nunca deixou de ser isso que sempre foi.
Reformada, com piscina, com gentes, sem horta, sem pomar, sem jardim, sem vasos na varanda, sem
plantinhas, sem galinhas, sem a avó, sem o tio, sem o irmão...
Outra casa!
Mas o mesmo lugar...
Exatamente o mesmo lugar!
Desconcertante...
Por não haver nada muito melhor a fazer, decidi que o melhor a fazer era aprender com o que via, ouvia
e inferia dos não-ditos. A bem da verdade, não sei se prefiro menos os ditos ou os não ditos, pois a falta
do que dizer em geral produz um resultado que eu pessoalmente desgosto.
A conclusão mais conclusiva (embora repetida de outras vezes) é que a realidade é mesmo o que fazemos
com ela.
202

Não me seduzem nem um pouco certas teimosias pós-modernas de que a realidade não existe, porque
esta caneta, esta folha de papel e esta escrita que vai se produzindo a partir dos meus pensamentos-
sentimentos, concretamente, são reais.
Mas o fato é que parte da realidade – e boa parte das nossas memórias do passado – é feita de nossas
projeções ou, dito de outro modo, de nossas “atribuições dos sentidos necessários para nós”. Há um viés
impressionista em nosso modo de olhar para a vida. Aprendi isso hoje mais uma vez.
Vejam só...
Por baixo desta que com certeza não é a “minha” casa, na camada inferior a esta superfície que se vê,
existe então a minha casa de criança, onde moro até hoje... Com seus cheiros, com seus barulhos, com
suas alegrias, com meus medos, com minhas imagens, com minhas impressões. Mas concretamente
minha casa e a menina que eu fui não estão mais aqui... Concretamente, não mais... Apenas
concretamente. Porque minha memória de infância revela a casa que mora logo aqui embaixo desta. E,
quando olho para os meus pais, percebo que é essa que eles veem também. Minha mãe se põe a
reconstituí-la e eu, em resposta, vou complementando: as cores das paredes, a disposição da mobília, a
forma das janelas, os enfeites, nossas coisinhas. [O mais profundo é a pele, Valéry?]
Na casa “de baixo”, na “de verdade”, vivem meu tio e meu irmão. Mas só que eles não estão mais aqui, e
eu choro essa ausência que bravamente (ou covardemente) lutei para aceitar.
Na casa de baixo, na de verdade, há uma menina assustada que ainda existe, mas que quase ninguém vê...
A rua não tem o mesmo tamanho, e quanto a isso não há a menor dúvida. “Lá adiante” – que é como
sempre chamamos o quase fim da rua, onde o tio-avô tinha um bar, onde o nono tinha um armazém,
onde era a escolinha em que estudei, onde borbulhava o movimento – na verdade é logo ali. Esta rua por
onde passei centenas (talvez milhares) de vezes é hoje (mal posso crer!) asfaltada – um ruído muito
estranho em minhas memórias. O caminho até “Lá adiante” definitivamente é de chão batido e não é um
caminho curtinho assim, como aparece agora.
E o tempo aqui passa mais devagar, muito mais devagar...

Não sou alguém com um pé no passado e outro no futuro. Sou feita de passado-e-futuro, mas o pouco de
sabedoria que consegui reunir me aconselha todo dia a pôr-me inteira no presente e extrair da vida o que
eu puder de melhor.
Pois aqui, sobre a laje do poço em busca de um sinal inexistente para o telefone, sob um céu que posso
assegurar que é mais cintilado de estrelas do que qualquer outro, que é mais perto da gente do que os
outros, com sinos que badalam a cada quarto de hora, me dou conta que tenho quase cinquenta anos e,
em um instante fugaz, mas definitivo, encontro o caminho que sequer estava procurando: o melhor a fazer
daqui por diante é viver intensa e completamente os dez anos que virão.
A maior proximidade da morte há de nos ensinar a viver mais e melhor!
Na eminência dos quarenta anos, contrai um pensamento recorrente que resultou em uma metamorfose
na minha vida, da qual eu própria e todos os queridos do meu convívio saímos ganhando. Era assim: “‘Se
tenho quarenta anos e posso ter ainda outros quarenta talvez pela frente, não quero nestes próximos nada
medíocre, porque eu não mereço isso”. E então, a duras penas, arrumei a rota do meu destino: mudei de
cidade, fui estudar, descasei, recuperei os amigos perdidos pelo caminho, ampliei a potência da
maternidade, me apaixonei de novo pela vida, pelas coisas boas da vida, por outras pessoas. E fiquei mais
generosa, talvez resultado de praticar a alegria continuamente.
Assim se passaram esses últimos anos.
E decidi agora que os próximos terão de ser tão bons ou melhores, o que não é uma escolha fácil, porque,
como bem sabemos, com o passar do tempo os desafios só se ampliam. Mas acho que não mereço menos
que isso e hei de encontrar os meios para inventar o futuro daqui do presente.
Quando eu morrer, não quero levar comigo nenhuma pendência importante.
203

O que se fecundou em mim neste dia de domingo agora terá de nascer. E a boa inspiração para o parto
deste destino talvez sejam os ensinamentos de D. Juan, de Carlos Castañeda: é preciso continuar
enfrentando os quatro dragões que nos impedem de adquirir sabedoria – o medo, a clareza, o poder e a
morte. Ou, em outras palavras, a covardia, a certeza absoluta, a possibilidade de manipular o outro e a
falta de garra para inventar a vida.
Isso, me parece, é o que nos faz conquistar um coração inteligente para viver com dignidade e plenitude
a nossa condição humana. Essa ideia de “coração inteligente” meu amigo me contou que é da cabala.
Adotei-a como perspectiva. E ela com certeza é boa para o período que se inicia.
Então agora já vou indo.
... eu tenho de partir para saber
quem sou, para saber qual é o nome
do profundo existir que me consome.
(Sophia de Mello Brener Andresen)

Então agora já vou indo.


Espero que a experiência de seguirem comigo até aqui, caros leitores, tenha valido para vocês.
Se quiserem me dizer se valeu mesmo, serei muito grata! Bastará que escrevam para
rosaurasoligo@gmail.com e com certeza vão receber em troca uma resposta minha.
Aqui me despeço “oficialmente”, com o meu melhor afeto.
Rosaura Soligo
204

Referências

Nota de reconhecimento

Tomo a liberdade de transcrever parcialmente, a seguir, o texto introdutório à bibliografia da


dissertação de mestrado, pois me parece oportuno também aqui.
Se o propósito de uma bibliografia é de fato fazer justiça a todas as fontes que se constituíram em
subsídio para a escrita do texto que a antecede, trata-se de um propósito inalcançável.
Tudo o que li, ouvi, assisti, vivi, senti, pensei... certamente constituíram de alguma forma minha
visão de mundo – e, portanto, orienta o meu olhar e a minha compreensão sobre o que escrevo.
Não há como indicar essas fontes na bibliografia, mas elas podem ser identificadas, em parte, no
memorial de formação que constitui a Correspondência Complementar.
Esclarecida essa circunstância, de que o texto que vocês acabaram de ler não foi produzido com
base somente nos autores e livros aqui indicados, a seguir estão as referências bibliográficas
convencionais.
Concordo com Larrosa (2002) quando, evidenciando a relação estreita entre leitura e escrita, ele
diz mais ou menos assim: escrever é um ir e vir incessante, e em certas ocasiões agitados, entre a
mesa do computador e a estante de livros. É sempre dessa maneira, porque o fato é que nunca
estamos sós nem nos momentos aparentemente mais originais de criação. Ainda bem.
Eis os títulos e autores que ocuparam minha mesa e minha cabeça durante a produção desta tese
e que, por conta de suas publicações oficiais, podem ser citados aqui:

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9788523209186.pdf Acesso em: 06 abr, 2014.
210

Apêndice

CARTAS DA DEFESA

Carta lida por Rosaura Soligo na Abertura da Defesa


Carta lida por Guilherme do Val Toledo Prado no Encerramento da Defesa
211

Campinas, 14 de dezembro de 2015.


Carta lida na abertura da defesa

Queridos,

Quero, de princípio, agradecer a todos: aos membros da banca, que aceitaram o convite para aqui
estar; também aos que aceitaram ser suplentes; a todos os presentes, especialmente os que vieram
de longe; e ao meu orientador, que quis seguir comigo também no doutorado, e, antes disso, há
mais de uma década, no início do mestrado, me escreveu esta autorização, que foi determinante –
vocês não podem imaginar quanto! – na minha formação de pesquisadora:
Considero que você, cara neófita, passou em mais uma prova. Ao deparar-se com o portão
fechado e com o guardião à frente, não esperou ser interrogada para entrar. Simplesmente abriu-
a, sabendo que, se a porta estava ali, era a sua porta e era preciso tomar a melhor atitude e entrar
no lugar que é seu por direito. Outras portas virão, mas estarei lá dentro a te esperar!
Não fosse você, Guilherme, hoje meu amigo querido e meu mestre para sempre, eu certamente
não teria chegado até aqui. Não suportaria todos os ‘tem-quês’ acadêmicos dos quais você me
livrou sem vacilar.
Então...
Sempre tive um amor indisfarçável pelas cartas, a dissertação de mestrado foi escrita em cartas,
depois não consegui escapar dessa ideia para o registro da tese e agora, após os acontecidos todos
que se seguiram a uma carta des|amorosa de Michel à Dilma, não tive dúvidas de que esta
apresentação deveria ser, claro, também uma carta.
Então vou contar um pouquinho do que foram os últimos quatro anos em que a pesquisa e a tese
foram gestadas.
Tudo começou com o desejo de pesquisar a experiência de aprendizagem que acontece pela
escrita na internet, a partir do que poderiam me dizer as próprias pessoas que têm essa experiência.
Foi desse desejo que, desde o projeto original, com o qual participei do processo seletivo, surgiu a
pergunta inspiradora da pesquisa: “Em que circunstâncias, de que modo e por quais razões a
comunicação escrita que acontece no espaço virtual se constitui em experiência formativa para
quem dela participa?”.
Assim, o propósito da pesquisa passou a ser encontrar resposta para essa questão e o tema do
trabalho, a experiência de escrita no espaço virtual.
No percurso, surgiu a necessidade, que se tornou um propósito também, de teorizar a experiência
de pesquisa que estava acontecendo.
Realizei um tipo de pesquisa narrativa que tem como pressupostos as contribuições de dois autores
canadenses – Jean Clandinin e Michael Connelly – e de dois autores espanhóis – Antonio Bolívar
e Jesus Domingo – que são as principais referências teóricas de investigação narrativa no mundo.
Porém me desafiei a uma abordagem um pouco diferente, que foi desenvolvida simultaneamente
também pela pesquisadora Vanessa Simas, presente aqui nesta banca, ambas orientadas pelo
Professor Guilherme, e que achamos por bem chamar de pesquisa narrativa em três dimensões.
A tese apresenta então essa abordagem, experimentada ao longo de quatro anos, que pressupõe
três dimensões narrativas articuladas: das fontes de dados, do modo de produzir conhecimento
durante a pesquisa e do registro.
212

Para que vocês possam entender melhor:


‫؞‬ Os dados foram produzidos a partir das narrativas escritas pelos sujeitos (o que é relativamente
comum em pesquisas qualitativas nas ciências humanas). Essas narrativas foram depoimentos,
em diálogo comigo.
‫؞‬ O percurso do trabalho foi sendo registrado progressivamente, desde o início, em uma
narrativa reflexiva (o que é raro, pois as pesquisas geralmente são registradas somente ao final,
com os dados ‘em mãos’, inclusive as pesquisas realizadas ou orientadas por esses quatro
autores de referência que citei).
‫؞‬ E essa narrativa do percurso – em construção permanente – foi parte constitutiva da
metodologia e também da produção de dados, não apenas uma forma de registro (outro
encaminhamento pouco comum).
As diferenças principais são estas então: as três dimensões narrativas são intencionalmente
articuladas, o registro é contínuo, desde a fase inicial, e traz dados para a pesquisa, que se somam
aos dados produzidos a partir dos depoimentos dos sujeitos (que contaram sobre a própria
experiência).
Essa construção teórica, assim como todo o trabalho, aconteceu a partir de um movimento de
pesquisa da pesquisa na pesquisa (uma ideia trazida já do mestrado), que teve alguns pressupostos
definidos a priori, sendo dois deles (os primeiros) relacionados ao tema e o bloco seguinte à
perspectiva metodológica.
São estes os pressupostos:
‫؞‬ As relações humanas são dialógicas e constituídas pela ação de sujeitos que produzem história
e cultura e realidades, e são (os sujeitos) também por elas produzidos.
‫؞‬ A formação humana é o conjunto de experiências de aprendizagem ao longo da vida.
‫؞‬ É preciso mergulhar com todos os sentidos na pesquisa, considerar o conhecimento legitimado
como um guia sob suspeita, beber em todas as fontes, narrar a vida e literaturizar a ciência.
Esses últimos, na verdade, são recomendações da pesquisadora Nilda Alves, que me foram muito
úteis, justamente por dizerem respeito ao modo de proceder no percurso do trabalho.
Ao compromisso com esses pressupostos se somou a afinidade conceitual com outra pesquisadora
que é uma referência para mim desde o tempo do mestrado, Denise Najmanovich, que instiga o
pesquisador a se implicar intencionalmente com a pesquisa e a entrar no quadro que pinta para,
como sujeito encarnado, participar de uma dinâmica criativa de si próprio e do mundo.
E a consequência foram algumas transgressões em relação aos modos convencionais de proceder
em pesquisa, porque, juntas, essas ideias funcionaram como uma doutrina libertária a não só
permitir, mas exigir, escolhas ajustadas ao percurso.
Mantido o cuidado em garantir o que é essencial em uma tese, as demais escolhas podem
eventualmente soar pouco familiares ou inesperadas a quem tenha um olhar mais acostumado aos
registros acadêmicos convencionais.
São estes alguns exemplos do que pode provocar estranhamento, além da abordagem de pesquisa
narrativa em três dimensões:
‫؞‬ O grupo de sujeitos da pesquisa é considerado um grupo de colaboradores e também a
pesquisadora e o orientador fazem parte dele (somos, ao todo, 24 sujeitos).
‫؞‬ Os autores tomados primeiramente como referência teórica, sempre que possível, são os
próprios sujeitos-colaboradores (alguns com publicações importantes sobre temas
213

relacionados à pesquisa, outros com saberes da experiência que se constituíram em


contribuições fundamentais, outros com contribuições dos dois tipos).
‫؞‬ O saber da experiência, como saber refletido, uma espécie de sabedoria – tal como o formulou
o pesquisador espanhol José Contreras Domingo – tem (para mim e na pesquisa) tanta
importância quanto o conhecimento legitimado pelos processos de produção acadêmica.
Também por isso os sujeitos do grupo foram tomados como referência práxica em primeiro
lugar.
‫؞‬ A opção não foi, como em geral ocorre, identificar o problema de pesquisa a partir de uma
revisão bibliográfica relacionada ao tema. Isso porque, desde que me interessei pelo tema, a
ideia sempre foi investigar o que as próprias pessoas contavam sobre a experiência pessoal de
escrever e aprender nos espaços virtuais. E, a meu ver, essa escolha prescindiria do
procedimento convencional de delinear uma problemática a partir da revisão bibliográfica, dela
extrair um problema e assim legitimar o percurso da pesquisa. Como não encontrei na literatura
nenhuma referência ou estudo a respeito de narrativas sobre a própria escrita online e as
respectivas aprendizagens pessoais nesse contexto, meu orientador e eu concluímos que a
conduta habitual seria um encaminhamento proforma, portanto desnecessário.
‫؞‬ O processo de tratamento dos dados aconteceu de dois modos diferentes e não exatamente
coincidentes com os utilizados na investigação narrativa clássica, resultando, em um caso, na
teorização das contribuições dos sujeitos e, em outro, na composição a partir dos textos
enviados (isso explico melhor adiante).
‫؞‬ O registro da tese é um memorial de pesquisa em forma de cartas, cujos destinatários diretos
são os leitores, seguido de um memorial de formação situado no final – e não no início, como
em geral ocorre – para não ocupar o leitor com algumas dezenas de páginas sobre minha
história pessoal, antes de conhecer a pesquisa. As escolhas do texto que registra a tese foram
feitas tendo sempre em perspectiva primeiramente o leitor, e não as convenções dos textos
acadêmicos – até porque estes, muitas vezes, padecem de uma certa falta de interesse na
leitura.
‫؞‬ Embora o texto seja predominantemente narrativo, ele é híbrido, já que comporta trechos em
formas textuais não narrativas, sempre que foram consideradas as mais adequadas para
registrar o que era preciso.
‫؞‬ E o estilo da linguagem é resultado de um esforço de literaturização, o que criou uma fronteira
indeterminada entre o gênero e o texto, motivando escolhas em relação ao estilo, sempre que
possível ‘leve’ e metafórico, assim como ao tratamento de certas citações, nem sempre
explicadas detalhadamente, e a sequência de informações, por vezes pouco usual.
Sobre o fato de o tratamento dos dados ter acontecido de dois modos diferentes – a teorização das
contribuições dos sujeitos e a composição a partir dos textos que recebi – aqui explico melhor por
meio de um exemplo, pois assim, pelo exemplo, é como sei explicar o que pode ser pouco familiar.
Este fragmento a seguir é um exemplo de teorização, que foi feito por um processo de edição
cuidadosa dos depoimentos que recebi:
São muitos os fatores que interferem nos modos de as pessoas se comunicarem por
escrito na internet, como o grau de intimidade entre elas ou a posição institucional que
ocupam ou o tipo de diálogo que acontece. Não é, portanto, exatamente o espaço da
interlocução o responsável pelos efeitos e pela qualidade do discurso. O que está em jogo
é o que acontece em nós. Porque somos nós a alimentar esses diálogos conforme
podemos, de onde estamos, com as ferramentas que temos, da perspectiva que olhamos.
A comunicação online se faz nos marcos da velocidade, porém isso não significa que seja
necessariamente superficial ou banalizadora. Pode ser breve, profunda e desafiadora –
214

isso dependerá dos sujeitos que interagem. E tudo se realiza por meio da escrita, que
torna viva e ‘falante’ uma comunicação silenciosa.
Vejam...
Nessa versão, assim com essa arrumação das ideias e das palavras, o texto é meu, uma vez que a
formulação foi pensada e escrita por mim. Mas o conteúdo foi composto a partir do que disseram
cinco colaboradores (cinco autores, portanto) ao longo de seus depoimentos e não me pareceu
esteticamente razoável citar cada um em cada trecho recortado e composto com outros no interior
do parágrafo. O texto como tal, no entanto, seria uma impossibilidade não tivessem os sujeitos dito
o que disseram.
É quase como se eu afirmasse em um breve parágrafo que o homem e a mulher são seres sociais,
ao mesmo tempo produtores e produtos da realidade que vivem, demasiado humanos em suas
reações e escolhas, muitas das quais inconscientes. Não fossem as contribuições teóricas de Marx,
Nietzsche e Freud para a compreensão de quem somos nós, afinal, não seria possível fazer uma
afirmação dessa natureza; mas para fazê-la em duas linhas nem sempre será necessário citá-los, não
é?
Também por isso achei muito justo considerar os sujeitos-colaboradores da pesquisa como
referências teóricas, mesmo que nem sempre citados nominalmente.
Sim, talvez fosse muito mais simples procurar uma citação que se aproximasse do conteúdo desse
parágrafo que transcrevi (e de outros tantos do mesmo tipo) e então desenvolvê-la, para ficar
parecida com o que aí está.
Mas por quê?!
Isso seria, de certo modo, uma traição a mim e aos meus colaboradores. A mim, em razão do desejo
de garantir a voz e a vez dos sujeitos da pesquisa, ainda que eles nunca tivessem demonstrado
qualquer intenção dessa natureza. E a eles porque foram essas pessoas queridas que me ensinaram
boa parte do que hoje sei sobre o que pesquisei. Por que, nesse caso, daria crédito a outros então?!
Quanto à composição, diz respeito à contribuição dos que escreveram sobre a experiência de
leitura e escrita de histórias de amor e desamor para o projeto Des|amorosas (hoje com cinco anos
de vida no facebook e mais de 850 histórias escritas por 103 autores), que é um projeto
compartilhado.
Eis o exemplo:
Participar, fazer parte deste grupo faz com que eu me sinta escritor/a de verdade, em extensão e
profundidade, em conteúdo, forma, estilo. Estou sendo capaz de escrever substanciados conteúdos
com tão poucas palavras que chego a pensar que copiei de alguém, tão incapaz era há bem pouco
tempo; ou, por outro lado, multiplicar palavras quando não tenho nada a dizer, de fato, só para exercer
este ofício que agora arranjei: escrever des|amorosas e afins. Escrevê-las tem sido, antes de qualquer
coisa, escrever para mim.
Nem escrevo tanto, mas o que me move é intenso. O que escrevo não é brincadeira. Quando escrevo
aqui, falo do que sinto, do que penso, do que vejo, do que vivo. E arrumo os sentimentos, para ajeitar
as ideias. Quando as leio, assim, ajeitadas por mim, sempre me revejo. Sempre. E elas ecoam quando
vão para a tela... Depois, que nem criança que faz tarefa e aguarda a devolutiva, não raras vezes, espero
as ‘curtidas’ e os comentários. Gostei muito quando vi meu texto aqui publicado pela primeira vez e
mais ainda quando as pessoas curtiram e comentaram – é interessante ver o eco que as palavras podem
causar no outro... Fico esperando para ver o que elas, as palavras-ideias, desarrumam também em
mim.
A cada texto que leio sinto que a proximidade de sentimentos, emoções e experiências com gente que
nem conheço. E é isso o que me encanta. Através dos sentimentos uns dos outros vamos nos
215

reconhecendo e nos vendo espelhados nessas tantas histórias. Acho que preciso dizer novamente que
gosto de fazer parte destas reflexões porque aprendo muito com elas. Passo a conhecer um pouquinho
mais de mim e de todos os outros com os quais vamos tecendo diálogos. Uma experiência muito
singular!
Neste três parágrafos estão as vozes de mais de dez autores de des|amorosas.
Tive a ideia de editar os textos originais que essas pessoas queridas me enviaram, por serem
portadores de sentimentos e opiniões muito, muito semelhantes.
E o que aconteceu então foi um processo de composição que resultou no que eu chamei de uma
narrativa mestiça.
Daí enviei para todas elas pedindo que destacassem os trechos com os quais não se identificavam
e, qual não foi minha surpresa, elas disseram que não só não tinham nada, nada a suprimir, mas
algumas achavam que havia trechos de outros autores que sentiam muito mais como seus do que
os próprios textos! Uma coisa mais linda do mundo...
Bem, somam-se aos autores a que me referi até agora, estes que oferecem referências teóricas
igualmente importantes para a pesquisa e a tese: Adail Sobral (também integrante do grupo de
sujeitos), Boaventura de Sousa Santos, Carlos Skliar (membro desta banca), Dany-Robert Dufour,
Jerome Bruner, Maria Rita Kehl, Mikail Bakthin e Paulo Freire.
E os conceitos centrais da pesquisa e da tese são estes:

Conceitos Centrais

TEMA METODOLOGIA
EXPERIÊNCIA
PESQUISA NARRATIVA

SUJEITO ENCARNADO
EM TRÊS DIMENSÕES

CONHECIMENTO
EMERGENTE
DIALÓGICAS
FAVORÁVEL

SOLIDÁRIAS
CONTEXTO

RELAÇÕES

AUTORIA

METACOGNIÇÃO

ESCRITA REFLEXIVA

FORMAS E MOVIMENTOS DE

INTERLOCUÇÃO MANIFESTAÇÃO
DA SUBJETIVIDADE

Conceitos Complementares
FORMAÇÃO | NARRATIVA | MODOS DE PENSAMENTO | GÊNERO

O título provisório da tese – Experiências formativas em contextos comunicativos ‘virtuais’: o que a


escrita tem a ver com isso? – a partir da qualificação passou a ser este, de agora – A experiência da
escrita no espaço virtual: a voz, a vez, uma conquista talvez – porque o núcleo central do trabalho
se evidenciou naquele momento: esse núcleo é a escrita e a voz que ela encarna.
Acho que essas informações são suficientes para que as pessoas que não leram ainda a tese possam
compreender melhor nossa conversa desta tarde. Afinal, esse tipo de apresentação é justamente
para os que ainda não conhecem o trabalho.
216

Muito obrigada por terem vindo compartilhar comigo este momento importante!
Rosaura
PS. Desde a qualificação do mestrado esses momentos de apresentação da pesquisa têm sido uma
emoção. O mais vibrante talvez tenha sido o dia da qualificação do mestrado, quando vieram
dezenas de amigos e companheiros de jornada que ecoaram comigo um chororô sem fim que
quase fez chorar o Professor Rui Canário, pouco familiarizado com essas brasileirices, visto que em
Portugal parece não ser bem assim.
Acho que isso acontece porque todos sabem ou pressentem que estou ocupando de algum modo
o espaço da Universidade para afirmar, defender e valorizar um saber quase sempre desqualificado,
que é o saber da experiência, o meu preferido talvez...
PS2. Durante a tarde serão projetados alguns fragmentos amorosos, palavras sem pressa que
compõem a tese. A ideia é que vocês conheçam um pouquinho do que está escrito. São falas dos
sujeitos, citações, afirmações que faço, pressupostos, (in)conclusões. Quem quiser saber quem disse
o quê, vai ter de ler o texto inteiro.
[É este o arquivo com todos os fragmentos:
https://www.facebook.com/media/set/?set=a.1074904212544266.1073742213.100000740921
648&type=1&l=7cbc3a12de ]
PS3. Quero dedicar este trabalho às meninas e meninos, estudantes paulistas, que ocuparam as
escolas nas últimas semanas. Simbolicamente. Eles não saberão, mas não importa. Foram eles que,
nestes tempos difíceis que vivemos, renovaram a minha esperança. E provaram – como afirmam
vários dos teóricos que tomei como referência – que, quando tudo está de pernas para o ar, tudo
pode acontecer.
217

Campinas, 14 de dezembro de 2015


Carta lida no encerramento da defesa

Cara e querida Rosaura!


Parabéns! Finalizaste mais esse desafio!
Para ti, realizar a dissertação de mestrado em forma de carta e construir uma investigação sui
generis, marcada por idas e vindas, intensos e contundentes diálogos com os sujeitos participantes
de tua pesquisa – verdadeiros militantes na profissão – e ser muito bem avaliada, tanto por eles
mesmos como pelos membros da banca, inclusive com um participante de outro país, não foi o
suficiente para satisfazer teu desejo de querer mais. Ou seria satisfazer teus desejos e querer mais e
mais? Talvez seja isso... bem cara de Rosaura, não?!
Enveredaste por outras paragens, percorreste outros mundos, lançaste a ti mesma ao abismo e... e
de posse de mais uma pergunta instigante, um dos muitos frutos de tuas muitas inquietações,
desafiaste a ti mesma para mais uma investigação!
O que começou como lugar calmo e tranquilo, porque dominado pela cotidianidade, visto que
muito do teu tempo de trabalho é junto ao computador e ligada na internet, tu transformaste em
um labirinto de questões, em que todos os que nele entravam participavam da aventura de ali estar
e, contigo, dele sair para encontrar... encontrar o desejo de escrever e ser mais!!
Teu exercício de pesquisa, junto a esses tantos sujeitos, inclusive alguns que aqui estão, gerou um
dos produtos mais consistentes e penetrantes que existe em nossa sociedade: a expressão escrita,
em múltiplas formas e com as marcas de quem se propôs a gestar, parir, amparar e cuidar do gesto
de escrever – não só respostas às tuas provocações, mas a perguntas não feitas e a perguntas feitas
em parceria e comunhão, como no caso das des|amorosas.
E nisso tudo, neste exercício cotidiano de pensar tua tese e tua investigação, geraste também a
reflexão desse modo de produzir narrativa na pesquisa em educação. Além da invenção da
“pesquisa da pesquisa na pesquisa”, produziste também a pesquisa narrativa em três dimensões –
fruto da parceria dialógica exercitada com Vanessa e comigo.
Aí, outra marca singular do teu processo reflexivo! Incluir em gênero, número e grau todos os
participantes, todos os que participam desse teu diálogo interior, constituído de múltiplas vozes em
múltiplos contextos, mas que residem inclusivamente e exclusivamente em tua ágora interior.
É dessa interioridade, generosa e sagaz, que quero dizer mais para vocês aqui presentes nesta
defesa de doutorado...
Esse jeito da Rosaura levar as coisas, não só com paixão como também com muita razão, manifesta-
se a partir de um carinho e um cuidado que eu muitas vezes me perguntava, quando era comigo,
se merecia tamanha consideração... E convivendo quase semanalmente com ela, pude perceber e
sentir o quanto ela realiza essa presença com tantas pessoas, próximas fisicamente ou mesmo
distantes, visto que todas são íntimas de sua presença em palavras e escritas!!
Rosaura se faz presente, mais do que nunca, nas escritas que ela compartilha conosco e nas escritas
que ela, singela e argutamente, dirige a cada um de nós. Eu tenho esse privilégio, como muitos de
vocês também têm!
Tanto no PC quanto no laptop, seja em um ou outro pendrive e mesmo em meus dois hardisks, há
arquivos com o nome de Rosaura, repletos de textos dela, textos que ela enviou, sequências de e-
mails, cartas e mais cartas. Inúmeras vezes a leitura destes textos movimentam minha consciência,
mexem com meus sentimentos, produzem novos lampejos e acalentam meus pensamentos.
Rosaura é uma pessoa muito querida para mim!
218

E agora, quando deveria ficar alegre por um momento como este, me peguei em sentimento
querendo adiá-lo para que essa parceria não terminasse com a finalização da tese de doutorado e
sua defesa e... eis que sou tomado pelo assombro e por sua presença. Disse a mim mesmo: “A
danada já havia pensado nisso, ao sugerir criar o curso de extensão para ministrarmos juntos e,
como ele não terminou, teremos mais alguns sábados em 2016 para pensar em como continuar a
parceria, sendo ela, agora, doutora... Que boa ideia!!!”
Ao ser tomado por essa feliz constatação, voltei à felicidade que havia me tomado ao findar a leitura
da narrativa da tese. Felicidade por ter sido participante próximo de todas as decisões que geraram
os arranjos em conteúdo e forma da narrativa investigativa que cada participante da banca
comentou – inclusive um deles de outro país, novamente agora, como não podia deixar de ser... –
e que evidenciam o cuidadoso e afetuoso trabalho com as palavras que Rosaura, como
pesquisadora-narradora-autora, procurou realizar em constante diálogo com os colaboradores de
sua investigação.
Por tudo isso, e por mais algumas coisas, que com certeza acontecerão, findo esta carta
rememorando um poema, não do querido Manoel de Barros, como sempre faço, mas de um poeta
português que também me é caro: Fernando Pessoa, em um dos seus heterônomos, Álvaro de
Campos. Chama-se Adiamento.

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...


Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
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Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...


Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei
finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
Álvaro de Campos – 14-04-1928

Com afeto, carinho e muita admiração, Rosaura,


Forte abraço,
Guilherme

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