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Para introduzir o efeito-de-formação

I JACQUES-ALAIN MILLER

A - Destaque do efeito
O título d o próximo Congresso da AMP em Briixelas destaca o
efeito-de-formação como tal. Qual é o valor desse destaque do
efeito?
1. Admitimos que alguma coisa como tim efeito-de-formação
aconte!e, e o admitimos como um dado de fato; supomos um
sujeito operando como analista, porque ele se tornou apto a fazê-
10; em outras palavras, supomos que seja possível fazer com que
iim sujeito esteja em condições de operar como analista.
2. Desse efeito admitido como um dado de fato, queremos
circuns'crever a causa, e até mesmo as caiisas. Por isso, o subtítli-
10 com o qual se completa o título escolhido indica: "suas cau-
sas". Destacar o efeito tem por conseqüência separá-lo daquilo
que o determina. Quando se coloca um efeito como exergo, é
porquese admite haver uma hiância entre ele e sua causa, admi-
te-se que o efeito conserva alguma coisa como uma surpresa, que
ele não é da mesma ordem da sua causa, que não lhe é linear, e
náo apresenta soluçáo de continiiidade. Admitimos o efeito como
ernpiritamente constatável, procuramos suas causas como hipo-
téticas, sem prejulgar quais são elas.
Destacar o efeito de formaçáo é admitir implicitamente que
não há aiitomatismo da formação analítica; não encontraremos
um mecanismo; nós não o buscamos; damos lugar à contigência.
Por isso, o subtítulo indica não somente "suas causas", mas tam-
bém "seus lugares", deixando aberta a questão de saber onde, em
quais lugares, se efetua a formação.
A contingência como a multiplicidade das causas e dos lugares
de formação, a complexidade da articiilação deles possibilitam o
presságio de que será encontrado n o efeito um caráter parado-
xal; por isso é que mencionamos igualmente no subtítulo: "seiis
paradoxos".

B - Equívoco da causa
Se destacamos "o efeito-de-formação", é porque a causalidade em
jogo na formação analítica lios parece, de saída. não ser unívoca.
Não cogitamos detalhar iim método de formação. Como se formam
os analistas? A resposta será dada no nível da descrição. A prescri-
çáo nessa matéria bem poderia ser apenas uma utopia.
Contudo, se for preciso chegar à prescrição, que seja n o espí-
rito de Renan (Vie de Jésus): "Para se obter menos da hiimanida-
dc, é preciso pedir-lhe mais".

-
C Panorâmica
Vamos dar o pano de fundo da qiiestão, vamos estendê-lo.
I. A formação não concerne apenas ao psicanalista. As pes-
soas se formam em niimerosas práticas especializadas, tanto aquela
do professor assim como a do bombeiro ou a d o psiquiatra. Forma-
se em um grande número de práticas. Essas formaçóes evoluíram
n o decorrer d o tempo, elas têm siia história, algumas são mais
suscetíveis d o que as outras para esclarecer em que consiste a
proposta da formaçáo d o analista.
2. Como pano de fundo, encontramos igualmente a questão
da educação como tal, desde os primeiros cuidados até às formas
mais elevadas da cultura. "Paidea" e "Bildung" devem ser aqui
convocadas.
3. A formaçáo é função da civilizaçáo; isto é, se a investiga-
ção histórica for vasta.
D - Da formação a "trans-formação"
A questáo da formação é sempre mais sutil quando seu fim não é
somente o de obter a aquisição de saberes, mas também o apareci-
mento de certas condiçóes subjetivas, lima transformação do ser do
sujeito. Isso se apresenta tanto quando se trata do psicanalista quan-
to do operador religioso, o padre, ou ainda do mágico, do feiticeiro.
Convém também incluir a formação para a sabedoria, tanto
em suas formas antigas, greco-romanas. quanto em suas modali-
dades orientais. Há, por exemplo, uma formação Zen, ascese
dirigida por um mestre, na qual se trata essencialmente de obter
Lima transformação subjetiva sem transmissáo de nenhum saber
especializado (sob o signo de SI, o bastão, não de S2).

E - O p,onto de fuga
Distinguiremos sempre, na formação, conteúdos epistêmicos e
mutação "psíquica". Quando uma formaçáo exige a mutação psí-
quica, ela comporta um ponto de fuga.
Há formações com ponto de fuga, há formações sem ele. A trans-
missão Lpistêmica é verificável através de exames, provas
standardizadas, enquanto que a verificação das formações com
ponto de fuga é mais problemática.
esmo as formações comuns, até as mais comuns, compor-
tam sempre a idéia de que a formação transmite um maneira, um
espírito, realiza-se n o surgimento de uma nova natureza do indi-
víduo: ser um "verdadeiro"(x).
A odtenção de uma mutação psíquica através da formação
supõe sempre o distanciamento dos conteúdos epistêmicos. Este
é um grande "topos" da tradiçáo humanista.
i
F - ~eldiarnosSêneca
Tomemos a carta 88 de Sêneca a Lucilius. "Desejas saber, escreve
.
ele a LuciJius, o que penso das artes liben'E.. essas artes devem ser nossos
srudos ekmentares e não nossos verdadeiros trabalhos. Sabes mui-
to bem por qiie nós as chamamos estiidos liberais: porque não são
indignas de um homem livre; mas então, por conta disso, a única que é
verdadeiramente Liberal é aquela que o toma livre. Trata-se da sabedoria,
estudo mdajm, generoso, o resto náo é senão pequenez e puerilidade".
Uma nota, em minha ediçáo, precisa que as artes liberais
têm, para Sêneca, uma definição mais restrita do que aquela que
era comum em seu tempo: são as artes d o raciocínio. A nota precisa
ainda: " O gramático mestre-escola é com frequência um liber-
to, na verdade um escravo, que ministra um ensino liberal". E a
nota assinala, de modo miiito feliz: "Esses mestres de origem mo-
desta, com frequência passa\.am por sedutores dos rapazotes con-
fiados a eles. Encontrar um mestre náo pederasta era um proble-
ma para as famílias. Em seus epitáfios, alguns mestres se vanglori-
am de terem sido castos. Eles mantinham, entáo, uma escola para
famílias de distinçáo".
Sêneca, nessa longa carta, enumera as artes e as ciências,
para desqualificá-Ias perante à sabedoria: "Todos esses saberes
que podes aprender, Lucilius, náo contam quando comparados à
única coisa que vale verdadeiramente: a aquisiçáo da sabedoria,
saber distinguir o bem e o mal, e manter-se na vida como se deve".
Sêneca diz entáo uma Frase muito bela, que inspira a proble-
mática humanista, da qual reencontramos o paradoxo nos enunci-
ados de Lacan sobre a formaçáo analítica: "Todos esses saberes, é
preciso náo aprendê-los, mas, sim, tê-los aprendido". Trata-se de
uma condição prévia. É sempre no passado, tal como sempre nos
referimos aos clássicos: nós os relemos, nunca dizemos que os le-
mos. É uma atividade sem primeira vez; a formasão que vale come-
ça sempre depois. A aprendizagem não é a formaçáo; aquela pre-
cede a esta; a formaçáo verdadeira consiste sempre em saber "ig-
norar o que se sabe" (cf. Escritos, p 349 - ed fr.; p 351 - ed. Port.).
A formaçáo tem sempre como alvo uma perfeiçáo; a formaçáo
estóica tem como alvo a perfeiçáo da alma: "A única coisa que
pode conduzir a alma à perfeiçáo é a imutável ciência d o bem e
d o mal. Ora, nenhuma outra arte tem como objeto a procura dos
bens e dos males, a náo ser a filosofia entendida como sabedoria".
A rejeição de todos os saberes perante à sabedoria não é um
ceticismo; Sêneca náo rejeita menos o saber daqueles que ensi-
nam que o saber náo é nada: "Relega essa baboseira ao monte de
coisas inúteis que as artes liberais ensinam". Sêneca não ensina
que não há nada a saber, mas, sim, que o saber, comparado à
sabedoria, náo é nada.
G - A zona êxtima
Aqui, nFo estamos nas extravagâncias. Não se trata de uma des-
sas sabtdorias orientais das quais temos muita dificuldade em
apreender o funcionamento exato. Trata-se do *mainstream* do
humanismo ocidental, apreendido na Roma Imperial em um ponto
no qual a doutrina da formação já está formalizada.
A mesma lógica se encontra na doutrina mais assentida por
Lacan, 4ue póe no centro da formaçáo do analista sua própria
análise. É iima zona na qual os saberes ensinados pela via exteri-
or desfalecem.
Para situar as coisas, tracemos um círctilo. Coloquemos no
centro um círculo menor representando a zona êxtima, que é a
da análise, com seu final, chamado "passe".
Sobre seu contorno, inscrevamos os saberes que são suscetí-
veis d e serem adquiridos através dos meios comuns.
Entre os saberes periféricos à zona êxtima, há tambfm "as
ciências afins" diferentes do saber analítico (se assim designamos
os textos qiie nos restam da aventura psicanalítica, ou da litera-
tura que continua a ser produzida todos os dias). Trata-se de
uma "baboseira", rejeitada na zona exterior à zona êxtima.

H - Antinomia e combinatória
Quando, se trata da formaçáo analítica, quer seja nas versões
sofisticadas que Lacan nos apresenta, ou nas versões mais gros-
seiras, há sempre, entre as duas regióes do sistema, uma tensão
qiie pode chegar à antinomia.
Podeser, em relação à operação de transformação subjetiva efe-
tuada no! tratamento, o questionamento, a depreciaçáo, o rebaixa-
mento, a suspensão, e até a anulação dos saberes especializados.
Foi o que me inspirou - em iim momento preciso, janeiro de
1975, quando começava a epopéia do Departamento de Psicaná-
lise do q$al me tornara diretor - a frisar, discretamente, que não
nos deixávamos enganar pelo ideal da formação, ao ilustrar a
capa do primeiro número de Ornicar? com lima gravura d e
Hogarth, representando um macaqiiinho malicioso regando brotos
definhad+ e mortos em seus vasos. Um comeiirário de WJittko\~er.
piiblicado no número 2, nos dava a chave disso: é uma derrisáo
da educação, da Gramática, mãe das artes liberais, representada
tradicionalmente como uma pessoa muito distinta regando bro-
tos novos. Tal como a carta 88 o mostra, a distância tomada para
com a baboseira formativa não é menos clássica do que a reve-
rência feita à formação.
A antinomia pode atuar n o sentido inverso, em benefício dos
saberes da zona periférica, o que igualmente rediiz o vakx forrna-
dor da análise do siijeito, até torná-la secundária, chegando
mesmo a não tomá-la como essencial. A ênfase posta sobre o
"cursus" na tradiçáo procedente do Instituto de Berlin, concebi-
do pelo curioso Max Eitingon, vai nessa direção. Revelemos, de
passagem, a reticência de Freud para instalar em Viena tim Ins-
tituto desse tipo; posteriormente, ele cedeu.
A antinoniia desaparece e a tensão se atenua se dissermos
que os saberes existentes sob o modo exotérico são suscetíveis de
encontrar tima 110\~agravitação, e mesmo de conhecerem iim
remanejamento inédito, em função da análise do sujeito. Essa
era a missão atribuída por Lacan ao Departamento de Psicanáli-
se, em 1975, em um texto que vocês encontrarão 110sAutres écrits,
p. 313: "Talvez em Viiiceiiiies irão se agregar os ensinos nos quais
Freud formuloii que o analista deveria apoiar-se, fortalecer o que
ele retém de sua própria análise".
Tem-se, aqui, o princípio de uma combinatória que vai da
anulação dos saberes especializados para liberar o efeito êxtimo
até a redução do êxtimo em benefício da transmissáo de saberes
efetivos. Destaquemos que, justamente quando o essencial da
formação é êxtimo, os seminários são, de bom grado, abertos ao
público, enquanto que são fechados quanto mais sua transmissão
for insípida, banal. Quando não há nada para esconder, é que se
esconde; divulga-se, sem reticência, quando o que está escondi-
do o está por estrutura, e nada vale olhá-lo.
Entre os dois extremos, há lugar para todo o tipo d e nuance,
todas as dosagens, todas as articiilações finas entre a parte êxtima
e a parte exotérica da formação.

I - Esotérico versus exotérico


Essa divisão não deixa de estar relacionada com a mais tradicio-
na1 clivagem, quando se trata do acesso à sabedoria: de um lado,
a iniciaçáo esotérica; do outro, o ensino exotérico.

J - "Minhanálise" e "minhaprática"'
Esta clivagem elementar divide, do mesmo modo, a experiência
do analfsando e sua prática analítica. O qiie se aprende na práti-
ca analítica da qual se é o agente (os tratamentos que conduzi-
mos) situa-se em uma zona exterior. Por isso, Lacan não a leva
em consideração no passe.
Daí decorre uma clivagem entre os dois termos: de iim lado,
"minhanálise" e , do outro, "minhaprática". Não há um acordo
maravilfioso, uma harmonia entre "minhanálise" e "minhaprática",
mas, sim, de um modo mais singular, tima tensáo.
S e g ~ n d oLacan, o que "minhanálise" ensinou a o sujeito, uma
vez alcançado o final da análise, lhe daria condição náo só de
praticara análise, mas também de ensiná-la e de fazê-la progre-
dir, e desmo de analisar a própria comunidade da Escola que
suportou e consagrou sua trajetória. A ftinção formaçáo de "minha-
prática", ele a deprecia, zomba dela, a vê como rotina, amortiza-
ção, csquecimento.

K - ~udervisãoe clínica
Tentemos, agora, introduzir, na zona exterior, diferenciações que
respondem ao que 6 de fato nossa prática nesta Escola.
Há uma zona próxima ? êxtima:
i a supervisão. Ela faz litoral
entre a Tona êxtima e a zona exterior.
O s a / r clínico é considerado como sendo próximo à supervisão.
O resto dos saberes são suscetíveis de se repartirem segundo
diversas classificações.
A Escola, se ela é diferente de uma utopia. deverá dar conta
desses círculos, d e sua articulaçáo.

Uma última palavra


Um vasto programa para o seminário do ano que vem. Não gostaria
d e dar a impressão de que nos engajamos em uma reflexão

I NT:No original, Monnilolyre c mpratiquc


intemporal. Se a abordamos hoje, é porque estamos sendo apressa-
dos tanto pelo nosso Congresso em 2002, quanto pela atualidade.
Nos anos 60, Lacan deplorava a negligência dos poderes pú-
blicos para com a psicanálise, e lamentava o fato de que eles não
se mobilizavam para pedir aos psicanalistas que justificassem sua
prática. Essa época está bem distante. Sem dúvida, quanto mais
o controle do Estado se encontrava longe de ser exercido, mas se
apelava para ele; agora, que estamos mais próximos desse contro-
le, as pessoas, aqui e ali, se afligem com as regulamentações que
afetarão o meio psi.
Essa perspectiva faz tremer nossos colegas da nebulosa
lacaniana; presumimo-lhes o lamento de terem sido cigarras en-
quanto nós éramos formigas. Mas, por se sentirem mais desprovi-
dos do que nós, talvez eles estejam mais alertas. Alguns quiseram
reunir dados sobre a formação.
A nebulosa não é a única a se sensibilizar. As instituições
estabelecidas também estão em movimento: elas entram em con-
tato com os gabinetes ministeriais; o Presidente da Sociedade
Psicanalítica de Paris faz propulsões na nebulosa. Ao mesmo tem-
po qiie ele deiiii,nstra uma abertura tanto mais louviivel quanto
iiiédita. sua associação - a julgar por um artigo, sobre "os laca-
nismos", recentemente publicado - parece trabalhada por outras
forças. Quanto mais energicamente se censura a formação que
dispensamos, mais se ignora tiido a seu respeito; imputam-nos
colocar o público em perigo por nossa impericia; banca-se os
fariseus.
Esta agitaçáo é vá. Temos algo melhor a fazer: refletir seria-
mente, e não apenas em nosso benefício, mas para naquele do
movimento psicanalítico em seu conjunto, posto que não há nin-
gukm mais para fazê-lo.

Traduçáu: Vem Avellar Ribeiro


Revisão da Traduçáo: Sérgb Lriia

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