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Esclarecimento segundo Kant

Apresentação, tradução e notas:

ALEXANDER MARTINS VIANNA*

Em 1784, Immanuel Kant(1724-1804) semente em relação à árvore que ela


publicou o seu artigo “O que é pode vir a ser, já que nenhuma pessoa
Esclarecimento?”. Observando a forma nasce pronta. No entanto, Kant questiona
que desenvolve seu argumento, podemos aquelas autoridades (principalmente
notar que Kant entende o Esclarecimento religiosas) que, através do medo ou do
como uma condição moral e não uma constrangimento, mantenham seus
coisa, e seu sentido não pode ser sujeitos em menoridade quando já teriam
restringido a saber ou conhecimento, condições intelectuais de não sê-lo; e
pois é a combinação do conhecimento ironiza aqueles sujeitos que, por
profundo sobre um assunto específico comodismo, oportunismo ou preguiça,
com a autonomia crítica do sujeito do vivam uma situação de menoridade
conhecimento. Esquematicamente, autoimposta. Portanto, ser esclarecido
não é apenas ter um profundo
conhecimento sobre um assunto
Scholar Autonomia (condição de Scholar), mas combinar
Profundo Falar em seu isso com a conquista da autonomia –
conhecedor de um próprio nome passo moral fundamental apenas dado
assunto por uma minoria. Nesse sentido, todos
potencialmente podem esclarecer-se, já
que possuem capacidade de pensar, mas
Segundo Kant, todos (homem ou nem todos conseguem superar o medo, a
mulher) podem alcançar esclarecimento preguiça ou o interesse particular para
sobre qualquer assunto, embora a grande alcançar a condição de esclarecimento.
maioria não queira praticar ou Além disso, deve-se considerar mais um
desenvolver tal condição moral, seja por detalhe: o sujeito do conhecimento
comodismo, oportunismo, medo ou apenas pode tornar-se Scholar sobre
preguiça. Logicamente, em seu processo algumas matérias ou conjunto de
social de formação (Bildung), todo matérias específicas, pois não é possível
indivíduo vive uma situação de ter um conhecimento profundo sobre
menoridade em algum momento ou fase todas as coisas da vida social, natural ou
de sua vida. Neste caso, a menoridade é sobrenatural. Isso significa que só se
natural, pois confunde-se com pode ser esclarecido sobre um assunto ou
imaturidade, tal como a imaturidade da conjunto de assuntos, sobre os quais se

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ALEXANDER MARTINS VIANNA é professor do Departamento de História –
FEUDUC/RJ.

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lança críticas que ajudem no seu menoridade e falar em seu próprio nome,
aperfeiçoamento; porém, em relação a o que significa abandonar a posição
outros assuntos sobre os quais não se anterior. Ora, isso é um teste moral e um
possa ser Scholar, vive-se uma condição modo de evitar que a sociedade se
de menoridade necessária – o que é o tornasse refém de oportunistas e
mesmo que dizer, por exemplo, que manipuladores, pois quem lança crítica
somente um general pode criticar outro deve ter o sentimento autêntico de
general, mas um general não poderia ser aperfeiçoamento das coisas a ponto de
criticado por seu tenente, capitão ou abandonar seus interesses e comodismos
coronel, pois isso, segundo a ótica de particulares e voltar-se para o benefício
Kant, abalaria a ordem social e política e do próximo, em vez de transformar sua
poderia levar a sociedade para a barbárie crítica em meio de realização de seus
de lideranças religiosas ou políticas interesses particulares. Este é o sentido
oportunistas. Portanto, apenas pode do uso público da razão, em contraponto
livremente criticar quem seja Scholar em ao seu uso particular e privado. Nesse
relação a um assunto. No entanto, para sentido, o Scholar usa privadamente a
criticar, o Scholar deve falar em seu sua razão quando – como ator na
próprio nome, em outras palavras, se competência particular de um cargo,
ocupa um cargo, não pode criticá-lo posição funcional ou sistema filosófico –
enquanto o exerce, pois, além de ser fala em nome da instituição em relação à
perigoso para a ordem social e política, qual tal competência está referida.
demonstraria hipocrisia ou falta de
moral. Vejamos o exemplo que Kant dá
a respeito do pastor: Portanto, ser esclarecido é, antes de tudo,
um compromisso moral com o
(...) O pastor dirá: ‘Nossa igreja aperfeiçoamento e bem-estar da
ensina isso ou aquilo; estas são as sociedade, respeitando as hierarquias
provas que ela usa’. Nesse sentido, sociais existentes. No entanto, por medo,
ele beneficia a sua congregação comodismo, oportunismo ou preguiça,
tanto quanto possível por apresentar
poucos Scholars tornam-se efetivamente
doutrinas nas quais não acredita
completamente, mas se compromete esclarecidos, embora tenham condições
em ensiná-las pois não é intelectuais para tanto quando estão em
completamente impossível que elas uso privado da razão. Neste caso, a
não possam conter alguma verdade menoridade autoimposta reverbera para
oculta. Em todo caso, ele não um problema moral, que é o oposto do
encontrou nada nas doutrinas que pragmatismo político de
contradiga o coração da religião. No Maquiavel(1469-1527). A indagação
entanto, se ele acredita que tais moral kantiana por excelência é: “Tenho
contradições existem, ele não estaria eu um sentimento não meramente
mais habilitado para administrar seu centrado em meu interesse mas também
ofício com clareza de consciência.
um sentimento desinteressado
Ele teria que renunciar ao seu
cargo... concernente aos outros? Sim”. Ora, isso
é um desdobramento para o mundo do
O mesmo argumento valeria para outros princípio luterano de que toda obra deve
cargos ou atividades. Como Scholar, se derivar do amor – a exemplo de Cristo1.
um sujeito encontra contradições Deste modo, as pessoas deixariam de ser
irremediáveis nos princípios que meios para se chegar a alguma coisa
sustentam um cargo, ofício ou sistema (fundação do Estado, vantagens
filosófico, terá que sair da condição de materiais, cargos, prazer sensual ou

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salvação da alma) e tornar-se-iam fins autoconstituição. No entanto, Giddens
em si mesmas. lembra que a liberdade de
A partir da segunda metade do século autoconstituição reflexiva chocava-se
XVIII, novos espaços de sociabilidade e com um leque preestabelecido de
as transformações na vida econômica opções. Ele entende tal fenômeno como
constituíram novos processos de associado à especialização tecnológica
construção de identidade que libertaram do trabalho e à multiplicidade de papéis
muitos indivíduos letrados dos sociais, percebendo que a autonomia na
referenciais político-jurídicos modernidade é em larga medida
estamentais, definindo-se o valor da constrangida pelo próprio processo de
pessoa a partir de seu talento manifesto modernização da vida social, que torna
ou presumido (bom nascimento). Porém, todos impessoalmente reféns de
em larga medida, “bom nascimento” teve sistemas-perito, que são os efetivos
seu sentido antigo atenuado, não criadores/programadores das agendas de
significando necessariamente ser nobre escolha ou leques de opções das
de nascimento, mas enobrecido pelo multidões. Nesse sentido, aplicando as
mérito manifesto nas convivências em inferências de Giddens às ideias de Kant
sociedade. No entanto, a nova liberdade sobre o “uso privado da razão”,
(autoconstituição reflexiva de si mesmo) observamos um limite funcional à
foi descoberta para ser logo liberdade, pois, em face das
constrangida, pois agora havia um leque especialidades existentes numa
preestabelecido de escolhas sociais sociedade, haverá sempre “cidadãos
baseado na progressiva especialização passivos” em relação a algum assunto.
técnica e funcional da sociedade. Logo, se uma sociedade em processo de
esclarecimento pressupõe um tipo de
Em seu livro "Modernidade e liberdade ancorada na autonomia moral,
Identidade", Anthony Giddens enfoca os tal liberdade é relativizada pelas relações
vários processos reflexivos de funcionais de interdependência dos
construção de identidade na sociedade indivíduos. Enfim, segundo Kant, Você
moderna (que compreende para ele os tem liberdade de criticar as coisas em
sécs. XIX-XX), onde afirma que, até a relação às quais seja Scholar(perito,
década de 1950, era possível observar segundo vocabulário de Giddens), mas
um indivíduo ainda pressionado entre as somente pode criticar se vive uma
formas pré-modernas (mais fixistas) de condição de autonomia funcional,
identidade e os novos valores, típicos da condição para o uso público moralmente
modernidade, ligados à velocidade e à aceitável da razão.
liberdade de ação, escolha e

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O Que é Esclarecimento?2
IMMANUEL KANT (1784)

Esclarecimento é a saída do homem de arreios. Assim, eles mostram para seu


sua menoridade3 autoimposta. gado o perigo que pode ameaçá-los caso
Menoridade é a inabilidade de usar seu pretendam andar por sua própria conta.
próprio entendimento sem qualquer guia.
Na verdade, o perigo não é realmente tão
Esta menoridade é autoimposta se sua
grande quanto parece. Afinal, depois de
causa assenta-se não na falta de
tropeçar um pouco, todos aprendem a
entendimento, mas na indecisão e falta
andar. Entretanto, exemplos de tropeços
de coragem de usar seu próprio
intimidam e geralmente desencorajam
pensamento sem qualquer guia. Sapere
todas as novas tentativas. Portanto, é
aude! (Ouse conhecer!). “Ter a coragem
muito difícil para o indivíduo agir por
de usar o seu próprio entendimento” é,
sua própria conta e superar a
portanto, o motto do Esclarecimento.
menoridade, que se torna para ele quase
Preguiça e covardia são as razões de a
uma segunda natureza. Assim, mesmo
maior parte da humanidade, de bom
que esteja já amadurecido, o indivíduo é
grado, viver como menor durante toda a
desde o início incapaz de usar seu
sua vida, mesmo depois de a natureza a
entendimento por conta própria porque
muito tempo ter livrado-a de guias
nunca se permitiu tentar fazer isso.
externos. Preguiça e covardia
Dogmas e fórmulas – estas ferramentas
demonstram porque é tão fácil para
mecânicas para usos razoáveis (ou, pelo
alguns se manterem como tutores.
contrário, abusivos) das dádivas naturais
É muito confortável ser um menor. Se eu dos indivíduos – são os grilhões de uma
tenho um livro que pensa por mim, um duradoura menoridade. O homem que se
pastor que age como se fosse minha livra deles dá um salto incerto acima do
consciência, um físico que prescreve a abismo, mas este tipo de movimento
minha dieta e assim sucessivamente, não livre não é comum. Eis a razão para o
tenho então necessidade de empenhar- fato de que apenas poucos homens
me por conta própria. Se eu posso pagar, caminham decididamente e saem da
não tenho necessidade de pensar. Muitos menoridade, cultivando seus próprios
poderão discordar comigo nessa matéria: pensamentos. No entanto, é praticamente
os próprios guardiães que se encarregam certo que o público possa esclarecer-se.
de cuidar para que a esmagadora maioria De fato, basta que a liberdade seja dada
da humanidade – e, dentro dela, todo o para que o esclarecimento torne-se
sexo feminino – não alcance a praticamente inevitável.
maturidade, não apenas por ser
Sempre haverá pensadores
desagradável, mas extremamente
independentes, mesmo entre os
perigosa. Tais guardiães tornam estúpido
autointitulados guardiães da multidão.
seu gado doméstico e cuidadosamente se
Uma vez que tais homens livrem-se do
previnem para que suas dóceis criaturas
jugo da menoridade, derramarão sobre si
não tomem caminho próprio sem seus
o espírito de uma apreciação razoável do

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valor humano e de seu dever de pensar Por “uso público da razão” entendo o uso
por conta própria. É interessante que um homem, como scholar5, faz da
observar que o público que se manteve razão diante de um público letrado. Eu
anteriormente sob o jugo destes chamo de “uso privado da razão” aquele
guardiães, quando é incitado à revolta uso que um homem faz da razão em um
por alguns deles – que são incapazes de posto civil que lhe foi confiado. Em
qualquer esclarecimento –, força-os alguns negócios que afetam o interesse
posteriormente a permanecerem da comunidade, um certo mecanismo
submissos. Isso demonstra o quanto é [governamental] é necessário, em
perigoso implantar preconceitos: estes relação ao qual alguns membros da
eventualmente voltam-se contra seus comunidade permanecem passivos. Isto
próprios autores ou contra os cria uma unanimidade artificial que
descendentes dos autores. Portanto, servirá para o cumprimento dos
apenas lentamente o público deve objetivos públicos, ou ao menos para
alcançar esclarecimento. Uma revolução proteger tais objetivos da destruição.
pode levar ao fim de um despotismo Aqui, questionar não é permitido: deve-
pessoal ou de uma avarenta e tirânica se obedecer. Uma vez que um
opressão, mas nunca leva a uma participante deste mecanismo se
verdadeira reforma dos modos de pensar. considera ao mesmo tempo parte de uma
Novos preconceitos tomarão o lugar dos comunidade universal (uma sociedade
antigos como guias de uma multidão mundial de cidadãos) – lembrando que
irracional. ele pensa por sua própria conta como um
scholar que racionalmente se dirige ao
O esclarecimento requer nada além do seu público através de seus escritos –, ele
que liberdade – e o mais puro de tudo pode efetivamente questionar – mas nada
isso é a liberdade de fazer uso público da sofrerão os assuntos com os quais ele
razão em qualquer assunto. Por outro está associado parcialmente como
lado, o uso privado da razão membro passivo6. Portanto, seria um
frequentemente pode ser restrito, mas completo infortúnio se um oficial militar
isso não necessariamente retarda o (no cumprimento de seu dever ou sob
processo de esclarecimento. Atualmente, ordens de seus superiores) quisesse
ouço clamores de todos os lados: “Não questionar a adequação ou utilidade de
questione!”. Os oficiais militares dizem: suas ordens. Ele deve obedecer. No
“Não questione, mexa-se!”. O coletor de entanto, como um scholar, ele
impostos: “Não questione, pague!”. O certamente não poderia evitar de
pastor: “Não questione, creia!”. Somente reconhecer os erros no serviço militar e
um único soberano4 em todo mundo deve expor suas visões ao julgamento de
pode dizer: “Questiona tanto quanto seu público. Um cidadão não pode deixar
quiseres, e sobre o que quiseres, mas de pagar os impostos que lhe são
obedeça!”. Nós encontramos restrições à cobrados – e impertinentes críticas a
liberdade em todo lugar. Mas qual esses impostos podem ser punidas (como
restrição é nociva ao esclarecimento? um escândalo que pode provocar uma
Qual restrição é livre de erros e qual desobediência geral). Não obstante, tal
antecede o esclarecimento? Eu homem não viola os deveres de um
respondo: o uso público da razão deve cidadão se, como um scholar,
ser livre todo o tempo e somente isso publicamente expressa suas objeções a
pode levar esclarecimento à respeito da inadequação ou possível
humanidade. injustiça de tais impostos.

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Um pastor também é limitado a pregar ilimitada para usar sua própria razão e
para sua congregação de acordo com as para falar por si. Que os guardiães
doutrinas da igreja à qual serve, pois ele espirituais do povo devam tratar a si
foi ordenado para isso. Mas como um mesmos como menores é um absurdo
scholar ele tem completa liberdade, na que resultaria em perpétuos absurdos.
verdade, a obrigação, de comunicar a seu
público todos os seus pensamentos No entanto, deve uma sociedade de
cuidadosamente examinados e ministros, digo um Conselho
construídos a respeito dos erros nessa Eclesiástico, ter o direito de se
doutrina e expor suas proposições a comprometer, por juramento, com uma
respeito do progresso do dogma religioso doutrina inalterável de modo a
e das instituições eclesiásticas – o que assegurar-se como guia perpétuo acima
não é nada que possa sobrecarregar a sua de todos os seus membros e, através
consciência. No entanto, quando ensina destes, acima do povo? Eu digo que isso
seguindo seu ofício de representante da é praticamente impossível. Tal contrato
igreja, o pastor representa alguma coisa – concluído para privar a humanidade de
da qual ele não é livre para ensinar tanto qualquer novo esclarecimento – é
quanto observar. Ele fala como alguém simplesmente nulo ou vazio, mesmo que
que é empregado para falar em nome e tenha sido confirmado por um poder
sob as ordens de alguém. O pastor dirá: soberano, parlamentos e pelos tratados
“Nossa igreja ensina isso ou aquilo; estas mais solenes. Uma época não pode fazer
são as provas que ela usa”. Nesse um pacto que comprometa as idades
sentido, ele beneficia a sua congregação futuras, não pode evitar que elas
tanto quanto possível por apresentar aumentem suas significantes
doutrinas nas quais não acredita inspirações, purifiquem-se de erros e
completamente, mas se compromete em gradativamente progridam no
ensiná-las pois não é completamente esclarecimento. Isso seria um crime
impossível que elas não possam conter contra a natureza humana, cujo destino
alguma verdade oculta. Em todo caso, assenta-se justamente em tal progresso.
ele não encontrou nada nas doutrinas que Portanto, as idades futuras têm pleno
contradiga o coração da religião. No direito de repudiar tais decisões como
entanto, se ele acredita que tais desautorizadas e ultrajantes. A pedra de
contradições existem, ele não estaria toque de todas essas decisões – que
mais habilitado para administrar seu devem tornar-se leis para um povo –
ofício com clareza de consciência. Ele baseia-se nesta questão: Poderia um
teria que renunciar ao seu cargo. povo impor tal lei a si mesmo?

Portanto, o uso que um scholar faz de sua Pode ser possível introduzir no momento
razão diante da congregação que o presente uma ordem provisória enquanto
emprega é somente um uso privado (para se espera uma ordem melhor. Entretanto,
uma audiência doméstica), não importa o enquanto tal ordem provisória continuar,
quão importante seja. Em vista disso, o cada cidadão – e, acima de tudo, cada
pastor, como um pregador, não é livre e pastor atuando como scholar – deve ser
nem deve ser livre se ele está livre para publicar suas críticas das
encarregado das ordens de alguém. Por falhas das instituições existentes. Isso
outro lado, como um scholar que fala deve continuar até que a compreensão
para seu público (o mundo) através de pública dessas questões vá tão longe que
seus escritos, o ministro – no uso público – unindo a voz de muitos scholars, mas
de sua razão – goza de liberdade não necessariamente todos – as

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propostas de reforma possam ser trazidas modo a apoiar o despotismo espiritual de
diante do soberano para proteger aquelas uns poucos tiranos no Estado em
congregações que tenham decidido, de prejuízo do restante dos súditos.
acordo com suas melhores luzes, alterar
a ordem religiosa, sem prejuízo, Quando nós perguntamos “Vivemos
entretanto, para aquelas congregações agora numa época esclarecida?”. A
que queiram sinceramente permanecer resposta é “Não”, mas vivemos numa
nas instituições antigas. Mas concordar época de esclarecimento7. Tal como as
com uma constituição religiosa perpétua coisas se apresentam agora, estamos
não passível a ser publicamente longe de ver homens verdadeiramente
questionada por ninguém seria, como capazes de usar sua própria razão em
foi, aniquilar um período para o assuntos religiosos de forma confiante e
progresso do aperfeiçoamento humano. correta sem guias externos. No entanto,
Isso deve ser absolutamente proibido. temos óbvias indicações de que o campo
de trabalho em direção à meta [da
Um homem pode postergar seu próprio verdade religiosa] está sendo aberto
esclarecimento, mas somente por um agora. Mais ainda: os impeditivos contra
período limitado. No entanto, suspender o esclarecimento geral ou contra a saída
o esclarecimento de uma só vez, para si de uma menoridade autoimposta estão
mesmo ou para seus descendentes, é diminuindo gradativamente. Nesse
violar e pisar nos sagrados direitos do sentido, esta é a idade do esclarecimento
homem. O que um povo não pode decidir e o século de Frederico, o Grande.
por si mesmo, menos ainda pode ser
decidido por um monarca, pois sua Um príncipe não deve pensar que
reputação como administrador consiste desqualifica a dignidade de seu
precisamente na maneira que une a estamento pelo fato de não considerar ser
vontade de todo o povo com a sua seu dever guiar seus súditos em assuntos
própria. Se o monarca percebe que toda religiosos; pelo contrário, ele deve deixá-
verdade ou suposto progresso [religioso] los em completa liberdade. Se ele
permanece regulado ao nível da ordem repudia a arrogante palavra tolerante, ele
civil, ele pode para o restante das coisas é em si mesmo esclarecido; ele merece
da fé deixar seus súditos livres para ser louvado por um mundo gracioso e
fazerem o que acharem necessário para a próspero, como um homem que primeiro
salvação de suas almas. Salvação não é soube libertar a humanidade da
assunto para monarca; é seu atributo dependência (ao menos de guia) e deixar
impedir que todo homem seja compelido todos usarem sua própria razão em
por outrem em matéria de fé, para que assuntos de consciência. Em seu reinado,
possa promover a sua própria salvação pastores honrosos – atuantes como
da melhor forma possível. De fato, seria scholar, malgrado os deveres de ofício –
prejudicial para a sua majestade que o podem publicar livre e abertamente suas
monarca se imiscuísse nestes assuntos e ideias para o mundo avaliá-las, mesmo
vigiasse os escritos nos quais seus que desviem aqui ou ali da doutrina
súditos expõem suas visões [religiosas], aceita. Isso é tanto mais verdadeiro para
mesmo quando baseado na mais alta as pessoas que não estão sujeitas a
inspiração, pois assim expor-se-ia à juramento de ofício. Este espírito de
reprovação: Caesar non est supra liberdade está espalhando-se para além
grammaticos [César não está acima dos das fronteiras [da Prússia], mesmo onde
gramáticos]. É ainda pior quando o tem tido que lutar contra os impeditivos
monarca degrada seu poder soberano de externos estabelecidos por um governo

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que falha em compreender seu Somente o homem esclarecido, que não
verdadeiro interesse. [Frederico II da teme as sombras e comanda um exército
Prússia] é um claro exemplo de que a ao mesmo tempo bem disciplinado e
necessidade de liberdade não provoca o numeroso como mantenedor da paz
menor estorvo à ordem pública ou à pública, pode dizer aquilo que [o
unidade da comunidade. soberano de] um estado livre não pode
Quando deliberadamente não se mantém ousar dizer: “Questiona tanto quanto
os homens no barbarismo, eles quiseres, e sobre o que quiseres, mas
gradativamente superam tal condição obedeça!”. Assim, nós observamos aqui,
por si mesmos. Eu tenho enfatizado o como em qualquer outro assunto humano
ponto principal do esclarecimento – o (em que quase tudo é paradoxal), uma
homem sair de sua autoimposta surpreendente e inesperada cadeia de
menoridade – primeiramente em acontecimentos: se um amplo grau de
assuntos religiosos porque nossos liberdade civil parece ser vantajoso para
administradores não têm interesse em se a liberdade intelectual das pessoas, isso
manter no papel de guardiães de seus ao mesmo tempo estabelece insuperáveis
súditos nas artes e nas ciências. Acima de barreiras; entretanto, um grau menor de
tudo, menoridade em religião não é liberdade civil dá a oportunidade para o
apenas nociva, mas desonrosa. Mas a espírito expandir-se até o limite de sua
disposição de um governo soberano em capacidade. Por isso, a natureza tem
favorecer a liberdade nas artes e ciências cultivado cuidadosamente a semente
vai mais além: o governante sabe que dentro de uma casca dura –
não há perigo em permitir que seus nomeadamente, o desejo de e a vocação
súditos façam uso público de sua razão e para o livre pensamento. E quanto mais
publiquem suas ideias a respeito da este livre pensamento gradativamente
melhor constituição, assim como as suas resiste aos modos de pensamento do
cândidas críticas às leis básicas povo, mais os homens tornam-se cada
existentes. Nós já temos um flagrante vez mais capazes de agir em liberdade.
exemplo [de tal liberdade], e nenhum Enfim, o livre pensamento age até
monarca pode igualar-se àquele que nós mesmo nos fundamentos de governo, e o
veneramos. Estado acha isso agradável para tratar o
homem – que é agora mais do que uma
máquina – de acordo com sua dignidade.

1 3
Ver: “As 95 Teses de Lutero”. In Revista O termo está no mesmo campo semântico de
Espaço Acadêmico, n. 34. Maringá: UEM, imaturidade, condição de menor, daquele que é
março de 2004. dependente da tutela de outrem e que, nesse
2 sentido, exerce sobre ele uma autoridade de
Em alemão: “Was ist Aufklaerung?”. Optei
pater, guia, condutor etc. (N.T.)
pelo termo “Esclarecimento” e não “Iluminismo”
4
ou “Iluminação” porque está mais próximo do Kant (1724-1804) refere-se a Frederico II
sentido original, ou seja, esclarecer-se, ilustrar- (1712-1786), o Grande, rei da Prússia desde
se, por-se à luz do entendimento autônomo. (In: 1740. Foi celebrado nos meios intelectuais
JACOB, Margaret C.. The Enlightment: A Brief iluministas por ser um mecenas das artes e
History with Documents. Boston/New York: ciências, dialogando com muitos philosophes da
Bedford/St. Martin’s, 2001, pp.202-208. Notas e França – a ponto de transformar o francês numa
tradução do inglês são da inteira língua culta para comunicação em sua corte.
responsabilidade de Alexander Martins Vianna – Antes de iniciar a Guerra dos Sete Anos (1756-
Departamento de História, FEUDUC-RJ).

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sistemas-perito, que são os efetivos
1763), contava com grande simpatia de Voltaire criadores/programadores das agendas de escolha
(1694-1778). ou leques de opções das multidões. Nesse
5
sentido, aplicando tal análise às ideias de Kant
No sentido de erudito com profundo sobre o “uso privado da razão”, observamos um
conhecimento de um assunto específico. limite à liberdade, pois, em face das
6
Em seu livro "Modernidade e Identidade"(Rio especialidades existentes numa sociedade,
de Janeiro: Jorge Zahar, 2002), Anthony Giddens haverá sempre “cidadão passivos” em relação a
enfoca o indivíduo e os vários processos algum assunto. Logo, se uma sociedade em
reflexivos de construção de identidade na processo de esclarecimento pressupõe um tipo de
sociedade moderna (sécs. XIX-XX), em que liberdade ancorada na autonomia moral, tal
afirma que, até a década de 1950, era possível liberdade é relativizada por contextos funcionais:
observar um indivíduo ainda pressionado entre Você tem liberdade de criticar as coisas em
formas pré-modernas (mais fixistas) de relação às quais tenha conseguido pleno
identidade e os novos valores, típicos da esclarecimento, ou seja, aquelas em que você seja
modernidade, ligados à velocidade e à liberdade scholar, caso contrário, o preconceito será o guia
de ação, escolha e autoconstituição. No entanto, de seu julgamento.
Giddens lembra que a liberdade de 7
O processo está em andamento e não concluído,
autoconstituição reflexiva chocava-se com um mesmo porque não há conclusão para o processo
leque preestabelecido de opções. Ele entende tal de “esclarecimento”. O homem está sempre em
fenômeno como associado à especialização movimento de aperfeiçoamento de seu
tecnológica do trabalho e à multiplicidade de entendimento.
papéis sociais, percebendo que a autonomia na
modernidade é em larga medida constrangida
pelo próprio processo de modernização da vida
social, que torna todos impessoalmente reféns de

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