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PORTO VELHO
2021
RAYLAN FELIPE MACEDO SETÚBAL
PORTO VELHO
2021
RAYLAN FELIPE MACEDO SETÚBAL
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________
Profª Drª Mara Genecy Centeno Nogueira
Orientadora/Presidente - PPGMEL/UNIR
__________________________________
Prof. Dr. Miguel Nenevé
Examinador Interno - PPGMEL/UNIR
__________________________________
Profª Drª Sonia Maria Gomes Sampaio
Examinadora Interna - PPGMEL/UNIR
__________________________________
Profª Drª Juciane dos Santos Cavalheiro
Examinadora Externa - UEA
A minha companheira,
Alessandra Bastos, pela parceria,
companheirismo e paciência,
em vários momentos desta produção.
RESUMO
ABSTRACT
1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................8
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................74
REFERÊNCIAS.....................................................................................................77
8
1 INTRODUÇÃO
Buscando resgatar memórias sob uma narrativa literária, Álvaro Maia (1893-
1969) evoca verdadeiros constructos amazônicos que revelam inúmeras faces da
Pan-Amazônia: por um lado, a Amazônia sertaneja,1 composta por imigrantes e
exploradores e, por outro lado, a Amazônia dos povos indígenas2 nativos. Essas
distintas perspectivas produzidas por Álvaro Maia projetam, na literatura, uma ideia
singular sobre alguns dos microcosmos culturais que se formam e compõem a Pan-
Amazônia, espaços distintos que comportam acontecimentos singulares e que
rompem, deste modo, com as fronteiras geográficas e abstratas que categorizam a
Pan-Amazônia e seus grupos. Classificações, geralmente simplistas, ignoram a
diversidade cultural dessa macro região.
Beiradão (1999), objeto de estudo da presente dissertação, com um
diversificado vocabulário de expressões locais, reconta diálogos precisos entre as
personagens e os enunciados de um narrador onisciente, as vidas que se cruzaram
nesse imenso palco verde e como as adversidades, então inéditas, ajudaram a
forjar a identidade das pessoas que se desenvolveram no beiradão, local situado
às margens dos rios, onde vivem os ribeirinhos, também chamados beiradeiros.
Um dos pontos abordados pela obra diz respeito à trajetória de nordestinos
pobres ou empobrecidos pela vasta seca que assolou o Nordeste, os quais
encontraram na Amazônia um novo caminho a seguir. Consequentemente, com
essa realocação, toda a estrutura social desse grupo sofreu grandes mudanças e
foi necessário se restabelecer nessa outra localidade, com outras características
gerais. Por outro lado, os nativos3 originários da região amazônica passaram a
conviver cada vez mais de perto com pessoas e costumes com os quais, até então,
eles nunca tiveram contato.
Essa migração criou encontros e desencontros cada vez mais diversificados,
não apenas entre as populações vindas do Nordeste, mas também com os diversos
1
Amazônia sertaneja - núcleo social formado na Amazônia por migrantes nordestinos que, ao chegarem na
região, imprimiram seus costumes e vivências do sertão brasileiro.
2
Amazônia dos povos indígenas - núcleos sociais formados pelos nativos amazônicos, sem a influência de
costumes externos ou recusando-os.
3
Por se tratar de uma abordagem decolonial, o termo índio foi propositalmente substituído por nativo. Se os
nomes das etnias a que se refere o texto da obra aparecerem, serão mencionados.
9
dramático dos tempos da crise do mercado da Hevea brasiliensis, que resulta até
mesmo na escassez de alimentos para vários indivíduos.
Certamente, ao dar visibilidade a determinadas situações que ocorriam
nesse espaço amazônico, Álvaro Maia nos permite visualizar uma ideia de
microcosmos culturais no arcabouço social de representações da Pan-Amazônia e,
sobretudo, na/da Amazônia brasileira. Ora, se num espaço consideravelmente
reduzido diversas manifestações culturais de grupos humanos puderam florescer
de maneira tão diversificada, num olhar mais amplo, outras inúmeras possibilidades
certamente existiram e ainda existem, espalhadas pela imensidão verde da
Amazônia e todo seu alcance, camufladas ainda hoje pelo discurso difuso e
arbitrário, fruto da colonialidade na produção do saber e na concepção de natureza
como recursos naturais. Decerto, sua contribuição nos ajuda a entender uma ideia
de Amazônia plural e diversificada, em contraponto a uma Amazônia única,
mistificada, marginalizada e periférica.
Ao estabelecer esses paralelos que envolvem a construção literária do
romance, ou melhor, ao discernir o texto como fato linguístico, fundido no contexto
da Amazônia sertaneja, percebemos certa proximidade entre as capacidades
funcional e estrutural do romance com as figuras que representam esse modelo de
vida: personagens que, na relação entre o ser vivo e o ser fictício, se revelam sendo
um a concretização do outro (CANDIDO, 2006).
Intrinsecamente, observamos o modo de operação de como os preceitos da
colonialidade se reproduzem sobre os colonizados. Através do controle construído
e constituído na região, por mecanismos do poder, em ideias misóginas, baseadas
num suposto conhecimento geral de superioridade racial, tais preceitos
suplantaram, dentro das representações sobre a Amazônia, uma espécie de
dinastia etnocêntrica, eurocentrada e ocidentalista, baseada em uma ideia
construída como “verdade”, inventada com base no mito da modernidade. Desse
modo, aos povos originários ficam reservados espaços cada vez mais
marginalizados, bem como são reduzidos a um único grupo: o índio (da maneira
mais genérica possível).
O incremento dessas suposições dentro da engrenagem do saber alimenta
ideias misóginas, como dito anteriormente. Essas modificações ou aspectos
políticos se externam sob a face do poder. Michel Foucault (1979), na obra
11
2 DA PAN-AMAZÔNIA AO BEIRADÃO
Uma circunstância peculiar que chama a atenção, quando se olha para essa
composição de uma maneira mais crítica, é que a tendência de muitos
lugares/situações será sempre a partir de um determinado olhar, com inúmeras
questões por trás. No caso da Amazônia, a imagem de um conjunto é difícil de ser
apreendida, sobretudo a partir daquilo que informam os documentos oficiais, pois
tende a uma imagem não heterogênea.
É preciso ter esta multiplicidade de olhares e de vozes sobre um determinado
lugar, sobre os sujeitos que habitam o lugar. Através da literatura, conseguimos,
em partes, este olhar outro, de modo a ouvir a voz de uma heterogeneidade de
sujeitos, nativos ou não, pois grande parte da percepção e concepção que temos
hoje sobre a Amazônia é construída por um discurso que força uma imagem
deformada ou até mesmo irreal do cidadão amazônico e do próprio território.
16
Convém deixarmos claro que existe uma tensão dual entre conceitos
representativos sobre a Amazônia: de um lado, o discurso do “mito modernidade”4
se faz pela ótica do etnocentrismo ocidentalista europeu; de outro, uma visão mais
recente coexiste e resiste em enfrentamento à primeira, buscando reconstruir
perspectivas com mais intimidade e vivência com as pessoas e o lugar, que é a
visão descolonizadora. A esse respeito, Dussel (1993) nos ajuda a compreender o
que é a modernidade e seu mito; segundo o autor,
4
De acordo com Dussel (1993, p.75), o mito da modernidade consiste “em vitimar o inocente (o Outro)
declarando-o causa culpável de sua própria vitimação e atribuindo-se ao sujeito moderno plena inocência com
o respeito ao ato sacrifical”.
17
Álvaro Maia faz questão de mencionar que os desvarios políticos são um dos
principais responsáveis pelas misérias que se alastraram com a seca da região
Nordeste. É comum observamos a seca, um fenômeno natural, ser idealizada como
a principal causa desses males, atribuindo aos responsáveis públicos um
imobilismo estratégico. Em Beiradão, esse é imobilismo é questionado, visto que
evidencia o descaso, a falta de planejamento e possíveis atos de corrupção, o que
torna ainda mais drástico o período de seca.
21
Fábio Moura é personagem chave para a trama, pois é a partir dele que o
tecido ficcional é entrelaçado: “Fábio levantava o censo de vivos e desaparecidos”
(MAIA, 1999, p. 43). As viagens para a realização do cálculo de vivos ou
desaparecidos, na maioria das vezes mortos, proporcionam a Fábio o contato com
diferentes personagens, como o advogado Firmo Segadais, o Padre Silveira, o
coronel Francisco Moreira e outros tantos que aparecem apenas em algumas
cenas, representando algumas ocasiões da vida do cidadão amazônico.
Fábio Moura está numa posição privilegiada, se compararmos a outras
personagens da obra, na maior parte do período narrado em Beiradão, sem
desconsiderar a luta de Fábio desde sua juventude até a vida adulta. A questão é
que, ao chegar na região Amazônica, Fábio exerceu funções que lhe davam certo
poder. Contudo, o lugar de fala de Fábio não tira sua capacidade de leitura da/sobre
Amazônia, no sentido de entendê-la e vivenciá-la.
Há alguns questionamentos que envolvem a representação de Beiradão.
Alguns escritores afirmam que a obra e algumas de suas personagens não são fiéis
ao que o beiradão é de fato, por apresentarem o homem amazônico de uma forma
inverossímil. Entretanto, as multifaces da região amazônica não nos permitem criar
um estereótipo do sujeito amazônico; no máximo, podemos defini-las ao tratar dos
grupos culturais, de maneira etnográfica, mas é impossível avaliar suas
microsubjetividades numa escala valorativa, o que torna as escritas de Beiradão e
de Álvaro Maia representações da Amazônia, sendo uma das inúmeras faces das
literaturas de expressões amazônicas.
Possuidor da propriedade na localidade de Puruí, Fabio fiscalizava os
seringais da região. Através dessa personagem, a narrativa poética amazônica
beiradeira se faz presente, com certo tom descritivo-naturalista, conforme podemos
verificar nos fragmentos a seguir:
e decidiu não voltar atrás frente aos novos desafios que surgiam, Álvaro Maia nos
mostra que a trama de Beiradão é, na verdade, uma série de pequenas histórias
que se comportam sob uma trama maior, remontando ficcionalmente a vida heroica
dos pioneiros sertanejos na Amazônia.
Álvaro Maia destaca também, em Beiradão, a ausência de políticas públicas
do estado no território e, consequentemente, entre as relações interpessoais. O
controle político pelos coronéis de barranco impossibilitava que novos nomes
adentrassem na administração pública, mantendo sempre determinado grupo no
poder das decisões locais, como podemos ver no trecho a seguir:
A polícia nada apurou, nem foi até o lugar. Abusões do povo. Quem
iria procurar restos de ossadas, à toa, só para ouvir histórias do
arco-da-velha? A polícia não faria outra coisa. Teria de laçar
espíritos no meio do rio. [...] Os ossos foram carregados pela terra
caída, no inverno. A prova é o sítio indo pras águas. Demais, era
terra de alagação (MAIA, 1999, p.159).
27
Sobre o aspecto humano, a presença das mulheres na região era rara nas
localidades mais densas; em certas ocasiões, apenas uma acompanhava as
expedições pelos rios, contudo aparecem com frequência nas narrativas sobre os
pequenos centros. Comandadas pelos exploradores, as expedições buscavam
novos seringais e, quando imbricadas nas florestas, para fazer refeições ou
qualquer outro tipo de trabalho que necessitasse o descolamento para uma região
isolada, o grupo podia se tornar presa fácil de sequestros arquitetados pelos
nativos.
Por outro lado, a recíproca era verdadeira e ainda mais cruel. Quando os
exploradores adentravam a floresta amazônica em busca de novos seringais e,
consequentemente, entravam em conflito com os nativos, que defendiam seus
territórios, os exploradores também capturavam, mutilavam e sequestravam
mulheres nativas para obter aquilo que queriam, como é narrado na seguinte
passagem sobre a expedição do caboclo Euzébio, quando foi capturada uma cunhã
para descobrir a localidade das malocas dos Parintintins:
Os povos nativos não são tratados como bons ou maus, mas como seres
que agem de acordo com o interesse do seu coletivo, podendo ou não agir de
maneira violenta, intercalando-se essas duas condições. A quebra desse
paradigma, sob a ótica dos estudos decoloniais, representa uma maneira
descolonizadora de retratar as sociedades originárias do continente, dando-lhes
autonomia e independência fora de um possível juízo de valor, visto que esses
grupos amazônicos “deram origem a esse habitante Outro da região amazônica,
dizimado pela guerra, cativeiro, trabalho escravo e enfermidades que chegaram
junto com o mundo ocidental” (PIZARRO, 2012, p. 32). Contudo, o discurso do
colonizador continua presente, como vemos na seguinte passagem:
O período histórico é datado como final do século XIX e início do século XX.
Não havia estradas asfaltadas ou ao menos largas e em boas qualidades; as
condições estruturais de subsistência eram precárias para grande parte da
sociedade e as ferramentas que o poder exerceria pelo modelo colonial forçavam
cada vez mais a invasão de seringueiros e seringalistas nas terras indígenas.
A alimentação do sujeito amazônico também é outro aspecto cultural
abordado por Álvaro Maia na narrativa de Beiradão. Essa necessidade, quando
saciada, consistia em um dos poucos prazeres que as notáveis personagens
tinham e que representa uma parcela da identidade do sujeito amazônico. Jabá
assado, mantas de pirarucu, cachos de banana, entre tantas outras especiarias
amazônicas, revelam aspectos culturais desses grupos, uma vez que é na
alimentação dos seres humanos que a cultura e natureza se encontram, “pois, se
comer é uma necessidade vital, o que, quando e com quem comer são aspectos
que fazem parte de um sistema que implica atribuição de significados ao ato
alimentar” (MACIEL, 2005, p. 49). Vejamos o seguinte trecho de Beiradão:
Nesse sentido, é possível uma releitura que nos proporciona uma concatenação de
acontecimentos nessas obras produzidas por escritores de expressão amazônica.
Mais adiante, no decorrer da narrativa de Beiradão, os homens contam a
relação dos moradores com os alemães em geral e explicam ao Padre Silveira
como aconteceu o desentendimento no festejo que faziam:
Em 1956, foi lançada a obra Gente dos seringais, que retrata a vida
interiorana do seringueiro, a aviação como modelo econômico estabelecido
naquela localidade e vários retratos da face social desse grupo. É uma obra
dedicada à gente do seringal.
Em 1958, Álvaro Maia lançou o romance Nas narras do pretório, no qual
discorre abertamente sobre política, sua jornada no percurso político, o ex-
presidente Getúlio Vargas e as políticas públicas utilizadas em torno da economia
da borracha. Em 1958, também foi publicado Beiradão, nosso objeto de estudo.
Nesse romance, como já vimos, Álvaro Maia discorre sobre a crônica do
desbravamento da Amazônia, através de várias histórias baseadas em fatos. Nesse
44
mesmo ano foi lançado Buzinas dos paranás, livro que é um compilado de seus
poemas, em que Álvaro Maia expressa a relação entre o seringueiro, os rios e as
florestas. Contudo, o seringueiro representado por Maia não possuía uma terra de
sua propriedade.
Em 1963, foi publicado o livro Banco de Canoa, “que demonstra como a
degradação e aviltamentos cercaram as relações de entre patrões e empregados
no seringal, descrevendo a barbárie envolvida no processo civilizatório da região”
(RAMOS, 2016, p. 159). Após, temos Defumandores e porongas (1966) e Nas
tendas de Emaús (1967), que completam a coletânea de obras produzidas por
Álvaro Maia.
Essas são, em linhas gerais, as obras produzidas por Álvaro Maia. Todas
possuem temáticas que expressam a vida amazônica em seus diferentes contextos
e que, às vezes, até se repetem, com causas, desdobramentos e conclusões
diferentes. As condições sociais, políticas e econômicas reverberam também
impactos ecológicos na região. Mas não é apenas isso. Embora moderada, a
fortuna crítica em torno de Beiradão existe e é de grande importância para
entendermos o processo de divisão teórica pelo qual a obra e o conceito passaram
até chegar às análises críticas que temos hoje.
Um dos principais nomes observados na problematização em torno de
Álvaro Maia e de sua obra Beiradão é o de Paula Miranda de Souza Ramos. Em
sua dissertação para o programa de pós-graduação em sociologia, intitulada Da
poesia à política: a trajetória inicial de Álvaro Maia, Ramos (2010) apresenta um
estudo sobre o percurso assumido por Maia considerando o indivíduo, o intelectual
e o político. A partir da análise de criações de Maia (obras, poemas e discursos), a
pesquisadora sugere que elas relevam instrumentos ideológicos e simbólicos, que
atuam juntamente com a produção poética, para contribuir na sua caminhada no
cenário político (RAMOS, 2010).
Em 2016, Ramos apresentou a tese Ressonâncias da política na literatura
amazonense, na qual a obra Beiradão é usada como uma das fontes de análise
para examinar o impacto político da literatura na política, afirmando que Maia
buscava uma afirmação sobre uma identidade verdadeiramente cabocla. Sobre as
intenções de Maia na produção de Beiradão, a autora afirma que:
45
seu pior” (SILVA, 2016, p. 93). Entretanto, o olhar sobre o tempo, a partir das
perspectivas do eterno, da permanência e do movimento é o que se destaca no
trabalho de Silva (2016) sobre a construção do efeito estético de Beiradão.
Rafael Voigt Leandro (2014), a fim de entender como foi constituído o que
ele denomina por “ciclo ficcional da borracha”, utiliza Beiradão para compor o
mosaico de literaturas de expressão amazônica em sua tese Os ciclos ficcionais da
borracha e a formação de um memorial literário da Amazônia. Segundo Leandro
(2014, p. 4), “a repetição desse mote literário por largo período histórico, que
alcança a contemporaneidade, resultou no aparecimento de ciclos ficcionais da
borracha”. Salientamos, contudo, que Beiradão não é objeto principal da análise.
Marinete Luzia Francisca de Souza (2013), em sua tese de doutoramento A
Literatura Amazônica dos textos de viagem aos romances contemporâneos, tem
como objetivo um estudo comparativo e cultural sobre “a literatura e sobre a
Amazônia, desde textos de viagem (coloniais e pós-coloniais; éditos e inéditos;
impressos e manuscritos) até narrativas contemporâneas” (SOUZA, 2013, p. 7).
Nesse trabalho de doutoramento, Beiradão (1958) ocupa um espaço transitório
explicativo, como informa a autora:
Também faz parte desse grupo textual, embora não tenha sido
inserido no corpus deste estudo, o romance Beiradão (1958), de
Álvaro Maia, que retrata o ciclo da borracha, do auge ao declínio. A
narrativa foca ainda os aspectos geográficos da região, de maneira
que o autor estabelece diferenças entre os modos de exploração
praticados nos diferentes espaços – bamburral, serras e beiradões
–, correspondendo, cada um deles, a uma das três partes em que
se divide o romance (SOUZA, 2013, p. 202).
Ainda sobre Beiradão (1958), Souza (2013) endossa que o romance percorre
inteiramente o ciclo da borracha e, mesmo que Álvaro Maia tenha a intensão de
“renovar a prosa sobre o tema, o romance também retrata o condicionamento do
homem à floresta, o “bloqueio tropical”, a luta pela sobrevivência, a submissão aos
patrões, entre outros temas comuns aos romances do “ciclo”” (SOUZA, 2013, p.
202).
Por outro lado, há aqueles pesquisadores que se debruçaram mais
intensamente em torno do beiradão real, o extra ficcional, que usaram (ou não)
pequenos trechos da obra Beiradão para dialogar com a realidade, mas que não a
48
analisaram, pois seus olhares estavam voltados para o beiradão como espaço
físico e suas manifestações culturais e não para o romance literário. É o caso de
Rafael Norberto (2016) em seu trabalho Espaços, trânsitos e sociabilidade em
performance na “música do beiradão”: uma etnografia entre músicos amazonenses,
um estudo que se dedica às manifestações musicais presentes nas canções do
beiradão, conceituando-as.
No mesmo eixo de análise músico-etnográfico, destaca-se o estudo de Darle
Teixeira (2016), que trata da obra de Teixeira de Manaus, músico renomado das
festas do beiradão. Ao caracterizar o que seria o beiradão, Teixeira (2016) tece
uma breve crítica à obra Beiradão, de Álvaro Maia, sugerindo que, em algumas
ocasiões, a representação daquele beiradão apresentado pela obra não retrata
fielmente o que, para ela, é o beiradão de fato. Nas palavras da autora,
5
Utilizamos o termo “equação metafórmica” para explicar que cada indivíduo reage de maneira singular e
distinta em determinados acontecimentos, isto é, as pessoas reagem individualmente a estímulos externos, de
maneiras diferentes umas das outras; desse modo, é impossível criarmos um manual que englobe todas as
pessoas. A análise de casos/situações (e tudo aquilo que ela engloba) é uma opção para se entender melhor o
ser humano, mas nunca de maneira definitiva e isolada.
51
analisar ou até mesmo teorizar o que é poder e como ele se revela é algo muito
desafiador, por ser complexo - e por muitas vezes subjetivo. Segundo Michel
Foucault (1979, p. 8),
6
Frantz Fanon nasceu na ilha de Martinica, em 1925. Aimé Césaire também nasceu na Martinica, no ano de
1913. Albert Memi nasceu na Tunísia, em 1920.
7
Utilizamos o termo França europeia para nos referir ao território Francês localizado no continente europeu,
tendo em vista que a Martínica – onde nasceram Frantz Fanon e Aimé Césaire – é um território francês
localizado na América Central.
56
8
Ranajit Guha nasceu em 23 de maio de 1922, em Bangladesh. Partha Chatterjee nasceu em 5 de novembro,
na Índia. Dispesh Chakrabarty Gayatri nasceu em 15 de dezembro de 1948, na Índia. Gayatri Chakrabarty
Spivak nasceu em 24 de fevereiro de 1942, também na Índia.
57
Por outro lado, havia também riqueza e controle, centralizados em torno dos
seringalistas e dos coronéis do barranco, que os exerciam de maneira regional.
Geralmente, no senso comum, a figura do seringalista não se mistura tanto com a
do dono do barracão e a do Coronel do Barranco; contudo, na maioria das vezes,
todas essas denominações dizem respeito à mesma pessoa.
O barracão, citado inúmeras vezes em Beiradão, comportava diversas
situações, das mais hilárias às mais trágicas. Era um local onde os mecanismos de
controle se evidenciavam mais claramente, como o controle do trabalho e da vida
dos indivíduos. Por causa das “dívidas”, tendenciosamente geradas no barracão
pelos seringalistas, os seringueiros se viam presos a um sistema que buscava
camuflar o trabalho forçado. A alcunha de ‘coronel’ dava prestígio político ao
seringalista, possibilitando-lhe o contato direto com as decisões do governo que,
como retratado na obra, praticamente não eram aplicadas nas localidades mais
isoladas. A respeito da figura do Coronel do Barranco, Mendes (2013) comenta:
Santo Antônio do Rio Madeira era um dos principais centros comerciais na região
nessa época e contava “com grandes armazéns, bares, pensões, cartórios, juizado,
intendência, destacamento de polícia, olaria, escola e outros equipamentos
urbanos” (DA FONSECA, 2017, p .74). Nas localidades mais isoladas, essa
estrutura não existia.
Todo esse cenário, representado em Beiradão, e suas bases históricas nos
remetem à escrita de Quijano (2009) sobre a colonialidade da distribuição mundial
do trabalho. O referido autor frisa que:
que nos permitem avaliar os possíveis sentidos da criação estética da obra literária.
Ao expor essas situações, podemos ver como elas refletem os pressupostos
coloniais, ou seja, os temas apresentados na literatura que dizem respeito a
questões fundamentais sobre a colonialidade e suas representações.
Desse modo, tratamos aqui de questões que envolvem os estudos pós-
coloniais e decoloniais. Usamos o termo decolonial por estarmos tratando, nesta
dissertação, de uma obra que representa a Amazônia, ou seja, uma produção
criada sobre a América na América e sobre a Amazônia na Amazônia. Contudo,
apropriamo-nos de falas de autores pós-coloniais porque, em nosso ponto de vista,
na contribuição teórica desse contradiscurso, tanto o movimento pós-colonial
quanto o decolonial partilham dos mesmos preceitos, tendo como base a relação
entre o colonizado e o colonizador. Com isso, não rompemos completamente com
as contribuições com autores considerados (por uma parte do movimento
decolonial) de espisteme eurocêntrica, como é o caso de Foucault, Sartre e outros,
visto que, para entender melhor a colonialidade do poder e suas representações
literárias, esses autores são fundamentais.
Isto posto, na obra Beiradão, buscamos identificar como os colonizados -
especificamente os retirantes nordestinos, que buscavam emprego e novas
oportunidades - encontravam-se subalternizados, em condição de subordinação,
sob o jugo do trabalho, muitas vezes forçado, no seringal. Avaliamos, da mesma
forma, a falta de condições mínimas para uma vida digna e como a morte era
comum, evidenciando um dos vários tipos de controle dessa relação de poder que
Beiradão abrange:
observados pelos vigias, mesmo que estes não os estivessem vigiando. Podemos
dizer que esse mesmo padrão de controle, acontecia na Amazônia, uma vez que,
pela lógica instituída pela Igreja, Deus exercia o panoptismo, vigiando a tudo e a
todos, por meio de seus representantes na terra. Aos membros da Igreja cabia
disseminar tais ideias, para moldar corpos e mentes, visando extrair benesses do
trabalho do seringueiro, como podemos observar no excerto abaixo:
Na excerto em destaque, o que mais nos chamou a atenção não foi apenas
a violência cometida pelas personagens, cujo motivo era falta de pagamentos,
sucessivas humilhações e tratamento precário contra a dignidade entre os dois
grupos (seringalista e seringueiro), ou o efeito estético que Álvaro Maia emprega
ao contá-la, através de um narrador que, de modo explícito e tranquilo, parece estar
acostumado com os desfechos mais cruéis que possamos imaginar acontecer na
Amazônia. Tudo isso, por si só, já indica inúmeras consequências do padrão do
poder colonial. O que mais nos sensibiliza e impressiona nesse trecho, é o controle
sobre o corpo feminino e como a posição da mulher é afetada pelo processo
colonial na região.
Nos conflitos relatados, a mulher não é respeitada; ao contrário, a mulher é
violada. Mesmo não tendo interferência direta nos problemas de trabalho do
seringal, as mulheres eram vítimas de brutais abusos físicos e psicológicos. Esses
reflexos da obra nos mostram uma sociedade machista e patriarcal em sua
70
Lima (1999) sugere, além disso, que o termo “caboclo” era, na realidade,
uma espécie de desprezo para com o Outro e, posteriormente, foi ressignificado,
para designar a mistura entre ameríndios e brancos. Ambas as definições são
pejorativas e colonizadoras, pois a utilização desse termo “é caracterizada por uma
referência similar ao outro e à exclusão” (LIMA, 1999, p. 10).
Somando-se às contribuições de Lima (1999), Martins (2009) nos ajuda a
compreender as intenções dos discursos que atribuem o termo caboclo ao Outro.
Segundo Martins (2009, p. 144), “na região os não-índios, brancos ou não, chamam
a si mesmo de cristãos. E classificam os índios como caboclos, isto é, pagãos, por
oposição aos cristãos”.
Na trama de Beiradão, Caboclo Euzébio se choca quando percebe que os
índios, ao contrário do era defendido pelo discurso do colonizador, eram indivíduos
iguais a ele, que possuíam como diferença apenas a cultura e os costumes, que
sentiam dores e afeto pelos seus familiares, estavam organizados em comunidades
complexas e sendo atacados no seu próprio território, ou seja, não foram as etnias
nativas que começaram a guerra. No entanto, Caboclo Euzébio só percebeu isso
após muitos conflitos sangrentos com os indígenas.
A narrativa apresenta que coube ao Caboclo Euzébio a iniciativa de
estabelecer um contato amistoso com os nativos, mais especificamente com a etnia
Parintintins. É valido lembrar que essa atitude não era um padrão de abordagem,
72
mas uma ação própria do Caboclo Euzébio frente aos traumas que o padrão do
trabalho colonial inseriu em sua personalidade. Observemos o excerto a seguir:
neste momento de nossa análise, mas, futuramente, elas terão suas vozes ouvidas
e suas histórias analisadas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise literária da obra Beiradão, vimos que Álvaro Maia lança
inúmeras vozes amazônicas no imaginário social: vozes plurais, escondidas e
encobertas pelo discurso único que cerca os saberes sobre a Amazônia, em virtude
de sua história geralmente concebida por outras vozes, atendendo sempre a
perspectivas externas à própria Amazônia. Desse modo, Beiradão recobra a
memória de pessoas e de grupos que foram silenciados. Em meio a essa polifonia
literária, pudemos notar discursos e atos que remetem à lógica de controle do poder
da colonialidade. Quando tratamos da temática do poder em Beiradão, estamos,
invariavelmente, focados no seu caráter colonial; afinal, é sob a perspectiva
decolonial e pós-colonial que analisamos os sentidos da trama.
Entender o que é o beiradão e como são construídas as particularidades
beiradeiras nos ajuda a perceber que elas não representam o todo do grupo; sem
dúvidas, obter esse entendimento é um avanço para rompermos com os discursos
que se utilizam da homogeneidade dos seres para agregar um valor a um grupo
em detrimento do outro, como é o exemplo da colonialidade.
Ainda hoje encontramos literaturas de expressão amazônica ofuscadas por
inúmeros fatores, sejam políticos, sociais ou epistêmicos. Essas obras, que trazem
a existência do ser humano na floresta amazônica e remetem a uma crítica ao
sistema de colonização e sua relação com o trabalho e o capital. Contam sobre a
crônica dos indivíduos no beiradão, sobre a formação de comunidades, municípios,
estados, histórias no seringal, no barracão e em outros inúmeros espaços. A
Amazônia não é plural apenas em pessoas e culturas, mas também em suas
superfícies e ecossistemas, nas variações das relações entre o ser humano e o
Outro e a natureza.
Salientamos a importância de que essas vozes sejam ouvidas, minando as
teorias racistas que transpõem os discursos de poder transvertido de verdade.
Quando conhecemos a história do Outro e percebemos que os Outros são como
75
ganhou espaço na escrita da presente dissertação, por não fazer conexão direta
com a ideia proposta, foi selecionado para futuras pesquisas: a violência e o medo,
a perda da identidade, a organização temporal entre personagens e enredo; esses
temas e outros são possibilidades de abordagens futuras.
Atualmente, vivemos em um tempo em que as polaridades político-sociais
impendem que novos pensamentos a respeito da organização e do respeito social
floresçam e deem frutos. A homogeneização entre esses extremos tenta definir
sempre o Outro que discorda em uma categorização valorativa, de maneira
indistinta, mesmo que a descolonialidade seja uma outra opção ao capitalismo e ao
comunismo, entretanto não fazendo parte deles (MIGNOLO, 2017). Desse modo,
avaliamos ter proporcionado aqui algumas bases para que se entenda o
pensamento decolonial e pós-colonial, nos sentidos teórico e prático.
Diante do exposto, almejamos que nosso estudo possa contribuir para com
a ruptura da história única e com a superação dos controles coloniais que perduram
até os dias atuais. Para tanto, nesta dissertação, expusemos um leque de opções
de análise a respeito da obra Beiradão, de outras produções literárias de Álvaro
Maia e inúmeras outras obras de autores com pouca fortuna crítica.
Evidenciamos que o processo de categorização e invenção do Outro se
estende a lugares e épocas que não estão tão distantes de nós, também sujeitos
amazônicos, e que, a qualquer momento, esse discurso colonizador nos atinge... E
pode nos atingir de maneiras cada vez mais hipócritas, sutis e desleais. Buscamos,
ainda, contribuir não só com uma mudança dos ideais educacionais, mas também
para uma renovação epistêmica, visto que a educação se faz nas microrrelações
que acontecem também fora da estrutura educacional.
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REFERÊNCIAS