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Nunca entendi bem por que se dá tanta importância a uma crítica. Parece
haver a expectativa de que um livro, um autor, uma corrente de pensamento
sejam perfeitos, que nada lhes falte, que durem para sempre naquela forma
primeira, tal como a Bíblia Sagrada ou a doutrina da Igreja. De fato, creio ter
lido nalgum lugar que, na Antiguidade, quando algo era sacramentado, nele
não se podia tocar; e é bem o que parece ocorrer neste caso, em que a
impressão geral de certas doutrinas é de tamanha pureza e perfeição, que se
aparece alguém apontando-lhes algum defeito, provoca escândalo. De minha
parte, não espero perfeição de coisa alguma, exceto em matéria de revelação
divina, e me parece naturalíssimo encontrar omissões e defeitos significativos
em quaisquer teorias ou práticas humanas — inclusive e sobretudo nas
minhas, que provavelmente são as que mais critiquei na vida, já que tenho
com elas mais tempo de convívio que com quaisquer outras.
Não digam, porém, que isto é coisa da minha cabeça, nada tendo que ver com
a realidade: pois tudo o que amo, amo porque vi, e se vi, é porque existe. Pode
não estar ainda em sua forma mais perfeita e acabada; pode não coincidir
exatamente com o que descrevo; pode até ser que minha ardilosa imaginação
ultrapasse os limites impostos pela razão e, em vez de servir humildemente à
construção de uma imagem sensível do ideal, ouse contaminá-lo com suas
quimeras. Não obstante, a essência e princípio deste ideal se encontra na
realidade, dela veio e para ela pode retornar por meio da ação humana. A
forma perfeita já está de algum modo nas coisas naturais, como que à espera
de um descobridor; é missão do homem trazê-la à tona pelo trabalho, e
santificá-la pela oração, e protegê-la contra a corrupção. Pois o Senhor pôs o
homem no Paraíso Terrestre para que o trabalhasse e guardasse: posuit eum
in paradiso voluptatis, ut operaretur et custodiret illum.
Assim é que, ainda que só possuam o trivium e mais nada, teremos nesta
escola doutores sensíveis, astutos, profundos, de intensa presença e
exemplar domínio do idioma. Não prometo nada que não seja dado pela
essência mesma destas artes, para quem as conhece; nada que eu não tenha
experimentado, em autores que li e no efeito desses estudos no meu próprio
desenvolvimento; e nada que tu mesmo não possas verificar em qualquer
pessoa que os tenha feito decentemente — o que, apesar de todas as falhas
circunstanciais e de todas as omissões culpáveis, espero que seja o meu
caso. Contudo, é bem verdade que há um grande problema oculto na palavra
“decentemente” — o que nos leva ao segundo tópico.
O leitor arguto há-de reparar que esta é uma das muitas observações antigas
ligando particularmente a disciplina retórica à moral, e atribuindo-lhe inclusive
o poder de ensinar a virtude com a vida — justamente o que glosei alguns
parágrafos atrás: “uma presença física que será reflexo consciente de suas
crenças, de seus valores, e deixará uma marca nos alunos antes mesmo que
o mestre tenha aberto a boca para falar”. Fique livre para repensar agora a
desconfiança que porventura tenha sentido ao ler aquelas linhas, como se
fossem invencionices de minha parte.
Seja como for, o que desejo agora é explorar mais a fundo esta notinha de
mestre Rábano: com muito mais força convém observá-la entre os de Cristo.
Em que és diferente, tu, que desejas reconstruir o que foi perdido? Será que
não buscas a glória daquela antiga cidade? Et celebremus nomen nostrum.
Quando tiveres todo o trivium, terás encontrado a paz? Sentar-te-ás sobre as
altas muralhas de tua cidadela, e dirás: “Alma minha, tens em depósito muitos
bens para muitos anos; descansa, come, bebe e folga”. Não te lembras de
como tudo começou? Não tiveste aviso bastante?
Mas espera, que ouço um burburinho. Alguns leitores protestam, em
pensamento, contra o que chamam “minha conversa-fiada”:
Quereis a ciência natural? Quereis as artes liberais? Cuidai então que o Autor
da inteligência vos julgue dignos delas, e Ele mesmo vos guiará pelo caminho
certo. Desprezai-O, e repetirá de vós o que dissera antes de vossos pais: são
teimosos e obtusos; não largarão suas idéias tolas até que venha o terrível
resultado. Nec desistent a cogitationibus suis, donec eas opere compleant.
Se o centro da vida escolar, e sobretudo da vida dos mestres, não for Deus —
e mais: se não for Nosso Senhor, Jesus Cristo — e se não for o Senhor, digo
ainda, quem constrói a nossa casa, em vão teremos trabalhado. Labutaremos
pela grammatica, e colheremos apenas regrinhas áridas e elegantes versinhos
a embolorar-se na memória; lutaremos pela rhetorica, e nos tornaremos
meros pedantes, inflados por ares pútridos de superioridade; sofreremos pela
dialectica, e acabaremos num frenesi intelectual, viciados em achar
contradições aparentes no discurso alheio — como certos loucos, cujo
semblante é tomado por grande seriedade ao catar os piolhos de um
companheiro, para depois assumir uma expressão altiva e esnobe enquanto
os comem um por um.
E não falo só da freqüência aos sacramentos da Igreja; não, nem mesmo lhes
atribuo o primeiro lugar em importância. Pois (como podeis confirmar com
quem o entenda mais que eu) nem os sacramentos, nem o próprio Deus
podem forçar a vontade do homem. Haverá algo mais triste do que esses, que
comungam diariamente o Santíssimo Corpo e Sangue do Senhor, e depois se
entregam a vaidades, como se com isso não profanassem o amor que logo
antes Lhe tinham jurado? Esses que, todos os dias, consagram-se à
Santíssima Virgem, vestem solenemente seus escapulários, e depois correm
a farejar dinheiro, vendendo a mãe e o pai, indo do pranto ao riso para
conseguir mais vinte por cento de lucro?
Pensas que tua concupiscência é melhor, por ser dos olhos? Crês que a torre
de Babel foi erguida por empresários? Acho mais provável que tenha sido por
intelectuais. Vocatum est nomen ejus Babel, quia ibi confusum est labium
universae terrae: “Babel” significa confusão, e confusão é a obra mais
freqüente dos intelectuais mundanos — que não a produzem aos poucos e
individualmente, mas aos montões; e imaginam construir assim uma
altíssima torre de saber, quando acumulam é uma montanha de matéria
putrescente.
Que estudem, sim, por amor a Deus, para louvá-Lo pelos rastros de Si que
deixou em Suas criaturas; servi-Lo na formação dos discípulos, que Ele amou
e criou e destinou a Sua obra; glorificá-Lo no esclarecimento da sociedade,
que Ele deseja iluminar e salvar. Mas ocupem-se mais, e muito mais, da
oração e das obrigações de estado, que de acumular tesouros de
conhecimento natural para que venha roê-los depois a traça. Tenham por
modelo a Sto. Alberto, chamado “o Grande”, cuja ciência universal deve ter
rivalizado com a de Salomão; na velhice, foi privado da razão, e morreu
demente, completamente ignorante — porém igualmente santo. Se tal
acontecer contigo, resistirás ao desespero? Podes passar sem teu estudo?
Tirando-te a vida do intelecto, resta algo? Ou não és senão um glutão de
palavras, avarento com livros, lascivo por idéias, iracundo com os ignorantes,
invejoso dos intelectuais famosos, preguiçoso para orar e cumprir tuas
obrigações, orgulhoso de tuas invenções e conceitos? Olha bem, que teu
“amor pela verdade” não te poupou de nenhum dos pecados capitais.
III. O resultado nos alunos, que são o fim de todo este negócio
Pode ser que, no começo, a multidão dos ignorantes e pecadores tente vencer
a minoria que se esforça por atingir a perfeição. Isto não é novidade, e já se
repetiu em muitos ambientes e circunstâncias. Se a virtude dos melhores é
verdadeira, vencerão com paciência e fortaleza, suportando a humilhação
sem queixas, aplicando a justiça sem escusas. E não contarão só com o
poder da persistência, mas saberão que de sua humildade e caridade
depende o influxo da Graça divina, que é verdadeiramente o que há-de
transformar seus algozes em irmãos.
Quem pode descrever o que teremos no fim de tudo? Quanta caridade, quanta
virtude, quanta religião, quanta justiça, e combinadas aos atributos humanos
mais admiráveis: a perspicácia dos sábios pagãos com a humildade dos
santos; a elegância do político romano com a simplicidade das crianças de
Cristo; a beleza de Virgílio com a doutrina da Igreja.
Um abraço do
Rafael F.
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