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Ensaio de escrita situada

ou

Notas descartáveis para estudantes, professores e pesquisadores de filosofia

Lucas Pavani Goulart

Contexto: este ensaio de escrita situada nasce após a decisão de fazer, em busca de
inspiração para começá-lo, uma revisita aos textos lidos ao longo da graduação e, nesse
processo, reencontro um livro chamado O mestre inventor, escrito por Walter Kohan e lido
por mim em uma disciplina da licenciatura em 2021 na UFABC. Munido de novas
perspectivas, concebo que ele seja um bom ponto de partida para uma escrita situada e,
honestamente, não faço a menor ideia — como também não me importo tanto — se isso se
concretizará.

Ao escrever sobre a vida e o pensamento de Símon Rodríguez, educador popular


venezuelano que viveu entre os séculos XVIII e XIX, Walter Kohan oferece ideias que,
penso, podem ter algum valor para refletirmos sobre o exercício de uma escrita e de um
conhecimento situados. Apenas para localizar, Simon Rodríguez foi um professor durante
toda a sua vida e, percorrendo uma América Latina marcada pela exclusão e pela violência
do colonialismo e da escravidão, criticou o sistema educacional igualmente excludente
dessa sociedade e foi, sobretudo, um semeador de escolas.

É referindo-se ao legado dessa personagem que Kohan diz então que Símon
Rodríguez foi um educador-errante, isto é, aquele que se permitiu viver e se entregar às
suas experiências, abandonando a posição, o gesto, a feição e a atitude autoritária e
castradora do educador-fortaleza. O errante, portanto, é aquele que se coloca em
movimento, mas, mais do que isso, que se mantém atento e sensível ao movimento e aos
sinais da mudança, estando sempre em busca de encorajá-la em vez de sufocá-la em nome
do rigor, da tradição e da disciplina, valores curiosamente compartilhados por militares e
professores de filosofia.

Rodríguez também dizia que não queria se parecer às árvores, que se enraízam em
um lugar, mas sim ao vento ou ao mar, que estão sempre em movimento. Sua crítica à
árvore como modelo de vida muito se assemelha àquela que Deleuze e Guattari fazem dela
como modelo de produção do conhecimento. Árvore, fixidez, hierarquia e repetição são
opostas por rizoma, fluxo, conexão e criação.
Talvez o maior resultado do modelo arbóreo abstrato da produção da vida e do
conhecimento tenha sido o de destruição das árvores concretas, tidas como recurso, e
sobre isso nunca é demais lembrar o que Ailton Krenak disse a respeito do rio Doce: “O rio
Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso,
como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar.” (KRENAK,
2019, p. 21). Assim como o rio Doce, o conhecimento não é algo de que alguém possa se
apropriar, tomar para si como propriedade, e ao se fazer isso nem mesmo podemos dizer
que estamos ainda diante do ato de conhecer, pois, como dizia Símon Rodríguez, “o que
não se faz sentir não se entende” (KOHAN, 2017, p. 68).

Kohan também se serve de Símon Rodriguez para criticar a forma como


continuamos a conceber a escrita. Nesse sentido, nosso paradigma epistêmico continua a
ser, sobretudo na filosofia, o de uma escrita massiva, burocratizada e despersonalizada,
sem nunca nos atentarmos para o fato de que o que se escreve nunca é apenas o que se
escreve, mas também como se escreve. Talvez isso tenha alguma ligação com o que vimos
Haraway falar a respeito de que uma explicação mais adequada, rica e melhor do mundo só
se faz por um conhecimento parcial, contingente e responsável.

Escrever, diz Kohan, é sempre um gesto artístico e sensível: “é quando o pensar dá


lugar ao ilógico que parece surgir algo novo”1. Do arborescente, portanto, não pode surgir
nada novo, mas somente, como dizia Adorno, um “sempre-igual”, e, de fato, continuamos a
produzir dissertações, teses, artigos e às vezes até ensaios como a indústria cultural produz
as suas mercadorias — afinal, não é por “produtividade” que o CNPq classifica e premia
seus pesquisadores?

Não se produz conhecimento, a não ser o falso, mas inventa-se conhecimento. Por
isso Kohan dirá que “Não há verdade sem invenção (…) Para chegar à verdade, é preciso
inventar — não há outra alternativa.”2. Mas também, precisamos acrescentar, não se inventa
por inventar, ou então corre-se o risco de esquecer que toda invenção servirá a algo e a
alguém — e, sabemos, isso geralmente não termina bem para o nosso lado, haja vista a
abundância do progresso técnico no último século que só se converteu em maior carga de
trabalho, de controle físico e cognitivo e de destruição ambiental, animal e humana. O
progresso, como já nos dizia Walter Benjamin, precisa ser visto como um acúmulo de
catástrofes, e de nada serve fazer da crítica a essa lógica um meio cínico para ingressar
nela.

1 Ibid., p. 73
2 Ibid., p. 74.
De fato, precisamos repensar toda a forma como ingressamos nesse circuito
acadêmico, tomando sempre o cuidado de não nos apaixonarmos demais pelo posto
institucional do pesquisador — pelo contrário, é preciso nutrir, em alguma medida, o desejo
de sua extinção em nome de novos arranjos de invenção do conhecimento. Acreditemos ou
não, é possível falar do revolucionário reproduzindo as mesmas instâncias que impedem o
seu surgimento. O novo nasce da invenção da nova forma como se faz e do abandono
daquela como se deixa de fazer, não sem os prejuízos da perda do conforto de estar
adequado à norma. Escrever sobre Marx, Nietzsche, Benjamin, Deleuze, Guattari ou até
mesmo sobre Donna Haraway não é garantia de fazer algo novo.

Se o conhecimento é inventado, é preciso dizer também que toda invenção é


situada. Devemos, portanto, encontrar as soluções para os nossos próprios problemas, mas
não recaindo nas armadilhas da identidade, pois, voltando a Haraway, “ser é muito mais
problemático e contingente” (HARAWAY, 1995, p. 25) ou, o que dá no mesmo, os problemas
dos seres marginalizados fazem rizoma e se colocar como árvore nessa trama é focalizá-los
por uma lente míope. Assim, recorrendo uma última vez a Kohan, penso que a verdadeira
responsabilidade do pesquisador e da pesquisadora é a de nunca nos esquecermos que
“pensar é ser sensível a uma terra e ao seu povo”3.

Por fim, também acredito que é preciso não levar tudo isso a sério demais, sob o
risco de cairmos em uma teia de ansiedade e tristeza na busca por corresponder a altas
expectativas de um devir-pesquisador. Não se levar a sério demais, rir de si e do que se faz
não deixa de ser um bom antídoto contra a tristeza institucional e contra a paixão pelo
poder, ou, como advertiu Foucault ao escrever um prefácio ao Anti-Édipo, “Não pense que
seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja
abominável.” (FOUCAULT, 2010, p. 105). Seriedade e rigor são signos que, ainda que sob
as melhores justificativas metodológicas, representam uma concepção do ensinar e do
aprender como processos de tristeza e de sofrimento, bloqueando a experiência como
errância. Nesse caso, adota-se a perspectiva do conhecimento-árvore-produção. Mas é
preciso dizer que há, de um outro lado, a possibilidade de um conhecimento-rizoma-
invenção como aquele que não abre mão do riso, do lúdico, da brincadeira, do erro e da
ironia de si, ainda que a tarefa que leve a cabo seja tão grave como a de se responsabilizar
por um novo mundo.

Referências

3 Kohan, op. cit., p. 77.


FOUCAULT, Michel. Prefácio (Anti-Édipo). Ditos e escritos, v. 6, p. 103-106, 2010.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o


privilégio da perspectiva parcial. Cadernos pagu, n. 5, p. 7-41, 1995.

KOHAN, Walter. O mestre inventor–relatos de um viajante educador. Autêntica, 2017.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo (Nova edição). Editora Companhia das
Letras, 2019.

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