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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA - UNIR

NÚCLEO DE CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO ACADÊMICO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

RAYLAN FELIPE MACEDO SETÚBAL

O PODER E O (DE)COLONIAL EM BEIRADÃO, DE ÁLVARO MAIA:


OS MICROCOSMOS AMAZÔNICOS

PORTO VELHO
2021
RAYLAN FELIPE MACEDO SETÚBAL

O PODER E O (DE)COLONIAL EM BEIRADÃO, DE ÁLVARO MAIA:


OS MICROCOSMOS AMAZÔNICOS

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação Mestrado Acadêmico em
Estudos Literários, da Fundação
Universidade Federal de Rondônia (UNIR),
como requisito para a obtenção do título de
Mestre em Estudos Literários.

Linha de pesquisa: Literatura, Memória e


Identidade Pan-amazônicas

Orientadora: Profª Drª Mara Genecy Centeno


Nogueira

PORTO VELHO
2021
RAYLAN FELIPE MACEDO SETÚBAL

O PODER E O (DE)COLONIAL EM BEIRADÃO, DE ÁLVARO MAIA:


OS MICROCOSMOS AMAZÔNICOS

Esta Dissertação foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado


Acadêmico em Estudos Literários, da Fundação Universidade Federal de Rondônia
(UNIR), no dia ____ de _______ de 2021, para fins de Exame de Qualificação,
sendo avaliada e julgada _______________ pela Banca Examinadora abaixo
assinada.

BANCA EXAMINADORA:

_________________________________
Profª Drª Mara Genecy Centeno Nogueira
Orientadora/Presidente - PPGMEL/UNIR

__________________________________
Prof. Dr. Miguel Nenevé
Examinador Interno - PPGMEL/UNIR

__________________________________
Profª Drª Sonia Maria Gomes Sampaio
Examinadora Interna - PPGMEL/UNIR

__________________________________
Profª Drª Juciane dos Santos Cavalheiro
Examinadora Externa - UEA

Porto Velho, ____ de __________ de 2021.


A minha mãe,
Maria Luiza Benedito Macedo,
por me oferecer bases e possibilitar
meu desenvolvimento.

A minha companheira,
Alessandra Bastos, pela parceria,
companheirismo e paciência,
em vários momentos desta produção.

Aos meus professores,


pelos ensinamentos
que levarei comigo
pelo resto da minha vida.
AGRADECIMENTOS

Agradecimento especial a minha orientadora, Profª Drª Mara Genecy


Centeno Nogueira, pelas palavras de incentivo na busca de um aprimoramento
pessoal e profissional.
À Profª Drª Fátima Molina, pelas inúmeras aulas e debates. Comprometida
e sincera, sempre buscou ajudar ao máximo.
À Profª Drª Sônia Sampaio, pelas contribuições necessárias e pontuais ao
longo do processo, sempre com falas precisas, atuando na luta pela
descolonização.
Ao Prof. Dr. Miguel Nenevé, exímio conhecedor das obras clássicas, pela
contribuição em diversas falas e inúmeros referenciais.
Ao Prof. Dr. Hélio Rocha, sempre disposto a auxiliar todos os alunos, com
suas observações pertinentes, por toda ajuda e incentivo.
À Profª Drª Marília Pimentel, que me ajudou a organizar as informações,
tornando-as mais acessíveis e didáticas.
Ao Prof. Geraldo Cotinguiba, que indicou várias produções indispensáveis
para abranger grande parte dos conceitos estudados no Programa.
A todos os professores e colegas que fazem ou fizeram parte do Programa
Mestrado em Estudos Literários; mesmo que o contato não tenha acontecido com
todos os envolvidos neste projeto, indiretamente, estão ligados a esta pesquisa
científica na Amazônia.
Agradeço também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) pelo fomento concedido, sem o qual seria muito difícil realizar
esta conquista.
Por fim, agradeço à Universidade Federal de Rondônia (UNIR), por
proporcionar minha capacitação na Graduação e, agora, na Pós-Graduação.
SETÚBAL, Raylan Felipe Macedo. O poder e o (de)colonial em Beiradão, de
Álvaro Maia: os microcosmos amazônicos. 2021. 80 f. Dissertação (Mestrado em
Estudos Literários) - Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em
Estudos Literários. Departamento de Línguas Vernáculas, Núcleo de Ciências
Humanas, Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Porto Velho-RO, 2021.

RESUMO

Esta dissertação apresenta as etapas da pesquisa de mestrado intitulada O poder


e o (de)colonial em Beiradão, de Álvaro Maia: os microcosmos amazônicos. A
referida pesquisa tem por objetivo investigar as representações de poder a partir
das vozes/discursos/posições de personagens da obra Beiradão, de Álvaro Maia
(1999). Através de um contexto socio-histórico, o romance Beiradão remonta à
crônica do desbravamento da Amazônia pelos primeiros nordestinos que,
engodados pelo sonho de riqueza, se deslocaram ao centro da América do Sul,
para atuar no mercado da borracha. Outras personagens sem a origem sertaneja
também ganham visibilidade nessa narrativa. Intrinsecamente, podem ser
observados os modos de operação do poder a partir da posição enunciativa das
personagens e também na relação entre os discursos institucionalizados e os
discursos presentes na obra Beiradão. Por meio dessas práticas de controle, o
capital suplantou seu imperialismo dentro da Amazônia. Como fundamentos para a
análise, foram utilizados estudos de autores do prisma decolonial, como Enrique
Dussel (1992), Aníbal Quijano (2000), Walter Mignolo (2010), que ajudam a
identificar as ações da colonialidade no contexto latino-americano; além disso,
recorreu-se a teóricos que exercitam o entendimento sobre o poder, como Foucault
(1989), a fim de compreender como as redes de poder foram estabelecidas na obra
em análise.
PALAVRAS-CHAVE: Representações de poder – Decolonial – Beiradão – Álvaro
Maia – Amazônia.
SETÚBAL, Raylan Felipe Macedo. Power and Decolonial in Alvaro Maia´s
Beiradão: The Amazon Microcosmpower. 2021. 80 f. Dissertation (Master
Degree in Literary Studies) - Postgraduate Program Stricto Sensu Master Degree
in Literary Studies. Department of Vernacular Languages, Human Sciences Center,
Federal University of Rondônia (UNIR), Porto Velho-RO, 2021.

ABSTRACT

In this dissertation investigate the power representations from the


voices/discourses/positions of characters in the work Beiradão, by Álvaro Maia
(1999). Through a socio-historical context, the novel Beiradão dates back to the
chronicle of the discovery of the Amazon by the first Northeastern people who,
enticed by the dream of wealth, moved to the center of South America in order to
work in the rubber plantations. Other characters without having an origin from the
countryside also gain visibility in this narrative. Intrinsically, the modes of operation
of power can be observed from the enunciative position of the characters and also
in the relationship between institutionalized discourses and the discourses present
in Alvaro Maia´s Beiradão. Through these control practices, capital has supplanted
its imperialism within the Amazon. I get theoretical support from authors such as
Enrique Dussel (1992), Aníbal Quijano (2000), Walter Mignolo (2010), who explore
the decolonial perception of Latin America. They help me to identify the actions of
coloniality in the Latin American context. Moreover, I bring here some ideas from
scholars who exercise the understanding of power, such as Foucault (1989), in
order to understand how power networks were established in Alvaro Maia´s novel.

KEYWORDS: Power representations – Decolonial – Beiradão – Álvaro Maia –


Amazon.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................8

2 DA PAN-AMAZÔNIA AO BEIRADÃO ...............................................................14


2.1 O enredo amazônico .....................................................................................15
2.2 A trama beiradeira em Beiradão...................................................................20
2.3 Os elementos amazônicos............................................................................25

3 DISSOLVENDO A OBRA BEIRADÃO E O BEIRADÃO...................................33


3.1Conhecendo Álvaro Maia...............................................................................34
3.2 A imagética do beiradão e do beiradeiro.....................................................37
3.3 A fortuna crítica de Maia e da obra Beiradão..............................................43

4 A COLONIALIDADE NA AMAZÔNIA BEIRADEIRA.........................................50


4.1 O poder, o pós-colonial e o decolonial..........................................................52
4.2 Espaços do poder: o beiradão e o seringal.................................................59
4.3 O Beiradão decolonial: as vozes da margem................................................64

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................74

REFERÊNCIAS.....................................................................................................77
8

1 INTRODUÇÃO

Buscando resgatar memórias sob uma narrativa literária, Álvaro Maia (1893-
1969) evoca verdadeiros constructos amazônicos que revelam inúmeras faces da
Pan-Amazônia: por um lado, a Amazônia sertaneja,1 composta por imigrantes e
exploradores e, por outro lado, a Amazônia dos povos indígenas2 nativos. Essas
distintas perspectivas produzidas por Álvaro Maia projetam, na literatura, uma ideia
singular sobre alguns dos microcosmos culturais que se formam e compõem a Pan-
Amazônia, espaços distintos que comportam acontecimentos singulares e que
rompem, deste modo, com as fronteiras geográficas e abstratas que categorizam a
Pan-Amazônia e seus grupos. Classificações, geralmente simplistas, ignoram a
diversidade cultural dessa macro região.
Beiradão (1999), objeto de estudo da presente dissertação, com um
diversificado vocabulário de expressões locais, reconta diálogos precisos entre as
personagens e os enunciados de um narrador onisciente, as vidas que se cruzaram
nesse imenso palco verde e como as adversidades, então inéditas, ajudaram a
forjar a identidade das pessoas que se desenvolveram no beiradão, local situado
às margens dos rios, onde vivem os ribeirinhos, também chamados beiradeiros.
Um dos pontos abordados pela obra diz respeito à trajetória de nordestinos
pobres ou empobrecidos pela vasta seca que assolou o Nordeste, os quais
encontraram na Amazônia um novo caminho a seguir. Consequentemente, com
essa realocação, toda a estrutura social desse grupo sofreu grandes mudanças e
foi necessário se restabelecer nessa outra localidade, com outras características
gerais. Por outro lado, os nativos3 originários da região amazônica passaram a
conviver cada vez mais de perto com pessoas e costumes com os quais, até então,
eles nunca tiveram contato.
Essa migração criou encontros e desencontros cada vez mais diversificados,
não apenas entre as populações vindas do Nordeste, mas também com os diversos

1
Amazônia sertaneja - núcleo social formado na Amazônia por migrantes nordestinos que, ao chegarem na
região, imprimiram seus costumes e vivências do sertão brasileiro.
2
Amazônia dos povos indígenas - núcleos sociais formados pelos nativos amazônicos, sem a influência de
costumes externos ou recusando-os.
3
Por se tratar de uma abordagem decolonial, o termo índio foi propositalmente substituído por nativo. Se os
nomes das etnias a que se refere o texto da obra aparecerem, serão mencionados.
9

grupos que já habitavam a região - indígenas de diversas etnias, bolivianos, antigos


exploradores, dentre outros sujeitos que viviam nas proximidades das paragens
beiradeiras.
A primeira edição do romance Beiradão saiu em 1958, a segunda foi lançada
em 1999 e a terceira em 2019, ou seja, 61 anos depois de sua primeira edição .
Optamos por utilizar a segunda edição da obra, pois, no período em que
procedemos a análise, não nos foi possível o acesso à primeira. Alcides Werk
(1999), poeta nascido na Amazônia, considera a obra Beiradão uma crônica do
desbravamento de imensas áreas amazônicas. Experienciando o objeto de estudo,
já na apresentação da obra, o leitor é inserido em um universo amazônico que
envolve as personagens em um jogo de poder típico do período da borracha na
Amazônia.
A dualidade entre as sensações de espaços de familiaridade e outro espaço
aparentemente desconhecido nos intrigaram de uma maneira particular, fazendo-
nos estabelecer contato direto com os efeitos estéticos propostos por Maia (1999);
assim, conectamo-nos aos pontos de ações e situações que, aparentemente,
tiveram suas ligações encobertas pelo tempo e por enunciados tendenciosos.
Através de um texto bem elaborado e atento aos detalhes da vida na Pan-
Amazônia, a história proposta por Maia (1999) vai se modelando nas paragens
ribeirinhas da Amazônia brasileira, enquanto os emaranhados de acontecimentos
vão se desenrolando. Em certas ocasiões, a percepção das delimitações entre o
fato e a ficção acaba sendo esquecida pela dimensão estética da obra, visto que o
que é contado possui possibilidades de ter acontecido de fato, tendo em vista o
recorte temporal do romance e o lugar da narrativa. Contudo, logo em seguida aos
atos de maior tensão, essas delimitações são relembradas, ainda que para serem
confrontadas com as realidades fora do romance.
Márcio Souza, importante escritor e intérprete da Amazônia através de textos
acadêmicos e literaturas de expressão amazônica, criador do célebre romance Mad
Maria (1980), ressalta, no paratexto editorial de Beiradão (1999), a importância de
Álvaro Maia para sua época, como escritor e poeta, afirmando que, naquele tempo,
a juventude esquecia a poesia em troca de um prato de jaraqui (peixe comumente
utilizado na culinária amazônica), remetendo-se, possivelmente, ao contexto
10

dramático dos tempos da crise do mercado da Hevea brasiliensis, que resulta até
mesmo na escassez de alimentos para vários indivíduos.
Certamente, ao dar visibilidade a determinadas situações que ocorriam
nesse espaço amazônico, Álvaro Maia nos permite visualizar uma ideia de
microcosmos culturais no arcabouço social de representações da Pan-Amazônia e,
sobretudo, na/da Amazônia brasileira. Ora, se num espaço consideravelmente
reduzido diversas manifestações culturais de grupos humanos puderam florescer
de maneira tão diversificada, num olhar mais amplo, outras inúmeras possibilidades
certamente existiram e ainda existem, espalhadas pela imensidão verde da
Amazônia e todo seu alcance, camufladas ainda hoje pelo discurso difuso e
arbitrário, fruto da colonialidade na produção do saber e na concepção de natureza
como recursos naturais. Decerto, sua contribuição nos ajuda a entender uma ideia
de Amazônia plural e diversificada, em contraponto a uma Amazônia única,
mistificada, marginalizada e periférica.
Ao estabelecer esses paralelos que envolvem a construção literária do
romance, ou melhor, ao discernir o texto como fato linguístico, fundido no contexto
da Amazônia sertaneja, percebemos certa proximidade entre as capacidades
funcional e estrutural do romance com as figuras que representam esse modelo de
vida: personagens que, na relação entre o ser vivo e o ser fictício, se revelam sendo
um a concretização do outro (CANDIDO, 2006).
Intrinsecamente, observamos o modo de operação de como os preceitos da
colonialidade se reproduzem sobre os colonizados. Através do controle construído
e constituído na região, por mecanismos do poder, em ideias misóginas, baseadas
num suposto conhecimento geral de superioridade racial, tais preceitos
suplantaram, dentro das representações sobre a Amazônia, uma espécie de
dinastia etnocêntrica, eurocentrada e ocidentalista, baseada em uma ideia
construída como “verdade”, inventada com base no mito da modernidade. Desse
modo, aos povos originários ficam reservados espaços cada vez mais
marginalizados, bem como são reduzidos a um único grupo: o índio (da maneira
mais genérica possível).
O incremento dessas suposições dentro da engrenagem do saber alimenta
ideias misóginas, como dito anteriormente. Essas modificações ou aspectos
políticos se externam sob a face do poder. Michel Foucault (1979), na obra
11

Microfísica do poder, problematiza em torno de como essas “verdades” são criadas


através de uma “modificação nas regras de formação dos enunciados que são
aceitos como cientificamente verdadeiros” (FOULCAULT, 1979, p. 4). O autor
afirma que:

O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como


estes se regem entre si para constituir um conjunto de proposições
aceitáveis cientificamente e, consequentemente, susceptíveis de
serem verificadas ou infirmadas por procedimentos científicos. Em
suma, problema de regime, de política do enunciado científico.
Neste nível não se trata de saber qual é o poder que age do exterior
sobre a ciência. Mas que efeitos de poder circulam entre os
enunciados científicos; qual regime interior de poder; como e por
quem em certos momentos ele se modifica de forma global
(FOUCAULT, 1979, p. 4).
Edward Said, por sua vez, através de sua observação contida na obra
Orientalismo (...), nos apresenta um dos alicerces para a dominação ocidental.
Segundo o referido autor, essa dominação é sustentada na produção do Outro. Sob
essas bases propostas por Said e outros autores que veremos no decorrer da
dissertação, Anibal Quijano em sua leitura sobre a Colonialidade, no caso da
américa Latina, aproxima as discussões em torno do controle colonial da região
Amazônica.

Ao nos deparar com essas observações, fomos movidos por um propósito


específico: analisar, entender e estruturar as representações do poder que se
manifestavam através dos efeitos estéticos da obra Beiradão, tendo como norte os
princípios da teoria decolonial. De fato, não temos pretensão de construir uma
tabela valorativa de ações, a fim de englobá-la numa regra geral, definitiva e
absoluta; tampouco intentamos convencer a todos do que é o certo a se fazer ou
até mesmo lhes apresentar uma verdade absoluta. Contudo, é possível vislumbrar
que algumas ações representadas pela obra Beiradão - nos lugares específicos em
que elas aparecem e sob condições únicas - revelam não só um discurso
colonizador, mas também a brava resistência de povos nativos frente a essas
condições.
Através dessas observações, percebemos como a ideia da ‘naturalização’
mitológica das categorias básicas da exploração/dominação é uma ferramenta de
poder extremamente poderosa, pois naturaliza um discurso puramente inventado
12

(QUIJANO, 2009). É válido lembrar que a proposta de uma leitura do decolonial do


poder, através da obra literária Beiradão, não visa deslocar a análise literária para
um lugar afastado, no âmbito das discussões científicas, para dar visibilidade maior
a questões políticas, econômicas, geográficas ou quaisquer outros aspectos
relativamente externos à proposta dos estudos literários. Pelo contrário, o romance,
como criação literária, ocupa espaço central no plano de análise e posição
essencial para a construção desses efeitos que, assim, podem ser abordados em
conjunto.
No entanto, é preciso que o intelectual compreenda que faz parte desse
sistema de poder e que está numa posição de lutar contra ele na sua forma mais
insidiosa e invisível (FOUCAULT, 1979). Por isso, mesmo sendo um romance de
proposta realista, que mistura história e ficção, é importante que se saiba que a sua
estrutura é independente; contudo, não é orientado desconsiderar totalmente
alguns fatores externos, pois eles podem ser analisados como “fator da própria
construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo” (CANDIDO,
2006, p. 15).
A escrita de Beiradão comporta uma releitura descolonizadora não só por
dar voz a grupos marginalizados da Amazônia beiradeira, mas também por
questionar aspectos sobre a própria colonialidade que ali foram representados. A
solidão, a fome, o frio, as dívidas, os castigos, as vinganças, tudo isso expõe o
controle da economia, da autoridade, da natureza, dos recursos naturais, de gênero
e da sexualidade, da subjetividade e do conhecimento. Todos esses aspectos
delineiam o caminho pelo qual os estudiosos decoloniais remontam a noção de
colonizados e colonizadores, de “civilizados” e “primitivos”, de superiores e
inferiores, de pobres e ricos, entre outras formas de classificação. Esses são
aspectos importantes, trabalhados pela narrativa de Beiradão.
A obra Beiradão possui pouquíssima análise no campo científico. Álvaro
Maia, o autor, possui razoavelmente mais destaque em meio às produções
acadêmicas e científicas. O estigma de cidadão público, político e a figura de
interventor federal pode ter colocado algumas das obras de Maia sob sua sombra
durante muito tempo. Sabemos que a atuação político-partidária reverbera uma
noção de parcialidade que, em muitos casos, não é aceita academicamente
falando. O fato é que Álvaro Maia produziu uma excelente obra e que essa obra
13

possui autonomia no universo literário, sendo função do pesquisador indicar os


pontos que ligam suas representações a determinada ideologia ou a ausência
delas.
Nesse contexto, a proposta estrutural desta dissertação, além desta
introdução, que consiste da Seção 1, compreende mais quatro seções, a saber:
 Seção 2 - discorremos sobre as representações em torno da Amazônia e do
beiradão amazônico, dando visibilidade a aspectos gerais da obra em
análise e da tessitura amazônica pela literatura. Como subtemas,
consideramos: os processos simbólicos; a participação dos viajantes na
formação do discurso amazônico; a associação entre a natureza e os
indivíduos; o contexto sociocultural e histórico; as vozes das personagens;
as ambientações na floresta amazônica.
 Seção 3 - apresentamos ao leitor uma breve introdução sobre quem foi
Álvaro Maia, bem como algumas de suas principais produções e feitos; além
disso, descrevemos a construção do espaço que ficou conhecido como
beiradão, sua geografia e sua imagética. Em seguida, trazemos uma
compilação das produções em torno da obra Beiradão. Nos subtemas dessa
seção, fazemos uma apresentação mais elaborada sobra a vida e obra do
autor Álvaro Maia e sua fortuna crítica, de modo a melhor compreender a
obra objeto de nossa análise, assim como situar o autor e a obra Beiradão
no estado da arte e fortuna crítica.
 Seção 4 - analisamos a obra Beiradão à luz das teorias decoloniais, da
colonialidade do poder e dos aspectos gerais do poder como forma de
controle entre as micro tramas do enredo. Vale lembrar que as teorias
decoloniais são desdobramentos, também, das discussões e estudos sobre
o poder.
 Seção 5 - tecemos nossas conclusões e considerações sobre o trabalho
desenvolvido.
14

2 DA PAN-AMAZÔNIA AO BEIRADÃO

Brotava uma geração


socializada e galvanizada pelo sofrimento:
sentia-se feliz e tranquilo, vencera a vida,
sem ambições desmesuradas,
e poderia caminhar para dois pontos supremos.
– o nada de seu corpo oferecido a terra jovem,
e o todo do seu espírito
integrado à eternidade da luz
(MAIA, Álvaro, 1999, p. 378).

A linguagem é peça-chave para produção do conhecimento. No âmbito


científico não é diferente. A linguagem é fundamental para a comunicação/interação
entre sujeitos e para disseminação de informações, podendo criar uma rede de
relações ainda maior entre os seres humanos e suas projeções do saber.
As narrativas literárias, assim como os trabalhos científicos, são formas
pelas quais a linguagem também se constrói; assim, as obras literárias passam a
ter condições de serem observadas por várias outras óticas do saber. Essas
observações geram debates, críticas, consensos, conselhos e outras formas de
conexão, mas tudo isso só é possível se a produção escrita desse conhecimento
tiver contato tanto com o aparelho acadêmico quanto com a sociedade alfabetizada
em geral, ou seja, a produção precisa ser lida.
Nesta seção, apresentamos o romance Beiradão com suas principais
características, resumos sobre a estrutura e história, com ênfase nos elementos
que compõem a narrativa, extraindo do texto o contexto de produções sobre a
Amazônia. Ressaltamos ser de grande importância ilustrar o processo pelo qual a
literatura e os relatos abarcaram o alicerce de simbologias amazônicas, para que
se possa entender minimamente o desenvolvimento desse processo.
Cada uma das subseções contém uma breve análise sobre conceitos como
“Amazônia inventada” e “mito da modernidade”; entretanto, o aporte teórico
substancial, que corresponde às teorias de representação do poder no espectro
decolonial, será abordado de maneira mais intensa e direta nas seções posteriores.
15

2.1 O enredo amazônico

O histórico em torno do enredo amazônico é vasto e quando optamos por


apresentá-lo desta maneira (como enredo) é porque entendemos que muitas de
suas construções fazem parte de um espaço no qual a ficção e a realidade se
misturam. Por isso, “a análise crítica, de fato, pretende ir mais fundo, sendo,
basicamente a procura dos elementos responsáveis pelo aspecto e o significado
da obra, unificados para formar um todo indissolúvel” (CANDIDO, 2006, p. 15).
Esse enredo abarca de viajantes a romancistas, de cronistas a poetas, de
expedicionários a funcionários, dentre outros tipos de produtores de conhecimento,
que usaram de romances, documentos, relatórios, diários para firmar um discurso
externo sobre a Amazônia. A esse respeito, Sampaio e Nogueira comentam:

Valendo-se de discursos “civilizatórios”, os colonizadores ibéricos,


ao chegarem à outra margem do Ocidente e se depararem com
homens completamente diferentes e com traços culturais diversos
dos seus, passaram a classificar os nativos e a impor códigos
ordenadores como forma de retirá-los da barbárie e,
consequentemente, do estágio que o colonizador definia como
sendo de letargia, uma vez que viviam sem lei, sem fé e sem rei
(SAMPAIO; NOGUEIRA, 2020, p. 79)

Uma circunstância peculiar que chama a atenção, quando se olha para essa
composição de uma maneira mais crítica, é que a tendência de muitos
lugares/situações será sempre a partir de um determinado olhar, com inúmeras
questões por trás. No caso da Amazônia, a imagem de um conjunto é difícil de ser
apreendida, sobretudo a partir daquilo que informam os documentos oficiais, pois
tende a uma imagem não heterogênea.
É preciso ter esta multiplicidade de olhares e de vozes sobre um determinado
lugar, sobre os sujeitos que habitam o lugar. Através da literatura, conseguimos,
em partes, este olhar outro, de modo a ouvir a voz de uma heterogeneidade de
sujeitos, nativos ou não, pois grande parte da percepção e concepção que temos
hoje sobre a Amazônia é construída por um discurso que força uma imagem
deformada ou até mesmo irreal do cidadão amazônico e do próprio território.
16

Convém deixarmos claro que existe uma tensão dual entre conceitos
representativos sobre a Amazônia: de um lado, o discurso do “mito modernidade”4
se faz pela ótica do etnocentrismo ocidentalista europeu; de outro, uma visão mais
recente coexiste e resiste em enfrentamento à primeira, buscando reconstruir
perspectivas com mais intimidade e vivência com as pessoas e o lugar, que é a
visão descolonizadora. A esse respeito, Dussel (1993) nos ajuda a compreender o
que é a modernidade e seu mito; segundo o autor,

[...] o “conceito” mostra o sentido emancipador da razão moderna


com respeito a civilização com instrumentos, tecnologias estruturas
práticas políticas ou econômicas menos desenvolvidas, ou ao
menor grau de exercício da subjetividade. Mas, ao mesmo tempo,
oculta o processo “de dominação” ou “violência” que exerce sobre
outras culturas. Por isso, todo o sofrimento produzido no Outro fica
justificado porque se “salva” a muitos “inocentes”, vítimas da
barbárie dessas culturas (DUSSEL, 1993, p.77).

No conceito explanado pelo autor, percebemos haver uma ponte ligando a


sabedoria e a produção de conhecimento dos povos nativos do passado e do
presente, que busca reparar os danos por eles sofridos, bem como contribuir com
as ciências e a novas tecnologias através de uma visão da natureza como fonte de
vida e não apenas de recursos naturais, fonte de economia. É uma visão que
valoriza a do ser originário amazônico. Contudo, o saber que mais alcança a
sociedade na qual vivemos está relacionado ao primeiro modelo desses discursos.
Dessa forma, a Amazônia é uma região cujo traço mais geral é o de ter sido
construída por um pensamento externo a ela (PIZARRO, 2012).
Na obra Beiradão, a cultura Amazônica representa o segundo grupo; é uma
cultura que foi reprimida, desvalorizada e encoberta durante muito tempo. No
entanto, o encobrimento cultural causado pelos europeus não aconteceu apenas
nas terras do “Novo Mundo”. Nos continentes africano e asiático, esse
encobrimento cultural ocorreu de maneira similar.
A partir do século XX, novas teorias investigativas surgiram, rompendo o
dogma instaurado na produção do saber como ferramenta de poder, inspirando a
construção de um pensamento fronteiriço e independente das teorias

4
De acordo com Dussel (1993, p.75), o mito da modernidade consiste “em vitimar o inocente (o Outro)
declarando-o causa culpável de sua própria vitimação e atribuindo-se ao sujeito moderno plena inocência com
o respeito ao ato sacrifical”.
17

colonizadoras. Os novos questionamentos trouxeram à tona questões acerca do


perspectivismo na formação dessas teorias. Cada uma representava um ponto de
vista distinto nesse plano. Devemos lembrar que “todo conhecimento, seja ele
científico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são as
condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber”
(MACHADO, citado por FOUCAULT, 1979, p. XXI); contudo, as políticas utilizadas
pelos colonizadores se pautavam numa injustificável violência, banalizada por uma
teoria de superioridade racial, aceita e incentivada pela religião, pela igreja e líderes
religiosos europeus e até mesmo por parte da comunidade científica.
O processo pelo qual se deu a construção desse discurso colonizador e
preconceituoso se firmou e ganhou status de “verdade” está intrinsecamente ligado
às ações dos países renascentistas europeus no século XVI, sobretudo Espanha e
Portugal, que foram as primeiras “regiões da Europa a ter a “experiência” originária
de constituir o “Outro” como dominado e sob o controle do conquistador, do domínio
do centro sobre a periferia” (DUSSEL, 1993, p. 15).
A partir dos relatos dos primeiros peregrinos, missionários, viajantes e
comerciantes, a Amazônia - ou melhor, a ideia de Amazônia normatizada como
marginalizada - foi inventada já com a noção de periferia, de lugar mistificado. Esse
tipo de conhecimento é fundamentado pela historiografia greco-romana, em
derivação da construção da Índia (GONDIM, 1994).
Baseado na diferença, tal discurso subjugava os nativos das Américas,
incluindo os povos nativos amazônicos, seja por seus costumes, religião, corpos,
alimentação e/ou tudo aquilo que os afastasse do inventado padrão moderno de
“ser evoluído”. Deste modo, foi construído o ideal da categorização do “Outro”. Vale
lembrar que o continente hoje conhecido como americano possuía diversos nomes,
atribuídos pelos variados grupos que o habitavam originalmente, tais como
“Cemanáhuac dos Astecas, Abia Yala dos Kunas do Panamá, Tahuantisuyo dos
Incas... diversos nomes autóctones para um continente já humanizado em sua
totalidade quando Colombo chegou” (DUSSEL, 1993, p. 99).
Essas provas atestam que os povos originários possuíam uma cosmologia
autêntica, uma historiografia repleta, micro linguagens capazes de abranger um
continente inteiro; porém, durante um longo período, esses povos tiveram que se
curvar aos efeitos da colonialidade. Conforme explica Márcio Souza (2019),
18

Quando os europeus chegaram, no século XVI, a Amazônia era


habitada por um conjunto de sociedades hierarquizadas, de alta
densidade demográfica [...]. Essas sociedades foram derrotadas
pelos conquistadores, e seus remanescentes foram obrigados a
buscar a resistência, o isolamento ou a subserviência (SOUZA,
2019, p. 47).

Aníbal Quijano (2009), em seu estudo denominado Colonialidade do poder


e classificação social, presente na obra Epistemologias do sul, uma das referências
para os estudos decoloniais, submete esse discurso colonizador a uma estrutura
de dominação/exploração denominada colonialidade. Segundo Quijano (2009, p.
73),

A colonialidade sustenta-se na imposição de uma classificação


racial/étnica da população do mundo como pedra angular do
referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e
dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana
e da escala societal. Origina-se e mundializa-se a partir da América.

Entender o enredo amazônico é compreender como as nuances entre o que


é tecido sobre a Amazônia, quem o faz e o contexto envolvido nessas produções
afetam o desenvolvimento dos enunciados sobre uma imagem existente e interna
à própria Amazônia, mas não é só. Entender o enredo amazônico é conhecer
melhor o Beiradão e o beiradão - espaço extra ficcional - e tudo o que ele
representa. Por isso, nesse caminho, as teorias decoloniais e pós-coloniais nos
ajudam a realizar essas pequenas quebras, identificando as convenções do
discurso colonizador em obras literárias, a fim de resgatar a voz do indivíduo
encoberto, do subalterno, do sujeito inventado e colocado à margem de uma
sociedade.
Na obra Beiradão, é possível distinguir o discurso colonizador dos discursos
descolonizadores. Álvaro Maia utilizou o discurso colonizador em vários momentos,
como recurso estético de contravenção, de contato com o normatizado,
representações descolonizadoras; porém, percebe-se, como um de seus objetivos,
desvelar as sensações de “verdades” por de trás das aparências, de questionar
aquilo que torna a fama dos sujeitos amazônicos, de representar a metamorfose
19

dos corpos e da moral na sociedade beiradeira. Essa descontinuidade se dá graças


às novas formas de análise proporcionadas pelos estudos culturais e literários.
Beiradão conta a história silenciosa do desbravamento amazônico, através
de inúmeras perspectivas apresentadas sob o olhar de cada personagem. Elas
representam os dramas da existência na Amazônia beiradeira. Cada personagem
representa um microuniverso amazônico distinto, inserido no mosaico da retentiva
popular.
Repleta de suspense, humor e tensão, a escrita da obra nos mostra como
eram compostas as primeiras sociedades que se formaram aqui (seus dilemas,
problemas e essências únicas, que se manifestaram no cenário amazônico). O
romance, como relação afetuosa e não como construção literária, se dá
principalmente, ao que nos parece, entre os seres e a terra. Essa ligação se
estabelece e se fixa de tal forma que, mesmo após o retorno à terra de origem,
aquelas personagens que se instalaram e criaram raízes na localidade não
conseguem mais abandoná-la. Segundo Neide Gondim:

O abnegado, o missionário, o aventureiro, fazem parte do mosaico


que representou a conquista da Amazônia. As ocorrências
criminosas contra impúberes são justificadas como inerentes
aquele período inicial, desenvolvido paralelamente com a cobiça e
a aventura. Não mais prisão, inferno, ou éden, mas a compreensão
de uma natureza rica, variada e ao mesmo tempo inclemente nos
seus ciclos climáticos (GONDIN, apud MAIA, 1999, p. 19).

A presença da natureza é tão constante que, por vezes, parece


imperceptível. Contudo, de maneira precisa, a natureza rege a maioria dos
acontecimentos: dramas que comportam mazelas, como as mortes inesperadas,
violências premeditadas e banais; todavia, há também as vitórias diárias, como o
nascimento em situações complicadas, fartura de alimentação, bebidas, festejos e
alegria em alguns momentos que podemos considerar como “estáveis” se
comparados com os tempos de crise.
É isso que Beiradão nos conta: a luta pela vida contra a solidão, contra a
fome, contra a vingança, tendo como palco a imensa floresta amazônica, rica de
recursos estéticos únicos.
20

2.2 A trama beiradeira em Beiradão

Anteriormente, falamos da construção da Amazônia como enredo, levando


em conta a relação entre os enunciados que a formam e suas perspectivas
distintas. Neste segundo tópico, iniciamos a tratar do nosso objeto de pesquisa,
falando da composição de sua trama, considerando a estética do contexto e a
perspectiva de algumas das personagens.
A trama de Beiradão se desenrola a partir de uma narrativa
predominantemente construída por um narrador onisciente, neutro, que descreve
sobretudo a vivência e os contornos que envolvem a personagem Fabio Moura, um
ex-seminarista do estado do Ceará, que busca na Amazônia a oportunidade de
mudança de vida em decorrência de sua situação em Crato. A Amazônia oferece
um novo caminho a Fábio. A seca, por outro lado, forçou os padres a fecharem os
seminários no Nordeste e muitas famílias tiveram a necessidade de se realocar em
outro lugar. A juventude de Fábio Moura é marcada por escolhas drásticas e pela
responsabilidade de manter-se vivo, como relatado no seguinte trecho:

As secas e os desvarios políticos devastaram os sertões, corroendo


o cerne de velhos troncos familiares. Fábio cursava o seminário do
Crato quando desabou uma das maiores estiagens do fim do
século, bebendo rios, açudes e cacimbas. O leito dos batatais
fulgurava nos areais e não oferecia água, mesmo cavando metros
a dentro. Salvaram-se apenas minguadas fontes na Serra do
Araripe, que não supriram as precisões do gado e do homem. O
superior do seminário, na impossibilidade de manter o internato,
aconselhou a retirada dos alunos. Muitos não regressariam mais.
Os dezoitos anos de Fábio foram envelhecidos, de momento, pela
determinação – sair do seminário e, pela ruína da família,
desesperada pela morte dos seus chefes, procurar o destino em
outras terras (MAIA, 1999, p. 55).

Álvaro Maia faz questão de mencionar que os desvarios políticos são um dos
principais responsáveis pelas misérias que se alastraram com a seca da região
Nordeste. É comum observamos a seca, um fenômeno natural, ser idealizada como
a principal causa desses males, atribuindo aos responsáveis públicos um
imobilismo estratégico. Em Beiradão, esse é imobilismo é questionado, visto que
evidencia o descaso, a falta de planejamento e possíveis atos de corrupção, o que
torna ainda mais drástico o período de seca.
21

Fábio Moura é personagem chave para a trama, pois é a partir dele que o
tecido ficcional é entrelaçado: “Fábio levantava o censo de vivos e desaparecidos”
(MAIA, 1999, p. 43). As viagens para a realização do cálculo de vivos ou
desaparecidos, na maioria das vezes mortos, proporcionam a Fábio o contato com
diferentes personagens, como o advogado Firmo Segadais, o Padre Silveira, o
coronel Francisco Moreira e outros tantos que aparecem apenas em algumas
cenas, representando algumas ocasiões da vida do cidadão amazônico.
Fábio Moura está numa posição privilegiada, se compararmos a outras
personagens da obra, na maior parte do período narrado em Beiradão, sem
desconsiderar a luta de Fábio desde sua juventude até a vida adulta. A questão é
que, ao chegar na região Amazônica, Fábio exerceu funções que lhe davam certo
poder. Contudo, o lugar de fala de Fábio não tira sua capacidade de leitura da/sobre
Amazônia, no sentido de entendê-la e vivenciá-la.
Há alguns questionamentos que envolvem a representação de Beiradão.
Alguns escritores afirmam que a obra e algumas de suas personagens não são fiéis
ao que o beiradão é de fato, por apresentarem o homem amazônico de uma forma
inverossímil. Entretanto, as multifaces da região amazônica não nos permitem criar
um estereótipo do sujeito amazônico; no máximo, podemos defini-las ao tratar dos
grupos culturais, de maneira etnográfica, mas é impossível avaliar suas
microsubjetividades numa escala valorativa, o que torna as escritas de Beiradão e
de Álvaro Maia representações da Amazônia, sendo uma das inúmeras faces das
literaturas de expressões amazônicas.
Possuidor da propriedade na localidade de Puruí, Fabio fiscalizava os
seringais da região. Através dessa personagem, a narrativa poética amazônica
beiradeira se faz presente, com certo tom descritivo-naturalista, conforme podemos
verificar nos fragmentos a seguir:

[...] Fabio lera bastante sobre as noites na selva, sobre a “selva


adormecida”, e observava que a selva não dorme jamais. Alegra-
se com a luz, mas, na escuridão, vidas diferentes se agitam.
Morcegos bolem nas folhas, bichos e aves acendem olhos rubro,
farejando presas.
[...] Ouviam-se urros de onças, seguindo-se-lhe gemidos de cutia,
sangrados com sofreguidão. Sucurijus pegajosas preparam os
botes nos baixios e bamburrais. Nas noites tenebrantes, escorria
sobre as criaturas uma harmonia funérea, e os raios das estrelas,
22

perfurando folhagens em lustre e verticais, lembram velórios


intermináveis (MAIA, 1999, p. 51).

Próximo a Fábio Moura está a personagem Padre Silveira, que o acompanha


muitas vezes nas viagens pelos rios amazônicos, para a realização dos sensos e
cobranças de tributos para igreja e para o estado. Padre Silveira funciona como a
representação das funções que a igreja católica exercia naquela época e, ao
mesmo tempo, como contraste e complemento de uma das fases de Fábio Moura.
Ambos possuem uma criação com base religiosa, porém, ao adentrar no novo
espaço, suas personalidades morais tomam rumos distintos. Enquanto o Padre
Silveira se mostra mais condescendente com algumas situações que não seriam
normais em outros lugares, como no Nordeste, em determinando pontos, Fábio é
demasiadamente conservador, talvez por ser um ex-seminarista.
Firmo Segadais é outra personagem que aparece com pouca frequência, em
comparação a Fabio, mas tem importância para a composição estética da obra.
Segadais elenca a primeira microtrama do romance: uma narrativa breve sobre um
de seus feitos, os quais ganham visibilidade do decorrer da construção da narrativa,
além de ser um dos amigos mais próximos de Fábio. Salientamos que, por ser esta
a primeira passagem sobre Segadais, ela tem posição fundamental na estrutura do
romance; é através dela que o narrador cria o primeiro contato com o leitor,
apresentando a proposta do enredo e da sistematização da narrativa. Esse leitor
pode ser cativado, interessando-se ou não pela obra. Se levarmos em consideração
essa circunstância, podemos afirmar que Segadais tem a função de apresentar a
obra, num sentido lúdico, preparando o leitor para a sequência da urdidura.
Segadais é um jovem advogado, formado em Fortaleza, que vem para a
região a convite do coronel Francisco Moreira, que detinha certo poder naquela
região. Rapidamente conseguiu algumas boas causas que o fizeram permanecer
no local. Seu objetivo, antes de ingressar na jornada rumo à Amazônia, era juntar
economias para abrir um escritório na capital e, futuramente, retornar para o
nordeste. Para realizar seu proposito, Segadais precisa se descontruir e
reconstruir-se, criando uma “falsa personalidade”; é uma personagem que atua
como outra personagem, dentro da circunstância na qual se encontra. Vejamos
melhor essas características na seguinte citação:
23

[...] Teria de fingir uma falsa personalidade, um Segadais número


dois, envergar uma capa furta-cor para poder vencer: igrejeiro de
sacristia, sem ser bom católico, defensor do partido oficial, sem ser
conservador, adepto do matrimônio, sendo divorcista. Em contrário,
não abiscoitaria uma causa, nem de réu miserável da prefeitura. [...]
Segadais amoldou-se manhosamente às imposições e começou a
amealhar os cobres para o futuro escritório (MAIA, 1999, p. 29).

Diferentes de Padre Silveira e Segadais, outras personagens aparecem com


mais celeridade nas passagens da obra; tais personagens compõem um campo
estético fundamental para a obra, uma vez que preparam o leitor para as situações
seguintes. As personagens secundárias representam microtramas amazônicos que
evidenciam questões sobre a violência, os costumes, os ritos, as dificuldades da
vida do sujeito amazônico e em que espaço esses acontecimentos sucediam. Por
isso, a ordem das passagens de cenas e microtramas é um dos alicerces para os
efeitos de sentido da obra. É através dessas microtramas de personagens
secundárias que as histórias mais fantásticas se mostram.
Algumas dessas personagens perdem seus nomes, algo comum no período
representado, que são substituídos por algumas de suas funções ou de algum
acontecimento marcante com o referido sujeito, como por exemplo: Zé dos
Espíritos, Zé da Mata, Zé do Forró, entre outros, todos rebatizados; os nomes que
possuíam vão sendo esquecidos com o passar do tempo, indicativo de que sua
subjetividade está sendo encoberta e substituída por uma atribuição ou trauma, ou
melhor, cada vez mais reduzida, colonizada, como discutiremos posteriormente.
Essas microtramas da narrativa entram e saem da história de maneira
abrupta e conseguem elucidar com bastante precisão a circunstância na qual as
personagens estão inseridas, como no caso de Jaime Furtado, em uma das
primeiras passagens de curta duração dentro da obra. Vale lembrar que nem todas
possuem a mesma duração e nem o mesmo sentido estético que a passagem a
seguir, porém é importante observá-la, para que tenhamos em mente a relação
entre a construção estrutural e a construção dos efeitos de sentido:

Rememorou-lhe a passagem de Jaime Furtado pelas fazendas


próperas do Pará. Comprometido nos sertões, viajou para o norte
e conseguiu uma promotoria interina no baixo Amazonas. Viera
economizar para o casamento, - despesas com o juiz e o padre,
passagens, volta à Amazônia. A noiva fica aos cânticos da igreja e
costurando enxoval. Passaram-se meses. Jaime Furtado, com
24

remorso a agulhar-se a melindrosa consciência, unira-se à


fazendeira cabocla. E explicava a melindrosa situação.
- Adoeci e estava sozinho, acordando e dormindo com pensamento
no sertão. Fui convalescer na fazenda, no baixo Amazonas. Leite
mugido, filés, peixes vivos, frutas, assistência carinhosa da família.
Pela manhã, ao levantar-me, olhava os campos, borrifados de
chuva, onde babujavam bandos de marrecas. Bois e cavalos, às
centenas, avermelhavam o capinzal. A filha única do proprietário
chegou de Belém. Você calcula o resto. Meditei muito e cedi à
poesia do gado e dos campos, casando-me com a herdeira daquilo
tudo! Estudei pecuária, comprei reprodutores, e presto serviço ao
desenvolvimento nacional. Bordava tão bem a prima sertaneja que
estava quase pronto o enxoval. Quinze anos de namoro, desde a
escola. Que iriam arranjar, além da filhada, que não poderiam
educar, apodrecendo em promotorias afastadas e perseguido por
chefes políticos?
Mas o caso de Sagadais era bem diferente: apaixonara-se pela
mulher alheia e era amigo do coronel [...] (MAIA, 1999 p. 31).

Ambientada nas ficcionalizadas paragens amazônicas, a trama percorre as


representações no período que ficou historiograficamente conhecido como Ciclo da
Borracha. A própria ideia de “ciclo” já reduz o universo amazônico, uma vez que
outras riquezas comercializadas - interna e externamente - e diversidades
amazônicas podem ser descaracterizadas. Por isso, quando mencionamos essa
nomenclatura, referimo-nos tão somente ao recorte temporal (na perspectiva
econômica) e não a sobreposição da pluralidade de riquezas que a Amazônia
produz.
As metamorfoses representadas pelas personagens estão ligadas ao
controle do capital na região. Em suma, a trama engendra o início das primeiras
alocações no espaço amazônico por exploradores, comerciantes e migrantes. De
acordo com Neide Gondim (apud Maia, 1999), essa diferença social é fundamental
para o efeito estético da obra, na qual é possível caracterizar as personagens de
maneira distinta. Nas palavras da autora,

Essa diferença entre sociedade nordestina, firmada sob uma tradição


patriarcal e a incipiente, de fronteira, sem lei, sem governo, liderada
por nordestinos inescrupulosos, e tendo a natureza como cenário, é
utilizada pelo narrador na distinção do caráter dos migrantes
(GONDIM, in: MAIA, 1999, p.14).

Mostrando a versatilidade, a adaptabilidade e a coragem do sujeito


amazônico que, em meio a tantas dificuldades, não desistiu do seu projeto de vida
25

e decidiu não voltar atrás frente aos novos desafios que surgiam, Álvaro Maia nos
mostra que a trama de Beiradão é, na verdade, uma série de pequenas histórias
que se comportam sob uma trama maior, remontando ficcionalmente a vida heroica
dos pioneiros sertanejos na Amazônia.
Álvaro Maia destaca também, em Beiradão, a ausência de políticas públicas
do estado no território e, consequentemente, entre as relações interpessoais. O
controle político pelos coronéis de barranco impossibilitava que novos nomes
adentrassem na administração pública, mantendo sempre determinado grupo no
poder das decisões locais, como podemos ver no trecho a seguir:

Transcorria o tempo singular dos coronéis do barranco, que se


elegiam, ou elegiam deputados e intendentes, sem maiores
esforços, quando os nomes dos eleitores eram catados nos
cemitérios. Foram os precursores dos eleitores fantasmas, que
desmoralizariam o voto secreto, sob novas benzeduras de
fiscalização dos títulos eleitorais (MAIA, 1999, p.27).

Até aqui, pudemos ver um pouco da trama de Beiradão, sob a perspectiva


de algumas das personagens principais do romance e também alguns dos efeitos
estéticos da crítica política inserida na narrativa. O discurso crítico de Álvaro Maia
reflete uma tentativa, por que não dizer, de descolonizar ou, pelo menos, de achar
os responsáveis pelas consequências do colonialismo e da colonialidade em seus
diferentes graus.

2.3 Os elementos amazônicos

Para observamos os elementos amazônicos é preciso esclarecer que


estamos falando de aspectos que compõem o mosaico amazônico de
representações, sejam eles naturais, humanos ou culturais, em razão de que a
Amazônia é um “território multinacional e pluricultural, formado por bilhões de anos
de mutações geológicas e que serve de casa para milhares de espécies de vegetais
e animais, bem como de muitos povos” (SOUZA, 2019, p. 30). A narrativa de
Beiradão constrói a imagem de alguns desses elementos, que são significativos
para a compreensão da identidade e da representatividade amazônica.
26

A relação entre homem e natureza, produzida através do fato linguístico que


estamos estudando, revela o delineamento de uma visão mais centrada que, por
ser específica, não tende a ser generalizante, visto que “a Amazônia está longe de
ser uma unidade homogênea” (PIZARRO, 2012, p. 25). As construções
ficcionalizadas nos proporcionam uma ideia da amplitude do espaço, do social e
das personalidades dos agentes que fazem parte dos contextos da Amazônia e de
suas respectivas pluralidades.
Os sujeitos amazônicos representados por Álvaro Maia, através de
Beiradão, são distintos em sua maioria. Há homens e mulheres acompanhados de
suas famílias, donos de propriedades extensas e seringais, mas há também
mulheres e homens solitários, sufocados por condições extremas, encontrando-se
regulados na maior parte do seu tempo, possuindo poucos ou até mesmo nenhum
prazer. Muitos foram enganados com falsas promessas de enriquecimento rápido;
outros chegaram e conseguiram se estabelecer de maneira menos miserável,
conseguindo se reinventar; alguns mudaram totalmente o rumo de suas vidas;
outros, que já viviam na região, tiveram que lidar com os entraves do contato com
novos povos.
No aspecto cultural, mencionamos aqui algumas características que nos
parecem marcantes na conjuntura da obra. Começamos falando sobre as
vinganças, considerando que “as vinganças tremendas figuram entre os rosários
de lendas, que se espalharam pelo Madeira” (MAIA, 1999, p.159). As vinganças
ocupavam um espaço específico nas sociedades beiradeiras amazônicas; ao
mesmo tempo em que eram consideradas comuns, tornavam-se lendas que
serviam como uma espécie de exemplo para as pessoas da região. Mesmo que
estejam presentem em diversos lugares no decorrer do tempo histórico, as
vinganças que aconteciam na Amazônia possuíam alto grau de crueldade e
impunidade, como podemos observar na seguinte passagem:

A polícia nada apurou, nem foi até o lugar. Abusões do povo. Quem
iria procurar restos de ossadas, à toa, só para ouvir histórias do
arco-da-velha? A polícia não faria outra coisa. Teria de laçar
espíritos no meio do rio. [...] Os ossos foram carregados pela terra
caída, no inverno. A prova é o sítio indo pras águas. Demais, era
terra de alagação (MAIA, 1999, p.159).
27

Sobre o aspecto humano, a presença das mulheres na região era rara nas
localidades mais densas; em certas ocasiões, apenas uma acompanhava as
expedições pelos rios, contudo aparecem com frequência nas narrativas sobre os
pequenos centros. Comandadas pelos exploradores, as expedições buscavam
novos seringais e, quando imbricadas nas florestas, para fazer refeições ou
qualquer outro tipo de trabalho que necessitasse o descolamento para uma região
isolada, o grupo podia se tornar presa fácil de sequestros arquitetados pelos
nativos.
Por outro lado, a recíproca era verdadeira e ainda mais cruel. Quando os
exploradores adentravam a floresta amazônica em busca de novos seringais e,
consequentemente, entravam em conflito com os nativos, que defendiam seus
territórios, os exploradores também capturavam, mutilavam e sequestravam
mulheres nativas para obter aquilo que queriam, como é narrado na seguinte
passagem sobre a expedição do caboclo Euzébio, quando foi capturada uma cunhã
para descobrir a localidade das malocas dos Parintintins:

A cunhatã recusou-se: o rosto revelava o ódio e a dor.


- Eu te conheço, fera do diabo!
Abriu-lhe as pernas e aplicou-lhe pimenta, esfregando-a
impiedosamente. A cunhã uivou, esperneou e, antes da noite,
mostrou a direção das malocas, dentro de um igarapé borbulhante.
Antes de qualquer novo protesto, Chico Preto deu-lhe um golpe e
jogou-a no rio.
-Vai te refrescar, jararaca! Já estamos livres de dois.
-A cunhã deu um gemido e desapareceu. Ainda ouço esse gemido
e vejo suas mãozinhas coçando o corpo desesperadamente.
(MAIA, 1999, p. 133).

Nas localidades mais povoadas, as mulheres estavam presentes na


manutenção das propriedades, entretanto sofriam com a dupla colonização,
perdendo, em diversas passagens, o controle dos seus corpos, seja por vingança
contra alguém de sua família, pai ou marido, ou seja, pela forma como muitos
sujeitos não sabiam lidar com a escassez sexual nas localidades isoladas. Assim,
as mulheres eram vítimas de violência nas suas mais variadas formas. Sobre a
expedição do caboclo Euzébio e outros atos de violência que a obra Beiradão nos
possibilita analisar, assim como a dupla colonização da mulher, retomaremos a
discussão na seção 4. A violência evidencia não só o discurso colonizador, mas
também questões acerca de atos da colonialidade sobre os corpos.
28

Os povos nativos não são tratados como bons ou maus, mas como seres
que agem de acordo com o interesse do seu coletivo, podendo ou não agir de
maneira violenta, intercalando-se essas duas condições. A quebra desse
paradigma, sob a ótica dos estudos decoloniais, representa uma maneira
descolonizadora de retratar as sociedades originárias do continente, dando-lhes
autonomia e independência fora de um possível juízo de valor, visto que esses
grupos amazônicos “deram origem a esse habitante Outro da região amazônica,
dizimado pela guerra, cativeiro, trabalho escravo e enfermidades que chegaram
junto com o mundo ocidental” (PIZARRO, 2012, p. 32). Contudo, o discurso do
colonizador continua presente, como vemos na seguinte passagem:

Garcia esforçava-se para domesticar os Parintintins, esse tempo,


nas cabeceiras do Maici e nos firmes, que se estendem para os
Marmelos. Trocavam-se balas e frechas. Vários expedicionários
tombaram, e eles não se rendiam. Não perdoavam o assassínio de
alguns companheiros e de um tuxaua, num combate no Maici
Grande. Juraram extermínio total, e houve sangueira e ódio, de
parte a parte.
Garcia conseguiu atingir a primeira maloca, onde observou a
movimentação dos índios. Construiu rapidamente uma paliçada,
bem perto, e estudou planos de catequese, sem saque. Sabia que
eles descobririam a paliçada e vieram derrubá-la. Cercou o tapiri
com fortes paredes de paxiuba, em linha dupla; a coberta, por baixo
da palha, era feita de caibros, como um soalho bem unido. Lá
hibernou, armazenando caças salgadas e racionando as
mercadorias: os companheiros vigiavam as redondezas e, pela
madrugada iam até perto das malocas deixando vestígios
propositados. Dera ordem severa de não atacar, não reagir a tiros
e fugir em direção às paliçadas. Já imperava a ordem de Cândido
Rondon, o sertanista humanizado: “morrer algumas vezes, matar
nunca”. Em caso supremo, dariam salvas para o ar, a fim de
espantar os silvícolas (MAIA, 1999, p. 204).

Álvaro Maia retrata o processo de comunicação entre nativos e


colonizadores de forma instigante. Em Beiradão, o autor cita mais vezes os
Parintintins. A narrativa deixa transparecer um desenvolvimento gradual entre o
conflito, a conexão e o estabelecimento de uma comunicabilidade amistosa entre
os grupos que coabitam essa região fictícia e que podem refletir certo aspecto veraz
da trama. Apesar disso, Álvaro Maia não esconde o processo pelo qual a violência
se compôs. Nas cenas explícitas de terror e crueldade, podemos notar a
versatilidade com que o humor e a tragédia ocupam o enredo da obra.
29

O período histórico é datado como final do século XIX e início do século XX.
Não havia estradas asfaltadas ou ao menos largas e em boas qualidades; as
condições estruturais de subsistência eram precárias para grande parte da
sociedade e as ferramentas que o poder exerceria pelo modelo colonial forçavam
cada vez mais a invasão de seringueiros e seringalistas nas terras indígenas.
A alimentação do sujeito amazônico também é outro aspecto cultural
abordado por Álvaro Maia na narrativa de Beiradão. Essa necessidade, quando
saciada, consistia em um dos poucos prazeres que as notáveis personagens
tinham e que representa uma parcela da identidade do sujeito amazônico. Jabá
assado, mantas de pirarucu, cachos de banana, entre tantas outras especiarias
amazônicas, revelam aspectos culturais desses grupos, uma vez que é na
alimentação dos seres humanos que a cultura e natureza se encontram, “pois, se
comer é uma necessidade vital, o que, quando e com quem comer são aspectos
que fazem parte de um sistema que implica atribuição de significados ao ato
alimentar” (MACIEL, 2005, p. 49). Vejamos o seguinte trecho de Beiradão:

Jacaúna Remeiro abrira o saco de jabá e farinha. Cada um cortava


o naco de carne, derramava farinha em cima, temperava chibé e
mastigava, sem parar a conversa com os remadores. Ao fim, bebia
água do rio, misturada à farinha que estava na cuia. As correntezas
rosnavam, trazendo rebojeiras e troncos desgalhados, que
flutuavam até a libertação para alguma ponta de praia, agarrados
por galhadas de cipós (MAIA, 1999, p. 119)

Os rios, elementos naturais e fundamentais para a conjuntura amazônica,


ditavam os rumos da vida dos sujeitos que ali se estabeleceram, em virtude de que
“o curso da vida individual e social está regulado pelo tempo das águas, os ciclos
dos rios, os períodos de caça, a colheita, a pesca e a horticultura” (PIZARRO, 2012,
p. 24).
Oferecendo alimentos, através do pescado, para nutrir a maioria dos
indivíduos que habitavam as margens e as pequenas localidades um pouco mais
adentro da floreta, os rios serviam de via para o deslocamento de pessoas e
matérias primas e para a rede de comunicação ali se estabelecera. Os rios têm
grande destaque na construção da trama, como um dos elementos amazônicos de
maior importância para a estética na obra, servindo de palco para inúmeras
30

situações representadas dentro de embarcações ou mesmo fora delas, como


relatado no fragmento a seguir:

A igarité, pilotada pelo caboclo Euzébio cortava estirões e


enseadas, nos braços das correntezas. Espalhavam-se pelo ar
risadas e cantigas dos remadores, ritmando a modinha. Araras
cruzavam, mudando de margem, em vôos altos, surgiam barracões
entre clareiras. Recordavam, nos batismos nordestinos, os berços
dos proprietários (MAIA, 1999, p. 147).

Os relatos que constituem Beiradão revelam incursões pela floresta, que


ocasionam a descoberta de rios até então desconhecidos para não nativos (como
os expedicionários da borracha), a dificuldade dos mateiros (sujeitos colocados em
lugares estratégicos, dentro da mata, para fazer abertura de estradas) para realizar
suas atividades. Essa dificuldade se dava pela falta de quase tudo, do abandono e
do isolamento; muitas vezes o mateiro sentia fome, frio e a incerteza constante se
ainda estaria vivo no dia seguinte. A incerteza de continuar vivendo após essas
incursões era presente na retentiva popular. Vejamos o trecho a seguir:

Foi com homens temperados ao sal e à chuva que se descobriam


o Machado e o Rio Preto, o Jamari e o Candeias.
Nem sempre decorreram vitoriosas todas as viagens. Mateiros
houve que nunca mais regressaram; selvas brutas lhes guardam os
restos, escarnados pelos bichos. Outras vezes, sobras de
vanguardas dissolvidas vinham narrar a crônica da derrota. Mas, de
temeridade em temeridade, as colocações foram surgindo e
denominando os altos rios. Levas nordestinas e caboclas
sucediam-se para substituir e vingar os que morreram; enchiam-se
de trabalhadores os batelões; os proprietários construíam
armazéns à margem do Madeira; Serviam de sanatório aos
enfermos de febre negra a paludismo, ou de depósito para os
navios da linha que se abarrotavam de produtos para Manaus
(MAIA, 1999 p. 53).

Na narrativa de Álvaro Maia, as gaiolas, uma espécie de embarcação, eram


o principal meio de transporte, mas outros meios fluviais de transporte também são
evocados para elucidar essa importância. Os batelões, as balsas, igarités e as
canoas completam o conjunto de embarcações mais habituais da região. Os
igapós, os bamburrais e os rebojos também estão comportados pelo elemento rio.
Algumas mortes trágicas e vinganças também têm o rio como palco.
31

Outro elemento natural de grande destaque nas paisagens de Beiradão são


os animais amazônicos que, em alguns casos, são tidos como tema de extrema
importância. Um dos exemplos é o caso das tartarugas:

Havia-as de todos os tamanhos: matavam-nas em anzóis ou arpão,


arrancando-lhes as serrilhas para curar dores. Era só encostá-las
no ponto doído. Chegaram todos à margem. A canoa encalhou e
ficou amarrada, por segurança maior, as varas enfiadas na areia.
Mas não houve necessidade. Quando regressassem, estaria ainda
mais no seco e teria de ser sacudida para abrir o canal.
Caminharam para o barranco, em silêncio, a fim de falarem ao
comandante e conseguirem um guarda, que os levasse ao
boiadouro. Tartarugas batiam os cascos nos currais, armados no
areal, e havia grandes estragos. Morriam dezenas e dezenas,
curtidas pelo sol. Vendiam-se aos regatões e seringalistas,
segundo as percentagens e licenças da superintendência. Certos
comandantes não obedeciam a regulamento algum. Era uma
tremenda devastação, durante as virações. Continuava o estrago
com os filhotes, que ofertavam aos amigos, em latas de querosene.
Colocavam-nas vivas em panelas ferventes. Negociavam também
os ovos, frescos ou secos ao sol, ou transformados em manteiga
(MAIA, 1999, p. 97).

A maneira como Álvaro Maia mescla a apresentação de uma beleza natural


- com função vital para a região - e sua transformação em recurso natural do capital,
em determinados pontos, não é sutil. A falta dessa sutileza causa impacto no leitor,
mostrando como discurso da narrativa é carregado por uma tentativa de alerta para
os problemas da Amazônia.
Os forrós e as festas ganham destaque na narrativa de Beiradão. Nesses
espaços, a fartura de bebidas e comidas é lembrada, bem como as danças, que
podiam durar dias. No levantamento da fortuna crítica em torno de Beiradão,
aparecem estudos científicos relacionados à música beiradeira e movimentos
culturais que emergiram nesse espaço, como veremos na próxima seção.
Os espaços apresentados neste bloco são os de maior destaque na trama,
onde geralmente se fazem os cenários, os acontecimentos e os discursos que
representam as culturas da selva tropical. Seja nos rios, nas florestas, nas
embarcações, nos pequenos centros ou nos salões de festa, as inter-relações se
moldam e nos mostram como a vida desses sujeitos está em permanente diálogo
com o meio ambiente.
32

Só podemos ter conhecimento dessas representações e visões sobre os


elementos amazônicos por meio do autor da obra. Com isso, é necessário
entendermos, pelo menos a nível explicativo, o lugar de fala de Álvaro Maia, com a
intenção de conhecer melhor as relações de poder presentes nos variados
discursos e enunciados de/sobre Álvaro Maia.
33

3 DISSOLVENDO A OBRA BEIRADÃO E O BEIRADÃO

Era a verdade. Sertanejos, que vieram moços


para o Madeira, não esqueciam os seus sertões,
que vieram moços, mas também a eles não se
acostumavam mais. Passavam alguns meses e
queriam regressar. Dominava-os a nostalgia do
ambiente novo, da natureza em crescimento.
O sofrimento sempre vence, em contrário à
alegria que passa logo. Era mesma saudade do
embarcadiço e do marítimo. Não se acostuma
em terra, torna-se neurastênico, adoece e tem
que voltar às tábuas do seu camarote, às
oscilações do mar e à algaravia de cidades
diferentes, entre povos diferentes.
A terra verde vinga-se pela nostalgia,
endoidando o que tenta fugir do seu fascínio
(MAIA, 1999, p.148).

Na seção anterior, observamos nosso objeto de estudo e sua relação com


a Amazônia, bem como as construções dos enunciados sobre a região, a
perspectiva de algumas das principais personagens e suas funções para o efeito
estético da obra e o que representam no romance e nos discursos formadores da
região; vimos, também, alguns elementos amazônicos inseridos na composição
textual da narrativa.
Nesta seção, buscamos dissolver o Beiradão ficcional retratado por Maia e
o beiradão, lugar não ficcional, a fim de entendê-los e ressignificá-los como parte
de uma criação que conta sobre as pluralidades amazônicas e, ao mesmo tempo,
visualizá-los como forma autêntica da representação da identidade dos sujeitos
amazônicos, haja vista que o “subcontinente amazônico é o resultado de um
inverossímil amálgama de diferenças microrregionais, cada uma com sua cultura
particular, com a sua própria história” (SOUZA, 2019, p.25).
Inicialmente, apresentamos um pouco melhor o autor da obra e o contexto
amazônico no qual ele viveu, como também alguns de seus feitos pessoais e
profissionais. Isso também faz parte desse desmanche, para que possamos
observar as características da composição estrutural da obra, de maneira mais
sólida, evidenciando, assim, os discursos amazônicos que se formam nos
beiradões e se (re)configuram em Beiradão.
34

Em seguida, tratamos da fortuna crítica sobre as produções que tentam nos


explicar algumas perspectivas teóricas sobre a narrativa de Beiradão, assim como
sobre o lugar às margens dos rios, o chamado beiradão. Um lugar miscigenado não
só pelo sangue daqueles que se ali encontravam, mas também pelas essências
culturais que, ao se misturarem, produziram novas formas de se manifestar e existir
na região e, consequentemente, estabeleceram entre elas novas relações de
poder. O beiradão é, então, como um microcosmo amazônico, um espaço dentro
da Amazônia no qual as manifestações sociais apresentam características
singulares, distintas das demais regiões da própria macrorregião amazônica e até
mesmo com cosmogonias distintas. Podemos dizer que os beiradões têm seu início
no final do sec. XIX, constituindo um dos primeiros modelos de núcleos
populacionais de povos não nativos.
Na sequência, visitamos trabalhos que se utilizaram da obra Beiradão como
objeto de estudo (primário ou secundário), discutindo diversos temas sobre a
construção do saber na/da Amazônia.

3.1 Conhecendo Álvaro Maia

Inserir as informações sobre o autor da obra em outro bloco estrutural da


dissertação se dá pela concepção de que a obra, depois de escrita, possui certa
autonomia em relação ao seu escritor e mais proximidade com a proposta de
leitura. Contudo, conhecer o lugar de fala de quem escreve uma obra não é um ato
totalmente alheio a sua compreensão, pois pode nos ajudar a entender as escolhas
estéticas e as nuances da tessitura.
Álvaro Maia nasceu em 19 de fevereiro de 1893, no seringal Goiabal,
localizado no município de Humaitá, no estado do Amazonas. Filho do seringalista
Fausto Pereira Maia e de Josefina Botelho Maia, passou a maior parte da sua
infância em contato com o modo de vida do seringal e ribeirinha, junto a sua família
(PINHEIRO, 2014). Cresceu em conjunto com muito das coisas que escreve. Para
prosseguir nos estudos, ainda jovem, foi para Manaus, a capital do Amazonas. Em
seguida, se transferiu para o Rio de Janeiro, onde se formou em direito; após sua
formação, retornou para a capital amazonense.
35

Álvaro Maia “tornou-se ainda nas primeiras décadas do século XX uma


liderança intelectual e política, por encarnar os ideias e anseios de mudança
esperados por diversos setores sociais diante de um cenário de crise no Amazonas”
(RAMOS, 2016, p. 6). Álvaro Maia exerceu inúmeras profissões, atuando como
jornalista, professor, escritor, advogado e político. Como escritor, possivelmente a
ocupação que mais nos interessa aqui, Maia se destacou pelas suas releituras
sobre a Amazônia. Suas vivências narradas e ficcionalizadas representam, dentro
de seu espaço, principalmente a Amazônia do final do séc. XIX, início e meados do
séc. XX. Regiane Aguiar Pinheiro (2014), em seu TCC denominado Fábio: a
idealização do herói na obra Beiradão de Álvaro Maia, assim comenta:

Álvaro Maia é um dos escritores representantes da literatura


amazonense, sua carreira mesclava entre a vida intelectual e a
liderança política estadual. A notoriedade de seu trabalho ganha
relevância pelo engajamento social e político presente em sua obra,
ele inaugura na prosa de ficção uma tendência de denúncia do
extrativismo e de identificação com o homem interiorano,
valorizando o regionalismo amazonense, tendo como pano de
fundo a fauna e a flora local (PINHEIRO, 2014, p. 14).

A escrita de Álvaro Maia, em Beiradão, expõe a construção de uma


linguagem única daquela região, através de uma literatura de expressão
amazônica. Os dialetos regionais são mencionados para causar certa sinestesia no
leitor, que entende a dimensão simbólica da narrativa, e até mesmo para confundir
outros leitores na medida em que o vocabulário vai se distinguindo ainda mais; em
certas vezes, o vocabulário é específico de personagens que habitam esse cenário.
Álvaro Maia apresenta a linguagem das sociedades ribeirinhas, revelando
uma interessante mescla de origens semânticas; uma linguagem, por vezes híbrida,
entre a comunicação nativa e a comunicação dos colonizadores. A narrativa de
Beiradão, além de nos mostrar os aspectos descritivos da linguagem ribeirinha,
enfatiza as inter-relações dos indivíduos, além da incorporação de elementos
amazônicos na própria comunicação e, consequentemente, no modo de pensar
desses indivíduos (VYGOSTKY, 2003). É interessante ressaltar que, na sua parte
final, a obra apresenta uma espécie de dicionário de expressões oriundas da cultura
beiradeira, uma espécie de glossário da comunicação local, ligando a linguagem
36

do cotidiano da vida do sertanejo amazônico à composição de sua narrativa, numa


espécie de tradução.
Álvaro Maia se tornou professor. Sua trajetória perpassa de grandes
produções poéticas até sua importante participação política. Segundo Ramos
(2010, p. 13), Maia “possuía a capacidade de adotar perspectivas diferenciadas
quanto aos diversos problemas políticos do momento, daí a sua empatia junto a
variados setores da sociedade."
A carreira política de Álvaro Maia se caracteriza em vários momentos. O
primeiro deles ocorreu quando o ex-presidente Getúlio Vargas assumiu, em 1930,
pela primeira vez, o governo do Brasil e destitui os governadores dos estados.
Desse modo, Álvaro Maia foi nomeado interventor federal do estado do Amazonas.
Contudo, por causa de algumas desavenças com Getúlio Vargas, Álvaro Maia
deixou o cargo em 1931.
Em 1935, Álvaro Maia retornou como governador constitucional eleito até o
ano de 1937. Neste mesmo ano, Getúlio Vargas cometeu o golpe do Estado Novo
e destitui os governadores, substituindo-os por interventores. Álvaro Maia não foi
afastado e permaneceu como interventor até o ano de 1945. Com o retorno de
Getúlio Vargas à presidência, em 1951, Álvaro Maia voltou a governar o estado do
Amazonas.
No paratexto editorial de Beiradão, Tenório Telles ressalta a importância do
Álvaro Maia escritor para a memória e a notoriedade da região, dando evidência à
capacidade de Maia em estruturar as narrativas dos moradores locais em um texto
coerente e rico de informações:

Em todas as épocas, os autores empreenderam grande esforço


para fixar, através do fazer artístico, o próprio tempo – os dramas
humanos, as experiências marcantes, as guerras, os sonhos e
derrotas. O artista ao tematizar sua época, salva-a do
esquecimento, incorporando-a à memória, à cultura.
A obra de Álvaro Maia é um testemunho eloquente desse
compromisso do escritor com a sua realidade, com sua época. Com
a vida e com o ser humano. O escritor fixou, através de suas
narrativas, as vivencias dos habitantes anônimos das muitas
margens dos rios da Amazônia (TELLES, in Beiradão, 1999)

Percebemos que, indiscutivelmente, Álvaro Maia era uma persona de grande


destaque na região, tanto na atuação política, ocupando diversas funções
37

estratégicas do estado, quanto como escritor, produzindo poemas e conhecidas


obras literárias. Apesar dessas inúmeras contribuições, pode ser que o estigma do
viés político tenha carregado para suas obras um certo peso, na busca
epistemológica por uma dita imparcialidade que alguns pesquisadores insistem em
procurar, não conseguindo separar a produção do autor. Isso pode explicar o
porquê de algumas dessas obras não possuírem tantas análises científicas,
conforme comenta Ramos (2020):

A postura literária de Maia sofreu duras críticas de outros escritores


deste período devido ao forte cunho ideológico da sua obra literária
convertida a um engajamento político. Ao abordar a problemática
do seringueiro, envereda pelo engajamento social na medida em
que assume a temática na qual trata o drama vivido pelo seringueiro
a partir de uma espécie de ajuste de conta entre freguês e patrão
(RAMOS, 2020, p.19).

Ao que parece, Álvaro Maia inspirou grandes escritores da região


amazônica, como Neide Gondim, Márcio Souza, Tenório Telles e outros. Sem
dúvida, Álvaro Maia foi uma figura de extrema importância em todos os âmbitos que
atuou. Todas as suas contribuições são, certamente, as de um grande escritor
da/na Amazônia e sua escrita é fundamental para a compreensão da formação do
saber sobre essa região nesse período.

3.2 A imagética do beiradão e do beiradeiro

Quando falamos do beiradão, estamos nos referindo a um lugar, um espaço.


Esse espaço, por si só, não constrói nenhuma significação que lhe impute qualquer
valor, seja no âmbito social ou econômico. Descritivamente, pensando em sua
semântica, percebemos apenas designações espaciais da física ou da geografia,
chegando à conclusão de que o beiradão se trata de uma enorme beirada,
localizada às margens de algo ou de alguma coisa. Esse primeiro entendimento
sobre o que vem a ser o espaço denominado beiradão não está totalmente distante,
avulso da concepção que evidenciamos na presente dissertação.
O Beiradão, ficcionalizado e retratado por Álvaro Maia (1999), ficaria
localizado no que é hoje a Amazônia brasileira, se levarmos em conta que a obra
38

é um romance histórico, baseado também em regiões que existem paralelamente


às ambientações da narrativa, principalmente nas localidades onde estão situados
o estado de Rondônia e o estado do Amazonas, em especial nas redondezas dos
rios Madeira, Machado, Jamari e Candeias. Esse lugar era habitado por grupos
nativos, comerciantes, exploradores, navegadores, seringalistas, seringueiros e
suas respectivas famílias principalmente. A extração da borracha era a principal
atividade representada na narrativa ficcional. Nas palavras de Maia (1999, p. 23),

Intitula-se beiradão a margem dos rios principais, onde se fizeram


os primeiros desbravadores e permaneceram os seus
descendentes. Aí se encontram grandes seringais e castanhais,
sem a riqueza e a fartura dos afluentes de águas-pretas, assim
como povoados e sedes municipais. Navegável durante o ano
inteiro, embora com pedras e baixios no verão, serve para distribuir
mercadorias e armazenar a produção, conduzida em gaiolas e
motores para os centros importadores.

A partir da definição de Maia (1999) sobre o que é o beiradão podemos


perceber uma breve conceituação sobre quem é o sujeito beiradeiro, habitante
desse beiradão. O beiradeiro, como explica Maia, não é unicamente um ribeirinho,
um sujeito que mora na beira de um rio indistinto sob condições inexatas, mas esse
sujeito descrito pelo romance habita o entorno de rios que não possuem aguas
pretas, como exemplificado na passagem acima.

É importante lembrarmos que, além dos rios de águas pretas a Amazônia


possuí outros dois tipos de coloração das aguas dos seus rios, os rios de aguas
brancas e os rios de águas claras. Outro ponto abordado sobre a descrição de
beiradão é ausência de povoados e sedes municipais, o que remete ao pouco
contato entre parte desses sujeitos, a uma eventual solidão sentida por eles e a
pouca participação do estado na organização social local.

Como foi mencionado, pouco foi escrito sobre o beiradão. Muito


provavelmente outras particularidades existem que possam definir de maneira mais
abrangente essa rede complexa de relações estabelecidas no beiradão. Por
enquanto ficamos com essa definição geopolítica de Maia (1999) para entender a
particularidade do beiradão e do beiradeiro.
39

Darle Silva Teixeira, em sua dissertação O beiradão está em festa: a obra


musical de Teixeira de Manaus nos anos 80 e sua influência junto às festas de
beiradão, nos ajuda a entender um pouco do conceito da formação do beiradão
extra ficcional, quando escreve:

É muito comum para quem mora nas cidades do interior do


Amazonas por onde passam os rios, seja em cidades
municipalizadas seja em terras mais longes dizer/ ouvir algo como
– “vai lá na beira, ver se já chegou o...”, essa ilustração mostra que
a palavra “margem” é usada como “beira”. E as cidades localizadas
nessas grandes beiras eram chamadas de “beiradões”, local onde
atracavam os barcos para deixada de passageiros, de mercadorias
ou de pessoas para uma festa (TEIXEIRA, 2018, p. 56).

A criação imagética do beiradão - e principalmente do sujeito beiradeiro - nos


dias atuais, faz alusão ao atraso, à incapacidade de incorporar novas tecnologias,
mostrando uma figura estereotipada do pescador ribeirinho. A repetição dos
discursos grosseiros sobre o sujeito beiradeiro e seu modo de vida mina suas
características individuais, em detrimento de semelhanças artificiais
estereotipadas. A esse respeito, Albuquerque Jr. (1994, p. 2) comenta que “o
estereótipo é a fuga de qualquer atopia, nasce da necessidade de tudo nomear,
catalogar em determinados lugares, de falar sobre tudo e de tudo”.
Frequentemente, por entre as falas colonizadoras discriminatórias e
estruturais que circulam no senso comum da sociedade “moderna”, ouvimos que o
beiradeiro tem linguagem rude, vestimentas inadequadas, falta de educação. Tais
discursos não levam em conta que esses aspectos são irreais e não representam,
a rigor, toda comunidade ribeirinha. Se e quando tais aspectos existem e
acontecem, eles são consequências de um processo muito maior de dominação e
exploração do colonialismo e do poder do capital na região. Então, muitas vezes
esses discursos são preconceituosos e errôneos, concepções fundadas em
achismos, opiniões apartadas da realidade. Nesse contexto, pretendemos dissolver
Beiradão e o beiradão, a fim de entender os inúmeros enunciados que constroem
as “verdades” sobre esse(s) lugar(es) e as pessoas que nele(s) habitam, a fim de
ressignificar a ideia de atraso pela ideia de cultura própria, marcada pela
capacidade de se adaptar à natureza selvagem que as cercava.
40

A concepção popular sobre o beiradão é fruto de uma invenção criada pela


repetição de discursos e enunciados que buscam fixar no imaginário social uma
ideia generalizadora sobre o caráter/moral da região e de sua população, inserindo-
os num processo de desqualificação e invisibilidade. Geograficamente, os
beiradões dizem respeitos a faixas de terra às margens dos rios, mais precisamente
dos rios amazônicos. Historicamente, os beiradões (concebidos como os da obra
Beiradão) foram formados no final do século XIX, principalmente com a vinda de
nordestinos e pessoas de outras regiões em busca de novas oportunidades
econômicas, seja na exploração da borracha e/ou de outros recursos naturais. Na
análise de Albuquerque Jr. (1994, p. 9),

Falar e ver a nação ou a região não é, a rigor, espelhar estas


realidades, mas criá-las. São espaços que se institucionalizam, que
ganham foro de verdade. Essas cristalizações de pretensas
realidades objetivas nos fazem falta, porque aprendemos a viver
por imagens. Nossos territórios existenciais são imagéticos. Eles
nos chegam e são subjetivados através da educação, dos contatos
sociais, dos hábitos, ou seja, da cultura, que nos faz pensar o real
como totalizações abstratas. Por isso, a história se assemelha ao
teatro, onde os atores, agentes da história, só podem criar condição
de se identificarem com figuras do passado, de representarem
papéis, de vestirem máscaras, elaboradas permanentemente.

A própria narrativa de Beiradão trabalha esse percurso. Inicialmente,


podemos perceber a formação de pequenos núcleos habitacionais nas margens
dos rios que, com o decorrer da narrativa, parecem se tornar cada vez menores.
Com a criação dos centros populacionais, os beiradões se tornam lugares práticos
para embarque e desembarque de mercadorias e pessoas. Contudo, os beiradões
não deixam de ser povoados; muito pelo contrário, possuindo posição estratégica,
eles continuam comportando uma população diversificada.
Álvaro Maia nos dá ferramentas para remontar o beiradão de uma outra
forma. Sendo uma das primeiras narrativas que trazem à tona as expressões
beiradeiras, Beiradão desloca a ideia de atraso, colocando em evidência as aflições
e dificuldades enfrentadas pelos sujeitos beiradeiros diante da ausência do estado,
mostrando-nos a face do poder que surge do polo oposto ao poder estatal, visto
que o poder circula a sociedade pelos seus extremos (FOUCAULT, 1979).
Álvaro Maia mostra que os diálogos são ricos de sentido e lógica, sempre
buscando uma solução prática para problemas muitas vezes inéditos para aquela
41

recente sociedade. A narrativa da obra mostra também que a crise no mercado,


avulsa ao controle do sujeito beiradeiro, trouxe miséria e caos para as populações
e, mesmo assim, muitos ficaram, corajosamente, para reconstruir suas vidas mais
uma vez.
Uma das manifestações que mais representam a cultura beiradeira é a
música. Alguns estudos apontam como a música de expressão beiradeira trata
acerca do imaginário amazônico, trazendo reflexões sobre a vida no beiradão.
Nesse sentido, a obra Beiradão nos dá uma ideia da importância das festas e das
músicas nesse espaço. Geralmente elas traziam alívio e certa descompressão para
o povo.
É em uma festa que podemos perceber uma possível referência literária de
Álvaro Maia para Márcio Souza. Apesar de ter sido lançada alguns anos antes,
Beiradão (edição de 1958) nos possibilita pensar uma conexão, um diálogo
temporal com Mad Maria (Souza, 1980). Em certa passagem de Beiradão, Padre
Silveira está recolhendo o custo de casamentos e batizados fiados, feitos nas
paragens ao longo do rio Madeira. Sua anunciação se dava da seguinte maneira:
“- Boa tarde! Vamos ver se os curumins continuam pagãos, prontos para o inferno”
(MAIA, 1999, p. 211). Após acertados os negócios, Padre Silveira se prepara para
sair e é surpreendido por uma igarité, que atravessa o rio, pedindo para que o Padre
espere, pois “padre no interior, além das responsabilidades de seu ministério, era
juiz da paz, delegado, conselheiro, pai de família” (MAIA, 1999, p. 211). Na igarité,
havia homens segurando dois alemães, amarrados a um tronco, feito suínos. Os
homens assim se dirigem ao Padre Silveira:

- Taí, padre. São alamão da estrada. Vinheram de Santo Antônio,


descendo o rio numas embaúbas. Viram a festa, pararam,
dançaram, comeram. Depois viraram bestas, querendo beliscar as
damas. Demos porradas nos gringos e amarramos nos pés de
mangueira. Um deu pra vomitar e tremer. Antes que morresse
trouxemos para a encomendação. Sabíamos que Vocemecê
estava aqui (MAIA, 1999, p. 212).

É válido lembrar que a narrativa de Mad Maria (Souza, 1980) também


representa a fuga de trabalhadores alemães dos campos de trabalho da construção
da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Nessas fugas, alguns deles encontravam
pequenos povoados nos beiradões e neles mantinham algum tipo de contato.
42

Nesse sentido, é possível uma releitura que nos proporciona uma concatenação de
acontecimentos nessas obras produzidas por escritores de expressão amazônica.
Mais adiante, no decorrer da narrativa de Beiradão, os homens contam a
relação dos moradores com os alemães em geral e explicam ao Padre Silveira
como aconteceu o desentendimento no festejo que faziam:

Dois desses fugidos meteram-se em “Primavera” e até casaram


com gente da terra. Nem todos são ruins. Depois do jantar,
beberam, cantaram e começaram a dançar se ajeitando nas
damas, como se estivessem na rua da Palha. Chamamos atenção
e quiseram brigar, mas briga de murro. Era um caso de lambedeira
afiada. Pensamos, pensamos, e, como não somos de desgraça,
metemos uma paulada no ouvido de cada um. Íamos levar pro
delegado de Humaitá. Um deu pra querer morrer e estamos aqui
(MAIA, 1999, p. 211).

Essa passagem nos ajuda a entender alguns pontos: o beiradão era um


espaço de encontro e desencontros distintos; os beiradões do rio Madeira e região,
além da cultura do seringal, estavam diretamente conectados com as vivências e
os acontecimentos da construção de Estrada de Ferro Madeira Mamoré; ao que
nos parece, os beiradões de Rondônia, Amazonas e Amapá apresentam pequenas
características diferenciadas no seu processo de formação.
Os beiradões do Madeira foram ligados diretamente com o polo de Porto
Velho e Santo Antônio do Rio Madeira; os do Amazonas, mais ligados ao polo de
Manaus; os do Amapá, ao polo de Macapá. Todos esses beiradões, como são
entendidos historiograficamente, surgiram com o mercado da borracha e sob o
controle indireto de empresas internacionais; entretanto, as relações sociais e
fronteiriças se davam de maneira distintas, mesmo com expressões amazônicas
similares.
Então, podemos dizer que o beiradão é um espaço amazônico, localizado
às margens dos rios, que comporta um universo de diferentes dimensões do ser e
do estar na Amazônia, podendo ser entendido de maneira geográfica, cultural,
histórica, musical e outras inúmeras expressões amazônicas de linguagens; no
nosso caso, de maneira literária e decolonial.
Após as considerações sobre Álvaro Maia e sua obra Beiradão, bem com as
proveniências de alguns enunciados/concepções sobre o beiradão, passamos a
tratar da fortuna crítica do autor e da obra em análise.
43

3.3 A fortuna crítica de Maia e da obra Beiradão

Como dito antes, a fortuna crítica em torno de Beiradão é pequena, se


comparada com outros autores de destaque que também usam a Amazônia como
palco de suas tramas. No entanto, como figura pública e intelectual, Álvaro Maia
tornou-se objeto de estudo de algumas análises, bem como outros de seus
trabalhos. Assim, tratamos brevemente sobre como se formaram alguns desses
estudos referentes a Beiradão e a alguns outros trabalhos de Álvaro Maia, a fim de
melhor conhecermos a proposta de leitura, observação crítica e construção da
corrente dissertação.
Em 1943, foi lançada a obra Na vanguarda da retaguarda, romance inaugural
das produções de Álvaro Maia. Nessa reunião de crônicas que compõem o livro,
Álvaro Maia discorre também sobre a responsabilidade dos seringueiros como
soldados e comparações sobre como o espaço amazônico acabava transformando-
se em front de guerra econômico. Sobre essa obra, Ramos (2016) assim comenta:

O prefácio foi escrito por Assis Chateaubriand sob o título “O Mujik


da Steppe Verde da Amazônia”. A interessante comparação de
Chateaubriand entre Álvaro Maia e um importante personagem da
literatura russa reflete uma espécie de missão ser destinado ao
sofrimento, o mujik russo, o camponês trabalhador livre, mas que
vivia sob uma espécie de servidão, porém o verdadeiro
representante da terra que se enquadra perfeitamente na imagem
de Maia: o homem sofrido por assumir para si a dura missão de
conduzir o Amazonas para fora da decadência gerada pela crise da
borracha (RAMOS, 2016, p. 38).

Em 1956, foi lançada a obra Gente dos seringais, que retrata a vida
interiorana do seringueiro, a aviação como modelo econômico estabelecido
naquela localidade e vários retratos da face social desse grupo. É uma obra
dedicada à gente do seringal.
Em 1958, Álvaro Maia lançou o romance Nas narras do pretório, no qual
discorre abertamente sobre política, sua jornada no percurso político, o ex-
presidente Getúlio Vargas e as políticas públicas utilizadas em torno da economia
da borracha. Em 1958, também foi publicado Beiradão, nosso objeto de estudo.
Nesse romance, como já vimos, Álvaro Maia discorre sobre a crônica do
desbravamento da Amazônia, através de várias histórias baseadas em fatos. Nesse
44

mesmo ano foi lançado Buzinas dos paranás, livro que é um compilado de seus
poemas, em que Álvaro Maia expressa a relação entre o seringueiro, os rios e as
florestas. Contudo, o seringueiro representado por Maia não possuía uma terra de
sua propriedade.
Em 1963, foi publicado o livro Banco de Canoa, “que demonstra como a
degradação e aviltamentos cercaram as relações de entre patrões e empregados
no seringal, descrevendo a barbárie envolvida no processo civilizatório da região”
(RAMOS, 2016, p. 159). Após, temos Defumandores e porongas (1966) e Nas
tendas de Emaús (1967), que completam a coletânea de obras produzidas por
Álvaro Maia.
Essas são, em linhas gerais, as obras produzidas por Álvaro Maia. Todas
possuem temáticas que expressam a vida amazônica em seus diferentes contextos
e que, às vezes, até se repetem, com causas, desdobramentos e conclusões
diferentes. As condições sociais, políticas e econômicas reverberam também
impactos ecológicos na região. Mas não é apenas isso. Embora moderada, a
fortuna crítica em torno de Beiradão existe e é de grande importância para
entendermos o processo de divisão teórica pelo qual a obra e o conceito passaram
até chegar às análises críticas que temos hoje.
Um dos principais nomes observados na problematização em torno de
Álvaro Maia e de sua obra Beiradão é o de Paula Miranda de Souza Ramos. Em
sua dissertação para o programa de pós-graduação em sociologia, intitulada Da
poesia à política: a trajetória inicial de Álvaro Maia, Ramos (2010) apresenta um
estudo sobre o percurso assumido por Maia considerando o indivíduo, o intelectual
e o político. A partir da análise de criações de Maia (obras, poemas e discursos), a
pesquisadora sugere que elas relevam instrumentos ideológicos e simbólicos, que
atuam juntamente com a produção poética, para contribuir na sua caminhada no
cenário político (RAMOS, 2010).
Em 2016, Ramos apresentou a tese Ressonâncias da política na literatura
amazonense, na qual a obra Beiradão é usada como uma das fontes de análise
para examinar o impacto político da literatura na política, afirmando que Maia
buscava uma afirmação sobre uma identidade verdadeiramente cabocla. Sobre as
intenções de Maia na produção de Beiradão, a autora afirma que:
45

[...] Beiradão se encaixa na proposta de Maia de recuperar seu


capital político e literário perdido com o fim do Estado Novo.
Entretanto, pelo fato de neste dado momento não exercer a função
de político profissional há uma certa liberdade na divulgação de
algumas ideias, que servem até como uma espécie de oposição
aos governadores que o sucederam tais como Plínio Ramos Coelho
(1955-59) e Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo (1959-63),
governos populistas. Plínio Ramos Coelho tinha vínculos políticos
com Álvaro Maia, porém torna-se oposição a ele sucedendo-o por
uma diferença mínima de votos. Junto a Gilberto Mestrinho
consolidou o populismo no Amazonas. Neste sentido, tanto Coelho
como Mestrinho tentam desvencilhar-se da imagem dos grupos
políticos conservadores que o próprio Álvaro Maia representava,
assim apresentando-se como modernizadores do estado (RAMOS,
2016, p. 141).

A afirmativa de Ramos (2016) evidencia que, quando produziu a obra


Beiradão, Maia não estava ligado diretamente ao estado, por não exercer função
política. Contudo, ele já consolidara no movimento político e, mesmo indiretamente,
isso poderia influenciar a visão de algum possível eleitorado sobre a sociedade, o
que destaca também a linha tênue que divide a imagem da liberdade de expressão
de um escritor e, em outro ponto, sua participação na política, que pode ser
entendida de maneira desconfiada por alguns.
Os estudos de Ramos (2010; 2016) nos ajudam a conhecer o panorama do
ciclo da borracha através do conjunto das obras de Maia: o tratamento do
seringueiro no processo mútuo de absorção com a Amazônia, o surgimento da
identidade e da representatividade do caboclo, a figura pública que foi Álvaro Maia,
bem como vários outros aspectos que permeiam a tessitura de suas obras.
Também sob a perspectiva da construção da identidade do sujeito
amazônico, representado por Álvaro Maia, podemos destacar a obra da professora
Rosa Mendonça Brito (2001), intitulada O homem amazônico em Álvaro Maia: um
olhar etnográfico. Nessa obra, a autora busca evidenciar a face regionalista na
formação da sociedade amazonense, sob um recorte antropológico, utilizando um
compilado das inúmeras obras de Álvaro Maia e elucidando como aconteceu a
difusão de diversos grupos culturais. Através de sua análise, Brito (2001) apresenta
as identidades amazônicas, considerando personagens de diferentes obras e seus
principais feitos nos processos de ocupação e invasão da Amazônia literária de
Maia.
46

Ficções do ciclo da borracha: A selva, Beiradão e O amante das amazonas


é outra obra que utiliza narrativas de Beiradão para discutir elementos históricos
que caracterizam o ciclo econômico da borracha. Escrito por Luciele Gomes Lima
(2009), esse trabalho apresenta um estudo comparativo das obras A selva, de
Ferreira de Castro (1930), O amante das amazonas, de Rogel Samuel (1992) e
Beiradão, de Álvaro Maia (1958). De acordo com Leandro (2014, p. 17),

Além de mapear os traços do período econômico da borracha, o


trabalho de Lucilene Gomes aborda a experiência dos autores
dessas obras nos seringais. Para além disso, Lucilene faz um
inventário das obras que dão liga para a permanente abordagem
do tema do ciclo da borracha na literatura amazonense. Dentro dos
critérios estabelecidos, nesse processo de inventário,
inexplicavelmente duas grandes ausências da literatura
amazonense são notadas: Márcio Souza e Milton Hatoum.

Vitor Leandro Silva (2016) apresentou ao Programa de Pós-Graduação


Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas, a tese
A margem e o tempo -– subjetivismo, universalidade e ficção. A pesquisa tenta
estabelecer as formas pelas quais a percepção do local e do universal podem ser
pensados no romance. É um estudo mais estruturalista, voltado principalmente para
as representações do espaço e do tempo como efeito estético e produtor de sentido
Em sua análise, Silva (2016) direciona sua atenção para três obras, Relato de um
certo Oriente, de Milton Hatoum (2002), Galvez imperador do Acre, de Márcio
Souza (2001) e Beiradão, de Álvaro Maia (1999). Segundo o referido pesquisador,

Na obra de Álvaro Maia, as considerações sobre a floresta e o


homem do norte ocultam uma atividade temporal de alta
expressividade, manifesta por meio da relação dualista entre um
ambiente inóspito e igualmente farto de recursos naturais, detentor
de um tempo aparentemente estável e pouco suscetível a
mudanças, e a tentativa, embora ainda em fase embrionária, de
construir um ethos regido pela ordem humana, onde o tempo,
movido por relações dialogantes entre acontecimentos e ideias,
apresenta-se marcado por constantes transformações (SILVA,
2016, p. 13).

Silva (2016) também comenta acerca da questão da brutalidade e do


processo de desumanização de alguns desses sujeitos amazônicos: “[...] são
histórias de assassinatos, suicídios, incestos, estupros, pedofilia, que deixam claro
que diante de uma condição extrema, o ser humano é capaz de fazer vir à tona o
47

seu pior” (SILVA, 2016, p. 93). Entretanto, o olhar sobre o tempo, a partir das
perspectivas do eterno, da permanência e do movimento é o que se destaca no
trabalho de Silva (2016) sobre a construção do efeito estético de Beiradão.
Rafael Voigt Leandro (2014), a fim de entender como foi constituído o que
ele denomina por “ciclo ficcional da borracha”, utiliza Beiradão para compor o
mosaico de literaturas de expressão amazônica em sua tese Os ciclos ficcionais da
borracha e a formação de um memorial literário da Amazônia. Segundo Leandro
(2014, p. 4), “a repetição desse mote literário por largo período histórico, que
alcança a contemporaneidade, resultou no aparecimento de ciclos ficcionais da
borracha”. Salientamos, contudo, que Beiradão não é objeto principal da análise.
Marinete Luzia Francisca de Souza (2013), em sua tese de doutoramento A
Literatura Amazônica dos textos de viagem aos romances contemporâneos, tem
como objetivo um estudo comparativo e cultural sobre “a literatura e sobre a
Amazônia, desde textos de viagem (coloniais e pós-coloniais; éditos e inéditos;
impressos e manuscritos) até narrativas contemporâneas” (SOUZA, 2013, p. 7).
Nesse trabalho de doutoramento, Beiradão (1958) ocupa um espaço transitório
explicativo, como informa a autora:

Também faz parte desse grupo textual, embora não tenha sido
inserido no corpus deste estudo, o romance Beiradão (1958), de
Álvaro Maia, que retrata o ciclo da borracha, do auge ao declínio. A
narrativa foca ainda os aspectos geográficos da região, de maneira
que o autor estabelece diferenças entre os modos de exploração
praticados nos diferentes espaços – bamburral, serras e beiradões
–, correspondendo, cada um deles, a uma das três partes em que
se divide o romance (SOUZA, 2013, p. 202).

Ainda sobre Beiradão (1958), Souza (2013) endossa que o romance percorre
inteiramente o ciclo da borracha e, mesmo que Álvaro Maia tenha a intensão de
“renovar a prosa sobre o tema, o romance também retrata o condicionamento do
homem à floresta, o “bloqueio tropical”, a luta pela sobrevivência, a submissão aos
patrões, entre outros temas comuns aos romances do “ciclo”” (SOUZA, 2013, p.
202).
Por outro lado, há aqueles pesquisadores que se debruçaram mais
intensamente em torno do beiradão real, o extra ficcional, que usaram (ou não)
pequenos trechos da obra Beiradão para dialogar com a realidade, mas que não a
48

analisaram, pois seus olhares estavam voltados para o beiradão como espaço
físico e suas manifestações culturais e não para o romance literário. É o caso de
Rafael Norberto (2016) em seu trabalho Espaços, trânsitos e sociabilidade em
performance na “música do beiradão”: uma etnografia entre músicos amazonenses,
um estudo que se dedica às manifestações musicais presentes nas canções do
beiradão, conceituando-as.
No mesmo eixo de análise músico-etnográfico, destaca-se o estudo de Darle
Teixeira (2016), que trata da obra de Teixeira de Manaus, músico renomado das
festas do beiradão. Ao caracterizar o que seria o beiradão, Teixeira (2016) tece
uma breve crítica à obra Beiradão, de Álvaro Maia, sugerindo que, em algumas
ocasiões, a representação daquele beiradão apresentado pela obra não retrata
fielmente o que, para ela, é o beiradão de fato. Nas palavras da autora,

Na leitura de famoso romance de Álvaro Maia, Beiradão, temos


passagens com a geografia típica do Amazonas. O cenário onde se
desenvolve a história ou histórias explica o porquê do título:
margens do rio Madeira, margens do rio Machado, margens do rio
Maici e margens do rio Jamari. Se o nome da obra incita a entender
o que é o beiradão, não é bem o que acontece na leitura do
romance, pois há uma linguagem mais elaborada, até bem erudita
que destoa da fala mais simples numa conversa cotidiana de seus
personagens. Maia usa algumas expressões regionais, mas perde-
se na verossimilhança quando colocada na fala das personagens
estereotipadas do morador das margens dos rios. Ou seja, não
encontramos a descrição do “beiradão” no romance de forma a que
possamos visualizar e sentir com densidade esta paisagem da
geografia do Amazonas (TEIXEIRA, 2016, p. 55).

Além do beiradão, a narrativa de Álvaro Maia transita em diversas paragens


amazônicas, como as serras, os pequenos centros, a floresta densa, os meios dos
rios, os igarapés, a mata fechada e outros lugares. De fato, a construção das
narrativas de Beiradão tem o seu foco nos acontecimentos, nas histórias sobre os
sujeitos amazônicos, que tomam para si grande destaque, deixando um pouco
abstrato o conceito geográfico de beiradão. Contudo, como sujeito nascido no
seringal, Álvaro Maia possui fundamentos para transcrever, mesmo de forma
erudita, as conversas que aconteciam nessas localidades. Vale lembrar que, na
maioria dos acontecimentos narrados na Amazônia, é quase impossível não
percebermos a influência da floresta, do rio, dos barrancos, dos animais, das
pessoas que ali moravam.
49

Ao tratar o diálogo dessa maneira, Álvaro não está pecando com a


verossimilhança; em nossa análise, o autor está construindo uma imagética ainda
mais complexa sobre a identidade do sujeito beiradeiro e do beiradão, visto que
algumas personagens - como o Padre Silveira, Segadais e o próprio Fábio Moura -
possuem capacidade para dialogar, em qualquer ocasião e com qualquer pessoa,
de maneira equitativa. É necessário observar que o percurso temporal retratado por
Álvaro Maia representa um beiradão em mudança.
Numa outra perspectiva, alguns artigos foram construídos para dialogar com
a obra Beiradão. Regiane de Aguiar Pinheiro (2014) produziu o artigo intitulado:
Fábio: a idealização do herói na obra Beiradão de Álvaro Maia, tendo como objetivo
uma análise bibliográfica da obra, a contextualização histórico-social da Amazônia
da época e a “idealização heroica da personagem central do enredo, Fábio Moura”
(PINHEIRO, 2014, p. 1).
Paula Miranda de Souza Ramos (2020) publicou o artigo Notas sobre a
Amazônia e a política no pensamento de Álvaro Maia, no qual a autora propõe uma
análise dos discursos produzidos por Álvaro Maia através de suas obras, após a
década de 30, a fim de entender como seu pensamento político contribuiu para
seus feitos na política. Segundo Ramos (2020, p. 5),

[...] ao se inventariar a contribuição deste autor para o Pensamento


Social da Amazônia e do Brasil, recuperamos uma interpretação
histórica, social e ecológica da região, a qual revela a Amazônia em
suas bases culturais, econômicas, sociais e políticas

Rafael Branquinho Abdala Norberto (2015) apresentou o artigo Música de


Beiradão? Reflexões a partir do campo, no qual utiliza uma distinção interessante
para tratar do espaço (“beiradão”) e do conceito musical (“Beiradão”):

Eu utilizo “Beiradão” (com a inicial maiúscula) quando trato do


termo empregado em música e “beiradão” (com a inicial minúscula)
quando faço referência às beiras de rios, igarapés e paranás onde
habitam diversas comunidades ribeirinhas. Utilizo ambas as
terminologias (“Beiradão” e “beiradão”) entre aspas por tratarem-se
de categorias êmicas (NORBERTO, 2015, p. 2).

Nesse artigo, Norberto (2015) se debruça em torno de reflexões


etnomusicológicas. Como vimos na obra Beiradão, as festas, como manifestações
50

culturais, eram de extrema importância para os povos ribeirinhos; nas festas,


intercalam-se as manifestações culturais e a própria produção musical.
Nesta seção, apresentamos a figura do escritor Álvaro Maia, a construção
do beiradão não ficcional e o que já foi escrito sobre a obra Beiradão. Na próxima
seção contrastamos as narrativas da obra com as teorias decoloniais de
representação do poder. Pelo que observamos, este é um estudo que ainda não foi
realizado. Nesse sentido, nosso trabalho se diferencia dos anteriores por optar pela
análise da narrativa literária a partir das perspectivas decoloniais, considerando
falas, ações, repetições, situações propostas e suas consequências dentro do
enredo, a fim de entender como as práticas colonizadoras podem ser observadas
na construção estética do romance Beiradão.

4 A COLONIALIDADE NA AMAZÔNIA BEIRADEIRA

Antes de começar a desenvolver um pouco mais sobre a teoria específica


que rege nossa análise, é necessário ampliarmos o foco, ao menos nesse breve
momento, e informar sobre as preocupações teóricas pelas quais a produção
científica perpassa.
Nas ciências humanas, consideramos questões prováveis, variáveis e de
difícil quantificação. O ser humano é uma espécie de equação metafórmica,5 cujo
resultado não pode ser considerado definitivo. As variáveis que formam essa
equação são constantes e profusas, por isso, para o ser humano, mudar é quase
inevitável e acompanhar essas mudanças é um processo minucioso que, por vezes,
avança no espectro da subjetividade.

5
Utilizamos o termo “equação metafórmica” para explicar que cada indivíduo reage de maneira singular e
distinta em determinados acontecimentos, isto é, as pessoas reagem individualmente a estímulos externos, de
maneiras diferentes umas das outras; desse modo, é impossível criarmos um manual que englobe todas as
pessoas. A análise de casos/situações (e tudo aquilo que ela engloba) é uma opção para se entender melhor o
ser humano, mas nunca de maneira definitiva e isolada.
51

Metodologicamente, as ciências humanas conseguem suprir essas


dificuldades, utilizando suportes teóricos que as fundamentam e especificam, nos
possibilitando-nos certa segurança ao tratar o ser humano e suas criações,
incluindo suas formas representativas e suas descontinuidades. Hoje em dia, o
caráter científico das ciências humanas necessita dessa aplicação teórica para a
validação de suas produções.
Como uma das ferramentas teórico-metodológicas da análise literária, temos
os estudos culturais. Esses estudos consistem em, num primeiro momento, ao
analisarmos uma obra literária, atentarmos às várias formas em que os elementos
da linguagem aparecem na narrativa. Assim, é possível verificarmos as repetições,
ênfases, conflitos, espaços, ausências, dúvidas, confusões, expressões, discursos
e demais características que dão sentido à obra. Tudo isso ganha visibilidade pela
maneira como a narrativa é feita, suas personagens, ambientações, tramas e outros
componentes estruturais. Através dessas observações, podemos “determinar o
campo de valores socioculturais que a obra selecionou, refletiu, transformou ou
rejeitou” (BORDINI, 2006, p.14).
Através da literatura, somada aos princípios dos estudos culturais, nossa
escolha, nesta pesquisa, versa sobre a temática do poder no beiradão, que
subordinou corpos indistintamente: homens, mulheres, indígenas, homossexuais,
crianças e outros indivíduos amazônicos. Dessa forma, pela perspectiva decolonial,
podemos explorar a memória, as representações e as identidades que se revelam
na Pan-Amazônia.
Nesta sessão, além da apresentação e da problematização dos conceitos e
linhas teóricas, discutimos as formas pelas quais elas se relacionam com nosso
objeto de pesquisa, através de um texto que busca constância e coerência entre os
aportes teóricos, citações e a análise das representações da obra. Logo,
apresentamos nossos aportes teóricos, em diálogo com a obra Beiradão.
52

4.1 O poder, o pós-colonial e o decolonial

Assim como a burguesia propõe


uma imagem do proletário,
a existência do colonizador demanda
e impõe uma imagem do colonizado.
Álibis sem os quais o comportamento do
colonizador e o do burguês, suas próprias
existências, pareceriam escandalosos.
Mas expomos a mistificação porque ela lhes
convém bastante bem (MEMMI, 2007, p. 117).

A proposta teórica da presente dissertação se baseia nos conceitos que


discutem as representações do poder, não apenas as que partem do estado,
geralmente considerado uma posição central, mas também as que surgem nas
margens e nas beiras, compondo um panorama que interliga uma rede de relações.
Vale ressaltar que as representações que partem do que chamamos de margem
não carregam consigo perspectivas classificatórias, que geralmente as tratam
como inferiores no cenário histórico-social; pelo contrário, demonstram as múltiplas
iniciativas e repostas a esses movimentos.
Utilizamos o termo representação para tratar dos signos, símbolos e
possíveis significados apresentados por Maia na obra Beiradão. Segundo Suart
Hall (2016. p. 18), “a linguagem é um dos “meios” através do qual pensamentos,
ideias e sentidos são representados em uma cultura”. Sendo assim, por meio da
narrativa de Beiradão, podemos interpretar os possíveis pensamentos, ideias e
sentidos que circulam sobre/na cultura amazônica. Sobre o conceito de
representação, Stuart Hall (2016) afirma:

Representação é uma parte essencial no processo pelo qual os


significados são produzidos e compartilhados entre os membros de
uma cultura. Representar envolve o uso da linguagem, de signos e
imagens que significam ou representam objetos (HALL, 2016, p.
31).

Nossa análise e atribuição de sentidos a essas representações se


respaldam nas teorias decoloniais e pós-coloniais, as quais possuem relações
diretas ou indiretas com os conceitos de poder e nos ajudaram a identificar, na
narrativa, o que esses discursos representam para o pensamento decolonial e pós-
colonial e como eles dão sentido à literatura de Beiradão. Mesmo assim, estudar,
53

analisar ou até mesmo teorizar o que é poder e como ele se revela é algo muito
desafiador, por ser complexo - e por muitas vezes subjetivo. Segundo Michel
Foucault (1979, p. 8),

Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo


o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem
como função reprimir. (...) a partir dos séculos XVII e XVIII, houve
verdadeiramente um desbloqueio tecnológico da produtividade do
poder. As monarquias da época clássica não só desenvolveram
grandes aparelhos do Estado – exército, polícia, administração
local – mas instauraram o que se poderia chamar uma nova
“economia” do poder, isto é, procedimentos que permitem fazer
circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo contínua,
ininterrupta, adaptada e “individualizada” em todo o corpo social.

Então, há dificuldades para a apreensão e identificação do poder. Ora, se o


poder é algo que pode ser abstrato, mas que ao mesmo tempo está presente,
através de suas representações, em atos, discursos, ações e relações inseridos
numa rede social, e que essa rede o produz, é preciso muita cautela ao
pretendermos registrá-lo. É importante levar em consideração que as
representações do poder estão ligadas aos juízos sobre a “verdade”, ou melhor, às
sensações de verdade que os discursos produzem. Um exemplo disso é a questão
da “modernidade”, um discurso que, através do controle do saber exercido pelos
colonizadores, se tornou um modelo para grande parte da população.
Na narrativa da obra Beiradão, buscamos examinar as aparições dessa rede
e os contextos em que elas se revelam. Não se trata de conceber essas
representações do poder como apenas uma simples rede hierárquica, pré-
estabelecida entre o poder do aparelho do estado e os indivíduos da Amazônia
sertaneja, onde o Estado era praticamente ausente, como no Beiradão de Maia,
mas também das formas como as resistências se manifestavam, mostrando o
caráter móvel e flexível do poder, bem como sua potência, tanto construtiva quanto
destrutiva, o que também nos revela as vozes da resistência amazônica.
Essas relações de dominação são camufladas para não serem consideradas
uma relação e nem o lugar em que elas acontecem é propriamente um lugar. “E é
por isso precisamente que em cada momento da história a dominação se fixa em
um ritual” (FOUCAULT, 1979 p. 25). Alguns desses rituais - os expostos pelas
microtramas da obra - são analisados nesta seção.
54

É através dessas representações do poder que os discursos se fixam no


imaginário social. Em Beiradão, essas representações aparecem de várias formas:
muitas beiram os extremos da violência e da miséria; outras, o heroísmo e a
coragem de algumas personagens. Tais representações nos apontam uma
perspectiva alternativa do saber, em contraponto aos discursos naturalizados do
colonizador. De acordo com Souto (2013, p 13), “na contracorrente de uma
pretensa unicidade orgânica dos saberes condicionados por uma ordem bem
estabelecida, haveria, não obstante, um tipo de saber que aponta para os limites
dessa ordem, ao qual Foucault logrou chamar de “literatura””.
Em princípio, o termo pós-colonial pode ser entendido como uma referência
ao período histórico-temporal após o início dos processos de descolonização. Com
as lutas que acarretaram os atos de independência, libertação e emancipação em
meados do séc. XX, temos uma das possíveis interpretações que, como recorte
temporal, pode sugerir uma possível superação dos modelos coloniais com o
término “diplomático” das colônias europeias.
No entanto, o conceito do qual nos apropriamos diz respeito à soma de
contribuições teóricas provenientes dos estudos pós-coloniais, por meio da análise
literária, podendo, invariavelmente, também se estender a discussões políticas e
socioculturais. Estas, por sua vez, deixam claro que o processo de colonização
ainda não foi superado de maneira completa, existindo múltiplos pontos de conflito
e controle encobertos na sociedade contemporânea e também na literatura pós-
colonial.
Setúbal (2020, p. 210) reforça os aportes teóricos de Frantz Fanon ao
considerar “um dos deveres do intelectual colonizado na ótica Pós-Colonial refletir
sobre os modos que a conjuntura da dominação se estabeleceu”. Nesse sentido,
esclarecemos que o termo “pós”, de pós-colonial, não representa uma ruptura
absoluta com a estrutura do padrão do poder colonial, porém marca o início da
percepção sobre a profundidade das redes que aprisionam e subjugam o
colonizado, nas mais variadas dimensões, e suas lutas no âmbito dos saberes,
apresentando um novo discurso sobre a história dos povos. O movimento pós-
colonial nasce, então, da flexão de questionamentos sobre as várias cicatrizes
criadas pela relação de dominação entre o colonizador e o colonizado. Essas
55

cicatrizes permeiam espaços materiais e subjetivos, o corpo e a mente, a liberdade


e a subjetividade.
Antes de ser considerado uma corrente teórica, movimento de luta, escola
de pensamento ou qualquer outra possível designação, o argumento pós-colonial
já podia ser encontrado em alguns autores precursores à escalada acadêmica que
remonta aos anos de 1980. O argumento pós-colonial “surge a partir da
identificação de uma relação antagônica por excelência, ou seja, a do colonizado e
a do colonizador” (BALLESTRIN, 2013, p. 91). A respeito do argumento pós-
colonial, Pezzodipane (2013, p. 88) afirma que:

O argumento central e consensual dos estudos pós-coloniais,


assim como a sua maior contribuição é, sem dúvida, a ruptura com
a história única, sustentada pelas metanarrativas que legitimaram
as ideologias do processo de colonização, naturalizando a
dominação do homem pelo homem, a partir das diferenças raciais
hierarquizadas como justificativa para o “processo civilizatório.

Em relação aos autores e produções pós-coloniais, não podemos deixar de


destacar os nomes de Frantz Fanon, Aimé Césaire e Albert Memi,6 na composição
do que seria umas das primeiras referências acadêmicas desse arcabouço teórico.
Três estudiosos naturalizados franceses, nascidos em territórios externos à França
europeia7, discutiram, inicialmente, o argumento pós-colonial nos debates das
ciências humanas. Segundo Ballestrin (2013, p. 91),

Os livros Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador


(1947), de Albert Memmi, Discurso sobre o colonialismo (1950), de
Césaire, e Os condenados da terra (1961), de Franz Fanon, foram
escritos seminais. Os dois últimos foram agraciados com prefácios
de Jean-Paul Sartre, que em um “complexo de culpa” europeia,
recomenda suas leituras, elogia seus autores e, logo, intercede
pelos colonizados. A esses três clássicos soma-se a obra
Orientalismo (1978), de Edward Said (1935-2003), crítico literário
de origem palestina, intelectual e militante da causa. O Oriente
como “invenção” do Ocidente denunciou a funcionalidade da
produção do conhecimento no exercício de dominação sobre o
“outro”. Estes quatro autores contribuíram para uma transformação

6
Frantz Fanon nasceu na ilha de Martinica, em 1925. Aimé Césaire também nasceu na Martinica, no ano de
1913. Albert Memi nasceu na Tunísia, em 1920.
7
Utilizamos o termo França europeia para nos referir ao território Francês localizado no continente europeu,
tendo em vista que a Martínica – onde nasceram Frantz Fanon e Aimé Césaire – é um território francês
localizado na América Central.
56

lenta e não intencionada na própria base epistemológica das


ciências sociais.

Outro grupo de extrema importância na atuação conceitual do argumento


pós-colonial foi o chamado Grupo de Estudos Subalternos. Esse grupo se formou
no sul asiático, na década de 1970, e ajudou a consolidar a episteme pós-colonial.
Na composição do grupo, destacamos Ranajit Guha, Partha Chatterjee, Dispesh
Chakrabarty e Gayatri Chakrabarty Spivak8. Com a obra Pode o subalterno falar?,
a contribuição de Spivak (1985) fortificou o argumento pós-colonial, evidenciando
a falta de voz do sujeito subalterno e a problemática em torno da construção dos
discursos que buscam falar por ele. A respeito do objetivo de estudo de Spivak
(1985), na introdução da obra traduzida, Almeida (2010) comenta:

Seu influente artigo procura, por outro lado, questionar a posição


do intelectual pós-colonial ao explicitar que nenhum ato de
resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato
esteja imbricado no discurso Hegemônico. Dessa forma, Spivak
desvela o lugar incômodo e a cumplicidade do intelectual que julga
poder falar pelo outro e, por meio dele, construir um discurso de
resistência. Agir dessa forma, Spivak argumenta, é reproduzir
estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno silenciado,
sem lhe oferecer uma posição, um espaço de onde possa falar e,
principalmente, no qual possa ser ouvido. Spivak alerta, portanto,
para o perigo de se constituir o outro e o subalterno apenas como
objetos de conhecimento por parte de intelectuais que almejam
meramente falar pelo outro (ALMEIDA, in: SPIVAK, 2010, p.13).

O Grupo de Estudos Subalternos surgiu na Ásia e serviu de inspiração e


fundamentação para o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos, que
buscava, aos moldes do pós-colonialismo, discutir as relações do controle colonial
na América Latina. Esse grupo surgiu nos Estados Unidos, na década de 90,
reunindo grandes pensadores e estudiosos latino-americanos. Todavia, o grupo se
rompeu, por questões ideológicas a respeito da adoção ou não de conceitos que
poderiam ter sido construídos sob uma base eurocêntrica do saber.
Após a dissolução do Grupo Latino-Americano de Estudos Subalterno, outro
grupo ocupou o lugar nas discussões pós-coloniais e decoloniais: o Grupo

8
Ranajit Guha nasceu em 23 de maio de 1922, em Bangladesh. Partha Chatterjee nasceu em 5 de novembro,
na Índia. Dispesh Chakrabarty Gayatri nasceu em 15 de dezembro de 1948, na Índia. Gayatri Chakrabarty
Spivak nasceu em 24 de fevereiro de 1942, também na Índia.
57

Modernidade/Colonialidade. Essa organização surgiu de uma tentativa de


aprofundar e radicalizar a crítica ao eurocentrismo enraizado nas produções de
novos discursos sobre a Amazônia, sobre a América Latina e/ou sobre a situação
do colonizado no continente americano. Essas discussões, mesmo envolvendo a
América Latina como um todo, não contavam com a presença de nenhum estudioso
brasileiro, considerando-se que o Brasil possui a maior faixa territorial da Amazônia
(BALLESTRIN, 2013).
No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, Aníbal Quijano apresentou o
conceito de colonialidade do poder, aprofundado pelas discussões do grupo
Modernidade/Colonialidade. Mignolo (2017, p. 2) assegura que “Quijano deu um
novo sentido ao legado do termo colonialismo, particularmente como foi
conceituado durante a Guerra Fria junto com o conceito de “descolonização” (e as
lutas pela libertação na África e na Ásia)”. Segundo Quijano (2009, p. 73),

[...] Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado


a Colonialismo. Este último refere-se estritamente a uma estrutura
de dominação/exploração onde o controlo da autoridade política,
dos recursos de produção e do trabalho de uma população
determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes
centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial.
Mas nem sempre, nem necessariamente, implica relações racistas
de poder. O colonialismo é, obviamente, mais antigo, enquanto a
Colonialidade tem vindo a provar, nos últimos 500 anos, ser mais
profunda e duradoira que o colonialismo. Mas foi, sem dúvida,
engendrada dentro daquele e, mais ainda, sem ele não poderia ser
imposta na intersubjectividade do mundo tão enraizado e
prolongado.
Quijano (2009) aprofundou o debate em torno das questões raciais e sociais,
bem como das formas de controle do poder colonial com o conceito de
colonialidade do poder, diferindo-as da estrutura de dominação do colonialismo,
afirmando que o pensamento eurocentrado não parte apenas dos europeus, mas
também de todos os educados sob a sua hegemonia. Na visão de Mignolo (2008,
p. 290), “[...] a opção descolonial significa, entre outras coisas, aprender a
desaprender”. Assim, chegamos à conclusão de que os controles da colonialidade
podem se reproduzir por meio dos discursos e ações dos colonizados e não apenas
dos colonizadores europeus.
O conceito de colonialidade do poder é um dos pilares para entendermos
este estudo, pois ele permeia o “mito da modernidade”, discute as relações
58

estruturalmente racistas, através das representações sociais e em nível crítico;


além disso, sugere um modelo do padrão do poder colonial, estabelecido sob a
hegemonia de uma educação eurocêntrica, bem como opções para ações
descolonizadoras. Segundo Quijano (2009, p. 106),

Enquanto a produção social da categoria “Gênero” a partir do sexo


é, sem dúvida, a mais antiga na história social, a produção da
categoria “raça” a partir do fenótipo é relativamente recente e a sua
plena incorporação na classificação dos indivíduos nas relações de
poder tem apenas 500 anos, começa com a América e a
mundialização do padrão de poder capitalista.

Conforme analisa Quijano (2009), a colonialidade do poder se baseia em


cinco tipos principais de controle sobre o ser colonizado. Esse conceito está ligado
ao padrão mundial do poder capitalista, que é colonialista. Da mesma maneira que
a colonialidade do poder parte dos centros (Estados e multinacionais), a
desobediência epistêmica é um uma força que parte das margens. Em suma, o
vocabulário habitual utilizado pelos grupos que propõem a descolonização busca
romper alguns paradigmas, envolvendo colonizador e o colonizado. De acordo com
Grosfoguel (2008), os estudos subalternos têm, como linguagem comum no
sistema mundo, o seguinte panorama:

A linguagem comum deverá ser anticapitalista, antipatriarcal, anti-


imperialista e contra a colonialidade do poder, rumo a um mundo
em que o poder seja socializado sem deixar de se manter aberto a
uma diversidade de formas institucionais de socialização do poder
assentes nas diferentes respostas ético-epistémicas descoloniais
dos grupos subalternos do sistema-mundo (GROSFOGUEL, 2008,
p.144).

As questões apresentadas por Grosfoguel (2008) como um modelo


argumentativo de descolonização podem ser analisadas e discutidas através da
narrativa de Beiradão. Discursos sobre as consequências do modelo do capitalismo
através do esquema de mercado da borracha, tramas em que o patriarcado
representa o controle geral da região, questões que percorrem os modelos de
controle da colonialidade, todos esses temas que são levantados e discutidos pelos
estudos pós-coloniais e decoloniais estão presentes na obra analisada nesta
pesquisa. Assim, entendemos que Beiradão é uma literatura pós-colonial, uma vez
que, nessa obra, o discurso produzido por Álvaro Maia sobre a Amazônia subverte
59

as verdades do centro e revela-nos, na condição de leitores, uma região encoberta


pelas narrativas construídas pelos cronistas e viajantes que retrataram uma
Amazônia deturpada (NENEVÉ; SAMPAIO, 2016).
Segundo Foucault (1987, p. 8), “o que faz com o que o poder se mantenha
e que seja aceito é simplesmente que ele não só pesa como uma força que diz não,
mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz
discurso”. Por esse motivo, na subseção a seguir, analisamos o seringal e sua
relação com o beiradão, a fim de entendermos melhor os mecanismos de produção
do padrão colonial do poder que permeiam esses espaços em Beiradão, tal como
as representações que fazem referência ao caráter colonial das relações de
trabalho na Amazônia e a face da colonialidade do poder.

4.2 Espaços do poder: o beiradão e o seringal

A miséria estendeu-se pelo beiradão;


seringueiros e agricultores não podiam abrir o
corpo. Calças e blusas caíam aos pedaços,
remendadas de tal forma, que não se
conhecia a fazendo original.
Mulheres mal se vestiam em farrapos,
durante os serviços caseiros e nas roças;
possuíam apenas um vestido podre para
receber as visitas.
Meninos viviam nus ou de tangas.
Aproveitam-se os sacos de trigo e café
(MAIA, 199, p. 315).
Quando falamos do beiradão, é impossível desassociá-lo do seringal, haja
vista que a formação histórica do beiradão está atrelada ao processo histórico no
qual o seringal também está inserido. O beiradão, como posição econômica
estratégica, serviam como núcleos comerciais e urbanos, localizados nas beiras de
rios amazônicos, enquanto a extensão do seringal se situava, na maioria das vezes,
em localidades dentro da floresta amazônica, com pequenas habitações,
conhecidas como tapiri, espalhadas estrategicamente por entre as pequenas
passagens. De acordo com Cherobim (1983, p. 101),

O seringal compõe-se, basicamente, do barracão, local de


residência do seringalista, do armazém que avia, isto é, fornece
mercadorias ao seringueiro e do depósito de borracha, castanha,
etc. O barracão é o núcleo social e econômico do seringal. Em
contraposição a ele está o centro, onde se concentram as
60

atividades de extração gumífera, ou de coleta de castanha; onde


estão os tapiri para a moradia e o tapiri para defumação, e as bocas,
ou início, das estradas de seringa, uma "picada " (caminho) que liga
as seringueiras de onde se extrai o látex.

Eram caminhos e trilhas que duravam dias inteiros. Animais, doenças,


plantas, tudo ali foi forjado para a sobrevivência da maior biodiversidade do planeta.
Isso significa que, a todo momento, a tensão se fazia presente, já que a morte era
algo comum; a fauna e a flora faziam de tudo para viver e se reproduzir. Aquilo que
os olhos conseguiam ver escondia surpresas recorrentes. Além de todos os
problemas externos, a solidão, a loucura, a depressão e muitas doenças
ameaçavam a vida do seringueiro, como podemos ver na seguinte passagem:

Estavam acostumados a tais cenas. Muitos seringueiros, egressos


dos centros habitados, morriam de febre negra ou beribéri. Morriam
à míngua, tremendo ou imobilizados nas redes, sem socorro de
ninguém, com as pernas inchadas, sem poder andar, até o cinto
infernal, que asfixia devagarinho, abafando o coração. Tinham
morrido há tempos; varejeiras, cucuras, torós, urubus devoravam
os corpos (MAIA, 1999, p. 43).

Por outro lado, havia também riqueza e controle, centralizados em torno dos
seringalistas e dos coronéis do barranco, que os exerciam de maneira regional.
Geralmente, no senso comum, a figura do seringalista não se mistura tanto com a
do dono do barracão e a do Coronel do Barranco; contudo, na maioria das vezes,
todas essas denominações dizem respeito à mesma pessoa.
O barracão, citado inúmeras vezes em Beiradão, comportava diversas
situações, das mais hilárias às mais trágicas. Era um local onde os mecanismos de
controle se evidenciavam mais claramente, como o controle do trabalho e da vida
dos indivíduos. Por causa das “dívidas”, tendenciosamente geradas no barracão
pelos seringalistas, os seringueiros se viam presos a um sistema que buscava
camuflar o trabalho forçado. A alcunha de ‘coronel’ dava prestígio político ao
seringalista, possibilitando-lhe o contato direto com as decisões do governo que,
como retratado na obra, praticamente não eram aplicadas nas localidades mais
isoladas. A respeito da figura do Coronel do Barranco, Mendes (2013) comenta:

Na Amazônia, mesmo sem título oficial, tornou-se costumeiro


agregar o termo do coronel ao nome dos proprietários de seringais.
61

Todos eles passaram a ser chamados indistintamente de coronéis


de barranco, assim como todos os aviadores (sujeitos que faziam o
aviamento, ou seja, eram responsáveis pelo transporte dos
produtos para os seringais) da região receberam o título de
comendador, mesmo sem a comenda oficial (MENDES, 2013, p.
36).

A relação de trabalho não era de “funcionário” e “chefe”, mas sim de


“freguês” e “patrão”. Muitas vezes as dívidas começavam antes mesmo do
trabalhador sair de sua terra natal, incluindo-se todo e qualquer utensílio que o
seringueiro precisasse para sobreviver e trabalhar. Maia (1999) descreve a maneira
como os patrões agiam e as consequências dessas ações para a vida do
seringueiro:

Os patrões conservavam vigoroso segredo sobre os preços, numa


época sem telegrafo e navegação. Não explicavam os preços das
cotações, como os dos gêneros principais que vinham de Manaus,
acrescidos de fantásticas despesas nos trajetos pelo rio,
adicionando-lhe de 100% a 200%. Não tinham o direito a
passagens nos batelões, nem a favores de medicamentos, mesmo
adoecendo em serviços de campos ou expedições a seringais
inóspitos. Adoeceram, porque tinham que adoecer. Pagassem os
remédios, a alimentação e, se não quisessem mais, seguissem
outros rumos. Rapagões, outrora musculosos, saíam emagrecidos,
caminhando trôpegos para a embarcação salvadora. Outros já
chegavam enfermos nos lotes dos brabos, trazendo mulheres
anêmicas e crianças barrigudas, condenadas ao desaparecimento
à primeira febre (MAIA, 1999, p. 104).
Além do seringalista, que era “coronel” e dono do barracão, existia a figura
do aviador. Como mencionado por Mendes (2013), o aviador era o fornecedor de
produtos de bens, consumo e itens relacionados à produção. O seringueiro é,
portando, o aviado, freguês dos aviadores. Dessa forma, o seringueiro mantinha
uma dupla relação de dependência. Beiradão representa as táticas aviadoras da
seguinte maneira:

Os adiantamentos semanais, feitos no Machado, pelos aviados que


vendiam as mercadorias com as tributações de fretes, aumentavam
cem por cento.
Encareciam, pelos estorvos de transporte nas cachoeiras: o batelão
era desocupado, e caixotes passavam ao lado oposto, ou nas
lombadas de burro.
Submetiam-nas os aviadores e novos cálculos, a fim de serem
revendidas aos seringueiros, ansiosos por trabalho remunerativo:
até então, somente despesas. Gastos do sertão para Fortaleza,
diárias nos hotéis, passagens para o Madeira e o Machado. Trem,
62

navio do “Lóide Brasileiro”, gaiola da “Amazon River”, batelão de


voga para o alto. Um ano de produção, mesmo nos seringais fartos,
já estava comprometido. O coronel conhecia os centros, que
fundara em sucessivas viagens de desbravamento, tinha de cor o
número de machadinhos, a coleta de cada ano. Havia uma fase
preparatória. Quando o extrator era vadio, faltoso nos cortes, com
desculpas de roças e doenças, recebia ordem de transferência para
uma estrada magra, de poucos galões de leite. Endividava-se,
porém os adiantamentos iam cessando, ensinando-o a trabalhar
para viver. Não poderia mudar-se sem pagar, ou encontrar quem
se responsabilizasse pelas dívidas (MAIA, 1999, p. 47).

Nessa passagem, o narrador expõe um discurso colonial: “Quando o extrator


era vadio, faltoso nos cortes, com desculpas de roças e doenças”. Nenevé e Gomes
(2011), analisando os estudos de Fanon sobre a relação de trabalho do colonizado,
nos ajudam a compreender a engrenagem das empresas coloniais europeias, como
as que patrocinavam a exploração da borracha e a invasão de terras indígenas.
Segundo os autores,

Fanon analisa os mecanismos da alienação usados pelas empresas


coloniais europeias que justificam seu controle de território do
colonizado com o discurso de progresso. Por ser o colonizado
retratado como primitivo, preguiçoso, no limiar entre o homem e o
animal, o colonizador tem a missão, ou pelo menos acredita nisso,
de civilizá-lo, de levar luz a estas trevas em que consiste a sociedade
do colonizado (NENEVÉ; GOMES, 2011, p. 30).

Essa mesma visão permeia o sistema de aviamento, exclusivamente


baseado na troca. Na relação econômica entre o seringueiro (aviado) e o vendedor
(aviador), os pagamentos eram feitos com a produtos extraídos na floresta, pois
raramente circulava dinheiro nos seringais, “restringindo-se às cidades e aos
regatões” (MAIA, 1999, p. 28); assim, o aviamento é mais uma ferramenta de
controle do poder colonial, considerando-se que “[...] o sistema de aviamento
caracteriza-se pelos gravames acrescentados às mercadorias fornecidas, altos
juros e computação de eventuais riscos que os produtos prometidos sejam
desviados” (CHEROBIM, 1983, p. 105). Além do seringueiro, do seringalista e do
aviador, temos que destacar as casas aviadoras de Belém e Manaus, as casas
exportadoras e os centros industriais multinacionais, que são peças estruturais do
padrão do poder colonial estabelecido na Amazônia.
63

Para ilustrar o mecanismo do trabalho no seringal, podemos retratar o


funcionamento do mercado da borracha: o seringueiro recolhia o látex das árvores,
através de técnicas de corte aprendidas com os indígenas; o látex era repassado
para o aviador, que o direcionava para o seringalista; o seringalista, por usa vez,
encaminhava o látex para a casa aviadora. Entretanto, no decurso dessa época,
havia outros tipos de comercialização na Amazônia, especialmente os praticados
pelo “regatão”.
O regatão consiste em uma embarcação comercial independente, que
também funcionava parcialmente sob o sistema de aviamento, constituindo-se
como uma outra opção para a obtenção de determinados recursos, rompendo com
o monopólio do seringalista e dos aviadores registrados. O regatão possui seus
primórdios bem antes do final do século XIX, porém exerce uma grande influência
nas relações de poder na sociedade seringalista amazônica no período narrado em
Beiradão.
O comerciante do regatão não possuía ligação com o barracão e, de modo
discreto, realizava trocas diretamente com o seringueiro. Podemos dizer que o
regatão representava, à época, um comércio clandestino dentro da Amazônia. De
acordo com Marangoni (2018, p. 5),

Em consequência dessas atividades, os regatões têm uma


reputação ambígua na cultura e na história amazônica. Alguns
autores argumentam que os regatões desempenharam um papel
destrutivo no comercio amazônico. Fraudando caboclos ingênuos
e roubando a freguesia de firmas legitimas. Outros sustentam que
eles tiveram um papel positivo, introduzindo uma alternativa às
relações comerciais tradicionais.
Apesar da falta de convergência e consenso sobre o caráter dos
regatões, a importância do regatão para a economia amazônica
deve ser considerada, uma vez que embora com menor grau de
dependência, até os dias atuais, para muitas comunidades
ribeirinhas do interior do Amazonas, o regatão e o sistema de
aviamento ainda são as principais formas de abastecimento das
mercadorias que não podem ser produzidas nessas localidades.

O aviador e o regatão são figuras-chave que compunham as relações de


poder na sociedade do seringal, porém não são as únicas: remeiros, cedreiros,
canoeiros, cozinheiras, padres, advogados, políticos, trabalhadores da linha
telegráfica e jangadeiros também se inserem nesse cenário. Em Beiradão, há
relatos acerca de alguns pequenos centros populacionais, como Santo Antônio.
64

Santo Antônio do Rio Madeira era um dos principais centros comerciais na região
nessa época e contava “com grandes armazéns, bares, pensões, cartórios, juizado,
intendência, destacamento de polícia, olaria, escola e outros equipamentos
urbanos” (DA FONSECA, 2017, p .74). Nas localidades mais isoladas, essa
estrutura não existia.
Todo esse cenário, representado em Beiradão, e suas bases históricas nos
remetem à escrita de Quijano (2009) sobre a colonialidade da distribuição mundial
do trabalho. O referido autor frisa que:

No ‘eurocentro’, o que dominam são os Capitalistas. (...). Na


“periferia Colonial”, os dominantes são os Capitalista tributário e/ou
Associados Dependentes. Os dominados são escravos, servos
pequenos produtores mercantis independentes, assalariados,
classes médias, camponeses (QUIJANO, 2009, p.110).

Quijano (2009) denomina “periferia colonial” os lugares onde,


demograficamente, a relação de trabalho salarial foi sempre minoritária em relação
“a outras formas de exploração do trabalho: escravidão, servidão, produção
mercantil simples, reciprocidade” (QUIJANO, 2009, p.110), e por que não dizer, o
sistema de aviamento. Dessa forma, podemos dizer que a análise proposta por
Quijano (2009), nesse contexto, se aplica à América Latina e à Amazônia.

4.3 O Beiradão decolonial: as vozes da margem

Prosseguiam na subida tortuosa do rio


desconhecido, caminho de riqueza e morte.
Amarelava-os o paludismo; borrachudos e
maturis sorviam-lhes o sangue.
Caças grandes e aves fervilhavam.
Finda a soalheira, descia a noite,
emparedando-os mais. Jantavam cedo, e
ainda com sol. E se metiam nos
mosqueteiros, vencidos logo pelo sono até o
romper da madrugada (MAIA, 1999, p.51).

A narrativa de Beiradão, sem dúvida, carrega consigo uma fala saudosista,


que conta sobre a vida do ribeirinho nas primeiras alocações amazônicas para o
esquema de comércio da borracha. Nessa narrativa, podemos identificar discursos
65

que nos permitem avaliar os possíveis sentidos da criação estética da obra literária.
Ao expor essas situações, podemos ver como elas refletem os pressupostos
coloniais, ou seja, os temas apresentados na literatura que dizem respeito a
questões fundamentais sobre a colonialidade e suas representações.
Desse modo, tratamos aqui de questões que envolvem os estudos pós-
coloniais e decoloniais. Usamos o termo decolonial por estarmos tratando, nesta
dissertação, de uma obra que representa a Amazônia, ou seja, uma produção
criada sobre a América na América e sobre a Amazônia na Amazônia. Contudo,
apropriamo-nos de falas de autores pós-coloniais porque, em nosso ponto de vista,
na contribuição teórica desse contradiscurso, tanto o movimento pós-colonial
quanto o decolonial partilham dos mesmos preceitos, tendo como base a relação
entre o colonizado e o colonizador. Com isso, não rompemos completamente com
as contribuições com autores considerados (por uma parte do movimento
decolonial) de espisteme eurocêntrica, como é o caso de Foucault, Sartre e outros,
visto que, para entender melhor a colonialidade do poder e suas representações
literárias, esses autores são fundamentais.
Isto posto, na obra Beiradão, buscamos identificar como os colonizados -
especificamente os retirantes nordestinos, que buscavam emprego e novas
oportunidades - encontravam-se subalternizados, em condição de subordinação,
sob o jugo do trabalho, muitas vezes forçado, no seringal. Avaliamos, da mesma
forma, a falta de condições mínimas para uma vida digna e como a morte era
comum, evidenciando um dos vários tipos de controle dessa relação de poder que
Beiradão abrange:

O gado era mais feliz: vinha com um tratador. O cearense? Um


maltratador, como dizia o Zé Machado. Sujeitos inconscientes iam
buscá-los no sertão, contando grandezas: tinham ordenado,
percentagens sobre cada cabeça, matanças nas passagens, nos
hotéis, nos centros de fornecimento (MAIA, 1999, p.104).

O trecho acima evidencia, em comparação ao gado, as condições


desumanas que muitos indivíduos passaram no início das ocupações do trabalho
no seringal. Através de propagandas e agenciadores, muitos desses nordestinos
não conseguiram nem chegar à Amazônia. Os que chegavam às terras amazônicas
percebiam que todas as promessas de uma vida mais fácil e cômoda, com
66

prospecção de um futuro melhor e progressão econômica, não eram reais. Nesse


cenário, o nordestino era o Outro, ou seja, aquele que se assemelhava ao que
inferiu Dussel (1993) ao analisar a cheda dos europeus à América. Segundo esse
autor,

O Outro, em sua distinção, é negado como Outro e é sujeitado,


subsumido, alienado a se incorporar à Totalidade dominadora como
coisa, como instrumento, como oprimido, como “encomendado”,
como “assalariado” (nas futuras fazendas), ou como o africano
escravo (nos engenhos de açúcar ou outros produtos tropicais)
(DUSSEL, 1993, p. 44).

Esses indivíduos são transfigurados, metamorfoseados, reduzidos a menos


que animais. Todo esse sofrimento relatado por Maia no processo de colonização
da Amazônia também revela, em certa medida, como as representações do poder
que partem dos grupos considerados da margem - levando em consideração que
o poder central seria o do estado - também se adapta à pressão colonizadora,
como podemos observar no seguinte trecho, que é uma fala da personagem Padre
Silveira:

O sofrimento forja o espírito e a autonomia do Norte. Até lá, morrerá


muita gente por esses igapós. Muita gente também ficara abrindo
seringais, varadouros, constituindo famílias. E ainda se queixam
dos brabos, que são desordeiros, que trazem facas, que praticam
assassinatos... Crêem em Deus e Deus o Perdoará! (MAIA, 1999,
p. 105).
Através dessa fala proferida pela personagem Padre Silveira, vemos o fardo
dos primeiros beiradeiros da Amazônia sertaneja, que não eram exatamente os
seringueiros. Os mateiros, pessoas responsáveis por abrir caminhos e estabelecer
habitação na floresta, cortando a mata, foram teoricamente os primeiros a se
estabelecerem nesse espaço, durante o processo de colonização do beiradão
amazônico, passando por quase todo esse sofrimento narrado por Maia. Contudo,
o sofrimento não era exclusividade apenas desse grupo, como podemos inferir do
seguinte trecho:

Nem sempre decorreram vitoriosas todas as viagens. Mateiros


houve que nunca mais regressaram; selvas brutas lhes guardam os
restos, escarnados pelos bichos. Outras vezes, sobras de
vanguardas dissolvidas vinham narrar a crônica da derrota. Mas, de
temeridade em temeridade, as colocações foram surgindo e
dominando os altos rios. Levas nordestinas e caboclas sucediam-
67

se para substituir e vingar os que morreram; enchiam-se de


trabalhadores os batelões; os proprietários construíam armazéns à
marfem do Madeira; serviam de sanatório aos enfermos de febre
negra e paludismo, ou de depósito para os navios de linha, que se
abarrotavam de produtos para Manaus (MAIA, 199, p. 53).

É sabido que os primeiros trabalhadores do esquema mercantil da seringa


na Amazônia estavam a serviço do capital colonial, porém não podem ser
considerados propriamente colonizadores. Sem dúvida nenhuma, a situação das
etnias nativas em relação a esses grupos de trabalhadores é um caso mais
complexo, pois, até então, muitas populações indígenas não haviam tido contato
direto com a colonização, ou seja, nunca estiveram sob o jugo da colonialidade e
dos seus controles, seja do saber, do ser ou do poder.
Inversamente, os grupos que partiram do Nordeste carregavam consigo uma
educação predominantemente baseada no eurocentrismo ocidentalista, em uma
sociedade altamente religiosa, nos padrões católicos. Tanto a seca do Nordeste
quanto as investidas sobre a monetização da natureza na Amazônia, através do
mercado da seringa, estão ligadas diretamente às consequências do padrão do
poder colonial que se estabeleceu nessas regiões. Sendo assim, muitas figuras que
aparecem na narrativa de Beiradão como retirante, seringueiro, remador, que não
pertencem ao grupo de etnias nativas da região, tiveram o controle dos seus corpos
restringido como colonizados.
Outro ponto importante a levarmos em consideração é o papel da Igreja que,
como um dos alicerces que sustentam esse padrão do poder nas Américas,
instaurava na mente dos colonizados o que Foucault chamou de panopticon, uma
estrutura arquitetada e criada, inicialmente, para melhorar o poder de controle nas
prisões, mas que serve de exemplo para entendermos o controle da subjetividade
desses grupos. Frantz Fanon (1961, p. 51) afirma que:

A burguesia colonialista é ajudada em seu trabalho de


tranquilização das massas pela inevitável religião. Todos os santos
que estenderam a outra face que perdoaram as ofensas, que
receberam sem sobressalto os escarros e insultos são explicados
e dados como exemplo.

A arquitetura desse modelo funcionava de modo que os presos não


enxergavam quem os vigiava e, por isso, acreditavam que sempre estavam sendo
68

observados pelos vigias, mesmo que estes não os estivessem vigiando. Podemos
dizer que esse mesmo padrão de controle, acontecia na Amazônia, uma vez que,
pela lógica instituída pela Igreja, Deus exercia o panoptismo, vigiando a tudo e a
todos, por meio de seus representantes na terra. Aos membros da Igreja cabia
disseminar tais ideias, para moldar corpos e mentes, visando extrair benesses do
trabalho do seringueiro, como podemos observar no excerto abaixo:

Padre Silveira ralhava muito: se a terra é um inferno, o outro, o de


Belzebu, não tem comparação. Procedendo bem, dando peles de
borracha para igreja, já se vê uma lasca do céu verdadeiro. Todos
erram, até o padre tem erros humanos, mas não é razão de descrer
no céu. Nas secas, o retirante ainda poderá correr pelas estradas,
- sair para cidades ou outros lugares a pé ou a cavalo. Aqui, não há
para onde correr, - cair na mata, ou desaparecer nos rebojos, se
não conhecer os seus mistérios e duvidar de Deus (MAIA, 1999, p.
61).

Embasado na premissa de um Deus que tudo vê, o controle colonial


estendeu seus limites para além daquilo que podiam realmente alcançar de
maneira física e material. Sob pena de sofrimento eterno, a subjetividade dos
indivíduos foi sendo podada e controlada aos poucos. Com isso, a Igreja lançava
as amarras da colonialidade: os nordestinos, reterritorializados e colonizados,
muitos dos quais vieram para a Amazônia e não tinham mais condições de subsistir,
não foram expulsos de maneira direta, mas perderam suas condições de viver na
terra em que viviam; os indígenas nativos que ainda lutavam contra os invasores,
por vezes eram catequizados sem escolha. Sampaio e Nogueira (2020, p. 3)
avaliam que:

Converter o indígena significava usar estratégias que por vezes


culminavam na violência física. Implicava inseri-lo, principalmente,
nas aldeias missionárias por meio do medo e da intimidação. A
colonialidade do poder, como infere Aníbal Quijano, aniquilou
culturas, subjugou corpos e se infiltrou no interior do tecido social
deixando resquícios da engrenagem extremamente perversa até os
dias atuais.

Entretanto, havia um limite na condição de subalternidade de alguns


seringueiros que, mesmo com todo aparato restritivo que os cercava, rompiam o
controle sobre seus corpos de forma cruel e violenta. Quando se viam em situações
perturbadoras ao extremo, motins e violência certamente aconteceriam. Para expor
69

essas situações, Maia (1999) recorre a microtramas, como no caso de Boa-Vida,


umas das localidades mencionadas em Beiradão:

“Boa-Vida” foi um exemplo: o proprietário não pagava os saldos,


furava as meninas impúberes, enfeitava os seringueiros,
principalmente com dívida, maculando-lhes as mulheres. Eram os
juros de mora, cobrados por esse modo seviciante.
Deu-se, então, a tragédia. Aguardaram a saída do motor, que
deixara mercadorias para o verão inteiro, cercaram armazéns e o
barracão, pela madrugada. O coronel não podia reagir, pois os
empregados haviam retirado as armas, durante a noite.
Amarraram-no primeiramente; amarraram a mulher, a cozinheira,
as três filhas menores. Cevaram-se nas quatro, banquetearam-se
em frente das vítimas todas despidas, cunhatãs foram pisoteadas,
após o geral. Eram muitos homens e aproveitaram “todos os
buracos”. Incendiaram as casas, embebedaram-se e lembravam
loucos, que se apossassem de um quarteirão. O fogo avermelhou
os horizontes. Um batelão tripulado, que vinha do alto, parou no
estirão, na parte de cima. Foram equipados espiões por terra,
devidamente armados. Bloqueados, bêbados, os criminosos não
puderam resistir. Entregaram-se e, sofrendo sede e fome no
batelão, foram entregues às autoridades da fronteira. Peia,
trabalhos forçados, subalimentação, salmoura nos ferimentos
amoleceram ou deram fim nos cabras. Sugeriu motivos para nova
vingança? Nenhum. Repito: Cangaço daqui é revolta e tocaia,
Padre Silveira. Há, certamente, vinganças cruéis, como a do
caboclo Sabino” (MAIA, 1999, p.121).

Na excerto em destaque, o que mais nos chamou a atenção não foi apenas
a violência cometida pelas personagens, cujo motivo era falta de pagamentos,
sucessivas humilhações e tratamento precário contra a dignidade entre os dois
grupos (seringalista e seringueiro), ou o efeito estético que Álvaro Maia emprega
ao contá-la, através de um narrador que, de modo explícito e tranquilo, parece estar
acostumado com os desfechos mais cruéis que possamos imaginar acontecer na
Amazônia. Tudo isso, por si só, já indica inúmeras consequências do padrão do
poder colonial. O que mais nos sensibiliza e impressiona nesse trecho, é o controle
sobre o corpo feminino e como a posição da mulher é afetada pelo processo
colonial na região.
Nos conflitos relatados, a mulher não é respeitada; ao contrário, a mulher é
violada. Mesmo não tendo interferência direta nos problemas de trabalho do
seringal, as mulheres eram vítimas de brutais abusos físicos e psicológicos. Esses
reflexos da obra nos mostram uma sociedade machista e patriarcal em sua
70

formação. Ainda sobre a colonização do corpo e do sexo, exemplos de pedofilia


também são narrados em Beiradão:

Arsênico trazia mulheres do Ceará e do Pará: vinha dos bairros da


prostituição. Vendia aos que tivessem saldo: pagavam as
passagens, o hotel e o preço, conforme as idades. Arrebanhava
cunhãs novas, que não eram moças ainda, e entregava à cozinheira
velha para preparar, a fim de evitar estrupícios. Quando ficavam
prontas, vendia-as mais caro. Tinham dez, onze anos (MAIA, 1999,
p. 254).

Na narrativa de Beiradão, embora denunciando casos de violência contra a


mulher, as vozes, as tramas e histórias não possuem a perspectiva das mulheres,
o que pode gerar a ideia de que, nessa sociedade seringalista, a mulher era
assujeitada aos afazeres exclusivamente domésticos ou a trabalhar como
cozinheira de expedição. Não é nossa intenção reduzir o valor desses trabalhos,
contudo, como estamos falando também sobre a diversidade das personagens
amazônicas, é importante que se saiba que a mulher ocupava diversas funções
diretas, como a própria coleta da borracha na floresta, o transporte, entre outras
ocupações.
Nesse sentido, apesar de trazer elementos do discurso que podem ser
considerados pós-coloniais, a obra Beiradão encobre a mulher nas relações de
trabalho, apresentando-a como submissa, que tem o corpo subalternizado. O
caráter denunciativo da narrativa é positivo, porém há uma série de estudos
versando sobre os seringais na Amazônia que demonstram que a mulher tinha
papel fundamental no corte e na produção da borracha.
Outro caso que nos chama a atenção na trama e que exemplifica um pouco
mais as relações de exploração do trabalho é uma passagem sobre o Caboclo
Euzébio. Dono de um pedaço de terra e um dos mais antigos expedicionários do
local, “entregou-se à pesca” (MAIA, 1999, p.126) após uma expedição traumática:

Caboclo Euzébio inspirava confiança e era contratado para missões


difíceis e perigosas, espionagem de índios, descobertas de
seringais e castanhais virgens. Detestava incumbências miseráveis
como perseguição de fugidos, corretivo em tronco, castração de
touro e barrasco.
Costumava festejar São João, santo dos pescadores, e convidava
vizinhos e gente de largas distâncias. Popocavam as ronqueiras,
corria cachaça, o forró durava três dias em quanto houvesse
71

comida e os tocadores resolvessem a ficar, sem outros


compromissos (MAIA, 1999, p.127).

O adjetivo "Caboclo", atribuído a Euzébio, é um termo colonialista usado


para o sujeito pagão (índio e seringueiro). Esse termo diferencia, numa hierarquia
social, indivíduos que possuem em sua história traços da miscigenação e em
condição de exploração econômica; na maioria das vezes, são pessoas que vivem
no campo. De acordo com Lima (1999, p. 7),

Na região amazônica, o termo caboclo é também empregado como


categoria relacional. Nessa utilização, o termo identifica uma
categoria de pessoas que se encontra numa posição social inferior
em relação àquela com que o locutor ou a locutora se identifica.

Lima (1999) sugere, além disso, que o termo “caboclo” era, na realidade,
uma espécie de desprezo para com o Outro e, posteriormente, foi ressignificado,
para designar a mistura entre ameríndios e brancos. Ambas as definições são
pejorativas e colonizadoras, pois a utilização desse termo “é caracterizada por uma
referência similar ao outro e à exclusão” (LIMA, 1999, p. 10).
Somando-se às contribuições de Lima (1999), Martins (2009) nos ajuda a
compreender as intenções dos discursos que atribuem o termo caboclo ao Outro.
Segundo Martins (2009, p. 144), “na região os não-índios, brancos ou não, chamam
a si mesmo de cristãos. E classificam os índios como caboclos, isto é, pagãos, por
oposição aos cristãos”.
Na trama de Beiradão, Caboclo Euzébio se choca quando percebe que os
índios, ao contrário do era defendido pelo discurso do colonizador, eram indivíduos
iguais a ele, que possuíam como diferença apenas a cultura e os costumes, que
sentiam dores e afeto pelos seus familiares, estavam organizados em comunidades
complexas e sendo atacados no seu próprio território, ou seja, não foram as etnias
nativas que começaram a guerra. No entanto, Caboclo Euzébio só percebeu isso
após muitos conflitos sangrentos com os indígenas.
A narrativa apresenta que coube ao Caboclo Euzébio a iniciativa de
estabelecer um contato amistoso com os nativos, mais especificamente com a etnia
Parintintins. É valido lembrar que essa atitude não era um padrão de abordagem,
72

mas uma ação própria do Caboclo Euzébio frente aos traumas que o padrão do
trabalho colonial inseriu em sua personalidade. Observemos o excerto a seguir:

Caboclo Euzébio perdeu a alegria. Depois dessa expedição caiu


em tristeza, pensando em cunhãs estripadas a quicés, índios
degolados, depois de mortos. Igual ais cristãos como dizia o padre,
embora mais infelizes. Entregou-se a pescarias e afirmava que, na
primeira expedição contra os Parintintins, ficaria ao seu lado contra
os civilizados, se é que eram civilizados homens acostumados à
matança de inocentes (MAIA, 1999, p. 129).

O questionamento levantado pelo narrador, ao mostrar a situação de


Caboclo Euzébio, é o mesmo levantado pelos estudos pós-coloniais e decoloniais
em torno do que é ser civilizado e, consequentemente, do que é ser primitivo. Optar
por lutar uma guerra ao lado dos Parintintins é se opor ao padrão do poder colonial
e afirmar a si mesmo que os meios desse padrão são fundamentados numa lógica
oposta ao discurso apresentado, ou seja, o discurso civilizatório pode ser
considerado primitivo, atrasado e insidioso, tornando sua racionalidade lógica
questionável.
As falas de Caboclo Euzébio representam um discurso descolonizador. Ao
se opor à ideia de raça e cultura superior, Euzébio rompe com o paradigma
dominante, dando um passo a mais no entendimento descolonizador. Um exemplo
prático, no caso, é a experiência de sua expedição. Logo em sequência, Euzébio
foi “intimado - relatar mais uma vez a história da expedição aos índios, nos fundões
do Maici, rio traidor, cujas águas parecem discar os gritos de guerra e assassínios,
nos revoltantes encontros entre brancos e ameríndios” (MAIA, 1999, p.129).
Abaixo, temos um trecho do relato de Euzébio:

Não havia sorte para os Parintintins. Estalou o tiroteio. Os homens


ainda pegaram arcos e frechas, correndo pelo terreiro. Coitados,
estavam carregando paneiros de mandioca, amontoando na frente
da casa de farinha. Homens, mulheres, curumins, talvez uns
cinquentas. O sinal seria o primeiro tipo, dado por mim. Eu tremia,
lembrando das palavras do Padre Silveira. Ia me dar mal, mas tinha
que descobrir seringais e castanhais. Estavam descobertos os
castanhais, faltando apenas limpar de índios. Ninguém podia limpar
com açúcar e sim matando os pobres.
Juntaram-se na casa de farinha, uns de cócoras, as mulheres
sentadas; sapequei novas balas, que visavam cabeças e corpos.
Pareciam espantados. Correram parra o barracão do centro, vieram
com arcos e frechas, outras se dirigiram ao porto, defendendo-se
73

entre árvores. As mulheres enfurnaram-se nas barracas. Morreram


todos. Primeiro os homens, que poderiam brigar. Quando não havia
mais homens, descemos dos paus e fizemos cerco ao mulherio de
todas as idades. Poucas gritavam e não reagiam. Os terçados
rolaram os pescoços. Algumas estavam de bucho. Chico Preto
abriu uma, como quem abre a barriga de coati: o menino estava
para nascer, ainda se mexia. Jogamos os corpos n’agua e tocamos
fogo das casas. Foi a expedição do Maici, a expedição da desgraça
(MAIA, 1999, p. 134).

O massacre dos Parintintins nos mostra que os critérios para determinar o


valor da vida dos indivíduos possuem, em sua métrica, um caráter capcioso e
racista, fundamentado e praticado sob a matriz racial do poder. Mignolo (2008) nos
ajuda a entender esses critérios, mediante a seguinte explicação:

Os critérios não mencionados para o valor das vidas humanas são


um óbvio sinal (de uma interpretação descolonial) de política
escondida de identidade imperial: quer dizer, o valor de vidas
humanas a qual pertence a vida do enunciador, se torna uma vara
de medida para avaliar outras vidas humanas que não têm opção
intelectual e poder institucional para contar a
história e classificar os eventos de acordo com uma classificação
de vidas humanas: ou seja, de acordo com uma classificação
racista (MIGNOLO, 2008, p. 294).

A narrativa continua e, como numa espécie de vingança espiritual, todos os


que atuaram e/ou cooperaram com a cruel expedição experienciaram outras
tragédias. A partir de então, Caboclo Euzébio passa a questionar sua existência e
acaba entrando em depressão. Ao que parece, quando Caboclo Euzébio rompe
com os controles coloniais da sua subjetividade e conhecimento, ele fica à deriva,
sem outra opção epistêmica, sem ter em que acreditar. Esse é um exemplo de quão
profundas podem ser as amarras da base educacional colonial eurocentrada e
ocidentalista, que subjuga a vida de seres humanos através de uma retórica racial.
Concluímos, assim, o estudo sobre as representações coloniais contidas na
obra Beiradão, com destaque para a produtiva microtrama de Caboclo Euzébio,
que, em sua construção, apresenta inúmeros elementos relacionados à
colonização da Amazônia, ao poder e seu caráter colonial. Através de diversas
personagens, pudemos ouvir suas vozes e suas histórias. Sem dúvida, devido à
extensão da obra e sua riqueza, muitas personagens não foram contempladas
74

neste momento de nossa análise, mas, futuramente, elas terão suas vozes ouvidas
e suas histórias analisadas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da análise literária da obra Beiradão, vimos que Álvaro Maia lança
inúmeras vozes amazônicas no imaginário social: vozes plurais, escondidas e
encobertas pelo discurso único que cerca os saberes sobre a Amazônia, em virtude
de sua história geralmente concebida por outras vozes, atendendo sempre a
perspectivas externas à própria Amazônia. Desse modo, Beiradão recobra a
memória de pessoas e de grupos que foram silenciados. Em meio a essa polifonia
literária, pudemos notar discursos e atos que remetem à lógica de controle do poder
da colonialidade. Quando tratamos da temática do poder em Beiradão, estamos,
invariavelmente, focados no seu caráter colonial; afinal, é sob a perspectiva
decolonial e pós-colonial que analisamos os sentidos da trama.
Entender o que é o beiradão e como são construídas as particularidades
beiradeiras nos ajuda a perceber que elas não representam o todo do grupo; sem
dúvidas, obter esse entendimento é um avanço para rompermos com os discursos
que se utilizam da homogeneidade dos seres para agregar um valor a um grupo
em detrimento do outro, como é o exemplo da colonialidade.
Ainda hoje encontramos literaturas de expressão amazônica ofuscadas por
inúmeros fatores, sejam políticos, sociais ou epistêmicos. Essas obras, que trazem
a existência do ser humano na floresta amazônica e remetem a uma crítica ao
sistema de colonização e sua relação com o trabalho e o capital. Contam sobre a
crônica dos indivíduos no beiradão, sobre a formação de comunidades, municípios,
estados, histórias no seringal, no barracão e em outros inúmeros espaços. A
Amazônia não é plural apenas em pessoas e culturas, mas também em suas
superfícies e ecossistemas, nas variações das relações entre o ser humano e o
Outro e a natureza.
Salientamos a importância de que essas vozes sejam ouvidas, minando as
teorias racistas que transpõem os discursos de poder transvertido de verdade.
Quando conhecemos a história do Outro e percebemos que os Outros são como
75

somos nós, compreendemos que o Eu do discurso fala por um sistema capitalista,


que subjuga grupos humanos sob a premissa da superioridade racial.
A naturalização desses argumentos é tão profunda e enraizada que, não
raras vezes, o senso comum acredita que essas referências não foram
historicamente construídas, com o propósito de exploração do homem e da
natureza, mas que fazem parte de uma casualidade ou de uma possível falta de
senso de humanidade decorrente da uma época. Essa crença gera uma sensação
de imobilidade e aceitação, ou pior, outra parte desse senso realmente acredita ou,
se não acredita, aproveita-se dessas premissas racistas para benefícios
particulares.
Apesar de abordar questões pertinentes a algumas formas de controle
colonial, a narrativa de Beiradão possui uma estrutura heterogênea e uma extensão
demasiado longa. Isso significa que o modelo escolhido por Maia para contar as
histórias da trama comporta inúmeras outras microtramas dentro da trama principal.
Dada essa rede de tramas, foi necessário selecionar aquelas em que
aprofundamos nossa análise. Então, muitas outras histórias não tiveram espaço
neste estudo; entretanto, tais histórias carregam consigo outras faces e outras
vozes desse beiradão e possivelmente serão objeto de estudos futuros.
Outro ponto (de)limitador de nosso estudo é que a colonialidade do poder,
teoria principal que fundamenta nossa análise, apresenta, em sua problemática,
cinco formas principais de controle: da economia; da autoridade; da natureza e dos
recursos naturais; do gênero e da sexualidade; da subjetividade e do conhecimento
(BALLESTRIN, 2013). Apesar de focarmos ora nos controles do gênero e da
sexualidade (como na questão sobre a posição da mulher na sociedade beiradeira),
ora no controle da subjetividade e do conhecimento (como no caso de Euzébio),
não poderíamos deixar de mencionar outras formas de controle exercidas nesse
padrão de controle do poder colonial e capitalista. Essa escolha nos direcionou a
trazer uma visão mais ampla dessas relações, para que não fossem vistas de
maneira totalmente isolada, uma vez que os dispositivos coloniais exercem seus
domínios de maneiras variadas. Entendemos, entretanto, que tal escolha pode dar
a impressão estética de brevidade nas discussões.
Todavia, Beiradão nos abriu várias portas para novos estudos, tanto no
espectro cultural quanto no estrutural. Muito do que foi tratado por Maia e não
76

ganhou espaço na escrita da presente dissertação, por não fazer conexão direta
com a ideia proposta, foi selecionado para futuras pesquisas: a violência e o medo,
a perda da identidade, a organização temporal entre personagens e enredo; esses
temas e outros são possibilidades de abordagens futuras.
Atualmente, vivemos em um tempo em que as polaridades político-sociais
impendem que novos pensamentos a respeito da organização e do respeito social
floresçam e deem frutos. A homogeneização entre esses extremos tenta definir
sempre o Outro que discorda em uma categorização valorativa, de maneira
indistinta, mesmo que a descolonialidade seja uma outra opção ao capitalismo e ao
comunismo, entretanto não fazendo parte deles (MIGNOLO, 2017). Desse modo,
avaliamos ter proporcionado aqui algumas bases para que se entenda o
pensamento decolonial e pós-colonial, nos sentidos teórico e prático.
Diante do exposto, almejamos que nosso estudo possa contribuir para com
a ruptura da história única e com a superação dos controles coloniais que perduram
até os dias atuais. Para tanto, nesta dissertação, expusemos um leque de opções
de análise a respeito da obra Beiradão, de outras produções literárias de Álvaro
Maia e inúmeras outras obras de autores com pouca fortuna crítica.
Evidenciamos que o processo de categorização e invenção do Outro se
estende a lugares e épocas que não estão tão distantes de nós, também sujeitos
amazônicos, e que, a qualquer momento, esse discurso colonizador nos atinge... E
pode nos atingir de maneiras cada vez mais hipócritas, sutis e desleais. Buscamos,
ainda, contribuir não só com uma mudança dos ideais educacionais, mas também
para uma renovação epistêmica, visto que a educação se faz nas microrrelações
que acontecem também fora da estrutura educacional.
77

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