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SETE ARTES LIBERAIS:

UMA INTRODUÇÃO

ISBN:
978-85-52993-17-9

Publicado por:

Av. Higienópolis, 174, Centro


86020-908 — Londrina (PR) — Brasil
editorapadrepio.org

Autoria de Alcuíno de Iorque,


Hugo de São Vítor e Rábano Mauro
Tradução de Equipe Christo Nihil Præponere
Capa por Klaus Bento
Diagramação por Eduardo de Oliveira
Direção de Criação por Luciano Higuchi
Edição, Organização e Revisão por Éverth Oliveira

© Todos os direitos desta edição


pertencem e estão reservados à
Editora Padre Pio.

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parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou armazenada, em qual-
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Redempti ac vivificati Christi sanguine, Christo nihil præponere debemus,


quia nec ille quidquam nobis præposuit.
SUMÁRIO

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

SETE ARTES LIBERAIS: UMA INTRODUÇÃO

1. Diálogo sobre as sete colunas da sabedoria . . . . . . . . . . . . . . 9


2. Importância do trivium e do quadrivium . . . . . . . . . . . . . . . . 21
3. Sete artes liberais explicadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

EPÍLOGO

Sobre o Beato Alcuíno. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53


Sobre Hugo de São Vítor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
Sobre Rábano Mauro.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
PREFÁCIO
Padre Paulo Ricardo

A ineficácia do sistema educacional moderno torna-se cada dia


mais evidente. O número de escolas e universidades só aumen-
ta, enquanto o nível dos profissionais despenca. Há médicos
que ignoram os fins da medicina, psicólogos que desconhecem
a estrutura da alma humana, padres que ignoram as verdades
da teologia. Muitos diplomas universitários poderiam ser com
razão chamados de cheques sem fundo.

Há várias causas que explicam essa derrocada no ensino, causas


políticas e sociológicas, causas próximas e remotas. Entre as cau-
sas próximas de ordem intelectual, encontra-se o pragmatismo,
que reduziu os objetivos da educação à formação de profissionais.
A partir daí, não é de espantar que os pedagogos tenham despre-
zado as “línguas mortas” como o latim e o grego; afinal de contas,
se o objetivo da educação é apenas formar mão de obra qualifica-
da, por que aprender uma língua que ninguém mais fala?

Essas e outras perversões educacionais moldaram profunda-


mente o imaginário popular. Praticamente todas as pessoas
hoje veem o estudo de forma utilitária, isto é, estudam para
alcançar algum objetivo prático, como a aprovação num con-
curso público ou no vestibular, conseguir uma promoção etc.
E se nesse mar utilitarista, alguma inteligência ousa levantar-se
para buscar o conhecimento como um bem valioso em si, logo
é taxada de esquisita, irracional ou excêntrica. Falsas ideias
como esta precisam ser removidas de nossas almas.

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

Tradicionalmente, a educação sempre foi compreendida como


processo de formação integral do homem, no seu aspecto
cognitivo e moral. Na obra de Platão e Aristóteles, vemos ni-
tidamente qual a finalidade do ensino: formar sábios, ou seja,
pessoas notáveis pelo seu saber e virtude, capazes de ordenar e
governar adequadamente a sociedade. A pedagogia cristã, re-
conhecendo o que de bom havia nos gregos, soube absorver e
aperfeiçoar estes ideais, formando monumentos de sabedoria
como Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto
Magno e tantos outros.

Para resgatar os valores tradicionais da educação, publicamos


o presente opúsculo, composto de textos dos grandes pedago-
gos medievais, Alcuíno de Iorque, Rábano Mauro e Hugo de
São Vítor. Afinal, quando uma geração perde o contato com
seu passado, urge construir pontes que lhe permitam reconec-
tar-se com suas origens.

Traduzimos alguns trechos destes autores, nos quais eles apre-


sentam a doutrina das sete artes liberais: gramática, retórica,
dialética, aritmética, geometria, música e astronomia:

• De Alcuíno, traduzimos a introdução do livro De


Grammatica, em que o educador inglês dialoga com seus
discípulos sobre os degraus que levam à sabedoria.

• De Hugo de São Vítor, traduzimos alguns capítulos de


Eruditiones Didascalicæ, em que o vitorino comenta quais
são as artes e sua relação com a filosofia, e ensina como
devem ser estudadas.

• De Rábano Mauro, traduzimos alguns capítulos do De Ins-


titutione Clericorum, em que o præceptor Germaniæ explica
resumidamente cada uma das artes e mostra como são im-
portantes para o clérigo no estudo das Sagradas Escrituras.

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P r efác i o

Nos três autores vemos claramente a finalidade da pedagogia


cristã: através das sete artes liberais, conduzir à contemplação
da verdade, contida sobretudo na Sagrada Escritura. Eis a ra-
zão por que os medievais se preocupavam não apenas com a
transmissão de conteúdo, mas com a formação moral do es-
tudante. Se o objetivo da pedagogia era levar o aluno à con-
templação da verdade e, consequentemente, a unir-se com a
Verdade suprema que é Deus, era absolutamente necessário
educá-lo para a virtude.

Disto podemos deduzir o caráter ascético que eles atribuíam ao


estudo. O estudante medieval sabia que o aprendizado da gra-
mática, por exemplo, não era um fim em si mesmo, mas ape-
nas um dos sete degraus necessários para alcançar a sabedoria.
Logo, quando estudava, tinha presente a ordem das disciplinas
e sua meta, que é a contemplação da verdade nas Sagradas Es-
crituras. Isto lhe permitia a cada momento viver o estudo com
sobrenaturalidade, como meio de união com Deus. Se nem to-
dos chegavam à meta, isso não anula o fato de que este era o
objetivo, como podemos ler nos textos que seguem.

Esperamos que este breve opúsculo seja de fato uma ponte ca-
paz de reconectar o leitor às bases pedagógicas de nossa civili-
zação. Que seja, ademais, um testemunho do vigor intelectual
que sempre tiveram os clérigos católicos, não menos dotados
nas ciências humanas do que nas divinas. Sim, a Igreja Católica
produziu religiosos e clérigos tão versados em teologia como
em astronomia, direito, música, arquitetura, enfim, em todos
os ramos do saber, porque nela é cultuado aquele único Deus
uno e trino, fonte pleníssima de toda a verdade.

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SETE ARTES
LIBERAIS:
UMA INTRODUÇÃO
1.
DIÁLOGO SOBRE AS SETE COLUNAS
DA SABEDORIA
Beato Alcuíno de Iorque

DISCIPULI — Audivimus, o DISCÍPULOS — Ó doutíssimo mestre, ou-


doctissime magister! sæpius te
dicentem quod philosophia es- vimos-te muitas vezes dizer que a filosofia
set omnium virtutum magistra, foi a mestra de todas as virtudes, e que so-
et hæc sola fuisset quæ inter
mente ela, entre todas as riquezas do sécu-
omnes sæculi divitias nun-
quam miserum se possiden- lo, nunca deixou na miséria quem a pos-
tem reliquisset. Incitasti nos, suía. Com tais palavras estimulaste-nos,
ut vere fatemur, his dictis ad
tam excellentis felicitatis inda- como em verdade confessamos, a procurar
gationem, scire cupientes quæ tão excelente felicidade, ávidos por saber
esset huius magisterii summa,
qual seria a essência desta disciplina ou os
vel quibus gradibus ascendi
potuisset ad eam. Ætas [enim degraus pelos quais poder-se-ia ascender a
(Edit., igitur)] nostra tenera ela. Com efeito, tenra é nossa idade, e mui-
est, et te non dante dexteram
sola surgere satis infirma est. to débil para levantar-se sozinha sem que
tu nos estendas tua mão direita.
Animi vero nostri naturam Sabemos que no coração está a natureza
esse intelligimus in corde, seu
oculorum in capite. Oculi ita- de nosso espírito, e que na cabeça está a
que si splendore solis, vel alia dos olhos. E assim como os olhos, quan-
qualibet lucis præsentia asper-
guntur, perspicacissime, quid-
do são aspergidos pelo esplendor do sol ou
quid obtutibus occurrit, discer- de qualquer outra presença de luz, podem
nere valent: cæterum sine lucis discernir com grande perspicácia qualquer
acessu in tenebris manere no-
tissimum est. Sic animi vigor coisa que se lhes apresenta, assim o vigor
acceptabilis est sapientiæ, si do espírito torna-se capaz de acolher a sa-
erit qui eum illustrare incipiat.
bedoria se há quem comece a ilustrá-lo.

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

MESTRE — Filhos, fizestes bem a compa- MAGISTER — Bene siqui-


dem, filii, comparationem ocu-
ração dos olhos e do espírito. Mas “aquele lorum et animi protulistis. Sed
que ilumina todo o homem que vem a este qui illuminat omnem hominem
venientem in hunc mundum (Jo
mundo” (Jo 1, 9) ilumine vossas mentes
1, 9), illuminet mentes vestras,
para que progridais naquela filosofia que, ut in ea proficere valeatis philo-
como dissestes, nunca abandona os que a sophia, quæ nunquam, ut dixi-
stis, deserit possidentem.
possuem.

DISCÍPULOS — Sabemos, mestre, sabe- DISCIPULI — Scimus, ma-


mos com certeza que devemos pedir àque- gister, scimus certissime quod
ab eo postulandum est qui dat
le que dá abundantemente e a ninguém affluenter et nulli improperat.
rejeita (cf. Jo 6, 37). Contudo, devemos ser Nos tamen morulis quibusdam
instruendi sumus, et quasi in-
instruídos com certo vagar, e conduzidos firmi tardiore gressu ducendi,
qual enfermos com passo mais lento, até quousque aliquid fortitudinis
que alguma fortaleza cresça em nós. O sí- accrescat in nobis. Ignem si-
quidem silex naturaliter habet
lex naturalmente possui em si o fogo, que
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in se, qui solet exire ad ictus.


costuma sair com batidas. De modo seme- Naturale itaque est mentibus
humanis scientiæ lumen, sed
lhante, a luz da ciência é natural nas mentes nisi crebra doctoris intentione
humanas, mas se não for estimulada pela excutiatur, in se quasi scintilla
contínua aplicação do mestre, permanece in silice latet.

latente em si como uma centelha no sílex.

MESTRE — Será fácil demonstrar-vos o MAGISTER — Est quidem


facile viam vobis demonstrare
caminho da sabedoria, desde que a este- sapientiæ, si eam tantummodo
jais procurando somente por Deus, pelo propter Deum, [propter rerum
conhecimento das coisas, pela pureza da scientiam], propter puritatem

1. Variedade de quartzo, de cor ruiva ou parda e algu-


mas vezes negra, usado na produção de pederneiras.
A pederneira é um sílex pirômaco, capaz de produzir
faíscas quando percutido ou atritado por peças de
metal, em especial o ferro. Muito utilizado em pe-
ças antigas de artilharia, espingardas, isqueiros etc.,
gera faíscas, tornando fácil se fazer fogo em qualquer
clima, em qualquer altitude, até mesmo sob tempes-
tades e neve. (Nota do Tradutor)

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1 . D i á l o g o s o b r e as s e t e co lu nas da sab ed o r i a

animæ, propter veritatem co- alma, para conhecer a verdade, e também


gnoscendam, etiam et prop-
ter seipsam diligatis; et non se a amais por si mesma; e não pelo louvor
propter humanam laudem, vel humano, pelas honras do século ou ainda
honores sæculi, vel etiam divi-
pelos falsos prazeres das riquezas, coisas
tiarum fallaces voluptates, quæ
omnia quanto plus amantur, estas que quanto mais são amadas tanto
tanto longius aberrare faciunt mais desviam do caminho da verdadeira
a vero scientiæ lumine ista
quærentes: velut ebrius domum, ciência os que a procuram: como um ébrio
quo tramite revertatur, ignorat. que ignora como retornará à sua casa.
DISCIPULI — Fatemur sci- DISCÍPULOS — Confessamos, sem pesta-
licet nos beatitudinem amasse:
sed si qua possit in hoc sæculo
nejar, que amamos a felicidade: porém, igno-
esse ignoramus. ramos se possa haver alguma neste mundo.
MAGISTER — Est enim men- MESTRE — Com efeito, existe nas mentes
tibus hominum veri boni natu-
raliter inserta cupiditas: sed ad
dos homens um desejo inato pelo verdadei-
falsa quædam plurimos eorum ro bem, porém o erro dirige muitos deles
devius error abducit. Quorum aos falsos bens. Alguns creem que a máxi-
quidem alii maximam felicita-
tem divitiis abundare credunt ma felicidade é abundar em riquezas, outros
[At., credentes], alii honoribus alegram-se com as honras, outros congra-
gaudent, alii potentia congra-
tulantur, alii voluptatibus de-
tulam-se com o poder, outros deleitam-se
lectantur, alii laudibus inhiant. nos prazeres, outros são ávidos de elogios.
Quæ diligentius considerata Mas se forem diligentemente consideradas,
tantis implicantur calamitati-
bus, ut vix aliquid beatitudinis tais coisas são misturadas com tantos in-
habere videantur. Hæc enim fortúnios, que dificilmente parecem conter
sibi somniantes veram aliqui
felicitatem fore existimant, et
alguma felicidade. Alguns sonhadores pen-
dum eos ad verum bonum na- sam que tais coisas lhes trarão a verdadeira
turalis intentio ducit, multiplex felicidade, e quando a inclinação natural os
tamen error propter ignoran-
tiam abducit. conduz ao verdadeiro bem, vários erros os
desviam pela ignorância.

DISCIPULI — Quis sanum DISCÍPULOS — Que verdadeiro sábio ig-


sapiens hæc esse transitoria
nora serem tais coisas transitórias? E con-
ignorat? Tamen huius vitæ via-
torem horum abundantia adiu- tudo, quem não sabe que o viajante desta
vare quis nesciat? vida é ajudado pela abundância delas?

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MESTRE — O uso moderado delas ajuda, MAGISTER — Moderatus eo-


rum usus adiuvat, nimius gra-
mas o excessivo atrapalha. Daí o valor da- vat. Unde philosophicum illud
quele adágio filosófico: Ne quid nimis — valet elogium: Ne quid nimis.
“Nada em excesso”.

DISCÍPULOS — De fato, tudo em exces- DISCIPULI — Notum est,


so faz mal. Mas até quanto se deve pedir a omnia nimia nocere. Sed usque
ad quem finem eorum est, quæ
abundância daquelas coisas que há pouco paulo ante numerasti, abundan-
enumeraste? tia petenda?

MESTRE — Quanto exige a necessidade MAGISTER — Quantum


necessitas corporis exigit, et
do corpo, e quanto pede a dedicação à sa-
quantum sapientiæ expostulat
bedoria. studium.

DISCÍPULOS — Julgamos ser próprio DISCIPULI — Perfectorum


esse arbitramur huiusmodi ra-
de [homens] perfeitos reprimir com estes tionis frenis animarum cursus
freios da razão os movimentos da alma. coercere.

MESTRE — É a esta perfeição que vos MAGISTER — Ad hanc sci-


licet perfectionem, dum ætas
exorto, filhos, enquanto floresce a idade, floret, dum animus viget, vos,
enquanto tem força o espírito. filii, cohortor.

DISCÍPULOS — Eia! Vamos! Guia-nos DISCIPULI — Duc, age, et


reduc per divinæ vias rationis,
pelas vias da razão divina, e transporta-nos et ad huius cacumen perfectio-
ao cume desta perfeição! Pois, embora com nis transfer. Nam, licet impari
passo desigual, seguimos-te como guia. gressu, te ductorem sequimur.

MESTRE — Por que, ó homem, animal MAGISTER — Quid homo,


racional, imortal por tua melhor parte, rationale animal, meliore parte
immortalis, tui Conditoris ima-
imagem de teu Criador, por que perdes o go, quid propria perdis? Quid
que te é próprio? Por que aspiras ao que é aliena petis? Cur infima quæris
et summa relinquis?
alheio? Por que procuras o que é ínfimo e
deixas o que é sublime?

DISCÍPULOS — Que coisas são próprias, DISCIPULI — Quæ sunt pro-


pria, vel quæ aliena?
ou quais são alheias?

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1 . D i á l o g o s o b r e as s e t e co lu nas da sab ed o r i a

MAGISTER — Aliena sunt, MESTRE — Alheias são as coisas procu-


quæ extra quæruntur, ut divitia-
rum congregatio; intra, sapien- radas exteriormente, como o acúmulo de
tiæ decus. Igitur tu, o homo! si riquezas; interiormente [se encontra] o or-
tui ipsius compos eris, posside-
nato da sabedoria. Portanto, ó homem, se
bis quod necunquam amittere
dolebis, nec ulla tibi fortuna fores senhor de ti mesmo, possuirás algo
auferre valebit. Quid igitur, o que nunca temerás perder, nem fortuna
mortales, extra petitis, dum in-
tra habetis quod quæritis? alguma poderá arrancar-te. O que então,
ó mortais, quereis encontrar fora, quando
dentro já possuís o que procurais?
DISCIPULI — Felicitatem
quærimus. DISCÍPULOS — Procuramos a felicidade.
MAGISTER — Bene quæritis, MESTRE — Procurais bem, se procurais a
si manentem quæritis, et non
fugientem. Videtis quam multis
duradoura, e não a passageira. Vede como
amaritudinibus terrena felicitas tantas amarguras permeiam a felicidade
aspersa est, quæ nulli vel tota terrena, que a ninguém chega em pleni-
proveniet, vel fida permanet,
quia nil non mutabile præs- tude nem permanece fiel, porque nada de
entis vitæ inveniri potest. Quid imutável pode ser encontrado nesta vida.
pulchrius luce? et hæc tenebris
succedentibus obfuscatur. Quid
O que é mais belo que a luz? Contudo, ela
floribus venustius æstatis? qui é ofuscada pelas trevas supervenientes. O
tamen hiemalibus frigoribus que é mais encantador que as flores de ve-
pereunt. Quid salute corporis
suavius? et quis hanc perpe- rão? Contudo, elas perecem nos frios de
tuam habere confidit? Quid inverno. O que é mais suave que a saúde do
tranquilla pace iucundius? et
tamen sæpe hæc tristi discor-
corpo? E quem espera mantê-la perpetua-
diarum fomite irritatur. mente? O que é mais alegre que a tranquila
paz? Contudo, ela é frequentemente anula-
da pelo triste estímulo das discórdias.

DISCIPULI — Hæc omnia sic DISCÍPULOS — Não duvidamos que to-


se habere, sicut dicis, non dubi- das estas coisas são assim, como dizes. Mas
tamus. Sed quorsum ista?
para que as dizes?
MAGISTER — Ut ex maiori- MESTRE — Para que, pelas maiores, co-
bus minora cognoscatis.
nheçais as menores.
DISCIPULI — Quonam modo? DISCÍPULOS — De que modo?

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MESTRE — Se o céu e a terra, que são para MAGISTER — Si cælum ter-


raque suis semper vicissitudi-
todos os mortais [fonte] geral de beleza e nibus mutantur, generalis om-
utilidade, mudam em suas vicissitudes, nium [mortalium] pulchritudo
et utilitas; quanto magis cuiusli-
quanto mais é necessário ser transitó-
bet rei specialis delectatio tran-
rio o prazer de cada coisa específica? E sitoria esse necesse est? Et cur
por que devem ser amadas as coisas que ea amari debent quæ permanere
nequeunt? Quid vos homines
não podem permanecer? O que pensais, de [nominis (Edit., hominis)]
vós homens, do louvor, da dignidade da laude, de honoris dignitate,
de divitiarum congregatione
honra, do acúmulo de riquezas? Lestes
cogitatis? Legistis Crœsi di-
sobre as riquezas de Creso, a fama de 2
vitias, Alexandri famam, Pom-
Alexandre, a honra de Pompeu? E de
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peii honorem? Et quid hæc
perituris proderunt? dum qui-
que lhes serviram tais coisas na hora da sque illorum immatura morte
morte? Enquanto cada um deles, por uma cum magno quæsitam labore
cito perdidit gloriam, minu-
morte prematura e dolorosa, perdeu ra-
itque quodammodo propriæ
pidamente a glória almejada e diminuiu integritatem scientiæ [Ms.,
de algum modo a integridade da própria iustitiæ], qui ex alienis sibi
sermunculis laudem quærit.
ciência, há quem ainda busque louvor nas Quid de divitiis congregandis
palavras alheias. Por que vos dedicais em studetis, quæ vel deserunt, vel
deseruntur? quæ effundendo
acumular riquezas que, ou vos deixarão,
quam servando melius ditant
ou serão por vós deixadas? Que melhor [Ms., nitent]? Siquidem avari-
enriquecem sendo espalhadas que con- tia odiosos, claros largitas facit.
Quarum abundantia nonnisi
servadas? De fato, a avareza torna [os ho- ex aliorum indigentia [Ms.,

2. Creso († 546 a.C.), último rei da Lídia, tornou-se


proverbial por sua riqueza, graças à exploração que
teria empreendido nas areias auríferas do rio Pactolo
— o mesmo em que, segundo a lenda, teria se ba-
nhado o rei Midas, que transformava em ouro tudo
o que tocava. (N.T.)
3.Alexandre, o Grande († 323 a.C.), rei da Macedô-
nia, morreu invicto nas batalhas que travou e é tido
como um dos líderes militares mais bem-sucedidos
que já existiu. (N.T.)
4. Pompeu († 48 a.C.) foi cônsul por várias vezes na Re-
pública Romana, herói militar e um dos membros da
aliança política chamada Primeiro Triunvirato. (N.T.)

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1 . D i á l o g o s o b r e as s e t e co lu nas da sab ed o r i a

indulgentia] congeritur. Quid mens] odiosos, enquanto a generosidade


honores fomenta superbiæ
quæritis? Nonne unus est om- os torna honrados. A abundância de tais
nium Pater? Et cur iniuriam coisas não é gerada senão pela indigência
facitis Conditori vestro peiora
dos outros. Por que procurais honras que
amando, et meliora amittendo?
Ille genus humanum terrenis fomentam a soberba? Não é um só o Pai
omnibus præstare voluit, vos de todos? E por que injuriais vosso Cria-
dignitatem vestram infra infi-
ma quæque detruditis. Quan- dor amando o que é pior e deixando o que
to melius est interius ornari, é melhor? Ele quis que o gênero humano
quam exterius, animam perpe-
presidisse todas as coisas terrenas; vós,
tuam splendore polire.
porém, precipitais vossa dignidade sob o
que há de mais baixo. Quão melhor é or-
nar-se interiormente que exteriormente,
polir com esplendor a alma perpétua.

DISCIPULI — Quæ sunt DISCÍPULOS — Quais são os ornamentos


animæ ornamenta [perpetua]?
perpétuos da alma?

MAGISTER — Primo om- MESTRE — O primeiro de todos é a sa-


nium sapientia, cui vos maxime bedoria, à qual exorto-vos a ter a máxima
studere cohortor [Ms., suadeo].
dedicação.
DISCIPULI — Unde scimus DISCÍPULOS — Donde sabemos que a
sapientiam esse perpetuam? Et
si hæc omnia quæ ante numera-
sabedoria é perpétua? E se são transitórias
sti, transitoria sunt, cur non et todas as coisas que há pouco enumeraste,
horum scientia pertransit? por que o conhecimento delas também
não passa?
MAGISTER — Animam puta-
tis esse perpetuam? MESTRE — Pensais que a alma é perpétua?
DISCIPULI — Non solum DISCÍPULOS — Não só pensamos, como
putamus, sed etiam certissime
scimus. sabemos com certeza.

MAGISTER — Estne sapien- MESTRE — A sabedoria é o ornato e a dig-


tia decus et dignitas animæ? nidade da alma?
DISCIPULI — Est vere. DISCÍPULOS — Sim.

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MESTRE — Como poderá a alma ser per- MAGISTER — Quomodo


absque sapientia, decore suo,
pétua de modo feliz sem a sabedoria, seu anima feliciter poterit esse per-
ornato? Não é incoerente que a alma seja petua? Nonne absque ratione
est, animam absque decore et
perpétua sem seu ornato e dignidade?
dignitate sua esse perpetuam?
Consequentemente, ambas parecem ser Consequens videtur utramque
perpétuas, tanto a alma como a sabedoria. esse perpetuam, animam scilicet
et sapientiam. Videtisne quolibet
Percebeis que frequentemente as riquezas casu sæpissime divitias habentem
abandonam os que as possuem, e todas as deserere, et omnes sæculi honores
multoties minui?
honras do século muitas vezes diminuem?

DISCÍPULOS — De fato, vemos que nem DISCIPULI — Videmus ita-


que ut ne regni quidem poten-
sequer o poder do reino perdura. tia perduret [Ms., uti perdurat].

MESTRE — De que valem as riquezas sem MAGISTER — Quid divitiæ


a sabedoria? sine sapientia?

DISCÍPULOS — É como um corpo sem DISCIPULI — Quod corpus


sine anima, Salomone dicente:
alma, como diz Salomão: “De que valem as Quid prosunt divitæ stulto, cum
riquezas ao estulto, se não pode comprar a sapientiam emere non possit?
sabedoria?” (Pr 17, 16). (Pr 17, 16).

MESTRE — Não é esta a que exalta o hu- MAGISTER — Nonne hæc


milde, ergue do esterco o pobre, para que est, quæ humilem exaltat, et
erigit de stercore pauperem, ut
sente com os príncipes e possua um trono sedeat cum principibus, et so-
de glória (cf. 1Sm 2, 8)? lium gloriæ teneat?

DISCÍPULOS — Sem dúvida é ela; porém, DISCIPULI — Est quidem,


tão bela é de possuir e quão custosa para sed quam speciosa in habendo,
tam laboriosa in acquierendo.
adquirir!

MESTRE — Que soldado é coroado sem MAGISTER — Quis miles


luta? Que agricultor tem fartura de pão sem sine certamine coronabitur?
Quis agricola sine labore abun-
trabalho? Não diz o antigo provérbio que as dat panibus? Nonne vetus pro-
raízes das letras são amargas, porém seus verbium, radices litterarum esse
amaras, fructus autem dulces?
frutos são doces? O nosso orador prova isto Igitur et noster orator in Epist.
na Epístola aos Hebreus: “Toda disciplina, ad Hebr. idem probat. Omnis
no momento, parece antes ser fonte de tris- quidem disciplina in præsenti

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1 . D i á l o g o s o b r e as s e t e co lu nas da sab ed o r i a

non videtur esse gaudii sed teza que de alegria. Mais tarde, porém, dará
mæroris; postea [vero], pacatis-
simum fructum exercitatis in ea um fruto de paz e de justiça aos que nela
affert iustitiæ. foram exercitados” (Hb 12, 11).
DISCIPULI — Duc, age, quo DISCÍPULOS — Vamos! Guia-nos! Com
libeat, sequimur libenter, quia
spes premii solet laborem re- prazer [te] seguiremos aonde for necessá-
levare. Omnis quippe qui arat, rio, porque a esperança do prêmio costu-
in spe arat percipiendi fructus.
Fertur itaque, dum Diogenes
ma atenuar o sofrimento. Todo aquele que
magnus ille philosophus om- ara, é na esperança de colher os frutos que
nes suos a se expulit discipulos ara. Conta-se que, quando aquele grande
dicens: Ite, quærite vobis magi-
strum, ego vero [inveni] mihi, ei filósofo chamado Diógenes expulsou todos
solus Plato adhæsit, et quadam os seus discípulos dizendo: “Ide, procu-
die lutulentis pedibus super
exstructum magistri lectulum
rai-vos um mestre, eu encontrei um para
cucurrit assidere doctori, quem mim”, Platão ficou sozinho com ele. Certo
Diogenes baculo ferire minita- dia [o discípulo] correu com os pés lama-
batur; cui puer inclinato capite
respondit: Nullus est tam durus centos sobre o leito do mestre na intenção
baculus, qui me a tuo segregare de ficar-lhe próximo; então Platão amea-
possit latere.
çou feri-lo com um bastão, ao que o servo,
com a cabeça inclinada, respondeu: “Não
há bastão tão duro que me possa separar
do teu lado”.
At si [Ms., Si ergo] ille amore Ora, se inflamado pelo amor da sabedoria
sæcularis sapientiæ flagrans,
cælestis vero, quæ ad vitam do século, e ignorando a celeste que con-
ducit perpetuam, ignarus, sic duz à vida eterna, aquele [discípulo] per-
ardenter magistrum sequi per-
sistebat, quanto magis nos
sistia tão ardentemente em seguir seu mes-
tua, magister, ingredientem tre, quanto mais nós devemos seguir teus
vel egredientem vestigia sequi passos, ó mestre, quando entras e quando
debemus, qui non solum lit-
terario [Ms., litteratorio] nos sais, tu que não somente sabes conduzir-
liberalium studiorum itinere -nos pelo caminho literário dos estudos
ducere nosti, sed etiam meliores
sophiæ vias, quæ ad vitam ducit
liberais, como também podes desvendar-
æternam [pandere] poteris? -nos os melhores caminhos da sabedoria
que conduz à vida eterna?

MAGISTER — Divina nos MESTRE — Preceda-nos a graça divina, e


præcedat gratia, et in thesauros conduza aos tesouros da sabedoria espiri-

17
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

tual, em que possais inebriar-vos na fon- spiritalis deducat sapientiæ, in


qua divinæ ubertatis fonte ine-
te das riquezas divinas, a fim de que haja briari [possitis], ut sit in vobis
em vós uma fonte de água que jorre para a fons aquæ salientis in vitam
æternam. Sed quia Apostolo
vida eterna (cf. Jo 7, 38). Contudo, como o
præcipiente legimus: Omnia
Apóstolo disse: “Faça-se tudo decentemen- vestra honesta cum ordine fiant,
te e com ordem” (1Cor 14, 40), julgo que vos per quosdam eruditionis
gradus ab inferioribus ad supe-
deveis ser conduzidos por certos degraus riora esse ducendos reor, donec
de instrução, partindo das coisas inferio- pennæ virtutum paulatim ac-
crescant, quibus ad altiora puri
res às superiores, até que paulatinamente
ætheris spectamina volantes di-
cresçam as penas das virtudes, pelas quais cere valeatis: Introduxit me rex
voando aos mais sublimes espetáculos do in cellaria sua, exsultabimus et
lætabimur in eis (Ct 1, 3).
puro céu, possais dizer: “Introduziu-nos o
rei em seus aposentos; exultaremos e nos
alegraremos neles” (Ct 1, 3).

DISCÍPULOS — Dá-nos tua mão direita, DISCIPULI — Da dexteram,


magister, et nos ab humo impe-
mestre! Ergue-nos do solo da imperícia e ritiæ eleva, et in gradus sophiæ
constitui-nos contigo nos degraus da sa- nos tecum constitue, in quibus
bedoria, pois pela dignidade de teus cos- te ex morum dignitate, ex ver-
borum veritate sæpius consi-
tumes e pela verdade de tuas palavras, re- stere agnovimus, quo te rerum
conhecemos frequentemente que aí estás; ratio pulcherrima ab ineunte, ut
audivimus, ætate perduxit; et si
aonde foste conduzido, como ouvimos, poeticis licet aures accomodare
desde tenra idade por uma razão belíssima fabulis, nobis non incongruum
das coisas. E se é lícito acomodar os ouvi- videtur, quod asserunt, epulas
deorum esse rationes.
dos às fábulas poéticas, não nos parece in-
conveniente o que afirmam: que as razões
são os banquetes dos deuses.

MESTRE — Na verdade, filhos, podeis di- MAGISTER — Verius, o filii!


zer que as razões são mais o alimento dos dicere potestis, rationes esse
angelorum cibum, animarum
anjos e o ornato das almas, do que o ban- decorem, quam epulas deorum.
quete dos deuses.

DISCÍPULOS — Seja qual for o modo DISCIPULI — Quoquo modo


hæc dici debeant, primos pre-
como devam ser chamadas, rogamos que camur nobis sapientiæ ostendi
nos sejam revelados os primeiros degraus

18
1 . D i á l o g o s o b r e as s e t e co lu nas da sab ed o r i a

gradus, ut Deo donante et te da sabedoria, a fim de que, com o auxílio


edocente ab inferioribus ad su-
periora pervenire valeamus. de Deus e a tua instrução, possamos chegar
das coisas inferiores às superiores.

MAGISTER — Legimus, Sa- MESTRE — Lemos o que disse Salomão,


lomone dicente, per quem ipsa por cuja voz canta a mesma Sabedoria: “A
se cecinit [Sapientia]: Sapientia
ædificavit sibi domum, exci- sabedoria edificou para si uma casa, levan-
dit columnas septem (Pr 9, 1). tou sete colunas” (Pr 9, 1). Esta sentença
Quæ sententia licet ad divinam
pertineat sapientiam, quæ sibi
pertence à Sabedoria divina, que no útero
in utero virginali domum, id virginal construiu para si uma casa, isto é,
est corpus, ædificavit, hanc et um corpo, e a consolidou com os sete dons
septem donis sancti Spiritus
confirmavit; vel Ecclesiam, quæ do Espírito Santo; e que também iluminou
est domus Dei, eisdem donis com os mesmos dons a Igreja, que é a casa
illuminavit; tamen sapientia
liberalium litterarum septem
de Deus. Contudo, a sabedoria é consoli-
columnis confirmatur; nec ali- dada pelas sete colunas das artes liberais;
ter ad perfectam quemlibet de- e de outro modo não conduz quem quer
ducit scientiam, nisi his septem
columnis vel etiam gradibus que seja à perfeita ciência, a menos que seja
exaltetur. exaltado por estas sete colunas ou degraus.

DISCIPULI — Tandem ali- DISCÍPULOS — Revela-nos, enfim, o que


quando pande quod promisisti,
prometeste; e dada a fraqueza da nossa idade,
et propter fragilitatem nostræ
ætatis nos mollioribus incipe começa por nutrir-nos com algo mais delica-
lactare, ut ad solidiora, crescen- do, a fim de que, crescendo em idade, mais
te ætate, facilius perveniamus.
facilmente cheguemos a coisas mais sólidas.
MAGISTER — Divina præv- MESTRE — Auxiliado pela graça divina
eniente etiam et perficiente
gratia faciam quod rogastis,
que prepara e aperfeiçoa, farei o que pe-
vobisque ad videndum osten- distes: pôr-vos-ei diante dos olhos os sete
dam [Ms., ostendero] septem degraus da filosofia, e, se Deus ajudar e a
philosophiæ gradus, per eo-
sdemque Deo donante et vita vida o permitir, conduzir-vos-ei por tais
comite pro nostrarum portione degraus às sublimidades da ciência especu-
virium penes temporis et ætatis
opportunitatem ad sublimiora
lativa, conforme o permitirem nossas for-
speculativæ scientiæ deduxero. ças e a disponibilidade de tempo e a idade.
DISCIPULI — Duc etiam, duc DISCÍPULOS — Vamos! Eia! Vamos! Ti-
et tandem aliquando de nidulo
ra-nos enfim do ninho da inércia e põe-nos

19
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

contigo nos galhos da sabedoria que te foi ignaviæ in ramos tibi a Deo
datæ sapientiæ compone; unde
dada por Deus, donde possamos discernir aliquod veritatis lumen cernere
algo da luz da verdade; e como tantas vezes valeamus: et quoties toties pro-
misisti, septenos theorasticæ
prometeste, mostra-nos os sete degraus da
[Ms., forastice] disciplinæ gra-
disciplina teorética. dus nobis ostende.

MESTRE — Os degraus que procurais MAGISTER — Sunt igitur


gradus, quos quæritis, et uti-
— e oxalá sejais sempre tão ardentes em nam tam ardentes sitis semper
aprendê-los, quanto agora estais curio- ad [ascendendum (Edit., di-
sos por vê-los —, são: gramática, retórica, scendum)], quam curiosi modo
estis ad videndum: grammatica,
dialética, aritmética, geometria, música e rhetorica [dialectica], arith-
astronomia. Foi por eles que os filósofos metica, geometrica, musica et
astrologia. Per hos enim philo-
consumiram tanto seu tempo de trabalho sophi sua contriverunt otia at-
como de descanso. Por eles, tornaram-se que negotia. Iis namque consu-
mais gloriosos que os cônsules, mais cé- libus clariores effecti, iis regibus
celebriores, iis videlicet æterna
lebres que os reis, eternamente dignos de memoria laudabiles: iis quoque
louvor. Por eles, também os santos e ca- sancti et catholici nostræ fidei
doctores et defensores omnibus
tólicos doutores e defensores de nossa fé hæresiarchis in contentionibus
sempre foram superiores a todos os here- publicis semper superiores ex-
siarcas nas disputas públicas. stiterunt.

Por estas veredas, filhos caríssimos, corra Per has vero, filii charissimi,
semitas vestra quotidie currat
diariamente a vossa adolescência, até que adolescentia, donec perfectior
na idade perfeita e com o espírito mais for- ætas et animus sensu robustior
te que o sentido, chegueis aos cumes das ad culmina sanctarum Scrip-
turarum perveniat. Quatenus
Sagradas Escrituras. Para que, armados hinc inde armati veræ fidei
assim de todos os lados, sejais sempre in- defensores et veritatis asser-
tores omnimodis invincibiles
vencíveis defensores da verdadeira fé e em- efficiamini.
baixadores da verdade.

20
2.
IMPORTÂNCIA DO TRIVIUM
E DO QUADRIVIUM
Hugo de São Vítor

CAPUT I. Quæ artes I. Das artes que devem ser


præcipue legendæ sint preferencialmente estudadas
Ex his autem omnibus scien- De todas as ciências, os antigos escolheram
tiis supra enumeratis septem
specialiter decreverant antiqui sete de maneira especial em seus estudos
in studiis suis ad opus eru- para serem usadas no trabalho pedagógico.
diendorum, in quibus tantam
utilitatem esse præ cæteris om-
E de tal maneira as consideraram superio-
nibus perspexerunt, ut quisquis res às demais que, segundo eles, todo aquele
harum disciplinam firmiter que tivesse recebido uma sólida formação
percepisset, ad aliarum noti-
tiam postea inquirendo magis nestas disciplinas, poderia chegar ao co-
et exercendo, quam audiendo nhecimento das outras mais por sua própria
perveniret.
busca e exercício do que ouvindo aulas.
Sunt enim quasi optima quæd- Com efeito, estas ciências são ótimos ins-
am instrumenta et rudimenta
quibus via paratur animo ad trumentos e excelentes bases que prepa-
plenam philosophicæ verita- ram o espírito para o pleno conhecimento
tis notitiam. Hinc trivium et
quadrivium nomen accepit, eo
da verdade filosófica. Daí terem recebido o
quod ii quasi quibusdam viis nome de trivium e quadrivium, por serem
vivax animus ad secreta sophiæ como vias pelas quais o espírito fortaleci-
introeat. Nemo tunc tempo-
ris nomine magistri dignus do se introduz nos segredos da sabedoria.
videbatur, qui non harum VII Neste tempo, ninguém era considerado
scientiam profiteri posset.
digno do nome de mestre se não dominas-
se o conhecimento destas sete artes.

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

Lê-se que Pitágoras também manteve Pythagoras hanc in studiis suis


consuetudinem servasse legitur,
como prática em seus cursos que, antes de ut usque ad septenium, secun-
concluídos sete anos, correspondentes ao dum numerum videlicet septem
artium liberalium, nullus disci-
número das sete artes liberais, nenhum de
pulorum suorum de iis quæ ab
seus discípulos podia atrever-se a pedir-lhe ipso dicebantur rationem po-
uma explicação de suas afirmações, senão scere auderet; sed fidem daret
verbis magistri quousque om-
que deveria confiar nas palavras do mestre nia audivisset, sicque iam per
até que concluísse sua etapa de aprendiza- semetipsum rationem eorum
posset invenire.
gem, e então teria a capacidade de encon-
trar a explicação por si mesmo.

Alguns, segundo se diz, estudavam com Has septem quidam tanto stu-
tanto empenho estas sete artes que as dio didicisse leguntur, ut plane
ita omnes in memoria tene-
conservavam plenamente em sua memó- rent, ut quascunque scripturas
ria. Desta maneira, independentemente deinde ad manum sumpsis-
sent, quascunque quæstiones
dos textos que tivessem em mãos ou dos solvendas aut comprobandas
problemas propostos para sua solução ou proposuissent, ex his regulas et
demonstração, não se viam obrigados a re- rationes ad definiendum id de
quo ambigeretur, folia librorum
passar as páginas dos livros para buscar os revolvendo non quærerent, sed
princípios e razões que lhes permitissem statim singula corde parata ha-
berent.
resolver as dúvidas, senão que, imediata-
mente, tinham à disposição em sua mente
a resposta para cada caso.

Isto explica por que nesse tempo havia tan- Hinc profecto accidit eo tem-
pore tot fuisse sapientes ut
tos sábios capazes de escrever mais livros plura ipsi scriberent quam nos
do que nós somos capazes de ler. Nossos legere possimus. Scholastici
estudantes, ao contrário, não sabem ou não autem nostri aut nolunt aut ne-
sciunt modum congruum in di-
querem seguir o método adequado para o scendo servare, et idcirco mul-
aprendizado, razão pela qual contamos tos studentes, paucos sapientes
invenimus. Mihi vero videtur
com muitos estudantes mas com poucos non minori cura providendum
sábios. Julgo, porém, que assim como o lei- esse lectori ne in studiis inu-
tor deve evitar o desperdício de tempo com tilibus operam suam expendat,
quam ne in bono et utili propo-
estudos inúteis, também deve fugir da ti- sito tepidus remaneat. Malum
bieza nos propósitos bons e úteis. Se é ruim est bonum negligenter agere,

22
2 . Imp o rtâ n c i a d o t r i v i u m e d o q uad r i v i u m

peius est in vanum labores mul- fazer o que é bom com negligência, pior
tos expendere.
ainda é esforçar-se muito por algo inútil.
Sed quia non omnes hanc di-
scretionem habere possunt, ut Mas, como nem todos têm capacidade de
intelligant quod sibi expediat, discernir o que lhes convém, mostrarei ao
idcirco quæ Scripturæ mihi
utiliores videantur, lectori bre- leitor quais são os escritos que me parecem
viter demonstrabo, ac deinde de mais convenientes, para logo acrescentar
modo quoque disserendi pauca
adnectam.
também umas breves reflexões sobre o mé-
todo de aprender.

CAPUT II. De duobus


generibus scripturarum II. Dos dois gêneros de escritos
Duo sunt genera scripturarum. Há dois gêneros de escritos: o primeiro
Primum genus est earum quæ
propriæ artes appellantur. Se- compreende aqueles que tratam das artes
cundum est earum quæ sunt em sentido próprio; o segundo, aqueles que
appendentia artium. Artes sunt
quæ philosophiæ supponun-
tratam dos apêndices das artes. As artes são
tur, id est quæ aliquam certam as que estão subordinadas à filosofia, isto é,
et determinatam philosophiæ que têm por objeto uma certa e determi-
materiam habent, ut est gram-
matica, dialectica, et cæteræ nada parte da filosofia, como a gramática,
huiusmodi. Appendentia ar- a dialética etc. Os apêndices das artes são
tium sunt quæ tantum ad phi-
losophiam spectant, id est quæ
aqueles que só indiretamente se referem à
in aliqua extra philosophiam filosofia, isto é, que têm como objeto uma
materia versantur. matéria exterior à filosofia.
Aliquando tamen quædam ab Algumas vezes, certos elementos extraídos
artibus discerpta sparsim et
confuse attingunt, vel si sim-
das artes referem-se à [filosofia] de maneira
plex narratio est, viam ad phi- esporádica e confusa; mas se forem expos-
losophiam præparant. Huiu- tos com simplicidade, preparam o caminho
smodi sunt omnia poetarum
carmina, ut sunt tragoediæ, co- para a filosofia. Tal é o caso de todas as obras
moediæ, satiræ, heroica quoque dos poetas, como as tragédias, comédias e
et lyrica, et iambica, et didasca-
lica quædam; fabulæ quoque et
sátiras, também a epopeia, a lírica e os ver-
historiæ; illorum etiam scripta, sos jâmbicos, algumas obras didáticas, as
quos nunc philosophos appella- fábulas e as histórias; e até os escritos da-
re solemus, qui et brevem mate-
riam longis verborum ambagi- queles que agora comumente chamamos
bus extendere consueverunt, et de filósofos, os quais costumam tratar com

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

abundância de palavras e rodeios um as- facilem sensum perplexis ser-


monibus obscurare, vel etiam
sunto simples, e obscurecer com linguagem diversa simul compilantes, qua-
complicada o que tem um sentido claro, ou si de multis coloribus et formis,
unam picturam facere.
reúnem vários elementos numa só coisa,
como se pretendessem fazer uma pintura a
partir de muitas formas e cores.

Nota bem a distinção que estabeleci entre Nota quæ tibi distinxi. Duo
as artes e os apêndices das artes. Mas entre sunt artes et appenditia artium.
Sed inter hæc tanta mihi di-
os dois eu vejo uma distância semelhante stantia esse videtur, ut ille ait:
à expressa por aquele que disse: “Quanto o “Lenta salix quantum pallenti
cedit olivæ, puniceis humi-
maleável salgueiro cede à pálida oliveira, lis quantum saliunca rosetis”
quanto a humilde valeriana aos purpúreos (Virg. in Bucol.).
roseirais”. 5

Assim, se alguém decide alcançar a ciên- Ita ut quicunque ad scientiam


pertingere cupit, si relicta veri-
cia, mas deixa de lado as artes verdadei-
tate artium reliquis se implicare
ras para entregar-se às acessórias, terá um voluerit, materiam laboris ne-
trabalho enorme, para não dizer infinito, dum plurimam sed et infinitam
sustinebit, et fructum exiguum.
e com resultados mínimos. Em suma, as Denique partes sine appendici-
artes, sem seus apêndices, podem tornar is suis perfectum lectorem face-
re possunt; illa sine artibus nihil
perfeito o leitor. Os apêndices, porém,
perfectionis conferre valent.
sem as artes, em nada contribuem para a Maxime autem cum nihil in se
perfeição, sobretudo se consideramos que expetendum habeant unde lec-
torem invitent, nisi traductum
eles nada têm de desejável em si mesmos ab artibus et accommodatum;
que atraia o leitor, exceto o que tomaram neque quisquam in eis quærant
nisi quod artium est.
ou adaptaram das artes. Que ninguém,
pois, busque neles outra coisa além do que
pertence às artes.

5. “Quanto o maleável salgueiro cede à pálida olivei-


ra, quanto a humilde valeriana aos purpúreos rosei-
rais, tanto, no nosso juízo, a ti cede Amintas. Mas
cessa de <falar> mais: entramos no antro” (Virgílio,
Bucólicas, trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Quetzal,
2021, p. 97).

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2 . Imp o rtâ n c i a d o t r i v i u m e d o q uad r i v i u m

Quapropter mihi videtur pri- Por isso, parece-me que antes de tudo de-
mum opera danda esse ar-
tibus ubi fundamenta sunt vemos dedicar nossos esforços às artes, nas
omnium, et pura simplexque quais se encontram os fundamentos de to-
veritas aperitur; maxime his
das as coisas e se descobre a pura e simples
VII quas prædixi, quæ totius
philosophiæ instrumenta sunt. verdade, e sobretudo às sete das quais falei
Deinde cætera quæque, si vacat, antes, que são os instrumentos de toda a
legantur, quia aliquando plus
delectare solent seriis admixta filosofia. Depois, se houver tempo, sejam
ludicra, et raritas pretiosum fa- lidas também as outras coisas; porque às
cit bonum. Sic in medio fabulæ
vezes algo recreativo causa mais deleite
cursu inventam sententiam avi-
dius aliquando retinemus. quando é mesclado com coisas sérias, e a
raridade faz o que é bom parecer precioso.
É por isso que às vezes retemos com mais
avidez uma sentença, quando a encontra-
mos no meio de uma fábula.
Verumtamen in septem libe- Sem embargo, o fundamento de todo o
ralibus artibus fundamentum
est omnis doctrinæ, quæ præ
aprendizado encontra-se nas sete artes
cæteris omnibus ad manum liberais, que devem ser preferidas às de-
habendæ sunt, utpote sine mais, posto que sem elas a disciplina fi-
quibus nihil solet aut potest
philosophica disciplina expli- losófica não costuma nem pode explicar
care aut definire. Hæ quidem ou definir qualquer coisa. Certamente es-
ita sibi cohærent, et alternis
vicissim rationibus indigent,
tas artes de tal maneira estão vinculadas
ut si una defuerit, cæteræ phi- entre si e se exigem mutuamente em suas
losophum facere non possint. razões que, se faltar uma só delas, todas
Unde mihi errare videntur,
qui non attendentes talem in as outras não são capazes de formar um
artibus cohærentiam, quasdam filósofo. Por isso, parece-me que erram os
sibi ex ipsis eligunt, et cæteris
intactis, his se posse fieri per-
que, sem ter em conta esta coerência entre
fectos putant. as artes, escolhem para si algumas e pen-
sam que podem aperfeiçoar-se nelas sem
ocupar-se das demais.

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

III. De que se deve atribuir a cada uma CAPUT III. Unicuique


das artes o que lhe é próprio arti quod suum est
tribuendum esse
Mas há outro erro, quase tão grave quanto o Est rursum alius error non mul-
anterior, e que é preciso evitar a todo custo. to minor isto, quem summope-
re vitare oportet. Sunt enim
Com efeito, há alguns que, sem omitir nada quidam, qui licet ex iis quæ
do que deve ser lido, contudo, são incapa- legenda sunt nihil præterm-
zes de dar a cada uma das artes o que lhe é ittant, nulli tamen arti quod
suum est tribuere norunt, sed
próprio; ao contrário, em cada uma [preten- in singulis legunt omnes. In
dem] estudar todas. Na gramática, discutem grammatica de syllogismorum
ratione disputant; in dialectica
sobre a natureza do silogismo; na dialética, inflexiones casuales inquirunt,
indagam sobre a declinação dos casos; e, o et quod magis irrisione dignum
que é ainda mais ridículo, ao discutirem o est, in titulo totum pæne le-
gunt librum, et incipit tertia vix
título de um livro, explicam quase a obra lectione expediunt. Non alios
inteira, e na terceira exposição, mal con- docent huiusmodi, sed suam
ostentant scientiam. Sed uti-
cluíram o início. Ao atuar desta forma, não nam quales mihi, tales omnibus
ensinam aos demais, só fazem ostentação de apparerent! Attende quam per-
sua ciência. Oxalá que todos os pudessem versa sit hæc consuetudo; cum
profecto quanto magis super-
ver tal como eu os vejo! Reflete, pois, sobre flua aggregaveris, tanto minus
a perversidade deste costume, porque, em ea quæ utilia sunt capere possis
vel retinere.
verdade, quantas mais coisas inúteis acres-
centares, tanto menos capacidade terás de
entender e reter os assuntos importantes.

Assim, pois, em qualquer arte temos de In qualibet igitur arte duo no-
identificar e distinguir principalmente duas bis maxime discernenda sunt et
distinguenda: primum, quali-
coisas: primeiro, como deve ser tratada a ter oporteat in ipsa arte agere;
arte em si; segundo, como se devem aplicar secundum, qualiter oporteat
ipsius artis rationes quibuslibet
a qualquer outro assunto os princípios desta aliis rebus accommodare. Duo
arte. São duas coisas: tratar da arte, e agir por sunt agere de arte, et agere per
meio da arte. Tratar da arte é, por exemplo, artem. Verbi gratia, agere de
arte, ut est agere de grammati-
tratar da gramática; e agir por meio da arte, ca, agere per artem, ut est agere
é agir gramaticalmente. Há que distinguir grammatice. De grammatica
agit, qui regulas de vocibus da-
bem as duas coisas: tratar da gramática, e tas, et præcepta ad hanc vocem
tratar gramaticalmente. Trata da gramática, pertinentia tractat; grammatice

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2 . Imp o rtâ n c i a d o t r i v i u m e d o q uad r i v i u m

agit omnis qui regulariter lo- quem trata das regras dadas para regular o
quitur vel scribit. Agere igitur
de grammatica, quibusdam uso das palavras e dos preceitos que perten-
tantummodo, ut Prisciano, Do- cem a esta arte; age gramaticalmente, todo
nato, Servio, et similibus, con-
aquele que fala e escreve segundo as regras.
venit. Agere vero grammatice,
omnibus. Portanto, tratar da gramática pertence ape-
nas a alguns escritos, como os de Prisciano,
Donato e Sérvio; mas agir gramaticalmente,
pertence a todos os livros.
Cum igitur de qualibet arte Quando, pois, tratarmos de qualquer arte,
agimus, maxime in docendo,
ubi omnia ad compendium re-
sobretudo na docência, onde tudo deve ser
stringenda sunt, et ad facilem reduzido a compêndios para facilitar a com-
intelligentiam revocanda, suf- preensão, devemos dar-nos por satisfeitos
ficere debet id de quo agitur,
quanto brevius et aptius potest com explicar o tema da maneira mais breve
explanare, ne si alienas nimium e clara possível, para evitar que, com a mul-
rationes multiplicaverimus,
magis turbemus quam ædif-
tiplicação de complicadas explicações, con-
icemus lectorem. Non omnia fundamos o aluno em vez de instruí-lo. Não
dicenda sunt quæ dicere possu- devemos dizer tudo o que podemos, para
mus, ne minus utiliter dicantur
ea quæ dicere debemus. que não sejam ditas com menos utilidade as
coisas que devemos dizer.
Id tandem in unaquaque arte Em suma, deves buscar em cada uma das
quæras quod ad eam speciali-
ter pertinere constiterit. Dein-
artes aquilo que especificamente lhe per-
de cum legeris artes, et quod tence. Mais tarde, quando tiveres estudado
uniuscuiusque sit proprium as diversas artes e, mediante a discussão
agnoveris disputando et con-
ferendo, tunc demum rationes e comparação, tiveres logrado conhecer o
singularum invicem conferre que é próprio a cada uma, então poderás
licebit; et ex alterna considera-
tione vicissim quæ minus prius
relacionar entre si os princípios de cada
intellexeras investigare. Noli uma delas e, a partir desta última consi-
multiplicare diverticula quoa- deração, investigar novamente o que antes
dusque semitas didiceris. Se-
curus discurres cum errare non não havias compreendido suficientemente.
timueris. Não multipliques os atalhos enquanto não
tiveres conhecido os caminhos principais:
caminharás seguro, quando não tiveres
medo de desviar-te.

27
3.
SETE ARTES LIBERAIS EXPLICADAS
Rábano Mauro

I. Sobre a arte gramática CAPUT I. De arte gram-


e suas espécies matica, et speciebus eius

A primeira das artes liberais é a gramática, “Prima ergo liberalium artium


est grammatica, secunda retho-
a segunda é a retórica, a terceira é a dialé- rica, tertia dialectica, quarta
tica, a quarta é a aritmética, a quinta é a arithmethica, quinta geometria,
sexta musica, septima astrono-
geometria, a sexta é a música e a sétima, mia” (Isid. Etym., I, 2). “Gram-
a astronomia. O termo gramática vem de matica enim a litteris nomen
letra, como se nota do som derivado da-
6
accepit, sicut vocabuli illius
derivatus sonus ostendit” (Cas-
quele vocábulo. Eis a sua definição: a gra- siod., Inst. litt., cp. 1). Deffinitio
mática é a ciência de interpretar os poetas autem eius talis est: Gramma-
tica est scientia interpretandi
e historiadores, e o método de escrever e poetas atque historicos, et recte
falar corretamente. Ela é a origem e o fun- scribendi loquendique ratio.
damento das artes liberais. Hæc et “origo et fundamentum
est artium liberalium” (Ibid.).
À escola do Senhor, portanto, convém Hanc itaque scholam Domini-
aprendê-la, porque nela se encontra a ciên- cam legere convenit, quia scien-
cia do falar corretamente e o método de es- tia recte loquendi et scribendi
ratio in ipsa consistit. Quomo-
crever. Como alguém pode conhecer o sen- do quis vim vocis articulatæ
tido dos sons articulados ou a propriedade seu litterarum et syllabarum
potestatem cognoscit, si non
das letras e sílabas, se antes não aprendeu prius per eam id didicit? Aut
isto por ela? Ou como pode saber a dis- quomodo pedum, accentuum et

6. Em grego γράμμα (grámma) significa “letra”. (N.T.)

28
3. S e t e a rt es li b er a i s ex p li cadas

positurarum discretionem scit, tinção entre os pés, os acentos e as termi-


si non per hanc disciplinam
eius scientiam ante percepit? nações, se por esta disciplina não chegou
Aut quomodo partium oratio- a tal conhecimento antes? Ou como pode
nis iura, schematum decorem,
conhecer as regras das partes da oração, a
troporum virtutem, etymo-
logiarum rationem, et ortho- beleza dos símbolos, a força das figuras de
graphiæ rectitudinem novit, si linguagem, a explicação das etimologias e a
non grammaticam artem ante
sibi notam fecit? ortografia correta, se antes não conhecer a
arte gramática?
Inculpabiliter enim, imo lau- Portanto, não é digno de censura, antes,
dabiliter hanc artem discit,
quisquis in ea non inanem pu-
merece louvor quem estuda esta arte, se
gnam verborum facere diligit, nela busca não uma inútil logomaquia, mas 7

sed rectæ locutionis scientiam a aquisição da ciência do falar corretamente


et scribendi peritiam habere
appetit. Ipsa est enim omnium e a perícia na escrita. É ela o juiz de todos os
iudex librariorum, quia ubi- escritores, pois repreende o erro onde quer
cumque errorem perspexerit,
reprehendit, et ubi bene dicta
que o encontre, e onde <nota> algo bem es-
sunt, suo iudicio comprobabit. crito, comprová-lo-á com seu juízo.
Schemata autem omnia quot- Todos os símbolos que a disciplina secular
quot sæcularis disciplina con-
scripsit, in sanctis libris sæpius
registrou, encontram-se muito frequen-
posita reperiuntur. Necnon temente postos nos livros sagrados. Com
“tropis auctores nostros usos efeito, quem diligentemente ler os livros
fuisse, et multiplicius atque co-
piosius quam possit existimari divinos, descobrirá que os nossos autores
vel credere” (Aug. Doc. Crist., usaram figuras de linguagem, e com mais
III, 29), quisquis libros divi-
nos diligenter legit, inveniet.
variedade e abundância que se possa pen-
“Istorum autem troporum non sar ou crer. E não somente os exemplares
solum exempla sicut omnium, de todas essas figuras de linguagem, mas
sed quorumdam etiam nomina
in divinis libris leguntur, sicut inclusive seus nomes — como alegoria,
allegoria, ænigma, parabola. enigma, parábola — podem ser lidos nos
Quorum omnium cognitio
propterea Scripturarum am-
livros divinos. Por isso, o conhecimento de
biguitatibus dissolvendis est todas essas coisas é necessário para resol-
necessaria, quia sensus ad pro- ver as ambiguidades das Escrituras, pois
prietatem verborum si accipia-
tur, absurdus est. Quærendum é absurdo tomar as palavras <sempre> no

7. Em grego significa “disputa de palavras”. (N.T.)

29
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

sentido literal. Deve-se investigar princi- est utique, ne forte illo vel illo
tropo dictum sit quod non in-
palmente se com tal ou qual figura de lin- tellegimus, et sic pleraque in-
guagem foi expresso algo que não entende- venta sunt quæ latebant” (Ibid.).
mos, pois assim foram descobertas muitas
coisas antes escondidas.

Não é desprezível o conhecimento que, Metricam autem rationem quæ


pela arte gramática, adquirimos sobre a per artem grammaticam disci-
tur, non ignobile est scire, quia
estrutura métrica; porque, como atesta São apud Hebræos Psalterium (ut
Jerônimo, entre os hebreus o saltério ora beatus Hieronymus testatur)
nunc iambo currit, nunc alchai-
corre em jâmbico, ora ressoa em alcaico,
co personat, nunc sapphico tu-
ora se enche de sáficos, ora marcha a meio met, nunc semipede ingreditur.
pé. Por outro lado, o Deuteronômio, o cân- Deuteronomium vero, et Isaiæ
canticum, necnon et Salomon
tico de Isaías, o Cântico dos Cânticos e o et Iob, hexametris et penta-
Livro de Jó foram originalmente compos- metris versibus (ut Iosephus et
Origenes scribunt) apud suos
tos em versos hexâmetros e pentâmetros,
composita decurrunt.
segundo Josefo e Orígenes.

Esta matéria, embora comum aos pagãos, Quamobrem non est spernenda
hæc, quamvis gentilibus com-
não deve pois ser desprezada, mas suficien- munis ratio, sed quantum satis
temente aprendida, porque afinal muitos est perdiscenda, quia utique
varões evangélicos produziram livros im- multi evangelici viri, insignes
libros hac arte condiderunt, et
portantes sobre essa arte, e tencionavam Deo placere per id satagerunt,
com isso agradar a Deus, como foram Ju- ut fui Iuvencus, Sedulius, Ara-
tor, Alcimus, Clemens, Pau-
venco, Sedúlio, Arátor, Alcimo, Clemente, linus et Fortunatus, et cæteri
Paulino, Fortunato e muitos outros. multi.

Se quisermos ler os poemas e os livros dos Poemata autem et libros genti-


lium si velimus propter florem
pagãos pelo brilho da eloquência, devemos eloquentiæ legere, typus mulie-
ter em mente a figura da mulher prisionei- ris captivæ tenendus est, quam
ra descrita no Deuteronômio (21, 10-14): Deuteronomium describit; et
Dominum ita præcepisse com-
lê-se aí que o Senhor preceituou ao israe- memorat, ut si Isrælites eam
lita que, se quisesse tomá-la como esposa, habere vellet uxorem, calvitium
ei faciat, ungues præsecet, pilos
deveria fazê-la raspar o cabelo, cortar as auferat, et cum munda fuerit
unhas, remover os pelos e, quando estives- effecta, tunc transeat in uxoris
se purificada, poderia então unir-se a ela. amplexus. Hæc si secundum

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3. S e t e a rt es li b er a i s ex p li cadas

litteram intelligimus, nonne ri- Tais coisas, se as entendemos literalmente,


dicula sunt? Itaque et nos hoc
facere solemus, hocque facere não são ridículas? Não obstante, quando
debemus, quando poetas gen- lemos os poetas pagãos, quando chegam
tiles legimus, quando in manus
às nossas mãos livros da sabedoria secular,
nostras libri veniunt sapientiæ
sæcularis, si quid in eis utile também nós costumamos fazer algo e deve-
reperimus, ad nostrum dogma mos fazê-lo, a saber: se neles encontramos
convertimus; si quid vero su-
perfluum de idolis, de amore, algo útil, convertemo-lo ao nosso dogma;
de cura sæcularium rerum, hæc mas se encontramos algo supérfluo, sobre
radamus, his calvitium induca-
os ídolos, o amor ou a preocupação com
mus, hæc in unguium more fer-
ro acutissimo desecemus. coisas seculares, nós o removemos, reduzi-
mo-lo à calvície, e o cortamos com lâmina
agudíssima à semelhança de unhas.
Hoc tamen præ omnibus cavere Antes de mais nada, porém, cuidemos para
debemus, ne hæc licentia nostra
offendiculum fiat infirmis: ne
que esta nossa liberdade não se torne obs-
pereat qui infirmus est in scien- táculo aos débeis, a fim de que, por causa
tia nostra frater, propter quem de nossa ciência, não venha a perecer o ir-
Christus mortuus est, si viderit
in idolio nos recumbentes. mão débil pelo qual Cristo morreu, se nos
vir à mesa com os ídolos.

CAPUT II. De rethorica II. Sobre a retórica


“Rhetorica est, sicut magistri Na cultura secular, a retórica é, como ensi-
tradunt, sæcularium litterarum
bene dicendi scientia, in civili-
nam os mestres, a ciência do bem discursar
bus quæstionibus” (Cassiod. l. nas questões civis. Mas embora essa defini-
c., cp. 2). Sed hæc deffinitio licet ção pareça pertencer à sabedoria mundana,
ad mundanam sapientiam vide-
atur pertinere, tamen non est contudo, não é estranha à formação ecle-
extranea ab ecclesiastica disci- siástica. Com efeito, tudo quanto o orador
plina. Quidquid enim orator et
prædicator divinæ legis diserte
e pregador da lei divina profere ordenada e
et decenter profert in docendo, adequadamente ao ensinar, ou tudo quanto
vel quidquid apte et eleganter expressa apta e elegantemente ao discursar,
depromit in dictando, ad huius
artis congruit peritiam; nec uti- corresponde à perícia desta arte. Portanto,
que peccare debet arbitrari, qui não pensemos que comete pecado quem a
hanc artem in congrua ætate le-
git, quique eius præcepta servat
estuda na idade conveniente, e quem ob-

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

serva seus preceitos ao discursar e expor in dictando ac proloquendo ser-


monem; imo bonum opus facit,
um assunto; na verdade, realiza uma boa qui eam ad hoc pleniter discit,
obra quem a aprende em plenitude a fim de ut ad prædicandum verbum Dei
idoneus sit.
tornar-se apto a pregar a palavra de Deus.

Afinal, se pela arte retórica apregoa-se tan- “Nam cum per artem rhetori-
to o verdadeiro como o falso, quem ousará cam et vera suadeantur et fal-
sa, quis audeat dicere adversus
dizer que a verdade deva permanecer iner- mendacium in defensoribus
me nos seus defensores contra a mentira, suis inermem debere consiste-
re veritatem, ut videlicet illi
a ponto de os propagadores do erro sabe- qui res falsas suadere conantur,
rem já no exórdio ganhar a benevolência, noverint auditorem vel beni-
a atenção e a docilidade do ouvinte, e os volum, vel intentum, vel facere
docilem proœmio, isti autem
outros não o saberem? De aqueles expo- non noverint? Illi falsa breviter,
rem o erro com brevidade, clareza e veros- aperte, verisimiliter, et isti vera
sic narrent ut audire tædeat,
similhança, e estes narrarem de tal modo a intelligere non pateat, credere
verdade que sejam tediosos, incompreensí- postremo non libeat? Illi fal-
veis e não se façam crer? De aqueles com- lacibus argumentis veritatem
oppugnent, asserant falsitatem,
baterem a verdade e defenderem a falsida- isti nec vera defendere, nec fal-
de com sofismas, e estes não serem capazes sa valeant refutare? Illi animos
audientium in errorem mo-
nem de defender a verdade nem de refutar ventes impellentesque dicendo
o erro? De aqueles, que movem e impelem terreant, contristent, exhilarent,
os ânimos dos ouvintes ao erro, tremerem, exhorrentur ardenter, isti pro
veritate lenti, frigidi dormi-
chorarem, rirem e arrepiarem-se ardente- tent? Quis ita desipiat, ut hoc
mente ao discursar, e os defensores da ver- sapiat?” (August., l. c., IV, 2).
dade, lentos e frios, dormirem? Quem há
tão falto de juízo que o possa aprovar?

Portanto, já que existe a faculdade da elo- “Cum ergo sit in medio posita
quência, tão poderosa para persuadir do facultas eloquii, quæ ad persua-
denda seu prava seu recta valeat
que é mau ou do que é bom, por que ela plurimum, cur non bonorum
não é adquirida pelo bons a fim de mili- studio comparatur, ut militet
veritati, si eam mali ad obti-
tar em favor da verdade, se os maus a usam nendas perversas vanasque cau-
para a iniquidade e o erro a fim de vencer sas in usus iniquitatis et erroris
causas perversas e vãs? usurpant?” (Ibid.).

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3. S e t e a rt es li b er a i s ex p li cadas

“Sed quæcumque sunt de hac re Mas todos estes preceitos e advertências —


observationes atque præcepta,
quibus cum accedit in pluribus dos quais se compõe aquela que é chamada
verbis ornamentisque verborum, facúndia ou eloquência, quando, às muitas
exercitationis linguæ solertis-
palavras e ornamentos de palavras, junta-
sima consuetudo, sit illa quæ
facundia vel eloquentia nomina- -se o hábil costume do exercício da língua
tur, hæc seposito ad hoc congruo —; todas estas coisas, reservado para isso
temporis spatio, apta et conve-
niente ætate discenda sunt eis um espaço de tempo adequado, devem ser
qui hoc celeriter possunt. Nam aprendidas em idade adequada e conve-
et ipsos Romanæ principes elo-
niente por aqueles que podem fazê-lo rapi-
quentiæ non piguit dicere, quod
hanc artem nisi qui cito possit damente. Pois os mesmos príncipes da elo-
perdiscere, numquam omnino quência romana não temeram dizer que,
possit” (Id., 3).
se alguém não pudesse aprender essa arte
rapidamente, nunca poderia aprendê-la.
Sed “nos non ea tanti pendi- Nós, porém, não julgamos tais coisas tão
mus, ut eis discendis iam matu-
ras, vel etiam graves hominum
importantes a ponto de querermos que os
ætates velimus impendi. Satis adultos e os mais velhos se empenhem em
est ut adulescentulorum ista aprendê-las; basta que tenham esse cuida-
sit cura; nec ipsorum omnium
quos utilitati ecclesiasticæ cu- do os adolescentes; [e mesmo entre estes],
pimus erudiri, sed eorum quos não todos os que queremos preparar para
nondum magis urgens, et huic
rei sine dubio præponenda ne-
a função eclesiástica, senão [apenas] aque-
cessitas occupavit”. les que ainda não foram ocupados por uma
necessidade mais urgente, a qual sem dúvi-
da deve ser anteposta a esta [arte]. 8

“Quoniam si acutum et fervens Se faltar um engenho agudo e fervoroso,


absit ingenium, facilius adhæret
[saiba-se que] a eloquência une-se mais
eloquentia legentibus, et au-
dientibus eloquentes, quam facilmente aos que lêem e ouvem os elo-
eloquentiæ præcepta sectanti- quentes, que aos seguidores dos preceitos
bus. Nec desint ecclesiasticæ
litteræ etiam præter canonem da eloquência. E além do cânon [das Es-

8. Rábano Mauro diz que, dentre os adolescentes a


serem preparados para as ordens eclesiásticas, ape-
nas os que estivessem livres de ocupações urgentes
deveriam dedicar tempo à arte retórica. (N.T.)

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

crituras], não faltam obras eclesiásticas sa- in auctoritatis arce salubriter


collocatæ, quas legendo homo
lutarmente postas no cume da autoridade, capiat, et si id non agat, sed
por cuja leitura o homem possa adquirir tantummodo rebus quæ ibi di-
cuntur intentus sit, etiam elo-
[esta arte]; e se a isto não tencionar, mas
quio quo dicuntur, dum in his
estiver interessado somente nas coisas que versantur, imbuitur; accedente
aí são ditas, impregnar-se-á da eloquência vel maxime exercitatione sive
scribendi, sive dictandi, postre-
com que são ditas ao serem aí tratadas, so- mo etiam dicendi, quæ secun-
bretudo se a isto acrescentar o exercício de dum pietatis ac fidei regulam
sentit” (Id., 4).
escrever, ou falar, ou enfim discursar acer-
ca do que pensa segundo a regra da pieda-
de e da fé.

Por ora basta isto que dissemos sobre a re- Sed hæc de rethorica nunc dicta
tórica, pois acerca de suas regras no gênero sufficiant, cum reservamus pau-
lo post iura eiusdem in dicendi
do discurso trataremos com mais detalhe genere planius demonstranda.
depois.

III. Sobre a dialética CAPUT III. De dialectica

A dialética é a disciplina racional que tem o “Dialectica est disciplina ratio-


nalis quærendi, deffiniendi et
poder de investigar, definir e explicar, bem disserendi, etiam vera et a falsis
como discernir o verdadeiro do falso. É, discernendi potens” (Alcuin De
pois, a disciplina das disciplinas: ensina a Dialect., cp. 1). Hæc ergo di-
sciplina disciplinarum est; hæc
ensinar, ensina a aprender; nela, a própria docet docere, hæc docet discere,
razão demonstra a si mesma e revela o que in hac se ipsa ratio demonstrat
atque aperit quæ sit, quid velit,
é, o que quer, o que vê. Ela sozinha sabe quid videat. Scit scire sola, et
conhecer, e não só quer fazer sábios mas scientes facere non solum vult,
também pode. sed etiam potest.

Raciocinando sobre ela, conhecemos o que In hac ratiocinantes cognosci-


mus quid sumus et unde sumus;
somos e de onde somos; por ela, entende- per hanc intelligimus quid sit
mos o que seja o fazedor do bem, e o bem faciens bonum, et quid factum
que é feito; o criador, e a criatura. Por ela bonum; quid creator, et quid
creatura; per hanc investigamus
investigamos a verdade e descobrimos a fal- veritatem, et deprehendimus
sidade. Por ela argumentamos, e encontra- falsitatem; per hanc argumen-

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3. S e t e a rt es li b er a i s ex p li cadas

tamur, et invenimus quid sit mos nas disputas o que há de consequente 9

consequens, quid non conse-


quens, et quid repugnans in e o que não há, o que há de contraditório
rerum natura, quid verum, quid com a natureza das coisas, o que há de ver-
verisimile, et quid penitus fal-
dadeiro, de verossímil e de totalmente falso.
sum in disputationibus. In hac
etiam disciplina unamquamque Também nesta disciplina investigamos cada
rem quærimus sagaciter, et def- coisa sagazmente, definimos verazmente, e
finimus veraciter, et disserimus
prudenter. discorremos prudentemente.

Quapropter oportet clericos Portanto, convém que os clérigos conhe-


hanc artem nobilissimam scire,
çam esta arte nobilíssima e meditem assi-
eiusque iura in assiduis medi-
tationibus habere, ut subtiliter duamente sobre suas regras, para que com
hæreticorum versutiam hac ela possam sutilmente reconhecer a astúcia
possint dignoscere, eorumque
dicta venefica, veris syllogismo- dos heréticos e, com verdadeiras conclu-
rum conclusionibus confutare. sões silogísticas, refutar seus discursos en-
“Sunt enim multa quæ appel-
venenados. Pois há muitos sofismas, isto é,
lantur sophismata, falsæ con-
clusiones rationum, et plerum- falsas conclusões do entendimento; e às ve-
que ita veras imitantes, ut non zes imitam a tal ponto as verdadeiras, que
solum tardos, sed ingeniosos
etiam minus diligenter attentos enganam não só os rudes, senão também
decipiant. Proposuit enim qui- os eruditos menos cautelosos. Certa vez al-
dam dicens ei cum quo loque-
guém propôs a seu interlocutor: “O que eu
batur: Quod ego sum, tu non es.
At ille consentit. Verum enim sou, tu não o és”. Ao que este concordou,
erat ex parte, vel eo ipso quod afinal a afirmação era em parte verdadeira;
iste insidiosus, ille simplex erat.
Tum iste addidit: Ego autem embora aquele fosse insidioso, e este fosse
homo sum. Hoc quoque cum ab ingênuo. Então acrescentou: “Ora, eu sou
eo accepisset, conclusit dicens:
humano”. E sendo isto também aceito, con-
Tu igitur non es homo.
cluiu dizendo: “Logo, tu não és humano”.
“Quod genus captiosarum con- Tal gênero de conclusões capciosas, ao que
clusionum, Scriptura quantum
existimo detestatur, illo loco me consta, é reprovado pela Escritura na-
ubi dictum est: Qui sophisti- quela passagem onde se diz: “Aquele que
ce loquitur, odibilis est (Eccli.
XXXVII). Quamquam etiam
usa de uma linguagem sofística é odioso”
sermo non captiosus, sed tamen (Eclo 37, 23). Embora também se chame

9.Em certas proposições lógicas, afirmação que de-


corre necessariamente de outra. (N.T.)

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

sofístico um discurso mais prolixo do que abundantius quam gravitatem


decet, verborum ornamenta
convém à gravidade, cheio de ornamentos consectans, sophisticus dicatur.
de palavras, conquanto não seja capcioso.

Há também verdadeiros nexos de raciocí- “Sunt etiam veræ connexiones


nio que contêm afirmações falsas, deduzi- ratiocinationis falsas habentes
sententias, quæ consequuntur
das do erro do interlocutor. São deduzidas errorem illius cum quo agitur.
pelo homem bom e douto a fim de que o Quæ tamen ad hoc inferuntur
a bono et docto homine, ut his
errante, envergonhando-se delas, abando- erubescens ille [qui] errorem
ne o erro; e se quiser permanecer nele, se sequitur, eumdem relinquat er-
lhe deve forçar a admitir também aquilo rorem, qui si in eodem manere
voluerit, necesse est ut etiam
que condena. illa quæ damnat tenere cogatur.

Com efeito, o Apóstolo não deduzia algo “Non enim vera inferebat
verdadeiro quando dizia: “Também Cristo Apostolus cum diceret: Neque
Christus resurrexit. Et illa alia:
não ressuscitou”. E também: “É vã a nossa Inanis est fides nostra, inanis est
fé, vã a nossa pregação” (1Cor 15, 13-14). prædicatio nostra (1 Cor., XV ).
Quæ omnino falsa sunt, quia
Tudo isto é completamente falso, porque et Christus resurrexit, et non
Cristo ressuscitou, e porque não era vã a erat inanis prædicatio eorum
pregação dos que isto anunciavam nem a qui hoc annuntiabant, nec fides
eorum qui hoc crediderant. At
fé dos que nisto criam. Mas como é falsa quia falsum est quod sequitur,
a consequente, é necessariamente falso necesse est ut falsum sit quod
præcedit. Præcedit enim non
o antecedente. O antecedente é que não esse resurrectionem mortuo-
há ressurreição dos mortos, como diziam rum, quod dicebant illi, quorum
aqueles cujo erro o Apóstolo queria eli- errorem destruere voluit Apo-
stolus. Porro illam sententiam
minar. Ora, daquela sentença precedente præcedentem, qua dicebant non
segundo a qual diziam não haver ressur- esse resurrectionem mortuo-
rum, necessario sequitur: Neque
reição dos mortos, conclui-se necessaria- Christus resurrexit. Hoc autem
mente: “Também Cristo não ressuscitou”. quod sequitur, falsum est; Chri-
Mas esta conclusão é falsa, porque Cristo stus enim resurrexit: falsum est
ergo quod præcedit. Præcedit
ressuscitou; logo, é falso o antecedente. O autem non esse resurrectionem
antecedente é que não há ressurreição dos mortuorum: est igitur resur-
rectio mortuorum. Quod totum
mortos; logo, há ressurreição dos mortos. breviter ita dicitur: Si non est
Em suma: Se não há ressurreição dos mor- resurrectio mortuorum, neque
tos, também Cristo não ressuscitou; ora, Christus resurrexit; Christus

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autem resurrexit; est igitur re- Cristo ressuscitou; logo, há ressurreição


surrectio mortuorum.
dos mortos.
“Cum ergo sint veræ connexio- Como há verdadeiros nexos não só entre
nes, non solum verarum, sed
etiam falsarum sententiarum,
sentenças verdadeiras, mas também entre
facile est veritatem connexio- as falsas, é fácil aprender a verdade das co-
num etiam in scholis illis disce- nexões, inclusive em escolas não ligadas
re, quæ præter Ecclesiam sunt,
sententiarum autem veritates in à Igreja; contudo, a verdade das senten-
sanctis libris ecclesiasticis inve- ças deve ser investigada nos santos livros
stigandæ sunt. Ipsa tamen veri-
tas connexionum non instituta,
eclesiásticos. Não obstante, a verdade das
sed animadversa est ab homi- conexões não foi instituída pelos homens,
nibus et notata, ut eam possint mas percebida e notada por eles, para que a
vel discere vel docere. Nam est
in rerum ratione perpetua et pudessem aprender ou ensinar; pois é per-
divinitus instituta” (August., l. pétua e divinamente instituída na natureza
c., II, 31), quæ a Deo auctore
sunt facta.
das coisas feitas por Deus, seu autor.

Sed quia de logica iam diximus, Tendo já falado sobre a lógica, falaremos
de mathematica consequenter em seguida sobre a matemática.
dicemus.

CAPUT IV. De
mathematica IV. Sobre a matemática

“Mathematica est quam Latine Em latim, podemos chamar à matemática


possumus dicere doctrinalem ciência doutrinal que estuda a quantidade
scientiam, quæ abstractam con-
siderat quantitatem. Abstracta abstrata. Chama-se abstrata a quantidade
enim quantitas dicitur, quam de que tratamos apenas no raciocínio, à
intellectu a materia separantes
vel ab aliis accidentibus, ut est,
qual, por obra do intelecto, separamos da
par, impar, vel ab aliis huiusce- matéria, ou de outros acidentes (por exem-
modi, quæ in sola ratiocinatio- plo: par ou ímpar), ou de coisas semelhan-
ne tractamus” (Isid. Etym., III).
Hæc dividitur “in arithmeti- tes. Divide-se em aritmética, música, geo-
cam, musicam, geometriam, metria, astronomia, das quais falaremos
astronomiam”: de quibus sin-
gulis secundum ordinem dis-
separadamente segundo a ordem.
seremus.

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

V. Sobre a aritmética CAPUT V. De arithmetica

Aritmética é a disciplina da quantidade “Arithmetica est disciplina quan-


titatis numerabilis secundum se”
numerável enquanto tal. É a disciplina dos (Cassiod., Inst. litt., l. 2, c. 3). Ipsa
números, pois os gregos chamam o núme- “est enim disciplina numerorum
ro de ἀριθμός (arithmon). Os escritores de (græci enim numerum ἀριθμός,
arithmon, vocant), quam scrip-
obras seculares a puseram em primeiro tores litterarum sæcularium, inter
lugar entre as matemáticas porque ela não disciplinas mathematicas ideo
primam esse voluerunt, quoniam
carece de nenhuma outra disciplina para ipsa ut sit, nulla alia indiget disci-
existir. Já as posteriores, música, geometria plina. Musica autem et geometria
e astronomia, carecem de seu auxílio para et astronomia quæ sequuntur, ut
sint atque subsistant, istius egent
existir e para subsistir. auxilio” (Isid., Etym., III, 1).

Josefo, o mais douto entre os hebreus, no “Scire autem debemus Iose-


livro das Antiguidades (título 9), afirma phum Hebræorum doctis-
simum in primo libro Anti-
que Abraão foi o primeiro a ensinar arit- quitatum, titulo nono, dicere
mética e astronomia aos egípcios; os quais, arithmeticam et astronomiam
Abraham primum Ægyptiis
por serem homens de engenho agudíssi- tradidisse; unde semina su-
mo, receberam tais sementes e cultivaram scipientes, ut sunt homines
para si as outras disciplinas mais abundan- acerrimi ingenii, excoluisse
sibi reliquas latius disciplinas.
temente. Com razão nossos Santos Padres Quas merito sancti patres no-
aconselham aos mais zelosos o estudo des- stri legendas studiosissimis
persuadent, quoniam ex magna
tas disciplinas, pois que através delas o ape- parte per eas a carnalibus rebus
tite é em grande parte removido das coisas appetitus abstrahitur, et faciu-
carnais, e elas fazem desejar aquilo que, au- net desiderare quæ, præstante
Domino, solo possumus corde
xiliados pelo Senhor, só podemos ver com respicere” (Cassiod., l. 2, c. 3).
o coração.

Portanto, não devemos desprezar a doutrina “Unde ratio numeri contem-


nenda non est, quæ in multis
do número, tão estimada em muitos lugares sanctarum Scripturarum locis
da Sagrada Escritura, como consta aos leito- quam magni existimanda sit,
res diligentes. Não sem motivo se disse em lucet diligenter intuentibus.
Nec frustra in laudibus Dei
louvor a Deus: “Dispuseste todas as coisas dictum est (Sap. XI): Omnia in
com medida, número e peso” (Sb 11, 21). mensura et numero et pondere
disposuisti” (August. De Civit.
Dei, XI, cp. 30).

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“Ita vero suis quisque numerus Cada número encerra-se de tal modo em
proprietatibus teminatur, ut
nullus eorum par esse cuiquam suas propriedades, que nenhum deles pode
alteri possit. Ergo et dispares ser igual a qualquer outro. Logo, são desi-
inter se atque diversi sunt, et
guais entre si e diversos, e cada um indi-
singuli quique diversi sunt, et
singuli quique finiti sunt, et vidualmente é diverso, cada um é finito, e
omnes infiniti sunt” (August., todos são infinitos. 10

De Civit. Dei, XII, cp. 18).


“Nec audebunt isti contemnere Também aqueles aos quais Platão ensinou
numeros, et eos ad scientiam
que Deus fabricou o mundo através de nú-
Dei non pertinere, apud quos
Plato Deum magna auctoritate meros, não ousarão desprezá-los e afirmar
commendat mundum nume- que não pertencem ao conhecimento de
ris fabricantem. Et apud nos
Propheta de Deo dicit: Qui Deus. E entre nós, o profeta falou sobre
profert numerose sæculum. Et Deus: “Faz correr o século no número” (Is
Salvator in Evangelio (Matth.
40, 26). E o Salvador disse no Evangelho:
11

X): Capilli, inquit, vestri omnes


numerati sunt” (Ibid.). “Todos os vossos cabelos estão numera-
dos” (Mt 10, 30).
Quamvis enim se obiectent Com efeito, embora venham à mente
aspectui mentis, quasi corpu-
sculorum quædam simulacra, certos corpúsculos imaginários quando
cum senarii numeri compositio, pensamos, por exemplo, na composição,
vel ordo, vel partitio cogitatur,
ordem ou divisão do número 6, contudo,
tamen validior et præpotent-
ior desuper ratio non eis an- não consente interiormente com eles aque-
nuit interius, quæ vim numeri la mais forte e sólida razão que vem do
continet, per quem contuitum
fidenter dicit id quod dicitur alto e contém a força do número, por cujo
unum in numeris, in nullas olhar diz-se confiantemente que a unidade
partes dividi posse, nulla au-
numérica não pode ser dividida em mui-
tem corpora nisi in partes in-
numerabiles dividi, et facilius tas partes, enquanto os corpos dividem-se

10. A série dos números não é infinita própria e po-


sitivamente, pois tal atributo compete somente a
Deus, único ente cuja essência é ilimitada e infinita.
Ao contrário, os números são imprópria e negativa-
mente infinitos, na medida em que sua contagem
pode se estender indefinidamente. (N.T.)
11. Segundo a edição dos Setenta, ou Septuaginta.
(N.T.)

39
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

em partes inumeráveis; e que seria mais cælum et terram transire, quæ


secundum senarium nume-
fácil passarem o céu e a terra, que foram rum fabricata sunt, quam effici
fabricados segundo o número 6, do que o posse ut senarius numerus non
suis partibus compleatur. Qua-
[próprio] número 6 não ser composto de
mobrem non possumus dicere
suas partes. Por isso, não podemos dizer propterea senarium numerum
que a perfeição do número 6 consiste em esse perfectum quod sex diebus
perfecit Deus omnia opera sua,
ter Deus completado suas obras em seis sed propterea Deum sex diebus
dias; mas, ao contrário, Deus completou perfecisse opera sua, quia sena-
rius numerus perfectus. Itaque
suas obras em seis dias, porque o número
etiam si ista non essent, per-
6 é perfeito. Portanto, ainda que estas não fectus ille esset; nisi autem ille
existissem, aquele seria perfeito; mas se perfectus esset, ista secundum
eum perfecta non essent.
aquele não fosse perfeito, estas não teriam
sido feitas segundo aquele.

A ignorância dos números impede a com- “Numerorum etiam imperi-


tia multa facit non intelligi,
preensão de muitas coisas contidas na Es-
translate ac mystice posita in
critura em sentido figurado e místico. A Scripturis. Ingenium quippe,
mente engenhosa, por exemplo, não pode ut ita dixerim, ingenium non
potest non moveri quid sibi
deixar de se questionar por que Moisés, velit, quod et Moyses et Elias
Elias e mesmo o Senhor jejuaram por et ipse Dominus quadragin-
ta diebus ieiunaverunt. Cuius
quarenta dias. Tal ação inclui um emara-
actionis figuratus quidam no-
nhado simbólico que não pode ser des- dus sine huius numeri cogni-
vendado sem o conhecimento e a reflexão tione et consideratione non
solvitur. Habet enim denarium
sobre este número, o qual contém o 10 quater, tamquam cognitionem
contado quatro vezes, como se o conhe- omnium rerum intextam tem-
poribus.
cimento de todas as coisas estivesse enco-
berto pelas temporais.

Com efeito, o curso dos dias e dos anos de- “Quaternario namque numero,
senvolve-se com base no número 4: os dias et diurna et annua curricula
peraguntur: diurna matutinis,
correm no espaço das horas matutinas, meridianis, vespertinis, noctur-
meridianas, vespertinas e noturnas; e os nisque horarum spatiis; annua
vernis, æstivis, autumnalibus,
anos, segundo os meses da primavera, do hiemalibusque mensibus. A
verão, do outono e do inverno. Portanto, temporum autem delectatione
em vista da eternidade na qual queremos dum in temporibus vivimus,
propter æternitatem in qua vi-

40
3. S e t e a rt es li b er a i s ex p li cadas

vere volumus, abstinendum et viver, devemos nos abster e jejuar do pra-


ieiunandum est, quamvis tem-
porum cursibus ipsa insinuetur zer das coisas temporais enquanto vivemos
nobis doctrina contemnendo- no tempo; se bem que a doutrina do des-
rum temporum, et appetendo-
prezo das coisas temporais, e do desejo das
rum æternorum.
eternas, se nos apresente com o [próprio]
fluxo do tempo.
“Porro autem denarius nume- Já o número 10 significa o conhecimen-
rus creatoris atque creaturæ si-
gnificat scientiam; nam trinitas to do Criador e da criatura. O ser trino
creatoris est, septenarius autem é próprio do Criador, enquanto o núme-
numerus creaturam indicat,
ro 7 indica a criatura, segundo a vida e o
propter vitam et corpus. Nam
in illa tria sunt: unde etiam toto corpo. Com efeito, na vida há três coisas,
corde, tota anima, tota mente donde também se diz que Deus deve ser
diligendus est Deus; in corpore
autem manifestissima quatuor amado com todo o coração, com toda a
apparent, quibus constat, ele- alma e com toda a mente; no corpo apa-
menta. Hoc ergo denario dum
recem evidentemente os quatro elementos
temporaliter nobis insinuatur,
id est, quater ducatur, caste et dos quais é composto. Logo, quando este
continenter a temporum de- número 10 se apresenta a nós temporal-
lectatione vivere, hoc est qua-
draginta diebus ieiunare mone- mente, ou seja, quando é multiplicado por
mur. Hoc lex, cuius persona est 4, somos advertidos a viver longe dos pra-
in Moyse, hoc prophetia, cuius
zeres temporais em castidade e continên-
personam gerit Elias, hoc ipse
Dominus monet; qui tamquam cia, isto é, a jejuar quarenta dias. A isto
testimonium habens ex Lege et nos adverte a Lei, personificada em Moi-
Prophetis, medius inter illos in
monte, tribus discipulis viden- sés, a profecia, personificada em Elias, e
tibus atque stupentibus claruit. o próprio Senhor, que, recebendo o teste-
munho da Lei e dos Profetas, ali no monte
brilhou entre eles diante dos três discípu-
los que o olhavam estupefatos.
“Deinde ita quæritur, quomodo Em seguida, pergunta-se como do núme-
quinquagenarius de quadrage-
nario numero existat, qui non ro 40 se forma o 50, que é tão sagrado em
mediocriter in nostra religione nossa religião por causa de Pentecostes; e
sacratus est propter Penteco-
sten; et quomodo ter ductus
como, multiplicado por três — em razão
propter tria tempora, ante le- dos três tempos: antes da lei, sob a lei, e sob
gem, sub lege, sub gratia, vel a graça; ou do acréscimo eminentíssimo
propter nomen Patris et Filii et

41
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

da própria Trindade, pelos nomes do Pai Spiritus Sancti, adiuncta emi-


nentius ipsa Trinitate, ad pur-
e do Filho e do Espírito Santo —, refira-se gatissimæ Ecclesiæ mysterium
ao mistério da Igreja perfeitamente purifi- referatur perveniatque ad cen-
tum quinquaginta tres pisces,
cada; e como enfim chega aos 153 peixes,
quos retia post resurrectionem
recolhidos pelas redes que foram lançadas Domini in dexteram partem
à direita depois da Ressurreição do Senhor missa ceperunt. Ita multis aliis
atque aliis numerorum formis
(cf. Jo 21, 11). Assim, em muitíssimas ou- quædam similitudinum in san-
tras formas numéricas da Sagrada Escri- ctis Libris secreta ponuntur,
quæ propter numerorum impe-
tura estão encerradas certas comparações
ritiam legentibus clausa sunt”
misteriosas, que permanecem ocultas ao (August., De Doct. Crist., lib.
leitor dada a ignorância dos números. 2, c. 16).

Por conseguinte, os que almejam chegar Quapropter necesse est eis


qui volunt ad sacræ Scripturæ
ao conhecimento da Sagrada Escritura,
notitiam pervenire, ut hanc
devem estudar intensamente esta arte; e artem intente discant; et cum
quando a tiverem aprendido, entenderão didicerint, mysticos numeros in
divinis libris facilius hinc intel-
mais facilmente os místicos números [con- ligant.
tidos] nos livros divinos.

VI. Sobre a geometria CAPUT VI. De geometria

Passemos agora à geometria, que é a des- “Nunc ad geometria veniamus,


quæ est descriptio contempla-
crição contemplativa das formas, e o mo- tiva formarum, documentum
delo visível dos filósofos, porque, segundo etiam visuale philosophorum;
eles, seu [deus] Júpiter geometrizou em
12
quod, ut præconiis celeberri-
mis offerant, Iovem suum in
suas próprias obras, como se diz nos cé- operibus propiis geometriare
lebres panegíricos. O que não sei se [lhes] testantur. Quod nescio utrum

12. “Júpiter é o deus romano assimilado a Zeus. É por


excelência o grande deus do panteão romano. Surge
como a divindade do céu, da luz divina, das condi-
ções climatéricas, e também do raio e do trovão.”
(Pierre Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Roma-
na, trad. Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, p. 261).

42
3. S e t e a rt es li b er a i s ex p li cadas

laudibus an vituperationibus é aplicado em louvor ou repreensão, por-


applicetur, quando quod illi
pingunt in pulvere coloreo, Io- quanto imaginam que Júpiter faça no céu o
vem facere mentiuntur in cælo. que eles representam na areia.
“Quod si vero creatori et om- Mas se salutarmente aplicada ao verdadei-
nipotenti Deo salubriter ap-
plicetur, potest hæc sententia
ro Criador e Deus onipotente, tal sentença
forsitan convenire veritate. pode ser verdadeira. Com efeito, a santa di-
Geometriat enim, si fas est di- vindade geometriza, por assim dizer, quan-
cere, sancta divinitas, quando
creaturæ suæ, quas hodieque do concede diversas formas e espécies às
facit existere, diversas species suas criaturas, cuja existência conserva até
formulasque concedit; quando
cursus stellarum potentia ve-
hoje; quando distribuiu com venerável po-
neranda distribuit, et statutis der os movimentos das estrelas, constituin-
lineis fecit currere, quæ moven- do as fixas em certas posições, e estabele-
tur, certaque sede, quæ sunt fixa
constituit. Quidquid enim bene cendo as trajetórias por onde correriam
disponitur atque completur, as móveis. Pois tudo que é bem disposto e
potest disciplinæ huius qualita-
tibus applicari” (Cassiod., Inst.
acabado, pode ser aplicado às qualidades
litt., l. 2, c. 6). desta disciplina.

“Geometria latine dicitur terræ Geometria em latim significa medição da


dimensio” (Ibid.), sicque defi-
nitur. “Geometria est discipli-
terra e assim é definida. A geometria é a
na magnitudinis immobilis et ciência da extensão imóvel e das formas,
formarum, quoniam per diver- pois, como alguns dizem, foi pelas diversas
sas formas ipsius disciplinæ, ut
nonnuli dicunt, primum Æg- formas desta ciência que, pela primeira vez,
yptus dominis propriis fertur as terras do Egito foram repartidas entre
esse partitus. Cuius disciplinæ
magistri mensores ante dice-
seus proprietários. Antigamente, os mestres
bantur. desta ciência eram chamados medidores.
“Sed Varro, peritissimus latino- Segundo Varrão, o mais erudito entre os la-
rum huius nominis causam sic
exstitisse commemorat dicens,
tinos, a causa deste nome foi a seguinte: no
prius quidem homines per di- início, ao estabelecerem as dimensões das
mensiones terrarum terminis terras em certos limites, os homens garan-
positis vagantibus populis pacis
utilia præstitisse; deinde to- tiram os benefícios da paz entre povos nô-
tius anni circulum menstruali mades; depois repartiram o círculo do ano
numero fuisse partitos; unde
et ipsi menses quod annum
inteiro conforme o número dos meses, que
metiantur, dicti sunt. Verum são chamados meses justamente por medi-
postquam ista reperta sunt, rem o ano. Mas depois de tais descobertas,

43
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

provocados a conhecer as [realidades] in- provocati studiosi ad illa invi-


sibilia cognoscenda, coeperunt
visíveis, os estudiosos começaram a inves- quærere, quanto spatio a terra
tigar a distância entre a lua e a terra, entre luna, a luna sol ipse distaret; et
usque ad verticem cæli quanta
o próprio sol e a lua; e [mesmo] qual era a
se mensura distenderet, quod
distância entre eles e o vértice do céu, algo peritissimos geometras assecu-
que segundo Varrão foi alcançado pelos tos esse commemorat. Tunc et
dimensionem universæ terræ
geômetras mais versados. Narra também probabili refert ratione con-
que a dimensão da terra inteira foi deduzi- lectam; ideoque factum, ut di-
sciplina ipsa geometriæ nomen
da com um cálculo provável, e que por isso
acciperet, quod per sæcula lon-
a própria ciência foi chamada geometria, ga custodit” (Ibid.).
nome que conserva há vários séculos.

Portanto, esta ciência fora observada na Hæc igitur disciplina in taber-


naculi templique ædificatione
edificação do tabernáculo e do templo, servata est, ubi linealis men-
quando se levou em conta a disposição da suræ unius et circuli ac spheræ
linha reta, do círculo, da esfera, do hemis- atque hemispherion, quadran-
gulæ quoque formæ, et cæterar-
fério, da forma quadrangular e das demais um figurarum dispositio habita
figuras. O conhecimento destas coisas aju- est; quorum omnium notitia ad
spiritalem intellectum non pa-
da muito a quem procura compreender o rum adiuvat tractatorem.
sentido espiritual [da Escritura].

VII. Sobre a música CAPUT VII. De musica

Música é a disciplina que trata de quantida- “Musica est disciplina quæ de


numeris loquitur qui ad aliquid
des relativas, isto é, das que se encontram sunt, id est, his qui inveniuntur
nos sons, como dobro, triplo, quádruplo e in sonis: ut duplum, triplum,
similares, que são chamadas relações. 13
quadruplum, et his similia quæ
dicuntur ad aliquid” (Cassiod.,
Inst. litt., l. 2, c. 5).

13.O termo relações designa aqui uma das dez cate-


gorias aristotélicas. Aristóteles defendia que, além
das coisas, havia relações reais entre as coisas. Se-
gundo ele, há três tipos de relações: as que derivam
da quantidade (v.g.: dobro e metade), da ação e da
paixão (v.g.: paternidade e filiação) e as que derivam
do conhecimento (v.g.: entre o objeto conhecido e

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3. S e t e a rt es li b er a i s ex p li cadas

Hæc ergo disciplina tam nobilis Esta disciplina é tão nobre e tão útil que,
est, tamque utilis, ut qui ea ca-
ruerit, ecclesiasticum officium sem ela, não é possível cumprir as funções
congrue implere non possit. eclesiásticas como convém. Pois tudo que é
Quidquid enim in lectionibus
pronunciado decentemente nas leituras, e
decenter pronuntiatur, ac qui-
dquid de psalmis suaviter in tudo que dos salmos é cantado suavemen-
ecclesia modulatur, huius disci- te na igreja, é regulado pelo conhecimento
plinæ scientia ita temperatur, et
non solum per hanc legimus et desta disciplina; e por ela não só lemos e
psallimus in ecclesia, imo omne salmodiamos na igreja, mas cumprimos
servitium Dei rite implemus.
adequadamente todo o serviço de Deus.
“Musica ergo disciplina per A música é uma disciplina que se difunde
omnes actus vitæ nostræ hac
ratione diffunditur: primum si por todos os atos da nossa vida, e da se-
creatoris mandata faciamus et guinte maneira: primeiro, se obedecemos
puris mentibus, statutis ab eo
aos mandamentos do Criador e, com almas
regulis, serviamus. Quidquid
enim loquimur, vel intrinsecus puras, sujeitamo-nos às regras por ele fixa-
venarum pulsibus commove- das. Com efeito, tudo aquilo que dizemos
mur, per musicos rhythmos
harmoniæ virtutibus probatur ou [se] somos movidos interiormente pelas
esse sociatum. Musica quippe vibrações das veias, [tudo isto] demonstra
scientia est bene modulandi.
estar associado ao poder da harmonia atra-
Quod si nos bona conversa-
tione tractamus, tali disciplinæ vés dos ritmos musicais. Ora, a música é a
probamur semper esse sociati; ciência da correta modulação. Donde, se
quando vero iniquitates geri-
mus, musicam non habemus. nos tratamos com boas maneiras, demons-
tramos estar sempre associados a esta dis-
ciplina; mas quando praticamos iniquida-
des, não temos música.
“Cælum quoque et terra, vel om- Também o céu e a terra, ou tudo que neles
nia quæ in eis superna dispensa-
tione peraguntur, non sunt nisi
acontece por disposição divina, não existe

o conhecedor). Por exemplo: entre uma caixa de 1


metro e outra de 2 metros, há, além das duas caixas,
uma relação de metade que está na caixa de 1 metro,
e uma relação de dobro que está na de 2 metros; esse
é um exemplo de relação de quantidade. O que Rá-
bano diz, portanto, é que na música há relações deste
tipo. (N.T.)

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

sem a disciplina musical, pois Pitágoras musica disciplina, cum Pythago-


ras hunc mundum per musicam
atesta que este mundo foi criado pela mú- conditum, et per eam gubernari
sica e pode ser governado por ela. posse testatur” (Ibid.).

A música também está muito unida à pró- “Hæc et in ipsa quoque reli-
pria religião cristã. Daí que não poucos gione Christiana valde per-
mixta est” (Ibid.) ac inde fit ut
conteúdos ficam inacessíveis e ocultos “non pauca etiam claudat atque
dada a ignorância de algumas coisas no obtegat nonnularum rerum
musicarum ignorantia. Nam
campo musical. Uma pessoa, por exemplo, et de psalterii et citharæ diffe-
desvendou engenhosamente algumas me- rentia, quidam non inconcinne
táforas a partir da diferença entre saltério aliquas rerum figuras aperuit;
et decem cordarum psalterium
e cítara. Também quanto ao saltério de dez non importune inter doctos
cordas, é de interesse dos eruditos investi- quæritur, utrum habeat aliquam
musicæ legem, quæ ad tantum
gar se há aí alguma regra musical que exija nervorum numerum cogat; an
este número de cordas, ou, não a havendo, vero, si non habet, eo ipso ma-
se tal número deve ser antes tomado em gis sacrate accipiendus sit ipse
numerus, vel propter decalo-
sentido místico, quer em referência aos gum legis, de quo item numero
dez mandamentos (em cujo caso não pode si quæratur, non nisi ad crea-
torem creaturamque referen-
ser referido senão ao Criador e à criatura), dus est, vel propter expositum
quer se trate do número 10 em si mesmo ipsum denarium” (August., De
como expusemos acima. Doc. Crist., II, 16).

Ademais, o número correspondente ao “Et ille numerus ædificationis


templi qui commemoratur in
tempo de construção do templo, que Evangelio, quadraginta scilicet
como narra o Evangelho foi de 46 anos, et sex annorum, nescio quid
tem um não sei quê de musical; e referido musicum sonat; et relatus ad
fabricam Dominici corporis,
à formação do corpo do Senhor, em vista propter quam templi mentio
da qual se fez menção do templo, obriga facta est, cogit nonnulos hæret-
icos confiteri Filium Dei non
alguns hereges a confessar que o Filho falso sed vero et humano cor-
de Deus assumiu um corpo verdadeiro e pore indutum. Itaque et nume-
humano, não um fictício. Assim, pois, em rum et musicam plerisque locis
in sanctis Scripturis honorabi-
muitos lugares da Sagrada Escritura en- liter posita invenimus” (Ibid.).
contramos o número e a música mencio-
nados com honra.

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3. S e t e a rt es li b er a i s ex p li cadas

“Non enim audiendi sunt erro- Portanto, não devemos dar ouvido às fal-
res gentilium superstitionum,
qui novem Musas, et Iovis et sidades das superstições dos pagãos, que
Memoriæ filias esse finxerunt. representaram as nove Musas como filhas
Refellit eos Varro: quo nescio
de Júpiter e Mnemósine. Varrão os refuta,
utrum apud eos quisquam ta-
lium rerum doctior vel curio- e não sei se pode haver entre eles alguém
sior esse possit. Dicit enim mais versado e interessado nestas coisas. Se-
civitatem nescio quam (non
enim nomen recolo) locasse gundo ele, certa cidade (não me recordo o
apud tres artifices terna simu- nome) encomendou a três artífices três está-
lacra Musarum, quod in templo
tuas das Musas, que seriam colocadas como
Apollinis donum poneret, ut
quisquis artificum pulchriora oferta no templo de Apolo, e seriam esco-
formasset, ab illo potissimum lhidas e compradas, de preferência, aquelas
electa emeret. Ita contigisse ut
opera sua illi quoque artifices do artista que lograsse fabricar as mais be-
æque pulchre explicarent, et las. Aconteceu que os artífices produziram
placuisse civitati omnes novem
obras igualmente belas, e a cidade gostou
atque omnes esse emptas, ut in
Apollinis templo dedicarentur; das nove e comprou todas para que fossem
quibus postea dicit Hesiodum destinadas ao templo de Apolo. E Varrão
poetam imposuisse vocabula.
[conclui] dizendo que posteriormente o
poeta Hesíodo deu nome a cada uma.
“Non ergo Iupiter novem Mu- Logo, não foi Júpiter que gerou as nove
sas genuit, sed tres fabri ternas
creaverunt. Tres autem non
Musas, mas três artesãos fabricaram três
propterea illa civitas locaverat, delas cada um. E aquela cidade encomen-
14

14. “As Musas são filhas de Mnemósine e de Zeus e


são nove irmãs, fruto de nove noites de amor. Ou-
tras tradições dão-nas como filhas de Harmonia, ou
então de Úrano e Geia (a Terra e o Céu). Todas estas
genealogias são evidentemente simbólicas e ligam-
-se, de forma mais ou menos directa, a concepções
filosóficas sobre o primado da Música no Universo.
De facto, as Musas não são somente as Cantoras di-
vinas, cujos coros e hinos alegram Zeus e todos os
deuses; presidem também ao Pensamento em todas
as suas formas: eloquência, persuasão, sabedoria,
história, matemáticas, astronomia.” (Pierre Grimal,
Dicionário da Mitologia Grega e Romana, trad. Victor
Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 319).

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dara três, não por tê-las visto em sonho, quia in somnis eas viderat, aut
tot se cuiusquam illorum oculis
nem por elas se terem manifestado em demonstraverant; sed quia faci-
número de três aos olhos de algum dos ci- le erat animadvertere omnem
sonum, quæ materies cantile-
dadãos; mas porque era fácil perceber que
narum est, triformem esse na-
todo som, elemento material das canções, tura. Aut enim voce editur, si-
é por natureza de três tipos: pois ou é pro- cuti eorum est qui faucibus sine
organo canunt; aut flatu sicut
duzido pela voz, como no caso dos que tubarum et tibiarum; aut pulsu
cantam com a boca e sem instrumento; ou sicut in citharis et tympanis, et
quibuslibet aliis, quæ percu-
pelo sopro, como o das trombetas e flautas;
tiendo canora sunt” (Ibid., 17).
ou pela percussão, como nas cítaras, tam-
bores e demais instrumentos que ressoam
através da percussão.

Sendo ou não verdadeiros os fatos narra- “Sed sive ita se habeat, quod
Varro retulit, sive non ita, nos
dos por Varrão, nós, contudo, não deve-
tamen non debemus propter
mos evitar a música por causa da supersti- superstitionem profanorum
ção dos profanos, se pudermos extrair dela musicam fugere, si quid inde
utile ad intellegendas sanctas
algo útil à compreensão das Sagradas Es- scripturas rapere potuerimus,
crituras; nem devemos dar atenção às suas nec ad illorum theatricas nugas
converti, si aliquid de citharis
futilidades teatrais, quando investigamos
et de organis, quod ad spirita-
algo sobre cítaras e órgãos que contribui lia capienda valeat, disputemus.
para a compreensão de coisas espirituais. Neque enim et litteras discere
non debuimus, quia earum <re-
Afinal, não é porque eles dizem ser Mer- pertorem> dicunt esse Mercu-
cúrio o inventor das letras, que nós não de- rium, aut quia iustitiæ virtuti-
que templa dedicarunt, et quæ
vemos aprendê-las. E se eles consagraram
corde gestanda sunt in lapidi-
templos à Justiça e à Virtude, e preferiram bus adorare maluerunt, propte-
adorar na pedra o que se deve cultivar no rea nobis iustitia virtusque fu-
gienda est. Immo vero quisquis
coração, nem por isso devemos evitar a bonus verusque christianus est,
justiça e a virtude. Ao contrário: que todo domini sui esse intellegat, ubi-
cumque invenerit veritatem”
bom e verdadeiro cristão, onde quer que (Ibid., 18).
encontre a verdade, entenda que ela per-
tence ao seu Senhor.

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3. S e t e a rt es li b er a i s ex p li cadas

CAPUT VIII. De VIII. Sobre a astronomia


astronomia
“Astronomia ergo superest” Resta falar da astronomia, ciência conve-
(Cassiod., Inst. litt., l. 2, c. 5), niente para os religiosos, grande tormento
quæ, ut quidam dixit, dignum
est religiosis argumentum,
para os curiosos, como disse alguém. Pois
magnumque curiosis tormen- se com espírito casto e moderado a inves-
tum. Hanc ergo “si casta ac tigamos, ela brilha com grande claridade
moderata mente perquirimus,
sensus quoque nostros, ut et mesmo em nossos sentidos, como dizem
veteres dicunt, magna claritate os antigos. É como subir com a alma aos
perfundit. Quale est enim ad
cælos animo subire, totamque
céus, examinar racionalmente toda aquela
illam machinam supernam in- máquina suprema e, com a sublimidade es-
dagabili ratione discutere et peculativa da mente, colher ao menos algo
inspectiva mentis sublimitate
ex aliqua parte conligere, quod do que os mistérios de tão grande exten-
tantæ magnitudinis arcana ve- são escondiam! O próprio mundo, como
laverunt? Nam mundus ipse, ut
quidam dicunt, sphærica fertur
dizem alguns, foi conglomerado numa
rotunditate conlectus, ut diver- circularidade esférica, de tal modo que sua
sas rerum formas ambitus sui circunferência encerrasse as diversas for-
circuitione concluderet. Unde
librum Seneca consentanea mas das coisas. Daí Sêneca ter composto
philosophis disputatione for- um livro em forma de controvérsia, como é
mavit, cui titulus est: De forma
mundi.” (Ibid.).
costume entre os filósofos, cujo nome é De
forma mundi — “Sobre a forma do mundo”.
“Astronomia itaque dicitur, Portanto, a astronomia de que tratamos
unde nobis sermo est, astrorum
lex, quia nesciunt ullo modo
chama-se lei dos astros; porque [estes] não
aliter, quam a suo creatore di- sabem parar ou mover-se senão do modo
sposita sunt, vel consistere vel como foram dispostos pelo seu Criador,
moveri, nisi forte quando ali-
quo miraculo facto divinitatis exceto quando são alterados por algum
arbitrio commutantur, sicuti Ie- milagre feito por arbítrio da divindade. Por
sus Nave soli in Gabaon ut sta-
ret, legitur imperasse, et tempo-
exemplo: Lê-se que Josué ordenou ao sol
ribus Ezechiæ regis retrorsum que parasse em Gabaon (cf. Js 10, 12), e que
decem gradibus reversum fuis- nos tempos do rei Ezequias [o profeta] fez
se, et in passione domini Chri-
sti tribus horis sol tenebrosus [a sombra] retroceder dez graus (cf. 2Rs 20,
effectus est, et his similia. Ideo 11), e que na Paixão de Cristo Senhor o sol
enim miracula dicuntur, quo-
niam contra consuetudinem
obscureceu-se por três horas (cf. Lc 23, 45)
rerum admiranda contingunt. etc. E por isso chamam-se milagres, porque

49
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

acontecem coisas admiráveis contra o cos- Feruntur enim, sicut dicunt


astronomi, quæ cælo fixa sunt;
tume das coisas. Como dizem os astrôno- moventur vero planetæ, id est
mos, as [estrelas] que estão fixas no céu se erraticæ, quæ cursus suos certa
tamen definitione conficiunt.
deslocam; já os planetas, isto é, as [estrelas]
Astronomia est itaque, sicut
errantes, se movem, embora perfaçam sua iam dictum est, disciplina, quæ
trajetória segundo uma regra definida. A cursus cælestium siderum et fi-
guras contemplatur omnes, et
astronomia é, portanto, como já foi dito, a habitudines stellarum circa se
disciplina que contempla os cursos e as fi- et circa terram indagabili ratio-
ne percurrit”. (Ibid.).
guras todas dos corpos celestes, e examina
racionalmente as relações entre uma estre-
la e outra e entre estas e a terra.

Em algo se diferenciam a astronomia e a “Inter astronomiam autem et


astrologia, conquanto ambas pertençam a astrologiam aliquid differt”
(Isid. Etym., III, 26), licet ad
uma só disciplina. O conteúdo da astrono- unam disciplinam ambæ per-
mia é o movimento circular do céu; o nas- tineant. “Nam astronomia cæli
conversionem, ortus, obitus
cimento, o ocaso e o movimento dos astros; motusque siderum continet
bem como a razão dos nomes que estes pos- vel ex qua causa ita vocentur.
suem. A astrologia é em parte natural, e em Astrologia vero partim natu-
ralis, partim superstitiosa est.
parte supersticiosa. É natural na medida em Naturalis, dum exsequitur solis
que segue o curso do sol e da lua, e a posi- lunæque cursus vel stellarum,
vel stellarum certas temporum
ção que, em determinadas épocas, apresen- stationes. Superstitiosa vero est
tam as estrelas. Mas é supersticiosa desde illa, quam mathematici sequun-
o momento em que os astrólogos tentam tur, qui in stellis augurantur,
quique etiam duodecim cæli
encontrar augúrios nas estrelas e descobrir signa per singula animæ vel
o que os doze signos do zodíaco dispõem corporis membra disponunt,
siderumque cursu nativitates
para a alma ou para os membros do corpo, hominum et mores prædicere
ou quando se afanam em predizer, basean- conantur” (Ibid.).
do-se no curso dos astros, como será o nas-
cimento e o caráter do homem.

Esta parte da astrologia que, com inves- Hanc quidem partem astrolo-
giæ, quæ naturali inquisitione
tigação natural, trata dos movimentos do
exsequitur, solis lunæque cur-
sol, da lua e das estrelas, e cuidadosamente sus atque stellarum et certas
examina certas mudanças do tempo, esta, temporum distinctiones caute
rimatur, oportet a clero domini

50
3. S e t e a rt es li b er a i s ex p li cadas

solerti meditatione disci, ut per digo, convém seja aprendida pelo clero do
certas regularum coniecturas
et ratas ac veras argumento- Senhor com diligente meditação; a fim de
rum æstimationes, non solum que, por certas conjecturas das leis e por
præterita annorum curricula
estimações calculadas e verdadeiras dos
veraciter investiget, sed et de
futuris noverit fideliter ratioci- argumentos, não apenas investigue veraz-
nare temporibus, usque pascha- mente o transcurso pretérito dos anos, mas
lis festi exordia et certa loca
omnium solennitatum atque também saiba raciocinar fielmente sobre
celebrationum sibi sciat inti- os tempos futuros, de maneira que saiba
mare observanda, et populo dei
descrever para si mesmo o início da festa
rite valeat indicare celebranda.
da Páscoa e os dias exatos de todas as sole-
nidades e celebrações a serem observadas,
e possa instruir corretamente o povo de
Deus acerca das celebrações.

51
EPÍLOGO
SOBRE O BEATO ALCUÍNO
James Burns
1

Eminente educador, homem de letras e teólogo, Alcuíno nas-


ceu por volta de 735 e faleceu em 19 de maio de 804. Era de
origem nobre do Reino da Nortúmbria, mas o local de seu nas-
cimento é objeto de controvérsia. Provavelmente foi em Iorque
ou perto dela.

Ainda criança, entrou para a escola catedral fundada nesse lo-


cal pelo Arcebispo Egberto. Suas aptidões e sua piedade preco-
ce depressa atraíram a atenção de Elberto, mestre da escola, e
do arcebispo, que se dedicaram especialmente à instrução dele.
Em companhia do seu mestre, fez várias visitas ao continente
durante a juventude e quando, em 767, Elberto tornou-se arce-
bispo de Iorque, o dever de dirigir a escola recaiu naturalmente
sobre Alcuíno. Durante os quinze anos que se seguiram, de-
dicou-se ao trabalho de ensino em Iorque, atraindo inúmeros
estudantes e enriquecendo a já valiosa biblioteca.

Ao regressar de Roma, em março de 781, encontrou-se com


Carlos Magno em Parma e foi convencido por este príncipe, a
quem muito admirava, a mudar-se para a França e a instalar-se
na corte real como “Mestre da Escola do Palácio”. A escola foi

1. Traduzido a partir de: James Burns, “Alcuin”. In: The Catholic Encyclopedia,
v. 1. New York: Robert Appleton Company, 1907. Disponível em <https://
www.newadvent.org/cathen/01276a.htm>. Acesso em 18 jan. 2024. Verbete
adaptado passim para esta publicação.

53
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

mantida em Aachen durante a maior parte do tempo, mas foi


transferida para outros locais, de acordo com a mudança da
residência real. Em 786 regressou à Inglaterra, aparentemente
para tratar de importantes assuntos eclesiásticos, e novamente
em 790, numa missão de Carlos Magno.

Alcuíno participou do Sínodo de Frankfurt, em 794, e teve


um papel importante na elaboração dos decretos que conde-
naram o adocionismo, bem como nos esforços feitos poste-
riormente para conseguir a submissão dos prelados espanhóis
relutantes. Em 796, já com mais de sessenta anos, desejoso de
se afastar do mundo, foi nomeado por Carlos Magno aba-
de de São Martinho, em Tours. Lá, nos seus anos de velhice,
mas com um zelo inabalável, empenhou-se em construir uma
escola monástica modelo, reunindo livros e atraindo alunos
de longe e de perto, como fizera antes, em Aachen e Iorque.
Faleceu em 19 de maio de 804.

Aparentemente, Alcuíno foi somente diácono. Alguns julgam,


no entanto, que ele foi ordenado sacerdote, pelo menos em
seus últimos anos de vida. Seu biógrafo anônimo, ao descrever
este período, diz dele que celebrava todos os dias a Santa Mis-
sa. Numa de suas últimas cartas, Alcuíno agradece a oferta de
uma casula, que promete usar nos ritos sagrados. É provável
que tenha sido monge e membro da Ordem Beneditina, em-
bora este fato também seja contestado, pois alguns historiado-
res afirmam que ele foi somente um membro do clero secular,
mesmo quando exerceu o cargo de abade em Tours.

Quanto ao seu trabalho como educador e estudioso, podemos


dizer, de modo geral, que foi dele a maior contribuição para
o movimento de renascimento pedagógico que distinguiu a
época em que ele viveu, e que tornou possível o grande renas-
cimento intelectual de três séculos depois. Nele, a erudição
anglo-saxã alcançou sua mais ampla influência, já que a rica

54
EP Í LOGO : S o b r e o B e at o A l c u ín o

herança intelectual deixada por São Beda, o Venerável, em Jar-


row foi retomada por Alcuíno em Iorque e, por meio dos seus
trabalhos subsequentes no continente europeu, tornou-se a
herança permanente da Europa civilizada.

Um aspecto importante do trabalho educativo de Alcuíno em


Iorque foi o zelo com sua preciosa biblioteca, bem como a pre-
servação e a ampliação dela. Viajou várias vezes pela Europa
com o objetivo de copiar e recolher livros. Também numerosos
alunos se reuniram ao seu redor, vindos de todas as partes da
Inglaterra e do continente. Em seu poema sobre os santos da
Igreja de Iorque, escrito provavelmente antes de fixar residên-
cia na França, deixou-nos uma valiosa descrição da vida aca-
dêmica de Iorque, bem como uma lista dos autores representa-
dos no seu catálogo de livros. O programa de estudos abrangia,
segundo as palavras de Alcuíno, “os estudos liberais e a palavra
sagrada”, ou seja, as sete artes liberais que compreendem o tri-
vium e o quadrivium, com o estudo das Escrituras e dos Santos
Padres para os mais avançados.

Mas foi quando assumiu a direção da Escola do Palácio que as


capacidades de Alcuíno se revelaram de forma mais evidente.
Apesar da influência de Iorque, o ensino na Inglaterra estava
em declínio. O país era vítima de dissensões e guerras civis, e
Alcuíno percebeu no poder crescente de Carlos Magno e em
sua ânsia pelo desenvolvimento do ensino uma oportunidade
que nem mesmo Iorque, com toda a sua preeminência e vanta-
gens escolásticas, podia oferecer.

E ele não se decepcionou. Carlos Magno apoiava-se na educa-


ção para completar a obra de construção do império em que
estava empenhado, e sua mente ocupava-se de projetos pe-
dagógicos. De fato, um renascimento literário já tivera início.
Eruditos foram trazidos da Itália, da Alemanha e da Irlanda, e
quando Alcuíno, em 782, estabeleceu uma aliança com Carlos

55
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

Magno, depressa encontrou à sua volta em Aachen, para além


dos jovens membros da nobreza que era chamado a instruir,
um grupo de alunos mais velhos, alguns dos quais se encontra-
vam entre os melhores eruditos da época. Sob a liderança dele,
a Escola do Palácio tornou-se aquilo que Carlos ambicionava:
o centro de conhecimento e cultura de todo o reino e mesmo
de toda a Europa. O próprio Carlos Magno, sua rainha Lute-
garda, sua irmã Gisela, seus três filhos e duas filhas tornaram-
-se alunos da escola, um exemplo que o resto da nobreza não
tardou a imitar.

O mérito supremo de Alcuíno como educador reside, no en-


tanto, não apenas na formação de uma geração de homens e
mulheres cultos, mas sobretudo em inspirar, com seu próprio
entusiasmo pela aprendizagem e pelo ensino, os jovens talen-
tosos que acorriam a ele de todos os lados.

Assim como Beda, Alcuíno era mais professor que pensador,


mais compilador e distribuidor que gerador de conhecimento,
e neste aspecto é hoje evidente para nós que a inclinação do seu
gênio correspondia perfeitamente à necessidade intelectual ur-
gente da época: a preservação e a representação para o mundo
dos tesouros de conhecimento herdados do passado, há muito
enterrados pelas sucessivas ondas de invasão bárbara. Disce ut
doceas (“Aprende para ensinares”) foi o lema de sua vida, e o
valor supremo que atribuía ao ofício de ensinar é reconhecí-
vel na advertência aos seus discípulos, segundo a qual o jovem
ocioso nunca se tornaria professor na velhice (Qui non discit in
pueritia, non docet in senectute, Ep. 27).

Alcuíno estava eminentemente qualificado para ser o peda-


gogo da sua época. Embora vivesse no mundo e se ocupasse
muito com assuntos públicos, era um homem de singular
humildade e santidade de vida. Tinha um entusiasmo ilimi-
tado pela aprendizagem e um zelo incansável pelo trabalho

56
EP Í LOGO : S o b r e o B e at o A l c u ín o

prático da sala de aula e da biblioteca; e os jovens de talento


que atraía em grandes números à sua volta, de todas as par-
tes da Europa, partiam inspirados com algo do seu próprio
ardor pelo estudo. Sua índole cordial e afetuosa tornava-o
universalmente amado, e os laços que uniam mestre e aluno
transformavam-se frequentemente numa amizade íntima a
prolongar-se por toda a vida. Muitas das cartas suas que se
conservam foram dirigidas a ex-alunos, sendo mais de trinta
ao seu querido discípulo Arno, que se tornou arcebispo de
Salzburgo.

Antes de morrer, Alcuíno teve a satisfação de ver os jovens que


formara empenhados, por toda a Europa, no trabalho do ensino.
Diz Wattenbach, falando do período que se seguiu: “Onde quer
que seja visível qualquer sinal de atividade literária, aí podemos
ter a certeza de encontrar um discípulo de Alcuíno.” Muitos dos
seus alunos vieram a ocupar posições importantes na Igreja e
no Estado e exerceram sua influência na causa do ensino, como
o já mencionado Arno, arcebispo de Salzburgo. Entre os seus
alunos encontrava-se também o célebre Rábano Mauro, suces-
sor intelectual de Alcuíno, que estudou com ele durante algum
tempo em Tours e que, posteriormente, na sua Escola de Fulda,
continuou a obra de Alcuíno em Aachen e Tours.

O desenvolvimento da Escola do Palácio, no entanto, por mais


importante que fosse, era apenas uma parcela dos amplos pla-
nos educacionais de Carlos Magno. Para a difusão da aprendi-
zagem, era necessário estabelecer outros centros educacionais
em todo o reino e, para isso, numa época em que a educação
estava tão amplamente sob o domínio da Igreja, era essencial
que o clero fosse um corpo de homens instruídos. Com este
objetivo em vista, foi emitida uma série de decretos em nome
do imperador, que impunham a todos os clérigos, tanto secula-
res como regulares, sob pena de suspensão e privação do cargo,
a capacidade de ler e escrever e a posse dos conhecimentos ne-

57
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

cessários para o desempenho inteligente dos deveres do estado


clerical. Deveriam ser criadas escolas de leitura para proveito
dos candidatos ao sacerdócio, e os bispos eram obrigados a
examinar o seu clero de tempos a tempos, para verificar o grau
de cumprimento destas leis educacionais.

Foi também projetado um esquema para a educação elemen-


tar universal. Um decreto do ano 802 ordenava que “cada um
mandasse seu filho estudar letras, e que a criança permaneces-
se na escola com toda a diligência até se tornar bem instruída
no saber”. Os decretos do Concílio de Vaison determinaram
que deveria ser criada uma escola primária em cada cidade e
aldeia, e nelas os sacerdotes lecionariam gratuitamente. É im-
possível dizer até que ponto Alcuíno merece crédito pela or-
ganização do vasto sistema educacional que foi então criado,
compreendendo uma instituição superior central, a Escola do
Palácio, uma série de escolas subordinadas de artes liberais es-
palhadas pelo país, e escolas para o povo comum em todas as
cidades e aldeias. Não é evidente a participação dele na série
de decretos legislativos mencionados acima, mas não há dúvi-
da de que teve muito a ver com o incentivo ou mesmo com a
concepção dessas leis. Diz Gaskoin: “A voz é de Carlos Magno,
mas a mão é de Alcuíno.”

Foi também a Alcuíno e aos seus discípulos que coube a res-


ponsabilidade de implementar a legislação. É verdade que as
leis foram aplicadas de forma imperfeita; as medidas planeja-
das e parcialmente postas em prática para o esclarecimento do
povo não tiveram um sucesso completo; o movimento em prol
do renascimento e da difusão da sabedoria em todo o impé-
rio não durou. No entanto, boa parte daquilo que foi realizado
perdurou. A sabedoria acumulada (ou o passado), que corria
o risco de perecer, foi preservada e, quando o renascimento
maior e mais permanente da educação chegou, vários sécu-

58
EP Í LOGO : S o b r e o B e at o A l c u ín o

los mais tarde, quando a luz começou a penetrar através das


nuvens de tempestade das contendas feudais e da anarquia, as
fundações lançadas no século VIII ainda estavam lá, prontas
para receber o peso da aprendizagem superior que os estudio-
sos do novo renascimento deveriam construir.

59
SOBRE HUGO DE SÃO VÍTOR
Papa Bento XVI
2

Queridos irmãos e irmãs!

Nestas Audiências de quarta-feira estou apresentando algu-


mas figuras exemplares de crentes, que se comprometeram a
mostrar a concórdia entre a razão e a fé, e a testemunhar com
sua vida o anúncio do Evangelho. Hoje, pretendo falar-vos de
Hugo e Ricardo de São Vítor. Ambos se situam entre aqueles
filósofos e teólogos conhecidos com o nome de Vitorinos, por-
que viveram e ensinaram na abadia de São Vítor, em Paris, fun-
dada no início do século XII por Guilherme de Champeaux. O
próprio Guilherme foi mestre renomado, que conseguiu dar
à sua abadia uma sólida identidade cultural. Em São Vítor, de
fato, foi inaugurada uma escola para a formação dos monges,
aberta também a estudantes externos, na qual se realizou uma
síntese feliz entre os dois modos de fazer teologia, da qual já
falei em catequeses precedentes: isto é, a teologia monástica,
orientada sobretudo para a contemplação dos mistérios da fé
na Escritura, e a teologia escolástica, que utilizava a razão para
procurar perscrutar estes mistérios com métodos inovadores,
e criar um sistema teológico.

2. Audiência Geral do Papa Bento XVI, proferida a 25 de novembro de 2009 e


disponível no site da Santa Sé: <https://www.vatican.va/content/benedict-x-
vi/pt/audiences/2009/documents/hf_ben-xvi_aud_20091125.html>. Aces-
so: 18 jan. 2024. Texto adaptado passim para esta publicação.

60
EP Í LOGO : S o b r e H u g o d e S ão V í t o r

Temos poucas notícias da vida de Hugo de São Vítor. São in-


certos a data e o lugar do nascimento: talvez na Saxônia ou
em Flandres. Sabe-se que, tendo chegado a Paris — a capital
europeia da cultura desse tempo —, transcorreu o resto dos
seus anos na abadia de São Vítor, onde foi primeiro discípulo e
depois professor. Já antes da morte, no ano de 1141, alcançou
uma grande fama e estima, a ponto de ser chamado um “se-
gundo Santo Agostinho”. De fato, como Agostinho ele meditou
muito sobre a relação entre fé e razão, entre ciências profanas
e teologia. Segundo Hugo de São Vítor, todas as ciências, além
de serem úteis para a compreensão das Escrituras, têm um va-
lor em si mesmas e devem ser cultivadas para ampliar o saber
do homem, assim como para corresponder ao seu anseio por
conhecer a verdade. Esta sadia curiosidade intelectual levou-o
a recomendar aos estudantes que jamais limitassem o desejo
de aprender; e no seu tratado de metodologia do saber e de
pedagogia, intitulado significativamente Didascalicon [“Sobre
o ensino”], recomendava: “Aprende de bom grado de todos o
que não sabes. Será mais sábio do que todos, aquele que terá
querido aprender algo de todos. Quem recebe algo de todos,
acaba por se tornar mais rico do que todos” (Eruditiones Di-
dascalicæ, 3, 14: PL 176, 774).

A ciência da qual se ocupam os filósofos e os teólogos chama-


dos Vitorinos é de modo particular a teologia, que exige antes
de tudo o estudo amoroso da Sagrada Escritura. Com efeito,
para conhecer Deus não se pode deixar de começar a partir
do que o próprio Deus quis revelar de si mesmo através das
Escrituras. Neste sentido, Hugo de São Vítor é um típico repre-
sentante da teologia monástica, totalmente fundada na exegese
bíblica. Para interpretar a Escritura, ele propõe a tradicional
articulação patrístico-medieval, ou seja, em primeiro lugar o
sentido histórico-literal, depois o alegórico e anagógico, e por
fim o moral. Trata-se de quatro dimensões do sentido da Escri-

61
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

tura, que também hoje se redescobrem, pelo qual se vê que no


texto e na narração oferecida se esconde uma indicação mais
profunda: o fio da fé, que nos conduz para o alto e nos guia
nesta terra, ensinando-nos a viver. Contudo, mesmo respeitan-
do estas quatro dimensões do sentido da Escritura, de modo
original em relação aos seus contemporâneos, ele insiste — e
este é um aspecto novo — sobre a importância do sentido his-
tórico-literal. Por outras palavras, antes de descobrir o valor
simbólico, as dimensões mais profundas do texto bíblico, é
preciso conhecer e aprofundar o significado da história narrada
na Escritura: caso contrário — adverte com uma comparação
eficaz — corre-se o risco de ser como que um estudioso de
gramática que ignora o alfabeto. Para quem conhece o sentido
da história descrita na Bíblia, as vicissitudes humanas parecem
marcadas pela Providência divina, segundo um seu desígnio
bem ordenado. Assim, para Hugo de São Vítor, a história não
é o êxito de um destino cego ou de um acaso absurdo, como
poderia parecer. Ao contrário, na história humana age o Espí-
rito Santo, que suscita um diálogo maravilhoso dos homens
com Deus, seu amigo. Esta visão teológica da história põe em
evidência a intervenção surpreendente e salvífica de Deus, que
realmente entra e age na história, quase se faz parte da nossa
história, mas salvaguardando e respeitando sempre a liberdade
e a responsabilidade do homem.

Para o nosso autor, o estudo da Sagrada Escritura e do seu signi-


ficado histórico-literal torna possível a teologia verdadeira, isto
é, a ilustração sistemática das verdades, conhecer a sua estrutura,
a explicação dos dogmas da fé, que ele apresenta numa síntese
sólida no tratado De sacramentis christianæ fidei [“Os sacramen-
tos da fé cristã”], onde se encontra, entre outras, uma definição
de “sacramento” que, aperfeiçoada ulteriormente por outros
teólogos, contém aspectos ainda hoje muito interessantes. “O
sacramento”, escreve ele, “é um elemento corpóreo ou material

62
EP Í LOGO : S o b r e H u g o d e S ão V í t o r

proposto de modo externo e sensível, que representa com a sua


semelhança uma graça invisível e espiritual, a significa, porque
para esta finalidade foi instituído, e a contém, porque é capaz
de santificar” (9, 2; PL 176, 317). Por um lado a visibilidade no
símbolo, a “corporeidade” do dom de Deus, no qual, contudo,
por outro lado, se esconde a graça divina que provém de uma
história: o próprio Jesus Cristo criou símbolos fundamentais.
São portanto três os elementos que concorrem para definir um
sacramento, segundo Hugo de São Vítor: a instituição por parte
de Cristo, a comunicação da graça e a analogia entre o elemento
visível, aquela matéria, e o elemento invisível, que são os dons
divinos. Trata-se de uma visão muito próxima da sensibilidade
contemporânea, porque os sacramentos são apresentados com
uma linguagem rica de símbolos e imagens capazes de falar
imediatamente ao coração dos homens. É importante também
hoje que os animadores litúrgicos, e em particular os sacerdotes,
valorizem com sabedoria pastoral os sinais próprios dos ritos
sacramentais — esta visibilidade e tangibilidade da graça — cui-
dando atentamente da sua catequese, para que cada celebração
dos sacramentos seja vivida por todos os fiéis com devoção, in-
tensidade e júbilo espiritual.

63
SOBRE RÁBANO MAURO
Papa Bento XVI
3

Caros irmãos e irmãs. Hoje gostaria de falar de uma perso-


nagem do Ocidente latino verdadeiramente extraordinária: o
monge Rábano Mauro. Juntamente com homens como Isidoro
de Sevilha, Beda, o Venerável, e Ambrósio Autperto, de quem
já falei em catequeses precedentes, ao longo dos séculos da
chamada Alta Idade Média ele soube manter o contato com as
grandes culturas dos antigos sábios e dos Padres cristãos.

Recordado frequentemente como præceptor Germaniæ, Rába-


no Mauro teve uma fecundidade extraordinária. Com a sua ca-
pacidade de trabalho absolutamente excepcional, talvez tenha
contribuído mais do que todos para manter viva a cultura teo-
lógica, exegética e espiritual, da qual teriam haurido os séculos
sucessivos. Nele inspiram-se quer grandes personagens per-
tencentes ao mundo dos monges, como Pedro Damião, Pedro,
o Venerável, e Bernardo de Claraval, quer também um número
cada vez mais consistente de “clérigos” do clero secular, que
durante os séculos XII-XIII deram vida a um dos florescimen-
tos mais belos e fecundos do pensamento humano.

3. Audiência Geral do Papa Bento XVI, proferida a 3 de junho de 2009 e dis-


ponível no site da Santa Sé: <https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/
pt/audiences/2009/documents/hf_ben-xvi_aud_20090603.html>. Acesso:
18 jan. 2024. Texto adaptado passim para esta publicação.

64
EP Í LOGO : S o b r e R á ban o M au ro

Tendo nascido em Mainz por volta de 760, Rábano entrara no


mosteiro extremamente jovem: foi-lhe acrescentado o nome
de Mauro precisamente com referência ao jovem Mauro que,
segundo o Livro II dos Diálogos de São Gregório Magno, fora
confiado quando era ainda criança pelos seus pais, nobres ro-
manos, ao abade Bento de Núrsia. Esta inserção precoce de
Rábano como puer oblatus no mundo monástico beneditino, e
os frutos que obteve para o seu crescimento humano, cultural
e espiritual, abririam sozinhos uma espiral interessantíssima
não só sobre a vida dos monges e da Igreja, mas também so-
bre toda a sociedade da sua época, habitualmente qualificada
como “carolíngia”. Deles, ou talvez de si mesmo, Rábano Mau-
ro escreve: “Há alguns que têm a sorte de ser introduzidos no
conhecimento das Escrituras desde a tenra infância (a cuna-
bulis suis) e foram tão bem nutridos com o alimento oferecido
pela Santa Igreja que, com a educação apropriada, puderam
ser promovidos às ordens sagradas mais altas” (PL 107, 419bc).

A cultura extraordinária, pela qual Rábano Mauro se distinguia,


chamou depressa a atenção dos grandes do seu tempo. Tornou-
-se conselheiro de príncipes. Empenhou-se para garantir a uni-
dade do império e, a nível cultural mais amplo, nunca deixou
de oferecer a quem o interrogava uma resposta ponderada, que
tirava preferivelmente da Bíblia e dos textos dos Santos Padres.
Eleito primeiro abade do famoso mosteiro de Fulda e depois ar-
cebispo da cidade natal, Mainz, não cessou por isso de continuar
os seus estudos, demonstrando com o exemplo da sua vida que
se pode estar simultaneamente à disposição dos outros, sem se
privar por isso de um tempo côngruo para a reflexão, o estu-
do e a meditação. Assim, Rábano Mauro foi exegeta, filósofo,
poeta, pastor e homem de Deus. As dioceses de Fulda, Mainz,
Limbourg e Wroclaw veneram-no como santo ou beato. As suas
obras completam seis volumes da Patrologia Latina de Migne. É
a ele que se deve, provavelmente, um dos hinos mais bonitos e

65
S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

conhecidos da Igreja latina, o Veni Creator Spiritus, síntese ex-


traordinária de pneumatologia cristã.

O primeiro compromisso teológico de Rábano manifestou-se,


com efeito, sob a forma de poesia e teve como objeto o misté-
rio da Santa Cruz, numa obra intitulada: De laudibus Sanctæ
Crucis, concebida de maneira a propor não somente conteú-
dos de conceito, mas também estímulos mais requintadamente
artísticos, utilizando tanto a forma poética como a pictórica
no interior do mesmo códice manuscrito. Propondo iconogra-
ficamente nas entrelinhas do seu escrito a imagem de Cristo
crucificado, ele por exemplo escreve:

Eis a imagem do Salvador que, com a posição dos seus mem-


bros, torna sagrada para nós a salubérrima, dulcíssima e
amadíssima forma da Cruz, a fim de que, acreditando no
seu nome e obedecendo aos seus mandamentos, possamos
obter a vida eterna graças à sua Paixão. Por isso, cada
vez que elevarmos o olhar para a Cruz, recordemo-nos
daquele que padeceu por nós para nos tirar do poder das
trevas, aceitando a morte para nos tornar herdeiros da vida
eterna (Lib. 1, Fig. 1, PL 107, 151c).

Este método de combinar todas as artes, o intelecto, o coração


e os sentidos, que vinha do Oriente, teria tido um desenvolvi-
mento enorme no Ocidente, atingindo níveis inigualáveis nos
códices miniaturados da Bíblia e em outras obras de fé e de
arte, que floresceram na Europa até a invenção da imprensa
e além dela também. De qualquer modo, isto demonstra que
Rábano Mauro tem uma consciência extraordinária da neces-
sidade de empenhar, na experiência da fé, não apenas a mente
e o coração, mas também os sentidos mediante aqueles outros
aspectos do gosto estético e da sensibilidade humana que le-
vam o homem a fruir da verdade com a totalidade do seu ser:
“espírito, alma e corpo”.

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EP Í LOGO : S o b r e R á ban o M au ro

Isto é importante: a fé não é só pensamento, mas refere-se a


todo o nosso ser. Dado que Deus se fez homem em carne e
osso, entrando no mundo sensível, nós em todas as dimensões
do nosso ser temos que procurar e encontrar Deus. Assim a
realidade de Deus, mediante a fé, penetra no nosso ser trans-
formando-o. Por isso, Rábano Mauro concentrou a sua atenção
sobretudo na liturgia, como síntese de todas as dimensões da
nossa percepção da realidade. Esta intuição de Rábano Mauro
torna-o extraordinariamente atual. Dele permaneceram inclu-
sive os famosos Carmina, propostos para ser utilizados prin-
cipalmente nas celebrações litúrgicas. Com efeito, dado que
Rábano era acima de tudo um monge, era totalmente evidente
o seu interesse pela celebração litúrgica. Porém, ele não se de-
dicava à arte poética como fim em si mesmo, mas subordinava
a arte e qualquer outro tipo de saber ao aprofundamento da
Palavra de Deus. Por isso, com compromisso e rigor extremos,
procurou introduzir os seus contemporâneos, mas em primei-
ro lugar os ministros (bispos, presbíteros e diáconos), na com-
preensão do significado profundamente teológico e espiritual
de todos os elementos da celebração litúrgica.

Assim, tentou compreender e propor aos outros os significados


teológicos escondidos nos ritos, inspirando-se na Bíblia e na
tradição dos Padres. Não hesitava em declarar, por honestidade
mas também para dar maior importância às suas explicações, as
fontes patrísticas às quais devia o seu saber. Todavia, servia-se
das mesmas com liberdade e discernimento atento, dando con-
tinuidade ao desenvolvimento do pensamento patrístico. Por
exemplo, no final da Epistola prima, dirigida a um “corepíscopo”
da diocese de Mainz, depois de ter respondido aos pedidos de
esclarecimento a respeito do comportamento que se devia ter no
exercício da responsabilidade pastoral, prossegue:

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S E T E A RT ES LI B ERA I S: U M A I N T RO D U ÇÃO

Escrevemos-te tudo isto do modo como o deduzimos das Sa-


gradas Escrituras e dos cânones dos Padres. Tu porém, santís-
simo homem, toma as tuas decisões como melhor te parecer,
caso por caso, procurando moderar a tua avaliação de forma
a garantir em tudo a discrição, porque esta é a mãe de todas as
virtudes (Epistulæ, I, PL 112, 1510c).

Assim, vê-se a continuidade da fé cristã, que tem os seus pri-


mórdios na Palavra de Deus; porém, ela é sempre viva, desen-
volve-se e exprime-se de modos novos, sempre em coerência
com toda a construção, com todo o edifício da fé.

Dado que uma parte integrante da celebração litúrgica é a Pa-


lavra de Deus, a ela se dedicou Rábano Mauro com o máximo
empenho durante toda a sua existência. Ofereceu explicações
exegéticas apropriadas praticamente para todos os livros bíbli-
cos do Antigo e do Novo Testamento com uma intenção clara-
mente pastoral, que justificava com palavras como estas:

Escrevi estas coisas... resumindo explicações e propostas de


muitos outros para oferecer um serviço ao leitor pobre que
não pode ter à disposição muitos livros, mas também para
ajudar aqueles que em muitas coisas não conseguem entrar
em profundidade na compreensão dos significados descober-
tos pelos Padres (Commentariorum in Matthæum præfatio, PL
107, 727d).

Com efeito, quando comentava os textos bíblicos, hauria a


mãos cheias dos Padres antigos, com especial predileção por
Jerônimo, Ambrósio, Agostinho e Gregório Magno.

Depois, a acentuada sensibilidade pastoral levou-o a enfrentar


sobretudo um dos problemas mais sentidos pelos fiéis e pelos
ministros sagrados do seu tempo: o da Penitência. Efetivamen-
te, foi compilador de “Penitenciários” — assim eram chama-

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dos — nos quais, segundo a sensibilidade dessa época, eram


enumerados pecados e penas correspondentes, utilizando na
medida do possível motivações tiradas da Bíblia, das decisões
dos Concílios e das Decretais dos Papas. De tais textos ser-
viram-se inclusive os “Carolíngios” na sua tentativa de refor-
ma da Igreja e da sociedade. A esta mesma intenção pastoral
correspondiam obras como De disciplina ecclesiastica e De ins-
titutione clericorum, nas quais, inspirando-se principalmente
em Agostinho, Rábano explicava aos simples e ao clero da sua
diocese os rudimentos fundamentais da fé cristã: tratava-se de
uma espécie de pequenos catecismos.

Gostaria de concluir a apresentação deste grande “homem de


Igreja”, citando algumas das suas palavras em que se refletem a
sua convicção de base:

Quem é negligente na contemplação (qui vacare Deo negligit),


priva-se sozinho da visão da luz de Deus; além disso, quem
se deixa surpreender de modo indiscreto pelas preocupações
e permite que os seus pensamentos sejam alterados pelo tu-
multo das coisas do mundo, condena-se à absoluta impossi-
bilidade de penetrar os segredos do Deus invisível (Lib. I, PL
112, 1263a).

Penso que Rábano Mauro dirige estas palavras também a nós,


hoje: nas horas de trabalho, com os seus ritmos frenéticos, e
nos períodos de férias, temos que reservar momentos para
Deus, abrir-lhe a nossa vida, dirigindo-lhe um pensamento,
uma reflexão, uma breve oração e principalmente não pode-
mos esquecer que o domingo é o dia do Senhor, o dia da li-
turgia, para vislumbrar na beleza das nossas igrejas, da música
sacra e da Palavra de Deus, a própria beleza de Deus, deixan-
do-o entrar no nosso ser. Somente assim a nossa vida se torna-
rá grande, verdadeira.

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