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DECLÍNIO

Para aquela a qual amei e decepcionei


e para aqueles que ainda vou decepcionar
Capítulo 1

Seis e quarenta e cinco da manhã. Meus olhos enxergavam uma porta,


uma xícara branca em minha posse, enquanto minhas costas sentiam um peso,
porém não sabia se era por mais um dia de trabalho ou devido a mochila que,
apoiada em meus ombros, me atraia ao chão. Enquanto pensava se deveria
realmente entrar, gotas de chuva me expulsaram da calçada, pois pelo tempo
que fazia, sabia que o pingo que caía no momento se tornaria logo logo uma
imensa tempestade. Era verão, ou seja, estava muito quente ou o tempo
simplesmente se fechava e era preciso o uso de casaco. Não estava com saco
nenhum para ficar secando minhas roupas ou arcar com algum prejuízo.
Inspirei inclinando o queixo para cima, subindo o peito e sentindo aquele ar
passar pelo meu nariz. Esperei um pouco, com o ar em meus pulmões.
Expirei, jogando meus ombros para frente em puro cansaço enquanto fechava
meus olhos em algum tipo de relaxamento… Abri e entrei.
Aos corredores, via, enquanto caminhava para a sala dos professores,
aqueles alunos que por ventura chegavam mais cedo, alguns funcionários e
Paula. Sorri e dei bom dia, segui e entrei numa sala confortável e quente.
Havia uma mesa redonda ao centro, com textura de madeira na borda e vidro
no meio. Um amontoado de papéis repousavam sobre a superfície, com café
escorrendo e pingando. Um sujeito gritava para Paula vir limpar naquele
instante, com uma extrema arrogância de poder, de opressão. Esperado de
quem conseguira emprego por jeitinho em uma escola direcionada para
alguns amigos e não profissionais, onde o próprio diretor ignora em grande
parte a existência dela. Dois sofás de couro marrom ficavam postos ao canto
da sala, com armários azulados próximos. Ainda tinha uma porta que dava
numa sala retangular, esticada, com uma longa mesa na parede que poderia
ser usada para organização e planejamento de algumas tarefas.
Antes que eu me esqueça, dava aulas de filosofia naquela escola, não era
meu emprego dos sonhos. Digo, trabalhar lá. Dar aula até que gosto, na
verdade, transmitir conhecimento e elucidar a mente das pessoas era uma das
minhas tarefas preferidas, porém minha “preguiça” sempre atrapalhou como
esse caminho seria guiado. Como fui parar lá? Bem, sabia demais para
alguém que se esforça muito pouco, logo não tive coragem de ir atrás de algo
como um concurso ou avançar de verdade na minha carreira, então acabei
entrando por recomendação e por incrível que pareça gostaram de mim.
Talvez tenham se arrependido depois. O diretor, pelo menos, tenta arrumar
uma desculpa diferente para que eu me demita todo santo dia. Porém, tanto
ele quanto eu sabemos o prejuízo que seria me tirar dessa escola. Nem
professor substituto conseguiram arrumar. Não que ele se importasse com a
saída de um professor de filosofia, quanto menos os alunos eram autônomos,
melhor para ele…
Ao sentar em minha cadeira, para organizar meu material, vi que Beto, o
diretor, pelo menos era assim como o chamavam, não lembro qual seu nome
em si, veio em minha direção, com olhar cheio de ódio, enquanto mantinha a
postura vergonhosa de seu ego junto de sua grande barriga de chopp. Não
gostava de me adequar a seus métodos de ensino, se é que eram considerados
métodos de verdade, aquele velho rico só se baseava em sua experiência
infantil para tentar guiar como devíamos trabalhar e olha que tinha mais de 50
anos. Mesmo com meus 1.65, ele era menor e eu sempre tentava segurar a
risada de como ele tentava esconder sua calvície jogando cabelo ralo por
cima. Sempre trajado de ternos caros e sua característica gravata vermelha
que poderia ser reconfortante num período de frio que fazia, porém dava
agonia quando a usava no calor de quase 40 graus de cada verão. Sempre
tentando demonstrar que tinha poder e dinheiro, um mimado que nunca saiu
de sua infância arrogante.
Seu olhar sobre mim indicava que a qualquer momento poderia me descer
o sarrafo de xingamentos, porém manteve-se calmo e falou:
-Pedro! Faça um favor, preciso falar contigo.
Respondi como se não esperasse nada de mais. Na realidade, não estava
nem aí para o que ele poderia soltar.
-Senhor?
E, parecendo que a calma era só inicial, começou a berrar, falando alto e
gesticulando. Enquanto isso, outros professores observavam a situação
enquanto soltavam risadas e cochichos.
-VOCÊ TEM QUE SE CONTROLAR, PELO AMOR DE DEUS!
VAMOS COMEÇAR A PERDER ALUNOS DESSE JEITO! ESSE JÁ É O
TERCEIRO QUE TU MANDA SE FODER EM MENOS DE DOIS MESES!
Não me alterei, só permaneci com a mesma calma que tinha ao levantar da
cama:
-Foi melhor que no último bimestre pelo menos.
Bebi um gole de café.
-Isso não é brincadeira, Pedro! -Sua voz alterou para algo parecido com
súplica- Porque é tão difícil não xingar os seus alunos ou no mínimo seguir a
PORRA das ordens do seu chefe?
Outro gole veio à minha garganta. Então respondi de qualquer forma,
porque aquele assunto era repetitivo e chato.
-Não se preocupe, senhor, isso vai mudar.
Quando estava dando as costas achando que tinha acabado, ele me vira e:
-Pedro! Volte aqui. Ainda não acabei. Preciso de um favor.
“Puta que pariu! Que porra que esse velho quer agora?”
-Uhn?
-Daqui a pouco uma nova professora de filosofia vai chegar. Seria
interessante que você mostrasse a ela a escola e como as coisas funcionam
por aqui.
-O senhor é o dono da escola, porque necessariamente eu tenho que fazer
isso?
-Porque eu estou mandando! Escute aqui seu merdinha… a gente tem uma
nova professora pra colocar no teu lugar, então se ligue em cada passo que vai
dar, pois logo logo sua demissão não será apenas uma ameaça.
Como se eu realmente me importasse, respondi novamente.
-Sim senhor. Mas e Maria, aquela outra professora que talvez viesse
trabalhar aqui?
-Acabou que preferia ir dar aula na UFAL¹ e era necessário exclusividade
lá. Uma pena, mesmo para uma mulher, ela estava acima dos padrões dos
professores que já passaram por aqui… Se bem que era muito machona pro
meu gosto...
Terminou a frase com uma mão no queixo e olhando para um canto
aleatório da sala como se isso fosse uma reflexão séria. Ainda não entendo
como isso era dono de uma instituição de ensino.
-Agora pare de ficar fazendo perguntas bestas e vá dar aula, já está
atrasado!
Velho filho de uma puta… Me atrasa e ainda reclama que estou atrasado.
Não tinha mais nenhum professor ali na sala, mesmo os que se atrasam de
propósito. Isso era bom, porque não precisei parar para conversar com
nenhum “colega” e ficar respondendo suas perguntas sobre o ocorrido. Um
bando de cobras, que possuíam uma realidade semelhante ao diretor. Frutos
de contratos arranjados em que grande parte nem professor de verdade era.
Fazia sentido que uma escola com a mensalidade tão cara para aquele tipo de
ensino estava aos poucos falindo. Só não faliu de vez porque a estratégia
“Foda a mente do aluno para que ele passe no vestibular” estava dando frutos
momentâneos para quem passava. Isso trazia visibilidade para a escola.
Adentrando em sala, ouvi um bando de moleques brigando por conta de
eleições recentes. Era engraçado e curioso observar eles falando merda uns
com os outros como se soubessem do que estavam falando, ou dando
argumentos tão rasos que nem uma formiga conseguiria se afogar. Eram
gritos em defesa de pessoas como se fossem deuses, só que eles não notavam
que nenhum argumento iria mudar a mente de quem queria acreditar num ser
como um deus e não como um ser falho. Faltava maturidade em muitos ali
para aceitarem que existe a possibilidade de estarem errados, faltava a
autonomia do pensar.
A sala era interessante. Simples, mas uma infraestrutura confortável. Um
paralelepípedo, com janelas ao fundo que davam direto no pátio e cheio de
cadeiras azuis, com dois ar condicionados e minha lousa de vidro, que era
boa, mesmo eu preferindo usar giz. Estava uma bagunça, um lugar onde
preferiam jogar papéis e cadernos uns nos outros em vez de fazer algo
interessante ou, pelo menos, criativo. Naquele dia estavam jogando pedras
uns nos outros, metaforicamente falando. Eu queria tacar uma pedra em cada
um, literalmente falando… mas essa parte a gente deixa de lado. O dia já
tinha começado uma merda com o diretor, ficar aguentando aqueles
adolescentes falando merda seria outro problema, mas como eu, eram pessoas
e não me interessava em estar acima deles na sala, porém tinha que começar a
aula. Então apenas bati os livros que carregava no birô. Um barulho do
caralho, todo mundo se assustou, viram quem tinha chegado na sala. Foi aí
que calmamente olhei para a turma e:
-Bom dia! Primeira equipe, por favor, estou esperando vocês aqui na
frente.
Ainda assustados, olharam para mim e aos poucos foram tomando seus
lugares, até que um dos integrantes da primeira equipe levantou e falou:
-Professor, Jorge não pôde vir hoje. Ele estava com o trabalho no pendrive
e responsável por quase todas as falas.
Marcelo era um menino interessante. Sempre fiquei curioso em saber de
onde ele tirava tantos jeitinhos para algumas coisas que fazia e como saía por
cima na maioria delas, espero que não use isso para algo ruim no futuro.
Porém tinha sido burro, pois quando analisei a sala, vi que a bolsa de Marcelo
estava na cadeira e “surpreendentemente” tinha visto um garoto igual a ele
entrando no banheiro antes que eu chegasse à sala. Então, como bom
professor que sou, sorrindo, disse:
-Isso não é problema, hoje eu faria uma nova dinâmica com vocês e ainda
bem que o primeiro grupo já se deu spoiler de como vai ser!
Eles olharam incrédulos, sem entender nada e confusos. A turma no geral
sabia que não tinha dinâmica nova, mas que esse novo estilo foi devido ao
que tentaram fazer para fugir do trabalho, quando tentavam me enganar a
volta por cima era sempre interessante, gostava de brincar daquele jeito com
os estudantes e tentar ver onde sua criatividade poderia chegar. Continuei.
-Para testar melhor seus conhecimentos sobre o assunto, cada grupo ficará
com, pelo menos, um integrante durante a apresentação, não precisa nem de
slide. Como o Jorge não está aqui para acompanhar, ele pode ser considerado
esse menos um! Não é legal?
Logo se iniciou um barulho de indignação, que fora rapidamente cessado
com um tapa bruto na mesa que dei, porém que precedeu uma fala totalmente
calma de minha boca.
-Por favor, vamos começar as apresentações.
Sempre os incentivei a irem contra mim quando necessário, era um
aprendizado mútuo, porém se não tinham argumentos e sabiam que o plano só
tinha falhado, aceitaram e provavelmente as outras equipes viriam “negociar”
a apresentação do trabalho.
Então fui sentar ao fundo da sala, numa cadeira que tivesse uma visão do
máximo de alunos possíveis. Não ocorreu mais nada de importante naquela
aula, não que eu me recorde pelo menos.
Como tinha um intervalo até as próximas aulas, resolvi voltar à sala dos
professores, torcendo para que não tivesse ninguém lá, pelo menos o mínimo
de pessoas. De maneira alguma me dava bem com alguns dos que
trabalhavam naquela escola. Ia só para guardar minhas coisas, pegar um café
e ir para meu cantinho de descanso, era lá onde gostava de descansar e refletir
sobre cada ínfimo pedaço da minha vida. Para minha não surpresa, minha
memória sempre foi horrível, mas quando cheguei àquela sala minha cabeça
percebeu o que estava me incomodando, tinha esquecido que iria apresentar a
escola para a professora nova, lembrei disso pois ela estava ali, parada em
minha frente.
Quando a vi, poderia ter chamado, porém não percebi o tempo que fiquei
parado a observando. À primeira vista, paralisei pela sua beleza. Tinha seus
cabelos longos com cachos definidos e um brilho negro que me tocava, olhos
observadores, grandes, escuros, mas que captavam cada detalhe da sala.
Lábios bem curvados e um nariz fino, era do meu tamanho, então não
precisava envergar meu pescoço para olhar nos fundos daqueles olhos. Um
corpo tão bonito, seios pequenos, uma cintura na medida e quadril largo, sem
contar naquelas coxas que já conseguia imaginar me enforcando, num
pequeno intervalo de tempo dei uma risadinha com minha idiotice, muitos
pensamentos como esse aparecem como flashs… com esse ínfimo barulho,
ela me escutou e se virou cruzando nossos olhares, preta, a cor de caramelo,
se destacou na luz da sala. Riu e de sua boca saiu:
-Oi
Voltei para a realidade, com meus olhos cansados quase saltando das
órbitas pela surpresa, respondi:
-Opa, você é a nova professora? Ouvi falar de você…
Ela continuou falando, mas sem manter o contato visual, só observava
cada pedaço do cômodo:
-Sou eu sim, e acredito que seja Pedro, correto? Não são muitos
“baixinhos desgraçados” que encontro por aqui… - Soltou uma risadinha de
fundo.
-Como disse?- Fiquei sem jeito, mas entendi que foi uma piada, porque,
poxa, ela nem me conhecia.
Depois de rir de minha cara por uns 5 segundos, disse:
-Estou replicando apenas o que Beto disse.
-Filho da puta…-Falei para mim mesmo e continuei com um bom humor,
meu sorriso estava frágil naquele momento…- Espero que já não esteja me
odiando ao chegar aqui, porque se depender desse pinguim fi de rapariga, eu
sou a pior pessoa que vai encontrar nessa escola!
-Você é bem corajoso, eu poderia simplesmente repassar o que você disse
sobre ele quando o visse novamente.
-Nosso ódio mútuo é de conhecimento geral. Mesmo que não fosse, você
não tem cara de quem faria isso.
-E qual seria essa cara?
-De arrombada!
No mesmo instante ela começou a gargalhar, não esperava por aquilo.
Soltei um riso de canto de boca, me impressionava com quão bonito ela era
aquele sorriso. Ao fim de suas risadas, continuei.
-Então, vai querer fazer um tour pela escola e entender “como as coisas
funcionam”? - Falei isso fazendo aspas bem caricatas, o que a deixou um
pouco confusa.
-Por que das - E imitou o mesmo movimento que fiz com as aspas.
-Estava citando o dono dessa grande instituição.
-Incrível como você ama ele…
-Como já disse, é mútuo. Tu também não foi com a cara dele não, né?
Caso fosse, não acho que eu seria o grande escolhido para esse trabalho de
turismo.
-Noup… Ele ficava me olhando de cima a baixo, não deu dois minutos
para que me deixasse desconfortável. Cortei qualquer tipo de flerte dele e
pedi para que outro professor me mostrasse a escola. Por ele ter mandado
alguém que não tem o mínimo de apreço, acredito que entendeu meu recado,
só espero que não reflita no meu período trabalhando aqui.
-Com certeza irá, porém o ponto positivo é que você pegou amizade com a
única pessoa que tem culhão para bater de frente com ele. Só estava
esperando um motivo justo para dar um socão naquela cara.
-Sem violência, crianças… - Falou ela com um sorriso no rosto, colocando
as mãos para trás e seguindo a porta a passos largos.
Sorri.
O decorrer da conversa perdurou durante o andar pelo prédio, não tinha
muito o que mostrar, além do descuido dos alunos pela escola ou da falta de
manutenção por parte do dono. Paredes com pinturas azuis e laranjas
descascadas exibindo o cimento que constitui aquelas paredes. Corredores
longos com portas que davam nas salas de aulas, além dos que levavam para a
diretoria, um pátio relativamente grande e banheiros.
-Só use o banheiro da sala dos professores, caso entre no dos alunos,
talvez tenha um infarto ou coisa parecida.
-E você já entrou no banheiro das alunas?- Falou olhando torto para mim e
com um sorriso maléfico.
-Se for igual ao dos meninos, você tem mais que um infarto…
-Eca.
-Exatamente! Pena eu tenho de Paula, que limpa a desgraça que esses
moleques fazem.
-Quem é Paula?
-A pessoa mais doce desse lugar. Linda! Perfeita! Amo! Ela trabalha na
área da limpeza, se pá a única pessoa daqui que não quer a minha cabeça e
que eu não desgosto.
-Você só me mostrou a estrutura, ainda não entendi como as coisas
“funcionam” por aqui. Não pretendo perder o emprego no segundo dia de
trabalho…
-Sobre isso, sempre vão falar o que você tem que fazer, porém quando der
errado a culpa será sua porque em tese as “ideias deles eram outras”. Nem
pensar esses malucos conseguem… -Resmunguei- Você vai precisar passar
uma ilusão de ensino, substitua qualidade por quantidade e não faça o que
quer fazer, suas noções de ensino estão erradas e esses meninos têm
obrigação de passar no vestibular e ponto. Caso não queira se vender tanto
assim, crie uma necessidade para eles de forma que ser chutada só trará
prejuízo, mesmo que reclame dos alunos, são boas pessoas e ser amigo deles
é indispensável, seja mais foda do que o normal e se mantenha aqui até
quando o necessário.
-Você fez isso?
-O que exatamente?
-Criar uma necessidade para eles não te chutarem, parece que vocês se
odeiam, mas isso não fez com que você fosse demitido.
-Mais ou menos. Dou sorte que meu método deu resultado rápido, além de
não terem ninguém para me substituir e a proximidade com os próprios
alunos. Me tirar daqui do nada sem uma boa estratégia traria muito prejuízo e
isso não seria nem um pouco interessante para o dono. Eu vivo do equilíbrio
aqui, não me mato para fazer algo foda, gosto de ensinar e fico feliz com
aqueles que seguem o meu fluxo. O que me mantém é gostar de ensinar,
porém tô bem desgastado com tudo, então nem ligo tanto se sair fora, só que
não serei eu quem pedirá demissão. Esse lugar não me preocupa muito porque
não é importante o suficiente para ter minha atenção.
-E o que seria importante para ter sua atenção?
Enquanto eu falava olhando para frente se concentrando em minhas
palavras com as mãos atrás das costas como a posição de descansar de um
militar, percebia que ela me fitava e tentava entender o que eu queria dizer.
Quando ela fez sua última pergunta, acho que passei mais tempo do que o
normal procurando algo para responder, pois nem encontrar resposta foi
possível. Aquele silêncio foi carregado por passos ao solo, murmúrios das
salas e o canto de pássaros.
Após alguns passos, Paula apareceu e com seu sorriso diário veio falar
conosco. Ela trabalhava na limpeza, estava com seu cabelo crespo amarrado
num coque, tinha a pele preta e conseguia ser menor que eu. Seu corpo era
forte e mesmo com aquele sorriso de que estava tudo bem, era perceptível o
olhar de quem já lutara tanto na vida e que tinha muita história nas costas.
Chegou a nossa frente e:
-Gigante Pedro, muito bom dia! Quem é a moça?
-Minha nova companheira de trabalho e da filosofia. Professora substituta.
-Prazer, Vívian.
-Prazer é todo meu, me chamo Paula!
-Pedro falou muito bem de você.
Ela olhou para mim com um olhar desconfiado e respondeu a Vívian.
-Espero que realmente tenha sido bem… Não confio nesse sujeitinho ai de
jeito nenhum.
Soltei uma risada leve enquanto ela me encarava e depois falei para ela.
-Acredita que conversamos por quase uma hora e ela ainda não me xingou
e nem me mandou catar coquinho?
Isso foi motivo para que Paula me desse uma pequena bronca.
-Deixe disso, Pedro, você sabe muito bem que nem todos vão ser assim
com você! E se tem gente aqui que é, bem, você sabe o motivo… Estamos no
mesmo barco, meu bem…
Ao falar isso, passou entre a gente e me deu um pescotapa de despedida.
-Tchau, Paula!
-Tchau! Aproveitem o dia!
A sós novamente, Vívian quem deu a primeira palavra:
-Pelo jeito não odeia tudo por aqui…
-Olha aquele sorriso, Vívian, isso tudo com sua humildade. É bem mais
fácil você encontrar a razão da felicidade humana em quem pode ir atrás de
algo porque não tinha nada do que daqueles que se achavam felizes por ter
tudo… Aprendi muito com ela, às vezes muito mais do que o que uma
universidade pode proporcionar.
-Tem sentido no que você fala… Quem diria, um professor de filosofia
que gosta de filosofar!
-Irônico, não?
Rimos até que seus olhos demonstraram um certo medo. Até que
exclamou:
-MEU DEUS! ESTOU ATRASADA PARA MINHA PRIMEIRA AULA
NO PRIMEIRO DIA!
E saiu correndo para sua sala.
Vívian era estranhamente diferente, pelo menos muito mais do que
daqueles com quem tive contato. Ela me trazia confiança para conversar sobre
qualquer coisa e aparentava querer escutar o que eu tinha para falar, além de
parecer ter muita coisa para dizer. Estava muito curioso com o que
descobriria daquela moça, fazia tempo que não sentia isso com alguma coisa.
Além de que aquela voz serena e aqueles olhos me deixaram meio mole.
Foram muitas coisas ao mesmo tempo, isso me trazia um certo medo.
Vejo que bem ali, naquele exato momento, começou o meu declínio.
Capítulo 2

Ainda faltavam trinta minutos para o horário padrão de almoço. Aquele


momento em que grande parte dos professores se juntavam num mesmo lugar
para comer, xingar alunos e falar mal dos companheiros que, dois minutos
atrás, estavam a seu lado. Como grande amigo de meus parceiros de trabalho,
estava aproveitando meu tempo livre para almoçar antes que qualquer um
deles chegasse. Não era problema para eu comer um pouco mais cedo, na
verdade, já tinha virado costume.
Tinha o costume de preparar minha própria comida ao acordar, quando
não fazia isso, muitas vezes por não conseguir levantar da cama um pouco
mais cedo do que era obrigado, acabava lanchando qualquer besteira ou nem
comia. Não me preocupava muito com minha saúde, talvez estivesse a dois
passos de ter um problema e ir parar num hospital, porém não ligava. Sempre
tive esse problema de conseguir levantar da cama, mas uma obrigação externa
a mim costumava me fazer sair da cama, só que sempre pareceu que eu não
me levava a sério o suficiente para levantar quando queria, era como se não
estivesse sob controle de meu próprio corpo. Como qualquer outra coisa, me
acostumei e ignorei.
Enquanto comia, olhava para um horizonte infinito que acabava na parede
do outro lado da sala. Com minhas duas mãos apoiadas em minha testa,
mastigava a comida e pensava na conversa que tivera com Vívian mais cedo.
Ela parecia uma pessoa interessante, talvez enjoasse fácil de mim quando
mostrasse minha verdadeira face. Difícil alguém gostar de ouvir comentários
e pensamentos pessimistas a cada segundo. Também não costumo poupar
minha sinceridade sobre a maior parte dos assuntos. Não sei o que mais afasta
os outros de mim.. Pelo menos sei o que me afastou de alguns outros. Vívian
aparentou ter gostado de mim, porém não posso contar muito com isso,
poderia estar sendo só educada, mas não é para todo mundo que você fala mal
do seu chefe no primeiro dia, a não ser que você seja muito burra. Ela não
parecia ser burra, acho…
Percebi também que ficar mastigando a mesma comida por tanto tempo
não era a tarefa mais gostosa do dia. Estava começando a ficar estranho.
Engoli.
Quando outros funcionários começaram a se apoderar do lugar, já estava
guardando minhas coisas para sair dali. Era próximo de meio-dia, logo, não
tinha muita coisa que eu pudesse fazer, tanto na escola, quanto fora dela. Até
pensei em sair para andar, mas, porra, tava muito quente, não queria foder
minha pele e caminhar depois do almoço não parecia ser a tarefa mais
confortável. Lembrei que no terceiro andar, tinha uma sala “abandonada”.
Servia tanto como um pequeno almoxarifado, quanto um ponto de encontro
para adolescentes que estavam com fogo o suficiente para se pegarem na
escola. Não os julgava, só os estudava.
De saída, percebi alguns professores conversando com Vívian. Não estava
muito afim de entrar naquele meio e não tinha intimidade o suficiente para
“salvá-la” daquele meio, mas esperava que não estivesse realmente em
apuros. Tinha um rosto inocente, parecia estar realmente feliz de conhecer
pessoas novas, seus novos “companheiros”, porém ainda dava para ver uma
malícia em seu olhar que não ia se deixar enganar por quem estava ao seu
redor. Parecia ler através das palavras e gestos. Quando passei, apenas acenei
com a cabeça, não queria chamar atenção. Ela respeitou.
Subindo as escadas, uma aluna que não conhecia passou por mim
descendo. Apostei comigo mesmo que um minuto depois alguém desceria
também. Dito e feito. Um de meus alunos, Fernando, vinha descendo do
terceiro andar, apenas olhei em seu olho, ri e acenei. Ele fez a mesma coisa,
porém seu riso era de quem estava segurando. Ele sabe que eu sabia.
Estarem saindo naquele momento me dava a segurança que não teria uma
surpresa desagradável ao chegar. Pelo menos esperava que não. Estava certo.
Aquele era meu lugar favorito da escola. Com o passar do tempo, tirar um
momento só para mim era uma atividade valiosa. Na verdade, ia além de ser
um momento individual. Ali era num ponto longe o suficiente do barulho
escolar, mas a uma distância confortável do som da cidade. Uma janela que
trazia a contemplação de grande parte do município de Arapiraca, com o
ponto positivo de não existirem prédios ao redor, o que dava uma visão da
parte mais orgânica do centro com uma enorme nitidez.
Assim como o funcionamento da minha cabeça, aquela sala exalava um
pouco de organização num amontoado de bagunça. Por mais que as coisas
estivessem em seus lugares, por ser um ponto abandonado, a natureza foi
tomando conta do ambiente, desde poeira, mofo, e teias bem estruturadas,
mostrando o que uma aranha era capaz de criar. As cadeiras estavam em
conjunto num canto do cômodo, tinha um quadro de vidro grande, com alguns
rabiscos que tanto mostravam a última aula que fora ministrada a escritos de
alunos, como: “Vinícius tem que se foder”.
Peguei uma cadeira que costumava usar, logo, estava sem tanta poeira,
pois sempre limpava ela. Inclusive, tive sorte que não tinha nenhuma alergia,
pois aquela grande quantidade de poeira poderia me destruir rapidinho. Eu só
era apático àquilo, ao mesmo tempo que contemplava como o acaso
estruturava o ambiente pouco a pouco. Peguei meu caderninho e, ao observar
o que cercava a escola, comecei a anotar.
Acho belo como a estrutura da cidade se movimenta de maneira tão
natural. Por mais que o contato humano tire a ideia de natural do
desenvolvimento, ainda fazemos parte da natureza e, por mais que achemos
que temos real poder de escolha sobre nossos caminhos, não consigo ver
assim. Então, como uma correição de formigas que se organizam em trabalho
específicos, observei cada passo que estava à minha vista, me admirando e
aproveitando cada segundo daquele momento.
Uma torrente que assolava a cidade já tinha passado, deixando suas
marcas em poças de água que pareciam espelhos no chão devido a um Sol
extremo. Uma mulher com seu vestido longo, como para uma ocasião
importante, puxava pelo braço um garoto, que talvez fosse seu filho, que
também estava arrumado, com um terno que parecia ser maior que ele.
Berrava um pouco, enquanto a mulher reclamava de seu comportamento. Aos
tropeços, seguia seu caminho, com provável calor em sua pele.
Próximo, um grupo de adolescentes riam e se empurravam, naquela
alegria que a idade trazia quando se estava com as pessoas certas. Pareciam
sair ou indo para a escola, seus uniformes denunciavam isso. A calçada não
era grande o suficiente para quatro deles andarem lado a lado, o que fez com
que um se desequilibrasse e quase batesse numa moto que passava. Moto essa
que, ao desviar e buzinar, assustou a senhora, que já estressada com seu filho,
gritou palavras que me fariam ir preso se falasse em sala.
Isso fez com que duas garotas que tomavam sorvete, sentadas, do outro
lado da rua, rirem bastante. Pareciam ser amantes, pois o carinho que
transmitiam em seus olhares e toque eram bonitos de olhar. Algo que se
confirmou com o beijo que deram posteriormente. Em algum momento, uma
delas fixou seu olhar no relógio e apertou a mão da outra com uma certa
expressão de tristeza. Talvez fosse um daqueles momentos em que o tempo
pudesse congelar, pois poucos momentos como aquele viriam a surgir. A
incerteza do futuro, por mais que traga um aproveitamento maior do presente,
gera uma ansiedade que segue erros que machucam mais que o próprio
tempo.
Enquanto isso, o trânsito demonstrava aquela impaciência costumeira,
com motos e bicicletas atravessando e cortando carros que tentavam passar no
sinal. Algumas buzinas, por seus sons agudos, traziam uma interferência no
barulho constante do falar humano, caminhar e motor veicular.
Enquanto tudo seguia seu caminho, um homem, sentado ao meio fio, com
um buquê no chão ao seu lado, encarava o chão e derramava algo que, pelo
que parecia, eram lágrimas. Isso não parava a vida de quem andava ao seu
redor, talvez olhares curiosos de transeuntes, mas no fim, a forma de como a
vida daquele indivíduo tinha mudado, de forma alguma alterava o todo, por
mais que às vezes, seu próprio mundo tivesse virado de cabeça para baixo. De
que forma nós realmente interferimos no mundo ao nosso redor? O egoísmo é
resultado desse pensamento ou ele que cria o mesmo?
Após anotar meus pensamentos soltos, precisava me concentrar em
preparar minha aula, então assim o fiz. Em algum momento queria tentar
mostrar para meus alunos o prazer da observação da vida e da natureza, não
só para eles, mas para qualquer um que tivesse a oportunidade. O que era um
problema, a um bom tempo, meus pensamentos só sai de minha mente
quando se trata de conteúdo de aula ou se alguém conseguisse me trazer
confiança o suficiente, mesmo assim, não me sentia totalmente seguro. Criei
uma casca sobre mim, pois, por mais que ache meus pensamentos
interessantes, cada mente funciona de um jeito e, por algum motivo, o
desinteresse no que falo me atinge de uma forma que não queria. No fim, não
falar acabou surgindo como resultado.
Em dado momento, a procrastinação se apoderou do meu corpo. O olhar
fixo no horizonte, como um transe, com a agonia de não estar fazendo nada,
se apoderava. Consegui me desvencilhar daquilo. Precisava dar aula.
Nesse espaço de tempo, acontecia as vezes que algum aluno acabava
abrindo a porta, vendo que tinha alguém lá dentro, sentir vergonha, e sair.
Aquilo me tirava sinceras risadas.
Ao fim de minhas aulas, às dezessete e quarenta em cinco sendo mais
exato, saí da escola e, naquele amontoado de gente, contemplei o pôr do Sol
do verão. Enquanto a estrela mais próxima de nosso planeta se escondia no
horizonte, o céu era tomado por um roxo alaranjado que traz inspiração para
os poetas mais profundos. O falar de fundo das pessoas junto da brisa que
tocava meu rosto me faziam sentir um pouco mais vivo.
Observando parado, fiz com que o ar que pairava sobre mim fizesse uma
visita aos meus pulmões com uma longa respiração profunda. Às vezes
precisava daquilo, estar no presente, sentir o que estava ao meu redor. Não
fazia só pelo meu apreço, mas viver com um incômodo na garganta que
poderia me fazer desabar a qualquer instante tinha suas consequências.
Tinha que ir para casa, mas antes de dar o primeiro passo, ouvi o chamar
daquela voz confortável que tinha escutado mais cedo:
-Fazendo fotossíntese, Pedro?
Era Vívian, que vinha com um sorriso em seu rosto. Continuou:
-Diz ai, como foi teu dia?
Sinceramente, queria estar na mesma animação que ela. Respondi com
minha voz sonolenta de sempre:
-Foi tanto faz. Dia da marmota, como de costume.
-Dia da marmota? - Perguntou ela, com seu dedão pressionando o lábio
inferior enquanto fazia bico. Era muito expressiva.
-Sim, é como se fosse um dia em que os eventos são o mesmo de sempre.
Acredito que a única coisa diferente que aconteceu foi você.
-E eu fui uma boa diferença?- Olhou para meu rosto sabendo que ia me
desconcertar com a pergunta. Não estava esperando por aquilo.
Corei um pouco e respondi:
-Não sei… Acho que sim.
-Ainda bem que acha isso!
Senti um certo tom de ameaça. Ela continuou:
-Indo pra casa?
-Sim.
-Carona?
-Corona?1
-CA RO NA?
Ela riu um pouco da minha surdez. Era comum eu ficar pedindo para que
repetissem as coisas, não ouvia muito bem.
-Ah, não precisa. Estou acostumado a andar para casa, inclusive, moro
aqui perto.
-Certeza? Moro aqui há pouco tempo, mas já ouvi que esse bairro é
perigoso…
-Não seria tão ruim se acontecesse algo…- Pensei alto.
-Oi?
-Nada não! Nunca rolou nada nesse tempo em que fui para casa nesse
horário. Sério, não precisa se preocupar.
-Se você diz, não vou forçar muito… Só toma cuidado, ok?
-Senhora que manda!
-Se cuida...
-Você também!
E ela foi embora, com uma alegria digna de preocupação. Era comum
alguém ser tão alegre daquela forma? Principalmente depois de passar o dia
inteiro naquela escola?
Não ironicamente, fui assaltado no caminho voltando para casa. Poderia
achar que ela encomendou o assalto, foi muita coincidência. Só perdi cem
reais, um lanterninha2 que carregava ao sair e a cópia de meus documentos.
Só andava com os originais se fosse extremamente necessário. O mais valioso
que perdi foram alguns livros de minha mochila. Ainda, de brinde, ganhei
uma coronhada em minha testa. O assalto foi literalmente:
-PASSA TUDO!
Passei tudo.
-ARROMBADO!
Levei uma coronhada na cabeça e começou a sangrar. Continuei
caminhando para casa.
Não cheguei a fazer boletim de ocorrência, eu só não ligava pelo que tinha
rolado, mas agora minha testa estava doendo.
Ao chegar em casa tomei um banho, preparei um curativo básico com
esparadrapo e coloquei. Comi um pouco de cuscuz com ovo e fui ler algo.
Quando deitei para dormir, fiquei pensando no que tinha acontecido.
Estava exausto, acredito que pelo algo novo que tinha acontecido. Por mais
simples que fosse, acabou com minha energia. Mas não foi ruim, porém como
disse mais cedo, não sabia. Vívian aparentava ser alguém legal. Estava
disposto a conhecê-la.
Antes que pudesse perceber, já era o outro dia.
Capítulo 3

Sexta-feira, a aula só começa pela tarde neste dia, logo, acordei às dez
horas da manhã. Estava tão viajado que não dei trela para qualquer detalhe de
meu quarto ou minha casa. Apenas levantei, tomei banho e escovei meus
dentes. Comi um pão duro que estava em cima da mesa, talvez estivesse uns
dois dias ali e era o último. Tomei uma xícara de café. Não tive fome para
almoçar em si, também não tive coragem para fazer ou pedir comida. Só refiz
meu curativo, estava perfeito, digno de um prêmio. Talvez dois passos fora de
minha casa fizessem entrar tantas bactérias ali que estragariam meu cérebro.
Enfim, eu não ligava.
Ao chegar em meu trabalho, dava para perceber alguns olhares nada
discretos seguidos de cochichos. Pela visão que tinham de mim, talvez
pudessem achar que estava envolvido numa briga de rua ou devendo para um
agiota. Depois que descobri algumas fofocas, não sei mais o que podiam
inventar…
Não me importava o que dissessem, mas um dos julgamentos era
importante e sabia que resultaria em algo.
Alguns passos à frente, Paula se depara comigo. Olha em meus olhos,
incrédula, e me analisou de cima a baixo. Antes que eu pudesse expressar
qualquer ideia, ela me cortou e com toda sua amabilidade de mãe, diz:
-Que isso menino? O que tu tá fazendo, hein? Que curativo é esse? Tá
querendo morrer?
-Então… - Cocei a cabeça.
Apontando para minha cara, ela intervém.
-Nem ouse responder a última pergunta!
Logo em seguida me pegou pela manga e começou a me puxar no sentido
de sua salinha. Pela diferença de tamanhos, ela bem menor que eu, me fazia
andar rápido aos tropeços e encurvado. Uma cena que chamava atenção de
qualquer um que passasse por ali.
Me jogou lá dentro, era uma sala bem pequena, que só cabia os materiais
de limpeza e, apulso, a gente. Era uma sala que trazia uma sensação de
desconforto e claustrofobia, a organização presente só se devia a quem
trabalhava na limpeza, mas o que elas não podiam consertar ou cuidar, estava
caindo aos pedaços. Como uma sala de interrogatório de cinema, uma luz
fraca sobre a gente balançava para lá e pra cá. Não sei como não tinham medo
que aquilo pudesse cair do nada.
Com cuidado tirou o curativo de minha testa e pegou o álcool para passar.
Nunca fui muito fã dele, só aqueles feitos para consumo, então quando foi
chegando próximo de minha teste, segurei sua mão e gritei sussurrando:
-JÁ PASSEI! JÁ PASSEI!
-Passou coisa nenhuma, rapaz. Eu te conheço! Agora se aqueta que vou
colocar de uma vez!
Naquele instante, a porta se abriu. Era Vívian. Deve ter escutado o barulho
ou viu quando Paula me carregava às reclamações para o cômodo. Segurou
um pouco o riso, pois, ao entrar, a cena que via era Paula lutando contra mim
para passar o álcool em minha testa.
Quando viu o machucado em minha testa, mostrou um ar de preocupação
e perguntou:
-O que é isso, Pedro? O que rolou?
-Nada não, foi só um arranhão…
Não queria falar que fui assaltado, por motivos óbvios de ela ter me
alertado um dia antes sobre isso. Quando fui completar, Paula atropelou.
-Arranhão que nada! Esse ai foi assaltado e levou um sacode na cabeça!
Depois se virou para mim e completou:
-Sabe nem mentir, menino! Que peste de arranhão é esse?
Quando fui responder, Paula se aproveitou de minha guarda baixa e tacou
o álcool em minha testa. Xiei com a boca e guardei os xingamentos em meu
peito, mas aquilo ardia demais. Quando a dor foi diminuindo, retomei a falar,
porém fui atropelado por Vívian.
-Viu, praga! Se tivesse aceitado minha carona nada disso teria acontecido!
Nunca fui tão criticado num espaço tão curto de tempo e olha que era
chamado para a sala do diretor com certa frequência.
Óbvio que antes que pudesse me defender, Paula complementou, com
certa raiva e surpresa.
-Como assim você não aceitou uma carona pra casa, Pedro? Tu num já
sabe o quanto aqui é perigoso! Fica com essa nóia de ir andando sozinho pra
casa para aproveitar a brisa, mas se tu acabar morrendo assim, não vai
aproveitar mais brisa de fim de tarde nenhuma!
Finalmente pude responder, mas só pude baixar a cabeça e aceitar. Elas
estavam certas, querendo eu ou não.
-Tudo bem, tudo bem… Hoje vou com você pra casa, ok?
Nunca gostei de que fizessem favores para mim, me sentia mal, não sei…
Ainda reclamando baixinho da ardência que o álcool trazia, Paula falou:
-Isso é pra você aprender.
Não retruquei.
Vívian tinha aula para dar, então se despediu.
-Agora tenho que ir. Na saída, quem sair primeiro espera, ok? Se cuida!
Fiz só concordar com a cabeça.
Quando ela saiu, Paula me observou com um olhar que eu já conhecia,
mas que normalmente eram apontados para alunos que hora ou outra estavam
de casinho na escola.
-Tô ligado em vocês dois, hein…
-Como assim?
-Nada não… - deu uma risadinha e resolveu voltar atrás, com sua
curiosidade de sempre - Tais de olho nela, né?
-Não sou um adolescente dessa escola, Paula…
-Mas quando ela tá perto age como um! Acha que eu não observo não?
-Tá vendo coisa que não existe! E nós não somos um casal…
-Não falei nada de casal.
-Mas tá agindo como se fosse. Além do mais que é muita burocracia, teria
que conhecer ela muito a fundo pra chegar nisso aí.
-Porra de burocracia, Pedro. Até parece que nunca namorou ninguém.
-Nunca.
-Como assim?
-Nunca namorei ninguém.
-E gostar, já?
-Não.
Não era em si verdade, não a segunda parte. Existiram pessoas que
chegaram a me despertar um certo sentimento, mas sempre me fechei tanto a
isso que nunca coloquei na frente. Não sei o que me causou esse
comportamento. Mas o fato de nunca ter namorado, era verídico. Porém sei
que nunca tinha amado ninguém de verdade, por mais que meu conhecimento
desses sentimentos fosse mais teóricos do que práticos.
-Não sei como é “amar” alguém, pelo menos não na prática. O único
conhecimento que tenho sobre veio da filosofia e, bem, não foi muito
agradável o que li.
-Às vezes dá raiva do quão errado tu tá, moleque. - Acalmando mais a voz,
ela continuou - Amar alguém dá um sentido a mais para a vida, confia em
mim.
-Talvez seja, mas não por esse frufru todo em cima do assunto. Só uma
reação química para perpetuar a espécie.
-Você diz isso porque nunca sentiu de verdade! E o que tem de ruim se
serve só para “perpetuar a espécie”? - Falou ela me imitando de forma irônica
- Continua sendo um sentimento agradável e bem forte. Para de ser frio,
Pedro. É por isso que algumas das pessoas não gostam de ti. Outras… Ainda
bem que não gostam.
Só pude concordar com ela, acreditava que estivesse certa, porém não
tinha muito o que eu pudesse fazer para mudar meu jeito e o quão errado seria
fazer isso para agradar alguém.
Quando terminou, pude sair. Agradeci e fui dar minha aula. Já estava um
pouco atrasado.
Entrei na sala, com, pelo menos, metade dos alunos, pois alguns se
dispersaram e outros saiam quando trocava de aula.
-Boa tarde! Desculpem pela demora.
Não sei o porquê da desculpa, no fim, eles estavam felizes pelo começo
tardio.
Felicidade… Esse era o assunto da aula do dia.
Próximo ao fim da aula, uma aluna fez uma dúvida que era esperada pelo
escopo da aula, porém aquela questão era tão difícil quanto a simplicidade de
sua construção.
-Professor, para o senhor, é possível que sejamos felizes?
Olhei ao fundo de seus olhos, enquanto me forçava a pensar. Espero não
ter assustado a garota pelo olhar perdido ao mesmo tempo tão profundo, mas
minha cabeça talvez estivesse fritando naquele momento. Precisava resumir
minhas palavras pela hora que pairava, não podia dançar pelo assunto como
uma estrela bailarina que demonstra sua beleza a cada movimento. Um
assunto tão profundo e raso, tão preciso e difuso, tão utópico…
Enquanto passava meu lápis piloto entre os dedos, andava de um lado para
o outro, entre passadas lentas e mencionava meus pensamentos na mesma
lentidão pela quais meus pés tocavam o chão. Perdi o contato com os olhos,
enquanto falava, precisava perder a percepção do ver e entrar em minha
mente.
-Por estarmos no fim da aula, creio que não posso me aprofundar muito no
assunto, porém gostei muito da sua pergunta e me sentiria eternamente
culpado se saísse por aquela porta sem te dar um mínimo de caminho sobre o
que procurar e sobre meus pensamentos acerca do assunto. A felicidade,
quando sai da boca de inúmeros filósofos, religiões ou até no senso comum,
sempre vem com um ar de utopia, uma ideia tão inalcançável pela simples
beleza que se traz. Ser feliz? Está ligado aos seus índices cerebrais ou vai
além disso? Uma vida boa, saudável, amigos, família… A felicidade sempre
está atrelada a algo bom, porém não só o “uno”, mas o conjunto desses “uno”
em um só corpo. A perfeição do viver e agir. Gosto quando Schopenhauer
trata da busca da felicidade como uma luta eterna entre o desejo e o enjoar,
pois você nunca está satisfeito. Talvez… só talvez, essa busca incessante pela
felicidade de muitos o afastam cada vez mais dela, pois como respirar
automático, você só percebe sua existência pela ausência. Fui confuso, talvez.
Mas vejo a felicidade como um estado impossível de ser alcançado a partir da
busca, porém a aceitação de sua não presença, te deixa mais perto do que
muitos almejam. Como um estado tão utópico, não existe, mas se por os pés
no chão, os “uno” do presente te façam sentir bem, a ponto de que os
momentos não tão bons não te façam buscar por algo utópico, mas sim aceitar
que em alguns momentos a chave vira, não porque você correu atrás, mas
simplesmente porque viveu o que ai de viver.
Segundos depois, era quase impossível pronunciar qualquer palavra
entendível. O sinal tocou e somou ao barulho daqueles que já estavam
liberados.
Peguei minhas coisas e fui para a frente da escola, esperar Vívian.
Enquanto ela não chegava, aproveitava o gélido vento que me tocava,
junto do crepúsculo que refletia no céu. Cada tom que se misturava no céu era
admirável. Cada segundo que passava parecia uma eternidade, uma boa
eternidade. Ali estava eu, vivendo o presente pelo simples ato de não fazer
nada, pelo simples fato de me permitir descansar.
Aos passos rápidos de Vívian, chegou já me puxando para o veículo. Por
mais que forçasse um sorriso, era perceptível seu desconforto.
-Vamos, antes que perca tudo o que tem novamente.
Não entendi a princípio.
-Quê?
-Vai que tu é assaltado e perde suas coisas de novo.
-E quem te disse que tenho algo?
-Suas roupas.
-Como assim?
-Você tem suas roupas.
-Ah…
Após um silêncio de nossas bocas que era substituído pelo farfalhar dos
outros, entramos no carro. Vi que não estava bem, poderia simplesmente
ignorar. Talvez devesse, mas por um impulso, perguntei.
-Como foi seu dia?
Quase como um tom de brincadeira, aproveitou da música que tocava no
som, Yoko do Terno Rei.
-Te conto meia noite - Completou com um leve sorriso que se desfez em
poucos segundos.
Quando estávamos de saída, falou:
-Onde tu mora?
-Cinco ruas adiante tu vira a direita. Quando chegar lá, aviso.
-É o mesmo caminho que levo para chegar em casa. Talvez moramos perto
hein…
Como podia conhecer alguém a tão pouco tempo e notar diferenças tão
bruscas em seu jeito? Não era da minha conta, mas queria saber. Não precisei
perguntar na verdade, pois segundos depois ela começou:
-Sabia que tu tinha uma visão de merda sobre aquela escola, bem, você
não esconde, mas não achava que descobriria o porquê no segundo dia de
aula.
-Como assim?
-Tipo, aconteceu uma merda entre alguns alunos e eu fui repreendida por
intervir?
-Acho que sei como é, mas do que você tá falando? Especificamente.
Enquanto mantinha sua atenção na direção, observando a cada segundo
seus retrovisores, continuou:
-Quando estava passando de uma aula para outra, presenciei uma cena
muito, não sei como dizer… Bosta! Acho que essa palavra serve. Um
moleque estava assediando uma aluna. Ela não queria, já tinha falado não e
ele continuou indo pra cima, um baita filho da puta. Claro que não era algo na
sala, mas muitas vezes a escola é um refúgio de casa para os alunos, deveria
ser um lugar confortável e seguro, não mais um trauma. Obviamente intervi.
Talvez com mais energia que o habitual, porque tu deveria ter visto do que eu
chamei aquele merdinha, mas mesmo assim, não foi tão extremo a ponto de
dar merda para mim, pelo menos achava…
-O que aconteceu depois?
-Um cara, acho que professor, apareceu do nada e começou a defender o
menino, que ele era muito novo e começou a citar a roupa da menina.
Coitada, estava prestes a desmoronar, queria abraçá-la, mas quando ele
levantou a voz, paralisei, não achava que aquilo seria possível. Ele começou a
me xingar, falava que eu devia respeito a instituição e não era daquela forma
que se tratava alunos. Ainda perguntou se eu queria manchar a imagem de
onde eu trabalhava, daquela forma. Fiquei desacreditada com o que estava
presenciando, ainda não entendi direito. Me veio à cabeça falar com o diretor,
levar a ocorrência e ver o que poderia ser feito com aquele aluno.
-Isso não levaria a um lugar muito bom, principalmente se tratando
daquele… - Comentei baixinho entre suas pausas.
-Tu não tá ligado. Ele apareceu lá do nada, e, adivinha, ele começou a dar
razão ao professor, diminuir a situação, como se o menino não tivesse feito
nada demais e que era para eu ficar na linha, que era novata e para deixar de
trabalhar ali eram duas assinaturas e cabou. Nem me sinto confortável em
falar alguns comentários machistas que fizeram durante todo esse escárnio de
defesa ao diabo. Aqueles dois olhavam para mim como um pedaço de carne,
tudo carniça do mesmo urubu.
Tentei ser o mais complacente possível, ela não estava nem um pouco
bem, mas também não mentiria sobre meus pensamentos.
-Entendo… Pelo menos acho que sim. Não estou na sua pele, mas aprendi
da pior forma o quão arrombados são aqueles que trabalham lá… Acho que
só comecei a me acostumar quando deixei de ligar.
-Deixou de ligar? Como assim?
-Não sei, só sei que chegamos.
A viagem foi rápida, não tinha trânsito, mas tinha um problema.
-Como assim? Em nenhum momento mandei você virar a esquina, ou sua
memória é muito boa.
-Puta que pariu!!! ESTAMOS NA MINHA CASA!
-Parabéns. - Aplaudi.
-Não dê mais nem um pio se tiver amor a sua vida.
Pela primeira vez, em uma das poucas do dia, ri, ela também.
Quando ficou mais séria, falou:
-Por favor, agora me indique onde fica sua casa, que irei me concentrar ao
máximo nessa tarefa.
O caminho foi em silêncio, mas não um constrangedor, foi confortável.
Conseguir aquele estado com alguém era difícil. Não sabia de onde surgiu
uma intimidade tão repentina. Tocava Shine On You Crazy Diamond, do Pink
Floyd, era minha música favorita.
Em casa, me pus a pensar. Era uma sexta, logo não tinha trabalho no
próximo dia. Aquela mudança repentina no meu sofrimento diário bagunçou
minha rotina e minha cabeça, precisava conversar, talvez, desabafar. Resolvi
mandar mensagem para um amigo, Angel, ver se estava livre pela noite do
outro dia para tomar algo e conversar. Fazia tempo que não esgotava minha
bateria social tão rápido, fazia tempo que não encontrava alguém que se
encaixasse comigo de forma tão rápida.
Resolvi passar os últimos momentos da noite no quintal. Estava escuro,
era um simples quadrado ao ar livre que nem iluminação tinha, apenas na
porta que dava acesso. Permaneci por ali, encostado na parede, com o olhar
fixo em qualquer ponto que fosse, não estava presente no mundo, estava
presente dentro de minha cabeça. Fazia tempo que não fumava, sabia que se
usasse aquilo sempre que me sentisse mal, seria um vício difícil de largar,
mas alguns escapes estão sempre presentes, então peguei um maço antigo
guardado, coloquei entre os lábios e mais um ponto de luz surgiu naquele
ambiente.
Aquele olhar, o toque, a empatia que senti de seu sofrimento, não fazia
sentido para mim. O que porra estava acontecendo?
Tal qual um lago que é pertubado por uma ínfima pedra que cai, meus
pensamentos tornaram-se turvos quando senti a nicotina invadindo meu peito.
Sabia o erro de me permitir aquilo, mas era gostoso e precisava me colocar no
presente em algum momento, minha cabeça estava um turbilhão além da
conta. Voltei para meu quintal e pude olhar a beleza da Lua naquele
momento, enquanto as cigarras e grilos cantavam ao fundo. Pude sentir os
filetes de frio que tocavam meu corpo, cada centímetro cúbico que era
penetrado. Pude voltar ao presente.
Fechei os olhos e respirei fundo. Se a ansiedade me pegasse naquele
instante, sabia que permaneceria ali por dias e dias, não pude permitir.
Quando senti a calmaria voltar ao meu peito, quando meu único pensamento
foi “Preciso tomar banho e dormir”, joguei a bituca de cigarro e voltei para
dentro.
Senti a queimadura que se formava pela temperatura da água naquele
momento, não ligava.
Pude deitar.
Mais uma vez, esqueci de comer antes de apagar.
Capítulo 4
Cinco e vinte da manhã. Por que acordei tão cedo num sábado?
Lentamente me movia numa cama arrumada, tomando consciência de
meus movimentos e se realmente estava acordado. Parecia que ainda estava
escuro, mas com um filete de iluminação que passava pela cortina da janela
do meu quarto. Por mais que tivesse acordado sem sono algum, não tinha a
mínima vontade de levantar da cama, estava exausto mentalmente, muito
devido aos acontecimentos do dia anterior. Poderia tentar dormir de novo,
mas sabia o quanto era difícil, sempre era difícil, qualquer uma das opções,
levantar da cama ou voltar a dormir.
Virei minha cabeça contra a parede e fechei os olhos. Tempo o suficiente
se passou para que meus pensamentos se misturassem com sonhos e num
estado semiacordado de sono medíocre, me encontrava numa paralisia do
sono, algo muito frequente em minha vida, tanto que não tinha mais medo, só
enchia meu saco passar por aquilo tantas vezes. Abrir meus olhos sem
conseguir mover um músculo de meu corpo. Não saber se está sonhando ou
acordado, mas estar agoniado com cada segundo que parecia não passar, até
apagar de novo.
Passaram-se duas horas de desconforto na cama, sono ruim, pensamentos
profundos que vagavam entre ideias que poderiam ser brilhantes a criação de
problemas por cada relação que tinha em minha história. No fim de tudo, não
sabia o que tinha passado pela minha cabeça de verdade, como um sonho que
você nunca lembra o que realmente aconteceu.
O que me tirou daquela cama, naquela manhã, foi o extremo desconforto
com a vontade de ir ao banheiro. Só aquilo me fazia levantar, o que causou
sérios problemas na minha saúde, mas ainda era o meu despertador mais
potente. Claro, em momentos em que não tinha compromissos externos.
Antes de ir ao banheiro, sentei na beirada da minha cama e tomei
consciência de cada pedaço do meu quarto.
Por mais bagunçado que parecesse, não me afetava diretamente, mas
quando olhava para cada pedaço eu sentia no fundo do meu peito o que a
minha cabeça tinha se tornado com o passar dos anos. Não me culpava pela
bagunça, mas dava um suspiro profundo e entendia que ia demorar para
aquilo mudar, na verdade, talvez nem mudasse.
Era um quarto pequeno que também servia de escritório. A cama estava
encostada na parede cujo tinha uma janela de vidro com uma cortina laranja e
no outro extremo do quarto, a minha frente, do lado da porta, estava uma
escrivaninha com meu notebook. Dava para ver só um pedacinho dele, pois
estava submerso por umas quatro camisas e uma calça, oitenta por cento das
roupas que eu tinha. Também havia uma grande quantidade de poeira
acumulada e alguns restos de comida, por mais que tivesse um lixo pequeno
bem ao lado. Alguns livros estavam na escrivaninha, outros jogados no chão.
Um guarda-roupa velho que ganhara a uns anos atrás com coisas além de
roupas lá dentro, por sorte nunca achei nada vivo ali. Por mais sujo que
estivesse, nunca dava formiga, talvez o ambiente fosse muito tóxico até para
elas.
Alguns pires com resto de pizza estavam no canto do quarto, ao lado da
cama. Acabavam parando ali quando não possuía energia o suficiente e comia
na cama mesmo. Em outro extremo estava um pires com uma xícara com um
resto de pão e café. Um rolo de papel higiênico no centro do cômodo e as
paredes começaram a mofar no período chuvoso que passou. “Tenho que
limpar isso aqui antes que criem vida e me matem dormindo”. Sabia que não
ia limpar, só pegava o que era necessário, se tivesse faltando prato, por
exemplo, ou se precisasse vestir alguma roupa logo logo.
Os poucos filetes de luz que passavam pelos buracos da cortina
iluminavam pequenas regiões daquele chão sujo, esquecido. Ficava
observando por alguns minutos aquilo. Precisava ir ao banheiro.
Estralei alguns ossos ao levantar e me espreguiçar, caminhei para meu
banheiro com um peso em meu peito que me tornava corcunda, cansado,
devastado. Estava com mais sono do que quando acordei às cinco da manhã.
Não estava com ânimo para comprar alguma coisa para comer, tive que
me servir do que já tinha em minha casa, como uns biscoitos velhos e um
resto de café que tinha sobrado na cafeteira. O café eu pude esquentar no
micro-ondas, mas os biscoitos velhos era deprimente, só que comer eles era a
única alternativa em minha cabeça. Pelo menos tinha algo para comer…
A cozinha era mais limpa que meu quarto, pois sabia que deixar naquele
estado traria consequências mais desagradáveis, então conseguia cuidar um
pouco mais daquele cômodo.
Era um ambiente simples que dava acesso ao quintal. No centro, uma
mesa de madeira com um plástico florido sobre ela, além da cafeteira,
pimenta, sal, essas coisas de cozinha. Formando um “L” no canto, ao lado da
porta, estava a geladeira, fogão, micro-ondas e a pia. Além disso, alguns
armários brancos no outro extremo. Por mais que estivesse mais limpo que
meu quarto, não servia para fazer propaganda.
Levei a comida para minha sala, que também era simples. Uma poltrona e
um sofá estavam ao redor do centro de vidro que estava acima de um tapete
vermelho. Na parede tinha um raque com televisão e alguns livros de enfeite.
Sentei na poltrona e, enquanto comia e tomava meu café, me aventurava
entre as mídias, procurando algum entretenimento que cada vez menos me
chamava a atenção, fazia tempo que não encontrava um filme ou série que
realmente me entretivesse. O resultado foi comer o que tinha antes de achar
algo efetivo para assistir.
Resolvi fazer algo que mais fazia há um bom tempo, parar e pensar. Então
ao colocar a xícara de café no centro, inclinei a cabeça, olhando para o teto e
fechei os olhos.
Tinha um problema pensar naquele momento, na verdade, em todos os
momentos depois que comecei esta escrita. A primeira coisa que vinha em
minha cabeça era ela, Vívian… Tentava entender que conexão tinha ocorrido
ali, como tinha tanta empatia com alguém do nada, porque me importava
tanto e porque ela não saia de minha cabeça. Eu era tão foda-se para tudo,
mas algo tinha mudado e por mais que tentasse, não entendia o porquê.
Aquilo estava acabando com minha cabeça aos poucos, precisava ir tomar
um banho e escovar meus dentes. Precisava voltar a pensar como antes, parar
e pensar em nada, pelo menos nada que fizesse sentido, deixar minha cabeça
vagar pelos diferentes mundos que sempre esteve, conversar comigo mesmo,
encontrar soluções para os meus problemas e não focar em um só, um que
não tinha perspectiva de solução.
Já pela tarde, resolvi sair para o bosque caminhar e aguardar o horário que
marquei de encontrar com Angel. Tinha um bom tempo para organizar minha
cabeça e não falar merda no encontro. Nos conhecemos há mais de 12 anos.
Ele foi meu aluno próximo de meu começo, o que facilitou uma aproximação
pela proximidade de nossas idades.
Caminhava enquanto pensava sobre o que ia conversar, não é como se um
encontro de amigos deva ser roteirizado, mas era comum minha cabeça
imaginar todo o caminhar de uma conversa, desde o encontro até seu fim.
Nunca acontecia da mesma forma que passava em minha mente, porém isso
não impedia de ser algo recorrente.
Perdido em meus pensamentos, fui parado por duas moças que não
conhecia.
-Pode tirar uma foto nossa, por favor?
Falei que sim, foi rápido, mas estava tão disperso que passos depois não
lembrava mais de seus rostos, sequer de suas vozes. Foi estranho, comecei a
duvidar se realmente tinha acontecido ou era só mais uma pegadinha da
minha cabeça. Não passei muito tempo pensando sobre, mas foi estranho.
Por mais bizarro que parecesse, eu gostava daquilo por um lado, pois eu
era meu maior boneco de teste, então para quem gosta de estudar o
comportamento humano, levava meus problemas como minas de ouro.
Quando notei, estava bem afastado das estruturas artificiais do parque,
aquela região só tinha grama e algumas árvores espaçadas. Estava cansado,
meus olhos pesavam até que me dei conta que tinha sono. Não seria a escolha
mais inteligente, porém resolvi deitar naquela área gramada, entrelaçando
meus dedos por trás de minha cabeça e cruzando minhas pernas.
Observei o céu por alguns minutos, como as nuvens se comportavam em
céu aberto e como suas formas me instigavam a imaginar coisas, uma só
nuvem trazia milhares de imagens à minha mente. Estava relaxando, porém
ao mesmo tempo, minha mente estava ativa, não conseguia saber com o que,
mas sabia que estava pensando, muitas lembranças, previsões, ações, tudo ao
mesmo tempo. Aos poucos, os pesos que seguravam meus olhos, tornaram a
baixá-los cada vez mais, quando me dei conta, estava acordando.
A nitidez que se formava aos poucos, transformava borrões coloridos em
dois homens com boné azul e uniforme… Junto de meus sentidos, vinha um
cutucar de um coturno em meu braço, não muito forte, mas o objetivo era
claro de me acordar. Quando me dei por desperto, ouvi uma voz grave falar:
-Opa, cidadão! Está tudo bem por aí?
Antes de responder, precisava entender o que estava acontecendo. Caí no
sono, não sei por quanto tempo, mas alguns pedaços de meu corpo
formigaram, principalmente minhas mãos, entrelaçadas por horas atrás de
minha cabeça, e meu rosto detinha uma certa ardência, talvez tivesse me
bronzeado um pouco, pois já estava anoitecendo. Alguns pontos de meu
corpo doía, não foi a melhor maneira de descobrir que existiam tantos insetos
por ali, torcia que fosse só formigas. Melhor uma coceira que veneno.
Ainda grogue de sono, respondi:
-Estou bem sim… Só acabei deitando e, acho que pelo cansaço, dormi…
-Cansaço de que? - Senti que me olhavam como se fosse um drogado,
queriam um motivo para me despachar dali. Apenas respondi brevemente
enquanto levantava, limpando minha roupa de resto de terra e grama, e
tomava meu rumo.
-Faz tempo que procuro a resposta…
Antes que pudessem perguntar mais, já andava sem destino, com mínima
postura e bocejando. Não se deram o trabalho de vir atrás de mim, só
ignoraram o evento, a ideia de pagar de doido tinha dado certo. Também não
percebi se me observavam, mesmo que andasse torto, ombros para frente,
olhando para o chão tentando lembrar qual era meu objetivo naquele
momento.
Enquanto andava, em minhas memórias passava algo, tinha esquecido de
alguma coisa e aquilo estava me agoniando. Pensamento vai e vem até que,
com vontade de ver quais eram as horas, lembrei que tinha que me encontrar
com Angel. Estava quase atrasado, mas encontros de amigos não tem horário
fixo, acredito… Só não podia chegar duas horas depois do combinado. Então
comecei a caminhar ao Pub, percebendo que não existia densidade nem de
carros nem de pessoas pelo caminho que tinha pego. Alguns postes não
funcionavam, a ponto de eu me perguntar se iria ser assaltado novamente.
Não fui. Menos uma história para esse texto.
Próximo ao Pub tinham mais pessoas, desde alguns que estavam exalando
fumaça e bebendo na praça que ficava a frente do estabelecimento, uns que só
passavam e alguns parados conversando à porta. Antes de entrar vi uns
brisando sobre psicanálise, filosofia, bruxaria e sei lá mais o que, uma moça
ruiva que estava na conversa me chamou a atenção, parecia estar boa,
estavam empolgados conversando, mas logo me foquei em entrar no Bar.
Era um lugar pequeno, com um barzinho, sofás ao lado direito, duas mesas
e uns joguinhos arcade do lado esquerdo. Alguns bancos altos ao redor da
mesa e em um deles estava meu querido Angel, que sorriu ao me ver
entrando, enquanto tocava ao fundo “A queda” da banda Casa da Mata.
Aquela música com o clima aconchegante de pessoas falando o que der na
telha num ambiente pequeno e foda-se lavavam minha alma, me sentia
tranquilo, entrar e sair sem ser percebido ao mesmo tempo que poderia
conhecer todos naquele local.
Angel estava segurando sua cerveja e a levantou quando nossos olhares se
traçaram, pele escura, cabelos crespos volumosos e uma barba de respeito que
tinha meses de crescimento e olhos caramelo. Era mais alto que eu, não que
fosse uma dificuldade, tinha um jeitão mais moleque, lembrava meu passado.
Vestia uma jaqueta de couro preta e nutria uma camisa branca por dentro e
uma calça preta cheia de rasgões. Sempre gostou do estilo anos 80 e
dificilmente larga, já fazia parte da sua personalidade. Colocou a cerveja em
cima da mesa de vidro que estava fixada ao chão e compartilhada por outras
pessoas e falou em alto e bom som:
-Se eu não te conhecesse, já tinha ido embora achando que beberia sozinho
a noite toda!
Me deu um abraço forte e pediu minha cerveja. Não era minha bebida
preferida, gostava de um vinho, mas o tempo acostuma quase tudo.
Cheguei em seu ouvido e mencionei, com uma voz um pouco alta devido a
música, mas só para ele escutar:
-Cheio de mulher bonita aqui e você iria pra casa? Tu não me engana não
meu amigo...
-Esqueceu que estou compromissado?
-Isso já te impediu de algo?
Falei, sentando no banco que ficou guardando para mim.
Mudando de assunto, ele me perguntou:
-E porque demorou tanto, princesa?
-Acabei dormindo no bosque.
-Foi demitido e perdeu tudo, já? Não achava que a próxima vez que nos
veríamos você teria virado um "mindigo".
Por mais farposa que a conversa pudesse parecer, era realizada com
provocações sorridentes.
-Xiu, xiu. Deixe disso! Eu só tava com muito sono e acabei cochilando, só
isso.
-Porra, teu sono tá bom pra caralho, hein! Exatamente como os conselhos
que me dava... Qual a próxima? Parque Ceci Cunha?
-Ele nunca foi bom... e nunca mandei seguir minhas ações! E é a primeira
vez que isso rola, você sabe.
-Como porra eu vou saber se você não me fala?
-E como caralhos eu vou falar antes de algo que aconteceu há alguns
minutos se a gente nem se viu?
-Se vira! Tu é muito mais inteligente que eu pra dar seus jeitinhos.
-Seu achismo tem pontos incongruentes.
-Parou de palavras difíceis e vamos falar do que realmente interessa! Que,
na verdade, eu não sei o que é.
Dei um gole no grande copo de cerveja ao meu lado, Angel seguiu meus
passos seguido de uma provocação. Falar coisas aleatórias e se comunicar
daquele jeito era sempre bom, dava para esquecer os problemas, mas
precisava falar com ele sobre um assunto mais específico e por isso chamei-o.
Falar de Vívian.
Só que esse assunto foi entrar em pauta um tempo depois de lembranças e
xingamentos, foda que tinha esquecido e tomado meu remédio naquele dia,
ação que tornou a cerveja um pouco mais potente que o normal. Angel
também já estava um pouco alcoolizado, então com uma dicção de milhões, e
aquele agir de bêbado, que fala perto demais e é o amigão, comecei:
-Bixo, preciso falar de um assunto contigo...
-Fala.
-Acho que me fodi.
Olhando para os lados com uma ação imediata que o fez quase cair da
cadeira, respondeu:
-Quem tá querendo te matar? Pra quem tu tá devendo, caralho?
Como se fosse a resposta das perguntas, soltei:
-Vivia! - Batendo a mão na mesa de vidro com uma certa força. Alguns se
assustaram, talvez os seguranças estivessem de olho na gente, não parei para
prestar atenção.
Com a fala grogue, Angel me respondeu:
-Quem é essa vagabunda e por que ela tá tentando te matar?
-Ela não quer me matar...
-E por que você disse que ela queria?
-Não disse... disse?
-Ô seu pau no...
Interrompi colocando o indicador na sua boca, que subia de forma
desordenada pelo nariz, enquanto fazia "shi shi shi".
-Ela tá mexendo com minha cabeça, sabe?
Como se o assunto fosse confidencial demais, Angel veio ao meu ouvido.
-Ela é uma bruxa ou algo do tipo?
Empurrando ele um pouco para longe, mas abraçando-o logo depois, falei:
-Não, pestenção - Apontei o dedo para os fundos do Pub onde ficavam os
banheiros e focamos por alguns segundos sem dizer nada.
Continuei:
-Ela despertou algo estranho em mim que nunca ocorrera antes, sério.
-Por que porra tu usou o pretérito mais que perfeito? Tá querendo
impressionar quem?
-Deixe eu usar o que quero interesse!
-Tô entendendo mais porra nenhuma...
-Bixo, eu quero ela... tô achando que quero... não sei. Conheci a dois dias,
isso não faz sentido...
-Emocionada do cranco! E bixo, tu tá bêbado, isso é diferente de
apaixonado.
-Não é como se você estivesse muito sóbrio! Mas eu tava sentindo isso
antes de beber, foi por isso que te chamei.
-Só pra falar que tá caidinho por uma mina? Se bem que isso não é do seu
feitio, até que sentido faz estranho...
-Bixo, aquilo é um porco?
Novamente voltei a apontar para o fundo do pub, minha visão estava turva
e a partir daí só vieram flashes. Não lembro o que fiz direito e como fiz, se
falei muito alto ou o quanto que chamei atenção, só alguns fragmentos sem
conexão.
Aquele porco fazia box, nunca tinha visto um como bípede e não entendia
o porquê, mas estávamos brigando. Meu nariz estava sangrando e Angel
gritava "Pega a porra do porco!".
Estávamos correndo na avenida, só de cueca e uma galera atrás da gente
gritando "Me dá esse porco, tais estragando o churrasco". Percebi que estava
correndo com um porco debaixo do meu braço, o de mais cedo, desacordado.
Tinha ganho a briga? A região do bosque estava pegando fogo, não tinham
mais pessoas atrás de mim. Vívian estava no meio da pista e fui falar com ela.
Estava um pouco assustada, mas ofereci o porco e ela se acalmou. Ela o
pegou e saiu correndo. Fui atrás, correndo também, tropecei, caí e apaguei.
Capítulo 5
Acordei com Angel falando comigo, dando tapinha em minha bochecha,
sorria, mas aparentava preocupação. Três horas de bebida me fizeram apagar
na mesa, de acordo com ele, por uns trinta minutos. Estavam quase chamando
alguém para me levar ao hospital ou semelhante. O lado direito do meu rosto
estava vermelho, baba escorria pela minha boca. Enquanto levantava comecei
a lembrar do sonho e não sabia o que tinha ou não conversado de verdade
sobre Vívian com ele.
-Tá tudo bem, Pedro?
Parecia que o álcool tinha evaporado de seu corpo.
-Esqueci e tomei o remédio - Falei com uma leveza acordando e um pouco
zonzo - Nós conversamos até que assunto?
-Tu apontou para o canto do Pub, falou que tinha um porco e apagou.
Comecei a rir no começo, depois fiquei cuidando de ti. Se achar umas fotos
na internet com sua cara e esse lugar são só montagens... Depois fui me
preocupando mais, porém tu acordou. Inclusive, recomendo ir lavar o rosto.
Levantei e fui ao banheiro, senti alguns olhos fitando meu andar e meu
rosto, cujo passava a mão, piscava e respirava lentamente. Ainda estava
tentando acordar...
A porta do banheiro estava trancada, ainda tive que esperar quem estava lá
dentro sair. Olhei ao meu redor e vi que além dos poucos olhares que se
desviaram tudo estava seguindo organicamente bem. Me encostei na parede
em espera. Quando um cara saiu de lá deu uma olhada para mim, ainda se
preocupou:
-Tá tudo bem, mano?
Com voz de quem tinha acabado de acordar, respondi:
-Sim, sim, precisa se preocupar não...
E entrei no banheiro.
Era pequeno, um cubículo com um vaso branco, paredes rabiscadas com
os mais diversos textos e desenhos, uma pia e um espelho. Também tinha
papel higiênico, uma novidade para os banheiros masculinos, mas um padrão
era a "água" amarelada que tomava conta de alguns pontos da cerâmica e da
própria privada. Tranquei a porta e fui lavar o rosto.
Quando olhei aquele rosto no espelho, entendi porque alguns me
observavam distante. Meu cabelo não tinha sido lavado a um bom tempo, a
barba estava para fazer, além da cara amassada e a baba no canto da boca eu
me sentia destruído... Meu olhar era vazio, desconexo com a realidade, não
sei como percebia isso, mas não era só de momento. Postura de cansaço, um
pouco corcunda. Mas porquê? por que tinha percebido só naquele momento o
quão destruído estava, ou, me observar de uma maneira diferente do habitual,
pois sempre me vi no espelho de minha casa, mas nunca parei para reparar o
que e quando tinha ocorrido.
Liguei a torneira e enchi minhas mãos de água. Fiquei observando o
volume que crescia e transbordava, além do movimento complexo e artístico
daquele líquido que, ao sair de minhas mãos, batia na pia e descia pelo
encanamento. Joguei no meu rosto e comecei a passar a mão para limpar,
lento e gradualmente aumentando a velocidade até quase machucá-lo, para
novamente olhar no espelho e com a raiva da dúvida me perguntar "Nunca me
incomodei com isso, sempre vivi dessa forma e nunca liguei... por quê? por
que agora?"
Fechei a torneira e enxuguei meu rosto com os papéis toalhas que tinham
no banheiro. Antes de abrir a porta, ainda tinha confusão em meus
pensamentos. Passava a mão no cabelo, olhava fixo para algum canto. Decidi
respirar profundamente, parecia ser uma crise de ansiedade que estava vindo,
então respirando fui me acalmando, fui raciocinando e quando me senti
melhor, saí do banheiro.
Na volta ainda percebi que alguns me “observavam”, mas comecei a
duvidar se era isso ou eu quem estava “observando” eles. Tudo passava na
minha cabeça naquele momento, menos simplicidade.
Quando sentei, Angel, com ar sóbrio, começou a conversa:
-Como cê tá?
-Tô bem, acredito… Fazia tempo que não apagava desse jeito.
-Já aconteceu mais alguma vez?
-As vezes eu gosto de testar meus limites, pena eu tenho é do meu fígado,
mas acontece…
-Até te daria uma bronca, mas depois do que aprendi contigo, acho que dá
pra relevar, mas porra…
Enquanto tomava um copo de água que Angel trouxera para mim, ele
continuou falando, esquecendo o ocorrido:
-Tu me chamou aqui para falar de algo mais específico do que lembrar do
que fizemos no passado, né?
Acenei com a cabeça.
-Tem a ver com essa tal de Vívian que mencionou?
Repeti o gesto.
-Então continue… O que tá rolando?
-Então, meu terapeuta informal - Com tom de piada e prossegui - Tem a
ver com a Vívian sim, mas não ela em si, mas a confusão que ela me trouxe,
do nada. Nunca tinha experimentado algo assim, quando lembrei de seus
monólogos falando de suas antigas paixões, achei que seria uma boa nos
encontrarmos. O sentimento é bom, mas não estou gostando da confusão que
está me causando e o fato de não saber o que fazer…
Não éramos mais o centro das atenções ali e conversamos de maneira mais
tranquila, eu com minha água e Angel continuava tomando sua cerveja.
-Se tu tá confuso e não gosta dessa confusão que ela te traz, fala pra ela,
cara! Diz o que tá rolando e chega numa ideia que seja boa para os dois, pra
tu não se foder e nem machucar ela. Foi isso que tu me ensinou.
-Eu sei dessa parte, o problema é que nós nos conhecemos a uns dois dias!
Chegar com uns papo desse não rola… não tão cedo.
-Então é melhor não se abrir tanto assim não, pelo menos pelo pouco
tempo que se conhecem… Mas, pensando aqui, muito difícil de ser algum
sentimento genuíno. Pensa: Se conhecem a dois dias! Às vezes tu só se sentiu
atraído pela aparência dela e ponto.
-Também pensei nisso, mas sei lá, é diferente. Já senti atração física por
outras mulheres e o foda é que não consigo descrever que porra é essa! Tá me
deixando agoniado.
-O homem das palavras perdeu elas… Bixo, o que eu consigo te
aconselhar agora é esperar.
-Esperar o que?
-Você já devia ter pensado nisso, mas é pra ter uma visão maior do que tá
acontecendo, ir conhecendo ela de verdade e entender aos pouco o que ela tá
fazendo na tua vida. Entender o que o seu sentimento quer e o que o seu
racional diz pra ele… Espere, analise, observe… Siga sua relação, seja lá qual
for, aja normalmente até ter uma noção mais básica do que quer e do que
sente, as vezes do que ela pode também querer ou sentir.
-Realmente, deveria ter pensado nisso, mas ando tão impulsivo…
Querendo as respostas de forma rápida! Um saco! Vou tentar, vou tentar…
-Bem, boa sorte! E eu tô livre a cada dois sábados no mês se quiser dar
uma saída pra conversar, sobre isso ou qualquer papo brizola aleatório.
-Valeu, cara, mas me diz, quanto vai custar essas “sessões” - Soltamos
uma leve risada.
-Deixa por conta da casa! Leve mais como uma conversa de bar, mas nas
próximas, sem dar P.T, hein?
-Senhor quem manda!
Continuamos bebendo e conversando, eu com minha água e às vezes um
refrigerante, ele com sua cervejinha. Mesmo tendo um apreço pela solidão,
momentos como aqueles eram bons, socializar, conversar com pessoas que
nunca tinha visto ou conversar com alguém que me entendia e me escutava de
verdade. Dá prazer conversar, debater ou talvez até brigar embriagado falando
de política ou se o papai noel existe!
Um pouco mais tarde, chamei um carro para me levar para casa. Passei a
viagem inteira olhando pela janela, sentindo o frio da noite, observando cada
casa que passava e pensando “Que caralhos está acontecendo?”.
Em casa tirei minha roupa, tomei banho, escovei os dentes, deitei e
apaguei.
Capítulo 6
Até que eu gostava de Segundas, mas aquela foi muito estranha. Dormi
relativamente cedo no dia anterior, acredito que ter dormido mais que o
normal bagunçou algo em minha mente, acordei cansado, estressado e quase
sem conseguir sair da cama, mais que o normal, pelo menos.
Domingo que eu realmente não gostava, era um dia vazio, sem nada a
fazer e para estar o mínimo bem sempre gostava de fazer algo, pensando ou
planejando, mas também precisava descansar. Minha relação com a exaustão
e o trabalho intenso sempre foi complexa, então deixava para descansar no
domingo, vulgo, fazer nada. Não tinha com quem sair, não tinha nada que me
chamasse atenção para assistir e qualquer outro hobby estava diretamente
ligado a algum tipo de trabalho. O tanto de projeto não terminado guardado
era assustador. Cheguei a quase escrever um livro, o HD deu problema e
perdi ele, desisti.
Olhando para qualquer ponto no quarto, enquanto me fechava em concha
na cama, quase voltando a dormir, me lembrei de quando ainda era estudante.
Aquela sensação era horrível, queria levantar, mas sentia algo me segurando,
quase uma paralisia do sono, porém com mais lucidez. A única coisa que me
obrigou a realmente levantar foi o trabalho. Agora recebia para estar na
escola, bem diferente do que acontecia quando ainda era estudante.
Sentado à beira da cama, senti minha barriga doer um pouco, enquanto
observava o cômodo ainda mais sujo. Percebi a inexistência de formigas
devido um doce que tinha deixado por ali no dia anterior, ainda estava bem-
disposto. Era agoniante ver o quarto daquele jeito, ainda mais agoniante era
perceber que não tinha energia nenhuma para começar a limpeza.
Estava quase atrasado, então não teria muito problema comer qualquer
coisinha na escola. Então resolvi tomar só uma ducha fria para despertar meu
corpo e, como de costume, aquela dor do primeiro toque da água gelada em
minha pele até ela se acostumar com a temperatura. Era uma dor, mas era
necessário, se eu queria fazer o mínimo.
Quando saí, andava devagar e, por mais gelada que estivesse a ducha, o
calor do verão machucava minha pele. A cada passo ia apreciando cada toque
do Sol em minha pele, por mais que odiasse o suor que surgia logo após isso.
Pelo menos uma leve brisa também percorria o ambiente, neutralizando o que
estava sentindo, mas ainda me sentia “vivo”. Estava cansado mentalmente,
então minha postura com o andar demonstrava isso, numa situação que
qualquer coisa me distraía, desde uma folha que planava ao córrego do
esgoto. Ficava olhando para os cantos com uma fixação branca, pois pensar
não conseguia, mas apenas olhava, observava a vida sendo vida, o orgânico
sendo orgânico.
Mesmo disperso, um barulho… um não, uma sequência de ruídos, gritos,
sirenes e murmúrios me chamaram atenção. Próximo a mim, do outro lado da
rua, dois socorristas* carregavam um adolescente numa maca para a
ambulância. Não aparentava nem ser de maior, mas as marcas que estavam
em seu corpo eram demais até para o mais experiente. A batida foi rápida,
brusca, ele não teve chance. Parado, observando, a cena foi-se clareando aos
poucos. Havia uma moto toda quebrada na calçada, embaixo de uma
caminhonete prata. Muito sangue espalhado. Um homem de idade, roupa
social que não cabia mais em seu corpo, estava alterado ao telefone, não sei se
pelo acidente, por um processo judicial, por perda de dinheiro ou pela
possível vida do adolescente que era socorrido. Juntando um tumulto de gente
ao redor, fui perdendo a visão do ocorrido, mas não pude deixar de notar uma
senhora que chorava, soluçando, seguindo a maca. Algumas pessoas também
demonstravam um certo pesar, devo ter visto lágrimas escaparem dos olhos
de alguns, outros só gravavam a cena. Quando gente o suficiente chegou para
tampar toda a minha visão, percebi que tinha que voltar à escola. Por mais
que o choro estivesse preso na garganta, como sempre estivera, decidi seguir
ao meu trabalho. Não tinha nada que pudesse fazer. Não sei se isso me
machucava ou me confortava.
Cheguei cumprimentando o porteiro e observando a desertificação dos
corredores daquela escola. Minha aula só começava na segunda do dia, logo,
era comum os corredores vazios e o farfalhar de sons vir de salas abafadas
junto de pássaros e brisas leves que percorriam o ambiente.
Meu primeiro destino foi a sala dos professores, deixar minha bolsa lá para
não ganhar de presente mais uma hérnia de disco. Depois iria para minha sala
de descanso particular, sempre contando com a sorte de não ter um casal se
pegando. Se bem que era cedo, as chances eram pequenas de adolescentes
estarem com fogo as sete da manhã, eu acho…
Vívian também estava no recinto, mas quando a notei, vi que não estava
com seu melhor humor. Não como se tivesse raiva, mas estava um pouco
cabisbaixa, veio em minha direção e sussurrou:
-Pedro, está ocupado?
Enquanto organizava minhas coisas, respondi no mesmo tom de voz,
aquele dia não parecia trazer energia para ambos.
-Não, só tenho aula a partir do segundo toque e agora estou organizando
minhas coisas, por quê?
–Já tenho que voltar para a sala, mas preciso falar contigo,
-Uhn?
Estava curioso, não lembrava de nada muito específico que tinha ocorrido.
Minha memória também nunca me ajudou muito. Ela respondeu:
-Desculpa pela sexta… digo, minha postura no carro, estava estressada e
algumas coisas acabaram escapulindo de minha boca. Não queria te tratar
daquele jeito. Depois preciso falar com mais calma contigo.
Sorrindo, pois não era algo comum de se acontecer “alguém me pedir
desculpas”, mas respondi:
-Não se preocupe, cada um tem seus sentimentos e seus momentos. Pelo
pouco que conheci de você, sabia que o intuito não era me machucar, talvez
desabafar. Inclusive, sempre que precisar, espero ser um bom ouvinte.
Era estranho alguém se preocupar com uma ação contra mim que passou
por tanto tempo. O quanto ela ficou moendo isso no final de semana a ponto
de pedir desculpas hoje? O que será que ela está sentindo ou passando por sua
cabeça? Se pá, os maiores mistérios da vida estão em entender o que há mais
próximo de nós, seja nossa própria cabeça, pior ainda, o pensamento e
sentimento alheio. Na despedida ela disse:
-Bom… Tô indo e sua carona está de pé, viu? Não se invente de ser
assaltado de novo.
Essa frase me soltou uma leve risada.
-Senhora quem manda! Tchau tchau.
-Beijos!
Ainda não tinha entendido tão bem a conversa, digo, não acho que ela foi
babaca comigo ou me machucou, só não gostou da minha opinião em
determinado assunto e acabou se estressando, sentimentos não são tão
controláveis quanto achamos. Não acreditava que precisava de desculpas, mas
aceitei. Não entrei no assunto mais a dentro por falta de tempo e exaustão da
minha parte.
Saí e resolvi ir para meu cantinho de descanso, porém, subindo as escadas
escutei as bancadas se movimento “Nem fodendo que os alunos tão fazendo
isso… Nem pra disfarçar, pow”. Primeiro bati na porta, para não pegar
ninguém de surpresa, mas uma voz conhecida pediu para que entrasse. Paula:
-Pode entrar!
Entrei e vi que ela estava limpando e organizando toda aquela sala e
bagunça, sozinha. Resolvi perguntar, pois não estava entendendo nada;
-Paula, o que tá rolando?
-Tá sabendo da nova não - Falava comigo enquanto varria o chão.
-Acho que talvez não, estou tão voador que é difícil saber se sim ou se
não. - Falei procurando algum lugar para sentar que não atrapalhasse sua
limpeza, mas depois que entendesse qual era o processo de organização,
tentaria ajudar no que pudesse.
-Diretor acabou sendo obrigado a colocar uma alaga psicológica na escola
e como essa sala estava livre, vai servir como o escritório dele.
-Porra, aqui em cima? os moleque vão entrar em depressão só de subir as
escadas. Mas, me diz, desde quando o Beto se importa com a saúde mental
dos alunos? Bateu uma luz na cabeça dele que é necessário para o
desenvolvimento do indivíduo ou só foi obrigado pelo Estado?
-Segunda opção, claro.
-Putz, então tenho até medo do “profissional” que ele vai chamar.
-Com certeza, acredito que meu carinho e sua dureza com os alunos vai ser
mais eficaz do que algum dos amigos dele que vai enfiar aqui só pra dizer que
tem psicólogo.
-Se for um daqueles que vai mandar buscar ajuda em Jesus ou em Deus,
entro em depressão pelos alunos.
-Sou religiosa, mas não vou deixar de concordar contigo. Minha melhora
psicológica veio muito com trabalho sério, religião ajudou, claro, mas o
trabalho psiquiátrico e entender como a mente funciona é outra história.
Peguei uma cadeira já limpa, pedi permissão para Paula e coloquei-a do
lado da janela. Mesmo conversando com ela, observei o que rolava no mundo
e não me escapava cada expressividade, desde o movimento do vento a um
pequeno pedaço de fumaça a toda a entropia envolta no trânsito que ali
pairava.
Paula varria sem prestar atenção em mim, o trabalho era seu foco,
limpando uma mesa de vidro, mas lentamente virei a cabeça e uma pergunta
que não tinha nada a ver com o assunto surgiu em meus pensamentos e, como
bom comunicador que sou, falei:
-Paula, como anda seu casamento?
Pausadamente, como se quisesse entender o teor da pergunta, virou seus
olhos em direção aos meus. Suas feições eram de confusão, não sei se pela
pergunta ou pelo momento. Ela me conhecia o suficiente para saber que
falaria qualquer coisa do nada, mas sempre tinha um porquê por trás.
Voltando a limpeza, respondeu com sua voz suave:
-Está bem, acredito. Mesma coisa que a alguns anos atrás. Mas, porquê
dessa pergunta do nada?
-Curiosidade.
-Com o que exatamente? Tenho quase certeza que não é sobre o que ando
fazendo com meu marido.
Olhei pela janela, procurando uma resposta em minha cabeça. Realmente
estava curioso, mas por quê? Ela respeitou meu silêncio de pensamento,
conhecia a bagunça da minha mente e dificilmente me pressionava, só
causava resultados piores. Enfim, respondi:
-Com Casamentos, Relacionamentos…
-Seja mais vago, por favor - Soou com aquela ironia amável de Paula. -
Tem a ver com a Vívian?
-Talvez, não sei direito - Falava em pausas, estava montando o que falar
em minha mente - não ainda… Também me peguei pensando em nossa
conversa e na minha inexperiência com sentimentos e relações desse tipo. A
prática é bem diferente da teoria.
-Então pode fazer uma pergunta mais específica?
Antes, olhando para a rua e evitando o contato visual, virei com uma
respiração profunda, olhei no fundo de seus olhos e perguntei:
-Como é amar alguém?
-É bom no começo, muito bom, depois esfria. Não que seja ruim, só
depende realmente de com quem você está - Não esperava uma resposta tão
direta, principalmente com as leituras que tinha costume de ler.
-Como assim?
Ela parou de limpar a mesa de vidro e deu especial atenção à nossa
conversa. Estava disposta a falar sobre aquilo, não acredito que pelo assunto,
mas que era para mim.
-No começo, quando você conhece “A PESSOA”, que, ao meu ver, pode
ser qualquer um, o sentimento é incrível, simplesmente maravilhoso, você se
sente nas nuvens. Só que, óbvio, isso traz consequências, amar é diferente de
estar apaixonado, mas a paixão vem primeiro, com força, fazendo você ver
aquele ente como a melhor coisa do universo, você poderia fazer tudo por ela
e é inexplicavelmente difícil está longe, seja fisicamente ou, como as
tecnologias atuais, socialmente. Essa paixão traz muitos problemas,
principalmente não enxergar os defeitos daquele seu “parceiro”. Defeitos
esses que podem ser preponderantes quando a paixão acaba, mas que se
aprende a conviver quando o amor continua. Assim como a paixão também te
molde, a fazer e agir de forma não natural só pra conseguir seu objetivo, mas
em algum momento isso cansa e se não estiver em equilíbrio em ambas as
partes, alguém vai se dar muito mal uma hora.
No começo ela falava com um brilho no olhar, parecia de recordação, mas
ao passar do tempo foi perdendo a energia de sua fala. Talvez não pelo
trabalho, talvez pela pergunta profunda que fiz e seus pensamentos sobre o
que vive. Não sei se devia ter feito aquela pergunta, mas já estava feita, não
tinha muito como agir para voltar. Sua fala parecia mais pessoal do que um
conselho para me dar, percebi em suas expressões e inquietudes onde se
sentava.
Depois de uma sala silenciosa, minha impulsividade resolveu falar:
-Como vocês se conheceram?
Sua aparência era de cansaço e pensativo. Suor pingava de sua testa, pois,
além do trabalho, o dia esquentava a cada minuto. Secou sua testa com um
paninho que tinha ali. Olhou para um canto vazio da sala, não mais para meus
olhos, queria contar uma história, sua história…
-Era uma discoteca local que existia há mais de 20 anos atrás. Saí com
minhas amigas, escondida de meus pais e lembro que ele estava lá, com seu
grupinho de amigos, todos de bigode. Era um estilo famoso na época. Já tinha
visto ele umas duas vezes na rua e sempre me chamava atenção, o que
resultou numa troca de olhares constantes durante a festa, porém parecia que
ninguém teria coragem de dar o primeiro passo. Estava com uma sensação
que ou seria naquela festa ou não teríamos outra chance, talvez pensasse o
mesmo.
Pegou o pano de suor e novamente passou pela testa. Continuou:
-Estava tocando a Raposa e as Uvas do Reginaldo Rossi. Minha amiga
tinha ido ao banheiro, então eu estava sozinha lá, quando um cara apareceu,
era bem mais velho que eu e me chamou para dançar. Não estava confortável
naquela situação e nem queria, então disse que não. Ele continuou insistindo a
ponto de quase dançar comigo à força. Ele era um pouco alto, cabelos
cacheados, olhos castanhos e uma cicatriz quase imperceptível em sua
bochecha. Não conseguia pedir ajuda a minha amiga e não conhecia ninguém
ao redor. Era uma situação muito chata e queria me livrar o mais rápido
possível, até que ele chegou.
Ela deu um pequeno sorriso, parecia gostar de se lembrar da história.
-Tinha um bigode negro e grosso, olhos castanho escuro, seu cabelo estava
penteado para trás com gel, algo que eu achava graça, pois só via em filmes
da televisão, mas não tirava sua beleza. Preto, era maior que o outro. Chegou
logo perguntando se eu estava bem ou se o cara estava me incomodando.
Antes de qualquer resposta, seus amigos levaram esse cara para fora e ele me
chamou para dançar. Deus lá sabe o que fizeram e não tive vontade de
perguntar.
Suas expressões faciais mudavam conforme toda a conversa. Seria
possível ter tantos sentimentos diferentes por uma só pessoa? O começo
parecia fascinante, mas o agora, era algo incerto, aparentemente.
Já estudei muito sobre esse tipo de coisa, mas, na prática, nunca tive a
oportunidade.
Resolvi continuar o assunto, tentando ser o mais inconveniente possível,
só estava realmente curioso em como funcionava esse assunto, na prática real,
não pela visão de pessoas que se acham donos da verdade ou semelhante.
-E hoje, como estão as coisas? Sei que já perguntei algo parecido, mas
você deu alguns contrapontos que me deixou interessado. Claro, fale se tiver
confortável com o assunto, mas estou realmente curioso.
Paula não se recusou a prestar seu “depoimento”, mas continuou olhando
para suas mãos, escolhendo minuciosamente as palavras e começou a falar, de
forma devagar e serena.
-Não sei… Sinceramente não consigo dar resposta. Ele não para em casa
por trabalhar ou bebendo. Tenho duas criaturas pra dar de conta, mas com
esse emprego dificulta muito nossa proximidade. Nossa situação financeira
está um caos, pelo menos não falta comida na mesa. Não ainda…
Se levantou e continuou limpando, mas dando a entender que estaria
disposta a continuar a conversa.
-Você mudaria? Se pudesse…
Não chegou a entender minha pergunta e um murmúrio comprovou isso,
então resolvi mudar a sentença.
-Se pudesse mudar o passado em relação a isso, mudaria?
-Não
Sua resposta foi seca, certeira e com convicção. Como se já estivesse com
a resposta na ponta da língua. Continuou:
-Da mesma forma que não posso voltar atrás para mudar o passado, não
tenho certeza nenhuma que isso seria benéfico pra mim.
Sua forma de pensar era parecida com a minha. Lembrava facilmente do
amor fati de Nietzsche. Não sei se ela o conhece, pois quando cito seu nome
em algumas conversas, ela faz uma cara estranha “Fica com esses nomes
estranhos ai”, eu só dou risadas. Mas, mesmo assim, ouvia tranquilamente,
tinha a humildade de dizer quando não entendia do que eu estava falando,
mas não se estressava. Gostava de me escutar. Como já estava quase na hora
de minha aula, resolvi tirar uma última dúvida antes de sair.
-Paula, mudando de assunto, agora queria tirar uma dúvida sobre mim.
Já levantando e indo no sentido da porta, Paula comentou:
-Nossa, hoje tu tá curioso mesmo, hein! Tá ganhando bônus para trabalhar
como um filósofo? - Deu risadas e logo após disse - Brincadeira, pode
perguntar.
Ri um pouco e prossegui.
-Por que mesmo admitindo não entender metade das minhas ideias e
discordando de quase todas, não se afasta de mim como os outros?
Enquanto limpava os cômodos, respondeu com uma grande suavidade na
voz:
-Pedro, eu não sou intolerante. Não me afasto de ti porque não há nenhum
motivo para isso. Mesmo não concordando ou entendendo suas nóia, elas não
me atacam ou me rebaixam, como muitos por ai. Você se preocupa se estou
bem e se qualquer coisa que disse me atingiu de alguma forma, isso faz eu me
sentir bem. Você é uma das pessoas mais sinceras que já conheci, e não
aquela sinceridade de cobra que machuca, você toma cuidado… Também
acho lindo quando alguém fala do que gosta, quando os olhos brilham, é isso
que vejo em ti quando se está falando de filosofia ou da Vívian…
Fiquei um pouco vermelho, via sinceridade em suas palavras e aquilo me
fazia sentir bem. Ela prosseguiu.
-Fico muito admirada pelo carinho que tem pelo que gosta. Quem se afasta
de ti sem ter motivo, certamente é inveja do quanto tu sabe, porque em
nenhum momento vi você rebaixando ou fazendo mal aos outros. Você só é
você e ponto e eu gosto de você.
Gostei daquilo. Animou minha segunda, agradeci e me despedi, Fui dar
minha aula.
Descendo as escadas, passei pelo descendente de pinguins. O calor estava
tão intenso que conseguia ver minha imagem em sua careca. Ele subia de
óculos escuros e um pouco cambaleante. Parecia uma ressaca de final de
semana. Era normal nas segundas-feiras Não ligamos para a passagem um do
outro, então seguimos nosso caminho.
Na saída, quando o Sol já estava se pondo, me encontrei com a Vívian na
saída. Ela ainda era minha carona, um pouco sem jeito, talvez, mas, mesmo
assim, nos abraçamos e seguimos para o carro.
Comecei a falar, com uma certa ironia, para tirar um gelo que, de repente,
estava pesando sobre suas costas:
-Agora já sabe onde é a minha casa, né?
Ela riu e o clima ficou mais leve, aparentou estar tudo bem, então demos
prosseguimento ao caminho. Resolvi puxar assunto.
-Sabe um bagulho que rolou?
-Uhn?
-Vão “destruir” meu cantinho de descanso…
-Tem lugar pra descansar naquela peste?
-Tinha uma sala abandonada lá em cima, só com poeira e cadeiras.
Gostava de ir para lá pra descansar a cabeça, escrever, preparar aula ou olhar
o movimento da rua. Os alunos, com certeza, faziam outras coisas.
-Legal, você dividia seu templo de meditação com o motelzinho dos
moleques.
Depois de uma risada solta, continuei:
-Bem, agora acho que aquele “motelzinho” vai ter uma finalidade mais
institucional. É meio foda, vou ter que achar outro ponto pra descansar.
-Se achar me conta!
-Sim senhora!
-Mas é isso, né. As coisas mudam, meu bem!
-Sim, acho que isso é um dos melhores motivos para aproveitarmos o que
temos a cada instante, mas, mesmo assim, não deixa de ser ruim.
No rádio tocava “On the turning Away” do Pink Floyd no rádio.
Não sai do carro, mesmo chegando em casa, pois a conversa parecia
interessante.
-Como você lida com as mudanças, Vívian?
Ela desligou o carro e só com as luzes de dentro nos observamos “Caralho,
que olhos lindos e profundos”. Ela falou com o costume ou talvez a malícia,
mas foi no fundo de meus olhos que deu sua resposta:
-Acredito que depende da mudança. Se for algo que eu julgue ser bom,
abraço e aproveito. Quando é ruim, tentando ver a melhor maneira de me
rebelar ou contornar o problema. Gosto quando são ruins, me dá mais energia
para fazer alguma coisa e, nesse processo, acabo aprendendo mais coisas, por
mais que gastem minha energia, mas estamos vivendo para gastá-la, num é?
-Acho que sim…
-Trato a mudança como objetivo e o processo de adaptação acaba se
tornando divertido e aprendo com eles. No momento não pode ser tão bom,
mas quando penso, lembro das situações e são até que de boas e sempre rende
história para contar - terminou ela com uma risada, aquele sorriso que me
confortava a cada vez que surgia.
Concordei com seu ponto de vista, mas dei meu contraponto:
-Gostei dessa forma de pensar e agir. Infelizmente não sigo exatamente
isso, na verdade, independente se bom ou ruim a mudança, tendo a não me
importar. Não me animo muito com coisas boas, pois se me ferrar depois com
algo ruim, também não vou levar tanto a sério. É uma apatia que construí.
Não recomendo, mas é o que sigo atualmente. Quando tem um obstáculo
muito grande no caminho, não tento destruí-lo, me falta energia, então só
durmo. - Terminei com uma risada sarcástica
Ela riu com o final de minhas palavras, era uma conversa séria, mas que
nos aproximava cada vez mais. Era possível sentir nossos hálitos perpassando
pelos rostos um do outro. Por um tempo ficou em silêncio, enquanto
encaramos os olhos um do outro, aquele otimismo de um lado e o pessimismo
de outro, dois opostos, mas que se atraem de alguma forma. Ao fundo tocava
“Vela” da banda Gato Negro. E, sobre nós, só uma luz fraca amarelada,
respiração e pensamentos.
Tive medo do que podia acontecer, então dei uma desculpa esfarrapada
sobre algum trabalho ou algo do tipo. Ela riu e se despediu. Sai totalmente
atrapalhado do carro, não sei o que se passava pela minha cabeça.
Estava ansioso, algo estranho se movia em minha barriga. Estava um
pouco ansioso e não sabia o que fazer, mesmo que a primeira coisa que veio
na minha cabeça foi o cigarro guardado.
Estava um pouco eufórico, na realidade, era uma mistura de sentimentos
que não fazia a menor ideia de como descrevê-los.
Fui logo para a cama, nem o tênis tirei.
Olhando para cima, fixando num ponto do teto, refleti, foram umas três
horas repassando tudo o que tinha acontecido e o que poderia acontecer.
Apaguei.
Capítulo 7
Uma semana se passou. Não teve muito o que narrar, por mais que a rotina
tivesse mudado, já era uma mudança esperada, e, para mim, não faz muito
sentido falar sobre dias que são quase uma cópia do outro, no máximo uma
síntese do ocorrido. Eu e Vívian fomos nos aproximando, os assuntos eram
maravilhosos, pois da mesma forma que ela escutava o que eu tinha a dizer,
sempre tinha umas brisas que me animavam na conversa. As caronas
continuaram frequentes e era um antro de fofoca sobre o que acontecia na
escola. Ela também se aproximou de Paula, éramos um trio diferente, mas eu
gostava. Nada muito normal vale tanto a pena. A partir daqui as narrações
ocuparão um lugar de momentos especiais ou diferentes e pode confiar em
mim, isso cabe em um livro.
Segunda-feira, não tinha mais aquele meu cantinho de descanso, ou como
apelidado por Vívian “Motelzinho”, então precisava de algum lugar para me
isolar e pensar, simplesmente pensar. Pensando e olhando meu telefone,
andava pelos corredores da escola, até que me deparei com um trio de
professores conversando. A princípio ignoraria, pois meu destino era Vívian,
porém umas palavras-chave me chamaram a atenção, então resolvi escutar
disfarçadamente, como se estivesse mexendo no meu celular próximo.
A conversa estava mais para um monólogo. Palavras estúpidas, se o leitor
me permite, foram jogadas ao vento por um professor que ensinava
matemática para o ensino fundamental, mas nem licenciatura tinha, no
máximo, outra graduação que me foge a mente, salvo engano, seu nome era
Alírio. Os outros dois, como capachos, só concordavam com ele e
demonstravam indignação com seus exemplos de vida e como “professor”.
Sua aparência não era muito extravagante. Sua pele era mais clara que a
minha, olhos de mesma tonalidade e cabelo liso. Um pouco maior que eu, não
que fosse difícil.
Quando comecei a escutar o monólogo, fiquei incrédulo e o sangue parecia
ferver em minhas veias, ainda não fingindo mais mexer no celular, mas
mandando mensagem para Vívian do porquê ia demorar.
Quem guiava o assunto falava:
- Não tem cabimento mais esse método de ensino! Os alunos já chegaram
num nível que se acham superior aos professores. Nenhum pingo de respeito
com a gente, acham que podem fazer qualquer coisa. Onde é que tá a nossa
autonomia, porra? Eles conversam, conservam e não fazem o que é mandado,
fingem que nossa presença na sala é nula. Se pudéssemos puní-los
adequadamente, duvido agirem dessa forma. No passado era bom, mas essa
merda de lei não colabora, tocar em um aluno, vou preso.
Quando ouvi isso, não conseguia mais disfarçar que estava no celular.
Levantei a cabeça lentamente até estar de encontro com os olhos daquele
“professor”, com rosto de nojo e confusão. Até que ele me percebeu, além de
seus “colegas”. Alguns segundos de silêncio depois, pensando e tentando
achar a forma mais tranquila de xingar aquele sujeito, as palavras saíram da
minha língua de forma automática:
-Acredito que no mínimo, o senhor, deveria repassar de maneira adequada
o próprio conteúdo que lhe é imposto como professor ou, no mínimo, saber
como funciona o pensamento psicopedagógico de um aluno da idade que o
senhor ensina para, aí sim, trabalhar uma didática que funcione tanto para
seus alunos, quanto para você mesmo. É um nojo ouvir falar de punições,
aqui não é um ambiente militar e você não é um superior. Estamos numa
escola, Caralho!
Talvez na última frase me alterei, mas continuei.
- Respeito não é algo que se obriga a ter, se conquista. Para alunos em
desenvolvimento, no mínimo deve ser demonstrado o porquê que eles estão
vendo e como estão vendo, isso muda completamente a mente de um
indivíduo, mas pelo que ouço, limitar perguntar e censurar alunos não é o
melhor caminho para isso. O que você quer impor é medo e não tem nada a
ver com ensino aprendizagem, é só sua tara por opressão!
Enquanto eu falava, não percebia, mas meu tom de voz ia aumentando,
era como se a raiva estivesse tomando conta do meu corpo. Além dos
professores que estavam a pouco concordando com aquele homem, foi-se
chamando atenção de outros professores e, principalmente, alunos que
transitavam, porém não olhavam tanto como uma diversão ou com a ideia de
“dois professores estão brigando, que massa”, mas estavam realmente
tentando entender o que estava acontecendo.
Atônito, antes que pudesse falar algo, continuei no mesmo ritmo e com o
rosto já vermelho, apontando o dedo para sua cara e quase aos berros.
- Nenhuma porra de método agressivo vai fazer com que seus alunos
aprendam um pingo do que você quer! Decorar ainda é um talvez, mas seu
comportamento só vai criar mais cidadãos vingativos, com o desejo de
oprimir e machucar quem está abaixo por uma ilusão de “respeito” que é
exatamente o que você está propagando! Eles têm medo e agonia de aparecer
na sua aula, já agora, não precisa chegar ao extremo que quer. Quando te vejo
dando aula, tratando uma criança como um animal de estimação a ser
adestrado, dá vergonha de compartilhar o mesmo posto de alto prestígio que é
ser professor. Se quer respeito, tente, ao mínimo, respeitar sua profissão!
Devemos transmitir o nosso conhecimento em uma estrada de mão dupla,
temos nossa autonomia assim como os alunos, se não souber respeitar isso,
nunca será respeitado, pelo menos não por pessoas que tem o mínimo de
pensamento crítico. Você não tem prazer em transmitir o que “sabe”, só está
aqui por arranjo e ainda quer que alguém te admire? Ah! vai pra puta que
pariu! Para ensinar, no mínimo, deve existir o prazer de transmitir esse
conhecimento e não colocar o “conhecimento” na mente de uma criança ou
adolescente como se fosse um pendrive!
Talvez passei um pouco dos limites, mas aquele desabafo era de tantas
coisas guardadas por tanto tempo, desde meu tempo de aluno, tanta emoção,
tanta indignação…
Por alguns segundos, após eu parar de falar, ainda ficaram confusos,
olhando uns para os outros sem saber muito o que fazer. Dava a impressão de
que nunca tinham sido desafiados, não por alguém que estava ao mesmo
“nível” que eles. Mesmo que eu não gostasse de suas ações, aprendi a ficar
quieto. Me envolver com aquele tipo de gente só traria mais problema para
mim e de problemas, bem, estava com preguiça de lidar… Eles também
tinham mais proximidade com o dono do colégio, então talvez eu tivesse dado
um tiro no pé quanto ao meu emprego. Não sei porquê, mas estava
preocupado.
Não sei porque fiquei esperando tanto tempo, mas após um mínimo
tempo, o “matemático” começou a me “contra-argumentar” ou, sinceramente
falando, me xingar e rebaixar para tentar provar que estava “certo”. Isso
sempre me deixava confuso…
- Olha aqui seu pedacinho de merda. Não sei quem você acha que é para
me tratar assim, nunca te dei essa liberdade e tu quer só chegar aqui e ditar
como EU devo ensinar? Não só fiz matemática seu merda. Sou advogado
também! Você tá fodido, meu irmão. Aguarde o processo!
Ah, lembrei de sua outra graduação: direito. Usava isso como qualquer
desculpa para rebaixar qualquer indivíduo e estufar o peito, mesmo sem
nunca ter conseguido passar na OAB, então nem passava pela minha cabeça
algum medo sequer de um processo dele, mas sua relação com a diretoria…
Continuava falando atrapalhado, repetindo as palavras e me xingando,
tentando sentir-se superior. A cena estava tão estúpida que alguns alunos riam
de sua postura. Os outros professores não sabiam muito o que fazer, estavam
agindo como baratas tontas. Eu apenas dei meia volta e fui andando ouvindo
seus berros.
- Você se acha! Um intelectualzinho de merda! Caladão e sem ninguém
na sua vida! A única coisa que sabe fazer é dar em cima da nova professora
que chegou! Acha que não sei? Acha que a escola inteira não está sabendo?
Seu patife!
Talvez estivesse tentando vir pra cima de mim, me agredir fisicamente,
seria interessante o resultado disso, mas como não olhava para trás só ouvia
os murmúrios e barulhos de algumas pessoas talvez segurando ele, enquanto
tentava vir em minha direção, porém, aposto, que se ninguém o tivesse
segurado, não daria um passo para cima de mim.
Precisava pensar, consequências, consequências… Fui para a sala de
limpeza. Talvez se tornasse uma substituta para minha antiga sala de
descanso, mas sem a vista orgânica da cidade. Apenas um banquinho e uma
luz amarela e fraca que, ao balançar, fazia seu barulho típico, quebrando
qualquer faísca de silêncio.
Não mais olhava para uma janela e uma cidade dali, mas para um ponto
qualquer de um feixe de luz que passava por um buraco da porta e mostrava a
poeira que ali planava. Comecei a pensar.
“O que acabou de acontecer? Digo, por um deslize bobo, algo que não
cometo, completamente emocional eu joguei meu emprego no lixo? Sim que
eu guardei dinheiro para emergência, mas não é para sempre e energia para
arrumar outro trabalho, caralho, não tenho mais a muito tempo, isso daqui já
foi uma puta sorte. Não ligo para aquele professor, no máximo ele vai se
afastar de mim, mas isso vai chegar na diretoria e a porra do Beto só tá
esperando um deslize qualquer meu… Puta que pariu.
Também não entendo esse pensamento de ensinar algo através de
agressão física e psicológica. Onde eles querem chegar com isso? É algo
premeditado ou cultural? Que tesão é esse por um respeito hierárquico que às
vezes se não é tratado como “senhor” ou “doutor” já é motivo para repulsa?
E mesmo com este sistema de educação falido que a gente tem, só
servindo para criar mão de obra barata para o mercado, cada vez mais tirando
a criatividade e pensamento crítico dos alunos, a solução é colocar mais erros
na merda que já tá feita? Não, pera lá! Entenderia isso saindo da boca de
quem vai se aproveitar disso, mas de um trabalhador?
Desde a infância, a falta de instigação ao conhecimento já machuca
muito esse desenvolvimento, seja escolar, seja familiar. Perguntas de crianças
são tidas como “chatas” e “insuportáveis” quando poderiam ser uma grande
janela de oportunidades para instigar o conhecimento, a curiosidade, o
descobrimento. Desde o ensino fundamental, esse método de avaliação
através de números como se as crianças fossem robôs só acostuma a visão de
que “Eu sei disso porque tem um número no papel falando que sei” e cria
uma busca incansável por valores numéricos e não conhecimento.
Culturalmente isso é tão agoniante que vejo como adolescentes desistem dos
seus sonhos pela simples busca da aprovação em tudo, como se saber tudo
sobre tudo fosse seu dever, ser um mercado fosse sua obrigação e a melhor
maneira de seguir isso é tirando as melhores notas. Por que um artista precisa
de um dez em matemática ou um matemático tem o dever de um dez em
artes?
A falta da filosofia na infância também é um erro grave. Não uma
filosofia decorativa de nome de filósofos que pensaram coisas específicas,
mas o instigar às próprias crianças a pensarem, encontrarem resolução de
problemas, ver seus gostos e uma análise mais complexa do que apenas
número para ver o que cada indivíduo se apaixona na natureza o que pode
ajudar muito mais na busca de um futuro do simplesmente números em
cadernetas. Saporra não quer dizer nada, principalmente para uma criança em
autodescobrimento. O mundo real é tão maravilhoso e incrível com sua
história, arte, eventos, ciência, até mais que contos e livros fictícios, sem tirar
o peso sociocultural que eles carregam, mas nunca tiveram essa visão de que
não há nada acima de nada, fecham os olhos para a maravilha do mundo real
e se prendem em bolhas de análises quantitativas de crianças.
O ensinamento para o simples passar numa prova ou conseguir um
trabalho qualquer é agoniante. Não sou religioso, porém tenho fé que em
algum dia isso vai passar e vão abrir os olhos do prazer que se pode ter com o
apreço pelo conhecimento e aprendizagem e não aversão ou servindo para
objetivos que se distanciam da felicidade individual…
Mas enfim, o que eu vou mudar pensando sobre isso olhando para um
monte de poeira que plana em minha frente? Por mais belos que esses
movimentos sejam, pela beleza que o feixe de luz transmite só por existir…
Queria que olhassem para esses detalhes minimamente assim, com o mínimo
de apreço para cada coisa que existe ao nosso redor e não como simples
objetos e eventos que só estão lá. Mas essa é apenas a minha visão de mundo,
não posso e nem devo obrigar ninguém a pensar assim”
Quando olhei meu relógio, já tinha passado um pouco de tempo de início
de aula, então decidi ir para a sala.
Chegando lá, em frente a porta, o pinguim tropical estava me esperando,
um pouco vermelho. Talvez raiva, talvez vergonha, não consegui discernir de
imediato, mas ao chegar perto ele foi curto e grosso:
-Minha sala após essa aula!
Assenti com a cabeça e entrei. Estavam mais quietos que o normal.
Aquilo não era respeito e sim medo, medo que o diretor gostava de impor em
cada indivíduo ali, mesmo com alguns momentos disfarçados de “diversão”
ou algo que pegava todo prestígio para ele. Escolheu ser temido, mas sabia a
merda que daria se fosse odiado.
Com a ansiedade que voltava aos poucos à minha pele, no fim da aula fui
em direção a sala do diretor, já pensava na demissão e como angariar forças
para fazer algo após isso, mas após algumas respirações profundas no
caminho fui me acalmando, sempre tendo o cuidado para não transparecer em
meu rosto o que sentia.
Quando cheguei na secretaria, que ficava num corredor e ficava de frente
a duas portas: uma da diretoria e outra da pedagogia, porém não tinham
pedagogos… Já fui naquele lugar umas três vezes só neste ano, mas sabia que
não seria demitido nas últimas vezes.
Falei com a secretária. Sempre foi gentil comigo, mas nunca mantivemos
uma relação de amizade ou semelhante, na verdade ela só era carinhosa com
todos, não sei como ela poderia estar se sentindo, imagina, ser treinado para
usar uma máscara de amabilidade o dia inteiro todos os dias e no primeiro
cansaço você é trocado. Bem, aquela era a segunda secretária, só naquele ano,
infelizmente não lembro seu nome, sempre fui horrível com essa parte da
memória.
Ela disse que Beto estava me esperando, que apenas deveria bater na
porta e esperar ser chamado. O procedimento padrão.
Bati e ele pediu para que entrasse.
Sua sala era relativamente grande, para uma diretoria em si, mas não
duvidaria da sua astúcia para melhorar o lugar o qual mais passaria tempo.
Não tinha muitas diferenças de diretorias comuns. Alguns quadros, armários
com medalhas e prêmios, algum diploma na parede e uma smart-tv. Não
queria nem imaginar o que ele assistia ali… O carpete era confortável, um
sofá na parede nua e uma mesa próximo ao fim sala em que separava a
cadeira do diretor e daqueles com quem ia falar. Sua mesa estava mais
bagunçada que o normal, quando fui entrando e sentando não deixei de espiar
que tipos de documentos existiam ali. Minha curiosidade foi meio óbvia,
então, a cada passo que eu dava, ele ia guardando aquela bagunça de qualquer
jeito na gaveta, mas duas palavras ficaram gravadas em minha mente:
“assédio” e “estupro”.
Fiquei em pé, parado, esperando que falasse algo e que fosse rápido.
Alguns pedaços dos músculos do meu corpo tremiam, não sei se por estresse
ou ansiedade. Antes de iniciar, ele deu um grande suspiro, parecia tirar um
peso de suas costas, então me pediu para sentar. Enquanto fazia o que me foi
pedido, Beto apoiou os cotovelos em sua mesa, massageando sua testa com as
mãos e demonstrava um cansaço fora do comum. Começou a falar com
aquela voz cansada:
-Pedro, agora preciso que você me escute bem, tem uma corda
pendurada e um balde, você está amarrando esta corda no próprio pescoço e
implorando para que eu chute o balde. Acredito que já tenha ideia do porquê
te chamei.
Concordei, sem muita expressão. Beto desceu suas mãos pelo rosto até
juntá-las abaixo do queixo e olhar em meus olhos.
-Mas o balde não vai ser chutado agora, seja pela sua felicidade ou não…
Fiquei confuso, a ponto de ele perceber meu olhar estranho em sua
direção. Não disse nada e ele deu prosseguimento:
-Cá entre nós, Alírio é uma peça que eu queria longe do meu tabuleiro há
tempos. Quebrar a moral dele como você fez foi uma ótima faísca para ele se
demitir e não querer pisar mais aqui. Sobre os motivos de eu não o querer
aqui… Bem, isso não importa. Poderia dizer que estou te devendo um favor,
mas considere não ser demitido agora como esse favor pago, mas se ligue,
estou de olho, qualquer deslize a mais, mesmo que me ajude indiretamente,
você está na rua! Agora sai daqui que tenho que me arrumar para chegar em
casa.
Concordei sem dizer uma palavra, porém minha mente estava a milhão,
muitas coisas ao mesmo tempo. Saí e já tinha passado da hora da liberação
dos alunos, então passei naquele amontoado de gente até achar Vívian, que
estava me esperando. Antes que pudesse perguntar o que tinha rolado e sobre
os boatos, lhe dei um abraço e agradeci por ter esperado, só que abraçar não
era meu forte, pelo menos difícil partir de mim. Após isso Vívian olhou para
mim, com sua preocupação no olhar, perguntou:
-Tá tudo bem?
-Vamos pra casa, no carro conto tudo.
Ao entrar, já havia recomposto minha casca, o abraço foi só um deslize
de alguém que já fui um dia, ela me fazer cometer esse deslize que foi
estranho, mas como disse Angel: “Espera”. Então, como se cada evento não
tivesse o mínimo de importância, contei toda a história do que tinha ocorrido.
A cada palavra, sua curiosidade aumentava, seja pelos possíveis
processos na mesa do Diretor, seja de sua ligação com Nildo, até que
completei a história falando:
-Vívian, toma cuidado, não vai mexer em coisa alheia que dá merda. Tu
já não é bem-vista ali por andar comigo e até teu nome colocaram na briga.
Com deboche e rindo, porém sem esconder seu ar de preocupação, falou:
-E quem disse que quero ser “bem-vista” naquele meio?
-Não é esse o caso… É que se você for fuçar nesse meio e der merda, já
tem uma agravante a mais que tanto dificulta seu acesso quanto pode piorar
pro teu lado se for pega.
Era uma preocupação meio tola, pois não fazia ideia do que ela faria,
entretanto sabia que mexer com aquele tipo de pessoa era mexer com peixe
grande.
-Relaxa, Pedro! Vou fazer nada de muito errado não… E se eu for
pescar, vou perguntar pra ti qual tipo de peixe consigo fisgar, ok?
Soltei um ar de risada pelo nariz e concordei.
Chegamos em casa.
Fui ao quintal fumar. Era o menor intervalo de tempo que fazia isso entre
o último cigarro e este. Aparentava que, com o andar da carruagem, ficaria
menor a cada cigarro e viriam a se tornar maços…
Capítulo 8
Após dois dias, houve uma comemoração entre professores e alunos na
escola. Estava meio estressado na época e não estava a fim de socializar
muito, Vívian estava no mesmo pique que eu. Então conversamos e
decidimos ir para o shopping quando o evento começasse. Falamos para
Paula, pedindo mil desculpas por deixá-la sozinha com aquela turma, mas ela
aceitou sorrindo e indicando que estávamos indo para um encontro, não só
fugindo de um simples evento. Talvez fosse, mas não era meu objetivo, não
sei o que passava na cabeça de Vívian.
Às três da tarde, logo no início, entramos em seu carro e fomos em direção
ao único shopping da cidade, a famigerada loja que tem lojas. Durante o
caminho, que ela parecia conhecer menos do que eu, resolvi puxar algum
assunto, para não ficar aquele silêncio constrangedor. Mesmo que não era um
silêncio em si, pois tocava “Pelo Interfone” do Cícero, no som do carro.
-Tu é daqui?
-Mais ou menos…
-Como você é de um canto “mais ou menos”?
-Nasci aqui, mas logo fui morar em Pernambuco, Olinda para ser mais
específico, cresci e me formei por lá. Só que acabei voltando para cá há
menos de um ano.
-Do nada assim?
-Não, não… Parte da minha família é daqui ainda e, bem… terminei a
faculdade e a vaga de emprego foi surgir mais rápido aqui do que lá e estava
com uma certa preguiça de passar fome ou depender da família por muito
tempo. Quando alguns familiares comentaram sobre e me indicaram aqui,
resolvi vir. Precisava de autonomia na minha vida.
Falava centrada no trânsito, enquanto entrava em ruas que nem eu fazia
ideia de quais eram, então tive que perguntar.
-Tu sabe qual o caminho pro shopping?
-Talvez… Mas é melhor colocar aí no maps. Não faço a menor ideia de
onde estamos. - E riu de si mesma.
Quando abri o aplicativo em seu celular, percebi que estávamos indo no
caminho contrário.
-Se continuar assim, vamos acabar parando em Lagoa da Canoa…
-Então bota o caminho certo aí, bússola ambulante.
-É pra já! Pelo menos não sou eu quem tá gastando gasolina atoa…
-Depois não reclame se não der mais carona.
Sorri.
Continuando o outro assunto, ela disse.
-O mais interessante é que o trabalho que estavam me indicando não era
relacionado a ser professora, nem a filosofia. Seria engraçado eu vir para cá
por um emprego e entrar nele só depois de 7 meses.
-Era o que, então?
-Ser atendente numa empresa de telemarketing. Até que ganhei uns
trocados, mas não sei se rendeu os problemas mentais que vieram juntos.
Juro, não me ligue! Ainda estou com trauma.
Antes que eu pudesse falar, um carro fechou ela e foi engraçado ver ela
xingando o outro veículo. Achava fofo ela expressar um ódio interior que não
era comigo, então ri.
-Continua rindo que arranco esses seus dentes com um alicate.
Continuei rindo ainda mais alto, até ela esmiuçar um mínimo sorriso e
falar um
-Xiu!
Antes de chegarmos no shopping, voltando ao seu estado de espírito
tranquilo, comentou.
-Antes de entrar na empresa, ainda trabalhei na loja de um tio meu, deu
para arrumar uns trocados também.
-E porque foi para o telemarketing em vez de ficar na loja de alguém da
sua família?
-Poderia começar dizendo que trabalhar com a família é um porre, mas…
faliram a loja em dois meses.
Gargalhei como não tinha gargalhando em muitas semanas.
-Só deixo você rir dessa porque a culpa não foi minha. Meu deus, que
administração merda…
E ela começou a rir junto.
-Ainda morei com eles um pouco, mas quando arrumei meu dinheiro no
telemarketing consegui alugar uma casinha boa. Meus pais me ajudam
quando podem também, mas como disse, estou procurando mais autonomia.
Depois de demorar trinta minutos num trajeto que seria menos de dez,
chegamos. Não tínhamos um objetivo em específico ali, então foi decidido ir
comer na praça de alimentação, conversar e fofocar. Se distrair um pouquinho
das obrigações de vez em quando era bom, pena que não fazia aquilo com
muita frequência. Pedimos alimentos completamente saudáveis para manter
nossas promessas de ano novo, como dois hambúrgueres duplo cheddar,
batata frita e qualquer refrigerante que tivesse por ali.
Por mais que fossemos conversar e esquecer as coisas sérias do dia a dia,
isso não impediu que conversássemos sobre coisas “sérias”, mas sem nenhum
peso, só uma “conversa de bar”, porém num lugar que não dava para ficar
bêbado o suficiente. Eram assuntos que iam desde teorias da conspiração,
maneiras de derrubar o Estado, filosofia, política, extremismo, religião,
enfim, foi uma tarde maravilhosa com uma pessoa que só tinha a agradecer
por estar lá comigo.
Era a primeira vez que conversamos sem um limite de tempo, como a hora
do intervalo da escola, porque ou estávamos sempre ocupados demais, ou
porque nossos horários nunca batiam. Estávamos livres para conversar por
horas e horas e foi exatamente isso que aconteceu.
-Vívian, tu segue alguma religião ou semelhante?
Perguntei com uma certa curiosidade, pois nunca expressou nada do tipo,
mas seria um bom assunto para colocar em pauta e falar sobre.
-Religião, nenhuma, mas talvez exista algo, não precisa ser tão racional
ou, na verdade, nós não precisamos ser tão racionais quanto isso que “existe”,
porém não acredito muito que essa beleza ao nosso redor tenha surgido
aleatoriamente, simplesmente pelo acaso, sabe?
Ela continuou com um certo entusiasmo em suas feições, gostava do que
estava falando, era como se esperava uma abertura. Seus olhos brilhavam.
-Se liga, existe um universo com aproximadamente quatorze bilhões de
anos que possuem exatamente as leis da física que fariam que fosse possível a
nossa existência, na verdade, a existência do próprio universo como ele é.
Além disso, se você começa a observar só a história de todo nosso processo
evolutivo terrestre vê o quão magnífico pode ser considerada toda essa
complexidade que nos formou hoje, desde o átomo, algo tão pequeno a
construção de coisas macroscópicas que funcionam a partir da junção dessa
grande complexidade de rede de ínfimas coisas.
Me animei. Não que concordasse cem por cento com suas opiniões, mas
porque existia paixão em seu olhar, amava sobre o que estava falando, então
perguntei:
-Vívian, mas e religião, por que não?
-Bixo, por mais que eu tenha uma certa crença que isso daqui não foi pelo
simples acaso, não penso que nós, com a nossa racionalidade, consigamos
compreender o que é esse tudo com a completude que ela é de verdade, saca?
Ainda que existam centenas de religiões no mundo, como posso ter a plena
certeza e a ideia de que estou seguindo a correta? A prepotência de achar que
estou certa num assunto tão complexo como esse? No máximo vejo algo
superior com um senso moral totalmente diferente e incompreensível para
nós, o próprio universo em si, não acredito que somos protagonistas nesse
meio, nós só conseguimos duvidar e, tipo, uau! “duvidas” - E soltou uma
risada - Além do mais, se alguma dessas interpretações do que nos criou pela
história estiver correta, como ter a plena certeza? Nosso cérebro é tão incrível,
como confiar nele nesses casos? Então se tiver uma “correta”, não consigo
confirmar ou acreditar. Elas foram criadas com base na cultura de cada povo
que as assimilou, o que me traz mais desconfiança. Não vejo como uma
noção de moral “superior” seja atingida pelo senso crítico humano. Tenho
muita fé em nossos pensamentos e lógica, mas isso, talvez, vá além da lógica.
Então isso me leva a não seguir nenhum dogma específico.
Lembro de como minhas bochechas doíam do sorriso que eu expelia só de
observar seu monólogo. Ela não falava olhando para mim em si, era para o
“nada”, como se as ideias fossem surgindo em sua mente, não tinha nada
daquilo preparado, mas era no que acreditava. Quando parou, me olhou e
perguntou:
-E você, Pedro, acredita em algo?
-Eu vou um pouco pelo seu caminho, mas acabo sendo mais cético. Gosto
do acaso e de suas probabilidades, também entendo a questão das religiões
serem pautadas pela cultura e costume de cada época, mas se eu acredito em
algo ou não… não sei.
-Como assim não sabe? - Existia uma dúvida sincera anexada em seu
rosto.
-Digo, eu tenho uma visão de que pode ou não existir, mas como não
consigo provar nenhum dos dois, aceito a minha ignorância pelo assunto e
sigo minha vida com o simples “não saber”. Sigo com minha moral e desejos
próprios e não culpo nada além de mim pelo futuro que virá, mas também não
me culpo de maneira tóxica, só aceito, aconteceu, aconteceu, ponto. Não
tenho arrependimentos ou menos de algo superior, porque simplesmente não
sei de sua existência. Por mais que goste de estudar teologia pelo simples
prazer.
-Interessante…
-E sobre o acaso, não o subestimo, pois enquanto para a nossa concepção o
universo e seus pedaços são lindos, bem, é nossa interpretação de algo que já
existia antes e “aprendemos” a apreciar esta “beleza”. Confio na noção que a
existência precede a essência. Então, talvez esta “beleza” que vemos são só
interpretações do nosso cérebro sobre a própria existência com nossas
experiências, são só interpretações nossas e o próprio equilíbrio pode só
existir por existir. Sei lá. Confio no acaso ao mesmo tempo que pode não ter
sido ele que fez o universo ser o que é. A dificuldade de compreensão viria de
cada pessoa e não do evento em si, porque ele já ocorre por ocorrer, já têm
seu “destino”, mas quanto mais complexo para nós, mas fascínio pode causar
e mais “Como caralhos o acaso fez isso?” podem surgir. - Ela deu uma risada
- Não tiro nosso mérito quanto a isso, até porque amo esse fascínio e amo
observar a natureza que não conheço como uma beleza desconhecida que
pode ser apreciada. Voltando a questão do ser superior, sendo ele
infinitamente superior a nós, claro que dependendo da crença, acredito como
não temos como entender seus possíveis “comos” e “porquês” devo continuar
na minha simples condição de vida: viver por mim mesmo e não deixar que
algo incompreensível me atrapalhe.
-Talvez deva - Ela respondeu.
-Talvez não - Retruquei.
E rimos juntos igual dois malucos naquela mesa da praça de alimentação
do shopping quase lotado e com alguns curiosos com nossos pequenos berros
em momentos de excitação. Ao fim das risadas, Vivían exclamou:
-Porra, você dá toda uma explicação de uma hipótese mirabolante e
termina com um “talvez não”?
-Eu nunca disse que achava que estava certo, até porque como disse no
começo…
Ela completou como se fosse um cochicho para si mesma:
-Não sei…
Quando observei pelas portas de vidro que separavam a área interna da
externa, vi que estava próximo de anoitecer, então tive uma ideia.
-Vívian!
-Manda.
-Já parou para observar um crepúsculo?
-Não curto muito esse filme…
Ela falou com um ar de piada, também ri e depois de mandar ela tomar no
cu, falei:
-Porra… tá a fim de ir ver?
-Acho que sim. Primeira vez que alguém me chama para algo tão
específico quanto isso.
-Então bora lá no bosque! Dessa vez eu dirijo, até porque está quase na
hora e não estou a fim de pegar atalhos que me levem para longe do lugar.
Mesmo reclamando, ela me jogou a chave que quase deixei cair.
Fui quase correndo para o carro pelo entusiasmo, há tempos não me sentia
daquela forma, porém ela me deu um puxão e disse:
-Esqueceu que tenho que pagar o estacionamento?
Ri e fingi que lembrava sim.
Após o pagamento, fomos para o carro, ela olhou para mim e disse:
-Nossa, nunca te vi tão animado assim, na verdade, a partir do sorriso já
achei estranho.
-Estanho bom ou ruim?
-Ótimo! Seu sorriso é lindo!
Corei, mas disse:
-Vai ser incrível, você vai ver!
Quando chegamos, fui correndo procurar um local mais deserto e que
desse para deitar e observar o pôr do Sol. Peguei em minha bolsa um pano
xadrez vermelho que carregava fazia uns três meses e o organizei no chão.
-Preparado, hein… - Vívian disse.
Ri e joguei minha bolsa como travesseiro naqueles panos.
-Vêm!
Quando deitamos, Vívian usou meu peito como travesseiro. Não esperava
por aquilo, mas não foi desconfortável. Gostei. O que me fez segurar sua mão
com meu braço direito, para não ficar abaixo de seu corpo. Enfim, estávamos
abraçados observando o pôr do Sol…
O que víamos daquela posição poderia ser descrito como uma pintura
impressionista, com as nuvens sendo fisgadas pelos raios solares de uma
estrela que só apareceria noutro dia. Um laranja arroxeado pincelava o céu
num misto de cores que trazia inspiração. Além das nuvens em conjunção
“próximas” da gente, um pouco mais distante era possível ver aquele pedaço
negro do céu que indicaria uma chuva nas próximas horas. Tivemos essa
certeza quando foi possível ver o raio que descarregava por ali, iluminando o
céu por segundos e seu som chegando momentos depois.
Por mais que estivesse ficando escuro e o frio tocasse e o vento frio
tocasse em nossa pele, nossos corpos estavam quentes, muito pela troca de
calor entre eles e pelo abraço que, sem perceber, ia ficando mais forte. Não
conversávamos com palavras, mas alguma comunicação parecia ter se
estabelecido ali.
Por cima de minha camisa, senti sua mão, carinhosamente, subir pelo meu
abdômen, passar pelo meu peito até arrepiar meu pescoço e passar seu dedão
em meu maxilar. Isso me fez virar o corpo de forma lenta até estarmos nos
vendo, olho no olho, mas uma das poucas vezes em que nenhuma de nossas
bocas emitia som. Apenas o olhar e a respiração profunda que arraigava
nossos pulmões. Quando percebi, já estávamos sentados, um defronte ao
outro, com minha mão sentindo seus cachos pela sua nuca e faltando apenas
um movimento, de quem quer que fosse, para que nossas bocas colassem.
Meu coração batia cada vez mais forte, era um sentimento diferente.
Estava tudo revirado dentro do meu corpo, mas era bom…
Antes que eu pudesse perguntar, nossos lábios já haviam se tornado um.
Meus olhos se fecharam e em um curto período de tempo mil pensamentos
passavam em minha cabeça ao mesmo tempo que nenhum. Existia um
descompasso térmico por todo meu corpo enquanto navegava pelo labirinto
que era sua boca. Não estava mais presente ali, me sentia flutuando à deriva
do nada, com uma alegria e excitação no peito enquanto nossas línguas
dançavam uma bela valsa.
Foram alguns segundos que me fizeram sentir vivo por eternidades. Uma
experiência que valia por mil, talvez não por ser um simples beijo, mas por
ser com ela. Seus lábios eram macios e me levavam para o melhor caminho
que podia. Forte, denso, com os corpos grudados, até que paramos.
Soltos, olhamos para o rosto um do outro e só rimos. Aquela risada
simples, calma, de tranquilidade. Deu certo, era aquilo que queríamos e o fim
da noite foi carregado por um silêncio, mas algo confortável, com sorriso nos
lábios e tranquilo.
Pelo horário, Vívian me levou para casa em seu carro, a despedida foi
mais um selinho, talvez fosse algo a mais, porém naquele momento eu não
estava pronto e de alguma forma ela sabia e me respeitou.
Em casa não fumei, só tirei minha roupa, tomei meu banho, comi qualquer
coisa que tinha ali, escovei os dentes e fui deitar. Estava sorrindo, largado em
minha cama, parecendo um garoto bobo de quinze anos. Paula talvez
estivesse certa, mas ia demorar para que eu admitisse.
Antes de dormir decidi que arrumaria meu quarto no próximo dia.
Capítulo 9
Quando acordado, percebi a diferença do prazer de ter o quarto bem
arrumado. Era uma conquista que não lembrava o sentimento de conseguir
facilmente. Fazer algo que melhorasse minha situação de vida, algo simples
como limpar o quarto trazia um prazer daquele ou saber que eu consegui fazer
sem uma obrigação maior acima de mim? De certa forma foi bom, um ato
simples que me deixou satisfeito após o término.
Achei interessante a verdadeira cor da parede do meu quarto, só que a
sujeira a longo prazo deixava uma textura diferente, também era diferente.
Não sabia se conseguiria algum dia tirar aqueles resquícios, mas quanto mais
tempo um problema permanece num lugar, maior o tempo para tirá-lo. É
como se ali fosse sua casa… Bem, era a minha, mas não me importava em
dividir…
Era um sábado, então estava “sem trabalho”. Para um professor isso era
quase impossível, pois as obrigações vão além de ensinar um conteúdo na
sala de aula, mas naquele dia resolvi me dar um descanso.
Após o beijo, minha relação com Vívian continuou a mesma, foi como um
passo natural em nossa construção de relação, estranho, mas não reclamei,
apenas segui o conselho de Angel: “Deixa rolar”. Evitamos sempre
transparecer aquilo para nossos “colegas de trabalho”. Já não era confortável
sem uma relação, mesmo que rolassem fofocas em torno disso, assumir só
traria uma atenção que ambos não estávamos afim.
Resolvi sair para beber com Angel novamente, tirar a noite pra mim, pra
gente. Bater um papo com a pessoa certa no momento certo é sempre bom,
talvez não mantivéssemos contato diariamente ou para outros tipos de rolê,
mas cada amizade tem seu valor e sua essência entre dois seres e não há
nenhum problema nisso, pelo menos não para mim.
Liguei para ele e estava livre como previsto, ainda tirou onda com minha
cara falando para não beber tanto como da última vez, mas estava mais
preparado agora, era como se estivesse disposto a fazer várias coisas do nada.
Fui fazer meu café da manhã, percebi que devia ter feito o café na noite
anterior, mas cozinhar não é um problema tão grande, quando se está na vibe
para tal e quem sabe com uma musiquinha de fundo. Sempre gostei de fazer
as coisas que não precisavam de atenção absoluta ou que necessitavam de
mais relaxamento com algum som, “Gato Negro” era ótimo quando queria,
“Pura Maçã” deles mexia com minha cabeça… “Glimpse of Us” do Joji
também me auxiliava nos dias mais calmos. Coloquei a música e fritaria uns
dois ovos para comer com pão após a preparação do café, então deixei o café
no fogão e fui para a sala.
Enquanto passava pela porta vi, na mesa de jantar, alguma coisa de relance
com o tamanho similar a uma barata e tinha se movido pelos copos que
estavam na mesa da mesma forma que uma barata. Decidi observar mais de
perto e com certa parcimônia, analisar uma situação que não deveria
acontecer. Sim… Era uma barata. Apontei para ela e gritei:
-No meu quarto talvez, agora na minha cozinha não, fela da puta!
A reação foi mais explosiva e impulsiva do que eu estava acostumado
diariamente, não teria energia para gritar com uma barata no fim de semana.
Não tinha veneno, então a primeira solução que veio na minha mente foi
procurar a minha sandália que, não, não estava no meu pé. Tinha limpado
mais que meu quarto, então tenho um desconto por isso…
Fui procurar o chinelo no silêncio que meus dedos podiam fazer na
cerâmica, mas enquanto a procurava, estava de olho na barata, pois poderia
entrar em qualquer buraco sem que eu percebesse. Quando saiu do meu
campo de visão, corri, corri para achar a sandália que não tinha a menor ideia
de onde deixara, porém tinha que ser o mais rápido que pudesse, para evitar o
sumiço daquele ser.
Peguei e quando voltei, a passos largos e silenciosos, vi que ela não estava
mais lá. Fiquei um pouco nervoso, não pela barata em si, mas tinha que matá-
la para completar um desafio meio maluco que coloquei na minha cabeça.
Claro, também porque era uma barata na minha cozinha, não poderia
esquecer deste fato…
Observava cada ponto da cozinha, tal qual um investigador ou um escritor
quando descreve os ambientes. Ela não estava em nenhum lugar visível, então
decidi procurar por cada mínimo buraco que pudesse.
Não estava atrás nem embaixo da geladeira. Nem do fogão e nem da pia.
Comecei a ficar confuso com seu sumiço, confusão tanta que não me deixou
pensar que a barata poderia ter saído do cômodo ou ter ido embora pela
cozinha. Mesmo fechada, a porta deixava uma brecha por baixo. Porém,
como um verdadeiro mágico, quando olhei novamente para cima da mesa, lá
estava ela, como se tivesse um deboche para comigo, pois estava virada para
mim e em minha mente só passava “Ela tá querendo tirar onda comigo…”.
Quando cruzamos nossos “olhares”, ela estava posicionada entre mim e o
fogão que esquentava o café e como se meus pensamentos estivessem
corretos, aquele bicho voador arqueou vôo em minha direção, fazendo com
que minha única reação fosse atirar o chinelo contra ela da forma mais rápida
possível. O zunido da barata voando em minha direção e o chinelo girando
enquanto ia de encontro com ela no ar só falhou por um pequeno detalhe. Ela
resolveu voar para fora de minha casa e minha pontaria decidiu que o chinelo
fosse cair direto no fogão, mais especificamente, na água com café fervendo.
Quando colidiu, o que mais assustou foi o barulho do metal batendo no
fogão, enquanto seu líquido a temperaturas altíssimas era jorrado para todo o
lado, com foco principal nas paredes e na mesa, que estavam mais perto. Por
puro reflexo, me defendi com o braço direito arqueado na frente de meu rosto,
o que deu certo, pois o que poderia ser em minha cara, foram três ínfimas
gotas de água fervente pingando nas costas de minha mão. Foi quando recolhi
o braço pelo intenso choque térmico. Aí que percebi que tinha acabado de
quebrar minha única fonte de café, o que deve ter sido a notícia mais triste do
dia.
Estava tudo melado na cozinha, com manchas pretas de café, o açúcar que
seria um bom atrativo para as formigas próximas. Minha mão tinha algumas
queimaduras e minha cafeteira estava quebrada. Se não fosse tão
problemático, talvez não limpasse, mas aquele estado da cozinha não era nada
confortável, o que me trouxe pensamentos do porquê não gostava nem um
pouco das minhas ações impulsivas e trabalhei tanto em minha vida para
guardá-las, mas se faz parte da essência, esconder esse agir não funciona, as
vezes deixamos escapar…
Só lavei minha mão e coloquei um pano de prato amarrado, não era o mais
correto a se fazer, talvez comprasse algum curativo qualquer dia, mas tinha
que ser antes de Paula ver aquela situação.
Enquanto limpava, pensava na cafeteira que teria que comprar. Lembro
do estresse que percorria minha pele quando pensei “Foda-se, vou comprar
uma que faça café sozinha, muito mais fácil”. Só que ia ter que juntar um
dinheirinho para aquilo.

Pela noite, quando chegou a hora marcada com Angel, fui para o Pub.
Andava sob o crepúsculo, era um momento bom para caminhar naquelas
praças, principalmente enquanto tocava “I won’t drive your dreams” em meus
fones, da banda Casa da Mata.
Não tive tempo nem vontade de dormir no gramado como da última vez,
mesmo com o ocorrido pelo dia, estava bem, até arrumado. Trajava um tênis
all-star, calça jeans preta e uma camisa do Iron Maiden que tinha ganho de
um amigo. O principal toque era o pano de florzinha amarrado em minha
mão.
Quando cheguei estranhei que Angel não estava lá. O ambiente era
pequeno, dava para notar à primeira vista. Ele não costumava se atrasar, mas
inconvenientes ocorrem com todos. Como cheguei bem cedo para o horário
de funcionamento do Pub, tinham vários lugares livres, então decidi sentar
onde estávamos da última vez e “marcar” seu lugar. Fiquei sentado, pensando
e decidi pedir um chop, pois estava meio quente, mesmo anoitecendo.
Enquanto bebia, sentia um pouco da queimadura e fiz algo que me era de
costume fazer, talvez um pouco estranho, mas gostava. Observar algo muito
simples, mas que pode ter histórias muito complexas como a existência de
qualquer átomo no universo.
Apenas olhei para as minhas mãos, uma calejada, com alguns calos, seja
de treino, seja de escrita ou algumas viagens com instrumentos musicais, a
direita seguia o mesmo aspecto, porém com o pano de prato envolvido.
Comecei a movê-las, porém com a curiosidade de uma criança, tentando
entender como conseguia fazer aquilo sem nem pensar em fazer, só fazia e
ponto.
Estava eu, com um copo de chop na mesa, olhando para minhas mãos e
mexendo os dedos lentamente entre eles, sentindo cada toque entre os outros
e tentando entender o que era aquilo e como, tal qual o pensamento o quão
racional era aquilo? e o quão fácil era perder o controle daquilo, do
movimento, do sentir, só por algum distúrbio ou às vezes um dia ruim.
Tentando entender como fazia aquilo, mas às vezes acordava sem conseguir
nem abrir os olhos direitos e o maior desafio era mover meu corpo na própria
cama, querendo levantar, mas algo muito mais forte me puxando para a cama,
pesando meus olhos, segurando cada músculo do meu corpo, não para um
sono bom, mas algo desconfortável, sonhos confusos e tremedeira no corpo.
O quão temos controle de nós mesmos? Como eu sei que tenho esse
“controle”? Ainda não sei nem o que sou eu como um todo para tentar chegar
nessas respostas, mas quem sabe um dia. Pensar sobre isso era bom, me
colocava em outra realidade, me fazia passar o tempo transformando algo
simples numa complexidade imensa, tal qual Sócrates quando enchia o saco
dos atenienses fazendo perguntas óbvias e vendo sua raiva por perceberem
que não tem realmente conhecimento profundo sobre o que dizem. Faço isso
comigo mesmo e percebo que fazer isso com outras pessoas as deixam
realmente estressadas.
Foquei em minha mão queimada: “Como sei que essa dor é ruim? digo,
compreendo que tê-la não é uma das melhores coisas, sei que sinto, mas o que
é esse sentir? Só impulsos elétricos? Como algo tão abstrato quanto um sentir
pode ser tão concreto como algo materializado?. Ainda preciso entender
como a lógica é lógica e o quanto isso está ligado ao que não é lógico, o
quanto temos controle de nós mesmos e o quanto isso é realmente benéfico,
mas como já mencionado, preciso saber primeiro quem sou ”eu” para saber o
que me constrói. Ou será que não?”
Antes de continuar me questionando, Angel resolveu aparecer e veio em
meu sentido, logo quando entrou no ambiente. Quando o vi, analisei de cima
a baixo como qualquer pessoa que via. A marca em seu pescoço estava bem
nítida, então pude entender seu atraso, porém, deixando esse detalhe de lado,
não preciso colocar um juízo de valor sobre algo que não me concerne, ele
estava “bem-vestido” como de costume. Coloco estas aspas, pois não vejo um
tipo de vestimenta acima de outras, mas referencio a como a sociedade
observa. Trajava um terno, além da diversão teve algo importante hoje ou vai
ter, caso a resposta esteja na segunda opção, uma maquiagem o ajudaria.
Pensei: “Quem caralhos vem de terno para um Pub? Ok, que se eu tivesse
dinheiro para tal vestimenta, usaria e abusaria… Acho que já respondi minha
pergunta: eu mesmo”.
Enquanto ele chegava perto, observei com mais enfoque seu pescoço e
citei:
-Agora entendi o porquê da demora.
Coloquei aquele sorriso malicioso em meu rosto. Ele sentou e ironizou:
-Pow, melhor alguém no meu pescoço do que o que você deve ter feito
com essa sua mão.
Isso com o mesmo sorriso malicioso que eu.
-Quem sabe você não deixa a outra mão assim?
O clima estava tranquilo e consistia em algo leve, como se dois
adolescentes tivessem se encontrado para beber.
-Dessa vez eu passo. Mas, mudando um pouco de assunto, você tá melhor
que o comum, pelo menos que semana passada, acho que veio pra trazer boas
notícias.
Mesmo que eu não estivesse saltitante e com um sorriso de ponta a ponta
no rosto, dava para perceber uma diferença de postura, ação e até na fala.
Estranho ele perceber tão rápido, mas cada um tem seu olhar para com os
outros. Talvez não fosse só eu quem ficasse analisando o comportamento dos
outros. Talvez não, certeza!
Antes que pudéssemos entrar no assunto de costume: Vívian. Um estalo
veio em minha mente e precisava fazer aquela pergunta antes que se perdesse
em minha mente.
-Angel, se eu desse a mesma importância para um robô ou clone seu da
mesma forma que dou pra ti, o que você sentiria? Tendo em vista que ele é
idêntico a você e não cito só aparência, mas tem tudo, jeito, lembrança,
“experiências”, etc…
Meio confuso, mas já esperando isso de mim, Angel respondeu:
-Acho que ficaria meio magoado, não sei… Você me pegou desprevenido.
-Por quê?
-Sei lá, mano. Porque você trataria ele igual me trata se sabe que ele é um
robô ou algo do tipo?
-Mas porque eu machucaria ele, tendo em vista que tem “sentimentos”
como você? Não é como se eu fosse tratar o seu eu original diferente, mas
trataria ele como trato você. Inclusive, o que te faz não ser uma simples
máquina como essa, você ficaria mal se eu brisasse nisso e começasse a te
tratar mal, né?
-Mas eu não sou um robô…
-Que porra de robô iria dizer que é um?
-Acho que tu já tá bebendo demais.
-Não culpe a bebida, você me conhece! Mas, sério, pensa comigo. O que
não nos faz uma máquina?
-Sei lá, nossas limitações em relação ao mundo? Nossa organização
biológica? Sermos de carne e osso e não de metal?
-Vou melhorar a pergunta: O que nos faz pensar que não somos
programados para aprender algo desde o início da nossa vida e simplesmente
viver? Não que sejamos controlados, mas porque nossa própria mente não
pode ser interpretada como um código que vai se desenvolvendo com nossas
experiências e vida? Pow, é tudo eletricidade!
-Você me ensinou que só de eu duvidar da minha existência era a prova
dela!
-Nunca duvidei da própria existência, mas a pira é o quanto ela está
intimamente ligada às tecnologias que estamos tentando criar.
-Acho que tô começando a entender, mas não sei onde quer chegar.
Talvez fosse resultado da bebida, mas quando entrava nesse tipo de
pensamento, me animava e falava um pouco mais alto e com animação. Para
um lugar pequeno, acabava chamando atenção de algumas pessoas, mas
acontece.
-É que às vezes não sei como funcionamos, mesmo que tentemos fazer
algo como uma inteligência artificial que aprende através de códigos, porque
isso não pode ser semelhante ao funcionamento humano, o próprio pensar e o
agir em conjunto de todos os corpos vivos que formam um só. Todos eles tem
um “algo” para fazer e quem tá passando essa mensagem é só um pequeno
pedaço do meu cérebro que me deu essa liberdade de ser o que sou e fazer o
que faço, enquanto um grande conjunto de “engrenagens” estão sempre
funcionando para me manter vivo.
-Certeza que tá no primeiro chopp?
Ri, mas parei a brisa quando um evento totalmente aleatório surgia e fui
alertado por Angel:
-Ei, aquele ali não é seu chefe?
Olhando para a entrada, via e era realmente ele, porém de um jeito
diferente do usual. Não estava bem-vestido e não parecia nem estar dentro de
si. Vestia um short cinza que ia até o joelho, estava descalço, molhado e pelo
odor que subia, parecia urina. Sem camisa, exibe seu corpo peludo e uma
grande barriga de chopp em contraste com seus braços finos. Seus olhos não
miravam em nenhum lugar específico, estava com o rosto todo sujo também,
parecia ter vomitado recentemente. Cabelo bagunçado também.
Tentava entrar, porém o segurança tentava evitar, o que causou
manifestação do próprio Beto, que berrava para entrar, falava que não sabiam
quem ele era e ia meter processo ali a todo custo. Falava isso sem conseguir
se manter em pé, apenas palavras ao vento, enquanto o segurança tentava tirá-
lo da forma mais pacífica possível. Qualquer toque ele cairia e seria meio
feio.
Depois de reclamar mais um pouco, resolveu deixar o local em paz e,
talvez, procurar outro lugar para perturbar. Falei para Angel:
-Sim, era ele sim…
-Que situação… sabia que não era flor que se cheire, mas não nesse nível.
Imagina a situação da família dele em casa quando ele chegar.
-Isso se chegar…
“Será se conto isso para a Vívian? Ela vai acabar ficando bem curiosa
sobre o assunto, não quero meter ela em problema, por mais que goste de sua
curiosidade, mas algumas coisas podem ficar guardadas, acho…”
Quando o chopp de Angel chegou, resolvemos continuar a conversa, ainda
meio confusos com o que tinha ocorrido.
-Então, o que me traz aqui nesta noite?
-Eu “deixei rolar” e algumas coisas aconteceram…
-E aí? Conta logo, desembucha!
Ele parecia mais animado que eu com o assunto.
-Nos aproximamos, nos beijamos e agora estamos mais próximos.
Mesmo excitado com a situação, Angel fez cara de decepção com minha
resposta e disse:
-Não esperava mais descrição vindo de você…
Parou, pensou um pouco e continuou.
-Mas nem fodendo é isso que me traz aqui. Vamo, fala.
-Sendo sincero, Angel, não faço a menor ideia do que tá rolando, nunca
senti isso na minha vida. É muito novo para mim, não sei como tratar e talvez,
só talvez, eu tenha medo do resultado. Não achava que sentiria algo novo
depois de tão velho, mas minha capacidade de fazer merda quando se trata de
outras pessoas é absurda.
Surpreso com meu desabafo, Angel continuou o assunto com mais
serenidade que eu esperava:
-Medo de quê, Pedro? Não era você quem dizia que temos que declinar na
vida para entender como ela realmente funciona? Sentir a dor do outro, sentir
a dor de si mesmo, para ter mais empatia com os outros e consigo mesmo?
Que mesmo que algo ruim aconteça, existe algum pontinho positivo que você
pode guardar, principalmente de pessoas, elas não passam sem deixar marcas.
Pode ser a pessoa que você mais odeia, ela pode te trazer um ensinamento ou
pensamento que você nunca se tocou. Foi isso que tu me ensinou…
-Foda que eu nunca declinei, por mais tranquila minha vida foi, sempre
estive lá no fundo. Por mais que descesse cada vez mais enquanto os anos
passavam, só aprendi a conviver lá embaixo. Ser jogado no cume para cair do
nada lá embaixo parece perigoso.
-Você não vai ser jogado lá novamente, Pedro, confia em mim.
-Esse argumento é bem irracional para alguém racional como você.
-Eu sei, mas não consigo prever o futuro, mas se eu tiver que apostar em
algo, vai ser em algo que você não se foda, porém, se der merda, você sabe
onde me encontrar e quando. Não vai precisar, acredito…
Segundos de silêncio se passaram e Angel apontou para minha mão com o
pano de prato.
-O que rolou? Conheceu a mina agora e não para de pensar nela? - E
começou a rir como um adolescente fazendo uma piada tosca. Gostava
daquilo nele, a essência que se mantinha, fazia ele ser ele.
Tentando manter a ironia, mas com um pequeno sorriso no rosto, disse:
-Haha, muito engraçado. Já pensou em fazer humor? Eu gosto, sabia?
Quase que meu maxilar se deslocou de tanto rir. taquipariu…
Quando ele parou com suas gargalhadas, estava à beira de chorar de rir,
continuei.
-Foi uma queimadura.
-Com atrito?
Ele não parava de mandar aquelas piadas idiotas, mas que me faziam rir
também e ele chorava e se esperneava com cada palavra. Mas, ainda rindo,
disse:
-Sério, sério, pode contar agora - E limpava seu rosto das lágrimas que
desciam.
-Minha cafeteira explodiu. Por sorte, só algumas gotas caíram na minha
mão.
-Caralho, como?
-Fui matar uma barata com um chinelo?
Agora rindo mais do que antes, Angel falou:
-Pow, me ajuda a te ajudar, puta que pariu!
O resto da noite foi resumida em conversas idiotas, lembranças do
passado, falar dos outros e algumas conversas sérias de vez em quando. Foi
uma boa noite, só de papo e bebida. Não capotei como antes, como dito, tinha
tomado minhas precauções.

Antes de dormir, percebi um certo cansaço e um conforto a mais na cama.


Não sabia se era resultado de ter saído naquele dia, a recompensa de ter
limpado o quarto ou alguma outra coisa, só estava num ambiente confortável
para dormir e ponto. Comecei a olhar para o teto e pensar, antes que apagasse
de vez.
A situação em que eu estava parecia ser muito boa, se eu levasse em conta
alguns filmes, obras de filosofia ou algumas outras representações. Estar
amando era algo bom, claro quando correspondido, provável que era só a
parte da paixão por enquanto. Até Nietzsche que não tinha uma filosofia
muito amigável para casório ou com mulheres, se apaixonou por Lou Salomé
e a pediu em casamento. Porém, o sentimento bom se embolou com um mal
pressentimento e coisas tão boas como aquelas ocorrendo… Eu devia ficar
com um pé atrás, foi o que fiz.
Capítulo 10
Meu relacionamento com Vívian permanecia em constante melhora, como
uma amizade crescente, nos encontrávamos quando dava, conversávamos
sobre o que desse na telha e as vezes saímos para descansar e ela sempre era
minha carona para casa. Tinha uma moto guardada a muito tempo, de quando
gostava de adrenalina no sangue, prometi que a levaria para passear algum
dia, só não sabia quando, mas tinha marcado.
Uma rotina foi se formando em torno disso e me deixava confortável,
digo, meu sentimento diário não era mais de puro estresse como costumava
ser, às vezes sorria mais que o comum e minha aparência de cansado tendia a
melhorar cada dia mais.
Em alguns momentos éramos pegos por Paula em sua sala, que nos tirava
de lá nos “xingando” de “adolescentezinhos”. Mas era um relacionamento em
seu início, que começava a aflorar, o que esperar de diferente disso? Quando
juntamos um dinheiro, costumávamos ir comer em algum restaurante
aleatório ou só sair para beber, coisa simples.
Sobre o diretor, nossa tensão diária continuava rolando como de costume,
porém, menos estressado, minhas chances de cometer deslizes diminuíram.
Vívian sempre estava desconfiando dele, sempre com uma pulga atrás da
orelha, não comentei o que vi no Pub, tinha impressão que aquele instigo iria
trazer mais problemas que soluções e estava tão bem naquela zona de
conforto… Um pouco egocêntrico de minha parte, mas nunca mencionei que
não era. Por sorte, ou pela bebida, Beto parecia não ter ideia que eu o havia
visto naquela situação, pelo menos não demonstrou nenhum comportamento
diferente. Não decidi ir atrás também.

Saindo de assuntos ruins, lembro-me de um dia que fomos para um lugar


juntos, eu e Vívian, para comer numa lanchonete qualquer, tomar um café de
fim de tarde para ser mais específico. Ficamos nas mesas à frente da
lanchonete, eram de madeira, dava um tom clássico para aquele lugar. Era um
ambiente pequeno e confortável, como a maior parte dos que eu costumava
frequentar. Sempre que nos encontrávamos fora, chamávamos nem que fosse
o mínimo de atenção, pois conversávamos alto, dávamos risadas iguais
hienas. Era uma brisa confortável e boa de se encontrar. Eu com minha falta
de energia e ela com o copo transbordando. Uma pura representação de ying
yang. Gostava de escutá-la, principalmente suas histórias.
Enquanto eu colocava um pouco de açúcar em meu café e mexia com a
colher, gostava de observar o quanto ela reclamava da “atrocidade” que era eu
colocar açúcar no café, como se fosse a pior coisa do mundo. Gesticulava,
falava alto e criava vários argumentos do porquê aquilo estava completamente
errado. Era interessante como ela mudava de assunto do nada, então,
enquanto mexia a colher na xícara, fiquei observando com bastante atenção
suas problematizações se tornarem uma história de infância.
-Não, eu era muito estudiosa, sabe? Quando estudava no oitavo ano, teve
um dia que já tava animada pra ir para a escola. Até aí tudo bem.
Era perfeito perceber o quanto de ironia colocava no soar de sua voz, com
suas gesticulações e olhares.
-E eu morava longe da escola e tinha que ir de pé pra completar! Mas eu
ia, ah se eu ia, de pé, bonitinha, com tudo que tinha direito: Bolsa cheia de
livros, pedras que entravam no meu sapato e uns moleque falando bosta
durante o caminho, só diversão!
Chegando na escola, já “p” da vida, percebi uma coisa bem interessante.
Com expressão de sorriso no rosto, murmurei para ela continuar:
-Uhn?
-Uma menina - Gesticulava e já aumentava a voz - que eu já não gostava
nem um pouco estava sentada no meu lugar, cê acredita?
Demonstrando surpresa com a grande atrocidade, disse:
-Não acredito!
-Pois acredite! Ela estava lá de birra, também não gostava de mim. E sabe
o que eu fiz?
-O que?
-Mandei ela sair da cadeira!
-E ai?
-Ela não saiu!
-E o que tu fez?
-Resolvi voltar para casa, não estava afim de ver a aula mesmo…
Comecei a rir mais ainda imaginando a cena, um sorriso que machucava
minhas bochechas enquanto eu a admirava. Ela completou:
-Cheguei em casa, meu pai brigou comigo e me fez voltar para a escola.
Voltei, mas fiquei sentada abaixo de uma árvore esperando a aula acabar para
poder voltar novamente pra casa. E tu, não vai terminar de misturar esse
açúcar no café?
Assim, ela deu um gole no seu, reclamou que tinha esfriado um pouco,
enquanto eu ria e só admirava. Percebi que estava a muito tempo misturando
mesmo, então tomei meu primeiro gole.
Não esperava pular daquela pessoa fria que não queria o mínimo contato
com alguém para um bobo apaixonado e sorridente.
O que me atraia muito nela, também era sua curiosidade que nos levava a
assuntos gigantes e que não tinha sentido, só algumas das vezes. Quase
sempre não chegamos a um consenso, mas o debate, a conversa que durava
horas e horas, era gostoso, discordar e conversar com a paixão de sobre o que
estávamos conversando era prazeroso.

Um tempinho depois, estávamos andando pelo bosque e conversando e


Vívian puxou uma curiosidade que até me fazia duvidar, olhe que era sobre
mim mesmo.
-Pedro, por que tu xinga tanto? Tipo, fala tantas palavras chulas?
-Caralho, esse último termo faz um tempo que não ouço, hein!
Um sorriso floresceu em seu rosto, com principal foco na minha ênfase no
“Caralho”. Continuei:
-Mas, respondendo sua pergunta, acredito que escape do estresse. Também
não dou muita importância para eles, são só palavras, sabe? que por algum
motivo, culturalmente, pelo nosso crescimento esses “palavrões” foram se
enraizando como algo ruim só por serem palavras proibidas e causam um
certo impacto mais forte só pela sua proibição… Não proibição no momento
atual, mas o que aprendemos desde criança, desde quando víamos nossos pais
estressados e chamavam nossa atenção quando repetimos. Vejo que esses
“palavrões” são mais complexos quando servem para humilhar alguém de
verdade, aí tem um certo peso, mas quem disse que xingar alguém deve ser
leve?
Falava olhando para o horizonte, tentando pensar a profundo em cada
palavra que ia citar, percebia que ela tinha seus olhos vidrados em mim, mas
evitava o contato para evitar a vermelhidão em meu rosto e perder a
concentração no que estava focado. Ela sempre brincava comigo quando
corava, o que me fez ter essa estratégia de olhar para o infinito, mesmo que
amasse olhar para seus olhos.
-É muito tabu esse uso como interjeições ou advérbios de intensidade
quaisquer e nem faz sentido, sabe? Existem muitas palavras que podem ter o
mesmo sentido que elas em determinados contextos, mas devido a uma série
de acontecimentos no passado, pegamos essa aversão a palavras que, às
vezes, nem tem um sentido aparente. Na verdade, o que é mais censurado são
palavras que levam ao cunho sexual e excrementos, se for analisar cada
palavra que são tidas como palavrões, também de cunho religioso, mas vê só:
“Porra, caralho, filho da puta”, bixo, tudo isso é “feio” e tem algo sexual
ligado a ele que nos foi enraizado desde nosso crescimento como uma palavra
de escape e ruim, que deve ser reprimida e contida.
“Esses palavrões sempre vão mudando e nossa aversão, salvo engano, vem
de uma parte primitiva do nosso cérebro, o sistema límbico, que cuida das
emoções, então elas acabam por possuir um significado mais profundo
mesmo. Isso traz a força que um “palavrão” tem em torno de uma “palavra
comum”. Isso depende muito de como somos educados e como crescemos, se
soubermos “usá-los” para fins “tranquilos” como pura intensidade em algo ou
até relaxar num momento de estresse, qual é o verdadeiro problema?
“E ainda tem coisas muito curiosas e até engraçadas, mas acredito que isso
é só nosso, brasileiros, ou talvez não, mas em que outros lugares tem tantas
variações da palavra “pênis” que, além de serem sinônimos, conseguem
indicar mil e uma coisas diferentes? como: “Esse cabelo tá pika, moleque”.
Caralho, olha como isso funciona - Falei rindo, olhando para o ar - Os meios
de comunicação são coisas incríveis dos seres, né?
Talvez consegui desviar um pouco do assunto, mas o que fez ela rir e
falar:
-Como você consegue sair de uma explicação sobre seu estresse,
psicologia, língua portuguesa e chegar nas variações da palavra “pênis”? -
Falou imitando aquelas aspas que eu costumava fazer.
Respondi:
-Nem eu sei.
E rimos.

Passando um tempo do calendário escolar e se encaminhando para o fim


do segundo bimestre nós, professores, tínhamos um incrível dia, que eu não
era muito chegado, como qualquer ação que envolva relação com outras
pessoas, a não ser com Vívian, de falar diretamente com os pais sobre os
alunos. Não é um tipo de descaso com a prática, inclusive acho importante
essa conversa, mas minha memória é tão horrível que lembrar de todos os
alunos das minhas classes era uma tarefa quase impossível, principalmente
daqueles que não falavam nada, não bagunçaram ou se destacaram de alguma
forma, apenas existiam. Nesses casos a bela estratégia de “É quieto, conversa
as vezes, mas é inteligente” quase sempre dá um resultado bom. Não me
indagavam muito sobre, eu nem era o professor mais procurado, iam muito
atrás daqueles os quais as notas dos alunos estavam baixas. Como não via
como um número poderia definir a qualidade filosófica de meus alunos, isso
nunca foi um problema para mim, nem para eles, nem para a nossa relação,
mas sabia e observava quem estava disposto a trabalhar filosoficamente e
quem não, mas gostava do brilho quando instigava eles a este caminho.
Quando tinha a obrigação de fazer provas escritas, não é que as fazia fácil,
mas não querendo me gabar, eu dava uma boa aula. Estranho eram aqueles
que se gabavam por deixar um monte de aluno de recuperação ou nota baixa,
isso não entra nem fodendo na minha cabeça.
Antes da reunião, Vívian e Paula estavam conversando comigo na cantina.
Enquanto Paula me dava o mesmo esporro que em todo bimestre, por não
lembrar dos nomes dos alunos, Vívian ria de mim e se gabava que se
lembrava do nome de cada um, mesmo pelo pouco tempo que passou ali.
-Pedro, não é possível! Já vai fazer quatro anos que tu pegou sua primeira
turma aqui e são quase os mesmos alunos desde então! Eles não saíram da
escola e você não consegue distinguir nem seus nomes direito?
Enquanto Vívian ria, fazia o sinal de quatro com a mão, colocou na altura
do rosto e ficou olhando para mim, com aquele sorriso de deboche.
-Quatro anos, Pedro? Toma vergonha! Tô a dois meses aqui e já sei o
nome de oitenta por cento das minhas turmas!
Em minha defesa, resmunguei da melhor forma possível:
-Todos mudam, eu não sou o mesmo que era pela manhã!
Rindo, como se pudesse aumentar a gargalhada, Vívian falou:
-Não venha com essa não, Heráclito!
Paula complementou:
-Não entendo essas coisas de filósofos não, mas tu quer que eu te chame
de que agora? Jorge? Antônio?
Um pouco mais calma, Paula conversou olhando direto em meus olhos.
-Pedro, isso não é tão normal não, devia lembrar de pelo menos alguns
alunos nesses quatro anos.
-Alguns, nome ainda é algo complicado pra mim, mas não é como se eu
ficasse chamando eles pelos nomes, até porque esquecia. Mas aqueles que se
aproximam e mantém um papo bom, lembro deles. Poxa, um aluno meu de
muitos anos atrás, sou colega dele até hoje, Angel.
Antes de completar os pensamentos, olhei para o celular e vi que já estava
na hora da reunião. Vívian me acompanhou, enquanto Paula ia por um
caminho diferente.
Fiquei a postos numa cadeira que me deram com meu nome e disciplina.
Às vezes alguns pais passavam próximo, me cumprimentavam ou chegavam
até a conversar. Interessante foi ver um velho amigo da universidade
passando por lá, batemos um bom papo, pois, como mencionado, filosofia
não era a matéria que mais frustrava os pais, então tinha um certo tempo livre.
Quando chegavam, seguia o protocolo de costume, mas quando olhava
para o lado, em direção a Vívian, era interessante como interagia, até com
pais que não iam diretamente a ela. Muito educada, extrovertida e sempre
esboçando um largo sorriso. Tinha o dom da comunicação, era interessante…
Mesmo com muitos parentes ao redor, já percebi que poderia ir para casa.
Os professores que traziam mais interesse para eles estavam ligados a exatas,
então na primeira oportunidade perguntei se Vívian estava livre para ir, ou
seja, fui atrás de minha carona ambulante.
Quando me dirigi a ela, o céu formava um turbilhão de nuvens cinza
escuro. O tempo estava fechando, provável que fosse começar a chover e a
temperatura estava o suficiente agradável para vestir um bom terno sem se
incomodar.
Sem esperar o término do meu auto convite, Vívian já aceitou de
prontidão, acreditava que era por já estar acostumada com eu ser seu
passageiro predileto, mas tinha um brilho diferente naquele olhar. Costumava
não levar para outra realidade, por mais que meus pensamentos sempre
estivessem flutuando por todas as alternativas possíveis. Mas tinha algo
diferente e eu não estava errado… Era gostoso sentir seus olhares sobre mim.
Não sabia mais confundir o que era lógica ou paixão, e isso sempre me
deixava confuso.
Já no carro, estava tocando “Coração Selvagem” de Belchior.
Costumávamos observar o crepúsculo sempre antes de partir, mas isso não
seria possível pela grande quantidade de água que jorrava do céu. O inverno
tinha chegado e não demorou tanto quanto em Game of Thrones.
Era minha estação preferida, aquele cheiro do ar nublado me inspirava por
algum motivo. As gotas de chuva me ajudaram a ler e estudar. O frio me
aconchegou com as roupas mais diversificadas de meu armário ou o lençol
que serve mais para esquentar e trazer conforto do que criar uma camada de
suor desconfortável no dia seguinte.
Enquanto pensava no prazer que o ambiente me trazia, hipnotizado pelas
gotas que escorriam pela janela, tínhamos chegados, mas não em minha casa.
Fiquei confuso se, por ter ficado tão calado no caminho ela esquecera que me
levava de passageiro, mas antes que pudesse dar um piu, falou:
-Tá frio, a chuva não vai acabar tão cedo. Por que não passa a noite aqui
em casa?
A princípio não esperava por aquilo, estava tão aéreo que passei um tempo
para responder, mesmo que um baixo e pensativo:
-Acho que sim…
Não estava desconfortável, porém aquilo não passou pela minha cabeça,
por mais que tivesse imaginado mais futuros que o doutor estranho quando
lhe encarava. Só estava um pouco confuso, mas é normal.
Dentro de sua casa, já percebia a diferença que era algo realmente
arrumado do que eu tentava fazer na minha. Era uma casa simples. A entrada
dava direto para a sala, com um sofá bege em formato de “L” em seu centro,
uma televisão num painel na parede, a cozinha e o banheiro seguiam num
corredor atrás da tv enquanto seu quarto estava disposto atrás do sofá, no lado
contrário da tv. No centro da sala, no chão, havia um colchão de casal. Não
sabia se ali era seu lugar natural, posto às vezes ou em ocasiões especiais.
-Não liga muito pro colchão. Ponho ele ali quando quero descansar vendo
série. Quase toda hora, na verdade, tô pensando em nem tirar mais na verdade
- E riu.
Era a segunda opção.
-Se joga aí no colchão que eu já venho. Vou trocar de roupa, essa daqui tá
me matando. Pegar algo mais confortável e o lençol.
“O lençol no singular… Poxa, para ser lerdo!” Enquanto pensava, senti um
porre fofo em minha nuca, era exatamente o único lençol para ambos. Era
muito confortável, nunca tinha sentido algo com aquele tecido.
Só tinha tirado meu sapato e meia, não sabia o quão a vontade poderia
ficar ali, ainda estava confuso e sem muita noção da realidade, então estava
deitado naquele colchão com a mesma roupa social que usava durante a
reunião.
Enquanto me adaptava ao ambiente, escutei um grito vindo de seu quarto:
-Escolhe alguma coisa aí do catálogo da tv! Tô confiando no seu tato!
Passava pelo catálogo sem nenhuma perspectiva do que escolher, porém
tinha algo em mente. Um filme recente que tinha amado, não sei se era de seu
gosto, mas resolvi colocar. “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”.
Pausei. Gritei:
-Já tá tudo pronto!
Pouco tempo depois, ela saiu do quarto e veio para a sala.
Caminhando em minha direção, não conseguia disfarçar a surpresa que
abrangia meu rosto. Minhas sobrancelhas subiram de modo automático e
minha boca não conseguia ficar fechada por um milésimo de segundo, o que
foi transformado numa risada boba e sem graça que mostrava o quão
bagunçado estava minha mente. Já tinha destacado sua beleza, e apreciava
sempre que podia, mas naquele momento ia além do que tinha experienciado.
Era incrível o quanto estava bobo e o quanto conseguia demonstrar isso num
espaço tão curto de tempo.
Trajada de um roupão nude que destacava todas as suas curvas com a
suavidade do tecido e sem nada por baixo, deitou-se ao meu lado no colchão,
agarrou meu braço e, olhando para meu rosto catatônico, disse:
-Que foi? Eu sei que sou bonita, mas dá play no filme ai que tô curiosa
com teu gosto. - E sorriu - Sobre o que é o filme?
Voltando para a realidade, respondi:
-Se eu contar, perde a graça…
Me deu um tapa e me chamou de chato. A partir daí, ficamos assistindo ao
filme, porém não tardou muito para sentir seus lábios de encontro com meu
pescoço. Fechei os olhos, ergui meu queixo e não prestava mais atenção no
que acontecia na tv.
Seus dedos tocaram minha nuca e barriga, sua boca subiu lentamente aos
beijos em direção a minha. Um movimento lento que alertava cada nervo de
meu corpo, mas que, ao colocar nossa língua de encontro, tudo ficou bem
mais intenso. Minhas mãos, antes inertes, foram de encontro com sua nuca,
colocando os dedos entre seus fios de cabelo e apertando com força, fazendo
soar um pequeno gemido no ar.
-Desculpa! Te machuquei? - Falei, com um pouco de medo.
Com uma voz baixa, próximo ao meu ouvido, respondeu.
-Relaxa… Eu gosto.
E tornou a me beijar.
Agora deitados, não demorou para que ficássemos sem roupa e sentir de
qual forma a mais nos completávamos.
Por mais que não lembre dos detalhes visuais, a memória de seu toque não
sai de minha carne. Aquele beijo intenso… Aquela noite intensa… Os
gemidos… Os desejos… nossos corpos nús em um só.
Ao fim, tomamos banho juntos e voltamos para o colchão, dessa vez
realmente ver um filme, que novamente foi atrapalhado. Dessa vez pelo nosso
sono. Ela dormiu primeiro, agarrada em mim. Aquele rosto me trazia tanto
conforto, tanta segurança. Desliguei a tv e não lembrava de quando tinha
dormido tão bem quanto naquela noite.

Na manhã seguinte, acordei numa casa diferente da minha depois de um


bom tempo. Não estava acostumado com aquilo. Era bem diferente de dormir
na sala depois de estar acostumado a dormir no meu quarto.
De forma lenta abri meus olhos enquanto alongava meu corpo e olhava ao
redor. Estava bem mais cansado que o normal, por mais que o sono tivesse
sido maravilhoso. Achava que tinha dormido mais que o normal e enquanto
percebia que não estava em minha casa, Vívian vinha da cozinha com uma
camisa longa e as pernas nuas. Olhou para mim e me disse:
-Acordou?
Com a voz de sono e língua enrolada, respondi:
-Aso qui si… na tamo atasado pu tabalo?
-Que?
-Trabalho? Estamos atrasados?
-Você, não sei, mas eu não. Pelo menos hoje não vou, já são três da tarde
meu patrão.
Com um supapo, levantei da cama de forma rápida a ponto da minha
pressão baixar. Quase caí de novo. Até perceber também que estava
completamente nú.
Ela começou a gargalhar.
-É meme, lerdão! Ainda são nove. Além do mais, hoje é feriado, então vai
vestir alguma coisa e bora comer alguma coisa. Tem café, pão e queijo.
Foi o despertador mais eficiente que tinha provado, mesmo que quase me
fizesse desmaiar. Fiquei com vergonha e peguei minha roupa do dia anterior,
como não planejava aquilo, não tinha roupas minhas naquela casa.
O tempo estava esfriando, então coloquei a calça e minha camisa social
também. Olhei para Vívian e perguntei:
-Sente frio nas pernas não?
-Não.
Capítulo 11

Vívian adoeceu após alguns dias e pegou uma licença para não ir para a
escola por um tempo. Era um tipo de gripe, estava pegando pesado com ela,
pois dificilmente deixava com que alguma doença evitasse com que ela
trabalhasse. Também tinha o contraponto de ter que repor as aulas depois,
mas ela tinha um amor por dar aula que era invejável. Então resultou que
eram só eu e Paula fofocando sobre os assuntos do dia a dia novamente, algo
que não acontecia a um bom tempo e, querendo ou não, estava com saudades.
Estava no intervalo do ensino médio, era interessante ver aquela transição
entre crianças que agora se achavam adultos, em que alguns tentavam se
portar “seriamente” e outros metiam o foda-se e ficavam tirando as mesmas
brincadeiras que tiravam aos 10 anos e correndo por aí. Um ambiente bom,
mas que mostrava toda a construção de grupinhos em que nem todos eram
participantes de verdade. Não cabia a mim intervir, mas gostava de observar.
Enquanto observava aquele tumulto de adolescentes, sentado em uma
cadeira com uma mesa redonda na qual comia meu lanche, Paula varria o
chão próximo a mim com o principal objetivo de me xingar. Estava com
saudades daquilo.
-Pedro, não ache que vai se safar da merda que tu fez com a sua mão! Meu
Deus! Por que não falou comigo?
-Foi uma queimadura besta, relaxa… E melhorou, você não tá vendo? -
Mostrei o local da queimadura na mão.
-Sim, mas ainda vai ficar uma marca muito feia! Se tivesse falado comigo,
podíamos ter tratado isso bem melhor, você sabe disso…
Olhei para a queimadura e como ela tinha dito, tinha ficado uma marca, eu
não achava feia, mas certamente era uma grande marca que se destacava do
resto de minha pele. Era quase como uma cicatriz e, não vou mentir, gosto
delas. Não tem nada a ver com a merda que aconteceu para que a cicatriz
surgisse, não sou masoquista se é o que está pensando, mas cada marca no
meu corpo me levava para momentos da minha vida que foram eternizados
bem ali. Como tatuagens “naturais” ou “acidentais”. Também tinha o fato de
que se alguém perguntasse sobre eu falaria que foi resultado de uma tentativa
de matar uma barata, o que, cai entre nós, se a história for bem contada, fica
engraçado. Então falei para ela:
-Mas eu até que gosto, sabe? Não dói, pode confiar em mim. Certo que
doeu no momento, mas agora só faz parte de uma lembrança, uma lembrança
eternizada na minha pele, mas acho legal. Confia em mim e não se preocupa,
ok?
Com aquele olhar ameaçador confirmou:
-Posso confiar em você, mas não quer dizer que não irei me preocupar…
Se acontecer alguma merda pior que isso, me procure ou procure um médico
ao invés de ficar pensando “memória disso, memória daquilo”, não quero que
a memória seja “morreu porque quis manter uma cicatriz”.
Ela falava de uma forma que se eu não a procurasse, na verdade ela que
causaria minha morte com uma cicatriz bem feia. Era seu jeitinho de dizer
que me amava.
-Não vai se repetir, prometo!
Mesmo com a seriedade de Paula, eu estava me divertindo com a situação,
amava aproveitar o presente, por mais tenso que pudesse parecer, sei,
estranho de minha parte, mas estava quase rindo, segurando o sorriso com
aquela escapadinha de canto de boca. Tentava esconder, óbvio, não queria
levar um tapão do nada.
-Aham, sei…
Após esse assunto, por alguns segundos o silêncio entre nós tinha reinado,
só era atrapalhado pelas conversas paralelas dos estudantes ao fundo, mas o
assunto havia morrido. Alguns segundos depois, Paula resolveu quebrá-lo.
-E Vívian, como vocês estão?
Estava fixado em olhar para a mesa, sem nenhum foco específico, só
flutuando em meus pensamentos. Quando ouvi a pergunta, levantei as
sobrancelhas e comecei a pensar. Era uma boa dúvida e eu realmente não
refletia sobre aquilo a algum tempo, talvez por seguir a ideia de aproveitar o
momento e ponto.
Quando comecei a responder, era de forma pausada, não atropelando as
palavras como de costume. Estava montando cada frase em minha mente,
pois nem eu sabia alguma resposta exata para tal pergunta.
-Sabe, Paula, a gente tá bem… muito bem na verdade. Ainda é uma
situação meio diferente pra mim, mas estou conseguindo me adaptar.
Também acho que foi muito rápido como tudo aconteceu… Não estou
acostumado, sendo sincero, espero não pisar na bola com ela, talvez essa seja
minha maior preocupação. Mesmo que eu tenha medo que essa preocupação
seja um motivo para eu pisar na bola.
-Como assim?
-Sabe quando você se preocupa tanto em não fazer algo e acaba fazendo?
Não é ligando isso a filmes que tentam quebrar paradoxos temporais, mas
acho que dá pra fazer um paralelo. Você briga tanto para que um resultado
não aconteça e, no fim das contas, toda essa briga resulta naquilo que você
tanto estava evitando.
-Acho que entendi.
Paula terminou de varrer aquela parte, jogou a poeira no lixo e resolveu
sentar comigo para conversar mais próximo. E continuou:
-Por que ainda está estranho pra você? Além do quão rápido isso se deu?
-Bixo… É um jeito de pensar totalmente diferente, digo, Paula, eu te amo
pra caralho e você sabe, faria várias coisas por ti mesmo que de maneira não
racional, muito pelo que você significa pra mim e tudo que a gente passou.
-Uhn.
-Mas com ela é diferente… Não é como se tivesse um único momento que
vou pensar de maneira irracional, a todo momento estou pensando com os
sentimentos o que é muito confuso para quem está tentando ser lógico e
racional a cada segundo do dia. Me preocupo com ela a todo momento, penso
nela a todo momento, minha impulsividade de ações aumentam. É como se
estivesse pensando só com o “coração” e sei que isso pode dar merda, não só
para mim, mas para ela também, não sei como ainda, mas pode. Por mais que
eu não concorde muito com Freud, agora entendo, na prática, quando ele diz
que “Estar apaixonado é estar mais próximo da insanidade do que da razão” e,
puta que pariu, sentir isso é completamente diferente e bizarro. E o pior de
tudo: É bom.
Paula deu uma risada quando mencionei “O pior de tudo”, mas continuou
perguntando:
-Você nunca sentiu isso antes?
Parei, pensei e continuei.
-Já… Talvez. Muito novo e isso que me assusta mais, essa instabilidade
mental, esse instinto, essa impulsividade, não foi algo legal quando entrou em
conflitos meus sentimentos e o bem estar da outra pessoa, você vê o mundo
com os outros olhos e quando acaba, se tu fez merda, percebe a merda que
fez. Seja densa ou não, ainda sim vem a culpa, a culpa do que você fez, não
fez, do que poderia ter sido melhor ou pior. Sempre existem pendências e eu
nunca fui a pessoa mais fácil de aceitar essas pendências. Trago elas comigo
até hoje… Enfim, relacionamentos são extremamente complicados e o meu
cachorro sabe disso.
-O que? - Exclamou, confusa.
-É uma música. - E soltei risadas. -Por estranho que pareça, por mais
fodido que foi no passado, acho que gostei, não pela parte ruim, mas me
trouxe algum aprendizado, digo, se a gente não aprende com as merdas que a
gente faz, o que tamo fazendo?
-Mas como você sabe que está fazendo de errado?
Estiquei meus braços e pernas na cadeira, me alongando e respondi.
-Agora tu me pegou, não acho que tenho resposta certa, mas tenho umas
ideias.
-Sou todo ouvidos.
-Acredito que na vida deve ter um equilíbrio entre o quanto você se
importa consigo mesmo e com os outros, uma mediocridade, sabe? Por mais
que a palavra “medíocre” seja vista como algo ruim, bixo, é só algo “médio”.
Não sei como analisar profundamente o quanto tô sendo bom com os outros,
pois seus sentimentos cabem a eles mesmos, só consigo saber o que estou
sentindo, então, no fim das contas, tenho que me importar com o que estou
sentindo sem deixar de me preocupar com o sentimento alheio, mesmo não
sabendo o que tá rolando se não me for dito e mesmo dito. Bem, a única
pessoa que sabe o que você está passando é você mesmo e ninguém pode tirar
a veracidade dos seus próprios sentimentos.
-Então como você sabe que está sendo bom com os outros?
-Eu não sei. Isso vai depender da sinceridade de quem convive comigo, no
fim das contas vou tentar dar meu melhor, mas não esquentar minha cabeça
com isso, pelo menos não acabar com ela. Se eu destruir minha cabeça, como
vou ser bom para os outros? Voltando para o assunto anterior, Vívian, o
complicado é que quando você tá com esse sentimento, você “esquenta a
cabeça” mesmo não querendo. Não generalizo, isso é, pelo menos, o que
sinto.
-Isso tá afetando vocês de forma ruim?
-Não… Pelo menos não ainda. Puta que pariu, eu só tô noiando com o
futuro que nem chegou e que pode nem chegar. Ansiedade de merda.
-Calma, Pedro… Não vai dar ruim, confie em mim.
E Paula me abraçou, por algum momento senti que uma lágrima cairia de
meu olho, estava com o bolor na garganta e minha cabeça não parava. Eu era
bem egocêntrico, mas não parava de pensar mais no bem estar de Vívian,
mesmo que não precisasse… Além do medo de causar algo que não fosse
bom nem pra mim, nem pra ela. Não sabia o que, não conseguia pensar em
como, mas uma má impressão enchia meu peito. Era como se minha mente
não me deixasse ser feliz com alguém do meu lado, pois ela me indicava que
ia dar merda e não precisava de motivo para isso.
Agora o silêncio tinha realmente se instaurado no local. O intervalo já
tinha acabado e aquela calmaria foi quebrada pelo som que cada sapato do
diretor emitia do solo ao vir em nossa direção e falar, com uma calmaria
estranha:
-Pedro, acredito que já esteja na hora de ir dar sua aula… E Paula, não
estou te pagando para ficar de papinho, então vamos, circulando!
Ela resmungou baixo o suficiente para que ele não escutasse e seguiu seu
destino. A forma como tratava seus empregados beirava o desumano e era
uma merda, por mais que tenha gente que fala “Ah, mas é só arrumar outro
emprego”, bem, não é tão simples como quem vive no país das maravilhas
acha. A situação da Paula ainda era pior, tinha colegas de trabalho, mas
acabaram se demitindo com o tempo e só tinha ela para cuidar do prédio
inteiro. Beto sempre dizia que novos empregados estavam para chegar, mas
era uma promessa vazia como as outras em sua maioria. Ela tinha filhos para
cuidar, simplesmente meter o louco e sair não era a melhor das opções, então
acabava aguentando muito desaforo e também não tinha muito recurso para
contratar um advogado e meter um processo naquela escola, então a situação
não era uma das mais simples.
Enquanto caminhava em direção a minha sala, ia percebendo uma situação
um pouco estranha. Estava barulhenta, mas esse não era o diferencial, a turma
era sempre barulhenta, mas aquele som emitido não parecia surgir de
conversa entre alunos. Tinha alguma merda acontecendo e eu iria me
responsabilizar se desse merda, agora fazia sentido a tranquilidade do diretor.
Apressei o passo e cheguei à porta.
Alguns alunos que não se importavam com o que estava acontecendo na
sala permaneciam em seus lugares mexendo no celular, desenhando, ou
qualquer coisa que fosse não estar na bagunça, mas quando cheguei, olharam
para mim de uma forma diferente, então vi que uma grande parte da turma
estava no fundo da sala formando um círculo ao redor de alguns outros
estudantes que ainda não reconhecia. Pela gritaria, de início, poderia pensar
que estavam jogando algum jogo de carta apostando ou semelhante, até ouvir
uma voz feminina gritando com voz de choro:
-PARA, MARCOS, PELO AMOR DE DEUS! ELE NÃO DISSE
AQUILO POR MAL. DEIXA ELE! FOI UM MAL ENTENDIDO, EU
JURO, SE AQUETA, POR FAVOR!
Novamente apressei meu passo e fui para o meio da muvuca, suas idades
variam entre 16 e 17, então eram adolescentes com os hormônios à flor da
pele, e pra alguém dessa idade, estressado, fazer merda, eram dois passos.
Como minha primeira impressão foi ouvir uma de minhas alunas gritando e
chorando, a primeira coisa que fiz foi chegar gritando tentando entender o que
era aquilo.
-QUE PORRA QUE TÁ ACONTECENDO AQUI? VOCÊS TÃO
MALUCO, CARALHO?
Talvez foi um “bate primeiro, escuta depois”, mas em certas situações ou
você age ou você age. Para minha tranquilidade nada estava sendo feito com a
aluna, mas a situação era complicada de todo jeito.
Por mais que cheguei gritando, parece que não perceberam minha
presença à primeira vista. Na cena em questão um cara alto, parecia não
pertencer daquela turma pela idade já avançada e com a quantidade de pelos
na cara, mas não conseguia confirmar por minha memória de merda, ele
estava tentando avançar para cima de outro aluno que tinha metade do seu
tamanho enquanto a menina segurava ele e exclamava para que não
avançasse. O menor estava firme, de pé e encarava o cara mais forte, mesmo
sendo pequeno e, como posso dizer, sem muitos músculos. Por mais que
parecesse tremer um pouco, não deixou sua posição, o que, particularmente,
eu achava burrice.
-TU VAI APRENDER A NÃO DAR PITACO NO
RELACIONAMENTO DOS OUTROS, SEU PAU NO CU!
E o garoto menor não emitia uma palavra sequer, só ficava parado olhando
para ele, enquanto todo mundo ao seu redor só falava um monte de coisas
sem sentido, mas ninguém ajudava em si. Antes de intervir, perguntei para
um moleque que estava do meu lado:
-Quem é esse grandão ai?
-Faço a menor ideia, não estuda aqui, só sei que é namorado da Maria.
“Puta merda, um cara que não é aluno daqui tá brigando com um aluno, na
minha aula, do nada, por conta de mina. Tenho que resolver essa merda
logo”.
Por sorte tinha feito Judô na minha adolescência, não serviria se o cara
estivesse armado, porém tocar nele não teria nenhum efeito jurídico se não
fizesse parte da escola e estava prestes a bater em um dos meus alunos, mas
também sabia que bater nele poderia dar uma dor de cabeça, então fui pra
cima tentando ser o menos agressivo possível, mas estava no mínimo
preparado.
Entrei na frente de Maria e percebi que ele também era mais alto e mais
forte que eu, logo, teria que apelar para a autoridade e torcer para que aquilo
desse certo e eu não saísse com o olho roxo. Não, eu não fazia a menor ideia
de que merda estava acontecendo naquela escola para chegar nesse nível.
Tomando aquela posição, pelo reflexo, a primeira coisa que me veio foi
um soco na costela e, bem, doeu. Fiz uma careta e imediatamente falei da
forma mais calma que podia, mesmo engasgado com a dor de ter levado um
soco.
-Olha aqui seu merdinha, tu não estuda aqui, você está sendo uma ameaça
para alunos dessa escola que são menores de idade e acabou de agredir um
professor e o que não faltam são testemunhas. Tu pode tentar fazer o que
quiser a partir daqui, mas eu não vou deixar que encoste um dedo em nenhum
dos meus alunos e qualquer merda que você fizer está sendo filmado, então
ou tu sai daqui e deixa meus alunos em paz ou quem vai te dar um sacode é a
porra da polícia.
Sabia que a polícia não ia dar um sacode nele, pois era branco e, à
primeira vista, parecia ser meio riquinho também. Não fazia a menor ideia se
tinha alguém filmando, mas tinha que usar o que pudesse ao meu favor
naquela situação. Se eu agredisse alguém ali dentro já era um motivo para eu
sair da escola, se um aluno meu fosse agredido, já era outro motivo (mesmo
que essa não fosse minha maior preocupação nesse caso), a entrada de um não
aluno na minha aula também poderia ser usado contra mim (mesmo que isso
fosse responsabilidade da instituição), o diretor só estava procurando um
mínimo motivo para me demitir. Mesmo assim cheguei no seu ouvido e falei
algo só para ele escutar.
-Olha, eu escutei teu nome e sei que você não faz a menor ideia de quem
eu sou, mas encosta um dedo em um aluno meu que você vai descobrir meu
nome quando eu estiver indo preso e ele estiver passando na rádio, então dá
um fora daqui.
Voltei a falar na altura normal.
-Ok?
Ele parecia um pouco desnorteado sem saber muito o que fazer, ainda
parecia estar com raiva, mas estava desarmado naquela situação, então só
concordou e saiu.
Passado alguns minutos, liberei os alunos, mas mantive só a Maria e o
Felipe (Descobri seu nome um tempinho depois) para conversar com eles.
-Maria, não quero entrar na sua vida pessoal e o que você sentir
necessidade de compartilhar eu tô por aqui. Agora a gente tem um psicólogo e
recomendo que você vá nele, porque a situação aqui não foi muito
interessante e acredito que temos um bom trabalho pela frente, também prezo
pela sua segurança, pois pelo que entendi, aquele cara ali tem algum
relacionamento contigo e não bate bem da cabeça, então peço com muita
clemência, toma cuidado para não acontecer merda e se acontecer vou ajudar
no que puder, tudo bem?
-Tudo bem… A gente estava terminando, mas ele não reagiu muito bem…
-Imagino, tem muito filho da puta por ai, por isso estou preocupado com o
que ele pode fazer, inclusive contigo Felipe, que jajá converso. Mas, Maria,
você tem um jeito seguro de ir para casa, tem como manter distância desse
cara, etc…?
-Sim, eu acho, meu pai vem me buscar e é bem difícil dele entrar no
condomínio que a gente mora. Inclusive, por favor não conte para o meu pai
sobre o que aconteceu. A vida já ta uma merda com tudo isso…
-Não se preocupe, você que tem que decidir quando vai ou não falar, mas
como mencionei, estou aqui para o que precisar. Agora pode ir, vou chamar a
Paula para te levar na sala do psicólogo e vocês conversam, pode ser?
-Ok, obrigado.
Antes de começar a conversar com Felipe e quanto Maria já tinha saído,
Beto apareceu na porta e perguntou:
-Ué, porque seus alunos já foram liberados?
-Resolvi passar uma atividade avaliativa e quem terminasse estava
liberado, estou no meu direito, não?
-E esse outro que sobrou?
-Ele já fez o que era necessário, estamos só comentando sobre o trabalho
em questão.
Não fez mais perguntas, apenas saiu com um ar de desapontamento.
Virei para o Felipe e disse:
-Então, o que tá rolando?
Começou a falar como se tivesse aquilo preso na garganta a um tempo e
precisava soltar o mais rápido possível. Seus olhos também estavam
vermelhos com lágrimas.
-Maria é minha amiga, tipo, melhor amiga e vive reclamando do namoro
dela com esse cara aí. Mesmo que pareça que algo muito grande aconteceu,
na verdade eu só dei o conselho para ela largar esse maluco pelas merdas que
ele fazia e como tava fazendo ela mal. Não sei se ela contou para ele ou se ele
acabou pegando seu celular, independente, ele só apareceu aqui e queria me
socar por ter “me envolvido no relacionamento” dos dois.
Foi um bom resumo, por mais que ao meu ver, o buraco era bem mais
embaixo, tanto da parte de Felipe com Maria ou até mesmo sobre o que esse
Marcos fazia. Ali, o aluno estava abalado, não ia forçar ele a falar mais nem
invadir uma privacidade que não era meu direito, se quisesse falar algo em
algum momento sabia que eu estava a disposição. Então resolvi falar:
-Tu vai de quê pra casa?
-Sozinho, por quê?
-Esse maluco deve estar te esperando lá fora, no caminho ou semelhante.
Se importa se eu te acompanhar hoje? Se ele aparecer no meio do caminho,
bem, pelo menos não é só você que vai sair machucado - E sorri.
Ele concordou, era um bom menino e tinha medo do que poderia acontecer
no trajeto, então resolvi ir com ele conversando durante o caminho. Depois só
iria para a casa de Vívian ver como ela tava e passar a noite lá arrumando
algumas coisas da casa que não dava pra ela.
Durante o caminho, por mais que existisse um distanciamento de
professor-aluno que foi criado por toda a cultura educacional, não só daquele
aluno, existia uma intimidade que eu ficava feliz por transmitir. Ele não me
tratava como um “senhor” ou alguém que estava numa posição acima dele.
Claro que existia um respeito pela diferença de idade e maturidade, mas um
dos meus objetivos que sempre foi transmitir a relação horizontal em que
ambos estávamos passando conhecimentos um para o outro, dava uma
calmaria e tranquilidade para a conversa que se desenrolava durante o
caminho.
A confiança de ir junto com ele também me deixou feliz pela existência de
outros casos de professores e alunos que passavam de certo limite e aquela
era a última imagem que eu queria passar para os meus alunos, mesmo que
muitos profissionais possam se aproveitar de uma proximidade para tal.
Durante o trajeto, conversamos sobre os acontecimentos. Comecei
puxando o assunto:
-Juro que não sei como tu teve base pra aquele moleque. Se eu fosse da tua
idade ia me borrar de medo.
-Quem disse que não me borrei? - E rimos.
-Então o que te motivou a enfrentar aquela situação? Sua amiga?
-Principalmente ela. Se fosse algo comigo, não daria muita bola, mas
quando o ataque é direcionado para alguém que eu goste, a história é outra.
Também sabia que mesmo que aquele cabaço fizesse algo comigo não ia sair
barato pra ele e isso não só pela minha capacidade física.
-Não entendi muito bem…
-Quando chegarmos perto de casa você vai entender.
Próximo de sua rua, mesmo que parecesse um lugar um pouco perigoso,
pela falta de iluminação e investimento na área, dava para escutar um barulho
de crianças e adolescentes brincando. Chegando mais próximo, era possível
ver grupinhos pulando amarelinha, uns meninos jogando futebol descalços na
rua usando chinelos como traves, algumas pessoas mais velhas nas portas de
casa observando, conversando, jogando dominó. Era um lugar bem vivo,
principalmente comparado à região em que eu morava.
Os amigos de Felipe, ao verem ele chegando, já vieram dar um oi e
conhecer quem era o sujeito que o acompanhava (eu), antes que chegassem,
Felipe disse para mim:
-As amizades que eu tenho não me fazem ter medo de um monte de coisas
e, acredito que, minha amizade com eles cria a mesma situação.
E era realmente uma comunidade humilde, acolhedora de pessoas com
sorrisos de ponta a ponta só de encontrar com um amigo que tinha acabado de
chegar da escola. Depois ainda descobri que a maioria ali não estava
estudando, muitos tinham que trabalhar com seus pais ou para ajudar no
sustento da família. Em muitos lugares essa realidade de poder só estudar é
muito mais utópica do que parece. Vendo a relação de Felipe com seus
amigos dava para perceber que ele não era excluído por estar “fora da curva”
naquele meio, mas sim vinham ele como uma admiração, enquanto parecia
que se completavam. Nada de arrogância ou problemas, só a simples e pura
amizade.
-Pedro, esses são meus amigos e, desculpa dizer isso, mas tem muito mais
coisas que aprendi com eles do que na escola.
-Vai por mim, não duvido muito não, principalmente na escola em que
estamos. - Rimos, menos os seus amigos, que não entenderam muito bem a
piada.
-Enfim, esse é o Juquinha, Marquinho, Biscoito, …. - (Não vou lembrar o
nome de todos, sou horrível com isso) - Cresci com eles e são a maior prova
viva de amizade fiel que tenho. Mesmo que vivemos discutindo sempre por
coisas aleatórias, isso nunca nos afastou e se mexer com um, mexe com todo
mundo. Então não tem pra que ter medo de um playboy chatão que pode
aparecer.
Um deles ficou curioso e perguntou:
-O que rolou, Lipe?
-Nada muito importante, conto pra vocês mais tarde, porém agora tenho
que lhes apresentar o Pedro, meu professor preferido - Fiquei meio sem jeito,
não vou mentir - não se preocupem, ele não é aquele cara chato que fica
enchendo o saco, fala igual nós e nunca me deu esporro.
-Vou anotar aqui para saber o que fazer na próxima aula…
Todos riram, porém ao final, precisei interromper.
-Enfim, tenho que ir pra casa, pois já está ficando meio tarde e não confio
muito para andar por Arapiraca a noite sozinho, não à toa já fui assaltado
nessa brincadeira. Foi um prazer conhecer vocês, espero reencontrá-los de
novo.
Eles se despediram e Felipe disse:
-Se preocupa não, vai conhecer com toda a certeza.
Ainda me chamou do lado e conversou mais baixinho comigo:
-Prof, não sei se é pedir demais, porém não acha que seria interessante um
projeto que mostrasse o quanto a educação liberta, começando por aqui? Sei
que o lugar que eu estudo não é a maior das referências, mas gosto muito de
como você trabalha a ideia da educação e sua aplicabilidade do mundo real,
acho que seria interessante para meus amigos abrirem os olhos e as vezes não
só para eles.
-Só posso dizer que amei a ideia e vamos sim colocar isso pra frente, você
quer ser meu ajudante?
-Claro!
Após isso me despedi e fui em direção a minha casa pensando no que
tinha acontecido, desde a briga até aqueles meninos que tinha conhecido.
Realmente o professor que se baseia apenas no que vê na academia não
possui quase nenhuma noção do que é o mundo real em si e quais são os
problemas que ele enfrenta na prática. O mundo de um estudante vai muito
além do que está acontecendo na sala de aula e quem acha que isso é simples
é, no mínimo, ingênuo.
Cheguei um pouco mais tarde em casa que o normal, o que causou uma
preocupação com Vívian, porém expliquei toda a situação, o que a deixou
mais preocupada ainda, porém não comigo. Tomei banho e fui dormir.
Capítulo 12
Nos dias seguintes a fofoca já tinha se espalhado pela escola inteira, meio
difícil esconder algo como um estranho entrando na escola para brigar com a
namorada e um aluno de menor. Mas, ao contrário do que o diretor
imaginava, inclusive, muita burrice da parte dele, o peso do que aconteceu
não foi para as minhas costas e sim para a dele, então quem teve que enfrentar
dor de cabeça não fui eu, mais ou menos…
Como ele queria uma desculpa para fazer algo comigo, no seu auge da
imaginação me demitir por justa causa, só arrumou uma desculpa para me
fazer ir trabalhar ao sábado. Mesmo assim, odiei.
Enquanto Vívian me levava para cara, comecei a reclamar ao vento sobre
a situação:
-Caralho, nem motivo direito teve e aquele corno vai me botar pra ir num
sábado trabalhar. Nem direito de fazer isso ele tem.
Com toda calma do mundo, observando o trânsito ao seu redor, ela me
respondeu:
-Não tem como bater de frente com ele sobre a decisão?
-Nem… Por mais que ele não vá me demitir do nada, nossa situação é
bem… Como posso dizer… Uma corda bamba e que se eu cair é o
equivalente a perder o emprego.
-Entendo… Mas, pelo menos, ele não estará lá te vigiando e enchendo seu
saco, né?
-Pelo menos isso… Mesmo assim tenho que sair de lá com algo pronto e
nem sei o que é esse “algo” porque foi tudo tão feito nas coxas que a única
informação que tenho é de ter que passar a manhã de um sábado, QUE EU
DEVERIA ESTAR DORMINDO, naquela porra de lugar. Tô quase me
arriscando em passar o dia só batendo papo com o Marcelo que estará lá.
-O segurança novo?
-Sim, sim. Por conta daquela merda que deu, o diretor teve que contratar
alguém para cuidar da segurança do ambiente. Já o conheci, tivemos bons
papos, acho que é uma boa alternativa de descansar, e ir conversar com ele.
Chegando em casa, antes que eu pudesse me despedir, Vívian, um pouco
acanhada, resolveu pedir um favor:
-Pedro… Assim, só vai ter você e o Marcelo lá, né?
-Na teoria, sim, por quê?
-Será que poderia dar uma olhada…
Antes que pudesse terminar, impulsivamente interrompi, com um pouco
de estresse, mas me expressando mais do que deveria:
-Vívian, mesmo que tenha algo do diretor lá, o que a gente pode fazer,
sabe? Só vai deixar a gente com raiva e estragar algo que já deve estar
correndo na justiça. Seria burrice!
Ela concordou, mas um pouco cabisbaixa. Levantei a voz sem motivo,
aquele assunto estava me estressando, só queria que acabasse… Então, mais
calmo, respondi:
-Olha… se tiver uma abertura, dou uma olhada, mas não vejo muito como
isso pode ajudar.
Com cara fechada e os olhos com lágrimas, olhando fixamente para o
volante, apenas disse.
-Deixa isso pra lá.
-Certeza?
-Sim.
Tentei dar um abraço para me despedir, não deu muito certo, então segui
meu caminho. Talvez eu tenha feito merda, talvez não. Não fazia a menor
ideia de como agir nessa situação. Decidi que daria uma fuçada, mas não
sentia que isso daria errado de alguma forma, só não sabia qual.
O clima ficou um pouco estranho entre a gente por um tempo, mas foi se
acalmando. Foi só um desentendimento pontual que poderia ou não voltar no
futuro.
Com esse período, fui pegando mais amizade com Marcelo, além de ter
uma boa personalidade, que se encaixava com a minha pelo menos, como
iríamos passar um dia só nós, queria evitar aquele silêncio constrangedor.

Sábado chegou e com isso, acordar cedo. Não tinha dado dois minutos que
o despertador tocou que o estresse já aqueceu meu sangue e subiu pelas
minhas veias. Ainda deitado, olhando para o teto, exclamei:
-Puta que pariu, acordar cedo num sábado, que porra?
Sentei na cama, alonguei minhas costas e respirava fundo enquanto movia
minha cabeça como uma forma de despertar meus músculos. Raios de luz
penetravam no quarto deixando amostra a poeira que flutuava naquele
ambiente sujo e desorganizado (A organização era mais periódica e dependia
de quando receberia Vívian em casa…). Esfreguei os olhos e após outra
respiração profunda soltei:
-Porra!
O dia tinha acabado de começar e já queria que estivesse em seu fim.
Uma força me puxava para a cama, porém me forcei a ficar ali enquanto
lembrava do sonho que tivera naquela noite. A nitidez era o menor foco em
meus sonhos, então tudo estava meio embaçado e confuso, parecia que tinha
vários sonhos, mas um em específico me chamou atenção. Estava em minha
escola antiga e encontrava com Vívian lá, estávamos muito bem no início e
como adolescentes, procurávamos um lugar para se beijar naquele ambiente,
porém a atmosfera foi mudando e a alegria de Vívian foi se tornando
angústia. Ela começou a ficar mal, queria desabafar, mas não conseguia, eu
não sabia o que fazer. Queria abraçá-la, mas não conseguia, queria saber o
que a afligia, mas temia entrar em suas intimidades. Fiquei paralizado naquele
momento, o clima foi se tornando mais turvo e Vívian começou a sair do meu
campo de visão. Tentei ir atrás dela, mas meu corpo estava paralisado, não
correspondia aos meus comandos. Fiquei agoniado, triste e melancólico. Por
mais que minha empatia já fora tida como falsa, aquele sentimento que nutria
sobre ela era a coisa mais verdadeira que tinha sentido em muito tempo.
Quando consegui dar um passo e ir atrás dela, caí num limbo eterno que me
fez acordar. Talvez esse sonho culminou num estresse maior pela manhã.
Meus olhos se encheram de lágrimas ao lembrar disso, porém um
problema que eu odiava sobre mim é não conseguir chorar, tinha algo errado,
mas quando viesse um motivo pra chorar seria muito forte e disso eu também
tinha medo.
Tornei a respirar profundamente, contrai minhas costas e quando relaxei
os músculos, levantei.
Comi, escovei os dentes e tomei banho. O preparo não teve nada demais,
então só fui caminhando naquele Sol das 8 da manhã, que mesmo no inverno,
sentia cada pedaço de minha pele esquentar aos poucos. Pelo menos não
estava caindo torrentes de chuva.
Quando cheguei, apenas Marcelo estava lá, então o cumprimentei e ele
disse com um tom de tranquilidade e aquele sorriso no rosto:
-Pelo jeito não vai ser só desse prédio vazio que terei de tomar conta hoje
não.
Sorri e enquanto passava, disse:
-Se acontecer alguma coisa comigo hoje, tenho certeza que seu salário
dobra!
Marquei meu ponto para provar que estava lá e fui para a sala dos
professores para preparar o que tinha de fazer naquele dia. Não era nada
muito complexo, porém trabalhoso e que não me chamava muita atenção, ou
seja, um trabalho chato.
A sala que eu estava era comprida com uma mesa que estava de ponta a
ponta. A distância entre a mesa e os armários na parede cabia às cadeiras que
eram de certo confortável. Coloquei meu notebook ali em cima, conectei na
tomada o carregador e, antes de começar a arrumar os papéis e iniciar a
pesquisa, preparei minha playlist de músicas para trabalhar sossegado.
Sempre tive um apreço por rock nacional, então as músicas eram compostas
por Gato Negro, Casa da Mata, Scalene, Zimbra, O Terno, Terno Rei e por ai
vai. Essas bandas, além de me ajudar a relaxar, escutei muito em minha
adolescência em momentos chaves de minha vida. Momentos bons ou não, a
nostalgia me confortava.
E dali tinha que começar a trabalhar. Fazer um programa de atividades
olímpicas relacionadas a olimpíadas do conhecimento que daria 40% da nota
dos alunos participantes. Não que eu fosse muito contrário de arrumar formas
diferentes de ensinar algo aos alunos ou até mesmo não era nem um pouco a
favor do sistema de notas objetivas para classificar alunos, mas esse projeto
só era uma forma de mascarar uma estratégia de pontuação “grátis” para
quem participasse, não precisando ser necessariamente criativo e que
aumentaria a pontuação da escola nos índices de pesquisa de ensino. No fim
das contas era só uma maneira do dono da escola buscar mais alunos para
ganhar mais dinheiro. Educação nunca foi o foco aqui.
Por mais que ideias mirabolantes passassem na minha cabeça, sobre como
desenvolver dúvidas que impliquem problemas sociais vigentes na sociedade,
debates e chegar a conclusões sobre eles passasse em minha cabeça, só
precisava fazer um quiz com perguntas e respostas baseadas em decoreba
pura. Aquilo me dava agonia…
Por mais chato que fosse, fiz, pois era meu trabalho e ainda precisava
comprar minha comida no início do próximo mês. Guardei meus documentos
e notebook e já estava de saída, até que vi no fim do corredor uma cena
interessante, que resolvi ficar só de tocaia e não intervir, pois não sabia como
agir.
A figura que eu via ao longe, próximo de Marcelo não me era estranho,
minha miopia não era tão grande assim. Beto estava ali, com sua roupa de
trabalho, porém um pouco descuidada, semelhante ao que tinha visto naquela
noite no Pub com Angel. Não conseguia observar bem de longe o que eram as
manchas, mas certamente estava sujo e desensacado. Quando vi, estava
berrando para Marcelo, que apenas ouvia com os braços cruzados para trás.
-TÁ OLHANDO O QUE SEU PRETO DE MERDA? SOU A PORRA
DO TEU PATRÃO, TU ACHA QUE PODE FICAR ME OLHANDO
TORTO DESSE JEITO, SEU PAU NO CU!
E Marcelo mantendo a compostura.
-É BOM FICAR CALADO MESMO, TE TIRO DAQUI NUM ESTALO
DE DEDOS E TE FAÇO NÃO SER EMPREGADO EM MAIS PORRA DE
LUGAR NENHUM, OUVIU, CARALHO?
Assustei, pois Beto deu um tapa na cara de Marcelo, quase fui pra cima,
mas minhas pernas estavam paralisadas. Marcelo ainda manteve a
compostura, era muita calma, não entendia.
Quando aconteceu, ele veio em minha direção, ainda fiquei paralisado e
esperava receber algum xingo ou semelhante dele, mas estranhamente só
passou por mim como se não tivesse me visto. Realmente, estava com um
cheiro de dar ânsia de vômito, era muita coisa misturada, mas aquela hora da
manhã?
Quando fui falar com Marcelo, queria saber se ele estava bem, mas antes
que pudesse perguntar ele já me respondeu com os olhos cheios de lágrimas:
-Relaxa, é normal, acontece todo fim de semana na verdade. Assinei um
contrato para não falar sobre isso e, bem, já passei por coisa pior e é isso ou
não tenho como cuidar da minha família…
Aquilo apertou meu coração, não tinha o que eu pudesse fazer, não tinha o
que denunciar, não tinha caminho nenhum, apenas alguém fodido da cabeça
fodendo a cabeça dos outros a todo momento.
Após um certo silêncio, perguntei:
-Paula que limpa a bagunça que ele faz no fim de semana aqui?
-Não, não. Isso é eu mesmo. Não posso explanar esse segredo, você só
sabe porque viu, então pelo menos a culpa não vai cair nas minhas costas.
Provavelmente ele não lembra muito bem o que faz aos fins de semanas aqui
para ter escalado você hoje, pois tu passa longe de ser um dos preferidos dele.
-Isso eu esperava… Inclusive, pode me fazer um favor.
Eu devia essa para Vívian.
-Uhn?
-A chave da sala dele está com você? Preciso conferir algumas coisas,
prometo que isso não vai cair nas suas costas.
-Tô sim, faz o que quiser, ele pode ser meu patrão, mas eu quero é que se
foda. Porém, lembre-se: isso não pode cair nas minhas costas.
Fui tentar fazer o mais rápido que podia, mas quando entrei tomei um
choque. A sala estava escura, mas tinham muitos papéis largados na mesa,
alguns com manchas de bebida, é como se ele estivesse observando um pouco
o que tinha ali. Me aproximando, percebi alguns processos que já tinha visto
antes: “Importunação Sexual”, “Assédio”, “Estupro”... E naquele meio algo
tão bizarro quanto. Eram fotos impressas de garotas, de fundamental a ensino
médio, algumas eu reconhecia. Algumas eram fotos como se tivessem sido
tiradas de forma escondida, outras eram nudes explícitos. Não consegui ficar
naquela sala por muito tempo, não passei 5 minutos, saí, fechei a porta e
fiquei ofegante lá fora. “Será que devo contar isso para a Vívian? Se eu já
estou puto com o que vi, ela vai acabar fazendo algo irracional. Caralho, não
sei o que fazer, puta que pariu. Que merda é essa que acabei de ver?”
Quando saí da sala, vi que Vívian estava conversando com Marcelo, ela já
tinha vindo me buscar. Entregaria a chave da diretoria para Marcelo de um
jeito ou de outro, então ou contava a verdade para ela sobre o que tinha
achado, talvez omitisse um pouco, ou não falava nada, porém em minha cara
estava estampado que tinha visto algo. Era um misto de raiva, agonia e
confusão. Sabia que ele era um filho da puta, mas nesse nível?
Minha cara estava fechada, me despedi de Marcelo e beijei Vívian. No
caminho para o carro ela perguntou se estava tudo bem, falei um sim bem
ríspido.
-Tem certeza?
-Tenho, amor. E como tinha dito, não tinha nada na sala do diretor, fui lá
de troxa. É bom esquecer essa história logo antes que nos cause problemas, tá
bom?
-Eu só perguntei se você estava bem…
-Desculpa, só estou cansado. Vamos para casa, por favor.
Agora não só eu estava com a cara fechada, ela também, porém eu estava
com raiva, ódio, confusão. Ela estava triste, sua confusão era se podia ou não
confiar em mim, sua tristeza era o peso de sentir um conforto ser um fardo.
O clima durante o caminho foi estranho. Ela tinha lágrimas presas nos
olhos, eu estava exausto e estressado, olhava para os lados e não conseguia
me conter bem. Estava perceptivelmente abalado. Ambos.
Quando chegamos em minha casa, apenas dei tchau. Não teve abertura
para toque físico. Eu sabia que estava falhando, errando, quebrando com sua
confiança, mas não sabia ainda o quanto minha prepotência e arrogância iria
me levar. Talvez eu estivesse testando os limites, talvez era uma forma de
acabar com a melhor coisa que aconteceu em minha vida. Proteger? Só estava
me afastando dela mais e mais.
Em casa, nem banho tomei, só queria meu cigarro. Um maço foi embora
naquele dia. A ansiedade corroía meu peito, minha respiração não tinha
padrão e um bolor na garganta me fazia repensar em todos os momentos do
porquê quebrar tudo aquilo que foi construído por algo que não fazia o
mínimo sentido. Poderíamos conversar sobre, chegar a uma conclusão juntos,
mas menti, quebrei sua confiança e sabia que o preço a se pagar seria muito
mais pesado do que a dor no peito e as lágrimas que molhavam meu rosto
naquele fim de tarde.
Queria contar tudo para ela, mas já foi, não tem mais volta. Quando você
erra aceita e segue, mas esse aceite cobra e a depender das consequências
cobra mais do que você imagina.
Passei algumas horas pensando. Estava exausto. Nenhuma mensagem no
meu celular. Apenas deitei e apaguei antes que pudesse colocar a cabeça no
travesseiro.
Capítulo 13

Tudo estava escuro, não conseguia enxergar, apenas sentir e ouvir. Era sua
voz que penetrava meus ouvidos e seu cabelo que se encaixava em meus
dedos. Seu corpo se aproximava do meu, aos poucos seus gemidos se
tornavam choros, aos poucos sua nuca sólida se dissolveu em minha mão, aos
poucos lágrimas caíam dos meus olhos. Acordei.
Estava suando frio e ofegante. Ainda eram três da manhã e estava tão
exausto que nem parecia que tinha pregado meus olhos. Mesmo assim,
tentava voltar a dormir e não conseguia mais. Estava exausto, cansado de
pensar. Tantas coisas ao mesmo tempo surgiam de imediato em minha
cabeça, não dava para controlar. Pressionei meu rosto no travesseiro e gritei o
mais forte que podia. Por mais que o bolor de lágrimas estivesse preso em
minha garganta, colocar para fora ainda era muito difícil.
Aqueles sonhos estavam cada vez mais vívidos, aquele medo me consumia
cada dia mais um pouco. Acordava cansado, querendo voltar ao sonho, por
mais fodido que fosse, algo me puxava de volta para ele.
Deitei e fixei meu olhar no teto. Tentava controlar minha ansiedade
através da respiração, sentindo cada pedaço de ar que passava pelo meu nariz
e preenchia meus pulmões. Enquanto me acalmava, os pensamentos
começaram a tomar formas mais nítidas.
Estava com medo do que poderia acontecer com Vívian caso fosse atrás de
qualquer coisinha sobre aquele arrombado. Estava com medo de como se
sentiria sobre mim depois de descobrir que menti para ela. Tinha repúdio pelo
que tinha visto naquela sala e o que aquele merda tinha feito e sido
acobertado até ali. Tinha agonia de não saber o que fazer…
Tentava relaxar para voltar a dormir, virava para um lado, para outro,
nada. Passei horas e horas na madrugada tentando descansar.
O Sol surgiu nas frestas da cortina, nenhuma solução surgiu em minha
cabeça, a nitidez dos pensamentos já tinha se despedido de mim, agora só
restava cansaço e frustração, mas enfim as lágrimas vieram, calma e
serenamente lavando meu rosto, lavando o rosto de uma pedra que não
conseguia chorar a tempos, não porque não sentia dor, mas por ter se
machucado tanto que colocar para fora ia se tornando uma tarefa mais difícil
a cada evento. Foi necessário um misto de culpa, raiva, tristeza e solidão para
que elas retornassem e me cumprimentassem, precisava daquilo, precisava
colocar para fora depois de tanta coisa. Apaguei.

Abri meus olhos e não estava tão claro quanto esperava. Olhei pela
cortina, parecia já anoitecer. O sono acumulado havia se manifestado e tive
um sono tão profundo depois de tanto tempo.
Acordei mais calmo, fui lavar meu rosto, ainda aparentava cansado.
Escovei meus dentes e resolvi pegar meu celular. Estava descarregado.
Coloquei para carregar enquanto fui tomar um banho, precisava despertar
ainda.
Após o banho peguei meu celular e tomei um susto com a quantidade de
notificações. Eram de Vívian. Muitas ligações perdidas, mensagens desde
ontem. A última ligação tinha sido próximo do meu despertar, então resolvi
ligar antes de ler as mensagens. A ligação foi atendida de forma instantânea e
antes que eu pudesse falar algo só pude escutar Vívian falando enquanto
chorava.
-Por favor, Pedro, não faz isso de novo. O que aconteceu. Me diz que você
tá bem, por favor. Por que você sumiu?
Mesmo tendo acordado a pouco, aquilo me despertou, então respondi.
-Vívian, eu que pergunto: Tá tudo bem? Eu só dormi…
-VOCÊ SUMIU!
-Por um dia só, acabei dormindo demais, só isso. Desculpa, eu acho.
-VOCÊ AGE ESTRANHO COMIGO E SOME ASSIM, DO NADA,
SEM MAIS NEM MENOS. NÃO FAZ MAIS ISSO, POR FAVOR.
-Eu não sei o que dizer…
A ligação ficou quieta por um tempo, o que eu escutava era apenas seu
choro e as confusões de meus pensamentos. Até que ela disse baixinho:
-Me desculpa… por favor…
-Não tem pra que se desculpar, flor… eu só não entendi.
-Por favor…
-Olha, eu vou só me arrumar aqui e já já apareço na sua casa, pode ser?
Ela apenas repetia baixinho e chorava.
-Por favor…
Desliguei, mandei mensagem que já estava chegando. Peguei qualquer
roupa que tinha ali e fui correndo para a sua casa. Estava tentando entender o
porquê daquilo. Sim, eu sei que agi estranho, não gostava de mentir e estava
um pouco estressado, mas a reação foi um pouco exagerada demais, pelo
menos era o que eu enxergava, só que não tinha como saber o que estava
passando na cabeça dela, assim como ela não fazia ideia do que passava na
minha.
Bati à porta de casa. Ninguém atendia. Resolvi tentar abrir e a porta estava
destrancada. Entrei.
Ela estava deitada em posição fetal no colchão que ficava na sala, tinha
dormido. Estava com o celular ao lado do rosto, estava com a mesma roupa
que no dia anterior e o cobertor não a cobria totalmente. Ao redor de seu
rosto, no colchão, havia uma região molhada, provavelmente de seu choro.
Me ajoelhei ao seu lado e comecei a fazer carinho em seus cachos, não
sabia se esperava ela acordar ou o que fazia, mas antes de tomar alguma
decisão, ela acordou e virou seu rosto até mim de forma lenta até perceber
que era eu quem estava ali. Me abraçou com força, retribui, e começou a
chorar em meu ombro. Aquilo também me machucava de alguma forma, não
sabia o porquê, mas também queria chorar, mas nenhuma lágrima saia dos
meus olhos.
Ficamos ali por um tempo, até que falei baixinho em seu ouvido.
-Não tomou banho desde ontem?
E, de forma energética e sorriso no rosto, ela disse:
-VAI TOMAR NO CU!
E começou a me bater. Não de forma agressiva, mas como uma
brincadeira de um dia qualquer. Estávamos juntos de novo. Depois do
“espancamento”, sorri, tirei o cabelo de seu rosto e dei um selinho.
-O que aconteceu?
Seu sorriso sumiu.
-Já respondo, deixa logo eu ver o que tem pra comer. Tô com fome.
Fui com ela até a cozinha. Só tinha um resto de café frio numa xícara e um
pão com ovo com uma mordida, mas dava para perceber que não era do dia.
O cômodo também estava bagunçado, não algo extremo, mas estava diferente
do que da última vez que estive ali.
-Faz quanto tempo que você não come?
-Não liga pra isso. Vou preparar o café.
Segurei seus ombros, olhei no fundo de seus olhos e disse:
-Vai tomar um banho que eu preparo tudo, ok?
-Relaxa com isso, sai, vai.
E se soltou de mim.
-Por favor, Vívian…
Fiquei parado olhando. Ela estava perdida na cozinha, não sabia o que
fazer e nem por onde começar, mas queria fazer algo.
Peguei um pano e comecei a limpar a cozinha, joguei o que tinha ali fora e
enquanto isso disse novamente:
-Por favor, Vívian. Eu preparo um café pra gente, só tenta relaxar no
chuveiro um pouco.
-Tá…
E foi o que foi feito. Enquanto eu limpava a cozinha dos restos de comida
e formigas que passavam, ela tomava banho. Preparei o café, fritei ovos e
aproveitei queijo e presunto que tinha na geladeira. Ela saiu do banho quando
tinha acabado de terminar o preparo, então a comida ainda estava quente.
Sentamos a mesa e começamos a comer.
Ficamos em silêncio por um tempo, até o ambiente ficar confortável e
então Vívian disse:
-Desculpa…
-Pelo que?
-Como assim “pelo que?”. Tu sumiu por algumas horas e eu enlouqueci!
Não devia. Parecia uma maluca! Juro, não sou assim.
-Mas isso não foi do nada. Sei que agi estranho contigo ontem, mas eu só
não entendi o porquê de tamanha preocupação.
-Então não era coisa da minha cabeça…
-Por que seria?
-Não sei… Mas então, por que você estava daquele jeito ontem?
-Eu perguntei primeiro.
-Justo. Então eu começo, mas se me prometer explicar o que rolou ontem.
-Prometo.
Deu uma mordida na comida, tomou um gole de café e começou:
-Antes de você, namorei com um garoto. Acho que posso chamá-lo assim,
pois éramos bem mais novos. Foi um bom relacionamento, não tinha do que
reclamar, pelo menos nada explícito. Nós nunca brigávamos e nem existia
motivo para isso, sempre tínhamos assunto para conversar e nossa vivência
era decente, porém essa harmonia às vezes se quebrava, não sei porque, acho
que ele também não e em momentos pontuais estávamos desgastados e
criamos uma tensão estranha que não era explicável, mas hora eu estava
estressada, hora ele, só que mesmo assim, após um tempo passava. E como
sabíamos que aquilo voltaria de novo, aproveitamos ao máximo os momentos
em que não estávamos estranhos.
Novamente comeu um pedaço de sua comida e tomou um gole de café,
parecia ter dificuldade de engolir e, aos poucos, suas feições saiam da
tranquilidade que estavam e, olhando para o canto da cozinha, ia franzindo as
sobrancelhas e decidindo cada palavra que sairia de sua boca.
-Por mais que as brigas que surgissem do nada não tivessem sentido,
aconteciam e um relacionamento que tinha tudo para dar certo foi decaindo
aos poucos só que, mesmo com aquele clima, a gente se gostava a ponto de
não querer deixar o outro partir, mesmo que percebêssemos que o nosso agir
um com o outro estava machucando. Ele com suas falas e ações iam me
ferindo, coisa que também ia fazendo com ele, não por querer, mas só por ser
eu mesma e ele o mesmo caso. Não quero entrar em detalhes sobre o que
acontecia a profundo, desde as partes boas as partes ruins, mas só quero que
entenda que estávamos muito bem em um momento até que chegou um ponto
que qualquer conversa era motivo para desconforto.
-Tudo bem…
-Ele tinha os problemas dele, eu também, ambos sabíamos com quem
estávamos lidando. Eu me estressava demais com coisas simples, ele absorvia
qualquer coisa pequena que fosse para a sua culpa, então o ambiente me trazia
estresse e angústia para ele, era acumulativo. Até que chegou um dia que
explodi. Mesmo estressada, não costumava jogar para ele o que me
incomodava, tanto pelo meu jeito individual, quanto por saber que aquilo o
machucava, mesmo que entendesse, eu tinha medo de falar, mesmo não
devendo, porque foi como um barril de pólvora que causaria uma explosão
imensa por não guardar tanto aquele peso.
Parou um pouco e respirou.
-Até que chegou aquele dia… A escola, família, amigos, tudo de alguma
maneira tinha me desviado naquele dia a ponto que o chamego dele seria um
ótimo escape pra mim. Estar com ele, mesmo que sem fazer nada, saber que
estaríamos juntos seria um descanso, mas ele também tinha seus problemas,
só que diferente de mim, colocava para fora sempre que podia, ele via
segurança em contar para mim, mesmo que algumas coisas me machucassem
de alguma forma. Eu só queria descansar, ficar de boas. Ele só queria
desabafar. Explodi, chorei, falei tudo que me machucava e o quanto ele, só
ele, se expondo me feria de certa forma. Falei até coisas que não eram
verdades. Estava com raiva, queria colocar para fora tudo o que podia, mas no
fim queria um abraço, só um abraço silencioso dele, mas ao fim, ele ficou
paralisado olhando para mim e começou a chorar pedindo desculpas. Aquilo
só me deixou com mais raiva, então sai de sua casa, ele estava só. Fui
caminhar, ver se esfriava minha cabeça de alguma forma. Estava
completamente ansiosa, queria vomitar, queria achar uma maneira de ficar
bem e não sabia como. Depois de andar um pouco, resolvi ligar de volta para
ele, a gente precisava conversar, não acho que a explosão foi culpa dele, na
verdade não vejo ninguém com culpa de nada dessa história, pelo menos de
maneira racional… Ele não me atendeu, mas não foi uma chamada recusada,
só chamava na verdade. Depois da terceira ligação perdida, resolvi voltar.
Toquei a campainha, nada. Vi que a porta estava destrancada. Eu sai e
aparentemente ele não foi fechar na chave.
Quando falou isso, lágrimas começaram a descer de seus olhos e deu uma
pausa para continuar o que estava falando. Levantei de minha cadeira e fui
abraçá-la. Fazia cafuné em seus cabelos cacheados, beijei sua testa e disse:
-Não precisa continuar se não quiser.
Como se não tivesse escutado o que eu disse, apenas completou.
-Ele não trancou a porta, porque quando eu saí ele também foi embora,
porém o corpo dele estava estirado em seu quarto.
E continuou chorando, cada vez mais forte o que me fazia apertar meu
abraço cada vez mais. Não sabia o que dizer, não sabia ao certo como aquela
história estava ligada ao que tinha acontecido no dia anterior, mas esperava
dar a ela o que precisava nesse momento. Um abraço silencioso.
Depois de um tempo, me afastou um pouco para enxugar suas lágrimas e
pediu para que eu me sentasse novamente.
-Eu sei que a culpa não foi minha, cada um tem sua vida e seus motivos
para fazer o que tiver de fazer, mas passar por aquilo me deu medo do que
passa na cabeça de cada pessoa. Eu nunca vou saber de verdade como você tá
se sentindo, Pedro, mesmo que me fale com todas as palavras. Ontem eu só
liguei aquele estranhamento a coisas do passado a ponto de me gatilharem
muito. Você é especial pra mim e sumir daquele jeito da forma que você
sumiu me trouxe lembranças do passado que definitivamente não me fizeram
bem. Eu não quero que isso afete nossa relação, de forma alguma, porém,
diferente do passado, quero tentar ser o mais transparente sobre as coisas que
estou sentindo para evitar qualquer mal-entendido ou semelhante.
-Acho que entendo. Me desculpa qualquer coisa, também vou tentar ser
mais transparente.
-Tudo bem.
-Vívian…
Ainda com os olhos vermelhos de lágrimas, olhou para mim e esboçou um
pequeno sorriso.
-Oi!
-Eu também preciso ser um pouco mais sincero com você.
-Vamos só terminar de comer primeiro, acho que a comida vai esfriar.
Mesmo com o clima tenso o que ela acabava de ter me contado, tinha
voltado a sua personalidade do dia a dia. Estava com o espírito alegre e
aparentava estar contente de estarmos comendo naquela mesa novamente.
Enquanto mastigava pensava na sua história e suas palavras. Não tinha
como discordar. O mundo é regido pelo acaso, isso forma cada um de nós de
uma maneira diferente de forma quase impossível de se prever. Os
sentimentos que são formados não são a mesma coisa para cada indivíduo,
cada um vai passar pelo seu pesar e cada pesar vai formar uma parte da
mente. Seria burrice achar que se pode julgar o que o outro sente e mais
burrice ainda achar que compreende. A própria empatia é praticamente
impossível de ser realizada, mas isso não nos impede de tentar.
Quando deitamos no colchão, ela me perguntou o que eu tinha a dizer,
então fui curto para evitar o constrangimento da mentira.
-Eu fui na sala do diretor ontem e vi algumas coisas.
Ela ignorou o fato de eu ter mentido, acho que já sabia, então apenas
perguntou:
-O que tinha lá?
-Notificações de processo de assédio, estupro, fotos de alunos de várias
séries diferentes e por ai vai. Resolvi não fuçar por muito tempo.
-Puta que pariu! Tirou foto, pelo menos?
-Não…
-Porra, Pedro!
-Você sabe que não quero me envolver nessa merda, por mais que eu
queira que aquele pau no cu se foda.
-Ok, vamos pensar no que fazer.
-Vívian, por favor… Se já tá na justiça, o que mais a gente poderia fazer
que fosse algo bom? Justiça com as próprias mãos? A vida real não funciona
assim.
-Porra, mas vamos pelos menos ter o que ele fez nas nossas mãos, nem
que pensemos no que fazer depois. Se esses processos forem abafados ou ele
ganhar por conta de influência, vai continuar fazendo merda e a gente sabe
como o sistema é. A chance de ele sair impune é muito grande… Pedro, você
sabe…
-Sim, eu sei… Mas Vívian, vamos tentar pensar juntos e fazer algo de uma
forma que a gente não se foda no processo, por favor?
-Ok, ok… Mas enquanto eu estiver aqui não vou parar de encher seu saco
com esse assunto, viu?
-Viu.
Tratar daquilo foi mais tranquilo do que eu imaginava. Depois da conversa
ficamos a noite vendo filme até dormir. No outro dia só teria aula pela manhã,
então não voltaria para casa com Vívian, também tinha que terminar algumas
coisas pela tarde, mas como estávamos em sua casa, a carona para a escola
era por conta dela. Passar um bom tempo lá também fez com que algumas
roupas minhas já estivessem se apoderando daquele ambiente, então já dava
para tomar banho, escovar os dentes e comer ali mesmo.
Capítulo 14

Os dias se seguiram normalmente, porém dava para perceber uma


diferença de comportamento de Vívian comigo, não tinha muito o que julgar,
pois tinha mentido pra ela sobre algo delicado, quebrado a confiança de certa
maneira, porém acreditava que aquilo iria mudar com o tempo.
Certo dia da semana me encontrei conversando com Paula, Marcelo e
Vívian, ambos estavam com a corda no pescoço tanto quanto eu, porém seus
motivos eram um pouco diferentes. Paula estava a ponto de sair devido a um
corte de gastos da escola, Marcelo por conta da sua relação com o Beto, muito
provavelmente por ele ser racista e desconfiar de Marcelo devido a tarefa
delicada que tinha dado e eu, bem, várias páginas mostram minha relação
com o dito cujo. Vívian era a que estava mais tranquila, porém ela que estava
querendo sair, se conseguisse oportunidade de emprego em outro lugar, sairia
vazada, mesmo que as histórias que Beto estava envolvido faziam com que
ela ficasse mais inquieta e só quisesse sair dali quando tudo estivesse
resolvido.
Marcelo puxou o assunto, enfim:
-Gente, talvez vocês não me vejam aqui nos próximos dias, mas foi um
prazer conhecer vocês, de coração.
Paula exclamou:
-Mas já? Não tá com a peste que aquele homem já começou a demitir as
pessoas daqui.
A conversa ficou contida entre os dois.
-Nisso que dá entrar num emprego sem assinar nenhum contrato básico.
Agora só tenho que me manter em algum outro lugar, que as contas no fim do
mês não vão sumir quando eu sair daqui.
-Te entendo. Meu contrato já tá acabando e acho muito difícil de ser
renovado, inclusive, Pedro, vou precisar da sua ajuda pra mandar alguns
currículos.
Entrei na conversa.
-Pode deixar. Vou fazer de tudo pra que não entre num lugar que te trate
tão mal como aqui, porque qualidade de trabalho você tem.
-Deus abençoe! E você, Vívian, porque tá tão calada, menina?
-Não sei, só tô pensando. Esses dias têm sido bem corridos pra mim.
E era verdade. Além da crise que ela tinha passado, o trabalho estava
puxando muito da gente naquele período, então o cansaço vinha como
consequência, além de estarmos todos a procura de um emprego novo. Por
mais que eu não fosse muito dessa turma, minha relação com Vívian tirou
uma preguiça minha de ficar acomodado nos lugares e isso somado ao fato de
que todo mundo que eu tinha contato estava de saída, resolvi seguir o mesmo
caminho. Que aquele fosse meu último semestre ali.
Dito e feito, Marcelo não apareceu mais na escola e falou com a gente por
whatsapp que Beto tinha oficializado sua demissão. Como já tinha passado
um tempo do ocorrido com o namorado daquela menina que entrou na escola,
todo mundo tinha esquecido, então ninguém sequer comentou a falta do
segurança, só aceitaram, pois a escola voltou a ser como era antes.
Quando isso aconteceu, Vívian teve uma conversa comigo que achei
estranha, foi numa quinta, no intervalo de aulas.
-Pedro, como funciona a escola aqui no sábado?
-Como assim?
-Digo, você tem alguma chave? Tem muita gente trabalhando aqui?
-Dia de sábado isso aqui é um deserto, eu peguei só a chave do cadeado
quando fui mandado trabalhar aqui no dia, se bem que nem precisou porque
tinha o Marcelo. Tá comigo ainda, inclusive tenho que achar, não sei como o
diretor ainda não pediu de volta, talvez ainda queira me botar de plantão.
E soltei uma risada. Esperava que puxasse mais assunto, essa pergunta do
nada foi aleatória. Não que nossas conversas não fosse, mas foi muito
específico. Só voltamos a comer, agora num silêncio que não sabia dizer se
era desconfortável ou calmo.

Com a carga que tinha sido imposta, no sábado tive que acordar cedo.
Felizmente não fui mandado trabalhar na escola, talvez não ter segurança
mais lá fosse o motivo, então apenas passei a manhã trabalhando em casa,
preparando aula e organizando documentos para o evento que viria a
acontecer. Naquele dia só mexi no celular para falar com Vívian, dar bom dia
e coisas simples, mas de resto fiquei ocupado resolvendo meus problemas.
Almocei quando deu meio dia e resolvi dormir pela tarde. Estava com
muito sono acumulado e como tudo estava “bem”, pelo menos na minha
visão, aquele foi um dos sonos mais tranquilos que já tive. Foi longo, sem
pausas e no friozinho que fazia. Até que acordei já pela noite, com água
batendo no telhado e trovões que se intercalavam ao fundo. Estava tendo uma
tempestade, o que deixou o tempo mais frio e a cama mais confortável.
Quando acordei, fiquei olhando para o teto sem nenhuma vontade de sair dali,
estava tão gostoso, mas também tinha vontade de estar daquele jeito com
Vívian, então fui pegar o celular só pra dizer a vontade que tinha pra ela, pois
não seria viável sair de casa naquela tempestade.
Quando peguei o celular, estranhei as notificações de Vívian. Não era
como da última vez, que foram ligações e mensagens desesperadas. Eram
apenas uns áudios enviados há alguns minutos atrás, só que áudios longos,
parecia ter acontecido algo e eu ia descobrir.
Ainda deitado, coloquei o celular no meu ouvido e comecei a escutar, ela
estava ofegante e tinha barulho de fundo como se estivesse arrumando
algumas coisas.
“Ok, talvez você tenha percebido que eu estava um pouco diferente o resto
da semana, me desculpe, mas tinha um motivo. Você disse que tinha visto
aquelas coisas na sala do diretor, então eu mesma resolvi dar uma olhada de
alguma forma, nem que fosse chamando atenção do diretor para que ele me
chamasse na sua sala. Deu certo, por mais que eu tenha feito de uma maneira
diferente… mas isso a gente conversa depois. Eu consegui entrar lá e no
pouco momento que ele não estava, vi em uma de suas gavetas e tudo que
mencionou tava lá. Não cheguei a tirar foto nem nada porque foi muito
rápido, mas como Marcelo não está mais trabalhando e você tinha a chave da
escola, que eu peguei, desculpa novamente, vou lá para dar uma olhada e tirar
umas fotos. Não precisa se preocupar comigo, como não tem ninguém na
escola dia de sábado, acho que não vai rolar nada de ruim, só preciso
descobrir como abrir a porta da diretoria, mas deve ter algum chaveiro na
secretaria ou semelhante. Enfim, beijo, te amo. Desculpa a estranheza, é que
não sou acostumada a esconder coisas…”
Um outro áudio um pouco mais curto tinha sido mandado uns minutos
depois daquele. Ela estava sussurrando e um pouco assustada.
“Pedro, não consegui abrir a porta e acho que tem alguém aqui, não sei o
que fazer, vou tentar sair, mas não sei como. Me desculpa.”
Na mesma hora saltei da cama e corri para pegar a chave de minha casa e
ir até a escola, mesmo com chuva. Não tinha falado pra ela que o diretor
poderia aparecer lá, no estado em que ficava quando bebia. Puta que pariu,
estava completamente maluco. Tentei ligar pra ela, mas a chamada foi
recusada, o que me deixou mais preocupado, então peguei qualquer camisa
que estivesse jogada na cadeira de meu quarto e fui com meu short de futebol
e meu chinelo naquele frio e chuva.
Ignorei todo o frio que fazia, por mais que aquilo pudesse me deixar
doente depois. Corri pelas ruas tomando chuva, em que cada pingo de água
machucava pedaço por pedaço de meu corpo. Fui tomado pelo calor da
ansiedade e da corrida que fazia. Não tinha respiração para correr tanto, então
rapidamente fui ficando ofegante, além de minhas pernas começarem a falhar,
então por mais que estivesse um ar gélido, sentia meu corpo falhando e um
misto de frio com calor. Nunca estive tão desesperado em minha vida,
principalmente pelo medo do que aquele psicopata poderia fazer se
encontrasse Vívian sozinha no prédio, então por mais que faltasse ar em meus
pulmões, continuava a correr.
Na porta da escola, que estava aberta, quando parei senti o efeito do
exercício físico feito às pressas sem nenhum preparo e sem o mínimo
costume, então além daquela sensação horrível no meu peito e o cansaço do
meu corpo, vomitei na calçada daquele prédio, embaixo de uma árvore que
usava para apoiar minha mão enquanto colocava tudo que tinha comido para
fora.
Não tinha tempo para vomitar, não tinha tempo para parar, então entrei e
fui correndo para a diretoria. Ela não tinha conseguido abrir a porta e quem
estava lá pelo jeito não tinha feito nada, pois a porta continuava trancada.
Vívian não estava lá. Poderia gritar pelo seu nome, ou qualquer coisa para
chamar a atenção de qualquer pessoa que ela pudesse ter escutado ali dentro.
Tentei olhar se tinha alguma mensagem a mais no meu celular, porém ele
estava todo molhado e não estava funcionando direito, além de ser horrível
mexer com as mãos também molhadas, porém antes que eu pudesse decidir o
que fazer, apenas pude ouvir o estalo seco que ecoou por todo o prédio.
Minha primeira reação foi largar o celular e correr na direção do som.
Vinha da sala dos professores. Não poderia ser um tiro, não fazia sentido,
mesmo comecei a lacrimejar pelo medo e a ansiedade começou a tomar meu
peito. No meio do caminho, outro estalo, que me fez cair enquanto corria pelo
corredor. Cai por cima de meu braço direito, o que fez a clavícula sair do
lugar. Soltei um grunhido de dor, mas continuei indo para a sala dos
professores, não corria tanto, pois segurava meu ombro direito com minha
mão esquerda.
Na porta daquela sala, o medo e as lágrimas que outra hora apenas
visitavam meu rosto de leve, começaram a sair em uma cachoeira. Não dava
para segurar, além de não dar para entender aquela visão do que tinha em
minha frente.
Sentada no chão, apoiada no sofá que estava encostado na parede estava
ela, Vívian. Uma mão largada no chão, outra segurando o peito por onde
jorrava uma pilha de sangue, enquanto olhava para o teto com aqueles olhos
vazios com a cabeça encostada no sofá com sua boca aberta como se quisesse
gritar.
Fiquei paralisado por alguns segundos, até decidir ir ao encontro de seu
corpo na pequena esperança de encontrá-la viva, mas não, não tinha pulso
mais. Seu celular estava jogado no sofá, na interface tinha minha ligação que
recusou mais cedo.
Abracei ela o mais forte que pude, por mais que aquele sangue agora se
misturasse com o suor e a água do meu corpo. Não sabia o porquê daquilo
estar acontecendo. Então apenas chorei baixinho em seu ombro torcendo para
que tudo fosse um sonho, para que tudo fosse uma mentira da realidade, pois
era ela quem eu tinha para poder colocar os pés no chão e falar “quero viver”.
E sem ela agora, não sei o que seria mais de mim.
Seu corpo estava mole, ainda quente. Tinha acabado de acontecer, se eu
chegasse mais cedo talvez pudesse ter salvo ela, talvez pudesse ter sido eu em
seu lugar, mas não ela. Caralho, ela nunca fez mal para ninguém. Era tão
bondosa com todos, tão amável. Por quê?
Fechei seus olhos, sua boca, encostei meu rosto em seu peito e gritei o
mais alto que pude. Ela tinha ido embora e eu tinha ficado nessa bosta. Queria
ir também, de alguma maneira encontrar ela, mas não sabia o que fazer, não
sabia como. Minha cabeça não estava em pleno funcionamento quando vivi
aquilo, ela só estava tão confusa que não sabia o que pensar, o que fazer, para
onde ir, então a única solução foi ficar chorando abraçado ao corpo daquela
pessoa que verdadeiramente amei, que me trouxe felicidades que duvidaria
que fossem trazidas por terceiros se alguém me dissesse. Não queria acreditar
naquilo que estava em minha frente, não podia.
Após um tempo, tomei coragem de olhar ao redor e, sentado no outro
extremo da parede, estava Beto, do mesmo jeitinho que sempre aparecia
quando bêbado. Com as roupas toda desgraçada, cabelo bagunçado, cheirando
a merda, mas dessa vez não tinha a possibilidade de ser um cuzão, pois, com
os olhos fechados, segurava o revólver em uma das mãos enquanto escorria
sangue de sua cabeça. Também estava morto.
Aquela arma me chamava, não poderia sair dali ileso, não depois de tudo,
não depois de morrer por dentro. Nesse momento minha respiração ficou
ofegante, descompassada. A crise de ansiedade atacava, então meu choro, tal
qual minha respiração, não seguiu nenhum padrão. Tão forte que antes que
pudesse tomar qualquer atitude, apaguei.

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