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O PODER DA CALCINHA

Fonte: José Neres – Professor. Membro da AML, ALL, APB e da Sobrames-MA


Ela espalhava mal humor por onde passava.
Seus documentos indicavam que ela estava prestes a completar 42 anos. Porém sua aparência
aceitava o acréscimo de pelo menos cinco anos mais.
Chegava de cabeça baixa, não respondia ao boa noite do professor e nem mesmo das poucas
colegas de classe que ainda tinha paciência para tentar cumprimentá-la. Era possível sentir até
um certo alívio da turma nos raros momentos em que ela faltava às aulas noturnas do curso de
Pedagogia naquela faculdade particular.
Mesmo quando quase toda a turma sorria de algo, ela permanecia séria e compenetrada. Nos
trabalhos em equipe, sempre falava por último em uma voz quase inaudível. Era quando ficava
mais exposta. Suas roupas demonstravam claramente que ela, a moda e a vaidade não há muito
tempo não trilhavam os mesmos caminhos.
Mas, naquela noite, todos se surpreenderam…
Ela chegou e soltou um sonoro boa noite. Sua voz estava tranquila e sua pisada firme era de uma
mulher decidida. Os trajes eram os de sempre, mas ali dentro estava uma outra mulher. Um
sorriso de felicidade e o brilho nos olhos devolviam-lhe a idade que estava nos documentos e
talvez ainda lhe aliviasse de alguns anos.
Não e disse: “Muito bem. Quanta alegria! Divida conosco o motivo de tanta felicidade!
Era ainda bastante cedo. A maioria dos alunos ainda não haviam chegado. Ela acomodou na
carteira algumas sacolas que trazia nas mãos, levantou a cabeça, olhou para a todos e respondeu
orgulhosa:
– É que eu comprei uma calcinha, professor.
Depois de breves segundos de espanto, a gargalhada foi geral. Ela ria mais que os demais.
Depois pediu silencio e explicou:
– Parece bobagem, mas para mim não é. Comprei uma calcinha.
Todos ficaram em silêncio e aguardaram o que ela ensaiava falar:
– Casei cedo. Não pude estudar no tempo certo. Tive quatro filhos. E sempre fui humilhada,
primeiro por meus pais, depois por meu companheiro. Jamais ganhei um centavo na vida.
Dependia dele para tudo. Até mesmo para comprar calcinha. Muitas vezes tive que ouvir: “Tu não
faz nada e ainda me pede dinheiro para comprar calcinha, que absurdo”. “Pra quê você que
calcinha de novo? Usa as velhas mesmo, ninguém vai ficar sabendo”… Era muita humilhação na
minha vida. O senhor, entende, professor, uma mulher que tem que se humilhar para comprar
uma calcinha não tem mais dignidade, não tem como sorrir, não tem como ser feliz…
Fez uma pausa. A voz embargada contrastava com uma faísca de felicidade que saía de seus
olhos.
– Lá em casa foi uma briga quando decidi estudar. Se não recebia dinheiro para calcinha que dirá
para cadernos, canetas, lápis, livros, cópias. Tive que roubar material de meus filhos para não
passar mais vergonha ainda. Sentar ao lado de cada um de vocês aqui na sala sempre foi para
mim um ato libertador. Mas eu tinha que voltar para casa, arrumar e engolir cada humilhação em
silêncio. Ele nunca me deixou trabalhar nem mesmo de doméstica ou de babá. Na volta do
mercado, tenho que devolver até o último centavo de troco. Nunca passei fome, é verdade, mas
comida não é tudo.
Todos na sala estavam paralisados. Duas ou três pessoas havia chegado durante o depoimento e
nem mesmo conseguiam sentar-se diante daquela história inusitada.
– Mas, pessoal, vocês lembram que surgiu aquela notícia de estágio remunerado naquela escola
lá do centro? Pois é, fui com a cara e a coragem. Enfrentei meu medo, meu nervosismo, minhas
dificuldades e um monte de candidatos daqui e de outras faculdades. Fui bem na entrevista e,
mês passado, comecei a estagiar. Foi difícil. Tenho convivido com a cara amarrada do marido e
com a cada de deboche de meus filhos.
Ela se levantou de onde estava. Veio até a frente da sala e, após respirar bem fundo, disse
calmamente:
– Hoje saiu o pagamento do estágio. Antes de vir para cá, passei em uma loja e comprei uma
calcinha. A primeira em toda a minha vida que comprei com meu dinheiro. Vocês nem imaginam
como estou me sentindo hoje. Sou outra mulher. Sou outra pessoa. Professor, na hora da
chamada, diga meu nome bem devagar. Estou descobrindo quem realmente sou.
Todos os rostos da sala estavam banhados em lágrimas. Aplausos. Abraços…
Era hora de iniciar a aula. No momento da chamada, todos os olhares se dirigiram para aquela
nova e poderosa aluna. No silêncio da sala, ela se levantou, correu os olhos por cada fileira e, de
seus lábios, ecoaram um potente grito de liberdade:
– Presente!

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