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CASTRAVECHI, L.A.

A Prelazia de São Félix do Araguaia e a luta pela terra em


Porto Alegre do Norte/ Mato Grosso (1970-1980): migração e conflito no campo.
317p. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em História, Universidade
Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2017.

RESUMO

Este trabalho analisa a luta pela terra em Porto Alegre do Norte, no nordeste do
estado de Mato Grosso, entre as décadas de 1970 e 1980. Tem como objeto de
estudo os conflitos e as violências decorrentes da expulsão de posseiros pelas
empresas agropecuárias FRENOVA e Piraguassu, estabelecidas naquele
município durante a década de 1970, através das políticas de ocupação da
Amazônia pelo Governo Ditatorial. Estes empreendimentos foram sobrepostos em
meio às terras de trabalhadores rurais que residiam na região desde a década de
1940, assim, ocorreram as disputas por terras entre estes indivíduos e os
empresários rurais provenientes do Centro-Sul do país. A Prelazia de São Félix do
Araguaia, juntamente com os agentes de pastorais, leigos, religiosos e o bispo
Dom Pedro Casaldáliga, agiu como mediadora no processo de luta pela terra,
recorrendo aos poderes públicos (Polícia Militar e Federal e ao INCRA), bem
como aos proprietários das fazendas e funcionários para que estes pudessem entrar
em acordo para demarcar as terras dos posseiros de Porto Alegre do Norte. Este
processo acarretou, num primeiro momento, uma negociação pacífica
intermediada por Dom Pedro Casaldáliga junto à FRENOVA, posteriormente as
resistências e os conflitos dos posseiros contra a expulsão das suas posses
colocaram a área da Prelazia de São Félix do Araguaia sob suspeita de manter
elementos subversivos na sua jurisdição e estar aliada à Guerrilha do Araguaia,
descoberta no ano de 1972 na região do Bico do Papagaio entre o sul do Pará e
norte de Goiás (atual Tocantins). Desse modo, no ano de 1973, religiosos, leigos e
agentes de pastorais foram sequestrados e presos no Quartel da 14ª Polícia do
Exército na cidade Campo Grande/MS, onde vivenciaram dias de horrores e
torturas. A luta pela terra também envolveu pistoleiros, Polícias Militar e Federal,
Exército e Igreja Católica, produzindo na questão agrária em Porto Alegre do
Norte uma espacialidade demarcada pela resistência e estratégias dos
trabalhadores rurais para a permanência nas suas posses.

Palavras-chave: Prelazia de São Félix do Araguaia. Porto Alegre do Norte.


Violência no Campo. Posseiros.
ABSTRACT

This paper analyzes the struggle for land in Porto Alegre do Norte in northeastern
Mato Grosso, between the 1970s and 1980. Its object of study conflicts and
violence resulting from squatter eviction by agribusinesses - FRENOVA and
Piraguassu established in that city during the 1970s, through the Amazon
occupation policies by the Government Dictatorial. These projects were
overlapping among the lands of rural workers living in the area since the 1940s,
so there were disputes over land between these individuals and rural entrepreneurs
from the Central South. The Prelature of São Félix do Araguaia, together with
pastoral agents, lay, religious and Bishop Pedro Casaldáliga, acted as a mediator
in the process of struggle for land, using public powers (Military and Federal
Police and the INCRA) and as to the ranch owners and employees so that they
could enter into an agreement to demarcate the lands of squatter Porto Alegre do
Norte. This process resulted initially in a peaceful negotiation brokered by Dom
Pedro Casaldáliga next to FRENOVA, posteriorly the problems and conflicts of
squatters against the expulsion of his possessions put the area of the Prelature of
São Félix do Araguaia under suspicion this keep subversive elements in their
jurisdiction and be combined with the Araguaia guerrilla movement, discovered in
1972 in the region Parrot's beak between southern Pará and northern Goiás (now
Tocantins). Thus, in 1973, religious, laity and pastoral agents were kidnapped and
imprisoned in the barracks of the 14th Army Police in the city Campo Grande /
MS, where experienced days of horror and torture. The struggle for land also
involved gunmen, Police Military and Federal Army and the Catholic Church,
producing the agrarian issue in Porto Alegre do Norte one spatiality marked by
resistance and strategies of rural workers to stay in their possessions.
Keywords: Prelazia de São Félix do Araguaia. Porto Alegre do Norte. Violence
in the Countryside. Squatters.
DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Benedito e Dalva,


por todo amor e esforços
dedicados à minha educação.
AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal de Mato Grosso e ao seu corpo docente do


Programa de Pós-Graduação em História.
Ao IFPA Campus Marabá Rural pela flexibilização do meu horário de
trabalho e consentimento do afastamento para o término do doutorado.
À Capes pelo financiamento da pesquisa via bolsa entre os anos de
2014 e 2016.
Ao meu orientador, Vitale Joanoni Neto, que ao longo desses dez anos
contribuiu para o meu crescimento acadêmico e profissional. Pelas longas horas
de conversas vivenciadas no NPH regadas por muita descontração e dedicação,
atribuindo leveza às minhas análises sobre a violência no campo.
Ao Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia e sua colaboradora,
Zilda, que me ajudou na coleta da documentação e esclarecimento sobre a
composição do acervo.
Ao Paulo Coutinho Soares, que me auxiliou no deslocamento em São
Félix do Araguaia para entrevistar algumas testemunhas, visitar Dom Pedro
Casaldáliga e me enviar cópias de documentos.
Ao professor de geografia do IFMT, Campus Alta Floresta, Flávio
Antônio Lucio Alves, pela confecção gratuita dos mapas expostos nesta tese.
À professora de história Maria Cantuário pela gentileza e acolhida em
Porto Alegre do Norte.
Ao professor de história da educação básica de Porto Alegre do Norte,
Justiniano Pereira Sales, pela ajuda no levantamento das testemunhas que se
dispuseram a me ceder entrevistas para a escrita desta tese.
Ao agente de pastoral José Gomes Vieira pela ajuda imprescindível
durante a minha estadia em Porto Alegre do Norte, no deslocamento pelo
município e pelas cidades de Canabrava do Norte e Confresa para a coleta das
entrevistas, convivência na sede paroquial de Porto Alegre do Norte, acolhida e
hospitalidade direcionadas no período em que realizei a pesquisa de campo na
região.
Às testemunhas que cederam os seus relatos, tempo e confiança, que
me auxiliaram na composição das narrativas que expressam a luta pela terra em
Porto Alegre do Norte.
Aos meus pais, Benedito Castravechi e Dalva Moraes Castravechi, por
todo incentivo, amor e cuidado direcionados durante o processo de escrita da tese.
Às minhas irmãs, Márcia e Rozeene, e aos meus sobrinhos, Jeferson,
Mayara, Anderson, Alison e Bárbara, pela compreensão da minha ausência nas
reuniões familiares.
Ao meu namorado, André Vitto, por todo companheirismo, amizade,
compreensão, cuidado e incentivo durante a finalização desta tese. A sua presença
foi imprescindível para a concretização deste trabalho.
À minha amiga Natalia Madureira por sua cumplicidade, serenidade e
compartilhamento de amor na forma de sabedoria e apoio. Pelas longas horas de
conversas que contribuíram para o meu crescimento pessoal e espiritual.
Ao meu amigo Rafael Adão pela amizade que construímos no início
do meu doutorado. O seu modo de agir, a sua postura acadêmica e política me
fazem acreditar que um mundo melhor é possível.
Aos amigos Alexandre, Beatriz, Fernanda Nicoli e Ruan pela amizade
e pelos memoráveis momentos que compartilhamos, especialmente na UFMT e na
casa do nosso querido Rafa.
EPÍGRAFE

Ana Felicia de Araújo


Lista de Abreviaturas

ABIN Agência Brasileira de Inteligência

AGROPASA Agropecuária do Araguaia

AESI Assessoria Especial de Segurança e Informação

AEA Associação de Empresários da Amazônia

ALN Aliança Libertadora Nacional

BASA Banco da Amazônia

BNM Brasil Nunca Mais

Capes Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEBs Comunidades Eclesiais de Base

CIA Agência Central de Inteligência

CIMI Conselho Indigenista Missionário

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CODEARA Companhia de Desenvolvimento do Araguaia

CODEMAT Companhia de Desenvolvimento de Mato Grosso

COREBRASA Colonizadora e Representações do Brasil S.A

CPI Comissão Parlamentar de Inquérito

CPT Comissão Pastoral da Terra

DDL Departamento de Desenvolvimento Local

DOPS Departamento de Ordem Política e Social

DRH Departamento de Recursos Humanos

DSIs Divisões de Segurança e Informações

DSN Doutrina de Segurança Nacional


DTC Departamento de Terras e Colonização

FAPEMAT Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso

FMI Fundo Monetário Internacional

FETAGRI Federação dos Trabalhadores na Agricultura

FRENOVA Fazendas Reunidas Nova Amazônia S/A

FUNAI Fundação Nacional do Índio

GEA Ginásio Estadual do Araguaia

GETAT Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins

GPHTT Grupo de Pesquisa em História Terra e Trabalho

IBRA Instituto Brasileiro de Reforma Agrária

IFMT Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso

IFPA Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INDECO Integração, Desenvolvimento e Colonização

INSS Instituto Nacional do Seguro Social

INTERMAT Instituto de Terras de Mato Grosso

IPES Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

KGB Comitê de Segurança do Estado

MO Movimento Operário

MOBRAL Movimento Brasileiro em Prol da Alfabetização

MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

ONG Organização Não Governamental

NPH Núcleo de Pesquisa em História

PAC Projeto de Assentamento Conjunto


PAN Porto Alegre do Norte

PC do B Partido Comunista do Brasil

PIBIC Programa de Iniciação Científica

PIN Programa de Integração Nacional

PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro

POLOAMAZÔNIA Programa Polos Agropecuários e Agrominerais da


Amazônia

POLOCENTRO Programa de Desenvolvimento dos Cerrados

PNRA Plano Nacional de Reforma Agrária

PPGHIS Programa de Pós-Graduação em História

PROBOR Superintendência da Borracha

PROTERRA Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à


Agroindústria do Norte e Nordeste

SERVAP Serviços Auxiliares da Agropecuária Ltda.

SFA São Félix do Araguaia

SINOP Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná

SISNI - Sistema Nacional de Informações

SNI Serviço Nacional de Informação

SPI Serviço de Proteção ao Índio

SPVA Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia

STRs Sindicato dos Trabalhadores Rurais

STZ Santa Terezinha

SUDAM Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia

SUDECO Superintendência de Desenvolvimento da Região Centro-Oeste

SUFRAMA Superintendência da Zona Franca de Manaus


UFMT Universidade Federal de Mato Grosso

VIC Voluntário de Iniciação Científica

VPR Vanguarda Popular Revolucionária


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................18

1. MIGRAÇÕES E OCUPAÇÕES NO ARAGUAIA MATO-GROSSENSE .........56

1.1 Histórico de Ocupação de Porto Alegre do Norte: o cenário da vida dos


posseiros antes da chegada das empresas agropecuárias.................................... 70

1.2 A constituição do patrimônio de Porto Alegre do Norte: uma espacialidade


traçada pela mobilidade e história de famílias..................................................... 90

2. OS PROJETOS AGROPECUÁRIOS E DE COLONIZAÇÃO NA


AMAZÔNIA LEGAL DURANTE A DÉCADA DE 1970.......................................104

2.1 O estabelecimento dos empreendimentos agropecuários no nordeste de Mato


Grosso ................................................................................................................. 112

2.2 A venda de terras no estado de Mato Grosso............................................. 116

2.3 Dom Pedro Casaldáliga e a sua missão no Araguaia................................ 119

2.4 A Implantação da FRENOVA em Porto Alegre do Norte .......................... 128

2.5 Porto Alegre do Norte sob suspeita de atos guerrilheiros ......................... 142

2.6 A intensificação da exclusão social através da violência .......................... 158

3. A REPRESSÃO MILITAR COMO RESPOSTA AOS CONFLITOS DE


TERRA.........................................................................................................................170

3.1 O violento ano de 1973 e os relatos de torturas na Prelazia de São Félix do


Araguaia.............................................................................................................. 176

4. AS TÁTICAS DE ENFRENTAMENTOS E A RESISTÊNCIA DOS


POSSEIROS NA LUTA PELA TERRA EM PORTO ALEGRE DO NORTE ....224

Piraguassu .......................................................................................................... 226


....................... 229

Capixaba ............................................................................................................. 266

CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................282

BIBLIOGRAFIA................................................................................................ 292

Periódicos e Anais de Eventos.......................................................................... 299

Webgrafia ......................................................................................................... 301

Dissertações, Teses e Monografias .................................................................. 302

Documentos ...................................................................................................... 304

Jornais e Revistas ............................................................................................. 307

Sites................................................................................................................... 308

Entrevistas ........................................................................................................ 309

Filmografia ....................................................................................................... 310

ANEXOS ......................................................................................................................311
INTRODUÇÃO

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os


grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do
que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a
história. Sem dúvidas, somente a sociedade redimida poderá
apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer:
somente para a sociedade redimida o passado é citável, em cada
um dos seus momentos1.

Inicio este texto com a escrita na primeira pessoa do singular, mas


sempre fui orientada a utilizar a terceira pessoa ou o infinitivo verbal. Entretanto,
na introdução, escolhi o uso da primeira pessoa para descrever o percurso traçado
dessa pesquisa, pois o interesse pela temática é resultado dos meus vínculos
pessoais, primeiramente com o histórico das cidades de colonização, logo após
sobre as relações de trabalho naquelas espacialidades e, por fim, a violência
expressa no processo de (re)ocupação2 recente da Amazônia. Após a
apresentação, a escrita dos capítulos que compõem esta tese estará na primeira
pessoa do plural, tendo em vista que esta investigação é fruto de um lugar, ou seja,
do PPGHIS/UFMT, em que estabeleci relações com os professores, assim como
com os autores que me ajudaram a pensar o tema, o convívio no NPH e a
orientação do professor Vitale Joanoni Neto na constituição deste estudo como
um trabalho em conjunto.
A presente pesquisa é resultado de uma trajetória traçada desde o
início da Graduação em História (2007), perpassando o Mestrado (2010) e
resultando no tema da tese em questão. Estudar a história recente de Mato Grosso
possui relação com a atividade trabalhista que o meu pai desempenhava como
gerente de uma fazenda no município de Itanhangá, a 458 km de Cuiabá. Ao

1
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1987, p. 223.
2
Remetemos ao processo de (re)ocupação para demonstrarmos que a Amazônia já era ocupada por
etnias indígenas e povos da floresta, antes da entrada das empresas agropecuárias e projetos de
colonização implantados durante a ditadura civil militar no Brasil, a qual alegava que o interior do
país, ou seja, a Amazônia Legal era considerada como espaços vazios. A respeito, consultar:
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil
contemporâneo. Cuiabá: UNICEN, 1986.
viajar para o norte de Mato Grosso, pude perceber que as configurações urbanas
daquelas cidades eram bem diferentes da capital do Estado. As ruas são largas e
planejadas, com praças e jardins nos centros das cidades, as pessoas em sua
maioria tinham origem dos Estados do Sul do Brasil. Com apenas dezessete anos,
aquelas particularidades me chamaram muito a atenção. Assim, ao entrar no curso
de História, conheci o Professor Vitale Joanoni Neto, que me convidou para fazer
parte de uma viagem a campo, financiada pela FAPEMAT, juntamente com o
professor João Carlos Barrozo e a equipe de pesquisadores da professora Júlia
Adão Bernardes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Passamos quinze dias
do mês de julho de 2007 conhecendo e pesquisando os municípios3 ao longo da
BR 158.
Em decorrência das inquietações e curiosidades que eu tinha desde
adolescente sobre o processo de (re)ocupação recente do estado de Mato Grosso, a
viagem realizada pela BR 158 direcionou o meu olhar primeiramente como
pesquisadora VIC para o Projeto de Colonização da cidade de Canarana na década
de 1970. Como bolsista PIBIC no ano de 2008, passei a pesquisar sobre a
violência no uso do trabalho análogo ao de escravo pelas empresas agropecuárias
estabelecidas no Araguaia mato-grossense a partir da década de 1970. A violência
contida nas relações trabalhistas no nordeste de Mato Grosso também foi

Araguaia: A exploração de trabalhadores migrantes no nordeste de Mato Grosso


4
. Essa temática me chamou a atenção, pois na fazenda

3
A viagem a campo ocorreu nos seguintes municípios do nordeste de Mato Grosso: Água Boa,
Canarana, Confresa, Porto Alegre do Norte, Ribeirão Cascalheira, Santa Terezinha e Querência.
4
Após a defesa da dissertação no ano de 2012, ingressei como bolsista no Projeto Ação
Interinstitucional para a Qualificação e Reinserção Profissional dos Trabalhadores Resgatados do
Trabalho Escravo e/ou Situação de Vulnerabilidade, parceria entre Ministério do Trabalho e
Emprego de Mato Grosso (SRTE/MT), Ministério Público do Trabalho, através da Procuradoria
Regional do Trabalho 23ª Região (PRT/MT), e UFMT, representada pelo GPHTT, coordenado
pelo professor Vitale Joanoni Neto. Ao ingressar no Doutorado em História no ano de 2013,
para o uso de mão de obra de egressos do trabalho
análogo ao escravo em atividades de construção civil a partir da experiência da Arena Pantanal em

Feitosa e Adriano Knippelberg Moraes.


que o meu pai gerenciava havia o contrato temporário de trabalhadores migrantes
para a catação de raízes presentes no solo após o desmatamento da área da
fazenda destinada ao plantio de soja. Essa atividade era desempenhada a duras
penas, sob o sol escaldante, com alojamentos improvisados em meio à mata e a
alimentação realizada em barracas armadas próximas aos córregos no espaço de
preservação da floresta do empreendimento rural. Quando me deparei com tal
situação no ano de 2005, meu pai e eu não tínhamos a dimensão de que aquela
relação trabalhista se configurava como trabalho análogo ao de escravo. Desse
modo, ao analisar a documentação da Prelazia de São Félix do Araguaia5 no ano
de 2007, tomei conhecimento dos vários casos de trabalho escravo contemporâneo
nas companhias agropecuárias da região e, então, decidi analisá-los e entender a
permanência de condições arcaicas e degradantes de trabalho6 no estado de Mato
Grosso.
Diante das leituras realizadas para a escrita da dissertação, também
pude conhecer o histórico da migração de trabalhadores rurais 7 para o nordeste de
Mato Grosso no início do século XX, e as lutas desempenhadas por estes pela
permanência na terra no final da década de 1960, com a entrada das empresas
agropecuárias na Amazônia. Dentre os quatorzes municípios que compõem a

5
Conforme informações contidas da carta pastoral de Dom Pedro Casaldáliga, o decreto de criação
da Prelazia de São Félix do Araguaia, denominado de "Quo commodius", foi assinado por Paulo
VI, no dia 13 de março de 1970, estabelecendo os limites estritos da Prelazia de São Félix: "Ao
norte, os confins da Prelazia de Conceição do Araguaia, que atualmente delimitam os estados do
Pará e Mato Grosso; ao leste, os confins da Prelazia de Cristalândia, e ao oeste os da Prelazia de
Diamantino, ou seja, os rios Araguaia e Xingu; ao sul, a linha traçada em direção noroeste desde a
confluência dos rios Curuá e das Mortes; e daí em linha reta até a confluência dos rios Couto de
Magalhães e Xingu". A Prelazia de São Félix abrange 150.000 km² dentro da Amazônia Legal, no
nordeste de Mato Grosso, e com a Ilha do Bananal. CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da
Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. São Félix do Araguaia, 1971, p.
4.
6
No ano de 2010, em que eu escrevia a minha dissertação de Mestrado, o estado de Mato Grosso
ocupava o sexto lugar do ranking na lista de empregadores que contratam trabalhadores em

municípios mato-grossenses: em Várzea Grande, Poconé, Novo São Joaquim, Alto Garças, Santa
Terezinha, Paranatinga, Confresa, Porto dos Gaúchos, Nova Bandeirantes, Nova Ubiratã e Novo
Mundo. Disponível em: <http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=74636>. Acesso
em: 08 jan. 2016.
7
Ao longo da escrita desta tese iremos utilizar o termo trabalhador rural para designar de modo
geral, os homens e as mulheres que participaram na luta pela terra em Porto Alegre do Norte.
Microrregião8 do Norte Araguaia9, a cidade de Porto Alegre do Norte aguçou o
meu interesse em estudar a trajetória das migrações para a Amazônia, o processo
de luta pela terra e a mediação da Prelazia de São Félix do Araguaia10, juntamente
com Dom Pedro Casaldáliga11 na resolução dos conflitos entre os
empreendimentos rurais e os posseiros12.
Em relação à espacialidade descrita acima, é importante destacar que
ao longo da tese utilizarei o termo região para denominar as áreas tanto de
deslocamento migratório de famílias quanto a de estabelecimento das empresas
agropecuárias na Amazônia e Araguaia mato-grossense. Apoio-me nas categorias
espaciais de região formuladas pelo IBGE, que define o nordeste de Mato Grosso
8
Em 1987, o IBGE elaborou o estudo da Divisão Regional do Brasil em Mesorregiões e
Microrregiões Geográficas para fins estatísticos em substituição à Divisão Regional em
Microrregiões homogêneas editadas pelo Instituto em 1968. Na década de 1990, o IBGE definiu as
Mesorregiões Geográficas como conjuntos de municípios contíguos, pertencentes à mesma
Unidade da Federação, e as Microrregiões Geográficas como conjuntos de municípios contíguos
integrantes das mesorregiões que apresentam especificidades, quanto à organização do espaço do
quadro natural e sobre as relações sociais e econômicas que compunham a vida de relações locais.
IBGE. Divisão Regional do Brasil em Mesorregiões e Microrregiões Geográficas, v.1. Rio de
Janeiro, 1990.
9
A Microrregião do Norte Araguaia é composta pelos municípios de Santa Cruz do Xingu, Vila
Rica, Confresa, Santa Terezinha, Porto Alegre do Norte, São José do Xingu, São Félix do
Araguaia, Canabrava do Norte, Luciara, Alta Boa Vista, Serra Nova Dourada, Bom Jesus do
Araguaia, Novo Santo Antônio e Ribeirão Cascalheira. A Mesorregião do Nordeste Mato-
Grossense é uma das cinco Mesorregiões do estado de Mato Grosso. É formada pela união de 25
municípios agrupados em três Microrregiões que são: Canarana, Médio Araguaia, Norte Araguaia.
Ver em anexos: Mapa (Figura 1) de Mato Grosso com as Mesorregiões e Microrregiões.
10
A Prelazia é composta por quinze municípios: Santa Cruz do Xingu, Vila Rica, Confresa, Santa
Terezinha, Porto Alegre do Norte, São José do Xingu, São Félix do Araguaia, Canabrava do Norte,
Luciara, Alta Boa Vista, Serra Nova Dourada, Bom Jesus do Araguaia, Novo Santo Antônio,
Ribeirão Cascalheira e Querência (este último faz parte da Microrregião Canarana). Ver anexo o
Mapa (Figura 2) com o destaque dos municípios.
11
Dom Pedro Maria Casaldáliga nasceu em Balsareny, cidade da Província Catalã de Barcelona, no
dia 16 de fevereiro de 1928; Casaldáliga ingressou na Ordem Claretiana, consagrada às missões,
onde foi ordenado sacerdote em 1943. No ano de 1968, Dom Pedro Casaldáliga veio para o
Araguaia mato-grossense como missionário para assumir as responsabilidades pastorais. Sentiu-se
convocado, diante dos problemas encontrados, além das diligências religiosas, investiu tempo e
energia na organização de indígenas e posseiros e nas denúncias das violações dos direitos
humanos que estes e os peões sofriam. Em 1971, ordenaram-no Bispo da Prelazia de São Félix do
Araguaia. Em 2003, ao completar 75 anos, Casaldáliga apresentou seu pedido de renúncia à
Prelazia, como exige o Vaticano de todos os Bispos, exceto ao de Roma, o papa.
12
Para Miranda, o conceito de posseiro, no Direito brasileiro, é todo trabalhador rural que,
independente de justo título e boa-fé, apossa-se de imóvel rural, público ou privado, tornando-o
produtivo com o seu trabalho e nele tiver morada habitual. MIRANDA, Alcir Gursen de. Direito
Agrário e o Posseiro. Revista da Faculdade de Direito UFG, Goiânia, v. 12, n. ½, p. 113-123,
jan./dez. 1988, p. 122.
como a Microrregião Norte do Araguaia, bem como o norte do Estado com os
municípios que integram a Amazônia Legal.
A delimitação de uma região é um processo delicado para a geografia,
pois a sua organização implica a homogeneização de determinados aspectos que
sejam distintos de outros. Para Pierre Bourdieu13, a região é uma representação
que depende do conhecimento e reconhecimento daqueles que a projetaram. O
autor ainda demonstra que existem diversos elementos que estabelecem a divisão,
classificação e interação dos espaços, assim, a definição científica de região está

implica um conjunto de pressupostos, por vezes ocultos nos diferentes usos do


termo.
Em relação à Amazônia, várias representações foram formuladas no
imaginário brasileiro a respeito da região, tendo-se como exemplo as propagandas
governamentais difundidas pelo governo de Getúlio Vargas e no período da
ditatura militar que anunciavam um plano de desenvolvimento para aquela área.
Neste sentido, o conceito de região, especificamente da Amazônia, parte de uma
formulação entre os discursos da mídia, do governo e da academia, já que a sua
conceituação abrange uma série de lutas e interesses. No que se refere ao período
de estudo, a Amazônia cumpriu um papel fundamental para os ideais políticos e
econômicos do governo ditatorial, tendo em vista que a criação da Amazônia
Legal legitimou a (re)ocupação da região respaldada pela Doutrina de Segurança
Nacional e expansão capitalista no campo.

13
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: DIFEL, 1989.
(Grifo do autor).
Mapa 1: Prelazia de São Félix do Araguaia em relação ao estado de Mato Grosso e ao Brasil.
Os estudos sobre os processos migratórios para o nordeste de Mato
Grosso14 apontam que estes foram realizados ao longo do início do século XX,
criando diversos povoados, tais como: Furo de Pedras (1909), Lago Grande,
Crisóstomo, Luciara (1934), São Félix do Araguaia (1942) e Porto Alegre do
Norte (1949). A respeito dos povos indígenas que ocupavam a região, Soares15
demonstra que, até o final do século XIX, o Vale do Araguaia, entre os rios
Tapirapé ao norte, Araguaia ao leste, Xingu ao oeste e o das Mortes ao sul, era
território ocupado pelos povos Karajá, Kayapó, Xavante e Tapirapé16. A partir da
primeira década do século XX, ocorreu um complexo contato interétnico entre os
posseiros e as sociedades indígenas ali estabelecidas.
As sociedades indígenas Xavante, Karajá, Tapirapé e Kayapó eram
rivais e entraram em constantes conflitos. Os Kayapó são muito temidos pelos
Karajá e Tapirapé. Na década de 1940, os Kayapó atacaram a grande aldeia dos
Tapirapé, saquearam e mataram a população. Os seus sobreviventes procuraram
abrigo junto à população não indígena do Vale do Araguaia. A partir da década de
1950, os Tapirapé reestruturaram a sua sociedade e obtiveram um aumento
populacional de 629 pessoas no ano de 2010, conforme os dados apresentados por
SOARES17. Os Tapirapé atualmente vivem em duas áreas indígenas situadas no
nordeste do estado de Mato Grosso: Terra Indígena Urubu Branco, onde estão
localizadas seis aldeias, e Terra Indígena Tapirapé-Karajá, como também uma
aldeia na qual a maior parte da população se identifica como Apyãwa (Tapirapé) e
14
A respeito, consultar: NUNES, Carla Soraya Ribeiro. Novos olhares sobre a colonização de
Confresa (1970-1980). In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra
na fronteira amazônica (século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010.
SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos: povoamento não indígena no Vale do
Araguaia, parte Nordeste do Estado de Mato Grosso, na primeira metade do século XX. In:
BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica
(século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010. SOUZA, Maria Aparecida
Martins. A luta pela permanência na terra: a resistência dos posseiros de Santa Terezinha. In:
BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica
(século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010.
15
SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos: povoamento não indígena no Vale do
Araguaia, parte Nordeste do Estado de Mato Grosso, na primeira metade do século XX. In:
BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica
(século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010, p. 269.
16
Sobre os índios Tapirapé: IRMÃNZINHAS DE JESUS. O renascer do povo Tapirapé: O diário
das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld - Irmãzinhas de Jesus. São Paulo: Salesiana,
2002. RAMOS, Polyana Rafaela. Povo Tapirapé: práticas agrícolas e meio ambiente no cotidiano
da aldeia Tapi'itãwa. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais). Cáceres: Universidade
Estadual de Mato Grosso, 2014.
17
SOARES, op. cit., p. 271.
algumas famílias pertencentes ao povo Iny (Karajá), havendo também outras
aldeias em que moram homens Apyãwa casados com mulheres Iny18.
A Terra Indígena Urubu Branco possui 167.533 hectares, situada nos
municípios de Santa Terezinha, Confresa e Porto Alegre do Norte, no estado de
Mato Grosso, sendo reconhecida como território tradicional dos Tapirapé em
1996, por intermédio da Portaria nº 599, de 02 de outubro, e homologada pelo
Decreto Federal não numerado em 08 de setembro de 199819.
A vinda das Irmãzinhas de Jesus20 e do padre Francisco Jentel foi o
que protegeu os Tapirapé da extinção. As missionárias juntaram-se aos Tapirapé e
atualmente vivem entre eles, contribuindo para o processo de reconstituição dessa
etnia.
Em relação aos deslocamentos migratórios para a Amazônia, estes
decorrem de vários fatores, tais como: a seca, a libertação dos laços de
dependência das propriedades de latifundiários/coronéis, as técnicas da agricultura
camponesa, como a roça de coivara, que depende de mudanças constantes,
relações sociais de ordem pelo parentesco e determinação estrutural em relação à
propriedade da terra, entre outros. Dentre os diversos motivos, objetivos e
subjetivos, para se empregar a migração, Maria Antonieta da Costa Vieira21, em

trabalhadores rurais para a Amazônia Oriental, nas décadas de 1960 e 1970,


demonstrando que os grupos religiosos: Missão da Maria da Praia e Romaria de
Padre Cícero se pautavam na ocupação da fronteira por meio de um ponto de vista
que
se caracterizava pelas matas, se dava pela procura dos camponeses de um lugar
prometido permeado por crenças espirituais.

18
RAMOS, Polyana Rafaela. Povo Tapirapé: práticas agrícolas e meio ambiente no cotidiano da
aldeia Tapi'itãwa. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais). Cáceres: Universidade
Estadual de Mato Grosso, 2014, p. 15.
19
Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/tapirape/1008>. Acesso em 08 jan. 2016.
20
A irmãzinha Genoveva (morreu na Aldeia Tapirapé em 2013), uma das fundadoras que chegou
em 1952, Elizabeth e Odile vieram em 1956. Saíram com os índios da Barra do Tapirapé, onde
ficaram algumas famílias e começaram a viver numa nova aldeia, Tapi'itawa. Disponível em:<
http://www.hermanitasdejesus.org/brasil/tapirape2.htm>. Acesso em: 08 jan. 2016.
21
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. À procura das Bandeiras Verdes: Viagem, Missão e
Romaria. Movimento Sócio-religioso na Amazônia Oriental. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2001.
Desse modo, a autora demonstra que as migrações destes indivíduos
podem ser identificadas como uma metáfora do campesinato da fronteira em
busca do seu lugar social. Estes lavradores queriam se desprender da sujeição de
ter que trabalhar em terras alheias, em não ter liberdade sobre o uso do seu tempo,
bem como conquistar o poder de decisão sobre as atividades laborais que iriam
desenvolver e as mudanças que deveriam empregar na produção agrícola e
pecuária.
Para estudar o processo de (re)ocupação da Amazônia, torna-se
importante citar o sociólogo José de Souza Martins22, o qual afirma que definir e
caracterizar a fronteira no Brasil é apresentar a sua situação de conflito social. Ela
é configurada pela presença de índios de um lado e não índios por outro; com os
grandes proprietários de terras de um lado e os camponeses pobres de outro. O
conflito se configura na descoberta e desencontro do outro, ou seja, o desencontro
da temporalidade histórica, pois cada um desses grupos está situado de maneira
diversa no tempo histórico. Dentre estes grupos é essencial demonstrar o tempo
histórico do pistoleiro, que mata índios e camponeses a mando do patrão e do
latifundiário. Assim, o seu tempo é o do poder pessoal da ordem política
patrimonial e não o de uma sociedade moderna, igualitária e democrática que
atribui à instituição neutra da justiça a decisão sobre os litígios entre seus
membros.
Ainda de acordo com Martins23, a frente de expansão em que se
moviam juntos ricos e pobres ocorria no sentido de que estes se deslocavam com
base nos direitos da sesmaria. O posseiro na Amazônia invoca o seu direito sobre
a terra pelo trabalho que nela foi desempenhado, reclamando o seu direito de
cedê-la ou vendê-la, partindo da concepção de que era preciso ocupar a terra com
trabalho (derrubada da mata e o seu cultivo), antes de obter o reconhecimento das
garantias, conforme ocorria no sistema da sesmaria.
A migração forçada pela expulsão do local de origem impõe a esta
população o estabelecimento em áreas de fronteira, e quando
de encontrar novas terras nem há perspectiva ou disposição de entrar na economia

22
MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo histórico
da frente de expansão e da frente pioneira. Tempo Social, São Paulo, 8(1): 25-70, maio de 1996.
23
Ibidem. p. 42.
da miséria no interior da fronteira econômica, geralmente começa a luta pela terra,
24
. E não somente isso,
pois os camponeses ameaçados optam pela luta da terra, seja para questionar os
supostos direitos alegados pelos proprietários ou a legitimação desse direito
assegurado pela Lei de Terras de 1850, em que o direito à posse (usucapião)
advém da comprovação do posseiro em morada habitual e cultura efetiva na
posse.
O plano de governo para (re)ocupar a Amazônia advém da política
dos militares, que após o golpe de 1964 destituiu em seus fundamentos a ordem e
as tradições-estatistas que João Goulart representava. Assim, de acordo com
Daniel Aarão Reis25, o regime ditatorial colocou em prática a política
internacionalista-liberal, cuja ideia estava associada à abertura econômica para o
mercado, no estímulo aos capitais privados, até mesmo os estrangeiros, em um
ponto de vista distinto do papel do Estado na economia, mais regulador do que
intervencionista. É importante destacar que estas perspectivas foram elaboradas
no IPES26, juntamente com lideranças civis e militares que desempenharam um
importante papel na concretização do golpe.
A presidência da República assumida por Castelo Branco (1964-1967)
englobava um perfil e um programa, como, por exemplo, o internacionalismo que
tinha como proposta se alinhar aos Estados Unidos, culminando na chamada
abertura do Brasil aos fluxos do capital internacional. Este projeto estava pautado
na estabilização da economia e das finanças, assim como no estímulo às
exportações e na atração de consideráveis investimentos de capitais privados,
fazendo com que o processo de modernização conservadora tomasse corpo27.

24
Idem.
25
REIS, Daniel Aarão. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000, p. 34.
26
As articulações para a criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais iniciaram em 1961, a
partir da posse de João Goulart; os empresários passaram a ver o governo com desconfiança e
associá-lo aos movimentos sindicais, comunistas e ao aumento da intervenção estatal,
intensificando assim, as suas ações para a criação de uma organização que apoiasse os seus
interesses. Em 2 de fevereiro de 1962, o IPES foi fundado no Rio de Janeiro, originado da
associação de empresários de São Paulo e Rio de Janeiro que passaram a contestar a
IPES contribuiu para a derrubada
do governo Goulart, em 31 de março de 1964, pelos militares, por meio de um trabalho
propagandístico. PAULA, Christiane Jalles de. Na presidência da República: o Instituto de
Pesquisa e Estudos Sociais IPES. Rio de Janeiro: CPDOC, 2004.
27
REIS, op. cit., loc. cit.
Neste contexto, o nacionalismo também foi uma característica forte do governo
ditatorial, onde civis (empresários) queriam a liberalização da economia e
militares defendiam o nacionalismo, como um modelo de desenvolvimento que
tentava reunir dois elementos profundamente contrários: o nacionalismo e os
interesses de grupos internacionais.
Diante da política de modernização e da guinada na economia
brasileira, os olhares do presidente Emílio Garrastazu Médici foram direcionados
para o Nordeste do país. De acordo com Thomas Skidmore28, nenhuma região do
Brasil podia comparar-se à escala de miséria em que viviam mais de 30 milhões
de nordestinos na década de 1970 como resultado da seca e da estrutura fundiária.
O presidente Médici instituiu uma política que via a Amazônia e o Nordeste como
problemas únicos, os quais deveriam ser sanados pela construção da rodovia

férteis aos trabalhadores rurais miserabilizados do Nordeste.


O excedente populacional do Nordeste seria levado para o espaço
amazônico por meio do PIN criado pelo Decreto-Lei nº 1.106, de 16 de junho de

everia incluir três elementos: (1) abertura do vale amazônico


através de uma nova rodovia que facilitaria a colocação de 70.000 famílias; (2)
irrigação de 40.000 hectares no Nordeste no período 1972-74; e (3) criação de
corredores de exportação no Nordeste29. A migração nordestina, que antes tinha
como rota o Centro-Sul, passou a ter como destino os projetos de colonização que
foram se formando ao longo das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém.
A (re)ocupação da Amazônia não tinha apenas como objetivo atenuar
as tensões sociais e econômicas existentes no Nordeste do país, mas também criar
estratégias geopolíticas no que dizia respeito à tomada da região por estrangeiros e
elementos considerados subversivos pelo governo ditatorial. Com a descoberta
das riquezas minerais, especialmente das jazidas de ferro, a preocupação com esta
área foi aumentada.

28
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1994, p. 202.
29
Idem.
Entretanto, havia uma contradição no discurso geopolítico de proteger
a Amazônia da exploração dos seus recursos por grupos externos, tendo em vista
que o Projeto Jari estabelecido na fronteira entre os estados do Pará e Amapá foi
concedido ao norte-americano Daniel Luwig. Da mesma forma, as distribuidoras
de petróleo e derivados continuaram no país, as montadoras ampliaram seu parque
industrial. Essa presença, como a do Projeto Jari, foi vista como investimento que
traria divisas para o país. O discurso político era o de proteger por meio da
integração à nação e esses empreendimentos, como os de colonização, os
agropecuários, e tantos outros aprovados pela SUDAM, SUFRAMA, SUDECO,
foram caracterizados, dessa forma, como aplicações financeiras que trariam
desenvolvimento.
Segundo Skidmore30, os investimentos do governo militar no setor
público, como no caso da Amazônia, devem ser analisados dentro do contexto de
uma estratégia econômica em que o objetivo consistia em potencializar tanto as
aplicações financeiras privadas como públicas. A esfera privada era beneficiada
por uma política que conferia aos empresários a maior quantia dos resultados de
produtividade e de incentivos tributários, especialmente na agricultura e no setor
de exportações. Os empreendimentos públicos obtinham facilidades por políticas
de preços de custo total, bem como dos empréstimos conferidos por instituições
estrangeiras como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, os quais se tornaram os principais financiadores de recursos
para o Nordeste e a Amazônia.
O governo militar na década de 1970 instituiu a Operação Amazônia,
com o objetivo de eliminar sob vários modos os problemas sociais e econômicos
da região. Para tanto, foram criados os seguintes órgãos e programas federais:
SUDAM, INCRA, BASA, POLOAMAZÔNIA, POLONOROESTE,
POLOCENTRO e PROBOR com o intuito de promover a ocupação produtiva e a
integração da Amazônia e do Centro-Oeste ao restante do Brasil. O governo

não havia produção e integração com o resto do país. Por meio destes órgãos e
programas, o governo passou a coordenar a ocupação da terra, garantindo e

30
Idem.
incentivando o desenvolvimento e a propagação do capitalismo no campo, de
modo a criar bases sólidas para a política de segurança nacional 31. Sob essas
medidas, Octávio Ianni afirma que:

O governo colocou à disposição de latifundiários e fazendeiros


(através da SUDAM, BASA e SUDECO) estímulos e favores
fiscais e creditícios, políticos e econômicos para a formação e
crescimento de latifúndios, fazendas e empresas agropecuárias,
de extrativismo e mineração. Deste modo, desde 1966,
intensificaram-se a colonização espontânea na região32.

Os empreendimentos rurais financiados pela SUDAM asseguraram a


criação de gado como o carro chefe da política de (re)ocupação da Amazônia, em
detrimento da população tradicional e migrante que estava estabelecida na região
muito antes da entrada das agropecuárias. Neste mesmo contexto, foram
implantados em Mato Grosso os projetos de colonização privada, em que
predominavam os agricultores do Sul do Brasil. Dentre eles, podemos destacar:
Projeto Sinop, ao longo da rodovia Cuiabá-Santarém, Alta Floresta no vale do rio
Teles Pires33 e os Projetos Canarana34 (Água Boa e Querência), no Araguaia.
Para Ariovaldo Umbelino de Oliveira35, o processo de ocupação da
Amazônia advém de dois mecanismos interligados, o primeiro, pelas políticas
territoriais do Estado (aberturas das rodovias, incentivos fiscais e créditos), bem
como a consequente implantação dos projetos agropecuários, e de outro lado, o
acesso dos grupos econômicos nacionais e/ou internacionais aos recursos minerais
da região. Dessas políticas resultaram o caráter contraditório da formação da

31
Esta política estava baseada na Doutrina de Segurança Nacional que consiste no enquadramento
da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica
antisubversiva contra o inimigo comum. Desse modo, a Doutrina converte o sistema social em
sistema de guerra. BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares.
In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia, de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo da
ditadura regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012.
32
IANNI, Octávio. Ditadura e agricultura: desenvolvimento e capitalismo na Amazônia 1964-
1978. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979C, p. 12.
33
Sobre estes projetos ver: BARROZO, João Carlos. Políticas de Colonização: as políticas públicas
para a Amazônia e o Centro-Oeste. In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: do sonho à
utopia da terra. Cuiabá: EDUFMT/Carlini&Caniato, 2008.
34
Sobre o Projeto Canarana, consultar: MORAES, Adriano Knippelberg. Projeto Canarana:
trajetórias de famílias em busca de terras no Mato Grosso (1971-1981). Dissertação (Mestrado em
História) Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2015.
35
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Amazônia: monopólio, expropriação e conflitos.
Campinas: Papirus, 1987, p. 17.
estrutura fundiária brasileira, em que o Centro-Norte de Mato Grosso, conforme o
autor citado, é formado pela presença de grandes projetos agropecuários, por áreas
de posseiros regularizadas ou não pelo INCRA, por projetos privados de
colonização e pelas terras indígenas.
Com a entrada das atividades agropecuárias a partir da década de 1960
na Amazônia Legal36, o seu território, que antes era composto basicamente por
posseiros
espaço com novos agentes sociais, ou seja, com os grupos de empresários
nacionais e internacionais que estabeleceram as empresas rurais, principalmente
as agropecuárias. As linhas de crédito chegavam a cobrir até 70% do capital dos
empreendimentos, através dos incentivos fiscais e da isenção de impostos. Diante
deste cenário, os projetos agropecuários tinham que ampliar e instituir novos
empregos na região, formar e criar determinado número de cabeças de gado e
construir obras de infraestrutura para o desenvolvimento regional. Entretanto, o

de posseiros e indígenas, ou seja, a conivência por parte do Estado na venda de


terras da população que já habitava a Amazônia37.
A partir da implantação do Estatuto da Terra de 1964, o governo
militar se orientou em uma política deliberada de concentração fundiária e de
constituição de grandes empresas no campo. Ao mesmo tempo, implantou uma
política de redistribuição de terras nos lugares em que as tensões sociais eram
definidas como perigo à segurança nacional e, consequentemente, à estabilidade
do regime militar. Desse modo, estudar a história da fronteira se pauta na
expulsão e destruição de etnias indígenas e de posseiros na Amazônia38.

36
A Lei nº 5.173 de 27 de outubro de 1966 extingue a Superintendência do Plano de Valorização
Econômica da Amazônia (SPVEA) e cria a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
(SUDAM), que, através do Plano de Valorização da Amazônia, estabelece que a Amazônia
Acre, Pará e
Amazonas, pelos Territórios Federais do Amapá, Roraima e Rondônia, e ainda pelas áreas do
estado de Mato Grosso a norte do paralelo de 16º, do estado de Goiás a norte do paralelo de 13º e
do estado do Maranhão a oeste do meridiano de 44º. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5173.htm>. Acesso em: 26 mar. 2015.
37
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Amazônia: monopólio, expropriação e conflitos.
Campinas: Papirus, 1987, p. 17.
38
O Relatório da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) apontou que 1.196 camponeses foram
assassinados ou desapareceram em disputas no campo, entre setembro de 1961 a outubro de 1988.
Disponível em:< http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/durante-a-ditadura-1-196-pessoas-foram-
mortas-no-campo/>. Acesso em: 06 jan. 2016.
Diante das problemáticas que os projetos de colonização e os
agropecuários causaram na Amazônia, torna-se importante destacar o conceito de
conflito, elaborado pela Ciência Política, em que
interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que implica
39
. Como podemos
observar, na concepção de Dominko Barillaro, o conflito é exposto de modo geral,
como um embate para ter aquisição e divisão de fundos insuficientes. Tal
entendimento não difere essencialmente do conceito de conflito elaborado pela
CPT para o espaço rural brasileiro:

Conflitos são as ações de resistência e enfrentamento que


acontecem em diferentes contextos sociais no âmbito rural,
envolvendo a luta pela terra, água, direitos e pelos meios de
trabalho ou produção. Estes conflitos acontecem entre classes
sociais, entre os trabalhadores ou por causa da ausência ou má
gestão de políticas públicas. Os conflitos são catalogados em
conflitos por terra, conflitos pela água, conflitos trabalhistas,
conflitos em tempos de seca, conflitos em áreas de garimpo, e
em anos anteriores foram registrados conflitos sindicais.
Conflitos por terra são ações de resistência e enfrentamento pela
posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso a seringais,
babaçuais ou castanhais, quando envolvem posseiros,
assentados, quilombolas, geraizeiros40, indígenas, pequenos
arrendatários, pequenos proprietários, ocupantes, sem terra,
seringueiros, camponeses de fundo de pasto, quebradeiras de
coco babaçu, castanheiros, faxinalenses, etc.41

A criação da CPT ocorreu em meio aos conflitos agrários vivenciados


principalmente no Norte do Brasil, configurados pela presença incipiente do
Estado na solução das problemáticas do campo; assim, uma série de bispos,
religiosos e leigos organizados basicamente por Dom Pedro Casaldáliga passaram
a cobrar uma posição da Igreja diante daqueles problemas. Em 1975, numa
Assembleia da CNBB em Goiânia, decidiu-se criar uma Comissão Pastoral
permanente cujo objetivo seria acompanhar os principais focos de tensão das
regiões Norte e Centro Oeste do país, com o propósito de defender os posseiros

39
BARILARRO, Dominko. Conflito. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: UNB, 1998, p. 225.
40
Populações tradicionais que vivem nos cerrados do norte de Minas Gerais.
41
CANUTO, Antônio; LUZ, Cássia Regina da Silva; LAZZARIN, Flávio. Conflitos no Campo
Brasil 2012. Goiânia: CPT Nacional, 2013, p. 10.
da expropriação dos latifundiários. A CPT passou a trabalhar com boias frias, sem
terras e pequenos proprietários, com o auxílio dos leigos na resolução dos
problemas agrários. Esta entidade tinha a finalidade de servir de apoio aos
movimentos populares, grupos e associações que lutavam direta ou indiretamente

denúncias e no apoio político pedagógico aos grupos que se organizavam na luta


pela terra42.
O nordeste de Mato Grosso, a exemplo da cidade de Porto Alegre do
Norte, passou por um processo migratório de pessoas provenientes principalmente
do Maranhão, norte de Goiás e sul do Pará no início do século XX.
Transformando aquela espacialidade através do estabelecimento das famílias de
trabalhadores rurais que constituíram um novo ambiente assinalado por
experiências sociais, culturais e políticas diversificadas.
Diante do histórico do processo de migração para o nordeste de Mato
Grosso, destacamos como hipótese desta tese a constatação de que as famílias de
agricultores rurais estabelecidas em Porto Alegre do Norte possuíam laços
fortalecidos pelas relações de parentesco, compadrio e amizade. Sendo assim,
torna-se importante assinalar que esta sociabilidade criada na fronteira foi
fundamental na luta pela terra naquela espacialidade, pois as famílias passaram a
desenvolver um sentimento de pertencimento a Porto Alegre do Norte que se fez
significativo nos momentos de enfrentamentos contra as empresas agropecuárias
FRENOVA e Piraguassu durante a década de 1970. Os projetos de colonização e
agropecuário implantados durante o governo militar na Amazônia Legal deixaram
de lado a população que já habitava aquele espaço, dando abertura para o uso
ilegal da violência através de pistoleiros e jagunços guiados por uma política
patrimonial que culminou na definição dos litígios por terras no Araguaia.
A presença da Prelazia de São Félix do Araguaia, juntamente com
Dom Pedro Casaldáliga, padres, leigos e agentes de pastoral 43, foi importante na

42
VILLALOBOS, Jorge Ulisses Guerra; ROSSATO, Geovanio. A Comissão Pastoral da Terra
(CPT): Notas da sua atuação no estado do Paraná. Boletim de Geografia, Maringá, v. 14, n. 1, p.
19-32, 1996.
43
Para se tornar agente de pastoral na Prelazia de São Félix do Araguaia, o ingressante deveria
conviver nas casas comunitárias com pessoas de diversas origens sociais, faixa etária, estado civil
e religioso. Os agentes de pastoral viviam em casas semelhantes às dos moradores locais e tinham
resolução dos conflitos de terra existentes no nordeste de Mato Grosso,
especialmente em Porto Alegre do Norte, que também contou com o apoio dos
padres Eugênio Consoli e Francisco Jentel na intermediação da demarcação das
terras dos posseiros junto à FRENOVA e à Piraguassu. Essa situação aumentou a
tensão social e, consequentemente, ocorreu a intervenção militar nos problemas
agrários, bem como o envolvimento de múltiplos grupos nos conflitos por terra,
tendo a inclusão de diversos agentes sociais da Igreja Católica, sendo estes ligados
a CPT, ao CIMI e ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Já na esfera do Estado,
pode-se destacar a atuação do INCRA, da Polícia Militar, do Exército e da Polícia
Federal, estando estes muitas vezes ligados a um trabalho conjunto com os
pistoleiros e jagunços das empresas agropecuárias.
Busco assinalar nesta tese que o Estado representado em Porto Alegre
do Norte, principalmente pelo INCRA, pelas polícias Militar e Federal, se
instituiu como enviado e defensor das empresas agropecuárias. E, assim, atuou de
modo arbitrário nas disputas legais pelo direito à terra, envolvendo a população
anteriormente estabelecida (índios, posseiros, entre outros) e as agropecuárias, em
muitos momentos, participando e efetuando, ao lado dessas empresas, atos de
violência contra trabalhadores rurais, peões, índios, posseiros e pessoas ligadas à
Prelazia. Mas em outras ocasiões, este teve que negociar com os trabalhadores
rurais apoiados pela Prelazia de São Félix do Araguaia na demarcação das suas
posses, a exemplo da luta pela terra em Santa Terezinha (1967-1972) em que os
posseiros, ao empreenderem atos de resistência, conseguiram o direito sobre suas
áreas amparados pelo Estatuto da Terra de 1964.
Pude perceber que no Araguaia a disputa pela terra não ocorreu
apenas entre trabalhadores rurais e fazendeiros, como também contou com a
participação de diversos agentes sociais, engendrados por relações de
enfrentamentos, resistências e mediações. Para entender a luta pela terra em Porto
Alegre do Norte, é necessário ter a consciência de que diferentes atores sociais
estiveram presentes neste processo, ou seja, não se deve nortear apenas na
oposição empresários rurais x posseiros, porém, é preciso destacar que

suas carteiras de trabalho assinadas com o valor de um salário mínimo no desempenho das
atividades eclesiásticas.
instituições mediadoras da Igreja Católica e do Estado estiveram envolvidas nos
conflitos por terras.
Entretanto, é válido especificar que não tenho a visão dos
trabalhadores rurais como vítimas ou passivos neste contexto, pois estes criaram
diversas formas de resistência e enfrentamentos contra os agentes do Estado e
jagunços das fazendas. Assim, os trabalhadores rurais são vistos como atores
políticos que estabeleceram alianças junto aos padres, freiras, leigos e agentes de
pastoral para o embate direto e negociações das áreas em litígios, confrontando
em muitos casos com armamentos e emboscadas as milícias dos proprietários
rurais, bem como movendo ações e contestações para que o Estado reconhecesse
os seus direitos.
As análises desta tese têm como propósito compreender a luta pela
terra empreendida pelos grupos sociais estabelecidos no nordeste de Mato Grosso,
a qual se configura por diversas táticas de enfrentamentos, disputas e negociações.
Elegi como recorte espacial o município de Porto Alegre do Norte, cortado pela
BR-158 e pelo rio Araguaia no sentido Sul-Norte, distante 1.119 km de Cuiabá,
capital do Estado. Diante de uma espacialidade tomada pela hidrografia do rio
Araguaia, bem como por histórias e lugares que se interlaçam com a minha área
de estudo, ao longo deste trabalho, o leitor irá se deparar com as seguintes
denominações que se referem ao recorte espacial: Araguaia mato-grossense, Vale
do Araguaia, nordeste de Mato Grosso, Prelazia de São Félix do Araguaia e
Amazônia.
O recorte temporal estabelecido contempla o período do início da
década de 1970 até o final da década de 1980. O marco inicial justifica-se pela
instauração dos dois maiores projetos agropecuários do Araguaia mato-grossense:
Suiá-Missu e CODEARA, que propiciaram os primeiros conflitos intermediados
pela Prelazia de São Félix do Araguaia, entre as empresas contra os índios e
posseiros. O marco final desta pesquisa tem relação com o assassinato do jagunço
Capixaba pelos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, pois este fato
encerrou um período de enfrentamentos traçado pelos posseiros, e deu lugar às
reivindicações por reforma agrária efetuadas pelo Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, permitindo assim uma nova configuração à luta pela terra.
Mapa 2: Município de Porto Alegre do Norte/MT na Prelazia de São Félix do Araguaia.
Este trabalho visa entender e apresentar estratégias de lutas e
resistências adotadas pelos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte,
denominados como posseiros44, contra a tomada das suas terras pelos empresários
do Centro-Sul do país, ou seja, uma reivindicação pelo direito das suas posses
ocupadas pela instalação dos projetos agropecuários das fazendas FRENOVA e
Piraguassu. Estes conflitos, que ocorreram ao longo das décadas de 1970 e 1980
envolveram diversas instituições do Estado, como o INCRA, a Polícia Militar, a
Polícia Federal e o Exército; e a Prelazia de São Félix do Araguaia, na qualidade
de entidade de mediação45 com o envolvimento de padres (especialmente
Francisco Jentel e Eugênio Consoli), agentes de pastorais, leigos, freiras e o bispo
Dom Pedro Casaldáliga, como expressão maior por meio das suas denúncias
públicas que questionavam os órgãos administrativos em relação às políticas de
integração e desenvolvimento da Amazônia, as quais lesavam os direitos
primordiais da população do campo.
Desse modo, não entendo a mediação apenas como o ato de mediar,
interceder, ser representante em dada situação, inferir em meio à ocasião, mas no
sentido de atuar, conforme Dom Pedro Casaldáliga, atribuindo publicidade e
visibilidade à luta dos trabalhadores rurais da Prelazia de São Félix do Araguaia,
bem como à violência contra os religiosos, leigos, índios, peões e posseiros
daquela região.
A mediação da Prelazia de São Félix do Araguaia nos conflitos por
terra em Porto Alegre do Norte está relacionada às transformações políticas e
sociais que a Igreja Católica vivenciou após as resoluções do Concílio Vaticano
II, realizado entre 1962 e 1965, e das Conferências do Episcopado Latino-

44
Conforme o Estatuto da Terra de 30 de novembro de 1964, Art. 98, posseiro é todo aquele que,
não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar por dez anos ininterruptos, sem oposição nem
reconhecimento de domínio alheio, tornando-o produtivo por seu trabalho, e tendo nele sua
morada, trecho de terra com área caracterizada como suficiente para, por seu cultivo direto pelo
lavrador e sua família, garantir-lhes a subsistência, o progresso social e econômico, nas dimensões
fixadas por esta Lei, para o módulo de propriedade, adquirir-lhe-á o domínio, mediante sentença
declaratória devidamente transcrita. Disponível
em:<http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/104451/estatuto-da-terra-lei-4504-64#art-97>.
Acesso em: 13 jan. 2016.
45
Ver: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação: os antagonismos sociais na
Amazônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e os Estado. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) Rio de Janeiro: Museu Nacional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 1993.
Americano, ocorridas no ano de 1968 em Medellín (Colômbia) e no ano 1979 em
Puebla (México). A partir desses acontecimentos, surgiu a chamada Igreja
Católica Progressista, cujos membros passaram a se envolver com as situações
locais, sobretudo da Amazônia em um período que a região foi invadida por
diversos projetos de colonização e agropecuários que culminaram na presença
massiva de empresários rurais, expulsão de posseiros, povos indígenas, violência
e trabalho análogo ao de escravo.
De acordo com Novaes46, os mediadores podem ser vistos como um
meio de campo, algo que faz ponte ou medeia determinada situação, sendo estas
ações tanto para o bem quanto para o mal, ou seja, elas são capazes reproduzir ou
questionar a dominação. A mediação pode ser exercida por diversos atores e
entidades, como ONGs, Igrejas, Sindicatos e órgãos do Estado. Entretanto, nesta
pesquisa designamos o termo de mediadores para a Igreja Católica Progressista da
Prelazia de São Félix do Araguaia, e seus membros do clérigo, especialmente
Dom Pedro Casaldáliga, agentes de pastorais e leigos. As mediações das
instituições como CPT e STRs, segundo Medeiros e Esterci47
pensadas como ações que tiram movimentos e grupos de sua dimensão local e

visibilidade à atuação política dos trabalhadores rurais, acarretando assim a


potencialização desses acontecimentos não apenas no âmbito local, mas também
em uma rede regional, estadual e nacional, propiciando que eventos locais tomem
dimensões globais.
Desse modo, é possível entender a mediação no espaço rural
brasileiro, especialmente no Araguaia mato-grossense, a partir da atuação da
Prelazia de São Félix do Araguaia no apoio e representação dos trabalhadores
rurais na luta pela terra em Porto Alegre do Norte durante a década de 1970.
Segundo Almeida48, a Igreja Católica passou a tomar frente dos conflitos agrários

46

MEDEIROS, Leonilde et al (Org). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo:
Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994, p.177-183.
47

Servólo de et al (Org.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: EDUNESP,
1994, p. 19.
48
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação: os antagonismos sociais na
Amazônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e os Estado. Tese
na Amazônia, pois já vinha desenvolvendo o seu trabalho pastoral junto às
comunidades de posseiros, suscitando assim uma atuação que supria a presença
incipiente do Estado no campo:

A atuação das instituições religiosas desenvolveu-se a partir do


que estava à margem da cena política e sem possibilidades
imediatas de representação. É por esta brecha que se insinua a
ação mediadora, quando as reivindicações dos trabalhadores,
quaisquer que fossem, não eram facilmente assimiladas por
aparelhos de poder que se impuseram tão só pela repressão e
que tinham sua legitimidade contestada.49

Os conflitos agrários que até então não eram reconhecidos pelo Estado
passaram a ser institucionalizados pela Igreja, a qual foi vista como um problema
e não uma interlocutora dos posseiros. O Estado não concordava com o trabalho
político e social da Igreja Católica no campo, pois esta era considerada subversiva
e incentivadora dos conflitos por terras. Entretanto, a presença da Prelazia de São
Félix do Araguaia como mediadora na luta pela terra em Porto Alegre do Norte
fortaleceu a resistência dos posseiros.
De acordo com Airton dos Reis Pereira50, o termo posseiro é um
conceito que foi e é forjado na luta e no conflito. O autor entende que o posseiro
do sul e sudeste do Pará não é somente aquele trabalhador rural ocupante de terras
devolutas de áreas denominadas antigas e é expropriado pelas grandes empresas
do Centro-Sul do Brasil, mas também um agente social que disputa uma mesma
área de terras com empresários/fazendeiros de outros Estados do país e a eles
resistem. Esta palavra que antes designava os ocupantes de terras devolutas na
Amazônia passou a ter novos significados e sentidos na luta pela terra naquele
momento (1970/2000). Do mesmo modo, em Porto Alegre do Norte, os
trabalhadores rurais, a partir do envolvimento com a Prelazia de São Félix do
Araguaia, passaram a se designar como posseiros, conferindo assim o direito de
contestarem a permanência nas suas posses.

(Doutorado em Antropologia Social) Rio de Janeiro: Museu Nacional da Universidade Federal do


Rio de Janeiro, 1993.
49
Ibidem, p. 42.
50
PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no sul e sudeste do Pará: migrações, conflitos e
violência no campo. Tese (Doutorado em História) Recife: Universidade Federal de Pernambuco,
2013, p. 50.
Os acervos utilizados nesta pesquisa compreendem os documentos
constantes no Núcleo de Pesquisa em História (NPH/ICHS-UFMT) e no arquivo
da Prelazia de São Félix do Araguaia. Buscando prioritariamente identificar
situações de violência contra posseiros e agentes religiosos da Prelazia de São
Félix.
O acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia possui cerca de 250
mil documentos, divididos em grandes setores: posseiros, peões, CPT nacional e
regional, informes paroquiais, ações judiciais, entre outros, e mais de 50 mil
cartas, as enviadas a Dom Pedro e as respondidas por ele. As mensagens são de
gente simples e de autoridades militares, sendo estas públicas e de teor sigiloso na
época. Não há correspondências íntimas, nem confessionais. O acervo encontra-se
em sua maior parte digitalizado e acessível ao público. Possui imagens, fitas
cassetes, objetos, incluindo prêmios e títulos que Dom Pedro acumulou e doou ao
Arquivo51. O arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia com os seus diversos
registros é constituído como um lugar social, e por ser atrelado à Igreja Católica,
não quer dizer que seja apenas um lugar religioso, mas também político.
O arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia foi organizado pela
Irmã Irene Fraceschini, religiosa da Congregação São José que chegou a São Félix
em 1971 e estruturou a documentação que ia se avolumando em caixas. A
religiosa fez um curso de arquivista por correspondência e formou colaboradores.
Obteve ajuda voluntária da ONG catalã Arquivistas Sem Fronteiras. O acervo
também conta com documentos anteriores à chegada de Dom Pedro Casaldáliga
ao Brasil, dentre eles os primeiros diários das Irmãzinhas de Jesus da ação
Missionária de Charles de Foucauld estabelecidas na região desde a década de
1950. Estes diários escritos em francês retratam a vida das Irmãzinhas junto aos
Tapirapé, povo este que foi quase dizimado pelos índios Kayapó52.
Esses documentos são de grande relevância histórica, pois retratam a
luta pela terra no Brasil, a repressão militar, a exploração de trabalhadores, a
violência contra posseiros, peões, agentes de pastorais e índios.

51
GREENHALGL, Laura. As veredas de Pedro. Os arquivos de D. Pedro Casaldáliga. Estado de
São Paulo, 2006. Disponível em: <
http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=331>. Acesso em: 11 mai. 2011.
52
Idem.
Carlos Bacellar53 tece uma crítica de modo geral às problemáticas
existentes em grande parte dos arquivos brasileiros, os quais, em sua maioria,
encontram-se abandonados pelo poder público. Tem-se o desafio de trabalhar em
ambientes precários, com documentos mal acondicionados e preservados, e mal
organizados, administrados por funcionários problemáticos. Felizmente o acervo
da Prelazia de São Félix do Araguaia encontra-se em perfeita organização, com
todas as suas informações digitalizadas, disponíveis ao público por meio de cópias
em CD Rom, pois não é possível gravar a documentação em pen drive devido ao
risco de prejudicar os computadores do arquivo com possíveis vírus que possam
danificar ou destruir os documentos da Prelazia. As acomodações são singelas,
mas acolhedoras, e os funcionários são muito prestativos e solícitos.
O historiador deve ter consciência de que os arquivos são resultados
daqueles que os constituíram, da mesma forma que nenhum documento é neutro, e
sempre carrega consigo a opinião da pessoa ou da instituição que o escreveu, os
arquivos não foram pensados para atender as necessidades dos historiadores, e sim
de órgãos e pessoas em específico. Desse modo, podemos fazer a relação com a
elaboração dos documentos do passado que não foram feitos para os historiadores,
mas para responder as determinações intrínsecas do momento histórico em
questão.54
Sob esta ótica, devemos pensar a organização do acervo da Prelazia de

a população estava vivenciando na década de 1970 a partir do estabelecimento dos


projetos agropecuários na região. Este acervo documental também tinha um
caráter de denúncia das arbitrariedades nos conflitos pela terra no Araguaia mato-
grossense, tendo como meios acionar a imprensa e as diversas mídias locais,
estaduais e no exterior, bem como organizações em prol dos direitos humanos. Se
não fossem os esforços de Dom Pedro Casaldáliga em relatar e dar publicidade
aos eventos repressivos que tomaram a Prelazia no final da década de 1960,
provavelmente aqueles indivíduos não teriam os seus direitos a terras

53
BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 49.
54
Ibidem, p. 69.
reconhecidos e a repressão por parte do poder público e privado tomaria conta
daquele espaço em dimensões incalculáveis.
Acredito que o acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia carrega a
insígnia da luta pela terra travada por trabalhadores rurais, bem como o registro da
repressão do governo ditatorial através dos relatos de torturas dos padres, leigos e
agentes de pastorais vivenciadas no ano de 1973. Portanto, este arquivo é um local
a que os historiadores devem recorrer para discorrerem sobre as arbitrariedades do
período ditatorial no Brasil, tendo em vista que a maioria dos arquivos que contêm

Prelazia estão acessíveis para que a memória da luta pela terra e as atrocidades da
ditadura militar não caiam no esquecimento. Neste sentido, temos que ter
consciência de que os documentos da ditadura não são um testemunho da verdade,

relativo, como um esforço contínuo de esclarecimento e explicação dos

55

Um documento importante para a escrita desta tese é a Carta Pastoral


ônia em conflito com o latifúndio e a

divulgado em 10 de outubro de 1971 e publicado em 23 de outubro do mesmo


ano, dia da consagração episcopal de Dom Pedro Casaldáliga como bispo da
Prelazia de São Félix do Araguaia.
O documento possui 123 páginas e traz importantes elementos acerca
das características sociais, econômicas e políticas do território que compõe a
-sócio
pa
capital na região, bem como uma descrição dos problemas que marcavam o
Araguaia, dentre eles o aumento do número de latifúndios; a concentração do
poder e política local centradas nas mãos de empresários da região Sul e Sudeste
do Brasil, fraudes eleitorais e roubo do dinheiro público; a má distribuição da
administração pública, a qual ficava a cerca de 700 km de São Félix do Araguaia,
55
FICO, Carlos. História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso
brasileiro. Varia Historia, vol. 28, nº 47, p.43-59, jan/jun 2012C, p. 58.
no município de Barra do Garças; a falta de qualquer tipo de assistência social
básica como coleta de lixo, saneamento básico, hospitais e escolas, sendo estes
criados e administrados pela Prelazia; os meios de transportes eram precários e as
vias mais usadas para chegar à região eram as fluviais através do rio Araguaia
ou aérea.
Dentre as inúmeras pastas disponíveis no acervo da Prelazia,
selecionei a pasta com o código de identificação A.17 que contém 223
documentos datados de 1970 a 1989, pois apresenta uma série de fontes sobre os
conflitos de Porto Alegre do Norte. Nesta pasta encontrei relatos, bilhetes, abaixo-
assinados, recortes de jornais locais e nacionais, cópias de processos judiciais e
cartas que relatam a luta pela terra dos posseiros do povoado de Porto Alegre do
Norte contra a FRENOVA e a Piraguassu. Outra pasta importante que foi

Trabalhei com a subpasta A08.2, que contém 102 páginas de relatos dos agentes
de pastorais, leigos e padres torturados no ano de 1973, cujos testemunhos estão
expostos e analisados ao longo do capítulo três desta tese.
Como se pode constatar, utilizei neste trabalho as fontes que
expressam a resistência dos posseiros e da Igreja na luta pela terra em Porto
Alegre do Norte, privilegiando a documentação do Acervo da Prelazia de São
Félix do Araguaia. Esta atitude não tem como objetivo exaltar unicamente os atos
destes agentes, mas não tive acesso aos arquivos das agropecuárias ou da polícia
local para que estes pudessem ser contrapostos com a documentação da Prelazia.
Entretanto, as notícias divulgadas pelos jornais locais e nacionais me ajudaram a
demonstrar como a política de ocupação da Amazônia excluiu os direitos dos
posseiros que há anos ocupavam morada habitual e cultura efetiva nas terras
devolutas e/ou improdutivas, sob o respaldo da Lei de Terras de 1850 que

Brasil.
Realizei doze entrevistas, sendo seis delas com antigos moradores do
Araguaia (Erotildes Milhomem, São Félix do Araguaia), João Souza Lima o
João da Angélica e Maria Gomes da Silva (Porto Alegre do Norte), dois posseiros
e ex-vereadores de Canabrava do Norte56 Itamar Lucas de Oliveira e Rafael
Souza do Nascimento), com a ex-posseira Ana Felicia de Araújo (esposa do
posseiro e delegado de Porto Alegre do Norte Alexandre Quirino) e com a sua
filha Maria Zenaide de Araújo Silva, uma com o leigo da Pastoral de Porto
Alegre do Norte (Ataíde da Silva o Altair), com um integrante do movimento

a agente de pastoral Odile Eglin (Irmãzinha de Jesus que vive na aldeia Tapirapé
desde a década de 1980), entrevista com a advogada da Prelazia de São Félix do
Araguaia (Maria José Souza Moraes) e com o suposto pistoleiro e ex-prefeito de
Porto Alegre do Norte Luiz Carlos Machado, conhecido como Luiz Bang. A
escolha destas pessoas está relacionada ao fato de que elas são antigas moradoras
da região e de algum modo presenciaram os conflitos entre posseiros e as
agropecuárias FRENOVA e Piraguassu.
Utilizei sete entrevistas na construção da narrativa desta tese
(Erotildes Milhomem, João Souza Lima, Ana Felicia de Araújo, Maria Zenaide de
Araújo Silva, Ataíde da Silva, Odile Eglin e Luiz Carlos Machado).
A entrevista com Erotildes Millhomem foi realizada em sua residência
na cidade de São Félix do Araguaia. Ela me recebeu no seu ateliê que fica nos
fundos da sua casa, mostrou-me um álbum de fotos, suas pinturas em telas e os
romances de sua autoria. O seu testemunho demonstrou como ocorreu o processo
de migração do estado do Maranhão para o Araguaia mato-grossense,
descrevendo o percurso realizado, as motivações que impulsionaram sua família a
migrar, bem como o misticismo
Erotildes me pediu que assinasse um livro de presença das pessoas que a visitam e
me presenteou com quatro livros que escreveu sobre o Araguaia: Meu querido
Araguaia, Maria Rita da Serra do Roncador, Folclore do Araguaia e Barreira do
Araguaia.
O relato de João Souza Lima foi cedido em sua propriedade rural no

entrevista ocorreu embaixo de um pé de manga povoado por várias maritacas que

56
O município fica 40 km de distância de Porto Alegre do Norte. No período do nosso recorte
temporal, era um núcleo de ocupação afastado do núcleo urbano (Porto Alegre do Norte), assim
este se referia a uma área considerada de sertão por estar distante do núcleo urbano.
emitiam os seus cantos, assim como cigarras e galinhas que tiveram os seus sons
propagados por toda a narrativa. O entrevistado descreveu a trajetória da sua
família de Barreira dos Campos/PA para o Araguaia mato-grossense, o
estabelecimento da sua família nas posses do núcleo de Cedrolândia, o cotidiano,
a cultura, a religião, as festas, os mutirões, a chegada das empresas agropecuárias,
as resistências e os conflitos vivenciados pelos posseiros, entre outros.
A entrevista de Ataíde da Silva ocorreu na residência do professor da
rede estadual de Porto Alegre do Norte Justiniano Pereira Sales, pois ele me
ajudou a contatar todos os entrevistados pelo fato de ser antigo morador do
município e filho do posseiro José Pereira dos Santos. A narrativa foi realizada na
varanda, onde nos sentamos em volta de uma grande mesa acompanhados pelo
professor Justiniano, que interferiu em pequenos momentos para esclarecer
questões contextuais relatadas pelo seu pai. Ataíde da Silva expôs sobre a sua
trajetória de militância na cidade de São Paulo, a sua migração para Porto Alegre
do Norte e o seu trabalho como leigo e professor da Prelazia de São Félix do
Araguaia, descreveu os conflitos entre as empresas agropecuárias e os posseiros,
assim como os atos de resistência.
A entrevista de Ana Felicia Araújo foi dada em frente à sua casa com
vista para o rio Tapirapé. Ela estava se sentindo um pouco doente, mas concordou
prontamente em ceder o relato em que descreveu a trajetória de migração da sua
família do Piauí ao Mato Grosso, o período em que morou em Luciara e se casou
com Alexandre Quirino (ex-delegado de Porto Alegre do Norte), a mudança para
ocupar as terras de Porto Alegre do Norte, a chegada das empresas agropecuárias
e os conflitos. A sua narrativa foi marcada por muitas lembranças dolorosas que a
fizeram chorar, principalmente quando perguntei sobre Dom Pedro Casaldáliga.
-se de algumas

que marcou o início do seu testemunho e que emitiu muitos significados foi
utilizada na epígrafe desta tese para expressar a importância da luta pela terra em
Porto Alegre do Norte.
O testemunho de Maria Zenaide de Araújo Silva não tinha sido
programado, mas em decorrência do mal-estar sentido durante a entrevista da sua
mãe (Ana Felicia Araújo), ela começou a me relatar as suas impressões e
vivências de quando era criança no decorrer dos conflitos de terra em Porto
Alegre do Norte. Essa narrativa foi muito importante, pois pude descrever a
participação das crianças na luta pela terra.
A entrevista de Odile Eglin foi dada em sua casa, que fica situada na
Aldeia dos Tapirapé no município de Confresa. No momento do seu relato, os
Tapirapé estavam construindo uma estrutura que seria utilizada em uma
cerimônia, assim a gravação está permeada pelos sons dos martelos e motosserras
utilizados na construção. A entrevistada descreveu sua chegada à aldeia dos
Tapirapé, o seu trabalho junto aos índios, a atuação da Prelazia de São Félix do
Araguaia e os métodos de mediação e apoio pastoral nos conflitos por terra na
região.
O relato de Luiz Carlos Machado foi cedido na sua chácara às
margens da BR 158 no município de Confresa. A narrativa elucidou sua migração
para Mato Grosso, seus diversos trabalhos como peão e empreiteiro nas fazendas
da região, principalmente na FRENOVA, descreveu os conflitos de terra, o seu
mandato como prefeito de Porto Alegre do Norte, seu posicionamento em relação
à atuação de Dom Pedro Casaldáliga, os crimes dos quais foi acusado e o período
que passou na prisão.
Ao término das entrevistas, solicitei aos entrevistados que assinassem
um termo de cessão de direitos sobre voz cujas cópias estão disponíveis no
PPGHIS/UFMT.
O uso das fontes orais nesta tese não tem a pretensão de realizar uma

imediato de verdade e de verdade alternativa, conforme as críticas tecidas por


Joutard57. As entrevistas foram realizadas com aqueles que vivenciaram a luta
pela terra em Porto Alegre do Norte, pois segundo Alberti a escolha dos
entrevistados é guiada pelos objetivos da pesquisa, assim convém selecionar as

57
JOUTARD, Philippe. História oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos.
In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e Abusos da História Oral.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
ocorrências ou situações ligadas ao tema e que possam fornecer depoimentos
58
.
Estas entrevistas59 foram realizadas de acordo com o método de
pesquisa60 da história oral, caracterizado por Verena Alberti como uma
metodologia que:

[...] privilegia a realização de entrevistas com pessoas que


participaram de, testemunharam, acontecimentos, conjunturas,
visões de mundo, como forma de aproximar do objeto de
estudo. Como consequência, o método da história oral produz
fontes de consultas (as entrevistas) para outros estudos,
podendo ser reunidas em um acervo aberto a pesquisadores.
Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições,
grupos sociais, categorias profissionais, movimentos,
conjunturas, etc. à luz de depoimentos de pessoas que deles
participaram ou os testemunharam61.

O uso dos relatos orais nesta tese tem relação com as concepções
elaboradas por Regina Beatriz Guimarães Neto, que os aponta
privilegiadas da arte de investigação do presente e do discurso sobre o passado; as
fontes orais oferecem rastros, vestígios, discursos reveladores da diversidade de
62
. As entrevistas
orais viabilizam a identificação das construções que os entrevistados possuem de
si e do seu ambiente social. Compreendidos como narrativas, os testemunhos orais
permitem a construção de um relato histórico acerca do passado vivido, revelados
a partir das memórias de experiências e percepção da realidade pelos diferentes
grupos sociais contemplados no presente trabalho, quais sejam: os posseiros,

58
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 31-32.
59

cometidos na linguagem falada não possuem peso equivalente na linguagem escrita. Assim,
mantê-los na entrevista transcrita iria imprimir uma ênfase que não se adquire na conversa.
Ibidem, p. 216.
60

através do campo teórico e metodológico produz e atribui significado a determinado


acontecimento histórico. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.
61
ALBERTI, op. cit., p. 18.
62
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Relatos Orais e Pesquisas Históricas. In: Anais do VII
Encontro Nacional de História Oral: História e Tradição Oral. Goiânia: ABHO/ UFG/UCG/UEG,
2004, p. 3.
agentes de pastorais, leigos e religiosos. Neste sentido, o trabalho com a história
oral através dos depoim
busca analisar as possibilidades de sua atualização no presente, onde adquirem
legibilidade, além de problematizar a reflexão sobre o lugar e o tempo do
historiador e a sua relação com o lugar e o tempo daqueles que testemunharam,
63
.
Esta pesquisa parte da perspectiva de Walter Benjamin de que
articular historicamente o passado não significa conhecê-
64
, pois de acordo com Michel de Certeau65 a escrita da história não reconstitui
a verdade, mas desenvolve uma análise em relação às versões do passado que os

buindo-lhes
significados que respondam as inquietações do presente, uma vez que o passado
continuará como uma incógnita.
Nesta perspectiva, Jeanne Marie Gagnebin66 nos lembra que a tarefa
do historiador consiste no papel constrangedor da luta contra o esquecimento e a
denegação, deve-se lutar contra a mentira, mas sem cair em uma definição
dogmática de verdade. Este trabalho é delicado, pois parte da premissa que o
-

esperança é privilégio exclusivo dos historiadores convencidos de que também os


mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem
67

Trazer à tona a memória da luta pela terra em Porto Alegre do Norte


implica o trabalho de que estes fatos não caiam no esquecimento. Apresentar os
relatos de tortura vivenciados pelos agentes de pastoral no Quartel da 14ª Polícia
do Exército na cidade Campo Grande (atual capital do estado de Mato Grosso do

63
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política. Trabalhadores
rurais, conflito social e medo na Amazônia (1970-1980). Revista Mundos do Trabalho, vol. 6, n.
11, p. 129-146, jan/jun. 2014, p. 146.
64
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1987. p. 224.
65
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 67.
66
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 44.
67
BENJAMIN, op. cit., p. 225.
Sul) no ano de 1973 remete ao ato de lutar contra a repetição do horror e quebrar o
silêncio imposto pelos vencedores. Remete-se, assim, à temporalidade da história
do tempo presente, em que uma das principais pecu
contemporâneos ou a coação pela verdade, isto é, a possibilidade desse
conhecimento histórico ser confrontado pelo testemunho dos que viveram os
68
. Esta história se estrutura no que
Walte
objeto de uma construção cujo
69
.
A constituição da trama histórica que tem como ator político o
trabalhador rural na luta pela terra em Porto Alegre do Norte parte de um estudo
que privilegia as práticas deste grupo social, em detrimento dos discursos oficiais
que não levam em consideração as suas estratégias de lutas e resistências, como
fatos cuja exposição nos registros oficiais é válida. Estes indivíduos não possuem
papel central na História, pois suas vidas são marcadas por características
relegadas pela sociedade, como a marginalidade e a exclusão destes ao acesso à
terra. Desse modo, segundo Gagnebin, cabe ao narrador (historiador) que:

[...] não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito
mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que
não tem significação, algo que parece não ter nem importância
nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que
fazer. [...] aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que
não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que
mesmo a memória de sua existência não subsiste aqueles que
desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus
nomes.70

Apresentar a memória dos trabalhadores rurais de Porto Alegre do


Norte não implica em lembrarmos sempre o que aconteceu de mais violento e
injusto na vida daquelas pessoas, mas com o intuito de servir de precedente para
que não permitamos que algo semelhante aconteça novamente, principalmente as
sessões de tortura e terror que estes vivenciaram ao longo das décadas de 1970 e

68
FICO, Carlos. História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso
brasileiro. Varia Historia, vol. 28, nº 47, p.43-59, jan/jun 2012C, p. 44.
69
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1987. p. 229.
70
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 54.
1980. Ao montar os restos/rastros que sobram da vida e da história oficial, os
historiadores não realizam apenas um rito de protesto, como também
desempenham o trabalho silencioso, anônimo, indispensável do legítimo
narrador.71
Desse modo, de acordo com Elizabeth Jelin72, a memória é

social. No plano coletivo, o desafio se pauta em superar as repetições e os


esquecimentos, bem como os abusos políticos, tomando distância e ao mesmo
tempo promovendo o debate e a reflexão ativa sobre esse passado e o seu sentido
para o presente/futuro. Nesta perspectiva, Reinhart Koselleck73, apresenta duas

passado e se concretiza no presente, como, por exemplo, através da memória.

A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos


foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se
fundem tanto a elaboração racional quanto as formas
inconscientes de comportamento, que não estão mais, que não
precisam estar mais presentes no conhecimento. Além disso, na
experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições,
sempre está contida e é preservada uma experiência alheia.
Neste sentido, também a história é desde sempre concebida
como conhecimento de experiências alheias.74

A expectativa se direciona para o futuro, como, por exemplo, os


desejos, as certezas e os descobrimentos. Assim, o presente é o ponto de
interseção em que o passado é o campo de experiência e o futuro é o horizonte de
expectativas, onde se reproduz a ação humana. Neste sentido, recorrer à memória

Koselleck, diante a uma complexidade do tempo, a experiência humana incorpora


as próprias sabedorias, bem como os conhecimentos que os outros tenham
transmitido. O passado pode condensar-se ou expandir-se, dependendo do modo

71
Ibidem, p. 118.
72
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI de España Editores, S.A.,
2002, p. 16.
73
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/Ed. PUC - Rio, 2006, p. 308.
74
Ibidem, p. 309-310.
que essas experiências passadas são incorporadas, pois é impossível localizar uma
memória, um ponto de vista e uma interpretação singular do passado. A luta
política ocorre sobre o significado do passado e, muitas vezes, esta se posiciona
75
.
A presente tese está divida em quatro capítulos. No primeiro capítulo,
o-
contextualizar de um modo geral como ocorreu o histórico de ocupação não
indígena do nordeste de Mato Grosso durante a primeira metade do século XX.
Pelas narrativas dos antigos moradores de Porto Alegre do Norte, em especial do
senhor João Souza Lima (João da Angélica), pude descrever o processo de
migração para aquela localidade no final da década de 1940, conhecida como
Cedrolândia, e, concomitantemente, a chegada de Domingos Medeiros da Silva,
e de sua família, que se instalaram na
beira do rio Tapirapé, formando o patrimônio de Porto Alegre do Norte.
A narrativa de João da Angélica traça o percurso da sua família do
Pará ao Mato Grosso, com a intenção de procurar terras livres e praticar a
agricultura familiar de subsistência, bem como a criação de gado. Apresentei a
vida dessas famílias em comunidade antes da entrada das empresas agropecuárias
na década de 1970. Estes indivíduos viviam em uma relação de parentesco
marcada pela sociabilidade de compadres e vizinhos. O cultivo das suas roças e a
construção de casas, currais, celeiros, etc. se davam por meio da prática do
mutirão, que consistia na ajuda mútua entre os membros de Porto Alegre do
Norte.
A composição do núcleo urbano do povoado de Porto Alegre do Norte
foi traçada pelos trabalhadores rurais e no centro deste havia o bebedouro público
do gado. As pessoas dos núcleos de ocupações próximos ao patrimônio de Porto
Alegre do Norte se reuniam em comemorações, como festas de santos, batizados e
casamentos durante o período das desobrigas76. A inexistência de postos de saúde

75
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI de España Editores, S.A.,
2002, p. 6.
76
Visitas que os missionários faziam, em princípio a cada ano, aos locais remotos. Levando os
sacramentos às populações que não dispunham de assistência religiosa regular, devido ao próprio
isolamento em que viviam ou ausência de padres na região. O nome desobrigas refere-se ao antigo
preceito da Igreja de que o católico é obrigado ao menos uma vez por ano a confessar-se e
na localidade fazia com que a população procurasse na natureza os remédios para
os problemas de saúde.
A migração dos trabalhadores rurais para Porto Alegre do Norte
advém de um histórico de exploração e dominação dos latifundiários nos seus
lugares de origem. O deslocamento destes indivíduos implica várias questões e

fruto a sua produção, destinada principalmente para a subsistência familiar, a


conquista da liberdade de poder escolher o que e quando plantar, ou seja, ser dono
do seu próprio trabalho. Assim, a mobilidade resulta em diversas motivações
subjetivas e objetivas, o que significa essencialmente a constituição de uma
cidadania na fronteira.
Os projetos de colonização e agropecuários no

projetos de colonização e agropecuários em Mato Grosso e, em consequência


dessa política pública do governo militar, analiso a instalação do projeto
agropecuário da fazenda FRENOVA em Porto Alegre do Norte no ano de 1970.
Descrevo a forma violenta com que os trabalhadores rurais foram notificados pela
agropecuária para deixar suas posses, sendo que no primeiro momento estes
avisos foram realizados por cartas de notificações, pedindo que estes se retirassem
das terras, tendo em vista que elas tinham sido adquiridas por grupos de
empresários de São Paulo.
Com a resistência dos posseiros em não deixar as propriedades, a
segunda estratégia foi o uso de ameaça e violência por parte de jagunços,
pistoleiros e polícia militar na expulsão daqueles indivíduos. Entretanto, os
empresários talvez não imaginassem que aquela situação seria mediada pelos
religiosos da Prelazia de São Félix do Araguaia, especialmente por Dom Pedro
Casaldáliga. A empresa não poderia desconsiderar o direito à posse das pessoas
que estavam estabelecidas na área há mais de trinta anos, isto é, muito antes da
Amazônia se tornar uma fronteira agrícola. Essa população teve o seu direito de ir

comungar. Nas desobrigas, além dos padres celebrarem as missas, também realizam batizados,
confissões e casamentos em grande quantidade. VALÉRIO, Escorsi Mairon. Entre a cruz e a
foice: D. Pedro Casaldáliga e a significação religiosa do Araguaia. Dissertação (Mestrado na área
de concentração de História Cultural). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007, p. 34.
e vir limitado por uma cerca que cortou o povoado ao meio e dificultou o acesso
ao bebedouro público do gado, mas estes resistiram e cortaram a cerca, dando
início a uma série de disputas pelo direito à terra em Porto Alegre do Norte.
Diante desses conflitos, vivenciados entre os anos de 1970 e 1972, o
Exército empreendeu diversas operações militares na região, com destaque para as
missões comandadas pelo Capitão Ailson Munhoz da Rocha Loper, que se
infiltrou na Prelazia como um padre e passou a investigar os trabalhos dos
religiosos, principalmente sobre a vida de Dom Pedro Casaldáliga e do padre
Francisco Jentel. Após ser questionado sobre a sua presença na Prelazia de São
Félix, o Capitão Ailson afirmou que as autoridades estavam convencidas de que a
região era um foco de subversão e guerrilha. Alegou ainda ter reconhecido em
Porto Alegre do Norte um guerrilheiro do Vale do Ribeira que em 1970 tinha lhe
arrancado as unhas numa ação e que estava na região acobertado pelo professor
que a Prelazia lá mantinha. Revelou que se as coisas continuassem como estavam,
os padres e leigos seriam expulsos, e ao Pe. Jentel, presente à conversa, que o
decreto de sua expulsão estava para ser publicado. Apresentou ainda detalhes da
correspondência familiar do bispo. Todos estes acontecimentos não impediram
Casaldáliga de mediar a situação dos posseiros e enviar diversas cartas para várias
autoridades, questionando o não cumprimento do Decreto 70.430 de 1972 que
estabelecia a assistência às pessoas domiciliadas na área dos planos de
desenvolvimento agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em áreas
pioneiras, por estabelecimentos oficiais de crédito.
No capítulo três, intitulad
-me a analisar os acontecimentos repressivos que
ocorreram na Prelazia de São Félix do Araguaia após a região ser enquadrada na
Lei de Segurança Nacional, tendo como justificativa, principalmente, os conflitos
por terras em Porto Alegre do Norte e Santa Terezinha que culminaram na prisão
e expulsão do padre Francisco Jentel do Brasil. O Vale do Araguaia passou a ser
considerado um foco de subversão, pois o regime militar desconfiava que os
agentes de pastorais, padres e leigos tinham relação com a Guerrilha do Araguaia,
devido à proximidade geográfica com esta última. No ano de 1973, a área da
Prelazia de São Félix do Araguaia vivenciou uma forte e violenta intervenção
militar na região que culminou no sequestro, prisão e tortura de alguns agentes de
pastorais e religiosos. A operação foi dirigida pelo Secretário de Segurança do
Estado, juntamente com a Polícia Militar, agentes do Exército, da Marinha, da
Aeronáutica e da Polícia Federal.
Os agentes de pastorais e religiosos foram acusados de incitar os
posseiros a lutarem contra o estabelecimento das empresas agropecuárias na
região, pois estes não teriam capacidade para organizar tais atos de resistências,
sendo influenciados pelos mentores intelectuais ligados à Igreja Católica. Na
madrugada de 4 de junho de 1973, os militares começaram a empreender os atos
de violência contra a população da Prelazia. Foram presos e espancados no dia 08
de julho de 1973 o leigo Tadeu e os padres Antônio Canuto, Eugênio Consoli
(padre do povoado de Porto Alegre do Norte), Leopoldo Belmonte e Pedro Mari
para delatarem o paradeiro do leigo José Pontim. No dia 04 de junho de 1973 na
casa das Irmãzinhas de Jesus foram presos Edgar e Thereza Adão, visitantes do
Rio de Janeiro que estavam na região para conhecer o trabalho dessas religiosas
na Aldeia dos Tapirapé. Em 5 de junho de 1973, a caminho da Cooperativa
Agrícola de Santa Terezinha, a leiga Thereza Salles foi sequestrada por policiais
que estavam à paisana. As análises dos relatos de tortura têm como propósito não
apenas relembrar as atrocidades da ditadura militar, como também conscientizar
para que estes atos nunca se repitam.

resistência do
contexto de instalação da Piraguassu, pertencente ao grupo YANMAR do Brasil,
entre os anos de 1975 e 1976. A empresa se instituiu em Porto Alegre do Norte
ciente de que nas terras havia trabalhadores rurais com direito a posse, entretanto
o seu gerente, Keizo Tukuriki, empreendeu uma série de ameaças para que os
posseiros aceitassem o acordo em receberem apenas 50 hectares, sendo que estes,
conforme o Ofício Circular 32/nº279 de 13 de novembro de 1974, teriam que ser
indenizados em 100 hectares. A Prelazia de São Félix do Araguaia passou a
esclarecer a população de Porto Alegre do Norte sobre os seus direitos,
estimulando para que permanecessem e resistissem na luta pela terra. Esse período
foi caracterizado pela Prelazia em dois momentos: 1976/1977 considerado
e 1978/1979
consistiu nos mecanismos de expulsão dos posseiros, tendo estes resistido nos
enfrentamentos diários, realizando o corte de cerca e denunciando as
enfrentamentos
dos posseiros para demarcação e titulação das suas áreas, bem como pela
delimitação do espaço urbano de Porto Alegre do Norte, tendo dentro dessas
ações o assassinato de um jagunço da Piraguassu pelos trabalhadores rurais.
Neste capítulo, retrato as formas de resistências cotidianas efetuadas
pelos posseiros, bem como a participação de mulheres e crianças na luta pela terra
em Porto Alegre do Norte. A constituição da escrita foi desenvolvida pelas
narrativas de João da Angélica, Altair e Ana Felicia como testemunhas do
processo de instalação das empresas agropecuárias no município. Os entrevistados
nos apresentaram relatos da violência que vivenciaram, assim como os
mecanismos de enfrentamentos que ambos utilizaram para permanecerem na terra.
1. MIGRAÇÕES E OCUPAÇÕES NO ARAGUAIA MATO-GROSSENSE

A década de 1970 fez repercutir as mais variadas análises da questão


agrária no Brasil, especialmente no que tange aos projetos de colonização da
Amazônia Legal. Estes estudos foram realizados, sobretudo por pesquisadores das
Ciências Humanas, como os sociólogos José de Souza Martins77 e Octavio
Ianni78, pelos antropólogos Alfredo Wagner Berno de Almeida79 e Neide
Esterci80. Estas pesquisas demonstram que a expulsão e expropriação de posseiros
por empresas e proprietários rurais do Centro-Sul do país, em particular na região
Amazônica, ocasionaram violência e conflitos pela disputa por terras. Os
posseiros eram migrantes estabelecidos naquelas áreas desde o início do século
XX, viviam das lavouras de subsistência (arroz, feijão, mandioca, milho, abóbora
e hortaliças), juntamente com a criação de animais (gado, porcos e galinhas),
produção extrativista, caça e pesca, destituídos de documentação que os
legitimassem como proprietários das suas terras.

espaço,
além da ação da frente pioneira, onde a terra não tem valor, não existe legalidade
na posse da terra, o Estado não se apresenta de forma legítima ou, em geral, nem

77
Cf. A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz
(Org.). História da vida privada no Brasil: contraste da intimidade contemporânea. Vol. 4, 4ª
reimp., São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p.659-726; Capitalismo e tradicionalismo: estudos sobre
as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1975; Expropriação e
Violência: a questão política no campo. São Paulo: Hucitec, 1984; Fronteira: A degradação do
outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009; Os camponeses e a política no Brasil:
as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1990.
78
Cf. A luta pela terra: história social pela terra e da luta pela terra numa área da Amazônia.
Petrópolis: Vozes, 1979; Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes,
1979; Ditadura e agricultura: o desenvolvimento do capitalismo na Amazônia: 1964-1978. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; Origens agrárias do Estado brasileiro. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
79
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação: os antagonismos sociais na
Amazônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e os Estado. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) Rio de Janeiro: Museu Nacional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 1993.
80
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008.
se apresenta. É o espaço além da zona de desenvolvimento, em que as relações
são atrasadas, não existe infraestrutura e a violência faz parte do cotidiano.
O conceito de frente pioneira traz consigo a ideia de formulação de
um novo espaço social, baseado no mercado e na contratualidade das relações
sociais. Não é apenas a aquisição de novos territórios, ou um simples
deslocamento populacional; é também a condição espacial e social que convida ou
induz à modernização, à formulação de novas concepções de vida, à mudança
social. Ela constitui o ambiente oposto ao das regiões antigas, esvaziadas de
populações, rotineiras, tradicionais e mortas81.
82
,
discute a transformação das terras amazônicas em mercadoria. Para tanto, o autor
expõe três grupos de campesinato, ou seja, trabalhadores e pequenos produtores
autônomos que viviam da economia familiar e vendiam o excedente da produção
no mercado amazônico. Dentre estes estavam os seringueiros e caucheiros que
com o fim do ciclo da borracha se tornaram sitiantes, não vendo a necessidade de
assegurar o direito da propriedade. Os posseiros que chegaram na década de 1960
se mesclaram com os sitiantes e formaram outros núcleos de ocupação. Eram
migrantes oriundos do Pará, Maranhão, Goiás, Minas Gerais e estados do Centro-
Sul, atraídos pela notícia de terras livres que constituíram povoados onde se
sobreviveria da economia de subsistência negociando o excedente da produção
familiar. E, por último, o grupo dos colonos que era todo o camponês, sitiante ou
posseiro que recebeu do INCRA títulos provisórios ou definitivos de propriedade
para aqueles que desenvolviam cultura efetiva e tinham moradia habitual
(benfeitorias) nas terras.
A terra que antes era tida como meio de subsistência para a população
migrante que se estabeleceu no sul do Pará no início do século XX viu essa lógica
ser modificada a partir da implantação dos projetos agropecuários naquela região
durante a década de 1970, pois esta foi transformada em mercadoria, provocando
assim, a alteração da estrutura fundiária que culminou nos conflitos pela posse da

81
MARTINS. José de Souza. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo:
Contexto, 2009.
82
IANNI, Octávio. A luta pela terra: história social pela terra e da luta pela terra numa área da
Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979A.
terra entre o proprietário legal versus ocupação de diversos grupos ao longo dos
anos.
Para Ianni83, os conflitos e a violência no campo foram provocados
pelo discurso de desenvolvimento econômico da Amazônia, o qual acarretou os
embates entre posseiros x proprietários rurais e grileiros84. As ações de grileiros,
em conjunto com fazendeiros, aceleraram a privatização da terra e transformaram-
na em mercadoria, destituindo, assim, os seus antigos ocupantes que foram
expulsos por meio de ameaças e violência ou pela venda das suas propriedades
por preços abaixo do mercado.
Situação que assume proximidade com a realidade exposta acima diz
respeito às pesquisas desenvolvidas por Neide Esterci em Conflito no Araguaia85,
antropóloga que se debruça em suas análises sobre a luta pela terra no nordeste de
Mato Grosso, especificamente no povoado de Santa Terezinha. A partir de 1966, a
área foi vendida pelo governo do estado para a CODEARA que adquiriu as terras
da região, ciente de que nelas haviam ocupantes com direito a posse. Entretanto, a
agropecuária os ignorou, gerando assim o conflito pela posse da terra entre
posseiros e a empresa.
A empresa tinha um prazo a cumprir para receber os incentivos
facultados pela lei. Então, o ritmo para a implantação do seu projeto foi acelerado,
o que gerou um atrito com os antigos moradores. A companhia propôs aos
ocupantes, ou seja, os posseiros, que fossem remanejados para locais mais
distantes, removendo-os das suas antigas terras de trabalho. Esse fato deu início,
em 1967, à disputa entre posseiros e a agropecuária que durou até 1972. A partir
da intervenção do padre Francisco Jentel como mediador dos interesses do grupo
de posseiros no conflito de Santa Terezinha, o Estado teve que tomar medidas
decisivas para amenizar o conflito entre a CODEARA e os antigos ocupantes do

83
Idem.
84
Falsificador de documentos para tomar posse de terras devolutas ou de terceiros. De acordo com
Miranda, o grileiro é o maior inimigo do posseiro. É aquele que tem apenas a terra como
mercadoria, para vender, e não para trabalhar. No âmbito agrário existem duas formas dessa
figura: o grileiro de propriedade e o grileiro de posse. O primeiro falsifica títulos, prepara
documentos, sem existir a terra, enquanto que o segundo é a pessoa alheia na esfera agrária que
busca a terra, através do apossamento, para depois vendê-la. MIRANDA, Alcir Gursen de. Direito
Agrário e o Posseiro...
85
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008.
espaço. Assim, o governo federal, junto aos órgãos competentes, acelerou o
processo de demarcação das áreas, reconhecendo o direito de posse nos termos
definidos pelo Estatuto da Terra de 1964 à população que já habitava o povoado
antes da chegada do empreendimento.
As pesquisas de Neide Esterci são de fundamental importância para o
desenvolvimento desta tese, tendo em vista que o seu trabalho sobre os conflitos
em Santa Terezinha contêm um material riquíssimo de fontes documentais, orais e
um extenso trabalho de campo na região. As suas investigações de caráter
pioneiro contribuíram para os avanços e divulgação de novos resultados de
pesquisas acerca do Araguaia mato-grossense.
Alfredo Wagner Berno de Almeida86

colonização espontânea87 que ocorria diferentemente das ocupações planejadas e


coordenadas pelo Estado para a apropriação das terras devolutas na década de
1970.
Este contexto é marcado pelo alto índice de desemprego no Nordeste e
Sudeste do Brasil, pela abertura de rodovias e da propaganda política das terras
fartas e de fácil acesso na Amazônia, assim como a divulgação do PNRA, de
modo que estes fatores contribuíram para o aumento do fluxo migratório de
trabalhadores rurais em busca de terras nas regiões Centro-Oeste e Norte do país,
os quais passaram a ocupar as áreas devolutas juntamente com as famílias já
estabelecidas sem os documentos de posse das terras.
Os ocupantes de terras devolutas são caracterizados por alguns autores
como posseiros:

[...] pequenos produtores agrícolas que compõem unidades de


trabalho familiar, detentores de benfeitorias, roçados e animais
de tração. Não se encontram subordinados por modalidades de
trabalho assalariado. Constituem-se em camponeses livres, que
abriram áreas próprias de cultivo em terras devolutas e
disponíveis, à margem das grandes explorações agropecuárias.
Mantém ligações com os circuitos de mercado de produtos
agrícolas (arroz, farinha, feijão) independentemente de

86
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação...
87
A luta pela terra...
plantations, agroindústrias ou projetos agropecuários
incentivados.88

Para José de Souza Martins:

O posseiro é lavrador pobre, que vende no mercado os


excedentes agrícolas do trabalho familiar, depois de ter
reservado uma parte de sua produção para o sustento da sua
família. O que ganha com a venda desses excedentes é para
comprar remédios, sal, querosene, às vezes roupa e mais uma
ou outra coisa necessária à casa ou ao trabalho. Como não
possui título de propriedade da terra em que trabalha, raramente
tem acesso ao crédito bancário, à assistência agronômica ou
qualquer outro tipo de apoio que lhe permita saber que, a rigor,
o posseiro não é um invasor da propriedade de outrem.
Invasores são os grileiros, fazendeiros e empresários que o
expulsam da sua posse.89

do
posseiro, considerado por este como desbravador da região nordeste de Mato
Grosso e um indivíduo que vivia à margem da sociedade que atribuía à migração
uma alternativa para uma vida melhor em um lugar distante. Desse modo,
Casaldáliga nos mostra que:

A maior parte do elemento humano na região é o sertanejo:


camponeses nordestinos, vindos diretamente do Maranhão, do
Pará, do Ceará, do Piauí, ou passando por Goiás. Desbravadores

destino numa forçada e desorientada migração, com rede de


dormir nas costas, os muitos filhos, algum cavalo magro e uns
90

De modo geral, o posseiro é o trabalhador rural migrante que ocupa


terras devolutas, destituído de documentação que o caracterize como proprietário
da terra em que reside. O posseiro não se estabelece em áreas que tenham títulos
de propriedade. Assim, ele é o agente que sofre a violência daqueles que os
expulsavam das terras, como pistoleiros e policiais que serviam aos empresários
rurais. Desse modo, a luta pela terra é considerada uma forma de resistência das
ações violentas de expulsão, sendo, de acordo com os autores apresentados, um

88
ALMEIDA, op. cit., p. 290.
89
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 104.
90
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 6.
dos fatores cruciais para entender a questão agrária brasileira pautada em conflitos
e violência nos espaços de ocupação recente na Amazônia.
É importante levarmos em consideração que a denominação

mesmos, como também pela mídia, pelos empresários rurais, órgãos


governamentais e, principalmente, pela Igreja Católica, a partir da atuação da
CPT, dos agentes de pastorais e Sindicatos dos Trabalhadores Rurais que
igualmente utilizavam essa designação. Ser posseiro no Araguaia mato-grossense
implicava o fato de ter direitos legítimos sobre as terras que ocupavam muito
antes da entrada das empresas agropecuárias, conforme o relato abaixo de João
Souza Lima91:

Naquela época, a gente não falava que era posseiro. Depois que
a fazenda chegou, a gente começou a falar em posseiro. Nós
falávamos que éramos moradores ou compadres. Lavrador já
tinha. O compadre já tinha o nome do lugar, por exemplo, Santo
Antônio, Bela Vista do Sebastião Pereira, era assim que era. O
posseiro começou quando a fazenda chegou. A fazenda falava

tomamos conhecimento e passamos a nos chamar de posseiros.


E somos posseiros. Resistíamos no nosso lugar, na nossa posse,
na sua terra se dá o nome de posseiro, porque ele é resistente
ali. [...] a Igreja falava isso para a gente. Naquele tempo o padre
estava desobrigado daquelas questões, porque não tinha nada.
Depois que começou a FRENOVA, os padres investiram e
í
92
ficamos .

Essa caracterização legitimava a luta pela terra e assinalava a sua


condição de desapropriado das suas posses pelos empresários do Centro-Sul do

este último muito utilizado por Dom Pedro Casaldáliga em seus escritos, em

91
João Souza Lima, conhecido como João da Angélica, veio com a sua família para Porto Alegre
do Norte na década de 1950. Seu pai saiu de Barreira do Campo/PA à procura de terras para a
criação de gado e encontrou no nordeste de Mato Grosso uma localidade próxima ao rio Tapirapé,
onde atualmente é Porto Alegre do Norte. A maior parte da trajetória da família foi realizada de
canoa pelo rio Araguaia e depois adentraram o rio Tapirapé para se estabelecerem no povoado de
Cedrolândia. O entrevistado chegou com a sua família no Araguaia mato-grossense em 6 de
janeiro de 1950, tendo, na época 10 anos de idade.
92
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora,
em 3 de dezembro de 2015, no município de Porto Alegre do Norte.
analogia ao tubarão como um peixe grande (o latifúndio) que devora os peixes
pequenos (os posseiros).
Desse modo, de acordo com Reinhart Koselleck93, torna-se necessário
compreender que é atribuição
social, saber a partir de quando os conceitos passam a poder ser empregados de
forma tão rigorosa como indicadores de transformações políticas e sociais de
acterística política e social para
94
, este toma para si uma categoria social que conferiu novos
significados aos seus usos, como demonstramos acima. Assim, a aplicação de
outros sentidos e definições para antigas palavras remete-nos às mudanças de
conteúdo e interpretações dos conceitos.
O trabalhador rural ou lavrador é denominado por José de Souza
Martins95 como camponês, pois se trata de um termo político que procura dar
unidade à situação de classe e, sobretudo, procura dar identidade à luta
camponesa. Desse modo, entendemos a categoria camponês como sinônimo da
designação de posseiro, tendo em vista, como apontamos acima, que este
personagem acionou a condição de posseiro para legitimar a luta pela terra na
Amazônia. Neste sentido, o termo posseiro não designa apenas um novo nome,
mas um indivíduo que está inserido em determinada espacialidade geográfica e
que também deve ser visto como um novo agente histórico.
Caracterizar o posseiro como um agente histórico é entendê-lo como
uma contradição do capitalismo, pois de acordo com Martins, a mesma sociedade
que tira proveito do seu trabalho também deseja eliminá-lo, sobretudo, no que diz
respeito ao fato de que a expansão capitalista ocorre geralmente sobre as terras
ocupadas pelos posseiros, expropriando-os e expulsando-os das suas posses. A
empresa rural via a ocupação como um empecilho na extração da renda sobre a
terra, tanto que as propagandas de venda dos imóveis anunciavam propriedades

93
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado... p. 101.
94
O posseiro é uma designação utilizada para os trabalhadores rurais presentes na Amazônia Legal.
José de Souza Martins demostra que em outras partes do Brasil os trabalhadores do campo
possuem diversas nomenclaturas, tais como: caipira (SP, MG, GO, PR e MS), caiçara (no litoral
paulista), tabaréu (Nordeste) e em outras localidades de caboclo. MARTINS, José de Souza. Os
camponeses e a política no Brasil...
95
Idem.
96
.
Este trabalho, portanto, parte da análise de movimentos migratórios
para o nordeste de Mato Grosso desde o início do século XX, especialmente,
tendo como foco de pesquisa o povoado de Porto Alegre do Norte, que passou a
ser ocupado por uma população não indígena, ou seja, por trabalhadores rurais a
partir do final da década de 1940. O trabalho irá demonstrar alguns aspectos do
modo de vida dessas pessoas antes da chegada dos empreendimentos
agropecuários na região durante a década de 1970, e como consequência deste
fato, problematizaremos a luta pela terra entre posseiros e as empresas rurais, bem
como a mediação da Igreja Católica na resolução desses conflitos. É válido
destacarmos que não é propósito desta investigação analisar os conflitos por terras
entre os fazendeiros da região97, assim como os conflitos que envolveram os
diversos povos indígenas do nordeste de Mato Grosso.
Podemos analisar a história da região do Araguaia a partir de dois
aspectos diferentes, ou seja, das localidades que se formaram à beira do rio
Araguaia: São Félix do Araguaia, Santa Terezinha, Santo Antônio e Luciara,
sendo estas originadas de migrações nordestinas datadas do início do século XX.
E, daqueles municípios mais diretamente ligados à esfera de influência da BR
158, como, por exemplo, Ribeirão Cascalheira, Vila Rica e Confresa. O processo
de (re)ocupação daquele espaço se deu a partir dos projetos agropecuários,
principalmente por empresas privadas, e pela implantação de assentamentos do
PNRA.
A (re)ocupação da região nos permite compreender alguns dos
conflitos vivenciados na década de 1970, desde a implantação dos projetos de
colonização voltados para a Amazônia durante o período ditatorial, bem como a
instauração de empresas agropecuárias com incentivos de órgãos estatais, como a
SUDAM, a SUDECO e o Banco do Brasil, que perduram até os dias atuais.

96
Ibidem, p. 116.
97
Dentre as disputas por terras podemos destacar: A Fazenda Tamakavy do Grupo Sílvio Santos
contra a fazenda Brasil Novo (1975); CODEARA X Fazenda Santa Lúcia (1976); Fazenda Santa
Cruz de propriedade de Antônio José Matoso teve a sua área contestada pelo senhor Amaury
acompanhado por 13 jagunços para expulsá-lo da área (1975).
O Araguaia era habitado por diversas sociedades indígenas, como
Xavante, Tapirapé, Karajá e Kayapó. De acordo com o João Carlos Barrozo98, a
história de colonização daquele espaço ocorreu a partir da Marcha para Oeste do
governo de Getúlio Vargas. Na década de 1940, as concessões de terras aliadas
aos incentivos para as empresas colonizadoras e aos projetos governamentais de
reforma agrária fizeram com que a população na região crescesse de forma
substancial.
Conforme Dom Pedro Casaldáliga, o fluxo de migração para o
Araguaia se deu em três momentos distintos, sendo que esta dinâmica da
população de adentrar e ocupar a região está na base dos problemas de luta e
posse da terra, desde a sua ocupação no início do século XX, que persistem até os
dias de hoje.
Casaldáliga nos mostra que primeiramente a região teve o contato dos
migrantes oriundos dos estados do Nordeste do país, fenômeno que durou até a
década de 1950, quando, por exemplo, chegavam atravessando o rio Araguaia em

foi relacionado no período às matas do Araguaia, entre outras partes do Brasil.

alegavam as propagandas políticas, essa população migrante logo se deparou com


os grupos indígenas que residiam no local.
Soares fez um estudo acerca dos primeiros movimentos migratórios
datados do início do século XX para o nordeste do estado de Mato Grosso. O
autor descreve os caminhos percorridos por estes migrantes e demonstra que sua
origem era predominantemente o sul do estado do Pará e o norte do estado de
Goiás (atual Tocantins). Esse fluxo migratório ocorreu concomitantemente em
ará, Nordeste de Mato

98
BARROZO, João Carlos. Os assentados e os assentamentos rurais do Araguaia. In: HARRES,
Marluza Marques; JOANONI NETO, Vitale (Org..). História, Terra e Trabalho em Mato Grosso:
Ensaios Teóricos e Resultados de Pesquisas. São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT,
2009.
Grosso, e outro, um traçado terrestre, atravessando a Ilha do Bananal99 no sentido
100
Leste- .
A partir da crise do comércio da borracha em 1914 e,
consequentemente, a queda do seu preço no mercado internacional devido à
concorrência com o Oriente (Ásia: Ceilão, Indonésia e Malásia), o cotidiano dos
povoados do sul do estado do Pará, principalmente de Conceição do Araguaia
experimentou uma mudança acentuada na esfera econômica devido à redução da
produção do látex na Amazônia.
Como alega Guimarães Neto, os garimpos de diamantes no leste
mato-grossense, atual município de Guiratinga, atraíram grande número de ex-
seringueiros que subiram o rio Araguaia nas primeiras décadas do século XX em
busca de novas atividades laborais. Muitas dessas pessoas que estavam de
passagem para os garimpos do leste de Mato Grosso formaram famílias no
Araguaia.

Levavam em sua bagagem não só a miséria que se restringia à


penúria econômica e à exploração degradante do trabalho, mas
a que também pode ser vista em outra dimensão: aquela que
pressiona grupos sociais pobres a se deslocarem de um lado ao
outro, aprisionados a incessantes construções míticas101.

De acordo com Soares102, o estabelecimento das primeiras pessoas que


migraram para o povoado de Mato Verde (atual Luciara) provém principalmente
do sul do estado do Pará: Barreira do Santana, Conceição do Araguaia, entre
outros. Estes migrantes tiveram como principal via de acesso para Mato Grosso a
navegação pelo rio Araguaia e seus deslocamentos eram realizados geralmente
com as famílias.

99
A Ilha do Bananal é considerada a maior ilha fluvial do mundo, situa-se no estado do Tocantins,
na divisa com Mato Grosso. Formada pelo rio Araguaia, estende-se por 320 km com uma largura
máxima de 55 km. Um terço da área corresponde ao Parque Nacional do Araguaia, fundado em
1959, e o restante cabe à reserva indígena, onde vivem os índios Javaé e Karajá. Disponível em:
<http://www.emdiv.com.br/pt/brasil/obrasil/1824-ilha-do-bananal-a-maior-ilha-fluvial-do-
mundo.html>. Acesso em: 24 mai. 2011.
100
SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos... p. 255.
101
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Cidades da Mineração: memória e práticas culturais
Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá: Carlini & Caniato/EDUFMT, 2006, p. 90.
102
SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos...
O segundo trajeto usado para chegar ao povoado de Mato Verde foi
utilizado a partir de meados da década de 1940 pelas diversas famílias do norte do
estado de Goiás (atual Tocantins), sendo este movimento realizado a pé ou em
tropa, seguindo as trilhas nas matas e campos da Ilha do Bananal. Os migrantes
vieram principalmente das cidades de Pium, Cristalândia e Porto Nacional, a

do Bananal enchem muito no inverno (período de chuva), dificultando a


103
.
A principal atividade desenvolvida nos primeiros anos do povoado de
Mato Verde foi a criação de gado desenvolvida pelo Sr. Lúcio da Luz104 e
agricultura familiar de subsistência cujo excedente era trocado por mercadorias
como o sal, querosene e tecidos.
Na década de 1940, deu-se a ocupação do Araguaia, a partir de seus
afluentes: às margens do Tapirapé surgiu Porto Alegre do Norte, e às margens do
rio das Mortes emergiu Santo Antônio. Seus moradores eram sertanejos oriundos
de Goiás, Maranhão e Pará em busca de terras para cultivar onde pudessem criar

caça, da coleta de frutos e da troca entre a vizinhança. Entre eles não havia
delimitação do espaço com marcos e não tinham a preocupação do registro de
105
.
Constatamos a atração de migrantes nordestinos num primeiro
momento, ludibriados pelos apelos propagandísticos políticos do governo de
Getúlio Vargas, bem como a conquista da terra prometida e anunciada pelas

um lugar promissor, impulsionados também por crises sociais como a fome, seca,
procura por terras livres, melhores condições de vida e a questão mística de que na
Amazônia havia a possibilidade de enriquecimento fácil.
Na primeira metade do século XX o nordeste do estado de Mato
Grosso já apresentava a criação de vários povoados na margem direita do rio

103
Ibidem, p. 257.
104
Considerado o fundador da cidade de Luciara, cujo nome é atribuído em sua homenagem e ao
rio Araguaia.
105
GONÇALVES, Judite; NICOLA, Rafaela. Araguaia do tranquilo balanço das águas à
turbulência anunciada: lutar é preciso. Campo Grande: ECOA, 2002, p. 20.
Araguaia: Furo de Pedra (1909), Lago Grande, Crisóstomo, Mato Verde (1934),
São Félix do Araguaia (1942) e Porto Alegre do Norte (1949), estando esse último
localizado às margens do rio Tapirapé. Estes povoados se constituíram ao longo

sertanejos/posseiros e as sociedades indígenas Kayapó, Xavante, Karajá e


106
.
Em meados da década de 1960, tem-se o segundo fluxo migratório
com a entrada das empresas agropecuárias no Araguaia, gerando conflitos ainda
hoje não resolvidos pela posse da terra, com posseiros e índios que estavam
fixados na área muito antes da chegada das primeiras migrações nordestinas
datadas do início do século XX. Exemplo disso é o povoado de Furo de Pedras, no
atual município de Santa Terezinha, cuja fundação no ano de 1910 contou com a
presença das Irmãzinhas de Jesus, escola e Igreja Católica. Antes da abertura dos
empreendimentos agropecuários, também se tem na região o estabelecimento de
outros dois povoados, hoje municípios, quais sejam Luciara e São Félix do
Araguaia.
No final dos anos de 1970, tinham sido aprovados para os principais
municípios da região Araguaia Barra do Garças e Luciara sessenta e seis
projetos do Governo Federal e, posteriormente, outros foram criados, como o da
Bordon S/A (Frigorífico Bordon); Nacional S/A (Banco Nacional de Minas
Gerais), cujo presidente era o então ministro das Relações Exteriores, Magalhães
Pinto; o da Uirapuru S/A (do jornalista-latifundiário, David Nasser), entre
outros107.
O terceiro fluxo se deu por meio da instauração dos projetos de
colonização e assentamento, estimulando a migração de pessoas da região
Nordeste e Sul do Brasil. Tais projetos se estabeleceram nos atuais municípios de
Confresa108 (empresa de colonização particular de mesmo nome), Água Boa,
Canarana e Querência (COOPERCANA), Santa Cruz do Xingu (COREBRASA) e
Vila Rica (SERVAP). Nos projetos de colonização localizados no extremo

106
SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos... p. 270.
107
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 9.
108
A empresa colonizadora era formada por três grandes agropecuárias: CODEARA, FREVOVA e
SAPEVA. Criou o projeto Tapiraguaia, junção dos nomes dos povos indígenas Tapirapé e rio
Araguaia, com o objetivo de acolher os colonos do Sul.
nordeste de Mato Grosso Confresa, Santa Cruz do Xingu e Vila Rica, as
colonizadoras não cumpriram com os acordos estabelecidos durante a compra das
terras no que diz respeito à disponibilização de maquinários agrícolas, sendo que
algumas nem mesmo possuíam máquinas. Não havia escolas, nem estradas de
acesso aos lotes dos colonos. Muitos foram abandonados pelas empresas sem
dinheiro para retornar para o Sul do país.
Vale lembrar que muitas dessas pessoas vieram para essas novas áreas
de fronteiras acreditando nas mensagens publicitárias sobre a fertilidade da terra,
da inexistência de qualquer tipo de conflitos e do apoio de infraestrutura básica

Durante a década de 1960 foi construída a estrada BR-158, ligando


São Félix do Araguaia a Cuiabá, e posteriormente ao Pará, passando por Porto
Alegre do Norte, Confresa e Vila Rica. Na década de 1970 foi aberta a BR-80
atravessando as terras indígenas no Parque Nacional do Xingu, conectando essa
região a São Félix e Cuiabá. Com a abertura dessas rodovias, muitas empresas
apropriaram-se de grandes áreas de terras no Araguaia, e muitas pessoas vindas de
diversas partes do país também passaram a ocupar as faixas de terras ao longo das
estradas. A primeira cidade proveniente desse processo foi Ribeirão Bonito (atual
Ribeirão Cascalheira); na década 1970, muitos povoados foram se formando às
margens das rodovias ou próximos, muitas vezes em terras devolutas, como é o
caso de pequenas cidades como: Bom Jesus do Araguaia e Serra Nova Dourada.
O território da Amazônia atraiu um grande número de projetos
agropecuários. Foram mais de 580 projetos, a maioria concentrada na região do
Araguaia mato-grossense e paraense e no atual estado do Tocantins. Os estados de
Mato Grosso e do Pará foram os que receberam maior número de projetos
agropecuários aprovados pela SUDAM mais de 400, 72% do total109.
Dentre estes projetos, houve muitos que sequer chegaram a ser
implantados, como, por exemplo, a Agropecuária Suiá-Missu, em São Félix do
Araguaia aprovado pela SUDAM em 1966, foi vendida a um grupo multinacional
italiano em 1972. Este projeto previa a construção de duas cidades: Liqüilândia e

109
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. BR-163 Cuiabá Santarém: Geopolítica, grilagem,
violência, mundialização. In: TORRES, Maurício (Org.). Amazônia Revelada: Os descaminhos ao
longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 91.
Suiá. Na futura cidade de Suiá seria construído um aeroporto internacional para

110
Liqüilândia havia apenas um curral e no lugar de Suiá só a se .
Como alega Barrozo, nos povoados do Araguaia, como, por exemplo,
em Santa Terezinha, os habitantes eram agricultores e pequenos criadores de
gado, os quais praticavam a pesca e a caça como atividades complementares.
ação, até hoje, parte das terras utilizadas para a criação de

111
.
Os empreendimentos agropecuários estabelecidos na região,
merecendo destaque as empresas CODEARA, FRENOVA, Suiá-Missu, Bordon
S/A, Tamacavy, Tapiraguaia112, entre outras, demandavam um número
significativo de trabalhadores que passaram a ser buscados em outros lugares,
especialmente em razão da falta de mão de obra na região para o atendimento de
suas necessidades, de tal sorte que tiveram de procurar trabalhadores no estado de
Goiás e no Nordeste brasileiro.
Nesse contexto de grande fluxo de pessoas que chegavam de
mudanças culturais e físicas, vinham os trabalhadores aliciados dos estados de
Goiás, Maranhão e Piauí. Os que partiam pela primeira vez do Maranhão e do
Piauí se depararam com uma fauna, flora e uma geografia diferentes do seu local
de origem. Em contrapartida, para os que vinham de Goiás havia menos
estranhamento, pois se estabeleceram em uma área muito semelhante daquelas
que estavam habituados, tendo em vista que o referido estado faz divisa com o
Mato Grosso e, assim, possuem aspectos geográficos parecidos.
Este processo de ocupação das terras no Araguaia ocasionou o
aumento da violência do campo, mortes, torturas de líderes comunitários e
militantes da Igreja Católica. Durante esse período, o Araguaia ficou tomado pelo
cenário dos conflitos entre os interesses do capital sob o respaldo do Estado,
contrapondo-se àqueles que defendiam os interesses dos excluídos na região.

110
Ibidem, p. 92.
111
BARROZO, João Carlos. Os assentados e os assentamentos rurais do Araguaia... p. 93.
112
Disponibilizamos uma relação dos projetos agropecuários aprovados pela SUDAM no Araguaia
mato-grossense. Ver Anexos: Tabela 2.
Como resultado de tal processo, foram construídas estratégias de resistência e
lutas pelo território. Foi de grande importância a atuação dos movimentos sociais,
tais como a CPT, CIMI e Sindicato dos Trabalhadores Rurais em conjunto com a
Igreja Católica, estes se organizaram e passaram a atuar junto aos posseiros,
pequenos proprietários, trabalhadores, migrantes e grupos indígenas.

1.1 Histórico de Ocupação de Porto Alegre do Norte: o cenário da vida dos


posseiros antes da chegada das empresas agropecuárias

Porto Alegre do Norte pertencia a Luciara, comarca de Barra do


Garças/MT. Situada na BR 158, a 240 km da sede do município, na beira do rio
Tapirapé. Segundo os dados da Prelazia de São Félix do Araguaia113, a sua
população na década de 1970 era de 2.500 habitantes, formada por lavradores e
pequenos comerciantes, além de uma população instável, composta por peões que
moravam temporariamente no patrimônio de Porto Alegre do Norte à procura de
trabalho na região114.
O povoado era estruturado pelo núcleo urbano e pela zona rural115 e
começou a ser ocupado a partir da margem direita do rio Tapirapé por migrantes
vindos, sobretudo, do norte de Goiás, do sul do Pará e Maranhão, alguns tendo
passado por Mato Verde (Luciara), apossaram de parte das matas e dos campos,
onde passaram a residir. As famílias viviam dispersas pelas áreas do sertão116.

113

Diocese de Guiratinga) Mato Grosso, Prelazia do Santíssimo Conceição do Araguaia, Pará e da


Prelazia de Cristalândia, Tocantins. Até 2005 esteve ligada à Diocese de Goiânia, Regional
Centro-Oeste da CNBB. Com a posse de Dom Leonardo Ulrich Steiner, passou a integrar a
Diocese de Cuiabá, Regional Oeste 2.
114
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A 17.4.11, 1980, p. 01.
115
Porto Alegre do Norte é considerado o núcleo urbano, enquanto os núcleos de ocupação como:
Azulona, Canabrava do Norte, Rio Sabino, Ponte, Mutum, Passagem da Vaca, Landi, Gameleira,
Xavantino, Grota Bonita, Cedrolândia, Barra do Tapirapé, Capão Redondo, Brejo Empastado, Boa
Vista, Bom Jardim, Varjão e Salvador, são considerados áreas de sertão, ou seja, ocupações
distantes do núcleo urbano.
116
A historiadora Lylia da Silva Guedes Galetti demonstra que o conceito de sertão era e
continuaria por muito tempo, em múltiplos sentidos, a negação do espaço já conquistado pela
Metrópole. Espaço em estado bruto, primitivo, deserto, inculto, lugar que está fora da ordem
(colonial), o que acolhe o desertor, o que não se deixa conhecer, bem como é caracterizado pelo
o selvagem, o bárbaro.
Algumas pessoas se agruparam em um local a que deram o nome de Cedrolândia,
por haver abundância de cedros, a uns três quilômetros da margem do rio117. Os
moradores vieram conhecer a região no ano de 1949 Leandro Souza Pinto118,
José Pereira dos Santos119 e Dionel Martins de Almeida. Saíram do sul do Pará, da
cidade de Barreira dos Campos, pelo rio Araguaia, passando por Santa Terezinha
e adentraram o rio Tapirapé juntamente com seus familiares que instituíram
moradia no povoado de Cedrolândia no ano de 1950120.
Outras famílias se estabeleceram às margens do rio onde havia um
bom lugar para o porto, como é o caso do posseiro Domingos Medeiros da Silva,

Tapirapé, dando início ao povoado de Porto Alegre do Norte. A localidade


recebeu este nome devido ao fato de que algumas vezes por ano atracava um
barco com mercadorias para negociar com a população. Um dos produtos mais
vendidos era a pinga. E entre um gole e outro a animação aumentava e o porto se
tornava alegre121.
Entre 1950 e 1960 outras famílias de posseiros provenientes dos
estados de Goiás, Pará e Maranhão migraram para o Araguaia mato-grossense à
procura de terras com a finalidade de desenvolverem a cultura de criação de gado.
Já nas décadas de 1970 e 1980, os migrantes foram atraídos pela conquista da
terra nas áreas dos grandes projetos de ocupação do governo ditatorial, a partir da
abertura da BR 158 em 1974. Assim, o histórico de migração destas populações é
marcado pelo processo de expansão do capitalismo no campo, tendo sido expulsas
dos seus locais de origem por pressões de latifundiários. Consequentemente,

GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Sertão, Fronteira, Brasil: Imagens de Mato Grosso no mapa da
civilização. Cuiabá: Entrelinhas/EDUFMT, 2012, p. 58.
117
A DURA, conquista da terra: Porto Alegre do Norte uma conquista dramática, Alvorada, São
Félix do Araguaia, jan/fev-2000, nº 214.
118
Pai do trabalhador rural e entrevistado, João Souza Lima (João da Angélica).
119
De acordo com as informações fornecidas por Justiniano Pereira Sales (Professor da rede
pública de Porto Alegre do Norte), o seu pai, José Pereira dos Santos, conhecido como Zé
Dimiciano (pelo fato da sua mãe se chamar Maria Domiciana), chegou a Cedrolândia no ano de
1950. A sua família naquele momento estava em formação, juntamente com a sua esposa Maria
Luiza Pereira Sales e seus filhos ainda com pouca idade, João Manoel Pereira Sales, Emilio
Pereira Sales e Marcelino Pereira Sales.
120
João Souza Lima (João da Angélica). Entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
121
A DURA, conquista da terra...
foram desapropriadas e passaram a buscar novas terras, até mesmo na condição de
posse ou de trabalhos temporários nas fazendas da região.
Mapa 3: Rota Fluvial a Porto Alegre do Norte/MT. Em destaque o percurso percorrido pelos posseiros que migraram de
Barreira do Campo/PA ao povoado de Porto Alegre do Norte/MT.
Estes migrantes se organizavam em terras ditas devolutas, em que
pudessem explorar uma posse sem que isto lhes gerasse maiores problemas. Desse
modo, esses posseiros adentraram em espaços desabitados, muitas vezes
encobertos pela mata, distantes das regiões densamente povoadas.
A mobilidade dos migrantes para a Amazônia é objeto de estudo de
diversos autores com perspectivas teóricas variadas. José de Souza Martins

brasileiro desenraizado, é migrante, é itinerante. A história dos camponeses-


posseiros é uma história de perambulação. A história dos camponeses-
122
. Ao estudar a formação do
campesinato maranhense, Francisca Isabel Vieira Keller demonstra que:

[...] no universo do lavrador, a transitoriedade é uma constante.


Seu mundo é um mundo de bens escassos e fugazes. E é por
isso que em sua estória de vida não há marcos temporais, mas
espaciais: ele saiu de um local x para outro y e desfila toda uma
série de deslocamentos de povoados e centros agrupados por
regiões, critério mais abrangente.123

Os movimentos migratórios para a Amazônia possuem diversos


fatores como elementos explicativos, tais como: a expulsão das antigas terras, a

sonho do El Dourado da Fronteira, a libertação da sujeição do trabalho nas


grandes propriedades, etc.; assim, Neide Esterci assinala a migração dos posseiros
para o nordeste de Mato Grosso, como:

[...] restabelecer o equilíbrio entre necessidades e recursos


disponíveis através do deslocamento espacial. A questão remete
à condição mais genérica do pequeno produtor em situações que
se caracterizam pela existência de espaços abertos, de terras
livres, e talvez seja uma sugestão para pensar noções tanto do
tipo que leva a caracterizar o homem do campo como
naturalmente nômade, como noções de que sempre que migra, o
pequeno produtor o faz em função de pressões exercidas por

122
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 17.
123
KELLER, Francisca Isabel Vieira. O homem da frente de expansão: permanência, mudança e
conflito. Revista de História, v. 51, 102, p. 665-709, abr/jun. 1975, p. 699.
outros grupos sociais. É possível ser o deslocamento no espaço
também uma regra social interna ao grupo.124

A migração tem como fator primordial a ocupação de áreas em que os


trabalhadores possam se instalar novamente como pequenos produtores,
assegurando, assim, a preservação da família de lavradores, pois a sobrevivência
desse grupo advém de um modo específico de trabalho. O acesso à terra é que
assegura a subsistência dos membros pela agricultura e criação de animais, tendo

registro das lutas para conseguir um espaço próprio na economia e na


125
.
O deslocamento para a fronteira ocorre como um mecanismo de
desprendimento da submissão provocada pelas relações de trabalho nos
latifúndios. Sob esta ótica, Vieira126, constata que do ponto de vista
macroestrutural a migração possui relação com as dificuldades de reprodução dos
trabalhadores rurais em determinadas regiões, já os migrantes veem o
deslocamento como algo que lhes confere autonomia. Neste aspecto, a autora
assinala a valorização do trabalhar para si, ser dono do seu tempo, ser liberto, em
oposição a trabalhar em terra de dono, trabalhar de alugado, ser cativo. A
ocupação de terras livres com recursos abundantes tornou-se um fator
significativo para obter-se a sobrevivência por meio da agricultura familiar e a
liberdade da dominação da grande propriedade.
Diferentemente dos migrantes que partiam para o Sudeste do país em
busca de trabalho no parque industrial ou para os seringais da Amazônia, os
pequenos produtores se deslocaram para o nordeste de Mato Grosso sem muita
noção do que lhes esperava, pois estes iam à busca de terras para trabalhar,
conferindo assim um significado para a ocupação daquele espaço. De acordo com

124
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 80.
125
WANDERLEY, Maria Nazareth Baudel. Raízes históricas do campesinato brasileiro. XX
Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, outubro. 1996, p. 8.
126
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. À procura das Bandeiras Verdes: Viagem, Missão e
Romaria. Movimento Sócio-religioso na Amazônia Oriental. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2001, p. 115-116.
127
a terra entra co .
É importante destacar que outro fator que impulsionou a vinda destes
trabalhadores rurais para Porto Alegre do Norte está relacionado com a questão da
religiosidade popular propagada pelo mito das
supostamente pelo Padre Cícero. Desse modo, os nordestinos deveriam migrar
para a Amazônia, considerada uma grande área desabitada, um lugar mítico
depois da travessia do grande rio128. Já na concepção de Vieira129
Ver
nordestino em direção à Amazônia, em busca do seu lugar social na fronteira. O
relato abaixo de Erotildes Millhomem130 nos ilustra este fato:

A minha avó era menina quando veio com os pais e doze


irmãos. Chegaram e já havia Conceição do Araguaia e lá se
estabeleceram, então depois eles foram para o sertão, pois eles
eram trabalhadores e foram fazer os engenhos de cana, plantar
cana, foram trabalhar para lá. A família da minha mãe veio a pé
do Maranhão com as trouxas na cabeça. A família da minha
mãe era muita gente e trazia um pouco de gado também, trazia
as coisas e chegou com Inocêncio Costa, porque ele estava
doente e lá [Maranhão] não tinha jeito de tratar e já tinham
gastado muito dinheiro com ele; e ele não veio correndo dos
cangaceiros, ele estava doente e se encontraram, acho que lá em

padrinho padre Cícero, para que a gente atravesse o rio à


procura das Bandeiras Verdes n
Verdes eram do lado de cá do Araguaia, e que não ia ter peste,
cangaceiros, que não ia ter nada de mau. Eles vieram e
plantaram as roças na estrada, colhiam e distribuíam para os
outros, porque não podia trazer, então distribuía. Assim, a cada

127
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 131.
128
MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira... p. 53.
129
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. À procura das Bandeiras Verdes... p. 152.
130
A família da entrevistada é oriunda do Maranhão e chegou a Luciara em 1939. Nascida em
Luciara/MT no dia 03/03/1939, filha de João Irineu da Silva e Enedina de Almeida. No final da
década de 1960 começou atuar como professora no GEA a pedido de Dom Pedro Casaldáliga. Ex
vice Prefeita de São Félix do Araguaia, no período de 1982/1989. Faz parte da Academia de
Letras, Cultura e Artes do Centro Oeste, Cadeira 21. Co-fundadora do Museu Histórico e Cultural
Municipal de São Félix do Araguaia.
ano eles ficavam em uma ponta de mata daquela e vinham até
que chegaram à beira do rio Araguaia e atravessaram.131

Esse relato nos ajuda a compreender as formas de deslocamentos de


famílias pobres para o nordeste de Mato Grosso na década de 1940. Essas famílias
eram compostas de trabalhadores rurais que fugiram da seca do Nordeste do país e
das ameaças dos cangaceiros. Porém, muitas delas já haviam migrado para os
garimpos de diamante ou de cristal, na divisa do norte de Goiás (atual Tocantins)
com o Pará, ou já tinham trabalhado em atividades extrativistas, tais como a coleta
de castanha-do-pará e látex, como também constituído posses em Conceição do
Araguaia, Barreira do Araguaia e Santa Maria das Barreiras no sul do estado do
Pará. Estas pe
seja, uma terra sem males e abundância, vindo a convite de parentes, amigos, ou
encontraram com estes durante o percurso para o Araguaia, como foi o caso da
família da entrevistada. O trajeto era feito a pé nas picadas pela mata, pois não
havia estradas, outros andavam a cavalos por meio das trilhas nas matas ou por
vias fluviais.

migratório para Porto Alegre do Norte, torna-se importante apresentarmos a


trajetória de vida do antigo posseiro João Souza Lima, mais conhecido como João
da Angélica, em referência ao nome da sua mãe Angélica Lima Gonçalves. O
entrevistado veio para o Araguaia com os seus pais em 1950, e se estabeleceu em
uma área denominada de Cedrolândia nos arredores de Porto Alegre do Norte:

Meu pai [Leandro Souza Pinto] veio caçar um lugar particular


em Porto Alegre do Norte, junto com o Dionelo132 e o Zé
Dimiciano133. E naquele tempo eles achavam o seguinte: tinha
que ser uma mata boa que tivesse água que dava para colocar o
gado. Naquele tempo eles andavam atrás de um lugar assim que
era para colocar o gado. O meu pai achou isso aqui e ficaram.

131
Erotildes da Silva Milhomem, entrevista de cinquenta e quatro minutos concedida à autora, em
06/12/2014 na cidade de São Félix do Araguaia.
132
Dionel Martins de Almeida.
133
José Pereira dos Santos.
Então, quando nós viemos de Barreira dos Campos viemos de
canoa, um monte de canoas. E de lá viemos para São Pedro e
para cá viemos de cavalo e canoa também. Como tinha uma
árvore muito grande com o nome de Cedro, então colocaram o
nome do lugar de Cedrolândia, porque deu muito Cedro. Meu
pai junto com o Dionelo fizeram uma roça, umas casinhas
beirando o chão e nós mudamos. Nossa mudança chegou em
Cedrolândia no dia 6 de janeiro de 1950. Eu tinha dez anos de
idade, justamente naquela época. Daí continuamos a morar e
chegar gente, daqui e de lá. Teve até umas quinze ou dezesseis
casas em Cedrolândia. [...] Eles falavam um seguinte: em
Barreira dos Campos, o pai desse Justiniano era irmão do meu
pai e também o meu padrinho. Aí chamou ele [José Pereira dos
Santos] mais o Dionelo para serem vaqueiros do Lúcio da Luz.
E tinha aquela história mesmo, antiga que o padre Cícero
Romão encomendava o povo a pegar as Bandeiras Verdes e ir
para a beira do rio Grande que era o rio Araguaia, não é? Pegar
as margens pequenas. Aí viemos e ficamos aqui. Chegamos a
Porto Alegre do Norte no dia 6 de janeiro de 1950.134

Como podemos observar, ambas as famílias dos entrevistados acima


migraram para o Araguaia em busca de terras férteis e agricultáveis, tendo a
criação de gado como a principal atividade econômica e de subsistência. Estas
vieram para o Mat
migração pode ser entendida como um mecanismo de resistência ao domínio do
latifúndio predominante nos estados de origem dos entrevistados: Maranhão e
Pará, áreas de colonização mais remotas permeadas pelo domínio dos antigos
coronéis. Saíram em busca de espaços não ocupados, que passaram a se chamar
sertões ou gerais até que se tornassem patrimônios com o estabelecimento de
outras famílias.
No relato de João da Angélica, podemos perceber que a migração
respeitava uma lógica de planejamento para o deslocamento familiar que se dava
em dois momentos distintos: primeiro, um membro do grupo familiar (o pai) se
deslocava para conhecer as condições das terras e sob a possibilidade de
ocupação; depois do reconhecimento da área escolhida por este indivíduo (o pai
juntamente com os amigos/parentes), é que se instituía a migração de toda a

134
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
Naquela época Porto
Alegre do Norte não tinha ninguém, era toda desocupada. Então, ficamos lá
morando, porque tinha mata e fazia as rocinhas que cultivava, e tinha um gadinho
135
. Esta afirmação dialoga com os dados do censo do IBGE de 1950136, em
que a distribuição percentual da população no censo demográfico em Mato
Grosso era de 0,4%, enquanto que nos estados de Goiás (1,9%), Maranhão (3%) e
Pará (2,2%), de onde vieram a maioria dos migrantes de Porto Alegre do Norte,
havia uma população bem maior do que a do estado de Mato Grosso. Sob esta
ótica, a constatação de João da Angélica se torna compreensível. A falta de um
número elevado de pessoas e de empreendimentos rurais em Porto Alegre do
Norte foi uma prerrogativa encontrada para se ocupar as terras e desenvolver a
agricultura familiar de subsistência.
Partir em busca de novas terras não significava somente encontrar um
lugar para estabelecer a família e viver do sustento que as atividades laborais
proviam. Temos que considerar que por trás das falas dessas testemunhas há
implícita a violência do processo migratório. Essas pessoas não deixaram os seus
locais de origem apenas para seguir uma profecia religiosa; pois precisamos
lembrar que elas foram expulsas dos seus espaços de sociabilidade pela expansão
do capitalismo, pela seca, fome e miséria que assolavam a sua sobrevivência.
Diante desses fatos, é válido assinalarmos que esses indivíduos
deixaram para trás todo um trabalho desenvolvido nas suas antigas moradias,
quando perderam o acesso à terra juntamente com suas benfeitorias, as áreas
desmatadas, as roças, as criações, as casas, etc., todas feitas com muito sacrifício
se levarmos em consideração o baixo nível tecnológico dos seus instrumentos de
trabalho. Desse modo, a violência contida no processo migratório decorre do
prejuízo de muitos anos de trabalho desempenhado para a instalação e

135
Idem.
136
Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=5&uf=00>.
Acesso em: 04 jan. 2016.
subsistência familiar, acarreta a perda dos laços de pertença com o antigo lar, bem
como na destituição da sua história com o espaço que lhe conferia identidade.
O estabelecimento desses migrantes se deu principalmente às margens
do rio Araguaia, na divisa dos estados do Tocantins, Goiás, Pará e Mato Grosso.
As famílias que migraram para Porto Alegre do Norte passaram um período de
estadia na Ilha do Bananal. Portanto, do outro lado do rio Araguaia, formaram
vilas, patrimônios e sertões; plantavam roças e criavam gado em posses de 50 a
100 hectares, dando origem, principalmente aos municípios de Porto Alegre do
Norte, Luciara, Santa Terezinha, São Félix do Araguaia, entre outros.
Ao se instalar em Porto Alegre do Norte e se apropriar de um pedaço
de terra, a família passava a trabalhar na área, conforme as suas necessidades,
cabendo a ela escolher como, quando e o que cultivar de acordo com os limites
impostos pela natureza, bem como pelo acesso aos instrumentos de trabalho
necessários à plantação e o elemento característico da subsistência familiar a
força de trabalho de seus membros.
Entretanto, temos que levar em consideração que o processo de
estabelecimento nas novas áreas não era tão simples como parece ser, pois estas
famílias tinham que começar os trabalhos de desmatamento, construções e plantio
das roças tudo novamente, com o agravante de que elas não conheciam a nova
espacialidade, a fauna, a flora, o calendário climático para a cultura da lavoura e
das criações. Neste sentido, torna-se importante destacar que segundo Maria
Cantuario, o cultivo da mandioca e a técnica de plantar a raiz que era a base da
alimentação dos lavradores, decorreu da produção em área de capão 137 a partir da
observação dos conhecimentos dos povos indígenas que habitavam a região138.
Então, a concretização para a instalação em Porto Alegre do Norte implicava o
conhecimento das características da região, o que demandava tempo até que os

137
Extensão do cerrado, constituído de faixas de mata que não alagam no tempo das chuvas, então
chamadas de terras altas e usadas para plantar todas as culturas locais. CANTUARIO, Maria
Raimunda dos Santos. lavradores
às margens do Araguaia Mato-grossense (1950 1990). Dissertação (Mestrado em História)
Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2012, p. 36.
138
Ibidem, p. 114.
indivíduos reconhecessem os períodos das chuvas e das secas, as frutas e
hortaliças que poderiam ser cultivadas, os locais ideais para a criação de pastos do
gado, etc., ou seja, novamente essas pessoas sofriam com o processo violento da
migração.
As famílias que chegavam tinham que se dirigir aos antigos moradores
para que estes lhes indicassem os locais onde eles poderiam se estabelecer. Um
novo posseiro não poderia demarcar uma gleba já formada sem a permissão do
seu proprietário, assim os novos moradores se direcionavam até Domingos
Medeiros da Silva, conhecido como Domingão para acertar o local pretendido da
posse, conforme o relato de Ana Felicia Araújo139:

As pessoas chegavam e conversavam que iam morar aqui. Ele


dizia que podia morar aqui e que apoiava. As pessoas diziam:

Ele era como se fosse o líder da comunidade. Aí o povo vinha e


morava aqui. Então, ele como o morador mais velho vinha e
conversava com ele para morar aqui.140

A terra não tinha proprietário, era de todos, desde que respeitassem as


regras para apropriação do espaço. As pessoas viviam em comunidade devido ao
isolamento natural e a falta de estradas, sendo o rio Araguaia o único meio de
acesso à região que no tempo da seca se tornava inavegável. As roças de
subsistência eram cultivadas coletivamente durante o período das chuvas que vai
de outubro a abril. De acordo, com o relato de Ana Felicia Araújo, os posseiros

139
No final da década de 1950, Ana Felicia, conhecida como dona Nininha, migrou com a sua
família do Piauí para Cristalândia em Goiás (atual Tocantins), pois tinha um irmão que já morava
na localidade. A trajetória para Cristalândia foi realizada a pé. Depois de cinco anos ela se mudou
com uma irmã casada para Luciara/MT, onde posteriormente Ana Felicia se casou com Alexandre
Quirino de Sousa. Em 1962 se mudaram para Porto Alegre do Norte, porque ficaram sabendo que
havia terras para se ocupar e assim o seu esposo foi trabalhar nas fazendas da região. Sobre a

140
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
éramos sustentados por aquilo que dava na roça. Porque não tinha outro lugar para
141
.
As terras apropriadas pelos posseiros de Porto Alegre do Norte
deveriam ser exploradas logo que possível, pois não era permitido manter a área
sem produção à espera da regularização das posses. O posseiro conferia valor a
terra no momento em que esta passava a ser trabalhada, visto que não era a posse
que tinha maior importância, mas sim os frutos do trabalho que ela rendia,
conforme podemos verificar no relato a seguir:

Naquele tempo eu falo para os meus meninos que em toda a


roça os bichinhos eram criados soltos. A rocinha cercada. Nós
limpávamos e fazíamos a coivara com a enxada e queimava.
Quando era para plantar o arroz a gente fazia o mutirão. E aí
vinha o Zé abrindo as covas e as mulheres semeando o arroz
naqueles buraquinhos e nós atrás fechando. Eh, mas dava um
legume bom! As coisas todas sadias!142

Para entendermos como ocorriam os mutirões, nos pautamos no


estudo de Antonio Candido sobre o caipira paulista, em que o autor observou
várias propriedades campesinas no interior de São Paulo, e percebeu que a
sociabilidade dos trabalhadores rurais ia além dos laços domésticos e se estendia
de forma muito expressiva nas relações estabelecidas com a vizinhança. As
atividades das lavouras eram solucionadas pela convocação do mutirão que supria
o problema da mão de obra individual ou familiar. Esse chamado ocorria na
reunião de vizinhos e o seu trabalho consistia no auxílio de determinada tarefa:
derrubada, roçada, plantio, colheita, dentre outros. O trabalho não era remunerado,
pois consistia em uma obrigaç
assistência participando das futuras convocações daqueles que lhe auxiliaram.
Este chamado sempre seria cumprido, visto que era praticamente impossível um

141
Ibidem.
142
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte, grifo nosso.
agricultor que só dispunha da mão de obra familiar cumprir com todas as
obrigações agrícolas sem a ajuda dos vizinhos143.
Em relação às análises tecidas por Antonio Candido sobre o caipira
paulista, empregamos uma associação com as práticas de agricultura dos
trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, mas tendo a consciência dos
aspectos que diferenciam as pesquisas sobre o campesinato do interior de São
Paulo, especialmente no que se refere ao tempo e espaço. No entanto, buscamos
destacar que os posseiros de Porto Alegre do Norte também se utilizavam da
técnica do mutirão para o desmatamento, plantio e colheita nas suas roças.
O mutirão como forma de auxílio mútuo entre a vizinhança ocorria
devido à noção de pertencimento a uma localidade, a qual conferia coesão às
relações sociais além das existentes entre o grupo familiar. Sobre o mutirão,
Antonio Candido expõe que:

Um bairro poderia, deste ângulo, definir-se como o


agrupamento territorial, mais ou menos denso, cujos limites são
traçados pela participação dos moradores em trabalhos de ajuda
mútua. É membro do bairro quem convoca e é convocado para
tais atividades. A obrigação bilateral é aí elemento integrante da
sociabilidade do grupo, que desta forma adquire consciência de
unidade e funcionamento. Na sociedade caipira a sua
manifestação mais importante é o mutirão.144

De acordo com Antonio Candido145, o bairro era o conjunto de


vizinhança que constituía o principal espaço da sociabilidade camponesa. Era
composto pelo agrupamento de algumas ou muitas famílias, de certo modo
vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de
auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas. A organização desse lugar era
disposta por casas, umas próximas das outras ou isoladas por terrenos extensos
distantes das outras moradias. Mas, este fato não impedia a sociabilidade entre os

143
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010, p. 81-82.
144
Ibidem, p. 81, grifo do autor.
145
Ibidem, p. 76.
vizinhos que era tão importante quanto a exercida com os familiares, pois entre
estes indivíduos predominava uma relação amistosa, assinalada pelo autor como

146
. A sociabilidade entre os vizinhos era regida pelo

como também do intercâmbio entre as famílias e as pessoas, delineado pela


proximidade física e pela necessidade de cooperação. Sob essa ótica, o relato de
Ana Felicia Araújo pode ser esclarecedor:

Às vezes a gente ajudava os vizinhos e depois eles nos


ajudavam nas roças. Era assim. Pois, sempre tinha um vizinho
mais amigo que ajudava. Eram os compadres e as comadres que
iam pegar o arroz e colher na roça do compadre e depois colhia
na minha roça, assim que eram as coisas. Era um pessoal bem
unido. Não tinha desunião nesse meio. Podia confiar nos
vizinhos. Uns criavam boi outros não criavam. Uns criavam
porcos e galinhas. E quando matava as criações, às vezes se
comprava, dividia ou trocava com os vizinhos. O certo era que a
gente convivia junto, todos muito juntos e todo mundo
amigo.147

Para Sá148, o camponês é definido pela prática econômica individual,


isto é, a família como componente expressivo no desempenho de tal atividade;
ajustada em um modelo ideal de autonomia e autossuficiência, o trabalho na roça
pode ser definido, sobretudo, pela valorização de uma independência que se opera
apesar de todas as dificuldades e precariedades advindas da natureza, a qual, em
última instância, impõe a estes indivíduos a constituição de relações cooperativas
extrafamiliares.
Sob a lógica de se precisar da ajuda do outro, o lavrador vê sua
autonomia destituída ao ter que dar e pedir auxílio. Desse modo, é válido

146
Ibidem, p. 72.
147
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
148
SÁ, Laís Mourão. Prática missionária e resistência cultural. In: ESTERCI, Neide (Org.).
Cooperativismo e coletivização no campo: questões sobre a prática da Igreja Popular no Brasil.
Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008, p. 15.
destacarmos que a prática dos mutirões em Porto Alegre do Norte, não ocorria

compadrio e vizinhança na ajuda mútua não era algo de todo objetivo, mas sim
fruto de uma atividade laboral desprovida de sofisticadas ferramentas de trabalho
e tecnologia, ou seja, de uma agricultura traçada pela precariedade.
No início da década de 1950, as famílias de migrantes oriundas
principalmente dos estados do Maranhão, sul do Pará e norte de Goiás começaram
a empreender a ocupação de Porto Alegre do Norte pela abertura das posses para a
sobrevivência e manutenção dos familiares. Durante os anos que se seguiram até a
década de 1970, a forma de propriedade na região era a posse, intensificada pela
propagação dos núcleos de ocupações através da chegada dos parentes, amigos e
conhecidos dos primeiros habitantes do local.
A base territorial de Porto Alegre do Norte é configurada pela
instalação das famílias próximas aos rios, córregos e riachos, sendo que o núcleo
urbano se formou às margens do rio Tapirapé, acarretando a formação de um novo
mapa das posses pelas referências das suas comunidades de origem, como as
posses de João da Angélica, dos Glórias - do senhor José Bento do povoado de
Canabrava do Norte, dos Guimarães e dos Fernandes149. A chegada desses grupos
familiares contribuiu para a constituição de novos grupos de indivíduos na

referência os nomes dos patriarcas das famílias. A disposição das posses seguia

dirigir aos antigos moradores e perguntar onde ele poderia demarcar a sua
gleba150.
laços de sociabilidade emitidos pela
relação entre a vizinhança impulsionavam as atividades do mutirão. Entretanto,
devemos considerar que a ajuda mútua disponibilizada de modo esporádico nos

149
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora,
em 02 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
150
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia...
mutirões também era reflexo de uma agricultura precária com poucos
instrumentos de trabalho e desprovida de maquinários, bem como pelo fato destes
indivíduos viverem em condições semelhantes de trabalho e de terem em comum
o contexto histórico imposto pelo processo violento da migração. Mas, além disso,
desejamos assinalar que o mutirão não tinha como expressão exclusiva a
manutenção da agricultura de subsistência, pois o ato de criarem uma consciência
de pertencimento à determinada localidade e ao grupo que estava ao seu redor,
demonstra que a conservação desses laços de sociabilidade foi fundamental para
as ações de enfrentamentos contra as empresas agropecuárias que vieram se
instalar na região a partir de década de 1970, conforme descritos nos capítulos
dois e quatro desta tese.
De acordo com Wanderley151, a agricultura familiar desenvolvida pelo
campesinato brasileiro pode ser expressa pela capacidade de prover a subsistência
do grupo familiar, em dois níveis complementares: a subsistência imediata, ou
seja, o atendimento das necessidades domésticas, e a reprodução da família pelas
gerações subsequentes. A produção camponesa se configura na denominada
-
grande número de atividades agrícolas e de criação animal, pois essa diversidade
de produtos poderia fornecer uma segurança contra possíveis adversidades da
natureza ou desigualdade das colheitas. Neste sentido, vemos que a família de
-
produziam vários alimentos, tais como: o arroz, o milho, a mandioca e a melancia,
criava-se porco, galinha e o gado. Entretanto, observamos que este fato não estava
apenas relacionado ao método de assegurar a alimentação familiar durante uma
possível intempérie, mas também para guarnecer a família com diversos gêneros
alimentícios na sua nutrição.
Em entrevista concedida pelo antigo morador da região, João da
Angélica, podemos perceber que a apropriação da terra ocorria de forma
individual, em que cada família trabalhava de modo autônomo na sua posse, isto
151
WANDERLEY, Maria Nazareth Baudel. Raízes históricas do campesinato brasileiro...
é, escolhendo o que produzir a partir dos ciclos da natureza, do estabelecimento na
terra, da disposição dos instrumentos de trabalho e a força laboral dos familiares e
da vizinhança. Este fato dialoga com Woortmann152, em que a terra para a
campesinidade não era vista como objeto de trabalho, mas como expressão de
moralidade, via-se nela a projeção de um patrimônio familiar, sobre a qual se faz
o trabalho que constrói a família enquanto valor; a terra não era simples coisa ou
mercadoria.
O objetivo fundamental da produção dos posseiros era a subsistência,
garantindo autonomia em relação à vida que tinham nos seus lugares de origem,
tendo em vista que antes o seu trabalho na terra tinha como finalidade atender os
anseios dos grandes proprietários, mas na nova espacialidade a sua produção se
dava de maneira autossuficiente para o seu consumo interno. Portanto, os
posseiros de Porto Alegre do Norte passaram a criar e fazer as suas próprias
reproduções. A venda dos excedentes não ocorria, pois os trabalhadores rurais
plantavam alimentos com pouca expressão no mercado. Assim, apenas o gado era
vendido nas raras vezes em que aparecia um atravessador na região, e com a
venda compravam-se os produtos que não se produziam nas posses, tais como
querosene, sal e tecidos. Nas atividades laborais dos lavradores, não havia o
emprego da mão de obra assalariada, contava-se com a ajuda da família e dos
vizinhos através dos mutirões para o plantio das suas roças. Estes indivíduos
organizaram a exploração do meio natural para atender as suas necessidades.
Nas perguntas que realizamos sobre os grupos indígenas do Araguaia,
as testemunhas apontaram que os índios das etnias Karajá e Tapirapé153 eram os
mais dóceis; já os Kayapó e os Xavante foram caracterizados como os índios mais
violentos. Desse modo, as casas dos moradores de Porto Alegre do Norte foram
152
WOORTMANN, Klaas. o campesinato como ordem moral.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília/Tempo Brasileiro, 1987, p. 11.
153

empresas agropecuárias conseguiram ocupar o território em que os índios Tapirapé viviam há


dezenas de anos, na confluência do rio Tapirapé e Araguaia. Na falta de uma providência oficial,
os Tapirapé decidiram demarcar a sua reserva. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a
política no Brasil... p. 107-108.
construídas umas próximas as outras por medo do ataque dos povos indígenas
presentes naquele espaço:

Mas o índio naquela época era o índio Xavante, o índio Kayapó


que aperreavam muito, mas o Tapirapé não. Era um índio
manso que lidava com a gente. Era um índio bom. Mas o
Kayapó..., mas eu dou razão ao índio Kayapó, pois eles vieram
de lá do Pará muito embaixo, já corrido, pois o pessoal matava
muito eles e foi indo e eles vieram fugido para cá, então ficaram
na Água do Peixinho, que é o Xingu. Eles ficavam revoltados
para fazer vingança. E estavam certos. Isso que os índios
passaram eu passo com esses netos meus e filhos, e nós estamos
passando. Naquela época o índio sofria na mão de todo mundo
e hoje os pequenos estão nas mãos dos grandes154.

Nos relatos dos moradores locais, os índios Tapirapé são vistos


como pacíficos cuja convivência era amistosa; já os índios Kayapó eram tidos
como índios violentos, dos quais as pessoas da região tinham muito medo, pois
eles quase chegaram a dizimar a etnia Tapirapé na disputa por territórios. Em
Luciara, a presença dos Kayapó é demonstrada por meio de narrativas bem
violentas acerca das suas ações contra os posseiros:

Então, mudamos para o sertão, mas havia índios que queriam


matar a gente, mas matou gente. Os Kayapó e os Xavante que
botavam para correr e matavam a gente. Então, fomos morar lá
no sertão. Meus pais, minha avó e os meus tios, então ficaram
todos lá, nesse lugar chamado Dois Irmãos, umas três léguas de
Luciara, eles ficaram morando lá. Um dia chegou um homem
todo caceteado de índio Karajá, Karajá não, Karajá é manso, é o
outro índio, Kayapó. Kayapó que mata com borduna, então
chegou um homem no couro de vaca, eles colocaram o homem
naquele couro e amarraram as quatros pontas assim, e quatro
homens carregando, chegaram lá em casa e colocaram no
terreiro e eu vendo aquilo, eu tinha sete anos e fiquei apavorada.

nossas coisas e fomos para a Rua.155

154
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
155
A palavra Rua significa que foram morar no núcleo urbano. Erotildes da Silva Milhomem,
entrevista de cinquenta e quatro minutos concedida à autora, em 06/12/2014 na cidade de São
Félix do Araguaia.
A família da entrevistada resolveu deixar o sertão para morar em um
núcleo urbano, considerado mais seguro dos ataques dos índios Kayapó. Ela
relatou que a população dos arredores de Luciara não reagia contra os índios, mas
em São Félix do Araguaia os moradores se armavam e matavam os povos
indígenas. Em Porto Alegre do Norte não encontramos relatos de violência contra
os Tapirapé, pois justificaram que estes índios se retiraram passivamente e se
deslocaram para outros territórios. As outras etnias presentes no Vale do Araguaia
causavam medo nas pessoas, conforme podemos verificar no relato do senhor
João Lima, um antigo morador do povoado:

O índio era muito perigoso. Quando os velhos nossos pais iam


para um canto da roça ou outro lugar, tinha que ficar um
barqueiro, junto com as mulheres, porque senão os índios
matavam. Naquele tempo todo mundo andava armado. Os
Xavante era de passagem feito chuva, agora os Kayapó
aperreavam muito nós. E os Tapirapé vivia nesse Urubu
Branco, mas não mexia com ninguém não.156

Os Tapirapé não causavam preocupação, visto que desde a década de


1950 passaram a conviver com as Irmãzinhas de Jesus na Aldeia Tapi'itawa. Já as
etnias Kayapó e Xavante provocavam medo nos posseiros, pois estes resistiam à
ocupação da área que tinham como suas, assim, essa territorialidade sobreposta
(índios e posseiros) provocava conflitos. Neste sentido, os posseiros
desenvolveram técnicas de amparo às mulheres na ausência dos seus maridos,
como também a busca da proteção aos ataques dos grupos indígenas por meio de
uso de armas. Desse modo, torna-se importante destacarmos que de modo geral, a
memória dos trabalhadores rurais não leva em consideração que eles invadiram as
terras indígenas e, por isso, os índios contra-atacavam tal ação. Diferentemente,
tem-se o relato de João da Angélica, que vê a violência dos povos indígenas como
uma vingança contra a tomada e expulsão das suas terras em temporalidades e
espacialidades diversas ao longo das suas histórias.
156
Relato de João Lima, morador antigo do povoado de Porto Alegre do Norte. Entrevista realizada
por Maria do Rosário S. Lima, em junho de 2001, em Porto Alegre do Norte, para a elaboração da
sua monografia do curso de História/UNEMAT, 2002.
1.2 A constituição do patrimônio de Porto Alegre do Norte: uma
espacialidade traçada pela mobilidade e história de famílias

O espaço estudado demonstra que o fluxo migratório para o Araguaia


mato-grossense ocorreu desde o início do século XX e que este processo foi
intensificado na década de 1970, pela construção das rodovias federais que
interligavam a Amazônia aos outros pontos do Brasil. Assim, Ianni indica que:

Desde 1970, intensificou-se a execução do programa do


governo federal de construir rodovias na Amazônia [...] essas

chegada de posseiros, grileiros, latifundiários e empresários,


agentes do poder público, igrejas e seitas, bancos e outros
, criações,
fazendas, posses, domínios, empresas, colônias. Em muitos
casos a rodovia caminha de par em par, depressa ou devagar,
com a ocupação da área. Outras vezes, a ocupação precede a
rodovia.157

O trajeto das famílias provenientes do Nordeste do país, sul do Pará e


norte de Goiás para o nordeste de Mato Grosso foi realizado a pé ou em lombos
de animais, como também em batelões pelo rio Araguaia no início do século XX.
Desse modo, a (re)ocupação da região antecede a implantação das principais
rodovias da Amazônia: Cuiabá-Santarém (1976), BR 158 (idealizada em 1944,
mas efetivamente aberta na década de 1970) e Transamazônica (1972), pois os
principais povoados da região foram formados até a primeira metade do século
XX: Furo de Pedra (1909), Lago Grande, Crisóstomo, Santa Terezinha, Mato
Verde (1934), São Félix do Araguaia (1942) e Porto Alegre do Norte (1949), ou
seja, antes da inauguração das citadas rodovias.
Entretanto, não podemos desconsiderar que o deslocamento de
famílias de trabalhadores rurais para o Araguaia mato-grossense tornou-se mais
intenso em meados da década de 1950 a partir da construção da rodovia Belém-

157
IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes,
1979B, p. 13.
Brasília (BR 010). Este trajeto possibilitou também a (re)ocupação do sul do Pará
e norte de Goiás, atual Tocantins, bem como a instauração da rodovia TO 336 que
liga a cidade de Guaraí a Couto Magalhães às margens do rio Araguaia, da mesma
maneira que as rodovias inauguradas a partir da década de 1970, como a Cuiabá-
Santarém, a BR 158 que atravessa o país de Norte a Sul e a Transamazônica, que
passa por sete estados brasileiros: Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins,
Pará e Amazônia, permitindo, assim, um maior fluxo migratório de pessoas
provenientes de diversos estados do Brasil para o nordeste de Mato Grosso.
Os migrantes procuravam áreas de mata fechada providas de água por
meio de rios, fontes e córregos. Desse modo, as primeiras famílias de Porto
Alegre do Norte se organizaram próximas ao rio Tapirapé, um dos principais
afluentes do rio Araguaia, em uma distância média de 100 a 150 km nos varjões
adentro. Estes também partiam em busca de terras férteis, tendo em vista que não
possuíam meios financeiros para recuperação do solo através de fertilizantes ou
adubos sintéticos.
A (re)ocupação da região não teve um projeto programado. Foi feita a
partir do que Ianni158
planejamento elaborado por órgãos públicos ou privados. Os posseiros se
estabeleciam nas áreas, construíam suas moradias e benfeitorias, formavam vilas e
delimitavam os espaços de acordo com a chegada de novas famílias.
A formação do povoado de Porto Alegre do Norte foi constituída
através da (re)ocupação daquele espaço pelas primeiras famílias que, com o
tempo, foram avisando parentes, amigos e conhecidos sobre a existência de terras
devolutas. Dessa forma, com o aumento da população se formou um conjunto
rural e urbano denominado por seus habitantes de patrimônio.
A lógica dos deslocamentos e ocupação dos espaços para a
constituição das moradas em Porto Alegre do Norte possui relação com a
instauração dos novos povoados estudados por Francisca Isabel Vieira Keller na
formação do campesinato maranhense. Em Porto Alegre do Norte a área ocupada
158
Idem.
pelos posseiros era denominada de patrimônio, já no interior das ocupações ao
longo da rodovia Belém Brasília, conforme Keller atribuía-se o nome de

ligados por laços de parentesco, amizade ou compadrio, os quais entraram pela


mata e se instalaram em um
familiares e iniciavam a abertura das roças. Depois de certo período, a notícia se
espalhava e outras famílias juntavam-se, aumentando o número de casas. Nesse
momento inicial, o centro era habitado por famílias unidas por laços de parentesco
ou compadrio, oriundas do mesmo local de origem, as quais desempenharam
juntas ou após o conhecimento da notícia de terras devolutas o deslocamento e
estabelecimento na mesma espacialidade159.
O espaço urbano de Porto Alegre do Norte foi construído pelos
posseiros sem o apoio ou ação dos órgãos governamentais. A área urbana passou a
ser a sede de várias atividades coletivas como celebrações de rezas, batizados,
casamentos160 e festas religiosas, as quais podemos identificar na entrevista de
João da Angélica:

As festas eram boas! Esse povo inventava santo não sei de onde
vinha. Todo dia tinha uma festa de um santo diferente. O santo
fulano de tal, o santo do Bom Jesus da Lapa, São Sebastião, São
Pedro, então tinha aquela festa, dois, três dias de festas. Aí os
padres vinham para a desobriga. Eles ficavam na Idalina. Eles
vinham de canoa ou barco e parava lá. Mandavam avisar que
tinham chegado. Nós saíamos de Cedrolândia para batizar os
meninos, celebrar os casamentos. Aquele tempo era tão bom!
Não é que nem hoje não161.

159
KELLER, Francisca Isabel Vieira. O homem da frente de expansão... p. 674.
160
Essas cerimônias eram realizadas através das visitas das desobrigas dos missionários no
princípio de cada ano, aos locais remotos. Levando os sacramentos às populações que não
dispunham de assistência religiosa regular, devido ao próprio isolamento em que viviam ou
ausência de padres na região. O nome desobrigas refere-se ao antigo preceito da Igreja de que o
católico é obrigado ao menos uma vez por ano a confessar-se e comungar. Foi muito comum no
Brasil desde o período colonial em razão das grandes distâncias e do pequeno número de padres
para atender, principalmente, as comunidades mais distantes do interior.
161
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
As festas de santos, as celebrações de batizado e de casamento eram
os momentos propícios para que a população dos núcleos de ocupação, como
Cedrolândia, próxima ao núcleo urbano de Porto Alegre do Norte, se reunissem e
partilhassem desses momentos de descontração, oportunizada pelas atividades das
desobrigas. Esses acontecimentos contribuíam para o enriquecimento cultural pelo
fato de se encontrarem diversas culturas oriundas de diferentes estados do país,
como também a troca e a criação de novos elementos culturais. Desse modo, o
núcleo urbano era considerado um ponto de referência para os moradores da
localidade, pois era onde os posseiros faziam suas compras, participavam das
festas religiosas batizados e casamentos, e vivenciavam as mais variadas
experiências culturais.
Esses núcleos de ocupação estavam muito distantes dos centros de
saúde, sendo que a Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga, publicada em 1971,
aponta que a saúde era um problema para 80% da população do Araguaia mato-
grossense. Naquele período só existia o Hospital do Índio de Santa Isabel na Ilha
do Bananal, que passou a funcionar no ano de 1969 162. Se a saúde ainda
continuava precária na década de 1970, com a chegada dos empreendimentos
agropecuários, imagine na década de 1950 quando os posseiros criaram diversos
núcleos de ocupações próximos ao núcleo urbano de Porto Alegre do Norte. Neste
sentido, em relação às doenças é válido apresentarmos a descrição de João da
Angélica:

Naquele tempo a febre que hoje chamamos de maleita, chamava

pau e fedegoso. Você bebia o chá de vereda, carrapicho de


ovelha, melão de São Caetano. Ficava tudo bom e forte, pois a
casca do Cedro cura tudo! Era uma benção. Você tomava um
chá meio reforçado hoje à noite e amanhã cedo a febre passava.
Continuava dois, três dias, pronto, não vinha mais. Cadê a
febre? Cortou. Não vinha mais não. Dava um banho quente nos

162
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 31.
meninos, aí embrulhava os meninos com as cobertas e quando
suava sarava.163

A doença mais comum na região era a malária. A inexistência de


postos médicos fez com que os moradores desenvolvessem vários métodos
caseiros para a cura dessa doença. Do mesmo modo como a saúde, a educação
também foi desenvolvida por meio de algumas práticas peculiares ao espaço da
nossa análise, conforme podemos identificar no relato abaixo:

Chamava-se Escola Particular. O Zé, hoje é finado Zé Moura,


ele vivia assim nas áreas dando aulas contratado pelos pais de
família. Ele passava seis meses aqui dando aulas. Saia daqui
uma comparação ia para Porto Alegre, outros seis meses saia de
lá e ia para outro lugar. Depois voltava e fazia o ciclo. No nosso
caso, os nossos pais, contratavam ele por um ano de escola.
Mas era assim, tinha que dar aula seis meses aqui, seis meses
ali, pois tudo era contrato, né? Aí fechava o ano. Era assim.164

O método de ensino exposto por João da Angélica assemelha-se ao


caso analisado por José de Souza Martins165 no povoado de Floresta no Maranhão.
As crianças daquela região frequentavam as aulas particulares de um mestre-
escola. Essas aulas ocorriam em um largo cômodo de uma casa construída de pau
a pique. Os alunos iam para a escola levando cada um o caderno, o lápis e um
tamborete. Nestas salas de aula, geralmente lotadas, sentavam no tamborete e
escreviam sobre os joelhos, usando-os como carteiras. Por este trabalho, o
professor recebia um pagamento mensal dos pais das crianças que, em geral, eram
trabalhadores rurais pobres em localidades onde o dinheiro era escasso.
Os habitantes da região construíram as casas, as ruas, a escola e o
bebedouro público do gado, bem como o empreendimento do trabalho coletivo de
desmatamento para a constituição do patrimônio. O patrimônio era formado por

163
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
164
Idem.
165
MARTINS, José de Souza. A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil. V.4, São Paulo: Cia. das Letras,
1998, p. 710.
áreas comuns, ou seja, espaços de uso comunitário. Estas áreas conhecidas como
-prima para a
construção das benfeitorias, como a madeira, a palha, o barro para os tijolos

O barro tirava e fazia as casas de taipa. A palha era de piaçaba.


A madeira tinha muito na mata. A coisa mais bonita do mundo.
Isso era chamado de mata de reserva. Aquela mata tinha a
madeira que era de reserva. O povo derrubava pouquinho coisa
que era para não estragar a mata e plantava uma roça de dois,
três, quatro anos. Não fazia esses aribê166 que faz hoje.167

Nesse local de uso comum também se encontrava a aguada, uma área


entre o cerrado e a mata de coqueiros. As palhas dos coqueiros eram utilizadas
para fazer a cobertura das casas, além de prover outros recursos, tais como: frutos
silvestres e ervas medicinais168. Já a aguada e o cerrado serviam de abrigo para o
gado que deveriam ser retirados dos varjões nos períodos de chuva para o cerrado,
bem como para o cultivo de alguns alimentos em determinados períodos do ano:

A mata de aguada é aquela mata alagada. Aí não dá para


produzir, pois no inverno ele enche e no verão ela seca. A gente
sabendo do tempo dá para plantar a melancia, o milho, essa
coisa, não dá para a mandioca, porque ela dá com um ano e a
água já vem. Agora o milho e o arroz dão.169

De acordo com Maria Cantuario, os varjões que são terras com


superfícies de areia com pequenas manchas dispersas de argila eram de suma
importância, pois nessas áreas os trabalhadores rurais encontravam grande parte
das frutas que compunham a sua dieta alimentar: o murici, buriti, buritirana, piqui,
pratudo, anajá de raposa, ariticum (fruto da quaresma), oiti, maçaranduba/cruviola
e outras espécies menos consumidas. Este espaço também era utilizado para a

166
O entrevistado explicou que naquela época não se desmatava sem necessidade.
167
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida a
autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
168
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 16.
169
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida a
autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
criação de gado, extrair as minhocas usadas na pescaria, adubo aplicado nos
canteiros e nas plantações do quintal, os capins para encher os sacos, que eram
usados como colchões, retiravam o barro de louça (argila) para a construção de
paredes, adobes, fornos, fogões de lenha, potes, panelas, cachimbos e outros
utensílios domésticos170.
O espaço desmatado dava lugar à vila/patrimônio, mas no seu interior,
ou seja, no sertão, se formaram casas, sítios, roças e áreas de trabalho das
famílias. Alguns possuíam casas nos patrimônios ou se mudavam definitivamente
para o sertão. Desse modo, o povoado se organizou em unidades domésticas sob
determinada liderança, unidos através de laços de parentescos, compadrio e
afinidade intermediada por uma relação à base de trocas, reciprocidade e
cooperação nos trabalhos171.

Naquele tempo tudo era compadre. Chamava o compadre e a


comadre para plantar a minha roça amanhã. Então, a comadre
vem e tudo. Juntava aquelas comadres e plantavam o arroz na
cuia, porque na bacia era dura para socar e na cuia era mole.
Mas aquilo era uma vida boa, rapaz! Todo mundo era amigo do
outro. Era compadre. Olha vou te contar, não sei como mudam
todas as coisas, porque naquele tempo a amizade era para a vida
toda. Também era pouquinha gente. Então, foi evoluindo. Ah,
menina. Eu tenho essa cabeça chata de carregar a cuinha de
osso de uma casa para outra que se chamava vizinhança, porque
repartia tudo com os vizinhos. O que matava dividia, era assim.
A vizinhança era compartilhar esses alimentos.172

O modo de vida dos posseiros se dava pela ajuda mútua caracterizada,


por exemplo, pelo plantio das roças coletivas. Os alimentos eram partilhados entre
os vizinhos, pois estes não eram apenas considerados pessoas que habitavam a
mesma espacialidade. Criavam-se laços de amizade duradoura sinalizada pela
relação do compadrio, ou seja, davam-se os filhos para serem batizados pelos
amigos, e dessa ação surgia uma espécie de ligação de parentesco e intimidade, a

170
CANTUARIO, Maria Raimunda dos Santos. p. 48.
171
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 15.
172
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida a
autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
qual podemos identificar no relato de Ataíde da Silva173, mais conhecido como
O compadrio tinha mais força do que ser irmão. O compadre era uma
coisa muito forte e tinha mais força que o irmão. Era tão importante que passavam
174
a conviver essa situação de isolamento, de re .
De acordo com Laís Mourão Sá, os três sistemas (parentesco,
compadrio e vizinhança) determinam as relações em todas as instâncias da vida
social camponesa. Estas relações de produção possibilitam às disposições básicas
imprescindíveis as exigências do trabalho. A família camponesa deve ser
entendida ao mesmo tempo como unidade de produção e unidade de consumo,
pois na roça familiar se obtém a sua produção econômica que tem por finalidade
atender as necessidades de consumo doméstico. Já a unidade de produção, se
pauta na propriedade dos meios de produção. Esta decorre da divisão do trabalho,
definida pelo parentesco, o qual se assenta nos critérios do sexo e da idade. O
trabalho familiar também é composto por um sistema de colaboração mais amplo,
o da troca-de-dia, reguladas pelo parentesco, compadrio e vizinhança175.
A unidade doméstica tem como foco de autoridade os propósitos do
chefe da família no controle do processo produtivo, a apropriação e uso do
trabalho. Assim, este procedimento ocorre pelo sistema de parentesco que codifica
o chefe de família que decide sobre o
trabalho de cada membro; é ele quem decide sobre a redistribuição do produto,
feita apenas no momento do consumo (na casa) e de acordo com as necessidades
176
. Ainda sobre o sistema de produção

ado a
autoridade máxima e encarregado pela alimentação dos familiares. O pai é quem

173
Chegou a Porto Alegre do Norte em 1972 para compor a equipe de leigos da Prelazia de São
Félix do Araguaia e atuar como professor da escola do povoado.
174
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora,
em 2 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
175
SÁ, Laís Mourão. Prática missionária e resistência cultural... p. 16.
176
Ibidem, p. 17.
decide o que plantar, quanto, e o que vender, como também atribui os serviços da
roça; e a mãe é quem divide os afazeres domésticos177.
A disposição geográfica do patrimônio de Porto Alegre do Norte era
composta da seguinte forma: o núcleo urbano localizado próximo ao rio Tapirapé,
formado pelas casas dos habitantes compostas por quintais providos de criações
domésticas e árvores frutíferas; os comércios, a escola, a Igreja Católica e o
bebedouro público do gado; as áreas de uso comum: aguada, cerrado, mata, e por
fim, o sertão.
Os núcleos de ocupação direcionavam-se dos sertões para a vila, ou
seja, do patrimônio ou núcleo urbano, através de estradas ou caminhos que iam
sendo construídos ao longo das idas e vindas dos seus habitantes. As famílias
viviam basicamente do que produziam, muitos produtos e principalmente
medicamentos eram trazidos geralmente da cidade de Belém por meio de
embarcações através dos rios Tocantins e Araguaia:

Além dos índios, os primeiros habitantes da região, os


sertanejos, chegaram por volta de 1920. Pacíficos e perdidos no
meio dos gentios e da natureza hostil, adotaram o modo de vida
dos nativos, criando seus filhos como eles. A terra foi
progressivamente desmatada e as roças, pouco a pouco,
avançaram pela floresta. Assim, desenvolveu-se uma agricultura
de subsistência, à base de milho, mandioca, arroz e feijão. A
pesca nas águas piscosas do Araguaia tornou-se importante
complemento da alimentação, juntamente com os produtos da
caça. Cada camponês possuía uma espingarda para caçar.178

No final da década de 1950, tem-se a conclusão da BR Belém-Brasília


e, consequentemente, a criação de outras estradas ligadas àquela rodovia, este
fato, segundo Velho179, contribuiu para que a produção dos trabalhadores rurais

177
ESTERCI, Neide. Roças comunitárias: projetos de transformação e formas de luta. In:
ESTERCI, Neide (Org.). Cooperativismo e coletivização no campo: questões sobre a prática da
Igreja Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008B, p. 25.
178
DUTERTRE, Alain; CASALDÁLIGA, Pedro e BALDUÍNO, Tomás. Francisco Jentel:
defensor do povo do Araguaia. 2. ed. Belo Horizonte: O Lutador, 2004, p. 13.
179
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato: um estudo comparativo a
partir da fronteira em movimento. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009, p.
186.
provenientes de regiões de fronteiras fosse integrada ao mercado nacional por
meio dessas estradas. Entretanto, conforme o relato acima, no Araguaia mato-
grossense a população praticava a agricultura de subsistência, impossibilitando,
assim, uma vinculação comercial com outros locais, tendo em vista que, por
exemplo, em Porto Alegre do Norte, a produção era voltada para produtos pouco
valorizados no comércio, como: o milho, a mandioca, a farinha e o arroz.
Desse modo, quando ocorria a venda dessas mercadorias, estas
recebiam um valor muito baixo, limitando o poder de compra dos posseiros, bem
como dificultando a integração do seu cultivo ao mercado nacional sob a
perspectiva de colaborar no seu abastecimento, haja vista que a agricultura era de
subsistência tendo a sua maior parte destinada ao autoconsumo, sendo apenas o
gado, o item mais importante numa possível comercialização, segundo podemos
identificar no relato abaixo:

Não se vendia nada. O arroz era para o uso nosso, assim como o
milho, a mandioca, tudo, tudo, tudo. A agricultura era de
subsistência. E criava um gadinho, cavalo, porco, jumento e
galinha. Era a maior riqueza aquele tempo. Tudo era para comer
e nada vendia. Até porque naquele tempo não tinha para quem
vender, tudo era uma coisa só, né? Aí quando vendia, vendia
um gado, um boi grande para uns homens que hoje a gente
chama de atravessador que vinha aí e comprava. Aí nossos pais
compravam o sal, compravam a roupa.180

A (re)ocupação de Porto Alegre do Norte diverge dos projetos de


colonização programados pelo governo militar, pois os núcleos de ocupações do
povoado foram constituídos antes das políticas de ocupação que atraíram os
colonos que se dirigiram para a Amazônia Legal, e instalados nessas áreas através
de órgãos públicos ou empresas particulares. Desse modo, Ianni apresenta um
documento do INCRA, de 1973, a respeito das condições necessárias para a
ocupação das áreas de colonização oficial:

180
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
Para melhor atender as necessidades sociais, culturais e

rurais: a agrovila, a agrópolis e a rurópolis, formando uma


hierarquia urbanística segundo a infraestrutura social, cultural e
econômica e tendo cada qual sua função específica. A agrovila
é um pequeno centro urbano destinado à moradia dos que se
dedicavam a atividades agrícolas ou pastoris e tem por
finalidade a integração social dos habitantes do meio rural,
oferecendo-lhes condições de vida em moldes civilizados. É um
verdadeiro bairro rural ... [...] A agrópolis é um pequeno centro
urbano agroindustrial, cultural e administrativo destinado a dar
apoio à integração social no meio rural. Exerce influência sócio-
econômica, cultural e administrativa numa área ideal de mais ou
menos 10 km de raio, na qual podem estar situadas de 8 a 12
agrovilas, que são comunidades menores e dela dependentes. A
rurópolis é um pequeno pólo de desenvolvimento, o centro
principal de uma grande comunidade rural constituída por
agrópolis e agrovilas [...]. A rurópolis é um núcleo urbano-rural
diversificado nas atividades públicas e privadas, possuindo
comércio, indústria, serviços sociais, culturais, religiosos,
médico-odontológicos e administrativos, não apenas de
interesse local, mas sobretudo, para servir à sua área de
influência.181

Diante do exposto, podemos perceber que os projetos de colonização


posteriores à ocupação de Porto Alegre do Norte possuíam alguma semelhança
com os núcleos de ocupações do povoado, como, por exemplo, a descrição da
agrovila que pode ser comparada ao núcleo residencial criado pelos posseiros,

suscitar a interação social dos habitantes. Também é válido apontar que o


conjunto de agrovilas se equiparava à organização do núcleo de posseiros, tendo
em vista que nas regiões próximas a Porto Alegre do Norte (considerada o núcleo
urbano) tinham-
Sabino, Ponte, Mutum, Passagem da Vaca, Landi, Gameleira, Xavantino, Grota
Bonita, Cedrolândia, Barra do Tapirapé, Capão Redondo, Brejo Empastado, Boa
182
, denominados de sertões. Mas somente

181
INCRA, 1973 apud IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 61.
182
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A 17.3.16, 1978, p. 3.
com a instalação da Prelazia de São Félix do Araguaia no final da década de 1960
que se fortaleceu uma maior relação entre esses núcleos.
No entanto, as descrições dos empreendimentos rurais só se
assemelhavam aos modos de vida dos posseiros, isto é, da organização dos
núcleos de ocupação dos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, pois na
prática o posseiro não tinha relações com o INCRA, não possuía meios
financeiros para comprar as terras nas áreas dos projetos de colonização, bem
como não podia fazer financiamentos nos bancos. Assim, estes não eram

Os posseiros foram destituídos do apoio de órgãos governamentais


que pudessem direcionar as suas vidas para os empreendimentos de colonização e
acesso à terra. Ao contrário destas políticas de ocupação, o trabalhador rural
estava desprovido da documentação registrada em cartório das terras que ocupava,
não tinha saldos e créditos aprovados no banco, a sua carteira de trabalho não era
assinada, ou seja, este personagem era oficialmente um anônimo, a sua existência
advinha somente da posse que ocupava e do trabalho de subsistência que nela
desenvolvia.
Entretanto, o fato de os trabalhadores rurais não estarem ligados
oficialmente aos órgãos que conferiam legalmente o acesso à terra na Amazônia,
estes, de forma mais liberta, puderam ocupar em caráter espontâneo áreas, nas
quais recriaram suas vidas, sendo importante destacar que esta atitude de
colonização espontânea foi vista por Ianni como uma reforma agrária.

Era e continua a ser um fato de existência de largas extensões


de terras indígenas e devolutas na Amazônia. E foi essa a base
do crescente e extenso afluxo de trabalhadores rurais e seus
familiares, principalmente para o sul do Pará, o norte de Mato
Grosso, Rondônia, Acre e outras áreas. Foi assim que se
deslocaram para essas áreas, contingentes de trabalhadores
desempregados ou subempregados em outras regiões do país.
Isso significa que, na prática, as migrações de trabalhadores
rurais para a Amazônia ou o processo de colonização
espontânea configurava uma reforma agrária realizada por
esses mesmos trabalhadores e os seus familiares. Estava em
curso uma reforma agrária espontânea ou de fato, sem a
interferência de governantes, burocratas ou técnicos.183

Em relação ao exposto, é necessário apontarmos que a dita reforma


agrária efetuada pelos trabalhadores rurais na Amazônia Legal tem uma
particularidade temporária, pois a ocupação daquelas áreas era instável até

consequente expulsão de muitos posseiros.


O deslocamento de diversas famílias para Porto Alegre do Norte, a
exemplo do relato de vida de João da Angélica, nos mostra que esta dinâmica
estava centrada na constituição de um espaço familiar para se viver e trabalhar,
bem como no estabelecimento de uma memória que seria reproduzida para as
futuras gerações. A mobilidade da sua família adveio de constantes e sucessivos
deslocamentos territoriais, resultado direto contra a dominação dos latifundiários
ao resistir e migrar para áreas distantes, consideradas devolutas, longe desses
problemas e repleta de fertilidade e perspectiva.
O espaço para a constituição da agricultura familiar foi direcionado
para a fronteira, a qual, de modo temporário, como iremos ver nos capítulos dois e
quatro desta pesquisa, pôde conferir aos trabalhadores rurais a tão almejada
autonomia de vida nas terras livres e acessíveis para a formação de posses. Se
instalar em um local desconhecido significava se libertar dos laços dos
latifundiários, da seca, da pobreza e da falta de terras. Entretanto, esta fronteira
tida como utópica para os posseiros logo se tornou o espaço essencialmente da
violência e da degradação do outro, conforme Martins184 ou, ainda, na mesma
lógica, como o lugar da exclusão social, segundo José Vicente Tavares dos
Santos185, que também a via como um ambiente de refúgio e recomeço, de
decepção e fracasso, mas apesar de tudo, a fronteira era também a concretização
de um sonho a conquista da terra.

183
IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 14, grifos nossos.
184
MARTINS, José de Souza. Fronteira...
185
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A cidadania dilacerada. Revista Crítica de Ciências
Sociais, Coimbra, n. 37, jun. 1993A.
havia entre os
camponeses das regiões de origem, de certa forma acuados pela falta de terras, um
desejo de reproduzir-se como camponeses, quer tratando-se deles mesmos em
melhores terras ou em áreas mais extensas, ou de seus filhos em condições
186
semelhantes . Desse modo, a fronteira possibilitou a busca por terras livres
como um projeto de vida para a constituição de uma espacialidade familiar,
mesmo em um local distante das suas origens.
É importante levarmos em consideração que os migrantes não
buscavam somente a conquista da terra. Eles também almejavam ter uma
cidadania na fronteira, ou seja, constituir a dignidade que lhes era negada nas suas
regiões de origem. A migração garantiria a manutenção dos seus padrões
rotineiros de produtividade, bem como a perspectiva para a realização da
agricultura de subsistência familiar sob melhores condições. Estes desejos
impulsionaram a chegada dos trabalhadores rurais em Porto Alegre do Norte
constituindo, assim, um novo grupo de indivíduos na fronteira.

186
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Matuchos exclusão e luta: do Sul para a Amazônia.
Petrópolis: Vozes, 1993B, p. 258.
2. OS PROJETOS AGROPECUÁRIOS E DE COLONIZAÇÃO NA
AMAZÔNIA LEGAL DURANTE A DÉCADA DE 1970

Durante os anos do Governo de Getúlio Vargas (1930-1945) foram


criados programas de expansão econômica co
como objetivo ocupar as áreas consideradas vazias do Centro-Oeste, bem como
levar o progresso e o desenvolvimento econômico e social, através da política de
atração de migrantes para o Centro do Brasil.
Esta política tra
187
. Tal discurso demonstra as pretensões do
governo de Getúlio Vargas que apresentava habilidade para superar os conflitos
sociais, a partir da construção de uma imagem homogênea da Nação, e do Estado,
no qual o uso de propagandas foi de fundamental importância para provocar a
mobilização de migrantes para o Oeste, considerado uma região com espaços
vazios.
Dessa forma, o governo Vargas se apropriou da figura mítica da
Amazônia como o Vale da Promissão188 para o deslocamento de migrantes
provenientes dos estados do Nordeste, os quais, segundo Getúlio Vargas, eram
dotados de um povo promissor apto a ocupar as vastas áreas da Amazônia, tendo
em vista que este conquistara o Acre no final do século XIX através de uma onda
migratória, e assim, teria competência para repetir tal ato.
No início da década de 1970, o governo civil-militar implantou no
Brasil novamente uma política de (re)ocupação da Amazônia, área considerada

187

Celina (Org.). Getúlio Vargas. Brasília: Centro de Informação e Documentação/Edições Câmara,


2011, p. 370.
188
Desde as viagens dos naturalistas, estes já predisseram que a Amazônia seria o celeiro do
mundo. Durante o governo de Getúlio Vargas, a ideia da Amazônia como Vale da Promissão foi
muito disseminada, como uma forma de representá-la como paraíso, contrapondo-se a imagem
desta como um lugar inóspito, ou uma representação infernal. Para exemplificar, ver: GUILLEN,
Isabel C. Martins. Errantes da Selva: História da Migração Nordestina para a Amazônia. Recife:
EdUFPE, 2006, p. 30-59.
espaço vazio. Assim, sob o pretexto de promover a Segurança Nacional, os
militares instauraram na região os Projetos de Colonização e Agropecuários em
favorecimento do grande capital estrangeiro, sendo desenvolvidas naquela área
atividades econômicas ligadas principalmente aos setores agrícolas e pecuários.
Para a instituição dos projetos, as empresas receberam do governo grandes

189
.
Segundo Golbery do Couto e Silva:

Com vistas à humanização, integração e valorização do


território imenso, ainda em grande parte inaproveitado e
deserto, o esquema tripeninsular [...] está, por certo, a indicar-
nos [...] três fases sucessivas na ampla manobra geopolítica a
realizar [...] 1ª. Fase - articular firmemente a base de nossa
projeção continental, ligando o Nordeste e o Sul ao núcleo
central do país, ao mesmo passo que garantir a inviolabilidade
da vasta extensão despovoada do interior pelo tamponamento
eficaz das possíveis vias de penetração; 2ª. Fase - impulsionar o
avanço para o Noroeste da onda colonizadora, a partir da
plataforma central, de modo a integrar a península Centro-Oeste
no todo ecumênico brasileiro; 3ª. Fase inundar de civilização
a Hileia amazônica, a coberto dos nódulos fronteiriços, partindo
de uma base avançada construída no Centro-Oeste [...]190.

Para efetivação desse projeto foram transferidas para o território


amazônico centenas de famílias de trabalhadores rurais pobres de várias regiões
do Brasil, sobretudo do Nordeste, para se estabelecerem às margens das rodovias
federais, como, por exemplo, a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém. Como
podemos observar para Couto e Silva, essa política iria ajudar a solucionar as
tensões e os conflitos agrários, especialmente no Nordeste e no Centro-Sul do
país, ao passo que a disposição de grupos sociais do campo, desprovidos de terras

189
A região Norte está inserida na Amazônia que compreende os estados do Acre, Amapá,
Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins. A Amazônia Legal é acrescida pelo estado de
Mato Grosso e parte do Maranhão.
190
COUTO e SILVA. Golbery. Conjuntura polícia nacional: o poder executivo & geopolítica do
Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 13.
e entregues à pobreza, auxiliaria no desenvolvimento econômico, político e social
da Amazônia.
Durante o governo militar a política de colonização foi definida como:

A colonização é toda atividade oficial ou particular destinada a


dar acesso à propriedade da terra e a promover seu
aproveitamento econômico, mediante o exercício de atividades
agrícolas, pecuárias e agroindustriais, através da divisão de
lotes ou parcelas, dimensionadas de acordo com as regiões
definidas na regulamentação do Estatuto da Terra, ou através de
cooperativas de produção nela previstos.191

Os empresários adquiriram junto ao INCRA grandes extensões de


terras e tinham que apresentar um plano de ocupação que possibilitasse a fixação
de pequenos proprietários em lotes de terras que variavam entre 100 a 500
hectares. Os projetos de colonização continham uma planta com a distribuição dos
lotes, especificação dos subnúcleos e dos núcleos urbanos. Também deveria
constar o planejamento executivo para a composição de infraestrutura viária,
saúde, escola, estudo de solo e climático, fauna e flora, hidrografia, topografia
com os rendimentos econômicos, previsão de produção e comercialização. Após a
aprovação do INCRA, a empresa poderia dar início aos trabalhos de abertura da
área e comercialização da terra192. Entretanto, a maioria destes projetos
executados no estado de Mato Grosso não cumpriu com os objetivos
estabelecidos, deixando em muitos casos os colonos desamparados e desprovidos
da infraestrutura prometida, como também o desconhecimento do solo, clima e
regime pluvial inibiram ou impediram a fixação desses indivíduos na terra.
Os projetos de colonização privada e os projetos agropecuários
obtinham estímulos do governo através de órgãos como a SUDAM193 e a

191
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d59428.htm>. Acesso
em: 31 jan. 2016.
192
JOANONI NETO, Vitale. Amazônia na década de 1970. A fronteira sob o olhar do migrante.
Revista Eletrônica da ANPHLAC, São Paulo, n. 19, p. 186-206, jan./jul. 2014, p. 190.
193
A SUDAM foi criada no governo de Castelo Branco no ano de 1966, sendo um importante
órgão de fomento para projetos agropecuários implantados no Centro-Oeste e em toda a região
SUDECO e programas governamentais como o PIN e o PROTERRA, e os pólos
de desenvolvimento o POLOAMAZÔNIA, o POLOCENTRO194 e o
POLONOROESTE, entre outros. Estes disponibilizavam aos empresários
incentivos fiscais, linhas de financiamentos, juros subsidiados e prazos longos, o
que despertou o interesse em muitos proprietários de empresas distantes do ramo
rural para a implantação de projetos agropecuários, agroindustriais, e,
consequentemente, o de colonização da região.
A SUDAM foi o principal órgão responsável pela aprovação dos
projetos agropecuários e de colonização na Amazônia. Segundo Ianni:

A SUDAM passou a ser, desde sua criação em 1966,


provavelmente o principal órgão do governo federal para a
dinamização da economia amazonense. Além de coordenar e
supervisionar (e mesmo elaborar) programas e planos de outros
órgãos federais atuando na região, a SUDAM criou incentivos
fiscais e financeiros especiais para atrair investidores privados,
nacionais e estrangeiros. Foi a partir da criação da SUDAM que
começaram a ganhar dinamismo os empreendimentos dos
setores agrícola, pecuário, industriais e de mineração.195

A partir dos subsídios oferecidos pelo governo militar, bem como os


incentivos fiscais e o crédito com juros e taxas muito baixas disponibilizados pelo
Banco do Brasil e pelo BASA, muitos empresários se interessaram pelos projetos
de colonização, agropecuários, madeireiros e minerais na Amazônia. Esses
projetos deixaram de lado a população local: posseiros, índios, ribeirinhos,
caboclos, pequenos extrativistas e agricultores que foram expulsos de seus antigos
territórios para darem lugar à entrada do grande capital nacional e estrangeiro.

amazônica em meados da década de 60. Substituiu outra autarquia, a SPVEA, criada por Getúlio
Vargas, em 1953, com objetivos semelhantes aos da SUDAM.
194
POLOCENTRO foi criado no governo do general Geisel através do Decreto nº. 75.320, de
29/01/1975 para transformar os cerrados em área de expansão de frentes comerciais a partir do
Centro-Oeste e do Oeste de Minas Gerais. Como meta deveria incorporar cerca de 3,7 milhões de
hectares ao setor produtivo nas áreas de agricultura, pecuária e florestas. Suas ações preconizavam
apoio à infraestrutura (armazenamento, estradas rurais, eletrificação e assistência técnica,
pesquisas de sementes de soja apropriadas para o cerrado).
195
IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 60.
O governo disponibilizou a oferta de incentivos fiscais, conforme
expõe Martins:

Para lograr esse resultado, o governo federal concedeu às


grandes empresas, nacionais e multinacionais, incentivos
fiscais, isto é, a possibilidade de um desconto de 50% do
imposto de renda devido pelos seus empreendimentos situados
nas áreas mais desenvolvidas do país. A condição era a de que
esse dinheiro fosse depositado no Banco da Amazônia, um
banco federal, e, após aprovação de um projeto de
investimentos pelas autoridades governamentais, fosse construir
75% do capital de uma nova empresa, agropecuária e industrial,
na região amazônica. Tratava-se de uma doação, e não de um
empréstimo.196

A política de colonização da Amazônia ocasionou grandes mudanças


na região, bem como a expulsão de índios e posseiros para dar lugar aos pastos e a
concretização de uma nova economia ancorada sob a ótica do capitalismo
excludente. Portanto, as novas atividades econômicas implantaram o latifúndio
moderno, ligado a importantes conglomerados econômicos nacionais e
estrangeiros.
O trabalho de abertura e desmatamento desses novos
empreendimentos resultou na demanda de um grande número de trabalhadores,
sendo estes buscados principalmente nos estados do Nordeste do Brasil. Esses
trabalhadores ficaram conhecidos como peões, subjugados pelos grandes
proprietários rurais ou funcionários intermediários, como demonstra Martins:

O fato de que os novos proprietários rurais viessem de uma


tradição urbana, moderna e propriamente capitalista não
impediu que em suas fazendas se reproduzisse com facilidade o
tipo de dominação, repressão e violência característicos da
dominação patrimonial. Em parte, porque, absenteístas, embora
coniventes e beneficiários, delegaram a intermediários, como os
agentes e capatazes, educados na tradição do poder pessoal, a
responsabilidade pelas decisões e pela administração de seus
bens. Esse poder multiplicou-se também com dinheiro que

196
MARTINS, José de Souza. Fronteira... p. 75.
chegou às mãos de proprietários tradicionais, educados na
tradição oligárquica da dominação pessoal e da violência.197

José de Souza Martins alega que os projetos agropecuários na


Amazônia transformaram o espaço rural e, consequentemente, ocasionaram a
concentração de terras e os conflitos por estas pelos diversos grupos sociais
presentes naquela região. Isso porque:

A tendência à concentração fundiária não tem se dado


impunemente. [...] o Estado tem a sua política em relação à
questão, as empresas têm a sua, mas eles não estão sozinhos
[...]. Existem os interesses daqueles que não estão na terra e que
precisam de terra para trabalhar. Portanto, a tendência à
concentração fundiária tem sido, ao mesmo tempo uma
tendência ao aumento dos conflitos pela terra.198

Os projetos oficiais de colonização ocuparam 7.104.285,3 ha


representando 73,4 % da terra apropriada para essa finalidade, enquanto os
projetos particulares 2.573.485,6 ha e 26,6% do total, respectivamente199. O
estado de Mato Grosso desenvolveu programas ligados ao PAC, sendo estes em
sua maioria de iniciativa privada, concentrados em duas áreas de destaque: parte
norte da rodovia Cuiabá-Santarém e parte leste, na bacia do Araguaia.
Para Becker200, foram criadas algumas estratégias para a instauração
de redes de integração espacial através do investimento público, dentre elas a
ampliação das redes rodoviárias a partir da implantação de grandes eixos
transversais como a Transamazônica e a Perimetral Norte, e intra-regionais como
Cuiabá-Santarém e Porto Velho Manaus. Cerca de 12 000 km de estradas foram
construídos em menos de cinco anos e, por conseguinte, a rede urbana, sede das
instituições estatais e privadas. Instituiu-se uma rede telefônica muito eficiente,

197
Ibidem, p. 77.
198
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1985, p. 68.
199
BECKER, Bertha; MIRANDA, Mariana; MACHADO, Lia. Fronteira amazônica. Questões
sobre a gestão de território. Brasília/Rio de Janeiro: Ed. UNB/ Ed. UFRJ, 1990, p. 35.
200
Idem.
bem como a rede hidroelétrica, que foi gerada para fornecer energia, o insumo
básico à nova fase industrial do país.
Os projetos de colonização se distribuíram ao longo dos principais
eixos de circulação rodoviária e fluvial. Em sua maioria, estão localizados na
Amazônia Oriental, situada nas proximidades da rodovia Belém-Brasília,
distribuindo-se mais esparsamente pela rodovia Cuiabá-Porto Velho (BR 364)
entre Vilhena e Ji-Paraná, Vale do rio Amazonas e na Transamazônica entre
Itaituba, Santarém e Altamira no Pará. Na BR 153 entre Nova Mutum e Guarantã
do Norte.
A política de colonização para a Amazônia adotou uma extensão que
se relacionava às questões de segurança e de posse e uso da terra numa escala sem
precedentes, tendo em vista que com os fluxos migratórios para a Amazônia
ansiava-se reduzir ou ao menos controlar os problemas sociais ligados à terra em
outras áreas do país. Os projetos de colonização oficial e particular foram muito
questionados e assinalados como executados por motivos de segurança interna,
que tinham como pretensão aliviar tensões e conflitos em outras partes do Brasil,
principalmente nos estados do Nordeste, os quais possuíam estruturas agrárias
favoráveis para a expansão capitalista.
Becker201 demonstra que a inserção do Brasil no capitalismo global
estimulou a capitalização da agricultura cuja articulação com a indústria foi
viabilizada pelo Estado de duas formas: pela integração vertical, com subsídios à
produtividade, e pela integração horizontal, com subsídios à ocupação da
fronteira.
No governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) foi criado o
PIN com o objetivo de integrar a região amazônica ao restante do país. O PIN foi
instituído em 16 de junho de 1970, com recursos previstos de incentivos fiscais,
doações, e contribuições de empresas privadas ou públicas, cujo imposto de renda
seria deduzido em 30% e destinados somente para o projeto.

201
Idem.
O governo começou a executar projetos como a construção da
Rodovia Transamazônica e a Rodovia Cuiabá-Santarém; o monitoramento aéreo
da Amazônia pelo Projeto RADAM; e a implantação dos Projetos de Colonização
às margens da Transamazônica, nas faixas de terra até 100 km às margens das
Rodovias Federais; para além da viabilidade dos projetos de colonização e
agropecuários, a rede de rodovias na Amazônia serviu para reorientar o fluxo
migratório nordestino, desviando-o do Sul para o Norte e Centro-Oeste.
Na década de 1970, foi criado também o INCRA, que tinha como
objetivos: executar a reforma agrária, a colonização e promover o
desenvolvimento rural. O INCRA garantia o título de posse aos colonos depois do
assentamento e, por conseguinte proporcionava às empresas colonizadoras a
rentabilidade do negócio empreendido.
Em 1971 foi instituído o PROTERRA que restabeleceu a regra de
prévi
possibilidades de crédito agrícola para as empresas privadas de colonização, com
a liberação de fundos para a modernização das propriedades agrárias e
202
agroindustriais recentemente e .
A partir dos projetos de colonização e agropecuários, a agricultura no
Brasil toma outro perfil, com as seguintes características: concentração fundiária,
a utilização de processos mecânicos e insumos químicos e biológicos, aumento na
capacidade de armazenamento, transportes, comercialização, logísticas, expansão
dos créditos agrícola.
A entrada dos empresários urbanos nas áreas de fronteira brasileira
acarretou na apropriação de terras pelos novos agentes econômicos que
adentraram nessa região de tal sorte que estes junto aos órgãos como o INCRA
demarcaram os novos espaços a serem utilizados (reservas ecológicas, sociedades
indígenas, extrativismo vegetal e mineral, áreas para projetos agropecuários e de
colonização, etc.). Estes espaços que antes pertenciam às comunidades antigas
como: ribeirinhos, caboclos, posseiros e índios foram ocupados pelos projetos de
202
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Matuchos... p. 53.
colonização ocasionando assim, os vários conflitos e a violência presentes até hoje
na Amazônia203.

2.1 O estabelecimento dos empreendimentos agropecuários no nordeste de


Mato Grosso

A transformação do espaço social e físico do nordeste do estado de


Mato Grosso é resultado de uma política de incentivos fiscais, instaurada pelos

programas estaduais e federal para o desenvolvimento e integração do Araguaia


mato-grossense com as demais regiões do país.
Esta política teve como objetivo suprir as necessidades de acesso às
regiões periféricas do Brasil, bem como impulsionar o avanço do capitalismo para
a Amazônia mato-grossense, através de apoios financeiros concedidos para
empresários nacionais e internacionais, para que estes se instituíssem naquelas
áreas por meio do estabelecimento de agropecuárias. Essas atividades foram
essenciais para o avanço da frente pioneira que se instalou em áreas ocupadas por
sociedades indígenas e posseiros onde se constituíram os grandes
empreendimentos agropecuários.
Em meados da década de 1960, os municípios que compõem a
Prelazia de São Félix do Araguaia tiveram o seu território tomado pelo avanço do
capital. Sua área antes ocupada por populações tradicionais se viu absorvida por

a Amazônia Legal.
Os posseiros tiveram suas terras de trabalho desapropriadas pelas
empresas agropecuárias; já as sociedades indígenas adentraram em direção as

203
CASTRO, Sueli Pereira de. et. al. A colonização oficial em Mato Grosso
matas virgens, ou acabaram entrando em conflito204 com os invasores que se
apropriaram de seu território. Em muitas situações, os desapropriados, depois de
perderem a terra, seu principal e único meio de produção, tiveram que vender sua
força de trabalho para os expropriadores, que passaram a explorá-los como força
de trabalho. Assim, o processo de expropriação liberou a terra para o
expropriador, criando a força de trabalho que a empresa precisava, e o
consumidor, que já não produzia mais a sua alimentação.
Com uma política voltada para atender os interesses da elite brasileira,
o processo de (re)ocupação da Amazônia, ao invés de proporcionar para essa
região um lugar para conter os conflitos agrários, tornou-se o ambiente da
violência e da impunidade. Desse modo, o projeto do governo ditatorial se
ião amazônica por
meio das rodovias e estradas a outros pontos do país, bem como viabilizou a
expansão do capital através das empresas agropecuárias; mas em contrapartida,
esses projetos agropecuários geraram os conflitos e a violência sob as camadas
mais vulneráveis, que foram e continuam sendo as vítimas das atrocidades
cometidas pelo capital.
É diante deste contexto, que as frentes de expansão e as frentes
pioneiras estudadas por Martins205 como categorias de análises, em certo
momento se encontram e se contrastam na dinâmica das temporalidades históricas
da fronteira, impostas pela expansão do capital. Nestas novas áreas, as relações
sociais foram alteradas para atender os interesses dos latifundiários, assim, os
trabalhadores rurais, posseiros, e índios que ocupavam a região antes da
implantação dos projetos do governo, desempenhavam atividades mercantis,
baseados em produtos naturais e o cultivo de pequenas roças para a sobrevivência,
tornaram-se as vítimas da reprodução do capital. Em decorrência da entrada do
capitalismo como forma de levar o desenvolvimento para esses espaços distantes

204
Entre os conflitos de expropriação de posseiros e indígenas podemos citar: Santa Terezinha
(CODEARA x posseiros); Suiá-Missu (Xavantes); Tapiraguaia x Tapirapés.
205
MARTINS, José de Souza. Fronteira...
do centro do Brasil, estas populações tradicionais foram excluídas desse processo,
sendo violentadas de várias formas, seja física ou moral para ceder lugar à
exploração de recursos naturais, bem como propiciar a instalação dos
empreendimentos agropecuários.
A inserção do capitalismo no Araguaia mato-grossense o transformou
em uma das regiões com extrema concentração de terra sob o domínio de uma
minoria cuja prática da pecuária é a atividade que ainda predomina naquela
região. Neste sentido, o que podemos verificar no nordeste de Mato Grosso como
em outras partes do seu território, é a preponderante relação de poder que se
uma característica sólida, a
qual beneficiou os donos do capital. Para ilustrar tal situação, Martins assinala
que:

O tempo da reprodução do capital é o tempo da contradição;


não só a contradição de interesses opostos, como os das classes
sociais, mas temporalidades desencontradas e, portanto,
realidades sociais que se desenvolvem em ritmos diferentes,
ainda que a partir das mesmas condições básicas.206

Portanto, analisar estas contradições que são empregadas pelo sistema


capitalista consiste em avaliar os múltiplos contrastes que se refletem na
estratificação dos grupos sociais em Mato Grosso, como o lugar de predominância
da atividade agropecuária e das relações de poder que foram propiciadas pelos
governos durante a ditadura militar. Deve-se ressaltar que os problemas com as
empresas agropecuárias, e, consequentemente com a titulação das propriedades
fizeram com que ainda grande parte dos posseiros que estão fixados no Araguaia
mato-grossense desde as primeiras migrações de famílias do sul do Pará, dos
estados do Nordeste e de Goiás, não possuam o documento de propriedade
daquelas terras.
A falta de títulos e os conflitos agrários envolvendo índios, posseiros e
os grandes proprietários, dificultam o desenvolvimento da região, pois ainda são

206
MARTINS, José de Souza. Fronteira... p. 80.
comuns os casos de tensão e violência pela ocupação daquele território,
merecendo destaque a disputa pelas terras da antiga fazenda Suiá-Missu da
empresa italiana AGIP Petroli situada no município de Alto Boa Vista. Após o
reconhecimento oficial do governo brasileiro de que o território era indígena, este
se comprometeu em devolver as terras para os Xavante. No entanto, em 1992,
depois da identificação da terra pela FUNAI, os fazendeiros e políticos da região
passaram a incentivar a invasão das áreas indígenas por posseiros, que continuam
nas terras207 sob os recursos da justiça.
Vale referir ainda, o importante papel da Igreja Católica e dos
Sindicatos dos Trabalhadores Rurais na intermediação dos conflitos agrários e no
próprio processo de (re)ocupação, por meio da organização das comunidades
rurais. Outra instituição importante na região é a CPT, atuante naquele espaço
desde a década de 1980, e que ainda desempenha ações de fiscalização, denúncias
de trabalho escravo e a violência no campo no Araguaia mato-grossense.
Pode-se constatar que as ações governamentais realizadas durante a
ditadura militar colaboraram para a intensificação dos conflitos agrários, ao
beneficiar, especialmente, grupos de grandes empresários e latifundiários. Deste
modo, a distribuição de terras no Brasil deveria proporcionar a expansão da
fronteira cuja finalidade seria evitar a violência rural, tendo em vista que os

estabelecimento de pessoas sem acesso às propriedades em seus locais de origem


nas terras devolutas da Amazônia. Porém, tais projetos favoreceram especialmente
os grupos com alto poder aquisitivo e prestígio político, os quais puderam ter

207
Diversas negociações foram realizadas desde o ano de 1992 para que os posseiros e fazendeiros
fossem retirados das terras indígenas Marãiwatsédé. Em setembro de 2012 foi iniciada a
desocupação da área Xavante que terminou no dia 27 de janeiro de 2013. Entretanto, algumas
pessoas voltaram a ocupar a área no dia 26 de janeiro de 2014, após a saída das Polícias Federal e
Rodoviária Federal do local. Um grupo de cerca de 50 posseiros fechou a rodovia no Posto da
Mata e invadiu a localidade, expulsando servidores da FUNAI que ali trabalhavam. O cacique
Damião Paridzané foi perseguido quando tentava se aproximar do local. Disponível em:
<http://maraiwatsede.org.br/>. Acesso em: 18 jan. 2016. A respeito consultar: ROSA, Juliana
Cristina da. A Luta pela Terra Marãiwatsédé: Povo Xavante, Agropecuária Suiá Missú, Posseiros
e Grileiros do Posto da Mata em disputa. (1960-2012). Dissertação (Mestrado em História).
Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2015.
acesso aos títulos de propriedade, provocando assim, os conflitos com os
posseiros que estavam estabelecidos naquelas áreas muito antes da chegada do
grande capital. Em decorrência disso, os posseiros expulsos de suas terras,
deslocam-se em direção às florestas, abrindo novas áreas para trabalhar,

Amazônia.
Contudo, verifica-se que o discurso da integração através da
ocupação, proferido pelo Estado, deixa aclarar indistintamente a existência de
objetivos conflitantes que explicitam os problemas no planejamento estatal para a
(re)ocupação da Amazônia.

2.2 A venda de terras no estado de Mato Grosso

A política de colonização oficial instituída pelo governo de Vargas da


década de 1930 não atingiu diretamente o estado de Mato Grosso, como ocorreu
no Mato Grosso do Sul208 com a criação das colônias agrícolas. Mato Grosso teve
a presença de órgãos especiais como, a Expedição Roncador Xingu (1940) que
deu origem a Fundação Brasil Central (1943)209, com o intuito de explorar e

A expedição Roncador Xingu atuou no Vale do Araguaia e do Xingu


estabelecendo contato com alguns grupos indígenas e iniciando a colonização da
região. Assim, o posto-base criado nas margens direita do rio das Mortes deu
origem ao povoado de Xavantina (1944). A Fundação Brasil Central formou sítios

208
É importante lembrarmos que a decisão de dividir o estado de Mato Grosso em dois foi tomada
no ano de 1977 e efetivada em 1979 com a criação de Mato Grosso do Sul.
209
Devemos destacar que neste ano foi constituído o Território Federal do Guaporé, com capital
em Porto Velho, mediante o desmembramento de áreas de Mato Grosso e do Amazonas. No
extremo Sul de Mato Grosso, o governo Vargas criou o Território de Ponta Porã, ocupando a área
explorada pela Cia Mate Laranjeira. Ver: LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha
(A especulação com a terra no Oeste brasileiro nos anos 50). Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 6, n. 12, p. 47-64, mar/ago. 1986.
em torno de Xavantina, restritos basicamente aos funcionários do órgão e sem
expansão dos mesmos. Entretanto, em 1963 a vila foi transformada em distrito
com o nome de Ministro João Alberto e em 1980, elevado a município com o
nome de Nova Xavantina.
Em 1946 foi criado o DTC, pois os governos estaduais 210 tinham
como propósito a política de vendas de terras públicas/devolutas, executando
concomitantemente a colonização em primeiro plano e em segundo, a
regularização fundiária. Desse modo, entre 1950 e 1964, o estado de Mato Grosso
passou a vender indiscriminadamente as suas terras devolutas, bem como a sua
utilização em interesses políticos, sendo empregada como premiação ou
pagamento de préstimos eleitorais211.
Para Lenharo, os políticos locais e os grupos econômicos de fora,
formaram alianças empresariais e eleitorais com a finalidade de controlar a
distribuição de terras devolutas do estado de Mato Grosso. Assim, o governo
estadual não se ajustava por nenhum critério fixo para a concessão das terras.

exigidas garantias mínimas de execução dos contratos nem continuidade e


212
.
Sobre a venda indiscriminada das terras de Mato Grosso, o jornal O
Estado de S. Paulo, traz a seguinte matéria:

O volume de aquisição de fazendas no vizinho Estado é


verdadeiramente impressionante. Em todos os jornais do
interior deparamos com anúncios t

ultrapassado os limites do razoável e entrou no domínio do


extraordinário. [...] As glebas em Mato Grosso são quase
sempre imensas. Se em Minas Gerais o alqueire já é a dobra do
alqueire paulista, lá então as medidas usuais se fazem por
210
Durante os anos de 1946 a 1964, Mato Grosso teve os seguintes governadores do Estado: José
Marcelo Moreira, Arnaldo Estevão de Figueiredo, Jari Gomes, Fernando Corrêa da Costa, João
Ponce de Arruda, Fernando Corrêa da Costa.
211
MORENO, Gislaene. O processo histórico de acesso à terra em Mato Grosso. Geosul,
Florianópolis, v. 14, n. 27, p. 67-90, jan./.jun. 1999, p. 77.
212
LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha... p. 54.
léguas quadradas. Núcleos e empresas colonizadoras aparecem
nos mais estranhos e distantes lugares, [...] Os preços
contrastam-se violentamente com os que vigoram entre nós, e
pode-se adquirir terras devolutas, na região das dúvidas, na
Barra do Garças, do Bugre, em Diamantino ou Aripuanã, por
mais ou menos 25 cruzeiros o alqueire paulista! Paga se o
corretor, o despachante, paga-se o engenheiro que deve fazer a
divisão e fica-se latifundiário de um instante para o outro com
menos de dois contos de réis. [...] Qualquer jornal do interior
paulista, ou da periferia mineira insere sempre um aviso das
colonizadoras ou dos concessionários autorizados.213

Além do governo do Estado não desenvolver nenhum critério para a


venda de terras em Mato Grosso, as mesmas eram vendidas a preços irrisórios e
muitas vezes grandes extensões para uma mesma empresa, como é o caso da
Colonizadora Norte de Mato Grosso Ltda. que obteve uma área de provavelmente
3.600.000 hectares. A especulação mobiliária também tinha o interesse em
desmembrar o Projeto do Parque Indígena do Xingu, pois mais de 500 mil
hectares foram vendidos a diversos grupos, como: Construções e Comércio
Camargo Correia S.A e Colonizadora Norte de Mato Grosso. A intenção era
ocupar o dito espaço vazio e tornar inviável a criação do referido Parque214.
Entre 1950 e 1964, a política de colonização foi convertida em um
lucrativo comércio de terras para a maior parte das empresas colonizadoras, que
não cumpriram com os acordos estabelecidos com o Estado e utilizaram a terra
para especular em benefício próprio. Assim, sob denúncias de corrupção e
fraudes na venda de terras, o DTC foi fechado em 1966. Mas, este fato contribuiu
ainda mais para a especulação e a transição de documentos falsos das
propriedades, bem como a perda de controle pelo Estado das mesmas e o
enfraquecimento das elites agrárias que conduziam o processo de apropriação de
terras por intermédio de alianças político-partidárias na região.
De acordo com Moreno, a decisão de fechar o DTC conferiu
confiabilidade aos empresários que desejavam investir nos empreendimentos de
colonização na Amazônia. O governo federal colocou a maior parte das terras
213
O Estado de S. Paulo. O Estado de Mato Grosso: Cuiabá. 21.01.1954, p. 1
214
LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha... p. 54.
devolutas dos Estados pertencentes à área da Amazônia Legal sob a tutela da
União e do Conselho Nacional de Segurança. Sendo destinado menos de 40% da
área total do território do estado de Mato Grosso, às ações fundiárias a partir de
1971 que foram desenvolvidas pelo INCRA; pela CODEMAT, e após 1978 pelo
INTERMAT215.
Entre as décadas de 1970 e 1980 foram implantados em Mato Grosso
268 projetos de atividades empresariais (projetos agropecuários, agroindustriais e
minerais), sendo 84,9% direcionados para a prática agropecuária; 87 projetos de
colonização particular e 14 projetos de colonização oficial216.

2.3 Dom Pedro Casaldáliga e a sua missão no Araguaia

O propósito desse subtítulo é traçar o histórico de Dom Pedro


Casaldáliga na Prelazia de São Félix do Araguaia, pois ao longo deste texto
iremos nos reportar as ações do Bispo na luta pela terra em Porto Alegre do Norte,
assim torna-se importante demonstrar a sua trajetória e trabalho no Vale do
Araguaia.
Pedro Maria Casaldáliga Plá nasceu em Balsareny, cidade da
Província de Barcelona na Catalunha no dia 16 de fevereiro de 1928. Ingressou na
Ordem Claretiana em 1943, sendo consagrado sacerdote em Montjuic em 31 de
maio de 1952.
Ao final dos anos de 1960 a congregação dos Claretianos da qual
Pedro Casaldáliga faz parte estava precisando de voluntários para duas missões
na América Latina: uma no Brasil e outra no Altiplano da Bolívia, assim
Casaldáliga foi enviado para o nordeste de Mato Grosso com outro missionário
Claretiano, Manoel Luzón.

215
MORENO, Gislaene. O processo histórico... p. 80.
216
Ibidem, p. 81.
Chegar a São Félix não foi fácil. Foram sete dias de viagem
num caminhão, a maior parte deles no meio da mata. Sete dias e
sete noites, de Rio Claro, passando por Goiânia e Barra do
Garças, até chegar em São Félix do Araguaia. Os últimos
quilômetros foram os mais duros, porque a estrada, que ainda
estava sendo feita, era praticamente inexistente em muitos
trechos. Casaldáliga viajava acompanhado por Manoel Luzón,
outro missionário Claretiano. Ambos iam compartilhar a
aventura de fundar a missão de São Félix e, na medida em que
se aproximavam de seu destino, aumentavam a sensação de
chegar a um mundo de onde o retorno era impossível217.

A vinda desses dois religiosos no final de julho de 1968 concretizou


maior presença da Igreja Católica em São Félix do Araguaia que antes era
realizada pelo trabalho das desobrigas, diferentemente de Santa Terezinha que
contava com o apoio das Irmãzinhas de Jesus desde a década de 1950 e do padre
Francisco Jentel.
Com a chegada do padre Pedro Casadáliga na região do Araguaia
mato-grossense, o Vaticano criou oficialmente no ano de 1970, a Prelazia de São
Félix do Araguaia. Passado um ano, o religioso recebeu o título de Bispo, porém,
diferente dos demais, seria um bispo com chapéu de palha, sem mitra, báculo,
nem pompa, para assemelhar-se às pessoas da região218
Conforme as informações da Carta Pastoral, a Prelazia de São Félix do
Araguaia abrange 150.000 km² de extensão dentro da Amazônia Legal no
nordeste do estado de Mato Grosso. Nesta região encontram-se os rios Araguaia e
Xingu, de Sul e à Norte a Serra do Roncador. Cruzam o território duas rodovias:
a BR-158 e a BR-080. A Prelazia compreendia todo o município de Luciara, ao
Norte, e ao Sul, mais da metade do município de Barra do Garças, além da Ilha
do Bananal219.
Casaldáliga se deparou com uma realidade social muito diferente da
Europa. O espaço do Araguaia era necessitado de infraestrutura básica, a

217
ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha. São Paulo: Ed. Unicamp, 2000, p.
14.
218
Ibidem, p. 46.
219
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em conflito... p. 4.
distância da capital do Estado colocava muitas barreiras na comunicação e na

estrutura de desequilíbrio social. A distância da sede do Município traz consigo o


máximo desinteresse esquecimento por parte das autoridades, a impossibilidade
220
. Ainda sobre este cenário Dom Pedro
descreve da seguinte forma:

O contraste era brutal. De um lado, uma natureza incrível, de


uma beleza primitiva [...]; de outro uma sensação de abandono
total: não existia lá nem correio, nem telefone, nem energia
elétrica. A prefeitura estava a mais de 700 km ao Sul, em Barra
do Garças. O povoado de São Félix era somente um punhado de
casinhas na beira do rio. Apenas 600 habitantes que para
quebrar o isolamento, contavam com três jipes velhos
desmantelados. Não havia um único médico em toda a região.
Mas ao menos tinha uma professora: uma senhora com apenas
um ano e meio de estudo, que mal podia cumprir suas
obrigações porque estava freqüentemente embriagada221.

No Araguaia o Estado se fazia pouco presente e naquele momento a


Igreja foi a instituição que passou a orientar a vida daquela população através da
criação de escolas, postos médicos, Igrejas, espaços de lazer e educação com a
construção do Ginásio Estadual do Araguaia. Foram adotadas quatro linhas de
atuação: saúde, educação, justiça, e fé, por meio das quais se instituíram os
primeiros fundamentos dessa noção de política comunitária, tendo em vista que
em São Félix este trabalho teve que partir do zero pela ausência de uma

povo, que era nenhuma. Então resolvemos buscar um modelo pastoral que atuasse
222
de maneira completa, e não apenas com o tra .
O modo como a fé era praticada no Araguaia antes da chegada de
Casaldáliga demonstrava uma mescla de sincretismo religioso, o uso de ervas

220
Ibidem, p. 35.
221
ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha... p. 15.
222
CASALDÁLIGA apud VARGAS, Rodrigo. Atuação social ganhou simpatia dos fracos e a ira
de poderosos. 2003. Disponível em:< http://diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=131553>.
Acesso em: 22 jun. 2011.
medicinais para prevenção e a cura de doenças como a única alternativa acessível
para aquela população, bem como o hábito de recorrer a benzedeiras e
curandeiros. Ao chegar a São Félix, Pedro Casaldáliga se preocupou com a fé
daquela população que confiava aos seus filhos como padrinhos de batismo,
pessoas distantes do núcleo familiar ou da Igreja, o critério de escolha estava
atrelado a interesses econômicos e sociais.

[...] tive a sensação de que era um povo dominado: sim senhor,


sim senhora. A famosa política de cabresto, como diziam por
aqui. Nós lutamos muito para mudar os critérios de escolha de
padrinhos de batismo. As pessoas sempre escolhiam para
padrinhos de seus filhos o comerciante, o político... Tivemos de
lutar muito para convencê-los a escolher padrinhos que
significassem alguma coisa, que fossem padrinhos de fé de seus
filhos. [...] para se sair dessa cultura de dependência dos
poderosos.223

Para conquistar a confiança da população local, Casaldáliga afirma


que o trabalho era realizado em grupo de três ou quatro agentes de pastoral, foram
empregadas campanhas missionárias nos lugares mais isolados de posseiros na
Prelazia, a equipe se instalava nas casas das pessoas e procuravam compartilhar,
simplesmente, a vida do lugar, do cotidiano, do trabalho, nas escolas, entre outros.
Durante o período de campanha davam aulas de alfabetização ou Círculos de
-se e
complementa-se o trabalho das professoras locais. Dá-se assistência de
enfermagem e se promove uma ação permanente por todos os meios e em todas as
224
ocasiões de .
A partir de 1968 com a Conferência de Bispos em Medelín na
Colômbia uma parte da Igreja passou a sensibilizar-se com os problemas dos
povos latino-americanos, esta tomou para si a opção pelos pobres, assim
Casaldáliga em uma entrevista ao um jornal demonstra que:

223
ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha... p. 16, grifos do autor.
224
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 39.
A Igreja Católica desta região tinha sido durante séculos, ou
uma igreja dependente das metrópoles, fundamentalmente
Portugal e a Espanha, ou uma igreja muito romanizada. Não
tinha o rosto latino-americano. Medelín abriu espaço para esta
opção pelos pobres, pela cultura, pela América Latina225.

Esta nova corrente de interpretação colaborou para uma Igreja


comprometida com os problemas sociais e políticos; a conferência fez aflorar um
sentimento de apoio aos povos latino-americanos voltando-se para os problemas
locais no que diz respeito à reforma agrária e as causas indígenas. No Araguaia,
Dom Pedro associou-se com os diversos grupos sociais daquele espaço marcado
por uma dicotomia extremamente declarada, de um lado a população
marginalizada (posseiros, índios e peões) e de outro os favorecidos pelo capital
(fazendeiros e governo militar), assim Casaldáliga teve que se posicionar, e a sua
opção foi pelos oprimidos:

A igreja desta região assumia uma posição bem clara ao lado do


lavrador e com ele se comprometia ao mesmo tempo em que se
descomprometia dos fazendeiros e seus aliados. A luta dos
lavradores se tornou a luta da igreja. A luta pela terra se tornou
o centro da ação pastoral da igreja; abertura de escolas, cursos
de alfabetização, atuação na área de saúde, a presença do padre
visava ao apoio ao pequeno na defesa de seu pedaço de chão.
[...] primeiro era necessário defender o homem para depois
formar o cristão.226

O trabalho de Dom Pedro foi essencial para estruturar a permanência


dos posseiros nas terras. Com a ajuda da Prelazia começaram a se formar os
patrimônios, pequenas vilas onde se construía a escola e a Igreja, contribuindo
para a reunião das famílias que estavam dispersas pela região, e,
consequentemente organizando os posseiros ameaçados pelo latifúndio. Nestes
patrimônios instalava-

225
CASALDÁLIGA apud VARGAS, Rodrigo. Atuação social ganhou simpatia dos fracos e a ira
de poderosos. 2003. Disponível em:< http://diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=131553>.
Acesso em: 22 jun. 2011.
226
CASALDÁLIGA, 1970 apud CANTUÁRIO, Maria Raimunda dos Santos. Descalço sobre a
terra vermelha D. Pedro Casaldáliga. In: Igreja Católica e os cem anos da Arquidiocese de
Cuiabá (1910 2010). PERARO, Maria Adenir (Org.). Cuiabá: EDUFMT, 2008, p. 193.
autoridade popular de uma equipe livremente eleita, conhecida

227
.
Com as denúncias de Dom Pedro sobre a existência de trabalho
escravo nas fazendas da região a partir da divulgação da Carta Pastoral, os
fazendeiros locais proibiram a entrada dos agentes pastorais nas suas fazendas, e
assim os peões ficaram desprovidos do atendimento da Prelazia, segundo

conduta dos donos, gerentes e capatazes. Nem era possível agir com liberdade. Os
228
peões por outra parte, nunca p .
Muitos trabalhadores ao saírem das fazendas se dirigiam para a
Prelazia de São Félix do Araguaia ou para as pastorais locais para pedirem ajuda
aos membros da Igreja. Estes trabalhadores inconformados com as suas condições
de trabalho fugiam das fazendas, e, sem dinheiro procuravam a Prelazia para
denunciar tais irregularidades trabalhistas. Dom Pedro se preocupou em
documentar todas estas denúncias e arquivá-las em seu acervo pessoal, que
posteriormente foi doado à Prelazia. Estes documentos encontram-se na pasta com
o código B08 do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia, relatam as más
condições de trabalho nas fazendas, a falta de contrato trabalhista, a falta de
assistência médica, o não pagamento, as falsas promessas dos gatos229, o acúmulo
de dívidas dos trabalhadores nos armazéns das empresas, além de contabilizar o
número de mortes destes trabalhadores.
Um importante trabalho de Dom Pedro junto a estes trabalhadores
migrantes foi instruí-los que as suas condições de trabalhos eram inaceitáveis,
227
Sobre este documento consultar: CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 122-
123.
228
Ibidem, p. 38.
229
Empreiteiro contratado para desflorestamento, feitura e conservação de pastos e cercas ou
serviços para fazendeiros e empresas agropecuárias na Amazônia. Muitas vezes anda armado,

homicídios. Em geral os mais violentos gozam de prestígio, são considerados eficientes e podem
prestar serviço por anos consecutivos para as maiores empresas. FIGUEIRA, Ricardo Rezende.
Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 17.
pois estavam submetidos a situações de superexploração sem os devidos direitos
garantidos pelas leis trabalhistas, bem como o amparo dos direitos humanos.

O peão, depois de suportar este tipo de tratamento, perde sua


personalidade. Vive, sem sentir que está em uma condição
infra-humana. Peão já ganhou conotação depreciativa por parte
do povo das vilas, como sendo pessoa sem direito e sem
responsabilidade. Os fazendeiros mesmo consideram os peões
como raça inferior, com o único dever de servir a eles, os

gente. O peão não tem direito à terra, à cultura, à assistência, à


família, a nada. É incrível a resignação, a apatia e paciência
destes homens, que só se explica pelo fatalismo sedimentado
através de gerações de brasileiros sem pátria, dessas massas
deserdadas semi-escravos que se sucederam desde as Capitanias
Hereditárias.230

Escribano231 afirma que uma das principais contribuições que Dom


Pedro Casaldáliga deu à Igreja Católica do Brasil foi o impulso à criação de
comissões mistas de religiosos, camponeses e índios, para a resolução dos
conflitos de terra e estruturação das áreas indígenas. Esse religioso foi um dos
principais promotores do CIMI e também da CPT, duas instituições tidas como
referências na organização dos camponeses e dos índios, disponibilizando
inclusive auxílio técnico e subsídios financeiros que não existiam. São entidades
que surgem a partir da Teologia da Libertação232, com o propósito de apoiar o
homem do campo, e têm a finalidade de combater as injustiças.

230
Ibidem, p. 28.
231
ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha... p. 85.
232
A Teologia da Libertação é uma corrente teológica de interpretação do cristianismo que enfatiza
a atuação político-social do cristão em prol da transformação das estruturas de exploração da
sociedade capitalista (causadora de injustiça, pobreza, violência, sofrimento e etc.) como em
decorrência do amor ao próximo. Desenvolvida após o Concilio do Vaticano II (1962-1965) e a
Conferência Episcopal de Medellín (1968), principalmente por teólogos latino-americanos, a
Teologia da Libertação ganhou nome e corpo com a publicação da obra Teologia da Libertação, do
peruano Gustavo Gutiérrez, em 1971, na qual se formalizou e se estruturou essa leitura mais social
da fé cristã. Os teólogos (Gustavo Gutiérrez, Leonardo e Clodóvis Boff, Jon Sabrino, Enrique
Dussel, entre outros) afirmavam fazer teologia a partir da realidade (de subdesenvolvimento,
dependência, violência e etc.) vivida no Terceiro Mundo e defendia o engajamento social e político
dos cristãos com base em conceitos como o da caridade política. A Teologia da Libertação não se
restringiu às especulações teológicas, mas difundiu-se no plano pastoral (ao qual se alinharam
diversos bispos e padres, entre eles: D. Paulo Evaristo Arns, D. Pedro Casaldáliga, D. Helder
Casaldáliga não se calou diante das injustiças que vivenciou (e
vivencia) no Araguaia. Mesmo em um período de repressão ele denunciou a
desigualdade social, a violência e a morte, suscitados em um contexto político
social cujos indivíduos não são sujeitos da história, mas apenas um dos elementos
que movem a sociedade, os quais tiveram as suas vidas modificadas pelos
interesses das forças políticas que estavam direcionadas naquele espaço para elite
agrária.

aos movimentos sociais, o trabalho desta Igreja passou a ser caracterizado como
político-partidário e apontado como distante do ideal evangelizador, visto que
lutar pelo acesso à terra e por condições dignas de vida não são tidos como um

Militar de Mato Grosso] não se deve imiscuir em problemas sociais e sim no


233
. Esse fato está vinculado de maneira inequívoca à falta de
desenvolvimento da região, responsabilizando D. Pedro como o símbolo do atraso
do Araguaia, tendo em vista que este considera como sinônimo de
desenvolvimento a preservação ambiental, a conservação das áreas indígenas, a
defesa dos posseiros e assentados, o trabalho digno livre do trabalho escravo,
entre outros.
Em uma entrevista a um jornal local, Casaldáliga afirma que é preciso
proporcionar um desenvolvimento harmônico a região toda, e há possibilidades
anos reivindicamos estradas. Agora estão fazendo algum asfalto,
mas nos dias de chuva fica tudo difícil. Os políticos já poderiam ter feito muito
234
.

Câmara, D. Thomaz Balduíno, D. Oscar Romero, etc.). A Teologia da Libertação se tornou


hegemônica em boa parte da Igreja Latino Americana até meados dos anos 80. GUTIÉRREZ,
Gustavo. Teologia da Libertação: perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1975.
233
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08.2.20, 1973, p. 01.
234
CARVALHO, Vanessa. Casaldáliga critica abandono do Araguaia, o genocídio dos índios e a
agressão ao meio ambiente, 2011. Disponível em: <
http://www.aguaboanews.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=13641:
casaldaliga-critica-abandono-do-araguaia-o-genocidio-dos-indios-e-a-agressao-ao-meio
ambiente&catid=1:notas&Itemid=24> . Acesso em: 23 jun. 2011.
No altar da catedral de São Félix do Araguaia e nas outras Igrejas,
235
,
de autoria do pintor espanhol Maximino Cerezo Barredo, produzidos entre os anos
de 1977 e 2001. São onze murais distribuídos pelas cidades de Luciara,
Querência, Ribeirão Cascalheira, Santa Terezinha, São Félix do Araguaia, São
José do Xingu e Vila Rica. Segundo Joanoni:

Na gravura do altar da Catedral de São Félix, Cristo guia seu


povo, rompe as cercas do latifúndio e abre as terras devastadas
para que os seus filhos possam nela viver. Eles vêm logo atrás,
carregando a pesada cruz, uma única levada por todos,
homens, mulheres e crianças, pés descalços confiantes e
aplicados na tarefa.236

As imagens dos murais retratam o sofrimento da população do


Araguaia, aspectos que demonstram o cotidiano e associam a fé. É uma mescla de
motivos religiosos e crítica social, denunciando os sofrimentos e as dificuldades
que peões, posseiros e índios tiveram que enfrentar com a ajuda da Igreja.
Os Murais da Libertação difundem todo o conteúdo teológico-político
essencial para a materialização da ação de ressignificação bíblica e religiosa dos
conflitos e histórias do Araguaia, permanecendo nítida também a identidade da
Prelazia de São Félix do Araguaia como Igreja dos Oprimidos.
A criação da Prelazia de São Félix do Araguaia e a chegada de Dom
Pedro Casaldáliga transformaram os rumos da Igreja e a percepção de que dela
possuíam a população local. Esse episcopado, seu clero, os demais religiosos e os

235
Para visualizar os Murais da Libertação, consulte: BARREDO, Cerezo; CASALDÁLIGA,
Pedro. Murais da Libertação na Prelazia de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, Brasil.
Fotografias: José María Concepción. São Paulo: Edições Loyola, 2005; ALVES, Leonice
Aparecida de Fátima; GOMES, Maria Henriqueta dos Santos. Murais do Araguaia: Uma primeira
aproximação. In: História, Terra e Trabalho em Mato Grosso: Ensaios Teóricos e Resultados de
Pesquisas. HARRES, Marluza Marques; JOANONI NETO, Vitale (orgs). São Leopoldo: Oikos;
Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2009 ou acesse:
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/MURAIS_DA_LIBERTA%C3%87%C3%83O/
236
JOANONI NETO, Vitale. Fronteiras da crença: ocupação do Norte de Mato Grosso após 1970.
Cuiabá: Ed. UFMT/Carlini Caniato, 2007, p. 108.
leigos se tornaram referências na luta pelos direitos humanos, na defesa dos
posseiros, peões e das causas indígenas.

2.4 A Implantação da FRENOVA em Porto Alegre do Norte

Diante do contexto descrito no item 2.2 A venda de terras no estado de


Mato Grosso desta tese, que em 1971 a agropecuária FRENOVA Fazendas
Reunidas Nova Amazônia S/A, grupo formado por seis fazendas: Piraguassu237,
Tapiraguaia238, Sapeva239, Codebra, Agrosselva e Campo Verde240, adquiriram
cerca de 400 mil hectares no povoado de Porto Alegre do Norte. Estas fazendas

237
Piraguassu Agropecuária S/A. Projeto de concessão de terras aprovado pela SUDAM em:
18/10/1971 no valor de Incentivo Recebido de Cr$7.006.405,00. Tamanho da Propriedade:
42.673,75ha. Composição Acionária: Délio Rodrigues Cardial (21,46%), Geraldo Antônio de
Medeiros Neto (21,44%), José Augusto Leite de Medeiros (21,16%), João Carlos de Souza
Meirelles (11,13%), João Galdino da Silva Neves (11,1%), Abílio Antônio Motta Filho (8,02%),
Jorge Alberto Veiga de Medeiros (2,3%), Milton Leopoldo Endres (1,52%), Renato de Souza
Meirelles (1%), Yara Hungria de Souza Meirelles (0,87%). Dados retirados do Projeto: expansão
da fronteira agrícopecuária e desenvolvimento da Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado
pelo Prof. Doutor Fábio Carlos da Silva.
238
Tapiraguaia Agrícola e Pecuária. Projeto de concessão de terras aprovado pela SUDAM em:
05/07/1967 no valor de Incentivo Recebido de NCr$2.566.140,00. Tamanho da Propriedade:
21.923ha. Composição Acionária: José Augusto Leite (50%), José Carlos Pires Carneiro (25%) e
Antônio Peres Carneiro (25%). Dados retirados do Projeto: expansão da fronteira agrícopecuária e
desenvolvimento da Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado pelo Prof. Doutor Fábio Carlos
da Silva.
239
Sociedade Agropecuária Vale do AraguaiaS/A. Projeto de concessão de terras aprovado pela
SUDAM em: 11/07/1969 no valor de Incentivo Recebido de NCr$6.208.686,00. Tamanho da
Propriedade: 72.587,92ha. Composição Acionária: Clóvis Galante (34,12%), José Augusto Leite
Medeiros (17,29%), Antônio Carlos Peres de Oliveira (8,23%), Jean Jacques Faure (6,71%),
Frederic Paul Grover (6,71%), Emile Besson (6,71%), Auguste Le Diagon (6,71%), Rodolfo
Autonelli (5,38%), Herbert Gauss (3,19%), Azael Magalhães Rodrigues (2,26%), Radamés
Sangiorgi (2,26%), Moacyr Carneiro (0,46%). Dados retirados do Projeto: expansão da fronteira
agrícopecuária e desenvolvimento da Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado pelo Prof.
Doutor Fábio Carlos da Silva.
240
Agropastoril Campo Verde Ltda. Projeto de concessão de terras aprovado pela SUDAM em:
12/11/1970 no valor de Incentivo Recebido de NCr$6.565.129,00. Tamanho da Propriedade:
15.000ha. Composição Acionária: Antônio Carlos Peres de Oliveira (58,53%), Firmino Rocha
Freitas (20%), Joaquim Antônio Bittencourt Couto (20%), Tereza Moraes Bittencourt (1,2%),
Moema Ribeiro de Lima Freitas (0,15%), José Mauro de Freitas (0,07%), Kalil Rocha Abdala
(0,05%). Dados retirados do Projeto: expansão da fronteira agrícopecuária e desenvolvimento da
Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado pelo Prof. Doutor Fábio Carlos da Silva.
eram de propriedade das Empresas Tapetes ITA, representada pelos empresários
José Carlos Pires Carneiro e Silvana Carraro Carneiro, e pelos Cartórios
Medeiros, sob administração de José Augusto Leite Medeiros e Maria Lúcia
Medeiros. A implantação da FRENOVA foi executada por um dos seus diretores,
o engenheiro João Carlos de Souza Meirelles 241, vereador na cidade de São Paulo
(1964-1972), e que mais tarde chegou a ser Secretário de Agricultura e
Abastecimento do Estado de São Paulo (1998 - 2002), Secretário de Turismo do
Estado de São Paulo (2003 - 2005) e Secretário da Ciência, Tecnologia e
Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo (2003 - 2006)242.
Toda a área adquirida se situava no município de Luciara, MT. Em
seu interior havia um pequeno povoado, às margens do rio Tapirapé, Porto Alegre
do Norte e uma nação indígena, a Tapirapé. A Fazenda Tapiraguaia se situava na
área da aldeia Tapirapé, nas margens do Araguaia. Os proprietários doaram ao SPI
na pessoa do Sr. Ismael Leitão, chefe da Inspetoria de Goiânia, uma gleba de
pouco mais de 9.000 hectares. Porém, as referidas terras doadas, próximas à
aldeia, ficam alagadas praticamente de dezembro a junho em quase sua totalidade,
sendo o restante das terras composto de cerrado ou mata arenosa de pouca
fertilidade. O restante das terras indígenas foi incorporado ao patrimônio da
fazenda.
Como forma de comprovar os investimentos do governo ditatorial

aquisição de gado pela agropecuária FRENOVA:

Já estão na sede da Frenova - Fazendas Reunidas Nova


Amazônia, empreendimento agropecuário na área da Sudam, as
241

setembro de 1978 foi instalado o projeto particular de colonização Juruena sendo fundada a Vila
Juruena, núcleo urbano do projeto que lhe serviria de apoio básico. Sua extensão territorial do
projeto inicial era de 200.000 hectares. Disponível em: <
http://www.pmjuruena.com.br/novo_site/index.php?nivel=1&exibir=secoes&ID=1>. Acesso em:
31 jan. 2016.
242
Informações disponíveis em:
<http://www.cnpc.org.br/histobjetivo.php?Categoria=Hist%F3rico>. Acesso 14 jul 2014.
primeiras mil cabeças de gado adquiridas dos melhores plantéis
de São Paulo. Os diretores da empresa comprovaram
pessoalmente o excelente estado sanitário deste lote, que inclui
80 cabeças de touros puro-sangue zebuíno da variedade
Nelore.243

Os projetos de colonização dirigidos para o nordeste de Mato Grosso


tiveram como atividades principais a implantação de empresas agropecuárias e a
instalação de projetos de colonização particulares: Confresa e Vila Rica. Como

Garrastazu Médici em seu discurso proferido no dia 6 de junho de 1970 na cidade


de Recife, reconheceu que a região Nordeste ainda era uma região-problema e que
a população nordestina deveria ser assentada nos projetos de colonização da
Amazônia Legal para sanar a problemática da terra.
Para a concretização dessa política pública, no dia 16 de junho de
1970, por meio do Decreto-Lei nº 1.106, o governo criou o PIN, implementando a
construção das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém, bem como a
colonização e a reforma agrária, na faixa de 10 quilômetros as margens das
rodovias. Mas, em 1 de abril de 1971, a dimensão da faixa de ocupação foi
alterada pelo Decreto-Lei nº 1.164 e estabeleceu que as terras devolutas situadas
na faixa de 100 quilômetros244 de largura em cada eixo de rodovia da Amazônia
Legal fossem utilizadas para os projetos de colonização. Outro fato importante
para a realização da reforma agrária na Amazônia foi a criação do INCRA, no dia
9 de julho de 1970, sob o Decreto-Lei nº 1.110.
O governo Médici passou a incentivar a vinda de trabalhadores rurais
dos estados do Nord
slogan
tensões sociais no Nordeste e ocupar as terras da Amazônia, além de garantir a
segurança interna daquele espaço. Para tanto, os militares resolveram não alterar a
243
ISTO é o novo Brasil! Folha de São Paulo, São Paulo, 23 jan. 1971, p. 18.
244
Na BR 158 no Trecho Barra do Garças, Xavantina, São Félix do Araguaia foram direcionados
650 km, conforme o Decreto-Lei nº 1.243 de 30/10/1972. No trecho Barra do Garças, Xavantina,
São Félix do Araguaia, Altamira, a extensão de 1600 km, segundo o Decreto-Lei nº 1.473 de
13/07/1976.
estrutura fundiária do Nordeste, mantendo intactas as estruturas políticas e
econômicas do Nordeste e Centro-Sul do país, favorecendo a expansão do
capitalismo na Amazônia. Assim, iniciaram uma política de colonização dirigida
nas terras indígenas e devolutas, acarretando na migração de populações

seleção e a instalação pelo INCRA de 2.550 famílias no projeto Altamira e 675


245
.
Entre 1970 e 1973, o governo ditatorial instituiu a política de
colonização oficial para diversas áreas da Amazônia, dentre elas, podemos
destacar no ano de 1972: o Pará com três polos de ocupação: Estreito, Marabá e
Altamira; um núcleo em Rondônia, outro no Maranhão e Goiás. Entretanto, a
partir de 1974, os militares diminuíram os seus interesses em incentivar a
colonização oficial, logo, o INCRA passou a estimular a colonização
particular/dirigida e a implantação de projetos agropecuários. Sob esse aspecto,
Ianni mostra que em 1970 o INCRA parecia ter certo comprometimento com a
distribuição de terras na Amazônia, porém este órgão ao longo do tempo

246
. Os trabalhadores rurais constataram que o INCRA não tinha como
finalidade principal defender e promover os seus interesses garantidos pelo
Estatuto da Terra de 1964, pois este passou a vender e regularizar áreas para
grandes projetos agropecuários e de colonização particular em detrimento da
distribuição e assentamento de famílias na Amazônia.
Diante do fato apresentado, é importante destacarmos que no nordeste
de Mato Grosso não houve a implementação da política de colonização dirigida
para o assentamento de trabalhadores rurais durante a década de 1970. As
empresas agropecuárias se instalaram na região em meados da década de 1960, e a
FRENOVA que é o nosso objeto de análise, foi instituída em 1971, ou seja, no
ano em que os projetos de colonização oficial estavam recebendo famílias de

245
IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 51.
246
Ibidem, p. 77.
agricultores, principalmente do Nordeste do país, como também do Norte, Centro-
Oeste, Sul e Sudeste para ocuparem as terras da Amazônia. O estado de Mato
Grosso teve 80% dos seus projetos de colonização realizados por empresas
privadas com experiência em colonização nos estados de São Paulo, Paraná e Rio
Grande do Sul247.
O processo de vendas de terras em Mato Grosso, desencadeado
principalmente na década de 1950, contribuiu para a formação de imensas
propriedades sob a lógica da especulação imobiliária. Por meio da facilidade de
adquirir e regularizar as terras devolutas no Estado, muitos empresários fizeram
dessa prática uma atividade altamente lucrativa, sob propriedades muitas vezes
248
. A
grilagem deu origem a vários empreendimentos de colonização (projetos
agropecuários, agroindustriais, minerais e projetos de colonização), sendo a
maioria implantada, como é caso da FRENOVA, em áreas indígenas e de
posseiros, com pleno consentimento dos órgãos oficiais.
O discurso proferido por Médici em 6 de junho de 1970 na cidade de
Recife para se ocupar os vazios demográficos da Amazônia, caiu em contradição
como o ideal da nação de se estabelecer naquela região, pois os projetos de
colonização oficial pouco se empenharam em assentar famílias de trabalhadores
rurais direcionando a sua política para o desenvolvimento dos empreendimentos
-se que os planos da
SUDAM privilegiaram o boi. Do montante de recursos aplicados nos cinco anos
249
.
A instalação da FRENOVA, assim como outros empreendimentos de
colonização financiados pela SUDAM, implicou na intensificação da migração

247
SOUZA, Edison Antônio de. Mato Grosso: a (re)ocupação da terra na fronteira amazônica.
Estado e políticas públicas. Tempos Históricos, Marechal Cândido Rondon, v. 16, n. 2, p. 137-144,
set. 2012, p. 137.
248
Protocolos sem valor legal, procurações falsas. FERREIRA, Eudson de. Posse e propriedade: a
luta pela terra em Mato Grosso. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Campinas: Universidade
Estadual de Campinas, 1984, p. 64.
249
Ibidem, p. 49.
espontânea que já vinha sendo realizada para o Vale do Araguaia desde o início
do século XX. Entretanto, essas famílias de migrantes não foram beneficiadas
pelos recursos financeiros e técnicos disponibilizados pelo governo, os quais
foram direcionados para a implantação de projetos agropecuários em detrimento
da política de colonização oficial para o assentamento de trabalhadores rurais na
Amazônia.
Dom Pedro Casaldáliga, em depoimento à CPI da Terra, relata que:

No início da década de 60, o Departamento de Terras do Estado


(MT) começa a vender adoidamente [sic] as terras que estavam
sob o seu domínio. A venda é feita tão indiscriminadamente que
os títulos expedidos incluem até áreas urbanas e indígenas,
como a aldeia Tapirapé e os povoados de Santa Terezinha e
Santo Antônio, este no rio das Mortes. Pode-se dizer que o

comprar até 10.000 ha, por preços baixíssimos (CR$ 7,00 ha).
Muitas vezes uma mesma família conseguia vários títulos. [...] o
atual governador, Sr. Garcia Neto, reconheceu que seria preciso
invadir os Estados vizinhos se quisesse cumprir com os
compromissos assumidos.250

Diante desse processo das vendas de terras em Mato Grosso, em


janeiro de 1971, esteve presente no povoado de Porto Alegre do Norte, o senhor
João Carlos de Souza Meirelles, em reunião na escola da comunidade, informou
que veio à localidade para comprar aquela área251. Este fato ajuda-nos a entender
que o empresário adquiriu as terras ciente da existência de índios e posseiros com
direito a posse.
A primeira estratégia utilizada pela FRENOVA para a retirada dos
posseiros foi o envio de notificações de despejos aos habitantes de Porto Alegre
do Norte.

Prezado Senhor,

cadastrada no ex IBRA, agora INCRA [...], com impostos


quitados, localizada no município de Barra do Garças, Estado

250
SEDOC, 1977 apud FERREIRA, Eudson de. Posse e propriedade... p. 65.
251
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A 17.2.25, 1972, p. 1.
de Mato Grosso, tendo a necessidade e o interesse de explorar
pessoalmente e diretamente o imóvel de que tenho pleno
domínio, envio-lhe esta/ carta-notificação para que desocupe a
parte da minha propriedade que ocupa sem justo título e a
explora sem autorização e sem pagar qualquer retribuição,
dando-lhe o prazo de 90 dias, a partir da data que tomar
conhecimento, para desocupar o imóvel.252

A falta de conhecimento dos direitos sobre o uso e posse da terra


garantidos pelo Estatuto da Terra, fez com que os trabalhadores rurais
abandonassem as suas posses sem serem restituídos financeiramente pelas
benfeitorias instaladas nas propriedades253. O tom emitido pela notificação impõe
ao posseiro uma condição de inferioridade e de ilegalidade ao ocupar uma área
que tem proprietário devidamente cadastrado no INCRA e com o pagamento dos
seus impostos em dia. Dessa forma, o ocupante é caracterizado como um invasor
que não possui título da área e que usufrui de vantagens sobre a terra sem pagar
qualquer tipo de retribuição sobre ela.
Em relação às ameaças e violências praticadas por Plínio Ferraz,
gerente da FRENOVA, João da Angélica nos relatou da seguinte forma:

Tinha um gerente por nome Plínio Ferraz, ele chegava aqui, faz
de conta que você morava aqui, aí ele chegava aqui e dizia: o
que você está fazendo aqui? Eu estou aqui há oito, dez anos.
Pois é: você sabia que essa terra que você está usando é da
fazenda FRENOVA? Não. Chegamos aqui e não tinha
ninguém. Meus pais que cortaram esses paus aqui, não tinha
ninguém, não existia fazenda. É, mas a gente já tem um
documento velho de muitos anos e agora que viemos usar a
fazenda. Aí dizia: eu vou lhe dar dez cruzeiros para você
desocupar isso aqui. Então eu dizia: mas nós não podemos,
porque tem a minhas coisas, a minha roça. Não, se você birrar,
você vai pagar o estrago que você fez. Derrubou a roça e tudo
que não era para derrubar, porque é nosso. Aí tinha que assinar
um caderno e me dizia: se você não sair eu coloco a polícia e os
homens daqui vão tirar vocês e queimar tudinho, e vocês não

252
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.1.02, 1971, p. 1.
253
José de Souza Martins afirma que uma vaca amazônica expulsa uma família inteira de posseiros,
pois ela ocupa a mesma área que o posseiro precisaria em um ano para sustentar a família e
produzir excedentes para o mercado. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no
Brasil... p. 122.
recebem nada. [...] Você tinha que pegar aqueles dez cruzeiros,
pois ele vinha com o caminhão e tirava a sua mudança e
colocava fogo na casa, porque era tudo de palha, então acaba e
tinha que ir para outro lugar. Era assim.254

As notificações era o primeiro mecanismo para expulsar os posseiros


das propriedades, ao passo que se estas não fossem cumpridas usava-se de outros
tipos de pressões, tais como, o envio de jagunços até as posses com avisos
ameaçadores ou com o uso da violência física, a queimada das roças, das casas e
das benfeitorias, o sacrifício das criações: porcos, vacas e galinhas. Sob esta

consideração que muitas vezes a vida dos trabalhadores rurais são ceifadas para
dar espaço as relações capitalistas na fronteira amazônica.
O prefeito de Luciara, José Liton Luz juntamente com o seu advogado
Olímpio Jaime, fizeram uma reunião em 30 de julho de 1970 para que a
população colaborasse com os gastos do processo da desapropriação. Desse modo,
os posseiros entregaram ao prefeito mais de 170 animais entre reses e cavalos,
como também uma grande soma em dinheiro255.
Em 17 de setembro de 1970, em sessão extraordinária na Câmara
Municipal de Luciara, foi aprovada a desapropriação de uma gleba de 4.500
hectares para o povoado de Porto Alegre do Norte. Na ata da sessão encontramos
as seguintes informações:

Ata da sessão extraordinária da Câmara Municipal de Luciara,


convocada pelo exmo. sr. Prefeito Municipal, conforme Ofício
nº 233/70 de 16 de setembro de 1970 e realizada às 14 horas do
dia 17.9.70. [...] O expediente constava de solicitações do sr.
Prefeito no Decretos ns. 58, 59 60/70. O de nº 58 solicitava a
autorização da Câmara para desapropriação de uma gleba de
2.446, 83ha onde se encontra localizado o povoado de Santa
Terezinha, neste município, de propriedade da Cia. de
Desenvolvimento do Araguaia (CODEARA). O de nº 59/70

254
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
255
Esses dados podem ser encontrados na Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga.
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja na Amazônia... p. 87-90.
solicitava ainda a autorização para desapropriação de uma gleba
de 4.500ha onde se encontra localizado o povoado de Porto
Alegre do Norte, neste município, de propriedade da
FRENOVA Nova Amazônia Ltda. O de nº 60/70 solicita a
abertura de crédito no valor de Cr$ 40.000,00 destinado à
desapropriação dos referidos imóveis.256

Entretanto, nenhuma providência foi tomada em prol dos


trabalhadores rurais, pois o próprio prefeito José Liton Luz ordenou que os
mesmos deixassem as suas posses e as entregassem à FRENOVA. O prefeito,
juntamente com o gerente da agropecuária, Sr. Plínio Ferraz, tentou transferir os

em poder de outros posseiros e sob a reclamação de outra fazenda, mas os


trabalhadores do povoado de Porto Alegre do Norte se recusaram a deixar as suas
terras257.
Em agosto de 1971, a FRENOVA derrubou 11 casas do patrimônio,
sendo que além do prefeito de Luciara, também estiveram presentes nesse
acontecimento o gerente da empresa, Sr. Plínio Ferraz, juntamente com seis
pistoleiros ostensivamente armados, derrubaram a escola do povoado e levaram o
material da mesma para a sede da fazenda258. Na ocasião, o gerente da
FRENOVA, Plínio aconselhado pelo advogado Olímpio Jaime (ex-deputado
cassado) contratou dois capangas, Sebastião Ferreira e João Souza Lima259 para
matarem o padre Henrique Jacquemart que estava visitando Porto Alegre do Norte
e esclarecendo a população a respeito dos seus direitos sobre as terras.
Os conflitos gerados pela posse da terra em Porto Alegre do Norte
entram em contradição com os ideais de modelo de propriedade rural instituídos
pelo Estatuto da Terra de 1964, pois no mesmo, de acordo com Leonilde
Medeiros:

256
Ibidem, p. 90-91.
257
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A 17.2.25, 1972, p. 2.
258
Ibidem, p. 1.
259
Estes eram posseiros de Porto Alegre do Norte, falaremos deste caso com maior detalhe no
quarto capítulo desta tese.
[...] tipificam-se os imóveis rurais existentes em minifúndios,
latifúndios por exploração, latifúndio por dimensão e empresas
rurais. O objetivo da reforma agrária seria a gradual extinção de
minifúndios e latifúndios, fontes de conflitos. A empresa,
definida como empreendimento caracterizado pela exploração

se situasse e pela utilização de uma área mínima segundo


padrões estabelecidos em lei, tornava-se o modelo ideal de
propriedade.260

Diferentemente dos anseios proferidos pelo Estatuto da Terra, o


modelo de empresa rural instituído a partir dos projetos de colonização da
Amazônia provocou inúmeros conflitos por terras naquele espaço, visto que, no
caso analisado da agropecuária FRENOVA, esta se estabeleceu em áreas
ocupadas por povos indígenas e trabalhadores rurais com direito a posse. O
discurso de que as antigas estruturas agrárias do país, como o minifúndio e o
latifúndio eram exclusivamente geradoras de conflito no campo, e que a solução
seria a eliminação destas, entra em contradição quando nos deparamos com os
inúmeros casos de violências provocados no espaço rural brasileiro a partir da
implantação dos empreendimentos rurais na Amazônia Legal261.
Os projetos de colonização foram artifícios geopolíticos sem
comprometimento com o assentamento de trabalhadores rurais em terras
devolutas, já que o seu principal objetivo era obter uma ocupação controlada e
dirigida nas áreas de fronteira amazônica.
A implantação da FRENOVA no Araguaia mato-grossense ocorreu
por meio dos incentivos fiscais e facilidades governamentais que fizeram com que
empresas de outras áreas como, a agropecuária em análise cujos proprietários
desenvolviam atividades no ramo da fabricação de tapetes e administração de um
cartório em São Paulo migrassem para Amazônia, bem como o estabelecimento
de empresas estrangeiras como o Grupo Yanmar Equipamentos Agrícolas que
comprou parte da FRENOVA em 1975 para a implantação da Agropecuária

260
MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro:
FASE, 1989, p. 87.
261
Estes dados podem ser verificados nos Cadernos da CPT sobre os conflitos no campo.
Piraguassu, que será discutida no quarto capítulo desta pesquisa. Sob esta
perspectiva Bernardo Sorj, demonstra que a política de colonização da Amazônia
estava centrada no desenvolvimento do complexo agroindustrial conduzido por
grandes empresas internacionais e nacionais que buscavam o aumento dos seus
lucros tanto em áreas diferentes de atuação, como pela internacionalização do
mercado interno262.
Entre os anos de 1970 a 1972, a FRENOVA tentou implantar sua sede
no centro do povoado de Porto Alegre do Norte, pois o espaço era bem localizado
em frente ao rio Tapirapé a única via de transporte na época das chuvas. Neste
período foram realizadas muitas negociações entre os posseiros e a empresa com a
intervenção do INCRA e da Prelazia de São Félix do Araguaia. O representante da
agropecuária entrou em contato com Dom Pedro Casaldáliga e o padre Francisco
Jentel para que os mesmos se reunissem para definir as demarcações das áreas e
os posseiros que tinham direitos a posses. Assim, em abril de 1972, o diretor João
Carlos de Souza Meirelles foi até ao povoado com um topógrafo para demarcar as
terras, entretanto, houve resistências dos posseiros que se negaram a receber os
funcionários da fazenda, dado que só fariam a medição da área com a presença do
bispo Casaldáliga. De acordo com os relatos dos posseiros, o senhor Meirelles
achou ruim aquele fato e assim disse:

A missão do padre é outra. [Com resposta mal educada nos


disse]: o padre não é brasileiro, ele é bom lá onde a mãe dele
pariu ele. Respondemos: agora o senhor sabe disto, mas quem
escolheu o padre como nosso representante foi o senhor. Então
ele disse que no dia 30 de abril estaria de volta e é para ser
resolvido, mas se não vier com o senhor nada feito.263

As exigências dos posseiros em ter a presença de Dom Pedro


Casaldáliga nas negociações com a FRENOVA tinham como propósito a garantia

262
SORJ, Bernardo. Estado e Classes Sociais na Agricultura Brasileira. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1986, p. 69.
263
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.57, 1972, p. 2.
de todos os seus direitos, bem como a demarcação exata das suas posses sem que
estes fossem lesados pela empresa.
Em maio de 1972, um mês após da visita do senhor Meirelles em
Porto Alegre do Norte, a FRENOVA passou ameaçar os posseiros e forçá-los
abandonar as suas posses, cercando todo o povoado. Diante destes fatos, os
posseiros enviaram um abaixo-assinado ao Presidente do INCRA, Dr. José de
Moura e Cavalcanti, para que o órgão pudesse intervir nos acontecimentos, pois a
empresa estava impedindo a sobrevivência da população local 264; assim, as
medidas deveriam ser tomadas a partir do Decreto 70.430 de 17 de abril de
1972265.
É papel do INCRA fiscalizar o cumprimento do Decreto 70.430 de 17
Na execução dos planos de
desenvolvimento agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em áreas

pessoas domiciliadas na área dos empreendimentos a que se refere o artigo


anterior, formem elas ou não, coletividades urbanas, não poderão ser deslocadas
de suas moradias ou da posse de terras por elas cultivadas sem audiência prévia do

No povoado de Porto Alegre do Norte os direitos garantidos pelo


Decreto citado não foram direcionados à população local, visto que após o envio
do abaixo-assinado ao INCRA o mesmo não interviu nos problemas dos
posseiros, haja vista que nos deparamos na documentação do acervo com cartas
para diferentes órgãos/pessoas, tais como: Capitão Moacir Couto - delegado
regional da polícia militar de Barra do Garças, Manuel Fernandes Encarregado
de Assuntos Sociais do SNI, Dom Fernando Gomes Arcebispo de Goiânia, ao
Secretário de Segurança do Estado de Mato Grosso, José de Moura e Cavalcanti

264
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.56, 1972, p. 1.
265
Estabelece a assistência às pessoas domiciliadas na área dos planos de desenvolvimento
agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em áreas pioneiras, por estabelecimentos
oficiais de crédito. Publicado no D.O de 18 de abril de 1972. Disponível
em:<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-70430-17-abril-1972-418749-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 26 dez. 2014.
Presidente do INCRA, e por fim, ao senhor Jacintho Gerente da fazenda
FRENOVA, para que estes solucionassem os problemas de terras.
Em uma carta enviada a Moacir Couto, delegado regional da polícia
militar de Barra do Garças, Dom Pedro Casaldáliga relatou os acontecimentos
violentos que aterrorizavam a vida dos posseiros de Porto Alegre do Norte:

fazenda
antigos. Ela os forçou a sair de suas posses, com ameaças de
gerentes e outros funcionários, com a presença da Polícia, com
promessas, intimações e argúcias do Sr. João Carlos Meirelles
dono e diretor cercando com estacas a própria rua e até as
moradias e quintais do povoado, ou pagando indenizações
fraudulentas. Ela, por meio de seu gerente, Sr. Plínio, comprou
supostos capangas para matar o Pe. Henrique Jacquemart,
simplesmente porque o padre, cumprindo a sua missão,
esclareceu ao povo a respeito dos seus direitos. Ela foi
conivente da trágica espoliação de que o povo de Porto Alegre
foi vítima por parte do Prefeito de Luciara, Sr. José Liton Luz.
Ela ultimamente, contrariando o Decreto 70.430 de 17 de abril
deste ano de 1972, vem cercando a terra do povo, nos arredores
imediatos, e, recentemente, fechou os bebedouros e a estrada
pública.266

A polícia, que tem como função garantir o poder do Estado, quanto à


preservação da vida dos cidadãos passou a desempenhar na fronteira um papel
contrário ao seu trabalho, pois como vimos, alguns policiais atuavam ao lado dos
grupos de empresários no Araguaia para fortalecer e garantir o domínio destes,
bem como faziam operações utilizando veículos dos grandes proprietários
(empresários) e, não raro participavam dos trabalhos os jagunços das fazendas. O
aparato repressor (policial) nas áreas de fronteira, em geral estava a serviço dos
empresários rurais, para reprimir os trabalhadores rurais.
Com a instalação das empresas agropecuárias no Araguaia mato-
grossense, a violência passou a ser considerada um mecanismo de legítima defesa
por parte dos grupos empresariais detentores de dois elementos-chaves: o primeiro

266
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.36, 1972, p. 1.
econômico através do mercado e o segundo social, a partir da justiça, cabendo a
estes legitimar os seus atos de violência como suporte para solução de conflitos ali
presentes.
Na documentação levantada no Acervo da Prelazia de São Félix do
Araguaia, podemos constatar que o ano de 1972 foi um período muito conturbado
para a população de Porto Alegre do Norte, dado que mesmo com a instauração
do Decreto 70.430 de 17 de abril de 1972 que incumbia ao INCRA e as empresas
rurais prestarem assistência às pessoas domiciliadas em áreas de projetos
agropecuários, a Lei não era respeitada e os moradores daquela localidade
passaram pelas mais variadas formas de violência. Para tentar solucionar os
conflitos por terras, Dom Pedro Casaldáliga enviou uma carta com data de 20 de
outubro de 1972 para o senhor Osmar Jacintho, gerente da FRENOVA, na qual se
expunha o seguinte texto:

Prezado senhor;
Depois de uma longa série de tensões entre a Companhia

e intentos de conciliação, mais ou menos ambíguos, feitos a


mim e ao povo do Patrimônio, por parte do Sr. J. Carlos
Meirelles, em nome da empresa, nesses últimos meses a

futuro.
Como a realidade do dia a dia a cerca tão próxima ao povoado,
as indenizações injustas ou expressam
tristemente o contrário das manifestações de convivência e de
paz feitas pela Fazenda e pelo senhor, pessoalmente, nem eu
nem o povo de Porto Alegre podemos aceitar a sinceridade de
tais manifestações.
[...] Quero lembrar ao senhor, como gerente, e aos donos da

70.430 de 17 Abr 72. Somente o INCRA pode resolver,


segundo lei, um problema de posseiros. E o INCRA já se
manifestou oficialmente designando para cada posseiro, nesta
área, o direito de um módulo de 100 ha (20 alqueirões) de terra
de lavoura.
Recorreremos ao INCRA quantas vezes for preciso.
Por consciência de homem e de cristão a par do dever pastoral
do bispo desta região, eu acompanharei o direito do povo de
Porto Alegre até o fim, com todas as conseqüências. Não
desafio; apelo à Lei e à consciência dos senhores.267

O apelo de Dom Pedro Casaldáliga decorre de um enfretamento não


direto, o mesmo utiliza dos termos garantidos em Lei para resolver e assegurar os
direitos dos moradores de Porto Alegre do Norte. Recorrer ao INCRA era o único
meio de conseguir a demarcação das terras dos posseiros, entretanto este órgão
não dava respostas concretas aos problemas daquela população, pois apenas
designou o direito de um módulo de 100 ha para os lavradores, mas não exigiu de
fato que a FRENOVA destinasse a área a eles. O Decreto 70.430/17.04.72 traz em
seu texto ações que o INCRA e as empresas rurais devem tomar para auxiliar os
posseiros, mas não diz especificamente o tipo de assistência que estes têm de
prestar aos trabalhadores rurais.
A única concretude assistencial que a referida Lei apresenta, diz
respeito ao fato de que as pessoas domiciliadas em áreas de projetos
agropecuários não poderão ser deslocadas das suas moradias ou posses sem uma
audiência prévia com o Ministério da Agricultura. No entanto, conforme a
documentação analisada, a população de Porto Alegre do Norte foi expropriada
das suas áreas de forma violenta ou com indenizações injustas, sem que a mesma
tivesse os seus direitos atendidos pelos órgãos competentes.

2.5 Porto Alegre do Norte sob suspeita de atos guerrilheiros

O ano de 1972 se tornou uma fase difícil para a população de Porto


Alegre do Norte, pois foi o período em que o governo militar descobriu a
Guerrilha do Araguaia na região do Bico do Papagaio entre o sul do Pará e o norte
de Goiás (atual Tocantins), assim, a área que compreende o município de Barra do

267
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.50, 1972, p. 1, grifos
nossos.
Garças em Mato Grosso até o a divisa com o estado do Pará, abrangendo toda a
extensão da Prelazia de São Félix do Araguaia se tornou uma zona de segurança
nacional, e, toda equipe pastoral, incluindo o Bispo, foi enquadrada na Lei de
Segurança Nacional e acusada de subversão.
As denúncias de Dom Pedro Casaldáliga e a visibilidade que os seus
escritos ganharam dentro do Brasil e no exterior fizeram com que entre os meses
de setembro e outubro de 1972 o Exército realizasse em São Félix do Araguaia
uma Ação Cívico-Social uma espécie de treinamento antiguerrilha com
assistência social para a população daquele espaço. Os militares associaram a
resistência armada dos posseiros de Santa Terezinha268 e os conflitos dos
posseiros de Porto Alegre do Norte contra a FRENOVA às ações organizadas pelo
PC do B no Bico do Papagaio.
Diante deste contexto, no dia 28 de outubro de 1972, apareceu em São
Félix do Araguaia um homem de 30 anos de idade, suposto professor assistente da
Universidade Federal do Paraná. Este senhor, com nome de Ailson Loper, trouxe
uma carta de apresentação do padre claretiano Vicente Fernandez, da cidade de
Curitiba/PR.
O suposto missionário logo começou a se relacionar com a sociedade
de São Félix (comerciantes, fazendeiros e políticos locais). Participou de uma
reunião na casa do Dr. Jamil Thomé com a presença do Sr. Carlos Alves Seixas,
proprietário, diretor técnico da CODEARA e presidente da AEA, o José Bens,
militar aposentado por corrupção e empreiteiro geral da FRENOVA, e o Dr.
Antônio que havia chegado há poucos dias a São Félix do Araguaia. Nesta reunião
os presentes fizeram questão de informar ao Ailson Loper que sabiam que ele era
da Polícia Federal e ofereceram os serviços, pessoal e conduções das respectivas

268
Em 1967, a CODEARA adquiriu as terras do povoado de Santa Terezinha ciente da existência
de posseiros com direito à posse. A empresa não deixou que estes trabalhadores rurais
permanecessem em suas terras praticando a agricultura de subsistência. Iniciou-se a luta pela terra
entre posseiros e a empresa até o ano de 1972, quando o INCRA demarcou as propriedades dos
trabalhadores rurais.
fazendas. O Dr. Antônio, por sua vez, se declarou como agente do DOPS de Mato
Grosso.
Ailson Loper conviveu cerca de 20 dias com a equipe da Prelazia, mas
se relacionava com pessoas contrárias às ações da Igreja Católica local. No dia 13
de novembro, foi realizada uma reunião na biblioteca da Prelazia de São Félix do
Araguaia, na qual estiveram presentes Dom Pedro Casaldáliga, padre Francisco
Jentel, padre Pedro Mary Sola e os professores da equipe da Prelazia, pois haviam
recebido a notícia de que Ailson Loper esteve em Porto Alegre do Norte e
empreendeu ações violentas. Nesta reunião, Loper foi pressionado a revelar a sua
verdadeira identidade. Ele informou que era o Capitão Ailson Munhoz da Rocha
Loper, membro do Comando de Repressão da Amazônia. O militar informou que
as autoridades o Exército e o Governo Federal estavam convictos de que a
casa pastoral de São Félix era um foco de subversão de guerrilha269.
Diante do clima de terror instalado na Prelazia, o militar disse aos
religiosos que eles que criavam tal situação. Negou energicamente que existisse
tortura no Brasil e que houvesse inocente nas cadeias do país. Assim, com a
chegada do Capitão Ailson Loper, instalou-se um forte sistema de pressão e terror,
por parte da FRENOVA, sobre os trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte.
O padre Eugênio Consoli, os posseiros João de Souza Lima, José de Souza Costa
e Alexandre Quirino de Souza foram levados e detidos na sede da FRENOVA e
ali submetidos a interrogatórios, humilhações e vexames durante mais de duas
horas, sob a vigilância armada do empreiteiro José Bens e dos seus capangas

religiosos da Prelazia foram impedidos de deixar São Félix enquanto o Capitão


ainda estivesse presente no povoado. O padre Francisco Jentel foi proibido de
celebrar missas e Dom Pedro Casaldáliga foi impedido de relatar na missa sobre
os incidentes recentes. Os pilotos dos táxis aéreos foram proibidos de
transportarem as pessoas ligadas à Prelazia, enquanto o militar Ailson Loper

269
BRASIL. Comissão Camponesa da Verdade. Relatório Final Violações de Direitos no Campo
1946 a 1988. Brasília: CNV, 2014A, p. 125.
estivesse em São Félix. Ameaçou o padre Jentel caso pretendesse fugir, e o
submeteu, juntamente com Dom Pedro Casaldáliga, a um interrogatório270.
Essa ação deixou claro que o governo militar era conivente com tais
medidas que visavam excluir aquilo que era considerado um entrave social para o
desenvolvimento da Amazônia. A presença dos posseiros, dos povos indígenas, de
pequenos povoados e vilarejos foi considerada sério obstáculo à implantação das
empresas agropecuárias a partir de 1970, e mesmo que a legislação em vigor
garantisse a esses grupos o direito de permanecerem em suas terras (alguns
posseiros haviam chegado no local em meados da década de 1940), o fato de não
possuírem documentos legais serviu de pretexto para que as empresas alegassem
sua propriedade e exigissem que a população local se retirasse. O Estado se fez
presente para aquela população através da força repressiva que culminou em
torturas e humilhações, inclusive de pessoas ligadas à Prelazia de São Félix do
Araguaia.
Após a retirada do Exército de Porto Alegre do Norte, a população
ainda estava atemorizada e esperava a qualquer momento pela volta dos militares,
tanto que quando pousava um avião na sede da FRENOVA, os trabalhadores e os
agentes de pastoral enviavam cartas a Dom Pedro Casaldáliga para colocá-lo a par
da situação, conforme o relato a seguir:

Chegamos 8 horas. Avião conduzindo dois policiais chegou


antes de nós, porém parou na Frenova. Supõe-se que logo estará
aqui. O povo de Porto Alegre está disposto a enfrentar a
situação e ir até as últimas conseqüências. Se preciso for irão
para a mata por quanto tempo for necessário. Eles mantêm
posição firme e cortarão arame quantas vezes for necessário.
[...] No entanto, nossa posição é de expectativa. São
imprevisíveis as atitudes da polícia e da fazenda. Fique
tranquilo Pedro, povo sabe o que quer. Vale a pena lutar.271

A intervenção do exército em Porto Alegre do Norte fortaleceu ainda


mais as ações violentas da FRENOVA contra os posseiros. A inoperância do

270
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.24, 1972, p. 1-3.
271
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.60, 1972, p. 1.
Estado brasileiro na resolução dos conflitos por terra na Amazônia advém de uma
política pautada no estabelecimento de empreendimentos rurais de capital
nacional e internacional, em contraposição às antigas formas de manejo da terra
praticada por trabalhadores rurais pobres através da agricultura de subsistência. O
capitão Ailson Loper disse à população local que a sua atuação não tinha relação
com os conflitos de terras e que este trabalho competia ao INCRA. Sua missão era
acabar com os focos de guerrilha e subversão no Araguaia. Porém, este discurso
entra em contradição, quando se considera o sequestro dos posseiros João de
Souza Lima, José de Souza Costa e Alexandre Quirino de Souza e o padre
Eugênio Consoli para serem interrogados e humilhados na sede da FRENOVA.
Em contrapartida, a agropecuária tomou para si o uso da violência com apoio de
uma parcela da polícia militar para garantir a sua supremacia sobre as terras dos
posseiros, controlando sistematicamente a contestação da legitimidade dos
direitos dos trabalhadores rurais na luta pela terra.
Os trabalhadores rurais empreenderam a luta pela terra por
necessidade em tê-la como um instrumento de trabalho, assim, ao resistirem às
desapropriações e expulsões, estes buscavam o reconhecimento dos seus direitos e
amparo social que o Estado lhes deve. Entretanto, o governo militar tentou de
todos os modos abafar esses conflitos a partir da desmobilização de grupos
sociais, como a Prelazia de São Félix do Araguaia, impondo a estes uma série de
perseguições e torturas, bem como a sua desmoralização (acusavam os padres e
agentes de pastoral de práticas subversivas, de serem comunistas, inimigos da
pátria) e o enquadramento destes na Lei de Segurança Nacional.
A estratégia dos militares se embasava em desviar um problema de
cunho político e social para um foco simplesmente econômico, o qual seria
resolvido a partir das desapropriações das terras quando estas fossem de interesse
de ambas as partes, ou melhor, no momento em que não lesasse os interesses dos
latifundiários. Conforme Martins272, a intervenção do exército nos conflitos por

272
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1985.
terras na Amazônia configura-se como a militarização da questão agrária, pois
algumas ações do governo ditatorial foram estrategicamente criadas para conter a
resistência dos trabalhadores rurais na luta pela terra. Desse modo, a intervenção
do Estado sobre as vidas das populações em conflitos na Amazônia se deu por
meio de mecanismos da inserção de ações como a Operação Cívico-Social273
ocorrida em São Félix do Araguaia no ano de 1972, com o propósito de
estabelecer uma relação entre o exército e a população local como um modo de
controlar os conflitos sociais provenientes da política econômica e agrária que
incentivou a entrada dos investimentos dos empresários do Centro-Sul do país e
do exterior em atividades rurais na Amazônia Legal.
Para conquistar a confiança dos habitantes de Porto Alegre do Norte, o
capitão Ailson Loper reuniu-se com estes com o intuito de acalmá-los quanto a
sua presença e avisá-los que o INCRA iria regularizar os problemas da
demarcação de terras na região. Assim, em uma carta direcionada a Dom Pedro
Casaldáliga pelo padre Eugênio Consoli, temos a descrição da reunião do militar
junto aos posseiros:

Caríssimo Pedro,

Domingo, dia 12-11-72, esteve aqui o capitão Ailson.


Conversou uns cinco minutos comigo e quis falar ao povo. A
reunião foi feita na escola. Ele se apresentou como seu amigo e
todos nós, dizendo até que estava hospedado na casa dos padres
em S. Félix. Pedro, o assunto da reunião foi, entre outros, que o
INCRA viria aqui. Que tudo seria resolvido. Disse que o povo
não precisava de temê-lo, assim como ele também não temia o

273
Dentre outras ações, podemos citar o MOBRAL, criado em 1971, cujo objetivo era a
erradicação do analfabetismo no Brasil, sendo extinto em 1985. Projeto Rondon, elaborado em
1967, tinha como propósito levar estudantes universitários, especialmente da área da saúde, para
prestar assistência à população de áreas carentes do interior do Brasil. GETAT, idealizado em
1980, tinha como finalidade coordenar, promover e executar as medidas necessárias à
regularização fundiária no sudeste do Pará, norte de Goiás e oeste do Maranhão. Martins aponta
que o GETAT não foi instituído no norte de Mato Grosso, pois os empresários viam a situação da
região estável, sendo esta considerada pós-pioneira, mas não para os trabalhadores rurais pobres
cercados pelos latifundiários. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil...
povo, pois a força de que dispunha, poderia ocupar Porto
Alegre em dois minutos. Dizia ao povo que podia falar.274

A relação imposta pelo capitão Ailson junto à população de Porto

para a resolução dos conflitos de terras, ou seja, a sua ação assemelhava-se ao


perfil da polícia inglesa criada no século XVIII, a qual em linhas gerais, de acordo
com Tavares dos Santos275, demonstrava que o seu poder dependeria da aprovação
do público e desta forma ganharia a sua colaboração voluntária, e não necessitaria
da utilização da coerção física. Entretanto, caso não houvesse a sua aceitação
naquele local, seu aparato repressivo seria o suficiente para recriminar qualquer
movimento contestatório à sua presença.
Desse modo, num primeiro momento, o capitão Ailson tentou
conquistar a confiança dos trabalhadores rurais informando-os que ele era amigo
de Dom Pedro Casaldáliga, se apresentando como uma pessoa confiável e que não
precisava ser temida, porém se houvesse revoltas contra ele, estas seriam sanadas
com o uso da força. Conforme Tavares dos Santos276, o ato de violência vem
sempre anunciado ou justificado, como podemos verificar no discurso relatado no
documento acima. A ameaça de repressão contra os lavradores está posta em
termos claros e por meio de justificativas racionais. O fato de o Capitão falar em
nome do Estado e de projeto de estabelecer um modelo de desenvolvimento
econômico que priorizava a grande propriedade tornavam os posseiros e povos
indígenas alvos das intimidações, por serem vistos como incapazes de promover
esse ideal. Por isso, a violência atingiu em maior grau mais alguns grupos sociais,
acarretando uma série de exclusões e arbítrios, aplicados majoritariamente sobre
os mais pobres.
Os projetos agropecuários instituíram uma grande transformação no
espaço rural brasileiro, os quais destruíram antigas relações e práticas sociais do

274
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.59, 1972, p. 1.
275
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor: formação da organização policial,
consenso e violencia. Tempo Social, São Paulo, v. 09, n. 1, p. 155-167, maio de 1997.
276
Ibidem, p. 164.
cultivo da terra pelos trabalhadores rurais, excluindo esses agentes da cena
política e retardando a proposta de reforma agrária, estabilizando, assim, a
estrutura fundiária dominante do país até os dias atuais.
De acordo com Sorj277, os investimentos em grandes projetos
agropecuários não asseguravam altas taxas de lucros, mas as aquisições de terras
na Amazônia contribuíram para a supervalorização destas, tendo em vista que
estas áreas eram inexistentes em termos mercantis e ganharam valor através da
utilização de créditos subsidiados e incentivos fiscais. Portanto, a compra de terras
por empresas do Centro-Sul distantes de atividades rurais, como a FRENOVA,
possibilitou a apropriação de grandes lucros diferentemente da lógica tradicional
de ocupação da terra, a qual para os trabalhadores rurais tinha como finalidade a
subsistência familiar, e, para os empreendedores era caracterizada como um
negócio de alta rentabilidade.
Desse modo, a política de modernização do campo se converteu em
uma prática de estímulo à concentração de terras, ao passo que os incentivos
fiscais conferidos pelo governo colaboraram para a valorização das propriedades,
não significando assim, que houve necessariamente uma extrema mudança na
modernização da agricultura; mas o que ocorreu de fato, foi a concentração de
terras para fins especulativos.
Os recursos da SUDAM foram destinados à expansão de atividades
para exportação como a mineração e a pecuária. O setor da agropecuária obteve
grande investimento do governo, pois em 1974 criou-se o POLAMAZÔNIA, com
o objetivo de desenvolver as atividades de pecuária, principalmente, no norte de
Mato Grosso, norte de Goiás e sul do Pará, em áreas de cerrado, cerradão e mata
fina, possibilitando aumentar o rebanho da Amazônia para 5.000.000 de cabeças
até o final da década de 1970. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, o

277
SORJ, Bernardo. Estado e Classes Sociais... p. 109.
278
localização no espaço amazôni . Dessa
forma, tornou-se interessante para bancos, empresas automobilísticas,
mineradoras, empresas de construção civil e transportadoras do Centro-Sul
investirem na criação de gado na Amazônia, através dos subsídios do Governo
Federal. No Centro-Oeste entre os anos de 1970 a 1980 houve um crescimento das
áreas dos empreendimentos agropecuários de 44,9%, com o aumento de
16.008.922 cabeças na pecuária bovina para corte279.
A SUDAM passou a dar apoio econômico e incentivos ficais para as
grandes empresas que tinham o interesse de ampliar os seus negócios no espaço
rural. Esta política fez com que praticamente o governo doasse recursos públicos
aos empreendedores que quisessem se dedicar à atividade agropecuária na
Amazônia, e, concomitantemente, o Estado aumentou seu poder repressivo no
campo com o intuito de garantir a implantação dos empreendimentos econômicos
criados com seu apoio.
A rentabilidade econômica oferecida pelo governo ditatorial para as
empresas que desejassem investir em atividades na Amazônia mudou a lógica de
se adquirir terras naquele espaço. Antes, esperava-se que os posseiros fizessem a
ocupação da terra e a desbravassem, logo após vinham as grandes empresas que
compravam um pedaço de terra, frequentemente se apropriando de outros à sua
volta. No entanto, com o advento das políticas públicas em benefício do
capitalismo no campo, os empresários passaram a expulsar simultaneamente os
índios e posseiros das terras, como fez a FRENOVA com os Tapirapé e os
trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte.
Esses fatos demonstram que na Amazônia o poder público se tornou
uma simples extensão do poder privado. Para aferir isso, basta que levemos em
consideração que uma ação de despejo que em tese deveria estar sob a

278
O Estado de S. Paulo, de 26 jan. 1974, apud IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma
agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979B, p. 225.
279
HESPANHOL, Antônio Nivaldo; TEIXEIRA, Jodenir Calixto. A Região Centro-Oeste no
contexto das mudanças agrícolas ocorridas no período pós-1960. Revista Eletrônica da Associação
dos Géografos Brasileiros, Três Lagoas/MS, v.1, nº3, p. 52-65, mai. 2006, p. 58.
responsabilidade de um oficial de justiça, muitas vezes era efetuada por jagunços
das empresas. De acordo, com Martins280 as políticas de ocupação do governo
ditatorial fizeram aflorar na Amazônia três tipos de violências distintas;
inicialmente, a violência física do policial e do pistoleiro contra o posseiro e o
peão, para o estabelecimento da estrutura privada em detrimento da ordem
pública. Em segundo, a violência da justiça, desacreditada pela execução de
sentenças de despejos por jagunços, uma política pautada na expropriação
territorial em benefício dos interesses da empresa privada em prejuízo dos direitos
dos índios e posseiros. Em por último, a violência direta realizada pelo Poder
Executivo, através da ação militar e policial nos problemas fundiários. Sobre os
tipos de violência na Amazônia, os relatos de Dom Pedro Casaldáliga são
elucidativos:

Chegaram um general, o CORONEL RAMALHO a quem


Deus perdoe! -, quatro caminhões do Exército e dois jipes.
Soldados, armas, munições. Vêm procurar terroristas, vêm fazer
sic] de nossa casa

exérci
aqui para ajudar, para fazer umas leves pesquisas. Sabemos que
na realidade estão buscando fantasmas: terroristas,
guerrilheiros, subversivos. E que toda área está sendo

O exército, como supúnhamos, veio efetivamente em exercício


antiguerrilha. E o capitão João Evangelista, cínico e vendido,
aproveitou a situação para novamente fazer intrigas contra mim,
no que se refere ao conflito posseiros-fundiários.281

Os advogados da Prelazia de São Félix do Araguaia que recorriam à


justiça para a aplicação do Decreto 70.430 de 1972, bem como afim do
reconhecimento dos direitos dos trabalhadores rurais pelo Estatuto da Terra, eram
taxados de comunistas e subversivos pelo Conselho de Segurança Nacional.
Como podemos observar, mesmo com o respaldo de leis que em tese deveriam
280
MARTINS, José de Souza. A militarização...
281
CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça e na esperança. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978, p. 67-68.
conter as tensões sociais no campo. Conforme o documento acima, verificamos
que a luta pela terra em Porto Alegre do Norte se dava na esfera privada tendo
como auxiliar o poder do Estado com a atuação da polícia local em prol dos
interesses da FRENOVA. Este fato é caracterizado por Martins como a

vi
militar e policial, na questão fundiária, mediante o alijamento da justiça no
processo decisório, o alijamento das entidades de representação de classe dos
282
interessados, como . Desse modo, o ato de se
privilegiar os interesses de uma empresa privada em detrimento dos direitos de
posseiros denota uma política de expropriação territorial estruturada no princípio
de dominação que entrelaçam o público e o privado, desconsiderando a legislação
existente e utilizando da violência para instituir o poder.

política e costumeira dos proprietários fundiários e a seletividade do Estado nos


conflitos agrários, indicam a continuidade do processo de dilaceramento da
283
. Desse modo, temos atrelada aos conflitos no campo uma
condição social de limitada cidadania e a imperante violência como prática social
corriqueira, a qual seg
do que outras, algumas raças mais do que outras, e as mulheres e os homossexuais
284
.
A violência no campo não se restringe apenas a expulsar os posseiros
das suas terras, mas principalmente, reprime os movimentos sociais e as
manifestações políticas dos trabalhadores rurais, por esse motivo assassina os
homens e mulheres em idade de trabalhar para dificultar o trabalho familiar285.

282
MARTINS, José de Souza. A militarização... p. 59.
283
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Conflitos agrários e violência no Brasil: agentes
sociais, lutas pela terra e reforma agrária. Pontificia Universidad Javeriana. Seminario
Internacional, Bogotá, Colômbia. Ago. 2000, p. 1.
284
Ibidem, p. 2.
285
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação...
De acordo com Tavares dos Santos286, os processos de exclusão social
e econômica, introduzem o uso da violência como preceito social exclusivo de
diversos grupos da sociedade, presentes em várias dimensões da violência social e
política. As diversas formas de violências existentes configuram-se como um
processo de dilaceramento da cidadania, e conforme o mesmo autor, a prática da
violência em áreas de fronteira, geralmente orientada por mandantes e executadas
individualmente ou por milícias privadas é caracterizada como violência política,
a qual em muitos casos consiste no extermínio físico dos opositores nos conflitos
agrários, assim como na perspectiva ostensiva dos assassinatos, sem a penalização
dos mandantes e executores287. Sob essa ótica, o documento abaixo é elucidativo:

Eu, abaixo assinado, BENEVENUTO GONÇALVES NETO,


declaro para os devidos fins que no dia 12 (doze) de novembro
do corrente ano, fui violentamente agredido no Patrimônio de
Porto Alegre, Estado do Mato Grosso, por um senhor que se
apresentou perante o povo desse lugar como sendo CAPITÃO
AILSON, DO EXÉRCITO BRASILEIRO. Na reunião que fez

que era da Policia Federal e armado com uma arma que


pertence ao senhor José Bens, empreiteiro geral da Fazenda
FRENOVA, - por varias [sic] vezes ameaçou-me, dizendo que
dispararia em caso de eu reagir. Disse ao piloto que o

ver [sic] calibre 38 nas


mãos do Moacir Ferreira (Pilôto). Junto comigo levou prêso
[sic] um outro peão que trabalha comigo na FRENOVA. O
nome desse peão é Dorileo, tem por apelido, Cabore. Nos [sic]
dois fomos muito humilhados e ameaçados. Atesto que lá na

sob a rêde [sic] onde dormia o referido peão, obrigando-o a


caminhar de um lado para o outro até de madrugada.
Aterrorizou com sua violência até uma senhora grávida.288

Na medida em que os investimentos econômicos no campo deviam ser


assegurados é que a violência contra os trabalhadores rurais se tornou legítima

286
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Novos processos sociais globais e violência.
Perspectiva, São Paulo, v. 13, nº. 3, p. 18-23, jul./set. 1999.
287
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A cidadania dilacerada... p. 136.
288
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.07, 1972, p. 1.
para que estes não colocassem em risco os empreendimentos agropecuários. O
Estado que deveria garantir a segurança dos cidadãos, aparece em Porto Alegre do
Norte através do excesso de poder que decide sobre o direito à vida daquelas
pessoas. A violência empregada de forma racionalizada e burocratizada pelo
governo militar se impõe por meio da coerção social para o controle dos
lavradores, cerceando os seus direitos e contribuindo, assim, para a manutenção
das estruturas produtivas em detrimento da economia de subsistência dos
lavradores.
A constituição de milícias privadas, juntamente com o poder legal se
tornou uma prática comum na Amazônia, sendo importante considerar que o
capitão Ailson delegou a um civil (Moacir Ferreira Piloto da FRENOVA), que
este poderia atentar contra a vida dos trabalhadores apreendidos na agropecuária,
denotando assim, o uso da violência ilegítima para justificar a preservação dos
projetos econômicos no espaço rural. Este fato entra em contradição com a

289
.
Em Porto Alegre do Norte, o Estado não se preocupava em preservar
as mínimas condições de vida daquela população, pois estas pessoas eram tidas
como empecilhos para o desenvolvimento do capitalismo no campo. A violência
no Araguaia é aqui caracterizada como um dispositivo de poder para garantir o
exercício da dominação. Porém, esta deveria ser usada em última instância para
obter os fins esperados, ou seja, a força só poderia ser empregada para a
manutenção da segurança do cidadão e para a vigência do Estado. Entretanto, os
posseiros eram vistos como executores de uma agricultura atrasada e irracional,
bem como tachados de invasores, desordeiros, aproveitadores, entre outros
termos. Ao afirmar que eles haviam invadido terras privadas, criava-se a
justificativa para toda a forma de violência utilizada contra os mesmos, isto é, os
culparam de se apossarem de bens alheios e, por conta disso, muitas vezes,
tiveram suas vidas ceifadas.
289
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor... p. 158.
Para demonstrar que a área da Prelazia de São Félix do Araguaia
estava tomada por guerrilheiros, e que a mesma deveria estar sob constante
segurança com a finalidade de garantir o seu desenvolvimento econômico, o
capitão Ailson Loper em meio a uma reunião com os posseiros de Porto Alegre do
Norte apontou três possíveis suspeitos e partiu na captura desses elementos
alegando que um deles era um guerrilheiro, o qual tinha assassinado um colega
tenente. O militar chamou o padre Eugênio para ir em busca dos acusados, mas o
religioso se recusou e logo após voltou dizendo não os ter alcançado. Armado no
meio da rua, ele disse ao povo que entregasse as armas imediatamente. Assim,
-se oprimido
de repente sem saber porque, pois, nem entendem de guerrilha e guerrilheiros. As
armas foram chegando. O capitão disse que as levaria para a sede da Frenova e
290
. O palco estava montado e os três supostos guerrilheiros
foram capturados e levados para o avião da agropecuária, sendo vigiados sob
ameaça de um revólver pelo piloto Moacir com a autorização do capitão Ailson
Loper de atirar caso estes reagissem. Entretanto, os três suspeitos eram
empregados da FRENOVA, demonstrando que toda essa representação foi
elaborada pelo militar juntamente com os empregados da agropecuária para tentar
convencer os trabalhadores rurais sobre a presença de ameaça subversiva na
região, bem como legitimar o uso excessivo da violência naquele espaço.
O religioso Eugênio Consoli, juntamente com os posseiros João da
Ponte291, acusado de ter ajudado a cortar a cerca da FRENOVA no povoado de
Porto Alegre do Norte, em companhia de outros dois vizinhos, Zequinha e
Alexandre, foram levados para a sede da agropecuária, onde todos passaram a ser
interrogados em um quarto fechado, pois eram considerados suspeitos de
subversão. Assim, foram questionados sobre quem instigava o povo a se revoltar,

290
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.28, 1972, p. 1.
291
A alcunha advém do fato deste posseiro morar próximo a uma ponte. João da Ponte é o segundo
apelido de João Sousa Lima também conhecido como João da Angélica. O documento da Prelazia
de São Félix do Araguaia trouxe o nome João da Ponte, então resolvemos mantê-lo conforme a
descrição do mesmo.
e sobre uma possível participação do padre Consoli nesses atos. Este último já
havia se pronunciado sobre essa acusação e afirmado que ninguém persuadia a
população local a se rebelar, esta apenas queria se libertar da opressão da
FRENOVA. O posseiro João da Ponte foi humilhado ao máximo para confessar
em que lugar estava a trincheira e os insufladores dos lavradores, caso não
revelasse o padre Eugênio seria levado preso. O capitão Loper convidou o
trabalhador rural para um duelo oferecendo-lhe um revólver calibre 38 carregado
o qual foi negado. O militar jogou a arma no chão e pediu que o empreiteiro José
Bens a quebrasse junto com as armas apreendidas dos posseiros. Ainda sobre este

Eugênio, você está vendo, não está tendo coação moral com vocês e vocês desde
292
.
De acordo com Yves Michaud293, a prática da tortura não se destina
apenas a colher informações, ela também deve humilhar, fazer mal e quebrar as
vítimas. A violência empregada contra o padre Eugênio decorre de uma
administração do terror alicerçada não apenas em uma carnificina, pois o capitão
Loper o induz a uma chantagem psicológica afirmando que o mesmo foi muito
bem tratado e não sofreu nenhum tipo de coação moral. Como Eugênio Consoli
poderia contrariar tal fala? Após presenciar toda uma farsa acerca da existência de
guerrilheiros em Porto Alegre do Norte, assim como testemunhar a tortura e as
humilhações que passou o posseiro João da Ponte. Contradizer as afirmações do
militar seria provavelmente assinar a sua sentença de morte, pois ainda, conforme
Michaud294, o terrorismo de Estado pratica em escala mundial a despolitização da
vida. Neste sentido, o relato de João Souza Lima pode ser esclarecedor:

Uma vez eles vieram, o avião tinha baixado e o velho Plínio


tinha dito que vieram buscar eu, o Alexandre, o Zeca e o padre
Eugênio, pois era para levar as armas para registrar. Nos
pegaram e colocaram no avião e levaram para a FRENOVA.

292
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.28, 1972, p. 2.
293
MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989, p. 57.
294
Ibidem, p. 58.
Quando foi a tarde vieram trazer o finado Alexandre e o Zeca.
Eu fiquei com o padre Eugênio passando a noite nos
ameaçando. Quando foi de manhã quebraram as armas. Nós não
fomos mais ameaçados. Eles só diziam: Zé amanhã eu vou
comer o fígado daquele boi preto assado, e o outro dizia: eu
quero daquele branco, que era o padre. Aí eu chamei o padre,
meu amigo eu não disse para você como era? Eu dei muito
conselho para você. Porque ele era meio novato. Ele ficava com
medo, aí eu falava assim para ele. Os outros revólveres foram
todos quebrados, mas o dele não. Eu falei: olha, eles vão entrar
aqui amanhã cedo, chamava de capitão Ailson que era chefe dos
pistoleiros, e não tinha nada a ver com capitão. Ele vai entrar
aqui e abrir a porta para pegar a gente. Na hora que ele abrir a
porta, eu fico de cá e você de lá, na hora que ele colocar a cara
eu atiro nele, você toma a carabina velha. Aqui você tem que
virar bandido também, padre Eugênio. Não pensa na batina não.
Pensa na carabina. Só que era o que nós queríamos, mas Deus
foi tão bom que não precisou.295

A narrativa acima, nos faz perceber que ocorre uma desordenada


monopolização da violência para se obter a submissão e aceitação da
desapropriação ou invasão das terras dos posseiros, ou seja, os espaços não
pacificados, conforme César Barreira296 dão lugar às práticas radicais de resolução
dos conflitos, assim os problemas agrários são solucionados por meio da agressão
física não mediadas pelo poder judicial ou negociadas. Na fronteira amazônica
inexiste uma dimensão entre o espaço público e o privado, pois é comum entre
aquelas instâncias o emprego da violência para resolver questões interpessoais ou
com a finalidade de preservar o poder.
No contexto da luta pela terra a violência surge como, contraposição
de negociações e acordos, demonstrando que as antigas práticas da manutenção da
propriedade pelo mando e dominação, como por exemplo, dos coronéis da
República Velha, floresce em novas circunstâncias sociopolíticas, como durante a
ditadura militar e que ainda estão presentes na realidade do campo brasileiro. O
uso de milícias privadas e pistoleiros foi naturalizado no espaço rural como meios

295
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
296
BARREIRA, César. Massacres: monopólios difusos da violência. Revista Crítica de Ciências
Sociais, Coimbra, n. 57/58, p. 169-186, jun/nov. 2000.
legais para se manter as terras limpas de invasores. Quando as empresas falavam
em limpar a área da presença dos posseiros, estava caracterizando-os como
invasores que deveriam ser despejados daquelas terras. Estas ações se tornaram
um símbolo da violência no campo como elemento imprescindível na instauração
de um novo modelo econômico na Amazônia e aos poucos, da tomada do poder
político local, estadual e mesmo do estabelecimento de redes de influências junto
às esferas de poder nacional. A repressão em Porto Alegre do Norte se deu à
revelia do Estado de Direito, ou na ilegalidade.

2.6 A intensificação da exclusão social através da violência

Em maio de 1971, os funcionários da FRENOVA, acompanhados pelo


Sargento Abdias da Polícia Militar de Mato Grosso, fardado e armado, passaram
pelos quintais, casas e ruas uma cerca de arame farpado no povoado de Porto
Alegre do Norte. O militar também intimou os posseiros, submetendo-os a
interrogatórios e ameaçando-os de morte297. No espaço rural amazônico, jagunços
e pistoleiros se confundem em meio à polícia local, nos casos de averiguação
policial em relação às denúncias do patronato rural das atitudes contestatórias dos
posseiros contra a tomada das suas terras. Desse modo, tanto os seguranças
particulares da empresa como a polícia local se classificam como defensores e
representantes da ordem, os quais se restringiam a preservação e manutenção do
patrimônio particular, estabelecendo assim, um perfeito acordo entre ambas as
partes na defesa dos bens privados.
ia e ameaça se apoiam mutuamente: trata-se
298
,
ou seja, a presença destes dois grupos em meio aos conflitos por terras demonstra
que o monopólio da violência possui legalidade ao ser exercido para a resolução
297
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.24, 1972, p. 5.
298
MICHAUD, Yves. A violência... p. 60.
dos problemas agrários. Sob essa lógica as atitudes violentas ou ameaças poderão
ser cumpridas, caso os trabalhadores rurais não acatem os comandos desses
agentes.
Além destes atos de violência serem justificados em prol dos
empreendimentos rurais, estas atitudes decorrem de pessoas que estão apenas
cumprindo ordens, conforme o documento a seguir:

A esposa do conhecido valentão empregado da FRENOVA,

posseiros têm raiva do Zé Bens, mas quem manda ele fazer o


que faz é o Dr. Meirelles. Toda vez que o Meirelles chega à
fazenda ele pergunta para o Zé Bens: Esse povo de Porto Alegre
299

A justificativa do uso da violência estabelecida no espaço rural tem


em si regras sociais e fundamentos básicos da moral que não se respaldam na
oposição de se evitar tais ações. Este fato relaciona-se, por exemplo, ao caso
exposto por Hannah Arendt300 sobre o julgamento de Adolf Eichmann, um oficial
do exército alemão designado ao aniquilamento dos judeus daquele Estado.
Arendt demonstra que Eichmann não apresentava características antissemitas com
caráter destorcido ou doentio. Seu trabalho tinha como propósito prosperar na
carreira militar e as suas atitudes decorreram do cumprimento de ordens
superiores, ou seja, seus atos eram realizados sem a racionalização das suas
consequências. Entretanto, a conduta de Eichmann, não era passível de absolvição
e nem sequer ele era inocente, mas estes procedimentos não foram executados por
um indivíduo dotado de enorme propensão a perversidade, e sim por um
funcionário burocrata inserido no interior de um sistema fundamentado em
práticas de extermínio.
Ao analisar o trabalho de Adolf Eichmann, a filósofa Hannah Arendt

299
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.21, 1972, p. 2.
300
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia da Letras, 1999.
atuam de acordo com as normas da instituição que estão vinculados sem
problematizar os seus comportamentos, não se preocupando com as suas sequelas,
e sim com o cumprimento das ordens. Neste sentido, podemos relacionar este
episódio com o trabalho dos jagunços e pistoleiros, os quais conforme a
documentação acima, apenas executam suas tarefas de acordo com que lhes era
ordenado por João Carlos de Souza Meirelles, diretor da FRENOVA sem se
questionarem sobre as suas ações. Diante deste contexto, é importante
destacarmos que o totalitarismo possui outras formas de violência, como, por
exemplo, os campos de trabalho forçado e extermínio em massa, enquanto a
repressão ditatorial se deu por meio de prisões, torturas e assassinatos. Todavia, a

mais expressivos no caso do nazismo, mas a ditatura civil-militar deixou as suas


marcas na América Latina sendo válida a comparação no que diz respeito ao uso
da violência para a manutenção dos interesses do Estado.
Ao legitimar a concentração da terra para os grupos econômicos que
passaram a se instalar na Amazônia a partir da década de 1970, o governo militar

intensidade dos conflitos e assassinato dos trabalhadores para assegurar a


ampliação do latifúndio, bem como acentuar as desigualdades sociais e
econômicas.
A modernização do campo colaborou na ampliação da exclusão social,
pois os trabalhadores rurais eram rejeitados e até mesmo intolerados, ao passo que
os latifundiários tinham resistência em reconhecer nestes agentes os direitos que

por Elimar Nascimento301, o qual aponta que não-reconhecimento vai além da


negação ou recusa dos direitos, uma vez que ao não serem reconhecidos como

301
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Hipóteses Sobre a Nova Exclusão: dos excluídos
necessários aos excluídos desnecessários. Cad. CRH. Salvador, nº 21, p. 29-47, jul./dez. 1994, p.
32.
semelhantes têm-se a propensão de caracterizá-los como objetos suscetíveis de
extermínio dos espaços sociais.

distingue dois traços característicos: o primeiro se relaciona com o chamado


desemprego estrutural e reporta-

desnecessários não apenas econômico, mas, sobretudo, socialmente: mais do que


isso, tornaram-
302
.

303
. Ela desenraiza e
exclui para depois incluir segundo as suas próprias regras. É justamente aqui que
reside o problema: nessa inclusão precária, marginal e instável. O período de
passagem do momento da exclusão para o momento da inclusão implica certa
degradação e, segundo Martins, a sociedade moderna vem criando uma grande
massa de população sobrante que tem poucas chances de ser novamente incluída
nos padrões atuais de desenvolvimento, ou seja, o período de passagem entre
exclusão e inclusão que deveria ser transitório, vem se transformando num modo
de vida permanente e criando uma sociedade paralela que é includente do ponto

304
.
Ambos os autores citados veem a exclusão como fruto do processo de
modernização da sociedade capitalista. A mecanização das indústrias e do campo
provocaram alto índice de desemprego e a aceitação de formas degradantes de
ode

302
Ibidem, p.36.
303
MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza
e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 120.
304
Ibidem, p. 148.
ser evidenciado nos relatos de trabalho análogo ao de escravo na FRENOVA305, é
claro que esse aspecto não é objeto primordial de análise desta tese, mas iremos
citá-los como mais um exemplo das atrocidades cometidas pela empresa em Porto
Alegre do Norte.
A sociedade contemporânea impõe aos chamados excluídos formas
humilhantes de inclusão, na qual a pessoa se degrada e o seu trabalho perde o
valor, para que esta possa se inserir na sociedade. Logo, uma das consequências
dessa inclusão, sobretudo no Brasil, está na propagação do trabalho escravo, ou
seja, a inserção degradante do ser humano para a ampliação do capital. Entretanto,
estes trabalhadores migrantes conhecidos como peões só estavam inseridos na
primeira fase da instalação e abertura da fazenda por meio das atividades de
desmatamento, construção de cercas e limpeza da juquira306, após esta etapa, os
peões juntamente com os posseiros eram tidos como desnecessários
economicamente, assim discriminados socialmente e caracterizados como
ameaçadores aos projetos e empreendimentos do campo, tendo desse modo,
justificada a eliminação destes grupos do espaço rural.
Nascimento307 demonstra que a nova exclusão social resulta da

de ele
econômica, e, ameaçador, sob a ótica social, isto é, desnecessários para o êxito do
capitalismo no campo. Neste sentido, tanto os peões como os posseiros podem ser
caracterizados como os novos excluídos que é uma categoria social que se torna
economicamente dispensável, politicamente inconveniente e socialmente hostil,
justificando o seu extermínio físico.

305
Para aprofundamento na questão, ver: CASTRAVECHI, Luciene A. Correntes do Araguaia: A
exploração de trabalhadores migrantes no Nordeste de Mato Grosso durante a década de 1970.
Dissertação (Mestrado em História) Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2012.
306
Brotação das árvores e arbustos cortados. Em geral há predominância de uma espécie
Palmeiras, Babaçu ou Embaúba.
307
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Hipóteses Sobre a Nova Exclusão: dos excluídos
necessários aos excluídos desnecessários. Cad. CRH. Salvador, nº 21, p. 29-47, jul./dez. 1994, p.
44.
A propagação dos conflitos em Porto Alegre do Norte gerou a
violação dos direitos humanos, a desigualdade social rural e a exclusão social
reproduzidas pela violência através da conivência do Estado que fechou os olhos
para os abusos da FRENOVA naquela espacialidade. Esta atitude colaborou com
aquele grupo empresarial para a imposição dos seus projetos em áreas ocupadas
por trabalhadores rurais, bem como no favorecimento de garantias para o acesso
ao mercado de capitais, acarretando assim, o descumprimento dos direitos
essenciais daqueles indivíduos.
Em relação à propagação da violência no campo é importante salientar
que esta possui três grandes características, segundo José dos Reis Santos Filho:

1. violência física: manifesta nos atos de grilagem, expulsão,


tortura, assassinato, queima de casas, destruição de roças,
cercas, instrumentos de trabalho, etc.;
2. violência judicial: localizável no enfrentamento com uma
justiça comprometida com interesses econômicos e
governamentais;
3. violência governamental: perceptível nos atos de governos
em níveis municipal, estadual e federal. É uma interferência que
tem como objetivo enfraquecer a organização dos trabalhadores,
desmoralizá-los e impedir que seus direitos sejam atendidos.308

Desejamos assinalar nesta tese que o estabelecimento da FRENOVA


no nordeste de Mato Grosso possibilitou
309
com um nítido caráter instrumental para apropriação de terras.
A justiça passou a ser menos acionada e os empresários passaram a ter a posse da

vigilantes e pistoleiros. Podemos compreender a violência presente nas relações


estabelecidas em Porto Alegre do Norte como um ato que não é percebido como
tal, ou seja, naquele espaço reduzir o indivíduo à condição de coisa, violando-o
interior e exteriormente, bem como instituir ações sociais de profunda
desigualdade econômica, social e cultural ganham um tom de naturalidade, tendo

308
SANTOS FILHO, José dos Reis. Violência e projetos de vida em conflitos pela posse da terra.
Estudos de Sociologia, Araraquara, v.6, n. 11, p. 145-159, jul./dez. 2001, p. 147.
309
Idem.
em vista que estão arraigadas na sociedade brasileira. Marilena Chauí 310 afirma
que esta estrutura não é percebida como violenta relegando frequentemente como
um fato momentâneo. Com isso, os procedimentos ideológicos fazem com que a
violência que estrutura e organiza as relações sociais brasileiras não possa ser
percebida, e, por não ser percebida, é naturalizada e essa naturalização conserva o
mito da não-violência na sociedade brasileira.
A violência está atrelada ao cotidiano do trabalhador rural assinalado
pelo sentimento de medo e insegurança constante, pois afinal, a força é utilizada
para manter uma dita ordem social que afeta a sobrevivência deste indivíduo no
campo. É diante desse cenário que temos uma efetiva demonstração do não
reconhecimento dos direitos dos trabalhadores do campo, os quais estão sujeitos a
diferentes formas de subordinação que têm a repressão como uma variável mais
aparente, como podemos observar no relato abaixo de Dom Pedro Casaldáliga:

A FRENOVA vem cercando toda a área rural do Patrimônio,


inclusive os 3 bebedouros públicos e a única estrada do lugar.
Depois de reclamar quatro vezes pela provocação da cerca que
fechava os bebedouros e a estrada, os posseiros, perante
testemunhas da própria fazenda, cortaram a referida cerca. Este
ato demais do que legítima defesa foi aproveitado pela
FRENOVA para intimar por meio da sempre conivente polícia
estadual, a cinco posseiros. A ordem de intimação vinha
assinada pelo capitão Moacir Couto, delegado regional da PM
de Mato Grosso, sediado em Barra do Garças, sendo entregue
em Porto Alegre pelo Sargento Cesar Augusto Bastos,
acompanhado do escrivão de Polícia senhor João Lázaro de
Carvalho e do (veterinário da fazenda) José Carlos Vieira,
trazidos pelo piloto Moacir Ferreira.311

No tocante à violência no campo brasileiro, Stédile312 demonstra que


esta é praticada pelos latifundiários como uma violência estrutural que
marginaliza os trabalhadores do campo, submetendo-o muitas vezes, como vimos,
310
CHAUÍ, Marilena. Ética e violência, 1998. Disponível em: <
http://www.teoriaedebate.org.br/?q=materias/sociedade/etica-e-violencia>. Acesso em: 09 out.
2015.
311
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.24, 1972, p. 5.
312
João Pedro Stédile é membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra,
do qual também é um dos fundadores.
ao trabalho análogo ao de escravo, a exclusão e a desigualdade social, bem como
a repressão aos posseiros que lutam por seus direitos de permanência na terra313.
Dessa forma, ao constatarem a resistência dos trabalhadores contra a violência
estrutural, estes agem no sentido de eliminarem as lideranças, geram o medo e o
pânico com o intuito de extinguir as suas reivindicações, como também
denunciam falsamente os lavradores por práticas não efetuadas, contratando
pistoleiros e tendo a conivência de parte da polícia no extermínio do trabalhador
rural.
O nordeste de Mato Grosso, a exemplo do povoado de Porto Alegre
do Norte se tornou um espaço de conflito armado em decorrência da luta pela
terra entre empresários do campo e trabalhadores rurais, não apenas estes
segmentos se armaram para garantir a preservação da propriedade, mas a presença
da polícia estadual junto à FRENOVA, do Exército no combate à Guerrilha do
Araguaia e do Comando de Repressão da Amazônia por meio da ação do Capitão
Ailson Munhoz da Rocha Loper, nos problemas agrários, de alguma maneira
contribuíram para o uso da violência por parte dos proprietários da agropecuária

314
ment , que passa a ser acionada para justificar a repressão
utilizada pelos latifundiários e pelo Estado como legítimas em benefício da
manutenção da propriedade privada, assim, a violência da mentira passa ser
proferida por várias vezes até que se torne uma verdade. Dessa Forma, qualificar
os posseiros como invasores e guerrilheiros torna a prática violenta dos grupos
empresariais justificável, ao passo que a estigmatização dos lavradores fortalece o
discurso que para manter o progresso e desenvolvimento da região se faz
necessário o domínio sobre grandes extensões de terras em detrimento da
agricultura atrasada exercida pelos posseiros.

313
STÉDILE, João Pedro. A luta pela terra no Brasil. Ervália: Ed. Página Aberta LTDA, 1996, p.
71-77.
314
Ibidem, p. 80.
A agropecuária FRENOVA que chegou na década de 1970 violou
de tradicional, sobretudo no que diz
respeito ao uso e posse da terra. Para os posseiros a terra é um bem de uso, não é
uma mercadoria para ser vendida e comprada. Não havia necessidade de
documentos para garantir o uso da terra pelas famílias e por gerações. A empresa
guiada por outros princípios quebrou esse princípio ao expulsar moradores,
baseando-se no pressuposto de que a terra não tinha proprietário porque não era

registrasse.
O povoado de Porto Alegre do Norte estava dividido entre os
interesses dos sócios da FRENOVA, pistoleiros e policiais estaduais e federais
contra os trabalhadores rurais na luta pela terra. Os espaços públicos passaram por
uma privatização por parte dos empresários através de uma organização efetiva da
violência contra os posseiros. Para a concretização das práticas repressivas
surtirem efeito contra os lavradores, a polícia foi contratada para efetuar
expulsões, assassinatos, intimidações e executar intimações oficiais na área da
agropecuária, de acordo com a narrativa de Dom Pedro Casaldáliga:

Os dias que se seguiram foram de constantes ameaças, de


pressão e terror por parte da FRENOVA sobre o povo de Porto
Alegre. Novamente foram intimados a comparecer na sede da
fazenda o Pe. Eugênio e o posseiro Alexandre, que se negaram
a intimação; e em sinal de represália, o avião do Capitão
[Ailson Loper] sobrevoou várias vezes em vôo rasante o
povoado.315

Barreira316 demonstra que no final do século XIX e início do XX, o


uso de milícias privadas, de policiais locais, de jagunços e de pistoleiros, poderia
ser explicado pela ausência ou fragilidade de um poder judicial. Entretanto, na
segunda metade do século XX este ato tornou-se desnecessário e injustificável,
tendo em vista o aparato militar que o Brasil passou a dispor. Portanto, o uso da

315
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.21, 1972, p. 4-5.
316
BARREIRA, César. Massacres... p. 169.
violência por parte dos grandes proprietários de terras não é consequência apenas
de um Estado inoperante, mas também em decorrência da imposição de um poder
paralelo que existe de forma simultânea no presente com vistas de atitudes do
passado, em meio ao desenvolvimento e ao atraso de práticas retrógradas para
instituir o exercício da dominação.
É importante observamos na narrativa acima que espaços privados,
como a agropecuária FRENOVA, passavam a ser locais de função pública à
medida que os interrogatórios do padre Eugênio Consoli e do posseiro Alexandre
Quirino iriam ocorrer na sua propriedade, configurando, desse modo, a
interpenetração entre o público e o privado nas áreas de fronteira na Amazônia.
Também é significativo percebermos que uma ação oficial, a qual deveria ocorrer
em uma delegacia (espaço público) foi direcionada para uma propriedade privada
que está em litígio com os moradores locais. Digamos que este fato já demonstra a
imposição de poder por parte da FRENOVA, que além de deter um grande
prestígio econômico, igualmente possuía importância política, evidenciando o seu
poder intimidatório ao ter a polícia estadual e federal à sua disposição na
resolução dos problemas de terras. Por que estes indivíduos não puderam ser
interrogados nos seus espaços de sociabilidade que lhes conferiam identidade e
pertencimento, tais quais: a Igreja, o centro comunitário ou a escola? O fato de
serem intimados a comparecerem na FRENOVA para possíveis esclarecimentos
impõe intimidação e coerção, isto é, se deslocar até o território dos seus opositores
e encontrar naquele ambiente grupos armados tanto da polícia quanto dos
seguranças particulares da fazenda, impõe a estes agentes o medo e a recusa em
cumprir com a intimação.
Desde a instalação da FRENOVA em 1970 até o ano de 1972,
constatamos neste capítulo algumas formas de violência contra a população do
povoado de Porto Alegre:
A tentativa de negação dos direitos sobre suas posses ocupadas há
cerca de 30 anos, sendo estas terras trabalhadas por meio da agricultura
de subsistência por famílias de migrantes provenientes em sua maioria
das regiões Norte e Nordeste do Brasil;
A limitação sobre o direito de ir e vir, provocada pela construção
de cercas de arame farpado sobre os espaços comunitários dos
trabalhadores rurais, dificultando assim, o uso do bebedouro público do

barro, palha de coco etc.;


O não cumprimento do Decreto 70.430 de 1972 que estabelece a
assistência às pessoas domiciliadas na área dos planos de
desenvolvimento agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em
áreas pioneiras, por estabelecimentos oficiais de crédito;

dissimuladamente produzidas com o objetivo de atemorizar os posseiros


e religiosos em relação a uma possível prisão ou sofrer atentados
violentos.
Com base nos fatos acima, este capítulo procurou demonstrar que os
conflitos por terra assumiram maiores dimensões em Porto Alegre do Norte a
partir da década de 1970 e, por conseguinte, em decorrência dos investimentos de
capital estimulados pelo Estado com o intuito de ampliar as relações capitalistas
de produção no campo através dos projetos agropecuários. Por meio dessa política
pública, a terra passou por um acentuado processo de valorização, sobretudo no
que diz respeito às aplicações de créditos para o desenvolvimento da criação de
gado. Neste contexto os conflitos por terra se tornaram inevitáveis, pois os
proprietários buscavam formas de valorizar ou obter novas terras, e até pessoas e
empresários que atuavam em outros ramos, a exemplo dos sócios da FRENOVA
comerciantes do setor de tapetes e donos de Cartório no estado de São Paulo,
pretendiam nas aquisições de terras a oportunidade de terem acesso aos
abundantes empréstimos financiados a juros baixos pelo governo.
Diante deste cenário, o modo de vida dos posseiros foi visto como
desenvolvimento,

fronteira a visão da qual é vítima quando o europeu olha para o Brasil; sendo estes
passíveis de eliminação no espaço rural.
A agropecuária FRENOVA passou a representar a proposta de
desenvolvimento imprescindível para a expansão capitalista na Amazônia, em
contraposição ao modo de vida dos trabalhadores rurais baseado na produção para
a subsistência, em que o excedente era vendido ou trocado na região. As práticas
dos posseiros passaram a ser ameaçadas, e estes por medo ou até mesmo por um
mecanismo de resistência à tomada das suas terras através da repressão, venderam
as suas benfeitorias para a fazenda, migraram para outros lugares ou se
proletarizaram. Já os que permaneceram em suas posses lutaram contra a
317
das suas áreas. Nesse processo é válido destacar a
conivência do Estado em legitimar o uso da violência em prol dos anseios
econômicos em detrimento destes agentes marginalizados pela exclusão e
desigualdade social, como também pela negação dos seus direitos fundamentais
enquanto cidadãos.

317
3. A REPRESSÃO MILITAR COMO RESPOSTA AOS CONFLITOS DE
TERRA

Como resposta aos conflitos de terra desencadeados na área de


jurisdição da Prelazia de São Félix do Araguaia, em fins da década de 1960 e
início de 1970, têm-se os maiores enfrentamentos: a CODEARA contra os
posseiros de Santa Terezinha e a FRENOVA contra os posseiros de Porto Alegre
do Norte; no ano 1973 ocorreu uma forte e violenta intervenção militar na região
que culminou no sequestro, prisão e torturas de alguns agentes de pastorais e
religiosos, sendo estas ocorrências censuradas pela imprensa brasileira.
No Relatório final da Comissão Camponesa do Campo, Antônio
Canuto318 alega que a operação foi dirigida pelo Secretário de Segurança do
Estado, juntamente com a Polícia Militar, agentes do Exército, da Marinha, da
Aeronáutica da Polícia Federal. Os agentes de pastorais e religiosos foram
acusados de incitarem os posseiros a lutarem contra a instalação das empresas
agropecuárias na região, pois estes não tinham capacidade para organizarem tais
atos de resistências, sendo influenciados pelos mentores intelectuais ligados a
Prelazia de São Félix do Araguaia.
A título de compreensão do leitor sobre estes acontecimentos, iremos
descrever brevemente os conflitos de terra em Santa Terezinha319 que
contribuíram para a intervenção militar no Araguaia, sendo válido assinalar que
este município não faz parte do nosso recorte espacial, mas juntamente com Porto
Alegre do Norte desencadeou lutas pela terra no mesmo período, como vimos no
capítulo dois desta tese.

318
CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças a posseiros pela Codeara. In: BRASIL. Comissão
Camponesa da Verdade. Relatório Final Violações de Direitos no Campo 1946 a 1988. Brasília:
CNV, 2014, p. 120.
319
Já trabalhamos com este episódio na dissertação de Mestrado, mas para que esta memória de
tortura e repressão não seja esquecida, falaremos brevemente deste fato afim de contribuir para o
não silenciamento destas vítimas da ditadura civil-militar no Brasil. Além disso, iremos trazer
novas análises aos relatos de tortura e acrescentar outros documentos.
Santa Terezinha está situada no nordeste de Mato Grosso, banhada
pelo rio Araguaia fazendo divisa com o estado de Tocantins. Com o
estabelecimento das empresas agropecuárias no Vale do Araguaia a partir de
meados da década de 1960320 têm-se uma mudança nas relações sociais da
população que já habitava aquela região desde o início do século XX. Dentre elas
podemos citar o povoado de Santa Terezinha, que teve parte de sua área ocupada
pela agropecuária CODEARA.
A CODEARA teve a área do seu projeto de 195.000ha aprovada pela
SUDAM. O empreendimento se instituiu no distrito de Santa Terezinha, e tanto as
casas quanto o espaço de trabalho dos agricultores foram postos sob o domínio da
empresa. A agropecuária adquiriu as terras da região e mesmo ciente de que nelas
havia ocupantes com direito a posse ignorou esse fato sumariamente, tendo em
vista que estes estavam estabelecidos em um ponto geograficamente estratégico,
próximo ao rio: única via de transporte naquela época e de fácil acesso ao porto
fluvial. A empresa propôs aos ocupantes, ou seja, os posseiros, que fossem
remanejados para locais mais distantes, removendo-os das suas antigas terras de
trabalho. Isso deu início, em 1967, à disputa entre posseiros e a empresa, o que
durou até 1972.
Sobre o conflito entre a CODEARA e os posseiros, ocorrido no dia 3
de março de 1972, Esterci, o descreve da seguinte forma:

Um grupo de posseiros defrontou-se com membros da força


policial de estado e empregados da CODEARA, ferindo sete
componentes do grupo de policiais e empregados da empresa. O
confronto se deu no lugar onde o vigário de Santa Terezinha,
padre Francisco Jentel, mandara construir um ambulatório, obra
contestada pela empresa que alegava não estar a mesma
localizada de acordo com o plano de urbanização da futura
cidade. Na ocasião, o oficial de polícia levava consigo uma
320
A partir de 1968 o nordeste do estado de Mato Grosso passou por diversos conflitos violentos
pela posse da terra, dentre eles podemos citar: Serra Nova Dourada (Posseiros x BORDON/S/A),
Porto Alegre do Norte (Posseiros x FRENOVA), Santa Terezinha (Posseiros x CODEARA), São
Félix do Araguaia (Posseiros x SUIÁ MISSÚ). Para um estudo detalhado acerca dos conflitos,
consultar: Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia, Pasta A.17 a A.19 e CASALDÁLIGA,
Pedro. Uma Igreja da Amazônia...
ordem de prisão contra membros da Missão Religiosa Católica
de Santa Terezinha e se dirigia ao local da obra a pretexto de
averiguar um suposto depósito de armas, arsenal do movimento
subversivo que, segundo denúncia do pessoal da empresa, o
vigário comandava. Em conseqüência do confronto, tropas do
exército ocuparam a área e praticamente todos os homens
adultos do povoado tiveram que refugiar-se na mata por mais de

ou conhecido o episódio, foi a


culminância de uma série de disputas que vinham sendo
travadas entre posseiros e empresas desde 1967, quando esta
viera a implantar-se nas terras de Santa Terezinha.321

O conflito gerado a partir da instalação da empresa nas terras de


antigos posseiros fez aflorar uma violência acentuada naquela localidade. Uma
vez que, a forma pela qual a agropecuária se apropriou daquelas terras impediu
que os posseiros pudessem desenvolver sua agricultura de subsistência, sua caça e
pesca, ou seja, a empresa inviabilizou o modo de vida que já vinha sendo
realizado há anos, na medida em que empregou a violência contra essas pessoas e
suas posses.
A Igreja Católica já vinha efetuando trabalhos naquela região desde a
década de 1950 com a presença das Irmãzinhas de Jesus322. Em 1954 chegou ao
Araguaia o Padre Francisco Jentel, que viveu junto aos povos Tapirapé por dez
anos; a presença desses missionários foi de fundamental importância para o
aumento e proteção daqueles povos, bem como a (re)conquista de suas terras:

A vinda providencial das Irmãzinhas de Jesus e do Padre


François Jentel à Aldeia Nova é que salvou os Tapirapé da
desorganização total e provavelmente extinção. Nem o
missionário nem as freiras operaram milagre. Contudo, a
intervenção das irmãzinhas, persuadindo os Tapirapé a
abandonar a prática do infanticídio, foi crucial. No mais, tanto o
padre como as irmãs tentaram interferir o mínimo possível na
vida Tapirapé. [...] Nunca soube que estes missionários
tentassem converter os índios. [...] Nos anos 60, o Padre
François realizou inúmeras viagens à Brasília, onde tentou obter

321
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 3.
322
Sobre o trabalho das Irmãzinhas de Jesus junto ao povo Tapirapé, ver: Diário das Irmãzinhas de
Jesus de Charles de Foucauld, 2002.
com o SPI e, depois, com FUNAI, a demarcação das terras dos
Tapirapé.323

A pedido de Tomás Balduíno, pároco de Conceição do Araguaia, em


1964 o padre Francisco Jentel foi morar em Santa Terezinha para trabalhar com os
posseiros. Junto com a população local, construiu um ambulatório médico e uma
escola para as crianças do povoado.
A partir da intervenção do padre Jentel como mediador dos interesses
do grupo de posseiros na luta pela terra em Santa Terezinha, o Estado tomou
medidas decisivas para amenizar o conflito entre a CODEARA e os antigos
ocupantes do espaço. O Governo Federal, junto aos órgãos competentes, acelerou
o processo de demarcação das áreas, reconhecendo o direito de posse nos termos
definidos pelo Estatuto da Terra de 1964, à população que já habitava o povoado
antes da chegada da empresa.
Após o conflito de Santa Terezinha o governo militar passou a apontar
o padre Jentel como o mentor intelectual dos acontecimentos contestatórios e
violentos naquele povoado. As denúncias contra o religioso foram efetuadas em
jornais pelo diretor da Associação dos Empresários Agropecuários da Amazônia,
Sr. Carlos Alves Seixas, o qual acusou Dom Pedro Casaldáliga e o Padre
Francisco Jentel como responsáveis pela campanha difamatória contra o governo
brasileiro e por usarem os posseiros para depredação e invasão das propriedades.
O diretor ainda afirmou que com a chegada dos novos leigos e agentes de
pastorais na Prelazia, o trabalho foi intensificado junto à população local com a
entrada de armas automáticas que estariam escondidas em Santa Terezinha e que
o conflito pela construção do ambulatório foi desnecessário, visto que há mil
metros existia um hospital.
O empresário Carlos Alves denunciou os fatos à polícia militar do
estado de Mato Grosso que, sob o comando do Capitão Evangelista, foi até Santa

CODEARA a guarnição que estava desarmada foi surpreendida por uma

323
WAGLEY, 1998 apud SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos... p. 272.
emboscada dos moradores através do comando da ação guerrilheira liderada pelo
324
.
Diante dessas acusações, os bispos de Goiás se manifestaram em
defesa do padre Jentel divulgando uma carta da versão esclarecida por Dom Pedro
Casaldáliga que demonstra os responsáveis pela crise em Santa Terezinha:
1 a CODEARA, pela sua descontrolada ambição;
2 as autoridades municipais de Luciara e as autoridades estaduais de
Mato Grosso, pela conivência pelos desmandos da companhia;
3- Alguns elementos de órgãos federais, pela grave omissão no caso325.
O padre Jentel estava no Rio de Janeiro em uma reunião com o
secretário geral da CNBB Dom Ivo Lorscheiter, e logo após prestou depoimento
à imprensa repudiando
sistemáticas da polícia para capturar os líderes civis do suposto movimento que
326
.
Não só os empresários acusaram o padre Jentel como sendo
responsável pelo conflito em Santa Terezinha, como também o governador do
estado de Mato Grosso, José Fragelli. O governador esteve em São Paulo para
manter uma série de contatos com as autoridades municipais, estatuais, militares e
empresários. Nessa oportunidade, concedeu entrevista ao Jornal Estado de São
Paulo, em
Fragelli declarou que

[...] tanto o padre Jentel como o bispo de São Félix, dom Pedro
Casaldáliga, estavam incitando os posseiros daquela região
contra as companhias agropecuárias que estavam se instalando
na área do Araguaia. De acordo com as investigações feitas
depois do incidente de Santa Terezinha, quando oito
funcionários da CODEARA foram feridos à bala, chegou à
conclusão de que o mentor intelectual da revolta tinha sido o
padre Jentel, que, no momento, se encontra foragido (...) Esses

324
GUERRILHA, Empresários Acusam Padre, 11/03/1972. Documento do Acervo da Prelazia de
São Félix do Araguaia R06. 2.37, p. 2.
325
Idem.
326
Idem.
dois religiosos, de tendências puramente esquerdistas, mantêm
em ação um bem caracterizado plano de agitação, orientados
provavelmente, por agentes de outros países.327

A mídia foi um importante instrumento utilizado para difamar


trabalho de leigos e religiosos da Prelazia de São Félix, com a intenção de
construir uma imagem de uma instituição que estava impedindo o avanço e o
progresso da Amazônia e estimulando posseiros e peões a se revoltarem contra as
empresas e que, consequentemente, contava com a ajuda de grupos políticos
internacionais para destruir o governo brasileiro.
Com a prisão de Francisco Jentel após 1972, sua condenação e
posterior expulsão do Brasil, outras pessoas tomaram frente nos trabalhos
realizados por este padre integrando-se à equipe pastoral de Santa Terezinha,
dentre elas: Padre Antonio Canuto, Terezinha [Tereza Salles] e Tadeu, Pontim,
Tereza, Aparecida, Eli e Edgar prosseguiram com os projetos de Jentel pensados
para a região, como saúde, educação e a garantia pelos direitos de terra328.
Após a prisão de Padre Jentel, os agentes pastorais, leigos e padres
que passaram a efetuar o seu trabalho sofreram uma violenta perseguição pelos
militares. Os relatos que descrevem as atrocidades cometidas pelo aparato militar
contra a equipe da Prelazia de São Félix estão disponíveis na pasta de código

a invasão da Prelazia de São Félix do Araguaia pela polícia militar, juntamente


com oficiais do exército e da aeronáutica no início de junho de 1973, foi
elaborado por Dom Pedro Casaldáliga para informar os acontecimentos violentos
na Prelazia. Foi uma forma de dar visibilidade para os problemas da região, bem
como chamar a atenção de órgãos comprometidos com os direitos humanos e
buscar junto a estes, soluções para o sofrimento daquela população.

327
Ibidem, p. 1.
328
SOUZA, Maria Aparecida Martins. A luta pela permanência na terra: a resistência dos posseiros
de Santa Terezinha. In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na
fronteira amazônica (século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010, p.
246.
Com a sentença conferida ao Padre Jentel em 28 de maio de 1973,
julgado em Campo Grande (atual capital do estado do Mato Grosso do Sul) e
condenado a 10 anos de prisão, Dom Pedro Casaldáliga considerou que a vinda do
destacamento militar permeada por atos repressivos estaria vinculada
possivelmente à condenação do religioso, pois os militares pretendiam impedir
uma eventual reação da população de Santa Terezinha ou da região.
Intencionavam ainda atemorizar o bispo e a equipe da Prelazia. Para Casaldáliga
os militares não estavam satisfeitos apenas com a condenação de Jentel, mas
queriam o extermínio da Prelazia e, consequentemente, o fim das ações de justiça
e liberdade desencadeadas por esta Igreja329.

3.1 O violento ano de 1973 e os relatos de torturas na Prelazia de São Félix do


Araguaia

A Doutrina de Segurança Nacional formulou um dito inimigo interno


que deveria ser perseguido, torturado ou eliminado, dando assim respaldo à
instauração dos regimes ditatoriais na América Latina. A DSN dita desse modo é
brasileira, forjada na Escola Superior de Guerra nos anos de 1950 e sua matriz foi
a Guerra Fria, com o ideário da luta em oposição ao comunismo, desdobrada na
América Latina, o combate contra o inimigo interno e a subversão. Então, o que
deu suporte às ditaduras latino-americanas foi a Guerra Fria e o perigo comunista.
Para viabilizar tal prática, o golpe civil-militar de 1964 criou em junho
daquele ano o SNI, órgão composto por civis e militares a fim de localizar,
prender e exterminar as pessoas contrárias ao regime ditatorial. Nesta mesma
linha de atuação, ocorreu em 13 de dezembro de 1968, o estabelecimento do Ato
Institucional nº 5, no qual o presidente da República poderia decretar o confisco
de bens dos cidadãos e suspender garantias de habeas corpus, nos casos de crimes

329
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08. 2.03, 1973, p. 1.
políticos contra a segurança nacional, fortalecendo assim a prática da tortura como
aparelho essencial da ditadura.
Em janeiro de 1968, o Conselho de Segurança Nacional aumentou as
funções do SNI e implementou as DSIs. Este fato caracterizava uma ampla rede
de espionagem, instaurada em todo o país, nas seguintes instâncias: ministérios
civis, pastas militares, autarquias, fundações e órgãos públicos. Nestas esferas o
órgão assumiu o nome de AESI, sendo importante destacar que era conveniente
para o mesmo, lotar militares linha-dura que almejavam pouco trabalho e
gratificações. Jayme Portella iniciou a constituição de um planejamento nacional

o Plano Nacional de Informação, sob a coordenação do general Carlos Alberto da


Fontoura (1969-1974), deliberando todos os ofícios a serem desempenhado pelo
órgão que passou a integrar o SISNI330.
Dentre as principais atividades desenvolvidas pelo SNI tinha-se a
elaboração de relatórios para a presidência da República e autoridades centrais. As
informações eram advindas do próprio serviço, além de serem disponibilizadas
pelas DSIs, sendo que cada Divisão contava com cerca de trinta funcionários. O
historiador Carlos Fico denomina os órgãos de informações, o SNI, as DNIs e
outros331 como integrantes da comunidade de informações, a qual detinha
informações a respeito de quaisquer questões ou pessoas relevantes para o regime.
,

330
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da
repressão. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano:
O tempo da ditadura regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012B, p. 177.
331
CIE (Centro de Informações do Exército), Cisa (Centro de Informações de Segurança da
Aeronáutica), e o Cenimar (Centro de Informações da Marinha). Entre 1967 e 1971 foram

política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge;


DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: O tempo da ditadura regime
militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012 B,
p. 178.
pautava apenas em prestar informações ao Presidente da República para que este
tomasse decisões, mas agia, sobretudo, como um sistema temerário de
incriminação de pessoas, conduzido pela desconfiança geral, tendo em vista que
se fundamentavam na ideia que todos poderiam ser acusados de subversão ou de
corrupção. Tal situação foi denominada por Fico, como técnicas de suspeição, ou
332
.
Diante do contexto imposto pela lógica da Doutrina de Segurança
Nacional e do SNI, é que a Prelazia de São Félix do Araguaia foi enquadrada na
Lei de Segurança Nacional, a partir das técnicas de suspeição, assinalando os
religiosos e agentes de pastorais daquela área como elementos subversivos ligados

contribuindo assim, para o emprego justificável da prisão e tortura daqueles


sujeitos, como veremos nos relatos descritos ao longo deste capítulo.
Os atos de tortura, a prisão ilegal, os desaparecimentos forçados e
morte, nos cárceres e fora deles, foram instrumentos instituídos para garantir a
vigência da Doutrina de Segurança Nacional333. Entretanto, é válido lembrar que
mesmo o Brasil sendo um Estado de exceção, naquele período já havia a
condenação da tortura como um crime contra a humanidade, sistematizada na
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo V afirma:

334
. É neste contexto de negação dos Direitos Humanos e
instauração da Doutrina de Segurança Nacional que os agentes de pastorais e
religiosos da Prelazia de São Félix foram sequestrados, presos e torturados no ano
de 1973.

332
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda... p. 180.
333
BARBOSA, Marco Antonio. Aspectos relativos aos Direitos Humanos e suas violações, da
década de 1950 à atual e o processo de redemocratização. In: BRASIL. Secretaria de Direitos
Humanos. Tortura/Coordenação Geral de Combate à Tortura (Org.). Brasília: Secretaria de
Direitos Humanos, 2010.
334
Ibidem, p. 23-24.
Fábio Konder Comparato aponta que a tortura tem como finalidade
obter informações ou confissões, o castigo e a intimidação ou coação de
determinadas pessoas. Além disso, para o autor, o mundo pós-segunda guerra
mundial propiciou um clima de terror generalizado pelas autoridades
governamentais, como o extermínio aos movimentos subversivos335. Para a
psicóloga Tania Kolker, a violência do Estado no período ditatorial foi
direcionada a toda a sociedade, difundindo o medo, tecendo laços de
aceitabilidade e destruindo qualquer contestação a sua prática. O governo militar
utilizou da violência implícita e explícita para reproduzir o terror, a impotência e o
silenciamento, como também a tortura que ao mesmo tempo pretendia atingir o
máximo de indivíduos e gerar uma forma de subjetividade submissa,
individualizada e despolitizada, apta a justificar as práticas de exceção, a omitir as
sequelas provocadas pelo terror de Estado e a restringir os males nos diretamente
atingidos336.
Diante deste cenário de negação dos Direitos Humanos através do
sequestro e tortura dos agentes de pastorais e religiosos da Prelazia de São Félix
do Araguaia, se torna importante destacarmos que a repressão instaurada naquela
região no ano de 1973 não esteve apenas ligada aos conflitos de terras e à prisão
do padre Francisco Jentel, pois concomitante com este episódio estava ocorrendo
a Guerrilha do Araguaia no sul do Pará e norte de Goiás (atual estado de
Tocantins).
Os primeiros militantes do PC do B começaram a chegar à região no
ano de 1966 e se sociabilizarem com os moradores locais a fim de formarem a
guerrilha. A partir de abril de 1972 os militares se instituíram no sul do Pará para
investigar o foco do movimento guerrilheiro na Amazônia. A organização foi
descoberta em 1972, possivelmente delatada por uma militante que tinha ido fazer

335
COMPARATO, Fábio Konder. A tortura no direito internacional. In: BRASIL. Secretaria de
Direitos Humanos. Tortura/Coordenação Geral de Combate à Tortura (Org.). Brasília: Secretaria
de Direitos Humanos, 2010, p. 81.
336
KOLKER, Tania. Tortura e Impunidade danos psicológicos e efeitos de subjetivação. In:
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Tortura/Coordenação Geral de Combate à Tortura
(Org.). Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010, p. 174. 175.
tratamento médico em São Paulo e foi presa pelos militares. Apesar dos
guerrilheiros serem em número menor e com um armamento relativamente
inferior ao do exército, os militares precisaram efetuar três campanhas para enfim,
conter os conflitos na região do Araguaia em dezembro de 1973337.
A Guerrilha do Araguaia está dividida em três fases distintas. A
primeira campanha338 teve início em 12 de abril de 1972, em que utilizaram
grupos de seis a trinta homens, sendo estes contratados pelo Exército como

guerrilheiros e os militares ocorreu em fins de abril de 1972339.


A segunda campanha começou em setembro de 1972 com a

3.000 militares. A partir de outubro de 1972, as Forças Armadas se retiraram da


área de conflito. Assim, o período que compreende outubro de 1972 a setembro de
1973 é caracterizado como um momento de trégua. Em 07 de setembro de 1973
começou a terceira e última fase da Guerrilha do Araguaia. Esta campanha foi

com a participação direta de 3.202 militares e o reforço de 250 paraquedistas do


Exército e da Aeronáutica. Entre as ações das Forças Armadas estava o uso de
bombas Nalpalm, as mesmas utilizadas pelos Estados Unidos na guerra do Vietnã.
Em dezembro de 1973 o movimento guerrilheiro no Bico do Papagaio foi
desmantelado340.
A descoberta da Guerrilha do Araguaia fez com que toda área da
Prelazia de São Félix do Araguaia com divisa com os estados do Pará e Goiás
(atualmente Tocantins) passasse a ser um território de domínio da Segurança
Nacional, sob suspeita que os grupos daquela Igreja estavam ligados com os

337
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
armada. São Paulo: Ática, 1987, p. 208.
338
Grande contingente de soldados/tropa.
339
NASCIMENTO, Durbens Martins. A Guerrilha do Araguaia: paulistas e militares na
Amazônia. Dissertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento). Belém: Universidade
Federal do Pará, 2000, p. 130.
340
Ibidem, p. 145.
movimentos guerrilheiros para um golpe contra o governo. Desse modo, como já
foi tratado no capítulo dois desta tese, a região entre setembro e outubro de 1972
recebeu a Ação Cívico e Social do Exército, como também contou com a presença
do Capitão Ailson Loper que aterrorizou os posseiros e religiosos de Porto Alegre
do Norte. O bispo Dom Pedro Casaldáliga era acusado de auxiliar os guerrilheiros
que passavam pelo nordeste de Mato Grosso rumo ao sul do Pará, Dom Pedro
Casaldáliga (Jornal Movimento, 17/7/78):

guerrilha do Araguaia sempre se concentrou mais no sul do


Pará, e estendeu seu raio de ação ao norte de Goiás. No entanto,
durante os anos de 1972 e 1973, o Exército e a Aeronáutica
também realizaram operações antiguerrilha na margem mato-
grossense do rio Araguaia, nos municípios de Luciara e Barra
do Garças, concentrando-se, sobretudo no então distrito de São
Félix. Nós estávamos a cerca de mil quilômetros da guerrilha.
Em nossa região, nunca houve, ao que se saiba, nem a sombra
de guerrilheiros. O povo mesmo da região não sabia bem o que
era isso. E a ACISO, realizada pelo Exército em São Félix em
1972, e também em 1973, se deu com técnicas e solenidades de
341

Provavelmente, Dom Pedro Casaldáliga nunca tenha ouvido falar ou


visto algum guerrilheiro na área da Prelazia de São Félix do Araguaia, mas a
Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos indica que José
Huberto Bronca, um militante ligado ao PC do B passou pela região em maio de
1972 a procura de emprego:

Chegou ao Araguaia em meados de 1969. Foi vice-comandante


do Destacamento B, sendo conhecido como Zequinha ou
Fogoió, até ser deslocado para a Comissão Militar, onde fazia
parte da guarda. No dia de Natal de 1973, estava no
acampamento atacado pelo Exército. Consta em certidão
enviada pela ABIN à Comissão Especial sobre Mortos e

em uma fazenda de nome Suiá Missu, mas como não conseguiu


uma vaga, se deslocou para São Félix do Araguaia e de lá para

341
CASALDÁLIGA apud ANTERO, Luis Carlos. Araguaia: Presente! Centro de Documentação e
Memória, São Paulo, n. 64, fev/abr. 2002.
Santa Terezinha. Era guerrilheiro ligado ao PCdoB, em
342

Diante do exposto no documento acima, não podemos negar o fato


que a área da Prelazia de São Félix do Araguaia possivelmente foi uma rota
utilizada pelos guerrilheiros do PC do B para chegarem até o Bico do Papagaio
(norte de Tocantins e divisa com o sul do Pará). A procura de emprego na maior
agropecuária de Mato Grosso a Suiá-Missu, nos faz presumirmos que José
Huberto Bronca provavelmente partiu do seu destino efetuando trabalhos
temporários para adquirir recursos financeiros com a finalidade de chegar até o
local da guerrilha, ou talvez resolveu passar pelo nordeste de Mato Grosso para
conhecer o cotidiano de luta pela terra daquelas pessoas denunciado por Dom
Pedro Casaldáliga, tendo em vista que a Suiá-Missu desde 1966 estava em
conflito com os posseiros dos povoados de Pontinópolis e Serra Nova noticiados
nos jornais de alcance nacional. Além do mais, aquela espacialidade dispunha de
dois trajetos para se chegar ao Bico do Papagaio, o primeiro caminho pela BR 158
que estava sendo construída desde 1970, e o outro pelo rio Araguaia, o qual
atravessa as cidades de São Félix e Santa Terezinha, citadas no relato como
percurso efetuado pelo militante, nos fazendo pressupor que o mesmo se deslocou
para o seu destino pelo rio Araguaia, inclusive porque aquele rio era a via de
acesso mais comum de deslocamento daquela região.
De acordo com Antônio Canuto343, no dia primeiro de junho de 1973
chegou a São Félix do Araguaia, um contingente de quase 100 homens sob a
supervisão do Comandante da Polícia Militar, Euro Barbosa de Barros 344, então
elevado à condição de Coronel e com participação de outras forças militares.

342
BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial Sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial Sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007, p. 247.
343
CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças... p. 122.
344
Este encontra-se na lista dos 377 apontados pela Comissão da Verdade como responsáveis por
crimes na ditadura militar. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/12/veja-
lista-dos-377-apontados-como-responsaveis-por-crimes-na-ditadura.html>. Acesso em 10 dez.
2014.
Na madrugada de 4 de junho de 1973 os militares começaram a
empreender os atos de violência contra a população da Prelazia. O povoado de
Serra Nova foi invadido por cerca de sessenta soldados armados de metralhadoras
que iniciaram a operação com descargas de tiros na entrada do patrimônio,
passando em seguida a revistar todos os ranchos. A casa pastoral foi invadida e os
agentes da Igreja foram violentamente despertados com as metralhadoras
apontadas para eles; em seguida todos foram revistados, seus pertences foram
vasculhados e apreenderam todo material escrito (cartas, livros, revistas,
documentos). Os moradores também sofreram os atentados dos militares, com
suas casas invadidas, chefes de famílias sendo violentados fisicamente e as
crianças intimidadas com as armas no momento em que se efetuavam a busca por
revólveres, armas de caça, facões e facas de cozinha.
As casas das Irmãzinhas da missão Tapirapé também foram invadidas
por militares que chegaram até o local de avião, com a presença de um Tenente da
polícia militar de Cuiabá e três soldados armados com metralhadoras. Os policiais
alegaram ter recebidos ordens da Capital para verificar os documentos do local345.
Assim, como os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia, as prisões
e a tortura dos religiosos e leigos da Prelazia de São Félix do Araguaia foram
proibidas de serem noticiadas pela imprensa local e nacional. A ideia era não
deixar que este fato fosse divulgado, pois isto iria enfraquecer a imagem do
-1973)346.
Desse modo, era necessário combater os opositores ao governo e impedir que a
sua versão fosse publicada, através de uma fiscalização sistemática que barrava
qualquer notícia ou comentário contrários aos militares347.

345
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.03, 1973, p. 2.
346
PRADO, Luiz Carlos Delorme;
integração internacional e concentração de renda (1967-1973). In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: O tempo da ditadura regime
militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
347
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda... p. 190.
Portanto, a censura foi um mecanismo fundamental para que a
ditadura militar se legitimasse e construísse uma representação positiva do país,
conforme Antônio Canuto expõe no relato a seguir:

Enquanto as rádios internacionais divulgavam os


acontecimentos da região, os jornais e emissoras brasileiras
silenciavam. A Censura proibiu qualquer notícia sobre os
conflitos na Prelazia de São Félix, e sobre o bispo Casaldáliga.
O Jornal Nacional, da TV Globo, foi utilizado para repassar
notícias falsas ou forjadas sobre a Prelazia, para justificar a
repressão e a desejada expulsão do bispo. Para o controle das
informações, os militares criaram a Rádio Nacional da
Amazônia, a emissora mais potente da América Latina, ligada
ao sistema Radiobrás, que se tornou a emissora mais ouvida na
Amazônia. Por imposição dos militares, a Radiobrás criou o
Projeto Cigano, uma emissora montada em furgão. Em tempo
recorde, a primeira emissora teve como destino São Félix do
Araguaia. Em 8 de setembro de 1981, entrava no ar a Rádio
Nacional de São Félix do Araguaia. Fazia parte da estratégia
para a expulsão do bispo Pedro. Tiveram os direitos violados
em torno de 200 famílias de posseiros de Serra Nova, hoje
município de Serra Nova Dourada, além do bispo Pedro
Casaldáliga, os padres e agentes de pastoral da Prelazia de São
Félix do Araguaia. O caso teve repercussão mais internacional
que nacional, pois a imprensa estava sob censura. O embaixador
brasileiro na Inglaterra, Roberto Campos, reclamou à BBC de
Londres por dar cobertura ao que acontecia na região, informou
um funcionário da rádio.348

Ainda sobre a memória local em relação à repressão dos


acontecimentos da Prelazia de São Félix Araguaia, o leigo de Porto Alegre do
Norte nos expôs a seguinte informação:

O lugar mais isolado da Prelazia era Porto Alegre do Norte. E


ainda tinha o problema da Guerrilha do Araguaia que era
transmitida pela Voz de Tirana. Nessa emissora de rádio é que
escutavam as notícias. Os militares ficavam doidos atrás dessa
emissora de rádio. Que rádio gente? Eles iam atrás do Bispo. Se
estava errado estava com o Bispo, pois tudo que tinha de errado
se encontrava na Prelazia, mas nunca ninguém soube onde
ficava essa emissora de rádio. Eu sei que essa rádio dava notícia
a noite: a Voz de Tirana, então passava as notícias de todo o

348
CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças... p. 126.
Araguaia. Essa rádio misteriosa ninguém nunca soube. Toda a
noite você podia ligar que a notícia estourava. Nós ouvíamos a
BBC, a Voz de Tirana, e a notícia caia mesmo.349

Em Porto Alegre do Norte, as notícias sobre as problemáticas da


Amazônia, principalmente a respeito da Guerrilha do Araguaia eram transmitidas
para a população por meio de emissoras de rádio internacionais ou clandestinas. A
procura desesperada pela rádio na Prelazia de São Félix do Araguaia decorria do
fato de se combater o inimigo e impedir que o seu discurso fosse divulgado. A
censura foi o mecanismo utilizado como um dos pilares da repressão para evitar
que qualquer crítica ao governo fosse publicada. A ideia era suprimir esses
discursos negativos e consolidar a imagem positiva de uma nação desvinculada
dos atos de violência, repressão e tortura como elementos característicos da
ditadura militar no Brasil.
Entretanto, para mobilizar a opinião pública, a descrição desses
acontecimentos aterrorizantes foi enviada por Dom Pedro Casaldáliga a Dom
Tomás Balduíno, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Aluísio Lorscheider e outros para
denunciar a invasão da residência episcopal a mão armada por militares da polícia
de Barra do Garças, que os obrigaram a abrir os arquivos. Revistaram todo o
recinto à procura do leigo José Pontim, professor em Pontinópolis cuja casa foi
invadida pela polícia militar, onde roubaram pertences pessoais (gravador,
máquina fotográfica, coleção de alfabetização de Paulo Freire, livros, facão, foice,
machado, apostila dos Salmos de Ernesto Cardenal onde destacava as instituições
SNI, CIA, KGB, FMI, e o rascunho da última reunião da Prelazia). Todo este
material foi considerado altamente subversivo, conforme os interrogatórios
prestados pelo leigo posteriormente na cidade de Campo Grande350.
Além destes atos, foram presos e espancados no dia 8 de julho de
1973 o leigo Tadeu, e os padres Antônio Canuto, Eugênio Consoli (padre do
povoado de Porto Alegre do Norte), Leopoldo Belmonte e Pedro Mari para

349
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida a autora,
em 892 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
350
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 2.
delatarem o paradeiro do agente de pastoral José Pontim. Essas informações
foram reproduzidas por um grupo que se identificou como leigos e religiosos de
São Paulo, um mecanismo utilizado para driblar a censura e dar publicidade aos
fatos ocorridos na Prelazia como em outras localidades vítimas da repressão
daquele momento351.
O padre Antônio Canuto fez um relatório a respeito da sua prisão e
espancamento, ocorrida no dia 8 de julho de 1973 quando a casa pastoral foi
invadida violentamente por um grupo de militares que estavam à paisana. Ele
descreveu que, primeiramente, foi agarrado pela camisa por um indivíduo armado,
recebeu socos, pontapés e foi levado para o interior de uma viatura onde
interrogaram-no a respeito de José Pontim, sob fortes tapas no rosto e na boca. Em
seguida, o padre Canuto e o padre Eugênio foram conduzidos à fazenda
AGROPASA, onde encontraram os padres Pedro Mari e Leopoldo Belmonte,
sendo este último espancado por vários indivíduos, recebendo tapas no rosto e na
boca352.
Os escritos de Dom Pedro Casaldáliga e o Jornal Alvorada353 foram
apontados como atos injuriosos às forças armadas, sendo o bispo acusado de
incitar o povo contra o regime militar. Depois de muitos questionamentos e
humilhações os padres foram levados de volta para a casa pastoral, com ordens
para não se retirarem até que o Capitão os liberasse.
O AI5 assegurou o uso da tortura contra aqueles que se opuseram à
Segurança Nacional, bem como possibilitou aos encarregados de inquéritos
políticos efetuarem a prisão de qualquer cidadão por 60 dias, dentre os quais 10
dias em regime de incomunicabilidade para corroborar com o trabalho dos
torturadores, e garantir a estruturação dos crimes da ditadura354. A tortura era

351
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.23, 1973, p.1.
352
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.11, 1973, p.1.
353
A Prelazia de São Félix possui o jornal Alvorada, criado desde o início da década de 1970 e está
disponível no site: http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/documentos/index.html#1. Ainda
sobre o histórico do Jornal Alvorada ver: SCALOPPE, Marluce de Oliveira Machado. Práticas
midiáticas e cidadania no Araguaia: o jornal Alvorada. Cuiabá: KCM Editora, 2012.
354
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 357.
justificada como um método indispensável para se obter a confissão do torturado,
assinalada na ideia de defender o regime militar aos que colocavam em ameaça a
ordem política e a segurança do Estado.
Em relação às prisões que ocorreram durante o regime militar, Myrna
Coelho355 as caracteriza como sendo na verdade atos de sequestros, pois havia
uma demora no registro dos presos o que os configuravam como desaparecidos
tanto para os seus familiares e amigos quanto legalmente. Este mecanismo tinha
como objetivo favorecer o trabalho dos torturadores. O desaparecimento ou
sequestro destes indivíduos instituía um presente contínuo nas suas vidas, haja
vista que o futuro de retornar para casa era muitas vezes incerto, estando
destituídos do poder sobre si mesmos e restringidos da sua liberdade.
A experiência de violência e tortura a qual foram submetidos os leigos
e agentes de pastorais da Prelazia de São Félix do Araguaia, conferiu a estes
indivíduos a condição de testemunhas com o domínio de relatar o sofrimento
vivenciado na prisão durante o ano de 1973. Assim, para compreendermos as
diferentes características do conceito de testemunha, nos apoiamos no trabalho de

ois termos para


representar a testemunha. O primeiro testis que significa etimologicamente aquele
que se coloca como terceiro (terstis) em um processo ou em um litígio entre dois
opositores. O segundo, superstes, indica aquele que viveu algo, atravessou até o
final um evento e pode, portanto, dar testemunho disso356. Posto isto,
enquadramos os relatos dos agentes de pastorais como supérstites, ou seja, estas
pessoas vivenciaram tal evento e possuem condições de cederem testemunhos,
mas isso não significa que as suas narrativas serão pautadas na objetividade, pois

355
COELHO, Myrna. Sofrimento e Tortura: Brasil (1964-1979) e Argentina (1976-1983). Tese
(Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina) São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2010, p. 112.
356
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo:
Boitempo, 2008, p. 27.
os seus relatos estão carregados pela subjetividade da interioridade do
acontecimento vivido.
Dentre os relatos mais impactantes que expõem a violência militar
contra a população do Araguaia, estão àqueles presentes nas cartas dos leigos e
agentes de pastorais presos durante a ação violenta na Prelazia no dia 4 de junho
de 1973. Na casa das Irmãzinhas de Jesus foram presos Edgar e Thereza Adão,
visitantes do Rio de Janeiro que estavam na região para conhecer o trabalho das
Irmãzinhas na Aldeia dos Tapirapé.
Em 5 de junho de 1973, a caminho da Cooperativa Agrícola de Santa
Terezinha, a leiga Thereza Salles foi sequestrada por policiais que estavam à
paisana. Naquele dia, Thereza não imaginava que a sua realidade iria mudar de
estatuto.

Estava a caminho da Cooperativa Agrícola; firme da qual


colaborar com o trabalho da Prelazia de São Félix; quando vi
um carro passar para o Aeroporto, dentro estava o Capitão
Monteiro de Cuiabá e o motorista Olímpio de Stª Terezinha.
[...] os mesmos estavam a paisana e menos de um minuto
voltam em uma caminhoneta.357

Naquele momento começou o processo de transformação do corpo da


agente de pastoral em coisa, esta se tornou uma espécie de invólucro, tendo as
suas mãos e pés amarrados, assim como a sua cabeça encapuzada, logo ela deixou
de ser uma pessoa com os seus direitos garantidos, e se tornou uma presa política
que como um pacote enlaçado seguiu em direção a um destino desconhecido.
Tereza Salles provavelmente tinha consciência que o desrespeito e a
tortura a aguardavam, e o medo que trazia dentro de si a consumia pela
experiência que ela estava começando a vivenciar como um rito de passagem
rumo ao desconhecido. A sensação da perda dos seus laços de sociabilidade entre
familiares e amigos despertou o horror do vazio. Até mesmo a noção de
espacialidade também lhe foi tomada:

357
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.14, 1973, p. 1.
No dia 26/6/73, fui transferida para a PF de Brasília, ficando
incomunicável até o dia 12/7/73. Obs: ao ser transferida nada
me falaram, ao não ser que me encapuzasse, e que iria sair.
Lembro-me que ao sair não andamos mais 40 minutos,
pressenti que percorri outra estrada a fim de desnortear
quanto o local da casa onde permanecera do dia 8/6/1973 a
26/6/73. [...] continuei na PF de Brasília até o dia 12/7/73,
quando novamente viajei, só sabendo para onde quando cheguei
ao local.
Esta viage [sic] [realizada no dia 12/07/1973] foi feita com os
companheiros que também haviam ido para Brasília. Todos de
óculos de borracha, e algemados, entramos em 1 avião vindo
chegarmos a Campo Grande MT. Obs. A sempre uma
incógnita, p/ onde vamos, quem nos leva, etc.358

Será que para a Tereza Salles, somente a localização geográfica era


realmente importante? As suas dúvidas em relação a sua espacialidade estavam
apenas atreladas a preocupação quanto ao seu destino final? A percepção que
temos ao lermos o seu relato nos induz a pensarmos que o teu paradeiro era
irrelevante, sendo significativo assinalarmos o exílio com a destituição da sua
comunidade, ou seja, do trabalho desempenhado no povoado de Santa Terezinha
junto à Prelazia de São Félix do Araguaia, devido ao rompimento da sua rede
social que lhe conferia proteção e apoio. Assim, a distância espacial e o lugar que
ela seria levada não são os únicos fatores que a incomodava ou impunha o medo,
mas se sentir desamparada em um local estranho e sem o conhecimento dos seus
amigos e familiares é que possivelmente lhe causava maior sofrimento.
Esses relatos foram redigidos logo após a soltura dos presos a pedido
de Dom Pedro Casaldáliga. São páginas longas relatando torturas, ameaças,
violência física e psicológica, expressões de um regime de exceção voltado à
implementação do terror no campo. O ato de narrar estabelece uma sobrevida para
aqueles que voltam de uma experiência traumática, como, por exemplo, dos
campos de concentração ou de outra forma acentuada de violência que excita a

358
Relato de Prisão de Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.14, 1973, p.16-18, grifos nossos.
359
primeiro luga .
Os agentes pastorais da Prelazia de São Félix do Araguaia foram
presos e conduzidos para Cuiabá onde prestaram seus primeiros depoimentos.
Todos eram questionados sobre o paradeiro de José Pontim, sendo este
360
.A
busca por José Pontim tinha relação com a sua trajetória de trabalhos pelos
povoados da região, pois ele chegou com a sua esposa Selme Lima Pontim no
conturbado ano de 1972, em que os patrimônios de Santa Terezinha e Porto
Alegre do Norte enfrentavam conflitos com as empresas agropecuárias e a área
estava sob constante intervenção militar. Pontim veio incumbido pela missão de
assumir a direção do GEA, em São Félix do Araguaia, pois este possuía nível
superior.
José Pontim, por estar em Santa Terezinha no momento em que o
exército chegou para prender os posseiros envolvidos no conflito contra a
CODEARA, foi acusado juntamente com outros agentes de pastorais: Altair,
Terezinha, Tadeu e padre Francisco Jentel como mentores da luta dos
trabalhadores rurais. Já no final do ano de 1972, Pontim foi para Porto Alegre do
Norte ajudar o padre Eugênio Consoli na substituição do leigo Altair que estava
doente, impossibilitado de lecionar na escola do patrimônio. Em janeiro de 1973,
José Pontim e a sua esposa Selme Pontim mudaram-se para o povoado de
Pontinópolis, onde estabeleceram junto com a Equipe Prelazia a linha de atuação
da pastoral361. Portanto, o fato de José Pontim não ser oriundo da região, possuir
nível superior e estar presente nos principais povoados em que ocorriam os
conflitos pela posse da terra, foi considerado pelos militares como um suspeito de
atividades subversivas, tendo a sua prisão e tortura como atos justificáveis pelo
regime político ditatorial.

359
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma A questão dos testemunhos de catástrofes
históricas. PSIC. CLIN., Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65-82, 2008, p. 66.
360
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08. 2.03, 1973, p. 5.
361
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 4.
No dia 8 de junho de 1973 os agentes de pastorais foram levados para

levavam socos na cabeça ou mesmo os famosos telefones, que são socos nos
362
ouv . A prática da tortura era um mecanismo para se obter informações dos
torturados, assim, ao serem sequestrados e presos os agentes de pastorais tinham a
consciência que a qualquer momento iram ser violentados e que esta violência
seria exacerbada durante o período em que permanecessem desaparecidos. Desse
modo, estes indivíduos ficavam permanentemente inseguros enquanto não
tivessem revelados os seus paradeiros, pois viviam constantemente o medo da
intensificação das torturas como também um possível assassinato. Passar por esta
experiência em si já é torturante, dado que perder o controle do seu corpo e tê-lo
submetido como objeto de espoliação impõe uma situação angustiante e provoca
um temor incessante em relação à morte, bem como a incerteza a respeito do
futuro.
Nos interrogatórios havia muitas perguntas e solicitações de
descrições a respeito da postura política da Prelazia de São Félix do Araguaia,
dentre elas podemos destacar: Qual a organização que a Prelazia fazia parte? Falar
politicamente sobre o Padre Francisco Jentel e Antônio Canuto; Quais as
atividades políticas eram realizadas na Prelazia? Em que lugar ocultavam os
depósitos de armas e rádio transmissor? Falar sobre os códigos de cartas e siglas
utilizadas para os agentes se identificarem como elementos da Prelazia; O que o
Padre Jentel pensava politicamente, o que fazia ao sair de viagem? Como recebia
dinheiro e por parte de quem? Se havia participado de movimento estudantil; O
que era ideologia? Como havia conhecido o padre Jentel?
Os presos políticos são vistos apenas como portadores de informações
que devem ser extraídas de qualquer modo. Essa coisificação imputa aos
torturados o sentimento de humilhação e degradação, bem como a perda da sua
dignidade através da negação dos seus direitos enquanto cidadãos por um Estado

362
Relatório de Prisão de Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.14, 1973, p.19.
de exceção. Relegando a estes indivíduos a sensação de vulnerabilidade
destituídos das suas convivências entre seus familiares e amigos, ao passo que
foram inseridos em um ambiente desumano e indiferente, assinalando os agentes
de pastorais como instrumentos da repressão tendo a sua humanidade rejeitada por
aqueles que os viam como ameaças de uma ordem política, conforme podemos
identificar no documento que se segue:

Dissesse o que dissesse a gente apanhava. Apanhava pelo sim,


pelo não e pelo silêncio. A experiência desta e de outras formas
de tortura além do desconforto físico se experimenta uma
grande frustração pessoal e psicológica pela sensação de
inutilidade e incapacidade que temos de poder ter qualquer
reação positiva a não gritar e de compreender de como pode um
ser humano, fundamentado em princípios ou ideologia, torturar
o seu semelhante algemado, encapuzado, enfim totalmente
indefeso. Um ato totalmente irracional, antiético, incompatível
com o que deve ser uma criatura humana. Esta atitude longe de
ser um predicado do homo sapiens, liga-se radicalmente ao
homo demens. A tortura é um instrumento dos mais
vergonhosos utilizados pelos humanos, como meio e,
sobretudo, no que diz respeito aos seus fins: extrair confissões,
inculcar faltas indevidas, utilizando a via da dor física e
psíquica. É a irracionalidade exacerbada.363

A extração de confissões dos torturados por meio do uso da violência


ção da
364
. Entretanto, esta ocorre de forma clandestina, pois a imprensa e a
sociedade são proibidas de disseminar a notícia dos casos de tortura, como
também os torturadores e torturados não possuem nomes e nem o local exato do
indivíduo submetido a tortura sabe dos seus direitos advindos
de ser humano e sujeito político, mas na situação-limite este é despossuído dos
seus direitos e passa a ser culpado pela perda dos mesmos.

363
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 01 de maio de 2007, p. 3.
364
CHAUÍ, Marilena. A tortura como impossibilidade da política. In: I Seminário do Grupo
Tortura Nunca Mais: Depoimentos e debates. ELOYSA, Branca (Org.). Petrópolis: Vozes, 1987,
p. 34.
Neste cenário, almeja-se a insanidade do torturado, e o torturador
deseja ter a imagem de portador de uma dita ordem social ao eliminar os
elementos contrários daquele regime político. Dessa forma, o principal objetivo da
tortura, para Chauí365, advém do ato de destituir o torturado da sua humanidade e
subjetividade, reproduzindo outro sujeito através de um teatro que imputa na
pessoa a ideia de não ter direitos e extinguindo a sua humanidade por meio da
tortura sob a farsa desumana da ditadura no Brasil como sinônimo de república.
O ato de relatar uma experiência trágica é caracterizado por
Seligmann-
do trauma de ter escapado da morte, em que a vítima é impelida a verbalizar a sua
história de modo que o indivíduo compreende e desafia os limites da sua narrativa
ao relembrar situações traumáticas366. Assim, o autor assinala estas pessoas não

narrativas não devem somente se reportarem ao trauma passado, como também


precisam se pautar numa espécie de fórmula política. Detectamos este ato na fala
de José Pontim que repudia e rejeita a repressão injustificada dos seus
torturadores, não devendo esta ser repetida, pois ela tende a se reproduzir de modo
recorrente e disfarçado caso deixemos a violência se naturalizar, transformando-
nos em alvos dela. Desse modo, temos que analisar o testemunho do agente de
pastoral, José Pontim como um exercício de rememoração da injustiça sofrida e
como uma oposição a toda forma de violência que fere os direitos humanos e com
isso evitar o seu potencial retorno367.
O fato de não deixar essa memória escondida ou silenciada tem como
propósito dialogar com as ideias do filósofo Castor Bartolomé Ruiz368, no que diz

365
Ibidem, p. 37.
366
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Direito pós-fáustico: por um novo tribunal como espaço de
rememoração e elaboração dos traumas sociais. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN,
Monica (Orgs.). Violência na história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio,
2012, p. 108.
367
Ibidem, p. 109.
368
RUIZ, Castor Bartolomé. A testemunha e a memória: O paradoxo do indizível da tortura e o
testemunho do desaparecido. Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, v. 48, n. 2, p. 70-83,
mai./ago. 2012, p. 72.
respeito ao fato dos vitimários ou torturadores suprimirem as consequências das
suas barbáries através das estratégias de esquecimento com a ocultação histórica e
política das vítimas. Esta atitude implica na legitimação de uma nova ordem
social, bem como na garantia da impunidade dos carrascos naturalizando a
violência; acarretando assim, em dois resultados desumanos: o escamoteamento
da vítima provocando a negação histórica da violência sofrida; e a negação da
injustiça que produz na vítima uma espécie de morte histórica.
A estratégia do esquecimento histórico empregada pelos vencedores
tem como consequência a naturalização e conservação da violência. Desse modo,
os diversos Estados de exceção criaram narrativas que legitimassem as
atrocidades cometidas através de alguns mecanismos que caracterizavam as
vítimas como terroristas, subversivas, criminosas, ou seja, como indivíduos
perigosos que ameaçavam a sociedade, os quais dessa forma, estavam passíveis de
serem eliminados.
Para que esta ótica não seja perpetuada e que as injustiças da tortura
sejam reparadas Ruiz369 convalida a narrativa da testemunha sobrevivente como
uma verdade interna aos acontecimentos que expõe o significado da violência para
a vítima, a qual narra o ocorrido de maneira abstrata diferentemente do observador
externo. Portanto, sob esta lógica, o narrador torna-se parte do acontecimento,
uma dilatação do fato, isto é, um fato novo. Entretanto, faz necessário apontarmos
que ao acionar esta memória não se tem a pretensão de gerar ódio e ressentimento,
mas de conferir às vítimas a restauração da alteridade lesada, bem como a não
naturalização e repetição destes atos dolorosos.
Os presos ficaram detidos em Brasília até o dia 12 de julho de 1973 e
foram transferidos para o Quartel da 14ª Polícia do Exército na cidade Campo
Grande, que na época pertencia ao estado de Mato Grosso. José Pontim havia sido
preso em São Félix do Araguaia no dia 9 de julho e também levado para Campo
Grande. Neste Quartel os agentes pastorais da Prelazia vivenciaram os piores dias
de suas vidas, o medo e a sensação da morte eram constantes; as acusações que
369
Ibidem, p. 78.
lhes pesavam decorriam do simples fato de se comprometerem na luta pela justiça
e liberdade de uma população desamparada pelo Estado, ato este considerado
como subversivo pelos militares que viram tal ação como decorrente de
movimentos políticos que tinham a pretensão de extinguir o governo brasileiro.
Os agentes de pastorais ficaram detidos em Brasília por mais de um
mês em regime de incomunicabilidade que, de acordo com Coelho370, é tido como
um modus operandi da tortura para que os sequestrados sintam ainda mais a dor
do sofrimento causada pela ampliação da solidão e do desamparo. O isolamento e
a falta de comunicação provocam a experiência do desaparecimento, a qual é
acompanhada pela sensação de vulnerabilidade por não possuir laços assistenciais,
bem como pelo fato de deixar de existir legalmente.
O testemunho abaixo expressa, de modo chocante e trágico, o que
significava autoridade e poder para as forças militares do Estado de exceção
brasileiro no período em estudo:

A primeira vez levei choque todo o tempo, ficava deitado de


bruços no chão e colocaram os terminais dos fios no glúteo. Os
choques causavam uma contração violenta dos músculos da
perna, causando uma dor horrível. A segunda vez não levei
choque, só um pontapé na perna e um tapa na cabeça, juntos
com ameaças de choque novamente. Desta vez eu estava
sentado. Na terceira vez estive sentado, e me fizeram deitar três
vezes no chão com ameaças de choques, sendo que realmente
me aplicaram só uma destas vezes. Nesta vez ainda fui
estonteado com um murro na cabeça.371

São marcas que certamente estas pessoas levarão pela vida toda, sem
contar que foram também destituídas dos seus familiares e da sua comunidade e
tiveram as suas vidas roubadas enquanto, vivenciavam dias de terror e de
violência. Seus direitos foram ceifados como se não fossem seres humanos e
cidadãos. Neste aspecto, de acordo com Myrna Coelho372, a funcionalidade da

370
COELHO, Myrna. Sofrimento e Tortura... p. 117.
371
Relatório de Prisão de Tadeu Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.15, 1973, p. 13.
372
COELHO, Myrna. Sofrimento e Tortura... p. 79.
tortura sustenta-se na confusão entre interrogatório e suplício, sendo que o
primeiro se pauta em perguntas e respostas, já o segundo almeja a submissão. O
ato da tortura não projeta apenas a prestação de informações ao carrasco, mas
também impõe que o torturado identifique no executor o dominador da sua fala,
da sua humanidade e dignidade. Assim, este indivíduo além de suportar a dor
física ao mesmo tempo tem que se sentir submisso ao poder do torturador.
No Araguaia mato-grossense vemos que o Estado, que em tese deveria
garantir os direitos e a segurança dos indivíduos, bem como atenuar as práticas de
violência contra estes, aparece naquele momento como um Estado de terror. A sua
incipiente presença foi quebrada pelo uso exacerbado da violência, a qual pode ser
analisada de acordo com Yve
ferocidade da repressão estão na verdade ligadas à vontade do Estado de afirmar
373
. O depoimento abaixo é, uma vez
mais, a expressão nua e crua destas premissas de intensidade e ferocidade
aplicadas pelo Estado contra os seus próprios cidadãos, por ele considerados
inimigos a serem combatidos:

Enquanto sucediam-se as sessões de tortura (choques elétricos


pelos corpos e socos tipo telefone nos ouvidos) éramos
inquiridos sobre nossa participação na Guerrilha do Araguaia da
qual apenas tínhamos notícias, sobre a história de material
escolar, brincadeira que conversávamos na Prelazia e que
insistiam ser um código de armas por nós utilizadas. E assim,
noite após noite as grades das celas abriam-se rangendo seus
ferrolhos e saia um para a cela de torturas. Os que ficavam,
rezavam. Quando as torturas extrapolavam a resistência já
bastante precária aplicavam injeção não se sabe do que para
recobrar a resistência. Muitos choques elétricos nas costas,
órgãos genitais, evitando choques na parte da frente pois
poderia levar a óbito e pelas costas forçava a coluna no sentido
contrário o que causava muita dor e stress.374

Atingir o corpo do torturado não denota apenas um terror físico, mas a


necessidade de eliminar este indivíduo está relacionada ao fato de extinguir uma

373
MICHAUD, Yves. A violência... p. 28.
374
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 4.
dita ameaça que abalava a manutenção do poder naquele contexto, assim Norberto
Bobbio expõe que:

A definição do poder político como o poder que está em


condições de recorrer em última instância à força (e está em
condições de fazê-lo porque dela detém o monopólio) é uma
definição que se refere ao meio de que se serve o detentor do
poder para obter os efeitos desejados.375

Como podemos perceber no relato acima, o Estado de exceção


brasileiro utilizou em primeira instância a violência como prerrogativa necessária
para a obtenção de informações a respeito da participação dos leigos e religiosos
da Prelazia de São Félix do Araguaia em atividades consideradas subversivas por
parte do governo. Esta atitude inviabilizou o uso legítimo da violência pelo
Estado, tendo em vista que este ao invés de utilizá-la como princípio fundamental
para a segurança dos cidadãos, a empregou na desumanização daqueles
indivíduos, além do mais até um regime ditatorial, para Yves Michaud376, deve
usar a violência de acordo com as limitações jurídicas.
Passar pela experiência traumática da tortura significa suportar a
morte em vida sem contar com a certeza do futuro, assim têm-se um presente
contínuo de uma violência que se acentua cada dia mais com a finalidade de se
obter informações das atividades subversivas. O relato de José Pontim é
elucidativo quanto a preocupação técnica em se aplicar a tortura de modo
científico e eficiente, afim de que esta não leve a óbito os prisioneiros. Este fato é
um caso exemplar do que seria a morte em vida, ou seja, não ter domínio sobre o
seu próprio corpo e tê-lo diariamente sujeito a dor e a submissão condicionada aos
desejos do carrasco. Sob esta perspectiva, Yves Michaud de
torturadores são cada vez menos carniceiros, e sim técnicos com seus eletrodos,

375
BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2007, p. 82.
376
MICHAUD, Yves. A violência... p. 56.
médicos psiquiatras com suas drogas, até especialistas da ação psicológica, do
377
.
No século XX a tortura tornou-se um instrumento corrente no
governo. Passou a ser praticada em inúmeros países, principalmente na América
Latina, sendo esta implícita e o seu caráter de clandestinidade lhe conferia
eficiência, entretanto os cidadãos tinham ciência de que se fossem presos corriam
o risco de serem torturados. A tortura não decorria apenas no ato de obter
informações, mas também estava incumbida de humilhar, fazer mal e violentar a
vítima, bem como aterrorizá-la, ameaçar parentes e amigos, enfim a sociedade de
um modo geral.
A força repressiva empregada pelo regime de exceção advém do
princípio jurídico que confere ao Estado a sua institucionalização pelo poder e
substitui o arbítrio pela regra. Assim, a violência aplicada pelo Estado é exercida
segundo as le
378
, ou seja, a violência empregada pelo
Estado, mesmo por um Estado autoritário, está submetida a restrições legais. Mais
uma vez, o Estado autoritário brasileiro implementou com rigor estas premissas,
como podemos observar no documento abaixo, o qual relata mais procedimentos
de tortura:

-choque nas costas quiseram


saber o que eram as marcas encontradas nas costas. Fiquei
quieto pois estavam bem claras serem as marcas dos choques.
Então disseram que não adiantava me fazer de vítima
arranhando as costas.379

Os sinais deixados pelos choques nas costas do agente de pastoral -


José Pontim são as marcas da banalização da violência que ele vivenciou durante
a sua prisão em Campo Grande, e que com o passar do tempo foram apagadas do

377
Ibidem, p. 58.
378
Ibidem, p. 56.
379
Relatório de prisão de Pontim Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.17, 1973, p. 2.
seu corpo, mas as lembranças dessa experiência de morte em vida podem
assombrá-lo durante toda a sua existência. Contestar que os ferimentos nas suas
costas foram em decorrência da tortura, seria como assinar a sua sentença de
morte.
Portanto, não contradizer o seu carrasco era um dispositivo para se
manter vivo, pois tinha-se a consciência de que a justiça não iria reparar tal
impunidade. Esta constatação ampliava ainda mais a angústia de ser assassinado,
tendo em vista que regime ditatorial dilacerou toda a dignidade dos indivíduos
considerados subversivos, assim possivelmente, José Pontim passou a
compreender por meio da convivência com o seu torturador, que a sua vida para
aquele sistema político era passível de ser descartada a qualquer momento, uma
vez que este indivíduo teve a sua condição humana desprezada.
Ao depararmos com a documentação do Acervo da Prelazia de São
Félix do Araguaia, nos perguntamos se o que a vítima falava nos seus
interrogatórios tinha realmente alguma importância? Ouvia-se o torturado? De
fato, almejava-se a obtenção de informações? Ou o objetivo da tortura era
simplesmente alcançar a submissão e o sofrimento do torturado? São dúvidas que
permeiam a nossa imaginação ao lermos os relatos de tortura dos agentes de
pastorais, pois ao analisarmos as questões que lhes foram levantadas durante o
inquérito, os militares já tinham como certeza dada que a população da área da
Prelazia de São Félix do Araguaia apresentava um claro envolvimento com os
movimentos subversivos ligados à Guerrilha do Araguaia.
Desse modo, podemos sugerir que as falas dos torturados que
destoavam da versão dos torturadores eram desconsideradas, tendo em vista que o
carrasco tinha o poder de decisão sobre a vida daquelas pessoas, ou seja, cabia a
ele determinar se aquele indivíduo era passível de morrer ou viver. O que os
torturadores desejavam efetivamente era obter a assinatura que comprovasse o
discurso dos militares, e com isso, constatamos que a tortura, além de fazer falar,
também foi utilizada para silenciar a história dos oprimidos e perpetuar a narrativa
da ditadura militar. Diante do exposto, o documento abaixo é muito elucidativo:
Após os primeiros dias, isto eu ficava em 1 quarto fechado, sem
saber com quem estava, depois deste tempo a coisa amenizou
mais para mim. Mas continuaram o interrogatório; sôbe, [sic]
em que lugar ocultava o depósito de arma, o rádio transmissôr
[sic] coisa que não existe na prelazia. Códigos de cartas, bem
como siglas que usávamos para nos identificarmos como
elementos da Prelazia. [...] Foi obrigada a identificação de
fotografias; nomes, cartas, etc.
Senti, que o interesse era arrancar da gente algo mesmo que
não fôsse [sic] verdadeiro p/ comprometer a Prelazia de São
Félix.
Confesso, que cheguei a um estado psicológico, em que temia
por tudo; pois existia ameaças de sempre possuírem meios de
arrancar tudo que queria. Mas a verdade mesmo não os
interessavam, pois nosso trabalho na Prelazia não esta baseado
em partido politico, nem mesmo existe abuso moral por parte
dos leigos e Padres por isto era uma preocupação marcante em
nossas vidas comunitárias; perante ao respeito que devemos ter
em relação ao povo e a Igreja universal, representada p/ S.
Félix.380

Esta memória é construída em torno da violência que Tereza Salles


vivenciou, isto é, em sua face irrepresentável. Algumas pessoas não conseguem
expressar as suas experiências traumáticas, mas como podemos observar no
documento acima, a agente de pastoral relatou o seu sofrimento com muita dor e
esforço para trazer à tona o indizível e irretratável, ou seja, o uso da tortura pelo
regime civil-ditatorial no Brasil, assim como os escritos de Primo Levi381 em
relação a sua experiência no campo de concentração em Auschwitz. Os
testemunhos dos agentes de pastorais são tidos como formas de desumanização
representadas através das suas descrições das seções de torturas que estes
vivenciaram no Quartel da 14ª Polícia do Exército na cidade de Campo Grande.
Estas experiências certamente deixaram marcas indeléveis nas vidas destes
sujeitos, como podemos verificar abaixo:

380
Relato de Prisão de Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.14, 1973, p. 12-14, grifos nossos.
381
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
Após uma ou duas sessão [sic], colocaram-me assistindo ao
meu noivo [Tadeu Escame] sendo interrogado c/ choques, foi
horrível p/ mim psicologicamente, pois eu já não estava mais
aguentando.
Confesso que foi horrível mas, assumi com êle [sic] o que foi
colocado; pois meu noivo ainda se lembrava da ata e pode
explicar o que significava as anotações. Fomos obrigados a
dizer que o Bispo era contra o Governo, que nosso trabalho era
politico, e que o objetivo da Prelazia era de conscientização
política.
Nossas confissões a base de choques e pancadas foram
gravadas, temos quase certeza; agora éramos levados para o
interrogatório sempre algemados e encapuçados, não sabemos
quem nos interrogou. [...] Gente, a verdade é que fiquei
psicologicamente arrazada [sic], sinto que se assumimos no
Brasil a Palavra do Evangelho, nós teremos que sofrer
humilhações e até a morte, pois significa subversão.382

Os requintes de crueldade praticados pelos torturadores não se davam


apenas sobre a dor e o suplício no corpo do torturado, mas, igualmente no
emprego da violência psicológica submetendo uma pessoa a presenciar o seu ente
querido ser violentado, como, por exemplo, no relato acima em que a agente de
pastoral Terezinha [Tereza Salles] foi obrigada a assistir uma sessão de tortura do
seu noivo, Tadeu Escame. A técnica da tortura, de acordo com Marilena Chauí383,
se estabelece entre dois humanos (ou como na narrativa exposta, com a ocorrência
de três pessoas), numa associação não-humana, isto é, o resultado primordial da
tortura consiste na desumanização das vítimas, visto que o torturador se
caracteriza em nível superior da condição humana e obriga o torturado a se
inferiorizar em relação a mesma. Posto isto, é válido apontarmos que a tortura não
almejava somente a dor e a angústia, sendo essencial a esta prática a imposição da
humilhação cujo fator fundamental é a desumanização.
Ainda em relação ao relato acima, torna-se importante ressaltarmos,
conforme Marcelo Viñar que a experiência da tortura pode ser distinguida em três
momentos sucessivos:

382
Relato de Prisão de Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.14, 1973, p. 20-22.
383
CHAUÍ, Marilena. A tortura... p. 33.
- o primeiro momento, o mais conhecido, visa a aniquilação do
indivíduo e a destruição dos seus valores e de suas convicções;
- o segundo momento desemboca numa experiência de
desorganização da relação do sujeito consigo mesmo e com o
mundo, o que chamei, a demolição; - o terceiro momento é a
resolução desta experiência limite.384

Diante do exposto, entendemos que a tortura, além de eliminar


fisicamente um dito inimigo da nação, também tinha como objetivo reprimir os
seus ideais e princípios. O fato de Terezinha e Tadeu terem sidos obrigados a
delatarem Dom Pedro Casaldáliga como opositor ao governo, bem como
afirmarem que a Prelazia de São Félix do Araguaia tinha como trabalho a
conscientização política, tem relação com o segundo momento da experiência de
tortura, caracterizada por Marcelo Viñar como a demolição. A atribuição de uma
culpa forçada sobre Casaldáliga é compreendida como um ato de resistência, a
qual almeja se livrar das agressões físicas do torturador, assim percebemos que o
casal de noivos desejava preservar a sua integridade contrapondo-se aos atos de
violência e humilhação ao persistirem em constituir-se como humanos e
detentores de corpos livres da dor.
Neste sentido, o conceito de demolição insere-se no contexto em que o
torturado está submerso em uma realidade marcada pela exacerbação da dor
física, pela espoliação dos sentidos, como, por exemplo, ficar em meio à escuridão
usando capuz ou óculos de borracha escuros, com a movimentação dos braços
impedida pelas algemas; além da destituição da rede afetiva e protetora da família
e dos amigos. Então, é nesta situação de demolição, que os indivíduos executam
as suas ações por atitudes não lúcidas, apenas se pautando na vontade de se
libertarem da condição desumana em que estavam inseridos, procurando se
restituírem das suas sociabilidades que lhes foram suprimidas, conforme podemos
evidenciar no relato do Antônio Carlos Moura:

384
VIÑAR, Marcelo; VIÑAR, Maren. Exílio e Tortura. São Paulo: Escuta, 1992, p. 45, grifo do
autor.
Quando cheguei à sala, no primeiro dia, puseram-me sentado
numa cadeira, de costas para os interrogadores, e começaram a
me perguntar por que fora trabalhar na Prelazia. Após algumas
indagações, me

q [sic] não sabia, e ele me mandou deitar no chão. Depois e


alguns choques, confessei que era um código para designar
armas. Fui torturado seguidamente para dizer o que não sabia,
isto é, o desenrolar dos acontecimentos de 3 março de 72, em
Santa Terezinha. Expliquei que estava a 500 km de distância de
STZ, naquela ocasião, em Campos Limpos, mas ele disse que
eu sabia de tudo, porque eu era amigo do Bispo. Inventei um
monte de coisas, como, p. ex., que fora você, Pedro, quem
inventara esse código e que me contara como tinha sido o
tiroteio em STZ. Na verdade, não me lembro como fiquei ciente
dos fatos, mas os torturadores não queriam ouvir respostas

Dessa forma, tive que inventar muitas coisas, procurando, com


a narração de diálogos e fatos inexistentes, evitar a continuação
das torturas. Nesse primeiro dia fiquei realmente apavorado (o
que não ocorreu no dia seguinte). Entretanto, inventar não
resolvia. [...] Ele tornou a perguntar no que eu era contra a
Revolução. Repeti a resposta do dia anterior, e ele insistiu, com

fortemente. Mas a

eles não reagiram a essa minha única ousadia. (Algumas


pessoas, a quem relatei estes fatos, posteriormente, me
a, ou lhes respondia
A explicação é muito simples: sob
tortura, só se pensa em responder aquilo que vá agradar os
torturadores, que faça interromperem-se os choques. Se se
consegue aguentar sem ter que inventar algo comprometedor,
podemos dar graças Deus).385

A tortura divide o ser humano ao meio entre o corpo e a mente. Pois,


de acordo com Hélio Pellegrino386, a dor impõe ao corpo maltratado que este fale
contra a sua vontade e se alie aos desejos do torturador. Este fato é caracterizado

inconsciente no momento do esfacelamento do seu corpo, então este indivíduo

385
Relato de Prisão de Antônio Carlos Moura Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do
Araguaia A08. 2.18, 1973, p. 4-6.
386
PELLEGRINO, Hélio. Um regime que destrói. In: I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais:
Depoimentos e debates. ELOYSA, Branca (Org.). Petrópolis: Vozes, 1987, p. 99.
passa a identificar-se com o seu algoz. Entretanto, não propriamente de forma
heroica, mas como um ato inconsciente em que a própria pessoa passa a se
torturar, assim como Antônio Carlos Moura que para diminuir a dor das agressões
teve que mentir e incriminar Dom Pedro Casaldáliga. Neste contexto o que
confere força e poder ao torturador é a imposição da violência para a eliminação
do outro, ou seja, para ele se sentir eficiente, necessita retirar do torturado a
informação que precisa. No entanto, se o torturador não consegue extrair as
confissões do torturado, este é considerado um derrotado. Dessa forma, podemos

Mas outro fato nos chamou atenção no documento acima, uma vez
que mesmo Antônio Carlos Moura tendo que mentir e incriminar os religiosos da
Prelazia de São Félix como uma forma de resistência contra os maus tratos
sofridos pela tortura, este impôs aos seus torturadores que era contra o tratamento
que ele estava recebendo na prisão. Então, nos perguntamos: Esta atitude foi
realmente consciente? A sua fala adveio de uma espontaneidade ou do sofrimento
causado pela tortura que acarretou neste indivíduo o anseio por explanar a sua
indignação? Ao expor a sua revolta, entendemos que o agente de pastoral
empregou um ato de oposição contra toda a brutalidade que vinha sofrendo no
cárcere. Mesmo que estas fossem as suas últimas palavras, este sujeito não estava
mais disposto a ser conivente com aquela experiência de morte em vida, e, nem
muito menos atribuir sentimentos de poder e submissão aos seus carrascos.
A tortura, como podemos perceber, é algo ligado a um projeto político
que para a sua manutenção e imposição do poder passou a ser disseminada, ou
seja, a população tinha consciência da existência dos espaços de extermínio e do
uso da violência. Assim, consequentemente, o ato de se obter informações e
confissões não estava somente atrelado ao fato de submeter e aterrorizar
determinada vítima, mas na difusão do terror coletivo. Desse modo, a tortura
almejava eliminar as convicções dos torturados e despojá-los dos seus laços
identitários que os caracterizavam como sujeitos de certa comunidade, de tal
modo como a agente de pastoral que assinala a importância da lembrança dos seus
amigos em orações para que a mesma pudesse resistir:

Gente, se aguentei, alguma coisa foi porque sentia a oração de


tôdos [sic] que no momento acompanhavam o trabalho. Nestas
alturas, de 43 kilos foi para os 35 kilos [sic], pois não conseguia
mais raciocinar direito, estava cansada dos artifícios, ameaças
empregadas a fim de confessar o que chamou de trabalho
subversivo.387

A narrativa de Tereza Salles nos reporta aos fatos como se estes


estivessem acontecendo no atual momento do seu relato, isto ocorre, porque de
acordo com Márcio Seligmann-Silva, o testemunho sempre se dá no tempo

388
. Deste modo, se nos atentarmos para os
escritos da agente de pastoral, iremos notar que ela sublinhou a palavra

ouvido esta expressão por parte dos seus algozes como um termo de acusação das
a de São
Félix do Araguaia cometiam naquela espacialidade. Expor estas lembranças pode
trazer à tona a reprodução do sentimento de dor e reviver a experiência de
proximidade com a morte. A sua fala é delineada pela perplexidade e pelo medo,
mas o ato de narrar confere uma sobrevida à vítima que busca verbalizar as suas
dores e identifica-las em meio aos conflitos e nos casos de impunidade contra a
população da Amazônia que ansiavam pela conquista da terra.
O medo era uma arma importante contra os indivíduos considerados
subversivos de forma que se disseminava a ideia da existência de centros de
tortura que culminavam no ocultamento de pessoas, e que, consequentemente,
qualquer um estava sujeito ao desaparecimento e a tornar-se alguém que nunca
havia exist

387
Relato de Prisão da Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.14, 1973, p. 17, grifo da autora.
388
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma... p. 69.
notícias chegavam de todos os quadrantes da Prelazia, agentes, líderes de

caso de óbito levar o corpo e soltar no meio de uma pista, passar uma viatura por
389
. A ameaça foi um mecanismo coercitivo
que impunha ao torturado o temor desta ser cumprida, pois esta geralmente era
político vigente estava
ajustado em exterminar todos os movimentos revolucionários que fossem
contrários a sua imposição através do regulamento do AI 5.
Neste sentido, forjar provas quanto uma fuga ou o suicídio de algum
preso político era um ato simplesmente exequível, principalmente pelo fato deste
indivíduo ser uma ameaça para a sociedade e ordem pública, e além do mais o
torturado estava em uma situação de total degradação humana assinalada pela sua
condição de desaparecido, como também em decorrência do seu estado inumano
reduzido as vontades do seu torturador.
Como consequência desta violência ocorreu a atomização do campo
social, a desintegração da vida pública, a desconfiança e o medo entre os
cidadãos, resultado de uma política de um Estado de terror que culminou na

390
.
Para Castor Bartolomé Ruiz391, a vítima está sempre submetida a uma
condição de sofrimento e de uma violência injusta. Desse modo, a injustiça que os
agentes de pastorais sofreram durante o período de cárcere na cidade de Campo
Grande, gerou para estes a condição de vítimas suscitada pela injustiça
vivenciadas naquele espaço. O autor ainda expõe que toda injustiça opera como
forma de violência, sendo importante destacar que toda violência e qualquer
injustiça tem duas faces: a do vitimário e a da vítima. Assim, na maioria das vezes
o vitimário carrega a insígnia de vencedor através do poder instituído pela

389
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 3-4.
390
Ibidem, p. 5.
391
RUIZ, Castor Bartolomé. A testemunha e a memória... p. 71.
violência legítima, e a vítima caberá em se empenhar na sua posição de vencida
em produzir uma narrativa da violência sofrida.
Ainda conforme Ruiz392, a narrativa do sofrimento confere um novo
acontecimento até então desconhecido, o qual estava oculto ao observador externo
e inserido na interioridade da vítima só sendo possível existir como acontecimento
político se for testemunhado. Este relato expõe a banalização da violência
demonstrando o seu lado camuflado e trazendo à tona a desumanização dos atos
de tortura. Deste modo, ao narrar a experiência de sofrimento se instaura um novo
acontecimento.

Amarraram as minhas pernas na cama. O que me pediam eram


detalhes sobre o trabalho da Prelazia, sendo que sempre sôbe
[sic] ameaças e alguns socos, mais para fazer pressão
psicológica. Inclusive a ameaça de aplicar o sôro [sic] da
mentira. Obs. isto no momento deixou-se completamente
abalada pois muito falam sôbe o sôro [sic] da verdade hoje
aplicado em casos de tortura no Brasil. [...] Neste dia
(26/06/1973), eu fui ameaçada de morte, pois lembro-me que o
interrogador, dizia quero informação cêrto [sic]. Lembre-se que
você está em nossas mãos, em lugar não identificado, não sabe
qual a organização dele; [organização política que pertencia o
Padre Francisco Jentel] portanto que eu pensasse bem antes de
responder.393

Como podemos observar, Terezinha fala do interior do acontecimento,


o qual institui um novo ponto de vista para o fato, sendo este somente possível de
se realizar pela vítima, pois apenas ela vivenciou aquela experiência e pode falar
como testemunha. A sua narrativa se torna uma revelação de algo que estava
oculto nos bastidores da ditadura brasileira, expondo a crueldade da tortura e que
confere a memória relatada um mecanismo para desconstruir a banalização da
violência na nossa sociedade.

392
Ibidem, p. 78.
393
Relato de Prisão de Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia -
A08.2.14, 1973, p. 10-15.
Desse modo, de acordo com Elizabeth Jelin394, a testemunha pode ser
caracterizada como alguém que viveu uma experiência e consegue em momento
posterior narrar ou dar o testemunho, que ocorre na primeira pessoa pelo fato dela
ter vivido o que se intenciona relatar. Nessa perspectiva, torna-se importante
mencionar a testemunha, conforme Primo Levi com a função de delação para
aqueles que não puderam ou não conseguiram falar das suas experiências no
campo de concentração:

Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autenticas


testemunhas. Esta é uma noção incômoda, da qual tomei
consciência pouco a pouco, lendo as memórias dos outros e
relendo as minhas muitos anos depois. Nós, sobreviventes,
somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles
que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o
fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para

submergiram são eles as testemunhas integrais, cujo o


depoimento teria significado geral. [...] Os que submergiram,
ainda que tivessem papel e tinta, não teriam testemunhado,
porque a sua morte começara antes da morte corporal. Semanas
e meses antes de morrer, já tinham perdido a capacidade de
observar, recordar, medir e se expressar. Falamos nós em lugar
deles, por delação.395

O ato de testemunhar para alguns sobreviventes ocorre como um


mecanismo para se manter vivo, ou seja, ao colocar para fora todo o horror
vivenciado pela experiência da desumanização, estes possuem o sentimento de se
libertarem da carga de dor que trazem daqueles momentos vivenciados no cárcere.
Dessa forma, as testemunhas encontram-se no dever de relatar pelo fato de terem

oculto esses eventos que assombraram a vida de muitos indivíduos. Mas, devemos
levar em consideração que a necessidade de falar pode cair no silêncio quando não
há pessoas dispostas a ouvi-las396.

394
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 80.
395
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes... p. 72-73.
396
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 82.
Devemos ter em mente que toda narrativa do passado decorre da
escolha dos acontecimentos, pois a memória é seletiva como também é impossível
a sua total reprodução. Assim, de acordo com Elizabeth Jelin397, a memória
implica em u
sobrevivência e atuação do sujeito individual e da sua comunidade. No entanto,
não existe um único tipo de esquecimento, mas uma multiplicidade de situações
nas quais se manifestam esquecimentos e silenciamentos, com diversos usos e
sentidos, conforme podemos constatar no relato do enfermeiro do povoado de
Serra Nova, Edgar Serra.
A narrativa de Edgar Serra de um modo geral não apresentou os fatos
com maiores detalhes sobre a sua prisão e tortura no Quartel da 14ª Polícia do
Exército na cidade Campo Grande. Basicamente o seu relato se sistematizou na
descrição do sequestro empregado pelo Comandante da Polícia Militar, Euro
Barbosa de Barros, na sua condução a Brasília, pouco expôs sobre o inquérito
policial, e nada falou a respeito da tortura física e psicológica que sofreu, ou seja,
diferentemente dos outros agentes de pastoral que expuseram de forma descritiva
toda a tortura vivenciada no cárcere, Edgar Serra apontou que sofreu pressão
física e moral sem descrever o trauma que foi aquele acontecimento.

Nêsse [sic] mesmo dia à tarde, [12/07/1973] começaram os


interrogatórios. Era chamado um de cada vez encapuzado e
algemado. Alguns foram chamados 2, 3, 4 vêzes [sic]. Eu fui o
último a ser ouvido. Aí, debaixo de pressão física e moral,
queriam que eu dissesse a minha participação em movimentos
subversivos a serviço da Prelazia.398

O silenciamento ou esquecimento de Edgar Serra dos momentos de


tortura na prisão também podem ser vistos como um mecanismo de não ferir ou
transmitir sofrimentos, pois no plano da memória individual, o medo em não ser

397
Ibidem, p. 29.
398
Relato de Prisão de Edgar Serra Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia -
A08.2.19, 1973, p. 5.
compreendido também leva a silêncios399. Outra questão que também envolve o
silêncio dos fatos, diz respeito em senti-los como traumáticos, assim o agente de
pastoral no momento da sua narrativa reprimiu e negou aqueles acontecimentos,
mas que poderão ser acionados posteriormente no momento em que a vítima
julgar ter uma distância entre o passado e o presente de modo que se possa
recordar o evento ocorrido, e ao mesmo tempo reconhecer a vida presente e os
projetos do futuro. Entretanto, é válido destacar que o tempo da memória não é
linear, cronológico ou racional, o que justifica de certo modo os esquecimentos de
Edgar Serra.
Testemunhar sobre o trauma culmina em obstáculos e entraves para
que a narrativa se reproduza naqueles que viveram e sobreviveram a situações
limites como a tortura. Narrar o sofrimento também implica em causar certos
impactos sob a sociedade, no modo em que essas narrativas serão apropriadas e os
diferentes sentidos que o público irá atribuí-las ao longo do tempo. Além do mais,
para Primo Levi:

A recordação de um trauma, sofrido ou infligido, é também


traumática, porque evocá-la dói ou pelo menos nos perturba:
quem foi ferido tende a cancelar a recordação para não renovar
a dor; quem feriu expulsa a recordação até as camadas
profundas para dela se livrar, para atenuar os seus sentimentos
de culpa.400

Podemos entender os silêncios e os nãos ditos de Edgar Serra como


expressões de fissuras traumáticas, ou como estratégia para marcar a distância
social com o receptor da sua narrativa, bem como na tentativa de restaurar a sua
dignidade humana e o esquecimento do trauma sofrido ao redesenhar e assinalar
espaços de intimidade/privacidade, pois ele não tem porque se expor a avaliação
do outro relatando com detalhes os momentos de angústia e tortura vivenciados
durante o cárcere401.

399
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p.31-32.
400
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes... p. 20.
401
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 96.
Ainda sobre o relato de Edgar Serra, nos questionamos o fato de como
ele iria negar a Dom Pedro Casaldáliga o pedido de narrar sobre a sua prisão?
Teria ele condições de não atender esta demanda, tendo em vista que os outros
agentes de pastoral a fizeram prontamente? E, se pautando na lógica que
Casaldáliga ao longo da sua presença no Araguaia, utilizou do mecanismo de dar
publicidade aos fatos violentos ocorridos na região documentando e arquivando as

Assim, podemos imaginar que talvez, não acatar esta solicitação seria não dar
importância e contribuição às lutas empreendidas pelos agentes de pastorais,
leigos e religiosos da Prelazia de São Félix do Araguaia.
Outro elemento importante que notamos na sua narrativa, diz respeito
ao fato de que provavelmente Edgar Serra poderia estar sentindo medo de sofrer
algum tipo de repressão ao relatar os momentos que vivenciou na prisão:

Finalmente no dia 20/08 mandaram que arrumássemos as


malas. Fomos entregues à Polícia Federal que nos levaram ao
Hospital Militar para exames de corpo delito e após a um
médico civil para as mesmas finalidades. Nos dois lugares
constataram a nossa perfeita forma de saúde. Logo após, os
próprios Federais nos entregaram em liberdade no local que
indicamos.402

Afirmar que a sua saúde e dos seus companheiros estava em perfeita


forma após um mês de prisão sob ameaças e torturas, nos chama muita atenção
pelo fato de que nas narrativas que expusemos de Antônio Moura, José Pontim,
Tadeu Escame e Thereza Salles, estes descreveram um cenário de horror tomado
pelo extremo uso da violência física e moral que acarretou em incalculáveis danos
nas suas vidas, conforme podemos verificar no documento abaixo:

Dia 16 de agosto completou-se mês de prisão oficial. Mas


fomos liberados somente no dia 20. Nesse dia, as 9 da manhã o
cabo do dia veio avisar-nos que iríamos sair. Fomos levados por

402
Relato de Prisão de Edgar Serra Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia -
A08.2.19, 1973, p. 7, grifos nossos.
três agentes da Polícia Federal ao Hospital Militar, para exame
médico, que constatou queimaduras de choque em Tadeu,
Pontim e Edgar, e debilidade física generalizada na Terezinha.
Constou em alguma das seis fichas a existência de sinais de
tortura, mas nós não assinamos nada... Após o exame no
- na
verdade, um militar reformado que também nos examinou,
inventando um monte de doenças para cada um, e nem se
referindo às marcas de torturas. Nesse último (Dr. Simplício,
cujo consultório fica num sobrado velho à Rua Maracaju) não
vimos nenhuma ficha ou laudo a ser feito.403

Diante da exposição do relato acima, continuamos a nos questionar


por que Edgar Serra ocultou a real condição física e psicológica em que se
encontravam depois de deixarem o presídio? Não temos respostas para tal
questionamento, mas de acordo com a Elizabeth Jelin404, a vítima de um trauma
como o da tortura talvez só se sentirá segura e tranquila para falar de tal
acontecimento, quando for grande a distância de anos que separa seu testemunho
do fato ocorrido. Assim, é válido lembrarmos que o relato do agente de pastoral
foi redigido logo após a sua soltura da prisão, e que provavelmente por medo de
sofrer novamente as represálias do governo militar, Edgar Serra tenha evitado
expor a violação dos direitos humanos que foram perpetradas no Quartel da 14ª
Polícia do Exército na cidade Campo Grande; ou ainda sob um posicionamento
mais sensível da nossa análise, seria levar em consideração que ao relatar sobre
um episódio de dor e sofrimento que faz aflorar uma memória traumática
vivenciada tão recentemente é que tornam as lembranças inacessíveis para se
narrar o inenarrável.
Após um mês de prisão os agentes pastorais tiveram o seu regime de
incomunicabilidade quebrado e passaram a poder escrever cartas para seus
familiares, a tomar banho de sol uma vez ao dia e a receber visitas duas vezes por
semana, dentre as quais vieram os bispos de Campo Grande, Dourados, Cáceres,
Cuiabá e Rondonópolis, além de vários padres e leigos.

403
Relato de Prisão de Antônio Moura Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do
Araguaia - A08.2.18, 1973, p. 9, grifo nosso.
404
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 96.
Dom Pedro Casaldáliga não se calou diante do cenário de violência
que tomou a Prelazia de São Félix do Araguaia, pois se calar significaria atribuir
naturalidade para tal ato compreendido naquele momento como algo corriqueiro e
característico do espaço da Amazônia. Casaldáliga não deixou que esta noção se
petrificasse na sociedade brasileira e indignou-se com a ação do governo em
reduzir o ser humano à condição de coisa violando-o fisicamente e
psicologicamente. Assim, a forma como o Bispo encarou essa siatuação se
resolveu a partir do mecanismo de dar publicidade aos acontecimentos no
Araguaia, utilizando da sua habilidade política de um não enfrentamento direto e
apelando para instituições nacionais e internacionais, as quais se sensibilizaram
com os problemas da Prelazia e abraçaram a causa junto ao bispo, conforme
podemos identificar na notícia do Diário Ya de Madri, reproduzido pelo jornal O
Estado de S. Paulo:

Ya, que é muito moderado, publicou um artigo violento, sob o

do bispo e a invasão das


-se os procedimentos da
polícia nos Estados do Brasil. A polícia militar age às vezes em
cada Estado com independência das autoridades supremas da
Republica [sic], sendo muito provável que, neste caso, se deixe
conduzir pelos donos e gerentes das companhias latifundiárias
da região. Nestas circunstâncias, nada garantirão as chamadas
405

Perante a conjuntura política que o Brasil vivenciava, com a supressão


dos direitos políticos dos seus cidadãos, coube a Dom Pedro Casaldáliga como

nacional e internacional na ajuda dos problemas que o mesmo sofria juntamente


com a população da Prelazia de São Félix do Araguaia. Portanto, diante o domínio
de um regime autoritário que se utilizava da censura aos meios de comunicação do
país, somente um jornal estrangeiro poderia elaborar tais queixas contra o governo

405
BISPO. São Paulo, O Estado de S. Paulo, 03/08/1973, p. 12.
ditatorial brasileiro e ao seu aparato militar. Sendo que este apresenta a sua notícia
com um tom de alerta e contestação ao modo violento que a polícia opera sobre a
sua população, com a ideia de dar publicidade internacional aos fatos que
ocorriam no Araguaia, e com isso, passar a mensagem de que o mundo estava
vigilante sobre a detenção dos colaboradores de Dom Pedro Casaldáliga.
Não perpetuar a imagem de que a fronteira era o lugar comum de
práticas da violência, foi um mecanismo usado por Dom Pedro nas suas
cartas/denúncias ao demonstrar que a Igreja do Araguaia juntamente com os seus
adeptos estava sendo perseguida e que este fato não poderia permanecer
camuflado pela censura, assim, como aconteceu com a Guerrilha do Araguaia que
culminou na morte de 59 guerrilheiros406 devido o silenciamento e ocultamento
deste horror na Amazônia. Dom Pedro Casaldáliga, estando ciente do poder
repreensivo dos militares, não se calou em relação a prisão dos agentes de pastoral
e publicou o documento abaixo:

Dia 7 de julho [1973], publiquei outro documento Operações


da Polícia Militar e outras Forças Armadas na área da
Prelazia de São Félix, MT - que terminava com estas palavras:

compromisso com o povo oprimido da região particularmente


os posseiros, os peões e os índios -, por amor do Evangelho do
Nosso Senhor Jesus Cristo e em solidariedade com todos os
que, neste país economicamente opressivo sofrem perseguição
por causa da Justiça:
Declaramo-nos, com humilde gratidão para aquele que nos fez
dignos da sua Cruz libertadora, uma Igreja perseguida. E
continuamos, caluniados, controlados, presos, continuaremos o
nosso trabalho de conscientização e evangelização um só e
mesmo trabalho em plenitude para a Igreja de Cristo que se
preocupa com o homem todo e não somente com os espíritos
(contrariamente à opinião do pretenso teólogo Coronel Euro).
[...] A todos que nos acompanham com sua amizade e com sua
oração, pedimos que nos ajudem a dar graças, por que cremos
sinceramente que são bem-aventurados aqueles que sofrem
407

406
Dados disponíveis no site do PCdoB: <http://www.pcdob.org.br/duvidas_print.php?id_faq=5>.
Acesso em 22 dez. 2015.
407
CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça e na esperança... p. 84-85, grifos do autor.
O tom que Dom Pedro Casaldáliga imprime nos seus
documentos/denúncias é de inconformidade diante das injustiças que a Igreja do
Araguaia vinha sofrendo por se colocar ao lado daqueles indivíduos
marginalizados pelo processo de (re)ocupação da Amazônia. Aceitar tal situação
se consistiria em apoiar a exclusão daquela população que estava descartada dos
projetos políticos e econômicos do Araguaia, sobretudo, no que diz respeito ao
plano de evangelização que se organizava na conscientização de que o homem
deveria ter as suas necessidades atendidas no plano terrestre e não em um fim
escatológico, conforme Casaldáliga aponta ironicamente quando se refere ao
Coronel Euro Barbosa de Barros como um pretenso teólogo que julga as suas
ações como atividades subversivas/políticas desvinculadas da esfera espiritual.
No dia 19 de agosto de 1973 houve uma grande celebração e
manifestação em São Félix do Araguaia com a presença de quinze bispos,
inclusive representantes do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns que se fez
representar no encontro pelos arcebispos de Vitória e João Pessoa, Dom João
Batista da Mota e Dom José Maria Pires 408, bem como alguns enviados da CNBB.
Esta cerimônia repercutiu em toda imprensa nacional e internacional Espanha,
França, Alemanha, Itália, repudiando a ação repressiva do governo militar e
pressionando para a soltura dos agentes pastorais da Prelazia409. Este ato resultou
na soltura dos presos410 na manhã seguinte: Antônio Carlos Moura, Thereza
Salles, Tadeu Escame, José Pontim, Edgar Serra e Thereza Adão, que foram
encaminhados para exames médicos e obrigados a assinar um documento

408
A celebração também contou com a participação dos Bispos: Dom Candido Padim (Bauru/SP),
Dom Antônio Fragoso (Crateús/CE), Dom Hélio Campos (Viana/MA), Dom Gilberto Pereira
Lopes (Ipameri/GO), Dom Tomaz Balduíno (GO), Dom Luiz Perez (Jales/SP), Dom Aldo Gerna
(São Mateus/ ES), Dom Celso Pereira, bispo-auxiliar de Porto Nacional/GO e Dom Estevão
Cardoso Avelar (Marabá/PA). IGREJA desagrava seu bispo. São Paulo, O Estado de São Paulo.
23/08/1973, p. 11). Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19730825-30187-nac-
0011-999-14-cen/busca/Casald%C3%A1liga.>. Acesso em 22 dez. 2015.
409
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 5.
410
Antonio Canuto no seu texto para o Relatório Final da Comissão da Verdade, aponta que além
das pessoas que citamos na tese, também foram interrogados o posseiro de Serra Nova - Luiz
Barreira de Souza, conhecido como Lulu por 3 vezes e a leiga Adauta Batista Luz por 2 vezes.
CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças... p. 125.
afirmando que não haviam sido torturados. Entretanto, José Pontim afirma que

eram testemunhos da tortura pela evidencia [sic] das queimaduras dos choques
elétricos. Os socos chamados telefones custou-me em um dos ouvidos deficiência
411
.
De acordo com Dom Pedro Casaldáliga, a Polícia Federal fotografou,
gravou e anotou tudo o que se passou durante a celebração litúrgica, como
também espalhou panfletos com os símbolos da foice e da cruz, supostamente
412
, bem como
difundiu boatos e ameaças contra os participantes do evento. Mas, estes fatos não
desanimaram ou amedrontaram a população local que participou numerosamente
da concelebração intereclesial413.
Um mês após a celebração intereclesial, os militares empreenderam
um novo trabalho da ACISO na região com a presença da Aeronáutica, Exército e
Polícia Militar. Estes juntamente com os universitários do Projeto Rondon,
414
. O coronel
José Meirelles e o general Tasso Villar de Aquino (Comandante da 9ª Região
Militar, com sede em Campo Grande) em companhia de outras autoridades
assistencialistas do Estado fizeram uma visita aos povoados do Araguaia, em que
se projetou para a população uma série de slides da estrada Cuiabá-Santarém da
qual o coronel Meirelles era o responsável pela obra, com o objetivo de mostrar a
outra face dos militares através dos serviços do Exército. A ideia era criar uma

atuar contra a influência do Clero, mais especificamente para minimizar as ações


de Dom Pedro Casaldáliga, tal como demonstra o documento a seguir de uma

411
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 4.
412
A cópia deste panfleto encontra-se no Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia com a
identificação: A2.2.16 P1.1.
413
CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça e na esperança... p. 90.
414
Ibidem, p. 92.
reunião ocorrida no dia 4 de setembro de 1973 entre o Bispo e o general Tasso
Villar de Aquino, em que este expressa que:

[...] visitaria muitas vezes a região e que iria trabalhar em defesa

o progresso da região. Afirmei-lhe ser isto mesmo que


esperávamos e que precisava ser feito, pois até agora nada tinha
sido feito. Exaltou-se mais ainda dizendo e repetindo que
trabalharia na região, e em favor dos desprotegidos não
aceitando privilégios de ninguém. Disse-lhe então que isto se
tornasse realidade, não só palavras. Então, zangado mesmo,
disse-me que meu conceito não lhe interessava (repetiu umas
três vezes) e que iria trabalhar usando o diálogo, o
entendimento e a compreensão como armas e não a pregação do
ódio e da violência como fazem alguns.415

Mesmo após a prisão e tortura dos agentes de pastorais, a área da


Prelazia de São Félix do Araguaia ainda continuava sob a presença constante do
-se

dos militares na região, devido ao fato desta estar localizada na extensão dos
conflitos da Guerrilha do Araguaia que só seriam findados em dezembro de 1973.
Interessante apontar que nos relatos dos agentes pastorais, estes
demonstram que não haviam perdido a esperança de lutar pelos problemas
presentes na Prelazia de São Félix do Araguaia. Passar por aquela experiência
trágica os havia fortalecido mais, pois estavam envolvidos com uma Igreja
comprometida com a libertação do seu povo e que não se calava diante as
ameaças de violência. Caminhava sim para denunciar as estruturas de dominação
que empregavam ações sociais de profunda desigualdade econômica, social e
cultural, como impor o poder por meio do uso da violência e o terror de Estado,
seja ele expresso pelas forças militares do Governo Federal ou do Estado de Mato
Grosso.

415
Relatório da Entrevista com o general Tasso Villar de Aquino Campo Grande MT.
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08.2.21, 1973, p. 3.
Ao analisarmos as narrativas traumáticas dos agentes de pastorais da
Prelazia de São Félix do Araguaia, estas nos fizeram lembrarmos o texto

discussão sobre a miséria de experiência vivenciada pela sociedade moderna após


a Primeira Guerra Mundial. Este fato é representado pela mudez que as pessoas
enfrentaram após este acontecimento, a qual culminou na desmoralização das
experiências coletivas dos indivíduos, bem como na incapacidade de comunicar e
transmitir os seus ensinamentos através da tradição oral de contar narrativas,
conforme o fragmento a seguir:

Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado


silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências
comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que
inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não
continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o
fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências
mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica
pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela
inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral
pelos governantes.416

Walter Benjamin demonstra no seu texto que as experiências sempre


foram transmitidas dos mais velhos para os jovens por meio das narrativas ou
histórias. Entretanto, a experiência avassaladora provocada pela Primeira Guerra
Mundial, imprimiu na nossa sociedade o retraimento da transmissão de
experiências como produtos de ensinamento, pois não eram capazes de narrar o

Diante desta constatação, o historiador não pode deixar que o silêncio


camufle as experiências de um acontecimento violento como a Ditadura Civil
Militar no Brasil. Torna-se importante trazermos essas narrativas da violência
com o objetivo de apresentarmos para a sociedade os ensinamentos advindos
destes episódios narrados pelas vítimas da tortura no nosso país. O presente

416
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas... p. 115.
estudo se apoiou nos relatos da repressão arquivados no Acervo da Prelazia de
São Félix do Araguaia, justamente para não deixar que estes caiam no
esquecimento e acabem involuntariamente r
417
. Neste sentido, se
estas narrativas não forem apresentadas por pesquisadores que se preocupem com
a problemática da memória e do silenciamento dos casos de tortura no período
ditatorial como uma experiência que deve ser problematizada/narrada, essas falas
serão tão mudas quanto aquelas que não foram proferidas após os horrores da
Primeira Guerra Mundial. Assim, os casos de tortura que ocorreram com os
agentes da Prelazia de São Félix do Araguaia devem ser apresentados como um
ensinamento para a sociedade com a finalidade de que estes fatos não ocorram
novamente.
Cabe ao historiador o trabalho de recuperar as narrativas e transmitir a
experiência dos narradores como uma lição de vida, conforme podemos observar

Benjamn. O autor aponta que a modernidade fez desaparecer a figura do narrador,


e desse fato resultou a nossa incapacidade de trocar experiências.

O senso prático é uma das características de muitos narradores


natos. [...] Ela [a narrativa] tem em si, às vezes de forma latente,
uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num
ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num
provérbio ou numa norma de vida de qualquer maneira, o

ue as experiências
estão deixando de ser algo comunicáveis. [...] O conselho tecido
na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A
arte de narrar esta definhando porque a sabedoria o lado épico
da verdade está em extinção.418

O narrador está apto a dar conselhos, pois a sua sabedoria advém da


experiência de toda uma vida, assim como o conhecimento adquirido das

417
Idem.
418
Ibidem, p. 200-201.
Entretanto, o esfacelamento da transmissão das experiências coletivas provocada
pela incomunicabilidade do pós-guerra ocasionou o fim da narração tradicional,
ou seja, ou indivíduos ficaram desorientados da ação de dar e receber conselhos.
O diálogo da obra do filósofo Walter Benjamin tem relação com a
historiografia progressista e burguesa, conforme Jeanne Marie Gagnebin expôs no

de um tempo homogêneo e vazio, um tempo cronológico e linear. De acordo com

que a mesma elabora uma análise da obra de Benjamin em torno do conceito de


experiência coletiva.
Para Benjamin, o advento da informação ocasionou a morte da
narrativa. A informação se tornou incompatível com a narrativa, pois ela só tem
validade no momento em que é nova, já a narrativa nos proporciona subsídios
para a reflexão e nunca se esgota. Assim, o autor diferencia o historiador que

obrigado a explicar de uma ou de outra maneira os episódios com que lida, e não
pode absolutamente contentar-se em representa-los como modelos da história do
419
.
Jeanne Marie Gagnebin420 demonstra que Walter Benjamin ao constatar o
fim da narrativa tradicional oferece meios para percebermos uma outra narração
transmitida entre os cacos de uma tradição em migalhas, ou seja, uma renovação
da problemática da memória. Para tanto, ela compara o narrador a um sucateiro
(como também o historiador sendo um Lumpensammler, isto é, o catador de
sucatas e lixos das grandes cidades modernas), mas que não tem por alvo recolher
os grandes feitos. O historiador deve se apegar aquilo que é deixado de lado e não
tem significação, algo que a história oficial não saiba como trabalhar. A autora

419
Ibidem, p. 209.
420
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer... p. 53.
aponta para o fato do sofrimento indizível que a Segunda Guerra provocou, bem
como para aqueles que não têm nome, o anônimo ou apagado pelo esquecimento
da memória oficial, elementos com os quais o narrador e o historiador teriam que
trabalhar para transmitir o que a tradição dominante estreitamente não se lembra.
Essa atividade está baseada na atitude de difusão do inenarrável, em um
compromisso com o passado e com as suas vítimas.
Partindo da premissa que o historiador deve se guiar por aquilo que a
história oficial não problematizou, torna-se importante para este estudo, assim
como para a sociedade brasileira, a apresentação dos relatos dos agentes de
pastorais da Prelazia de São Félix do Araguaia que foram torturados no ano de
1973 na cidade de Campo Grande. De acordo com Carlos Fico 421, o nosso
enfrentamento com a nossa história de um passado traumático encontra-se retraído
pelo fato de os presidentes José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco terem
praticamente ignorado a ditadura militar. Quando o tema voltou na pauta de
discussões já haviam se passado dez anos do término do regime, sendo a questão
retomada no governo de Fernando Henrique Cardoso, com a criação em 1995 da
Comissão Sobre Mortos e Desaparecidos. Recentemente temos os trabalhos da
Comissão da Verdade cuja instauração foi negociada com os militares, não se
supondo o julgamento dos repressores assegurados pelo pacto da anistia de 1979.
De qualquer forma, esta não deve ser usada para se vingar dos atos de violência
cometidos durante a ditadura militar, e sim, estabelecer uma cultura da memória
como vemos nos outros países da América Latina.
Essas narrativas estão submergidas por uma política do esquecimento
que impedem o acesso irrestrito aos acervos da ditadura militar, como também
pelo negacionismo de que de ocorreram casos de tortura durante o período
ditatorial na América Latina. Assim, o negacionista elimina novamente as vítimas
e toca na ferida da memória do sobrevivente, a qual só será amenizada quando a

421
FICO, Carlos. Brasil: a transição inconclusa. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN,
Monica (Org..). Violência na história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio,
2012A, p. 33.
esfera pública estiver disposta a ouvir essas pessoas, e, a sociedade se manter
engajada na busca pela reparação dessas injustiças históricas, que de certa forma
irão trazer de volta a sua dignidade422.
Tendo como referencial o regime de historicidade da Historia
Magistra Vitae423, na fundamentação do lembrar para não repetir, torna-se
significativo apontarmos que esta lembrança deve ser orientada, por exemplo, na
inserção dos testemunhos dos sobreviventes como parte do currículo escolar, na
abertura irrestrita dos arquivos, no debate e construção de mais memoriais, na
abertura dos tribunais às testemunhas da ditadura. Desse modo, quando as vítimas
poderem expor as suas lembranças e tensões como um mecanismo para evitar que
o decorrer do tempo faça desaparecer estes agentes históricos, irá garantir a elas
um processo libertador acerca da impunidade vivenciada na história recente do
Brasil424.
Os testemunhos das vítimas de tortura são tidos como indícios
indesejáveis, pois negam-se a estas o direito de acusação. A ditadura militar
conseguiu silenciar as testemunhas e caracterizá-las como agentes vingativos que,
inconformados por sua prisão punitiva, trazem à tona lembranças que deveriam
ser esquecidas, tendo em vista que a sociedade está enveredada a resistir contra a
tríade memória-verdade-justiça425. Desse modo, nos colocamos como o
historiador Lumpensammler, ou o catador de papeis que não se vincula aos
grandes feitos, e, busca dar visibilidade aos fatos postos como secundários que a
memória oficial delegou ao esquecimento.
A história do Brasil em todos os seus aspectos, inclusive quanto à
ditadura militar, é mais que a repressão aos grupos armados nas grandes capitais
litorâneas. A Guerrilha do Araguaia demorou décadas para se tornar alvo das
investigações por parte da imprensa, e quase cinquenta anos para receber

422
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Direito pós-fáustico... p. 113.
423
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado... p. 43.
424
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.
2, n. 1, p. 3-20, jan./jun. 2010, p. 15.
425
Ibidem, p. 16.
expressivos trabalhos acadêmicos que lhe fizessem referência. Em Mato Grosso
essa memória foi aparentemente apagada, e pouco se retrata a sua relação com os
casos de repressão armada durante o governo ditatorial. Apenas recentemente
apareceram os relatos da repressão no campo, principalmente com a divulgação
426
- lançado
427
, desaparecido
há 45 anos e encontrado em abril de 2013, que a Comissão Nacional da Verdade
passou analisar no segundo semestre de 2013, mas pouco se tem escrito sobre ele.
Diferentemente do enorme volume de material que é produzido sobre a luta
armada nos grandes centros litorâneos, notamos que o estado de Mato Grosso não
possui expressão notória a respeito dos trabalhos historiográficos sobre a Ditadura
Militar no Brasil. Assim, nos questionamos se é possível conhecer a História do
Brasil apenas pela espacialidade Rio São Paulo? É possível a compreensão da
extensão dos atos dos governos civis-militares apenas olhando para São Paulo ou

podem prescindir das outras narrativas, que as compõe, que lhes dão formas,
limites, que fazem parte dessa história que se quer nacional, sem as quais não se
entenderá a História do Brasil.

426
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que a partir de uma iniciativa do
Executivo federal, assumiu a responsabilidade para reconhecer formalmente, caso a caso, a
responsabilidade do Estado pela morte de opositores ao regime militar em decorrência da ação de
seu aparelho repressivo, aprovar a reparação indenizatória e buscar a localização dos restos
mortais. Disponível em: <http://dh.sdh.gov.br/download/dmv/retrato_da_repressao.pdf>. Acesso
em: 11 fev. 2016.
427
O Relatório Figueiredo, apurou matanças de comunidades inteiras, torturas e toda sorte de
crueldades praticadas contra indígenas em todo o país principalmente por latifundiários e
funcionários do extinto SPI. A investigação, feita em plena ditadura, a pedido do então ministro do
Interior, Albuquerque Lima, em 1967, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16
mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas.
Uma CPI chegou a ser instaurada em 1968, mas o país jamais julgou os executores que ceifaram
diversas etnias e culturas milenares. Documento disponível em:
<http://midia.pgr.mpf.mp.br/6ccr/relatorio-figueiredo/relatorio-figueiredo.pdf>. Acesso em: 11
fev. 2016.
4. AS TÁTICAS DE ENFRENTAMENTOS E A RESISTÊNCIA DOS
POSSEIROS NA LUTA PELA TERRA EM PORTO ALEGRE DO NORTE

Por muito tempo a história não tratou as ações dos camponeses como
advindas de sujeitos históricos, estes eram tidos apenas como dados estatísticos
sobre densidade populacional, migrações de trabalhadores, informações a respeito
das propriedades de terras e produção rural. Neste sentido, esta tese busca dar
visibilidade para os conflitos e resistências dos posseiros de Porto Alegre do Norte
no reconhecimento das suas áreas de produção, e, consequentemente a obtenção
dos títulos das suas propriedades como uma atitude resultante destes indivíduos
como agentes históricos na luta pela terra no Araguaia mato-grossense.
Nos estudos de Edward P. Thompson428, sobre a Economia moral da
multidão inglesa no século XVIII, o autor tece uma crítica aos pesquisadores que
embasam as suas análises sobre os movimentos populares na Inglaterra do século
XVIII, relacionando-os ao fato de que a fome provocada pela escassez de
alimentos gerava naqueles sujeitos atitudes contestatórias. Para Thompson, esses
autores desprezam o fato de que aqueles agentes históricos estavam pautados na
lógica das relações morais e éticas que a multidão tinha como justas e legítimas ao
se revoltar ou realizar motins durante os períodos de baixa produção de alimentos.
Pensando nos estudos de Thompson, buscamos uma relação com as
resistências empregadas pelos posseiros de Porto Alegre do Norte, mas tomando
cuidado com os aspectos que diferenciam as pesquisas sobre a economia moral no
que diz respeito ao tempo e espaço, porém sendo importante destacar que os
trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, vinculados por princípios morais,
sobretudo em relação ao significado da terra, sendo esta para a manutenção da
sobrevivência familiar, também desenvolveram estratégias de lutas em oposição à

428
THOMPSON, Eduard P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
lógica da terra de negócio das empresas agropecuárias que agiram violentamente
contra aquela população, muitas vezes até com a conivência do aparelho estatal.
Para compreendermos os posseiros de Porto Alegre do Norte como
agentes históricos e resistentes ao processo de desapropriação das suas terras, nos
embasamos também nos estudos realizados por James C. Scott429, o qual analisa
os atos de resistências empregados por camponeses malaios do povoado de
Sedaka. Estes contrários a suas substituições na colheita do arroz por maquinários

máquinas colheitadeiras. Estas atitudes podem ser evidenciadas desde os


incidentes de sabotagem, os incêndios premeditados e os esforços de greves
contra aqueles que possuíam máquinas em suas plantações. Desse modo, a partir
das pesquisas de Scott, pudemos ter sustentação teórica para demonstrar que,
assim como os camponeses de Sedaka, os posseiros do Araguaia mato-grossense
também não foram figuras passivas na luta pela terra, efetuando ações de
resistências cotidianas.
Como referencial teórico para entendermos e caracterizarmos as
formas de resistências empreendidas pelos posseiros, utilizamos dois métodos
apresentados por James C. Scott430, mas certamente tendo consciência de que as
realidades estudadas pelo autor divergem em relação ao tempo e espaço da nossa
pesquisa. A primeira é a resistência cotidiana, e a segunda diz respeito à
confrontação direta; assim, partindo da análise destes conceitos, demonstraremos
ao longo do texto como os trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte
resistiram à ocupação das suas terras pelas agropecuárias FRENOVA e
Piraguassu.

429
SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistencia: discursos ocultos. Mexico:
Ediciones Eras, 2000.
430
SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa. Raízes, Campina Grande, v.21,
n. 01, p. 10-31, jan./jun. 2002, p. 13.
Piraguassu

No ano de 1971 foi implantada a agropecuária FRENOVA no


patrimônio de Porto Alegre do Norte e como podemos observar no capítulo dois
desta tese, esse fato gerou vários conflitos e tentativas de negociações para que os
posseiros pudessem permanecer nas suas áreas.
Em outubro de 1972, padre Eugênio Consoli enviou uma carta a Dom
Pedro Casaldáliga relatando o desespero dos trabalhadores rurais em relação à
criação da nova sede da FRENOVA, composta por três casas e um retiro de gado
a três quilômetros do povoado de Cedrolândia. O nome da nova sede de 72.340
hectares era Piraguassu431. Os anos se passaram e os conflitos continuaram
acirrados entre a população local e os empreendimentos agropecuários. Assim,
entre 1975 e 1976, a Piraguassu Agropecuária S.A começou a sua independência
da FRENOVA, fazenda matriz, e iniciou-se a transferência gradual do controle
acionário para o grupo YANMAR432 Equipamentos Agrícolas433. Naquele
momento ocorreu uma nova fase de lutas para a permanência na terra, trazendo à
434
cena novos sujeitos responsáveis .

Araguaia mato-grossense, sendo importante destacar que esta prática foi utilizada
em outros projetos de colonização em Mato Grosso, a exemplo de Sinop, situada
no norte do Estado, onde os conflitos pela posse da terra gerou contradições em
sua colonização, o avanço da agropecuária, a expulsão de colonos e índios, o uso
do trabalho análogo ao de escravo, dentre outras formas de violência para a

431
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.08, 1972, p.9.
432
O primeiro escritório da YANMAR Diesel do Brasil Ltda. foi fundado em 1957, em São Paulo
(SP), na Avenida Rio Branco, onde teve início a comercialização de motores com a série NT65-K
importado da Matriz no Japão. Disponível em: < http://www.yanmarsp.com.br/empresa>. Acesso
em 30 mar. 2017.
433
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.4.11, 1980, p. 2.
434
Termo utilizado para a retirada de posseiros e populações tradicionais de áreas adquiridas pelos
empreendimentos agropecuários.
instauração do projeto SINOP435. No município de Alta Floresta, localizado no
extremo norte de Mato Grosso, o projeto de colonização da empresa privada
INDECO, tendo como proprietário Ariosto da Riva, fez uso da violência contra
índios, posseiros e garimpeiros, expulsando-os violentamente das áreas do projeto,
assim, em seus relatos o proprietário nega a existência de índios na região, fato

436
. Os projetos de colonização tinham como propósito formar
novas cidades na Amazônia Legal e foram parte da estratégia política dos
governos militares de controle dos conflitos agrários no Sul, Sudeste e Nordeste
do país, mas em contraposição, o governo ditatorial para a criação dos mais de
cem municípios
contribuindo no impedimento do acesso à terra por trabalhadores rurais e
restringindo sociedades indígenas dos seus territórios.
O grupo YANMAR adquiriu a área ciente de que havia trabalhadores
rurais com direitos de posse, pois em um boletim de imprensa redigido pela
CNBB, a mesma relatou a seguinte situação:

Visando encaminhar soluções justas para uma das áreas


conflitivas na Prelazia de São Félix do Araguaia, o Bispo
assinou um Protocolo com a Piraguassú Agro Pecuária [sic]
S.A. Reconhecendo a boa vontade existente entre as partes e no
intuito de encaminhar uma solução para os moradores de Porto
Alegre do Norte e arredores no município de Luciara-MT,
reuniram-se nos dias 28 e 29 de dezembro de 1972. D. Pedro
Casaldáliga Bispo de São Félix e Padre Francisco Jentel como
representantes dos interêsses [sic] dos referidos moradores, com
o superintendente da PIRAGUASSÚ Agro Pecuária S/A.
Engº JOÃO CARLOS DE SOUZA MEIRELLES.437

435
SOUZA, Edison Antônio de. O poder na fronteira: hegemonia, conflitos e cultura no norte de
Mato Grosso. Tese (Doutorado em História) Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2008.
436
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil
contemporâneo. Cuiabá: UNICEN, 1986, p. 83.
437
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Boletim de Imprensa, 1973, p. 1. Documento do
Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Grifos do autor.
Para a resolução dos conflitos, alguns órgãos foram solicitados com o
objetivo de realizar um levantamento de estudos na área. Em agosto de 1975, a
SUDECO e os seus departamentos, o DDL e o DRH, elaboraram o seguinte
lise de Dados da
Área de Porto Alegre do Norte (Luciara-
apontou que Porto Alegre do Norte dispunha de possibilidades para soluções

438
um ponto co . Como conclusão da
investigação, esta demonstrou que o problema mais urgente da região era o da
posse da terra, necessitando assim de lotes urbanos e rurais, sendo este último
estabelecido de acordo com os critérios do INCRA para regularização de terras
públicas.
Entretanto, mesmo com as conclusões da equipe de pesquisa, os lotes
rurais não foram disponibilizados para os trabalhadores do campo de acordo com
os critérios do INCRA no Ofício Circular 32/nº279 de 13 de novembro de 1974
que discorre sobre a dimensão da área a ser titulada.
Diante deste contexto, a Agropecuária Piraguassu contratou novos
funcionários no segundo semestre de 1976, o gerente Keizo Tukuriki e o
empreiteiro geral Samiyoshi Nito. Nesta fase, os documentos da Prelazia de São

violência para tirar os posseiros, pelo contrário, usaram de inúmeras tretas,


439
. Este período foi dividido pela
documentação da Prelazia em dois momentos: 1976/1977

438
BRASIL. Levantamento Socioeconômico, Tabulação e Análise de Dados da Área de Porto
Alegre do Norte. [S.l.: s.n.], 1975. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A17.2.21, 1975, p. 6.
439
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.4.11, 1980, p. 2.
posseiros para sair e vender as suas terras. As intimidações eram realizadas pelo
gerente da Piraguassu, Keizo Tukuriki. Ele oferecia um preço abaixo do valor real
de mercado ou coagia os trabalhadores rurais a assinar o direito de posse com
apenas 50 hectares.
No entanto, de acordo com os critérios adotados pelo INCRA no
Ofício Circular 32/nº279 de 13 de novembro de 1974440 para regularizar a
dimensão da área a ser titulada, traz as seguintes indicações: 1) módulo mínimo de
100 hectares para exploração agrícola; 2) um acréscimo de 2 hectares por cabeça
de gado, quando houver exploração agropecuária. Porém, a Piraguassu, adotou um
sistema particular: a) módulo de 50 hectares para exploração agrícola; b) módulo
de 110 hectares para quem tinha exploração agropecuária, conforme podemos
observar no relato abaixo:

Querido amigo Pedro e Pedrito. [...] Olha aqui tudo bem só que
o Japonez [sic] é sempre envestino [sic] com um e com outro
para asinar [sic] ou direito de posse mais diz que o direito é só
50 ectare [sic]. Nós dizemos porque que em Santa Terezinha o
direito foi de 100 ectares [sic]. Ele Japonez [sic] respondeu que
lá em Santa Terezinha só tiveram aquele direito porque teve
aquele bangui bangui. Mais diz ele que o coronel disse que aqui
a lei é essa 50 ectare [sic]. E a raimunda [sic] disse que não
temos armas mais temos cacete.441

Os apelos no documento acima dos trabalhadores rurais João Manoel


Rodrigues, João Souza Lima e Pedro Azevedo Guimarães se direcionavam ao
corpo eclesiástico da Prelazia de São Félix do Araguaia, pois, ainda cientes de que
tinham direito a 100 hectares de lote para a sua produção, eles não possuíam
forças política e social para contrariar os valores estipulados pela Piraguassu, ou

440
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.20, 1974, p. 2.
441
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.13, 1976, p. 1-2.
seja, pelo gerente Keizo Tukuriki, conhecido como Japonês e também pela
suposta autoridade citada como Coronel. Ao questionarem o porquê de os
posseiros de Santa Terezinha terem adquirido 100 hectares de terra, o gerente
esclareceu que aquele povoado se envolveu em conflitos, mas que em Porto
Alegre do Norte não teria contestações quanto o tamanho das áreas, tendo em

As intimidações e pressões marcaram o cotidiano dos trabalhadores


rurais de Porto Alegre do Norte. O discurso dos empreendimentos rurais atrelados
à polícia local conferia àqueles indivíduos a negação da sua cidadania assinalada
pela falta de assistência técnica do INCRA e garantia dos seus direitos sob as
posses. Em contrapartida, havia a resistência daqueles que não se deixavam abalar
pelas ameaças e falsos dados em relação ao tamanho das suas áreas de cultivo,
como é o caso da posseira Raimunda que de certo modo alegou não ter armas de
fogos, mas que possuía outros instrumentos de enfrentamento para permanecer na
sua terra.
Podemos assinalar essa resistência ao fato de que esses sujeitos
históricos, provenientes em sua maioria dos estados do Nordeste do país, já
vivenciavam o modelo agrário concentrador nos seus lugares de origem, e a
migração foi um ato de resistência contra aqueles que os subordinavam. Assim, a
permanência na terra em Porto Alegre do Norte era um meio para se tornarem
trabalhadores libertos dos laços impostos pelos latifundiários, sendo que para
alcançar esse ideal, eles poderiam utilizar da resistência direta442, ou seja, o
confronto direto para garantir o acesso à terra e ao trabalho familiar.
Se levarmos em consideração que o lugar é o fragmento de um espaço
em que os indivíduos estabelecem significados, características e heranças
culturais, bem como a constituição dos laços de pertencimento, identidade e
história. O patrimônio de Porto Alegre do Norte, ao longo dos trinta anos de
ocupação pelos posseiros passou a representar para estes uma espacialidade
assinalada pela caracterização de um lugar, ou seja, era onde ocorriam as relações
442
SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistência...
sociais delineadas pela interação e socialização política na qual os trabalhadores
rurais se reconheciam e adquiriam uma visão crítica da sua realidade.
A criticidade e o conhecimento dos posseiros em relação aos seus
direitos sob as suas posses, adivinha de reuniões realizadas com os agentes de
pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia, composta por ministros ordenados,
religiosos, religiosas, leigos, leigas e animadores e animadoras das
comunidades443. Os objetivos e as linhas básicas da Pastoral da Prelazia têm as
seguintes definições:

A Igreja Particular da Prelazia de S. Félix, MT, em comunhão a


Igreja do Terceiro Mundo
- por causa do Evangelho
- e interpretada pela realidade local,
- opta pelos oprimidos e em, conseqüência, define sua Pastoral
como evangelização libertadora, [...] destacamos, da realidade
de opressão em que vive o Povo desta região, os seguintes
postos:
- superstição, fatalismo e passividade;
- analfabetismo e semi-analfabetismo;
- marginalização social;
- latifúndio capitalista responsável pela permanência desta
situação de opressão.
Objetivo: A Prelazia tem como objetivo desencadear e acelerar
no Povo da região o processo de libertação total com que Cristo
nos libertou (CF. Gal. 5).
Meios: 1. Encarnação na pobreza, na luta e na esperança do
Povo.
2. Educação libertadora pela conscientização e promoção
humana.
3. Denúncia profética.444

Por ser uma instituição ligada às concepções da Teologia da


Libertação, a Prelazia de São Félix do Araguaia, como observamos na citação
acima, se organizava em uma evangelização libertadora cuja população era
carente de infraestrutura básica e oprimida pelo avanço do capitalismo do campo,
necessitando, assim, de uma Igreja que atuasse junto aos seus fieis não apenas no

443
PRELAZIA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA. Manual Prelazia de São Félix do Araguaia:
objetivos, atitudes normas. São Félix do Araguaia: [s.n.], 2002, p. 9.
444
CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça... p. 73-74.
sentido espiritual, mas também na resolução dos problemas sociais das suas
comunidades.
A dinâmica de discussão das problemáticas, tais como: saúde,
educação, política, economia e religiosidade dos povoados que compunham a
Prelazia de São Félix do Araguaia, era realizada num primeiro momento em uma
445
. Posteriormente ocorria a
Assembleia do
para o Bolão. A reunião da equipe era para marcar os rumos das definições das
atuações446
Ainda sobre o trabalho de esclarecimentos dos direitos dos
trabalhadores rurais, Dom Pedro Casaldáliga, em uma carta direcionada para os
leigos Altair, Teca e Hélio os orientou sobre a importância de lembrar aos
posseiros que estes tinham o direito de permanecer nas suas posses e que somente
o INCRA possuía autoridade para resolver os assuntos das áreas em conflitos. É

INCRA para Mato Grosso era de 20 alqueirões ou 100 hectares de terra. Desse
modo, Casaldáliga também estimulava as pessoas em não desistirem de ter as suas
terras regularizadas. Assim, ele diz que:

Precisa que ninguém esmoreça, que ninguém se venda por uma


besta indenização que não vai resolver o problema de ninguém,

trabalhe, sem medo e sem preguiça, sem bebedeiras, unidos,


447

As narrativas orais também demonstram a atuação de Dom Pedro


Casaldáliga junto aos posseiros para que estes permanecessem em suas posses. O
relato cedido por Ana Felicia Araújo, viúva do posseiro Alexandre Quirino, ex-
delegado de Porto Alegre do Norte, esboça o trabalho de mediação da Prelazia de
445
Odile Eglin entrevista de uma hora e vinte minutos concedida à autora, em 6 de fevereiro de
2016 na Aldeia Tapirapé no município de Confresa.
446
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida a autora,
em 02 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
447
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.1.11, 1972, p. 1.
São Félix do Araguaia juntamente com a sua equipe e com o apoio de
Casaldáliga:

[...] a Prelazia toda ajudou. Principalmente o bispo Pedro. Tinha


dia que a gente estava fraquinho pensando: será que nós vamos
vencer? E tinha um apoio e quando pensava que não, o padre
Pedro chegava. Ali foi um homem de Deus. Aí ele chegava,
reunia todo mundo e conversava. [Forte emoção expressada por
choro]. [Pausa para a entrevistada tomar água] [...]. A Igreja foi
muito importante para nós. Eles faziam reuniões para conversar.
Dava uma força para nós. O bispo explicava. Era igual estar
doente e tomar uma injeção que o ânimo voltava. [Risos]. Nas
reuniões ele explicava os nossos direitos sobre a terra.
Explicava quais eram os nossos direitos. Ele ajudava muito,
mas não dizia eu vou fazer isso. Ele ajudava de uma maneira,
por causa das perseguições contra ele. Ele era muito perseguido.
O bispo foi muito perseguido. Já tentaram matar o bispo por
muitas vezes, mas aqui não.448

Ao perguntarmos da atuação de Dom Pedro Casaldáliga na luta pela


terra em Porto Alegre do Norte, a entrevistada Ana Felicia Araújo teve uma forte
emoção ao lembrar-se das visitas do Bispo na sua comunidade. Ela chorou por
muito tempo e teve dificuldade em retomar a fala, pois a narrativa se tornou algo
incômodo à medida que as lembranças trouxeram à tona o sofrimento vivenciado
nos conflitos. A testemunha deixa claro que a presença de Dom Pedro era o que
motivava a permanência na terra, por meio das suas orientações em relação aos
direitos dos trabalhadores rurais sob as suas posses. Essas memórias são
semelhantes àquelas relatadas pelos agentes de pastorais que foram torturados no
ano de 1973, visto que essas lembranças envolvem conflitos, mortes, ameaças,
tensões, tempos difíceis que marcam tanto quanto as torturas. Quanto a Dom
Pedro Casaldáliga, ele é figura marcante em razão de sua presença ao lado
daquelas pessoas, devido a sua coerência, seu carisma, sua coragem e seus
testemunhos. É importante destacarmos que ao falarmos de Dom Pedro, a
entrevistada conferiu a este, de certo modo, a responsabilidade pela articulação
política, ou seja, Casaldáliga não atuou no confronto direto ou na resistência
448
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 na cidade de Porto Alegre do Norte.
cotidiana449, mas a sua participação se deu por meio das suas instruções, às quais
Ana Felicia conferiu grande importância e tomou como sinônimo de coragem,
uma vez que esta atitude lhe rendeu muita perseguição e até mesmo atentados
contra a vida do religioso.
A partir das reuniões realizadas pelos membros da Prelazia com os
posseiros de Porto Alegre do Norte, estes tinham conhecimento dos seus direitos
em relação ao tamanho da indenização das suas posses e da permanência nas suas
áreas de cultivo e criação. Entretanto, para se respaldar frente às intimidações do
gerente da Piraguassu, o posseiro Pedro Azevedo Guimarães, solicitou o seguinte
documento:

Pedro e Pedrito pesso [sic] que se aquele fotocopio que o


coronel da Sudeco mandou para nós aqui estiver aí. Pesso [sic]
mandar me. Haxando [sic] portunidade [sic] certa para nós
reprezentar [sic] para o Incra e o Japonez [sic] da Piraguassu
ele diz que nós não temos esse documento e a estoria [sic] é
aquela de 50 hectario [sic] e dentro da haria [sic] hurbana
[sic].450

As fotocópias solicitadas por Pedro Guimarães são o Levantamento


Socioeconômico, Tabulação e Análise de Dados da Área de Porto Alegre do
Norte (Luciara-MT) e o Ofício Circular 32/nº279 do INCRA de 13 de novembro
de 1974, em que constam os dados do tamanho das áreas a serem indenizadas em
Mato Grosso em 100 hectares. Os documentos seriam as provas necessárias para
contestar a indenização da sua posse em apenas 50 hectares pela Piraguassu.
Em posse desses instrumentos de comprovação dos seus direitos,
Pedro A. Guimarães poderia exercer uma estratégia de resistência na luta pela
terra, tendo em vista que a sua palavra e conhecimento não valeriam como provas,
este apelou para os dados comprobatórios elaborados por órgãos governamentais
e, assim, se resguardar nas próximas investidas de desapropriação da sua área. No

449
SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistencia...
450
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.13, 1976, p. 3.
entanto, o seu enfrentamento não teria eficácia de forma individual, conforme
podemos observar no relato abaixo:

Pedro Eu ja tou cansado de dizer para os poceiros [sic] que os


seus direitos é 100 hect mais não tam [sic] me atendendo o
Incra e o Japonez [sic] tão levando na conversa e tão feichando
[sic] os contratos de 50 hectares. Mais já foram só os Deonels e
os Angélicas451. Tou [sic] pedindo para mandar chamar o Pedro
Bispo e o cenhor [sic] prefeito para todos combinar de acordo
como foi falado desde o prinsipe [sic] e Bispo traz aquele
esclarecimeto [sic] de 100 hect mais hectares por cabeça de
animal pastivo.452

O trabalhador rural Pedro A. Guimarães, ao identificar que alguns


grupos de familiares estavam aceitando a proposta oferecida pela Agropecuária de
50 hectares, solicitou uma reunião com Dom Pedro Casaldáliga e Lídio Limeira
Brito, prefeito de Luciara, para esclarecerem que o tamanho da indenização das
suas posses era de 100 hectares. Provavelmente, Pedro A. Guimarães estava
receoso por duas situações: 1) ter que aceitar uma área de 50 hectares, o que
inviabilizaria a prática da agricultura de subsistência e a criação de animais; 2) se
todos os posseiros cedessem à venda das suas áreas, este ficaria com a sua família
isolada e futuramente teria que vender a sua terra por um preço abaixo do
mercado ou seria expulso dela por pistoleiros, pois não teria como resistir sem o
apoio dos seus vizinhos.
De acordo com a documentação da Prelazia de São Félix, esse
processo de aceitação do número reduzido de hectares de terras a que os posseiros

uma família para aceitar a proposta em uma reunião, onde cerca de vinte pessoas
também concordaram com o tamanho da área indenizada pela Piraguassu. Desse
modo, os agentes de pastoral se articularam para que os posseiros fossem
ressarcidos conforme os direitos estabelecidos pelo INCRA.

451
Grupos de familiares em que se identificavam os membros pelos nomes dos pais.
452
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.13, 1976, p. 4.
O INCRA voltará dentro dia 3/11/76 para firmar os acordos,
enquanto isso fizemos a nossa reunião com o povo explicando
direito que tem de 100 ha e 2 ha por cabeça de gado segundo lei
do próprio INCRA. Agora o povo está disposto a lutar e não
aceitar a proposta de 50 ha. Formou-se também uma equipe de
4 elementos que são os representantes dos posseiros.453

É compreensível o fato dos posseiros aceitarem a demarcação das suas


posses em um tamanho inferior ao estipulado pelo INCRA, tendo em vista que o
histórico das suas trajetórias na busca pela terra é marcado por um intenso

libertar da dominação e exploração dos latifundiários nos seus lugares de origem,


ou seja, ser dono do seu próprio trabalho, além de fugir da seca e entre outros
motivos subjetivos que impulsionaram os seus deslocamentos. Provavelmente a
não aceitação dos 50 hectares significaria a perda integral das suas posses, mesmo
que a extensão da área não atendesse as suas necessidades em relação ao cultivo e
a criação de animais.
A equipe da Prelazia de São Félix do Araguaia454, pelo convívio diário
junto aos posseiros, de certo modo conseguia visualizar que estes tinham a
necessidade de uma propriedade que atendesse as suas demandas em relação ao
trabalho na terra. Desse modo, ela passou a mobilizar os trabalhadores rurais para
que eles tomassem conhecimentos dos seus direitos, e passassem a reivindicar
uma área que suprisse os seus reais interesses.
A Igreja criou um trabalho de mobilização interna dos posseiros,
elegendo lideranças que tomassem a frente das denúncias e fortalecessem a ideia
de permanência nas áreas que tinham direito, pois o mecanismo mais eficiente de
defesa da terra era por meio do plantio, da colheita e do trabalho da instauração de

453
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.17, 1976, p. 1.
454
A Prelazia de São Félix do Araguaia orientava os agentes de pastoral e leigos para que estes
observassem o modo de vida dos patrimônios afim de absorver alguns conhecimentos em relação
aos seus costumes, saberes e crenças. Neste sentido, conhecer o cotidiano da população local era
fundamental para o início das atividades, bem como trabalhar ao lado dos trabalhadores rurais,
morar em casas semelhantes as suas moradias, ou seja, compartilhar do universo cultural daquelas
pessoas para que a equipe da Prelazia ganhasse a confiança daqueles indivíduos no
desenvolvimento dos seus trabalhos junto às comunidades.
benfeitorias nas posses para assegurar a demarcação das suas áreas. Assim, quanto
maior o número de habitantes, maiores seriam as chances de permanência em
Porto Alegre do Norte, sobretudo nas situações de conflitos em que os homens
compareciam para o embate com as suas armas rústicas ou com o uso de
estratégias de sabotagens em algumas atividades, como, por exemplo, no
cercamento das propriedades.
Em relação à mobilização no âmbito externo, a Prelazia de São Félix
do Araguaia atuava por meio das denúncias455, principalmente no que diz respeito
à divulgação e assistência na luta pela terra. A Igreja estava assentada em uma
organização institucional, que através dos seus agentes de pastoral, se apresentava
frente aos posseiros como uma entidade que tinha condições concretas para tornar
pública a sua luta, reconhecendo o seu status de posseiro, ou seja, o modo de
relação que o trabalhador rural desenvolvia com a terra. Neste sentido, o fato de
esse sujeito ocupar-se com a posse e dela retirar o seu sustento familiar era o
argumento utilizado pela Igreja para legitimar a luta pela terra.
As lideranças e os agentes de pastoral procuravam impedir a venda
das terras ou o aceite de posses menores, realizando visitas e reuniões nas
comunidades, principalmente naquelas em que os posseiros estavam dispostos a
desistirem da luta perante as pressões do gerente da Piraguassu, conforme o
documento abaixo:

Para efetivar os seus instrumentos ilegais, a Fazenda tem usado


de toda sorte de instrumentos para fazer com que os posseiros
assinem um acordo com a mesma. Agrupamos abaixo os
instrumentos utilizados (todos com provas concretas de cada
um):
1. Intimidações e ameaças frequentes de expulsão, feitas
pessoalmente pelo Sr. Tokuriki.
2. Intimidações através de presença policial na casa dos
posseiros (soldado vulgo CARIOCA).

455
m conflito com o

vista que o documento possui 123 páginas e foi lançado em 10 de outubro de 1971, após a
consagração de Casaldáliga como Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia.
3. Pressões e ameaças de perda da posse, feitas através do
advogado do INCRA de São Félix, Sr. WANDERLEI456.
4. Desonestidade, na medida que se aproveitou da
ignorância que os posseiros tem, dos seus direitos.457

Os conflitos por terra em Porto Alegre do Norte configuram


claramente a violação dos direitos humanos, a desigualdade social rural, a
formação de núcleos de miséria e concentração de grandes propriedades nas mãos
das agropecuárias. Visualiza-se o confronto entre o novo e o arcaico, entre o
latifundiário e o lavrador, cenas que são vivenciadas em um cenário traçado pela
violência e anomia legislativa, ocasionando, assim, a exclusão social daqueles que
almejavam o acesso a terra.
Essa violência também pode ser definida, segundo Elisabete
Maniglia458, como uma violência judicial, estabelecida por magistrados atrelados
ao tecnicismo jurídico, formados no respeito restrito à lei, e vinculados com o
poder. Esta violência não deixa de ser do Estado, porém com particularidade
maiores, ao passo que na busca por soluções dos litígios, os trabalhadores rurais
se esbarram em liminares que protegem o latifúndio em prejuízo dos seus
interesses.
De acordo com o Estatuto da Terra de 1964 ambos os grupos
estabelecidos na Amazônia tinham direito à propriedade da terra, porém este
contato entre a população já assentada nas áreas de colonização e os empresários
do Centro-Sul do país, a ideologia da segurança nacional e a falta de infraestrutura
na região são exemplos de situações que ocasionaram a resolução das
divergências sobre a posse da terra com o uso da violência. Entretanto, conforme
podemos identificar em Porto Alegre do Norte, não apenas as agropecuárias
com o consentimento do poder público , mas também a articulação do Estado
456
Encontramos a seguinte grafia e referência ao nome Vanderlei Rodrigues, Advogado Chefe da
Unidade Fundiária UF 1 PF Vale do Araguaia, INCRA OS. N.020/77. Documento do Acervo
da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 4, 1979, p. 1.
457
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 3.09, 1977, p. 4-5, grifos do
autor.
458
MANIGLIA, Elisabete. Criminalidade e violência no âmbito rural: críticas e reflexões. Revista
Jurídica do Curso de Direito da Faculdade de Educação de São Luís, São Luís, v. 1, nº 1, p. 1-17,
dez. 2005, p. 8.
com os grandes proprietários, e até mesmo por conta das ações diretas realizadas
pelo INCRA e polícia local, havia toda uma estrutura contra os trabalhadores
rurais.
Para Rossana Rocha Reis459, os movimentos sociais, tais como a CPT
e o CIMI contribuíram para a ideia da terra como um direito humano, pois esta é
pautada na concepção e relação que as comunidades estabeleciam com as posses.
A Igreja passou a realizar críticas às propriedades privadas e ao capitalismo em
negação ao ato da sua apropriação coletiva. Assim, os escritos de Dom Pedro
Casaldáliga, as denúncias dos agentes de pastorais e leigos tinham como
mecanismo dar publicidade e garantir os direitos da população do campo sobre as
terras.
As denúncias também eram realizadas pelos posseiros como uma
forma de resistência para a permanência nas suas terras. Desse modo, uma
comissão formada por trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte se reuniu
com o governador de Mato Grosso, José Garcia Neto, para solicitar a sua
mediação nos conflitos460. O governador se dispôs a encontrar uma solução justa,
conforme relatado no jornal Diário de Mato Grosso:

Para tal pretende o Governador aproveitar um levantamento da


situação sócio-econômica da área, feito pela SUDECO, em que
uma equipe de pesquisadores abordou, com profundidade, os
problemas dos posseiros, com identificação dos moradores,
numero de dependentes, grau de instrução, faixa etária, tempo
de residência no local, benfeitorias realizadas, área ocupada,
tipos de cultura e/ou criação. Esses dados, somados aos que
possuem os órgãos do Estado, possibilitará ao Governo o
encaminhamento do problema para uma solução pacífica.461

459
REIS, Rossana Rocha. O direito à terra como um direito humano: a luta pela reforma agrária e o
movimento de direitos humanos no Brasil. São Paulo, Lua Nova, v.86, p. 89-122, 2012, p. 108.
460
Em 20 de outubro de 1977, os posseiros Domingos Medeiros da Silva e Manuel José Rodrigues
já tinham enviado uma carta coletiva com a assinatura de 200 famílias ao governador José Garcia
Neto, na qual solicitavam que o governante interviesse nos conflitos com a Fazenda Piraguassu.
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 3.09, 1977, p. 1.
461
GOVERNO, manifesta-se interessado no problema dos posseiros. Cuiabá, Diário de Mato
Grosso, 1/11/1977. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 3.11,
1977, p. 1.
Havia diversos documentos que amparavam os trabalhadores rurais,
desde o Estatuto da Terra de 1964, o Decreto 70.430 de 1972, o Ofício Circular
32/nº279 de 1974 e a pesquisa da SUDECO de 1975, mas a morosidade do Estado
em resolver os conflitos por terras em Porto Alegre do Norte vinha se arrastando
desde o ano de 1971, com a implantação da FRENOVA no povoado. O
documento da SUDECO citado por Garcia Neto já tinha dois anos da sua
publicação, e, mesmo assim, nenhuma orientação foi seguida no que diz respeito à
desapropriação das terras dos posseiros. Pois, se levarmos em consideração que o
seu mandato iniciou-se em 1975 e finalizou em 1978, um ano após a reunião com
os posseiros em Cuiabá, notamos que ao invés de ocorrerem soluções para
finalizar os conflitos de terras, de acordo com os dados da Prelazia de São Félix
do Araguaia, estes se acirraram ainda mais nos anos de 1978 a 1979,

pistoleiros.
Como uma forma de resistência, os trabalhadores rurais continuavam
apelando para instâncias que em tese deveriam assegurar os seus direitos. Em
março de 1978, estes enviaram uma carta ao INCRA de São Félix do Araguaia
para que o órgão tomasse conhecimento das ameaças que o gerente da Piraguassu,
Keize Tokuriki, fez ao posseiro Francisco Pereira da Silva por meio de uma carta:

Sr. Francisco Pereira da Silva [...] Caso você, encrencou com a


fazenda e resolveu nada até agora, única solução é de juiz de
direito. Se você esteja certo o que você pensa, você ganhará em
processo de juiz e poderá receber a sua terra. Caso contrário,
você perderá tudo. No momento, nós não podemos fazer nada
para você. Vamos aguardar chegada de Notificação de Juiz e
conversamos em frente do Juiz.462

As ameaças eram feitas carregadas da intenção de pôr em xeque a


veracidade do direito do posseiro sobre a terra que ocupava. Essa atitude
configura o que José Tavares dos Santos463 caracterizou como violência

462
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.3.23, 1978, p. 1.
463
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Conflitos agrários e violência no Brasil... p. 2.
costumeira, ou seja, a presença de empresas capitalistas no campo envolvidas em
casos de conflitos sociais. O fato de o gerente Keize Tokuriki alegar que a
situação de litígio só seria solucionada perante o juiz nos faz refletir sobre o fato
de que a violência emitida pela carta representa o caráter simbólico do poder
empregado pela agropecuária, pois esta detinha condições econômicas e políticas
para contratar o serviço de um advogado, enquanto que Francisco da Silva era
desprovido de tais recursos. Outro aspecto que detectamos no fragmento do
documento acima diz respeito à relação exercida entre a empresa e as instituições
locais, tais como o INCRA, a polícia militar e a prefeitura, o que lhe conferia
tranquilidade para resolver as questões da terra diante do juiz local. Essa situação
é definida por Tavares dos Santos464 como uma violência política em que o Estado
é o agente da violência por meio da polícia, e por outro lado existe uma parcela do
judiciário que detém a responsabilidade pela difusão da violência no campo,
como, por exemplo, pela emissão de títulos em áreas de posse e omissão em
processos criminais.
Outro mecanismo de resistência dos posseiros, era demonstrar para o
poder público que estavam cientes dos seus direitos, assim nas suas cartas com
assinaturas coletivas, estes citavam a lei 5.868 de 12 de dezembro de 1972, que

órgão a quem pertence a nossa defesa, para que a fazenda não repita mais uma
465
.
Ao citarem a lei que os amparava, de certo modo proferiam uma
imagem do trabalhador rural como um indivíduo instruído por uma Igreja atuante
em prol dos direitos da função social da terra. O discurso expresso na carta
acionava o INCRA como uma instituição defensora dos interesses da população
do campo, assim, pesava-lhe a responsabilidade de solucionar os conflitos
agrários de forma que atendesse as necessidades de ambas as partes. Ao relatar as
problemáticas que envolviam a luta pela terra em Porto Alegre do Norte, os

464
Ibidem, p. 4.
465
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.3.23, 1978, p. 1.
posseiros estavam se inserindo como atores sociais na cena política com o

que excluía as práticas da agricultura familiar de subsistência.


Entretanto, a resistência dos trabalhadores rurais não deve ser
configurada apenas como um ato executado na intenção de que esses sujeitos
históricos se tornassem proprietários das suas posses, mas também como um
mecanismo de luta contra o processo violento da migração forçada. A maior parte
desses indivíduos já estava estabelecida em Porto Alegre do Norte há cerca de 30
anos e vieram se deslocando dos estados do Piauí, Maranhão, Pará e Goiás (atual
Tocantins), sobretudo para se libertarem dos laços de exploração dos
latifundiários existentes nos seus lugares de origem. Desse modo, a permanência
na terra implicava ir contra as novas expulsões, empreender a busca por outras
áreas e correr o risco de serem expulsos novamente.
Estes indivíduos provavelmente estavam cansados das suas condições
de errantes na Amazônia, e diante disso Porto Alegre do Norte passou a
configurar uma espacialidade que lhes conferia identidade, ao passo que já tinham
constituído uma rede familiar, amigos, novos parentescos por meio da vizinhança
e compadrio, bem como o vínculo com a posse formada por suas benfeitorias,
criações e plantio. A história de vida dessas pessoas naquele lugar estava
permeada por memórias e novas práticas culturais, pois seus filhos e netos
nasceram no patrimônio, desenvolveram novos saberes para entender o período de
cultivo, o regime pluviométrico, as plantas e ervas medicinais, como caçar e
preparar os animais da região, etc. Dessa forma, não lutar pela terra significaria
perder a gama de conhecimento adquirido naquele espaço, bem como todas as
lembranças que lhes proporcionavam sentido e a ideia de pertencimento a um
grupo por meio da convivência de momentos históricos similares, além da herança
cultural que se constituiu ao longo dos anos de permanência no Vale do Araguaia.
De acordo com Regina Bruno466, o perfil das classes e grupos
dominantes no campo está delineado por duas formas: a defesa da propriedade
como direito absoluto e a violência como prática dessa classe. Essa dimensão
engloba os conflitos de modo estruturante, em que o valor da terra nas áreas de
fronteira passou a ser associado ao surgimento de disputas de terras. Dessa forma,
para garantir os direitos sobre a propriedade, a Piraguassu moveu uma ação
reivindicatória contra os posseiros Alexandre Quirino de Souza e sua esposa Ana
Felicia Araújo.

Os réus acima qualificados, burlando a vigilância, invadiram


sorrateiros a fazenda Piraguassu [...], alojando-se no lugar
[...], e ali ocupando uma área
correspondente a 10 ha de terra. Além de invasor, é conhecido o
réu varão nas circunvizinhanças, como elemento agitador,
avalentado, arruaceiro, contraventor, useiro e vezeiro no hábito
óveis alheios. Elemento,
enfim, de péssimos antecedentes. No lugar da invasão, fez
derrubadas, roçou, mas nada construiu.467

A defesa da propriedade como direito absoluto implica inferiorizar os


trabalhadores rurais designando-lhes termos pejorativos que depreciam a sua
imagem, e, deste modo, legitimam a violência contra esses indivíduos. Já os
empresários rurais eram portadores de uma posição econômica, simbólica e
cultural distinta do posseiro que sofria a estigmatização de forma racionalizada
com o objetivo de empregar o controle social, e, portanto, manter as distâncias e
as diferenças sociais entre os grupos. Essa prática buscava enfatizar a
representação do posseiro como um elemento desonesto que se apropriava de
espaços particulares. Entretanto, os trabalhadores rurais visualizavam as
categorias dominantes (fazendeiros, grileiros, empresários rurais) como os sujeitos
que expropriavam e invadiam determinada área. Essa visão advinha do fato de que
o uso da terra era destinado à sua subsistência, tendo assim, a resistência e a

466
BRUNO, Regina Angela Landim. Nova República: a violência patronal rural como prática de
classe. Sociologias, Porto Alegre, v.5, n. 10, jul/dez 2003, p. 285.
467
Mandado de Citação. Documento da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 3.17, 1978, p. 2.
ocupação de terras como mecanismos de oposição em relação à lei e a
legitimidade na posse da terra.
De acordo com Woortmann468, as organizações dos camponeses
estavam constituídas sob uma ordem moral, em que os valores sociais permeavam
todas as relações sociais. Nesta concepção, a terra era vista como pertencente a
Deus e não aos homens, assim havia uma conexão entre os conjuntos de
significados que estabeleciam uma vinculação cujo sentido não separava terra,
trabalho e família. Nessa espacialidade, afloravam valores éticos que se
configuravam como qualidade, enquanto uma realidade singular que se ajustava
na organização familiar. Desse modo, a migração era vista como o primeiro ato de
resistência, e posteriormente, a tentativa dos posseiros em permanecerem em suas
posses pode ser considerada como um esforço para a preservação dos seus valores
tradicionais uma vez que estavam sendo desprezados.
As formas de resistência cotidianas realizadas pelos posseiros de Porto
Alegre do Norte podem ser caracterizadas, por exemplo, pelo fato de estes se
recusarem a saírem das suas propriedades, mesmo com a notificação 469 por escrito
para que deixassem as áreas ou até mesmo com a ameaça verbal dos jagunços da
FRENOVA ou da Piraguassu. Outro mecanismo utilizado diz respeito à coleta de

pedir intervenção do INCRA na resolução do conflito da agropecuária contra os


posseiros470. Por fim, havia o corte das cercas que a empresa fez sobre o espaço
urbano do povoado de Porto Alegre do Norte, impedindo os moradores de ter
acesso ao bebedouro
471
. De acordo com a análise da
documentação, esta última atitude não apresenta a designação do nome de um
agente em específico que tenha realizado o corte das cercas, pois, conforme

468
WOORTMANN, Klaas.
469
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.1.02, 1971, p. 1, já utilizado
nesta tese.
470
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.38, 1972, p. 1.
471
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.58, 1972, p. 1.
Scott472, os atos de resistências cotidianas não possuem autores que assumam a
responsabilidade pública por sua realização.
Essa resistência é empreendida contra o avanço do capitalismo no
campo: a perda do acesso ao meio de produção, ou seja, a terra como forma de se
obter o sustento familiar através da economia de subsistência, e, o seu excedente
vendido no mercado local. Assim, entendemos que a resistência sem autor
definido ou explícito tem relação com o fato de consequentemente terem que
sofrer os efeitos da repressão, tanto por parte dos jagunços da agropecuária, como
pelo próprio Estado por meio de alguns policiais locais coniventes com as atitudes
violentas da FRENOVA e da Piraguassu. As formas de resistências são
mecanismos cotidianos contínuos realizados por agentes sociais que vivem em
condições de vidas difíceis, as quais continuarão a existir enquanto a estrutura
agrária brasileira se conservar exploradora e desigual.
Para resistirem à invasão das suas terras, os posseiros passaram a
impedir a navegação de barcos da FRENOVA pelo rio Tapirapé, que era a única
via de acesso ao povoado de Porto Alegre do Norte:

Chegou a Porto Alegre o Sargento de Luciara e 3 praças. Com


voz de prisão sobre o Alexandre Quirino de Sousa, Nilo Pereira
da Silva, Célio Manuel Azevedo Guimarães, Josias Nonato.
Sargento disse que fora mandado pelo Secretário de Segurança
Pública abrir um inquérito [sic]. Porque o povo disse que o
barco não subiria novamente. [...] José Benz falou ao Josias,
irmão do Altaídes, e outros que o dinheiro que eles deram ao
prefeito gasto em carabina e munição já teria resolvido o seu
problema.473

O ato de resistência de impedir que os barcos da FRENOVA


trafegassem pelo rio Tapirapé, pode ser caracterizado, segundo Scott 474, como um
confronto direto dos posseiros contra a agropecuária, tendo em vista que estes
foram identificados e acusados pela empresa para que fossem autuados pela

472
SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa... p. 14.
473
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.62, 1972, p. 1.
474
SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa...
polícia local. Ao contrário da resistência cotidiana empregada geralmente sem a
identificação dos agentes sociais, a resistência direta torna explícita a participação
destes, mas em contrapartida eles têm que arcar com as consequências perante a
justiça, diferentemente, por exemplo, conforme ainda o documento acima do
empreiteiro geral da FRENOVA, José Benz ex militar aposentado por
corrupção, o qual proferiu diante de várias testemunhas que eliminaria facilmente
o problema de terras com uso de armamentos, porém este não chegou a responder
por suas ameaças legalmente.
Com a tolerância e conivência do Estado, as empresas agropecuárias
formaram milícias privadas para garantir a defesa das propriedades, contrariando
os preceitos de Max Weber475, em
-grossense, assim como na
fronteira amazônica, o uso da violência foi dividido entre empresários e os seus
pistoleiros, que não eram legitimados socialmente, tampouco validamente
instituídos.
A luta pela terra impunha aos posseiros que estes ficassem atentos à
chegada dos pistoleiros ou militares em suas posses, mas as atividades no plantio
e cultivo das suas roças os impossibilitavam de aguardarem vigilantes os seus

desempenhava esta tarefa:

Zé Benz. Veja o movimento por aí. Aqui, estamos firmes,


prontos pra tudo, conforme nos tratarem, trataremos. Mano, é
fogo, os posseiros estão agora no tempo do plantio, não podem
estar aguardando todo dia o desconhecido sem nenhuma
segurança humana. Tenho ficado só no patrimônio o dia inteiro,
aliás, com as comadres e crianças.476

475
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: UNB, 2009.
476
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.58, 1972, p. 2.
O trabalho da Prelazia de São Félix do Araguaia se constituía no apoio
ao lavrador para que este permanecesse na posse, portanto ela passou a ser uma
aliada na conquista da propriedade rural e da organização comunitária a partir da
realidade local. Como instituição legal, a Igreja denunciava de acordo com o
documento acima, e precavia os posseiros de possíveis processos de expulsão,
além de legitimar a luta pela terra.
Outra forma de resistência praticada pelos posseiros de Porto Alegre
do Norte diz respeito à mobilização da comunidade para a preservação das áreas
de trabalho comum, bem como à melhoria do povoado a partir da construção de
casas, horta comunitária, campo de futebol, escola e barracões. Houve ainda uma
atividade mobilizadora de viés político pautado no enfrentamento para a resolução
dos problemas do patrimônio por meio de reuniões e mutirões, os quais podemos
observar no trecho da carta do Padre Eugênio Consoli a Dom Pedro Casaldáliga:

Oi, Pedro, po

do professor em projeto. Ambulatório??? Rua capinada, campo


de futebol logo que possível, aulas funcionando, posseiros
plantando e fazendo farinha, hoje mataram uma vaca aqui,
almoção para todos, rio dando peixe e crescendo com as chuvas,
hoje ajudamos na construção de mais uma casa, reunião com os
posseiros no próximo dia 13. Mano, a Frenova continua a
mesma. Diário irá com toda a segurança, de breve. Tem
material para os necessários, dignos e justos escândalos
proféticos.477

Os mutirões tinham como finalidade planejar e organizar a


infraestrutura do povoado, haja vista que o Estado não tinha tal preocupação.
Após as atividades coletivas ocorriam as reuniões para averiguar as denúncias dos
posseiros sobre a invasão na área da mata ou o cercamento da zona urbana do
patrimônio. As reações deveriam ser rápidas para que as ameaças não se
concretizassem e culminassem na expropriação dos trabalhadores rurais das suas
posses, assim, estes se reuniam para verificar a veracidade das notícias e traçar

477
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.3, 1972, p. 3.
estratégias de enfrentamentos como um modo de resistência contra a ocupação das
suas terras pelas agropecuárias FRENOVA e Piraguassu.
Os atos de resistências foram descritos por Justiniano Pereira Sales478,
filho do posseiro José Pereira dos Santos, um dos primeiros moradores de
Cedrolânida (núcleo de Porto Alegre do Norte), da seguinte forma:

Porto Alegre e Cedrolândia era um núcleo, mas se juntarmos a


Gameleira, a Azulona, Mutum, São João, Canabrava esse
contexto faz parte de Porto Alegre do Norte. O que acontecia
aqui refletia lá, e vice e versa. Porque eles tinham um laço de
amizade, mas é claro que a participação da Prelazia é inegável,
porém os laços dessas pessoas como uma irmandade também
prevaleceram muito, pois se você perceber em quase todos os
movimentos estavam presentes os filhos daqueles que chegaram
primeiro e a Prelazia trabalhou com quase todos. Por exemplo,
o João da Angélica, tudo que ele aprendeu foi aqui, a base dele
é aqui, conheceu o território. O Altair tem uma leitura assim,
por ali são oito ou nove irmãos, mas o Altair fala: um serve para
conversar, o outro para articular e o outro para fazer tal coisa,
mas o que aparece mais é ele [João da Angélica], e tem o
homem que é de confiança que aparece na hora da pesada,
quem é a liderança, não é o fulano, quem faz tal coisa é o
beltrano. E isso não é só no João da Angélica, pois se você for
nos Glórias que é no João Bento em Canabrava, a mesma
questão, se você fosse nos Guimarães e nos Fernandes você iria
observar a mesma questão. Por isso, eu vou por essa questão
deles se considerarem garotões na época, e serem como uma
espécie de irmandade de um pelo outro, por exemplo, se
aconteceu alguma coisa com outro, então nós temos que ir lá.
Uma das resistências foi essa, por exemplo, poderiam aceitar
ser roubados, mas ser humilhado e passar por pistoleiro isso de
jeito nenhum.479

478
Professor da rede pública de ensino do município de Porto Alegre do Norte. De acordo com a
entrevista concedida por João Sousa Lima em Porto Alegre do Norte no dia 3/12/2015, relata que
José de Pereira dos Santos, pai de Justiniano Pereira Sales migrou para o Araguaia mato-grossense
no início da década de 1950.
479
O trecho exposto acima foi concedido na entrevista realizada com Ataíde da Silva, em Porto
Alegre do Norte no dia 2/12/2015. Tentamos formalizar uma entrevista exclusiva com o Justiniano
Sales, mas ele se recusou e disse que só acompanharia as entrevistas, nos ajudando a localizarmos
e contatarmos as testemunhas, e assim, nos fornecer informações e esclarecimentos sem o uso de
uma entrevista formal. Ele também nos relatou a fala descrita acima, de modo informal em meio a
uma conversa numa reunião festiva que ocorreu na sua residência no dia 5/12/2015.
O relato nos mostra que a resistência na luta pela terra adveio das
relações traçadas ao longo do tempo nos núcleos de ocupações em torno de Porto
Alegre do Norte pelos diversos grupos familiares. Visto dessa forma, podemos
imaginar que as reações dos posseiros a partir deste universo formado pela
concepção de vizinhança, compadrio ou irmandade, foi o que criou uma noção de
grupo e a compreensão sobre o direito à terra, e desse modo, fez com que essas
pessoas se colocassem como agentes políticos na intervenção da questão agrária
no Araguaia mato-grossense. Nos núcleos de ocupações é onde se delinearam os
atos de solidariedade, evidenciados por meio dos mutirões como um processo de
organização coletiva que estabeleceu as bases sobre as quais aqueles indivíduos
puderam vivenciar a luta e os processos de enfrentamento contra os
empreendimentos rurais instituídos nas suas posses.
Os núcleos familiares citados pelo entrevistado demonstram que a
espacialidade de Porto Alegre do Norte era o que conferia unidade e consciência
de agrupamento em vizinhança. As famílias organizadas territorialmente
formaram os espaços em que se articulavam para permanecerem na terra. O
sentimento de localidade adquirido ao longo das experiências em comum,
evidenciados nas ações de solidariedade e ajuda mútua através dos mutirões no
primeiro momento da ocupação das posses, foram responsáveis pela criação de
estratégias para resistirem ao processo de expropriação das suas terras.
Os posseiros que estavam estabelecidos na divisa com a agropecuária
eram os mais atingidos pelas ações violentas. Desse modo, para a defesa das suas
terras, surgiu a necessidade de resistências por parte dos trabalhadores rurais que
passaram a constituir lideranças480, as quais conduziam as lutas e agiam como
porta-vozes da comunidade. Estes traçaram duas estratégias de enfrentamento: a
primeira, contra a fazenda e sua pretensão de se apropriar dos limites das áreas

480
Na documentação da Prelazia de São Félix do Araguaia encontramos os seguintes nomes:
Alexandre Quirino de Sousa, Nilo Pereira da Silva, Célio Manuel Azevedo Guimarães e Josias
Nonato, envolvidos nos atos de resistências contra a FRENOVA. Já na mediação dos conflitos
entre posseiros e a empresa em Porto Alegre do Norte tinha a ajuda da Igreja através do padre
Eugênio Consoli e dos Agentes de Pastoral José Pontim e Altair.
dos posseiros, e a segunda em oposição à ação violenta dos jagunços, pistoleiros e
milícias privadas dos empresários. Estas mobilizações tinham como objetivo a
ocupação efetiva daquele espaço por meio da construção de benfeitorias, pois
legitimavam suas posses e reafirmavam a apropriação desses espaços muito antes
da chegada das empresas e, dessa forma, obtinham o direito de permanecerem
nela.
Nesse universo marcado pelas estratégias de lutas, nos deparamos com
as narrativas sobre as resistências em Porto Alegre do Norte permeadas por atos
heroicos, conforme o relato de Altair:

O primeiro confronto quem fez contra a FRENOVA foi o


Alexandre e eu. Eles estavam subindo o rio Tapirapé para
formar a Piraguassu, então o Alexandre e eu fizemos esses
barcos voltarem. Esses barcos voltaram em um inverno danado,
numa muriçoca, mas fizemos voltar. Foi um sufoco, mas
fizemos voltar. Aí eles foram por baixo e criaram a Piraguassu,
mas eu ainda me lembro que o Alexandre e eu fizemos isso. O
Alexandrão era um homem respeitado. Ele com um revólver na
mão, grandão e velho. O Alexandre era uma liderança
folclórica. Muito interessante, porque ele foi o nosso primeiro
delegado e não sabia ler. Era o nosso delegado [Risos]. Mas
quando saia alguma coisa aqui para caçar no rastro, não tinha
igual o Alexandrão. Com a diferença que ele não atuava para a
FRENOVA, ele era justiceiro mesmo.481

A narrativa do entrevistado nos leva a uma encenação de uma


resistência heroica, em que somente ele e o delegado Alexandre Quirino de Sousa
fizeram retornar os barcos que estavam sendo utilizados para dar suporte na
abertura da fazenda Piraguassu. Ele não relata quais foram os mecanismos usados
para que esses barcos voltassem e seguissem por outro caminho, sobretudo se
portavam armas para tal atitude. Então, para ilustrar os seus protagonismos como
os primeiros moradores a traçarem estratégias contra a FRENOVA e a Piraguassu,
Altair descreve Alexandre Quirino como um homem dotado de características que
impunham o respeito, devido à sua altura, idade e ao fato de possuir porte de

481
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora,
em 2 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
arma. Assim, seus atributos elevavam a sua imagem, e ele não se deixava abalar
pelo fato de que exercia uma função pública e não sabia ler.
A memória de Altair talvez de forma inconsciente esboce um
protagonismo que introduz os atos de resistências no povoado de Porto Alegre do
Norte. Assim, nos questionamos por que esses sujeitos históricos que chegaram à
região por volta do início da década de 1970 se colocam como os iniciantes no
processo de enfrentamento na luta pela terra em Porto Alegre do Norte?
Lembrando que outras famílias se estabeleceram naquela espacialidade no final da
década de 1940, então, por que elas também não iniciaram essa ação? Algumas

482
de Altair483 que pode ser vista como uma tentativa de definir e
reforçar o sentimento de pertencimento social. Primeiramente, a memória
individual do entrevistado ao ser acionada passou a estabelecer relações com a
memória coletiva, então, este quis demonstrar a sua importância no contexto
histórico de ocupação do município. Entretanto, por ele ter atuado como leigo da
Prelazia de São Félix do Araguaia notamos que nos documentos elaborados por
aquela instituição religiosa, Altair também aparece como peça fundamental nos
conflitos, pois o mesmo exercia a função de professor do povoado e ajudava os
posseiros avisando-lhes sobre a chegada da polícia e dos agentes das
agropecuárias que iam em busca daqueles indivíduos para prendê-los ou ameaçá-
los. Já Alexandre Quirino, também é citado no corpus documental da Prelazia e
nas narrativas da sua esposa, Ana Felicia de Araújo e sua filha Zenaide Araújo

482
POLLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2,
n. 3, 1989, p. 3-15.
483
Esta constatação advém do fato de que na entrevista cedida por Altair, o mesmo afirma que
nasceu em São Paulo, contexto social diferente da população local que era majoritariamente
proveniente dos estados do Nordeste do país. Relata que participou de movimentos sindicalistas
em São Paulo, atuou como militante da ALN na guerrilha urbana, colaborando com a ação do
sequestro do Cônsul japonês Nobuo Okuchi. Depois foi enviado para Rondônia e Bolívia para
conhecer umas áreas de treinamento e posteriormente migrou para o Araguaia mato-grossense.
Devido a sua militância, Ataíde da Silva assumiu o codinome Altair com o intuito de driblar a sua
procura pelos militares. Nos documentos da Prelazia encontramos os seguintes nomes: Altair,
Ataíde e Atayde, em referência ao leigo de Porto Alegre do Norte e professor da escola do
povoado.
como uma liderança que tinha o respeito dos moradores locais. Neste sentido, a
trama que eleva os atos de Altair e Alexandre é tecida por diversos discursos que
os indicam como personagens essenciais na execução da resistência e
permanência na terra.
De certo modo, o testemunho de Altair nos leva a imaginar que as
experiências possivelmente adquiridas nos movimentos sindicais e militância na
guerrilha urbana em São Paulo o fizeram possuir uma carga de conhecimento para
tecer as estratégias de enfrentamentos na luta pela terra em Porto Alegre do Norte.
O entrevistado alega ter participado do sequestro do Cônsul japonês Nobuo
Okuchi484, tendo a responsabilidade de esconder o suposto chefe de Estado das
autoridad
põe o japonês? Na favela? Onde põe? Nós não tínhamos. Então entrávamos no
cinema durante o dia, naquele cinema de dois reais e ficávamos o dia inteiro
485
. Neste sentindo, a sua migração para o Araguaia foi resultante da provável
perseguição do aparato militar pelos seus atos como militante em São Paulo.
Antes de iniciarmos a entrevista, Ataíde da Silva nos relatou que
passou a usar o codinome Altair para despistar a sua procura pelo aparato militar.
Ele nos informou que o seu exercício como militante na guerrilha urbana em São
Paulo não foi revelada a equipe e a população da Prelazia de São Félix do
Araguaia para poder manter em sigilo o seu histórico de atuação na luta armada,

484
Em buscas realizadas em sites e acervos online, não encontramos os nomes dos sequestradores
do Cônsul, mas localizamos o nome de Ataíde Silva nos documentos do BNM digital como
integrante da VPR, grupo acusado de ter sequestrado Nobuo Okuchi. O auto de qualificação e
interrogatório da Delegacia Especializada de Ordem Social de São Paulo também relaciona Ataíde
Silva como membro do MO, tendo a sua descrição física semelhante a Ataíde da Silva, fato este
que só nos leva a ter alguma suposição do seu envolvimento com a luta armada urbana em São

assemelha-se a vários brasileiros e não nos dá base para confirmar a sua participação no sequestro
do Cônsul japonês, além disso, a grafia do nome do entrevistado é Ataíde da Silva e o nome que
aparece no BNM é Ataíde Silva; enfim, são constatações que nos levam a pressupor a sua atuação
como militante. BNM_042 (11). Disponível em:
<http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=BIB_01&pesq=Ataide+Silva+Tei
xeira>. Acesso em: 4 mai. 2017.
485
Ataíde da Silva (Altair), entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora,
em 2 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
que de acordo com o relato cedido a um jornal, o mesmo descreveu que:
Infelizmente a guerrilha abortou, com a repressão em São Paulo nós ficamos
desorientados aqui e tentávamos era sobreviver"486. Diante deste contexto, um dos
mecanismos utilizados pelo entrevistado para driblar a investigação sobre si foi
migrar para o Araguaia mato-grossense não utilizando o transporte aéreo,
conforme a narrativa abaixo:

O Câmara Ferreira falou para eu vir de avião, mas eu me neguei


e disse que iria no trecho, que um dia eu chegaria lá, pois eu ia
do jeito que o povo andava, e o povo não andava de avião.
Peguei o ônibus e cheguei em Anápolis que eu não conhecia.
Perdi o ônibus e cheguei em São Miguel do Araguaia, chegando
lá aportou um barco de peões, e eu pensei: é nesse que eu vou.
Foram seis dias de barco de São Miguel a Santa Terezinha,
porque o rio Araguaia estava seco. Esse barco era do velho
Décio, um gato feroz. Eu fui junto. Cheguei em Santa Terezinha
[...] por volta de setenta e pouco, em 1972. Eu cheguei lá e aí
como é que faz? O problema não era ficar no lugar, onde tem
gente eu fico, não ficava em cima, mas na base eu aguento o
tranco. Agora eu tenho que me enquadrar aqui no meio da
Igreja, mas eu não tenho nada de Igreja. Aí colega eu vivi no
meio da Igreja, no meio de padre e feira sendo rejeitado. Mas
era aqui que tinha que ficar.487

Ainda em 1972, Ataíde da Silva se mudou para Porto Alegre do Norte


e passou a atuar como professor da escola administrada pela Prelazia de São Félix
do Araguaia, na qual estabeleceu estratégias de lutas com os seus alunos para que
o avisasse quando ouvissem o barulho da chegada de aviões, pois Ataíde possui
dificuldade na audição. A testemunha descreve que os meninos falavam:

Quando eu saia para esconder, eu chegava lá e já encontrava o Alexandrão

486
FIM, da Ditadura: 50 anos depois do golpe militar, ex-guerrilheiro mora em Porto Alegre do
Norte e relembra a repressão. Confresa, Agência da Notícia, 01/04/2014. Disponível em: <
http://www.agenciadanoticia.com.br/noticias/exibir.asp?id=596&noticia=Fim_da_Ditadura_50_an
os_depois_do_golpe_militar_ex-
guerrilheiro_mora_em_Porto_Alegre_do_Norte_e_relembra_a_repressao>. Acesso em: 4 mai.
2017.
487
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora,
em 2 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
escondido, esperando o avião descer, porque chegava o padre ou a polícia. Nunca

No contexto da luta pela terra em Porto Alegre Norte, Altair aciona


duas identidades, uma política e outra social. A política advém do fato da
testemunha ter atuado como leigo da Prelazia de São Félix do Araguaia, e
consequentemente, auxiliava os posseiros no que diz respeito aos seus direitos em
permanecerem na terra. A social pode ser visualizada a partir do momento que o
mesmo se tornou um posseiro, buscando para si um lote que garantisse a
sobrevivência da sua família que estava em formação.

Na verdade, eu simplesmente era um ativista, um


revolucionário em que todo espaço eu estava, mas eu sou, mas
não estou, estou, mas não sou. Eu posso dizer que eu era um
leigo dentro da Prelazia, um leigo engajado. Eu era oficioso,
não era oficial, porque eu não tinha as regalias. [...] O que eu fiz
foi na marra, na marra. [...] Então, eu sempre trabalhei essa
questão e hoje eu tenho trezentos alqueires de terra, uma légua
de rio, e isso é o patrimônio dos meus filhos. Se for olhar lá
atrás a terra não valia nada aqui. [...] Quando a Piraguassu
acordou eu já estava lá. Eu sabia onde era a divisa das terras,
então o Pedro me deu quarenta bolas de arame e eu meti a cerca
doida bem em cima da divisa. Eu sabia que daqui para cá era a
área do INCRA. Então, eu segurei essa terra para os meus
filhos. Naquele tempo eu era tido como louco, maluco, porque
as terras não tinham valor, mas eu tinha que segurar aqui, pois o
pessoal só dava valor ao gado. O mundo era da pecuária. Aí
neste momento eu me tornei um posseiro [...].488

Essas identidades são resultado da constituição de estratégias sociais,


políticas e econômica, pois, como vimos, se originaram da sua identificação como
grupo. O espaço de Porto Alegre do Norte conferiu a Altair uma relação com o
lugar, em que o convívio com os trabalhadores rurais estabelecidos há mais anos
possibilitou tal identificação para empreender a luta conjunta com a finalidade de
também se tornar um posseiro e ter direito a terra.
Diante do universo de estratégias de resistências, o ato de derrubada
das cercas era ação mais comum no cotidiano dos trabalhadores rurais,

488
Idem.
principalmente daqueles que estavam próximos ao rio Tapirapé e na divisa da
agropecuária. Outro procedimento criado por estes sujeitos diz respeito aos
acordos estabelecidos com os peões das empresas, conforme o relato a seguir:

Cerca levantou e o povo derrubou. E a fazenda naquela de


sempre, fazendo onças e ameaças. Agora ela encheu de gado
búfalo o pasto onde o povo tem seu gado é só para atentar. O
avião está chegando, mas vou escrever mais um pouco. Olha
estamos em contato direto com os peões e muitos deles já se
manifestaram em público que estão com a gente. Nós aqui
estamos com alguns planos bolados, mas estamos esperando a
fazenda partir. Pois o Eugênio faz a frente, com as mulheres e
as crianças e eu fico com os quentes a seguir com eles para um
retiro489.

A afirmação de relações com grupos sociais que também vivenciavam


a exploração e violência pelas agropecuárias pode ser considerada o fator que
impulsionou alguns peões a se unirem aos posseiros, tendo em vista que a
FRENOVA e a Piraguassu utilizavam o trabalho escravo nos seus
empreendimentos rurais. Desse modo, caberia aos peões o consentimento em não
reagirem e nem denunciarem os lavradores que empregassem ações de resistência
contra o patrimônio das empresas, como, por exemplo, o corte de suas cercas.
De acordo com Santos Filho490, a resistência do trabalhador rural é
ação-resposta frente às ameaças sofridas em relação aos seus bens essenciais
como a terra ou a vida. São métodos desses sujeitos históricos para garantir a sua
sobrevivência em três dimensões: física, social e política. Assim, ao se
contrariarem com os processos de expropriações, estes organizam uma nova
conjuntura assentada na elaboração de atos coletivos, conforme descrita por João

489
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.03, 1972, p. 2.
490
SANTOS FILHO, José dos Reis. Condição e resistência camponesa: práticas de construção e
demolição da heteronomia da vontade do trabalhador rural. Perspectivas, São Paulo: 11, 65-81,
1988, p. 69.
vieram e mataram, então porque a gente não ia também. Aí fizemos isso e foi o
modo que nós vencemos491
Novamente o protagonismo na luta pela terra é exposto nos relatos

contra o gerente da FRENOVA. Na entrevista concedida por João da Angélica,


este nos narrou um fato em que ele e seu colega Sebastião Ferreira foram
contratados por Plínio Ferraz (gerente da FRENOVA) para assassinarem o padre
Henrique Jacquemart492, pois o religioso interferiu na venda de uma posse por um
preço que julgava ser irrisório, em que Plínio Ferraz já havia fechado o negócio
com o posseiro Sabino. O gerente deu ordens para que os posseiros João da
Angélica e Sebastião matassem o padre Henrique e os deixassem enterrado numa
localidade conhecida como Ribeirãozinho. Por este serviço, os trabalhadores
rurais, que também eram empregados da fazenda FRENOVA, iriam receber sete
mil cruzeiros.

Aí eu disse assim: rapaz vamos pegar o dinheiro do homem, e


ele disse então vamos. Aí eu disse nós vamos pegar uns animais
e tirar o sangue. Vamos contar que só batemos, mas que não
matamos. [...] Então chegamos lá de noite [Casa de Plínio
Ferraz]. [...] Mataram aquele desgraçado do padre? Mataram
mesmo? Quer ver? Vamos lá. O Sebastião falou: Rapaz esse
homem está preparado para matar a gente com veneno. Não vai
comer nada dele e nem beber nada. [...] seu João conte o caso.
Eu disse: Olha, nós não chegamos a matar o padre, mas
batemos muito nele. Ele está lá naquele brejo que passava as
onças do Landim. Ele ficou lá, mas não ficou morto. Ele está
bem machucado. Oh desgraça agora vai embora para os
infernos! [Plínio] Oh rapaz será que as onças não comem ele?
[Risos] Capaz que come! O padre nem sabia de nada [Risos]. A
onça vai comer ele agora à noite. [...] Aí ele disse vamos jantar,
pois a Linda e eu não jantamos ainda esperando vocês. Aí ele
colocou no prato tudo e puxou, e ela também já puxou. Aí eu
pensei: não tem veneno não [Risos]. [...] Jantamos bem e depois

491
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
492
No Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A 17.2.25, 1972, p. 1,
encontramos a denúncia de Dom Pedro Casaldáliga sobre o pagamento dos posseiros Sebastião
Ferreira e João Souza Lima para assassinarem o padre Henrique Jacquemart. Este fato também é
citado no capítulo II desta tese.
contamos o caso para ele. Oh seu João eu fui no Balduíno e
estou com o dinheiro aqui de três mil e quinhentos. [...] Aí eu
disse: não seu Plínio nós vamos fazer o seguinte, você junta
esse dinheiro que nós vamos ficar no mato escondidos [...] Nós
passamos três dias escondidos. E o boato... A gente mandou o
compadre Chico ir à rua. Ih rapaz! Lá ninguém quer saber de
notícias de vocês. Está feio! Vocês mataram o padre e tudo. [...]
Então fomos lá. Chegamos lá e o povo estava tudo com a cara
torcida com a gente. [...] Aí o Sebastião velho pegava o dinheiro
e jogava assim: aqui o dinheiro [Risos] que o Plínio Ferraz
pagou para a gente matar o padre e nós deixamos ele vivo.493

A memória de João da Angélica elegeu o fato descrito acima como


provavelmente as lembranças menos dolorosas de serem narradas, pois o que
perguntamos em relação aos conflitos de terras em Porto Alegre do Norte,
principalmente sobre os casos de violência e as estratégias de lutas que os
posseiros utilizaram no enfrentamento, o entrevistado dispensou poucas palavras e
a sua narrativa não foi tão longa e rica em detalhes como o acontecimento descrito
acima. Possivelmente, a experiência do trauma provocada pela política de
ocupação da Amazônia pelo governo militar em detrimento dos direitos dos
posseiros situados nas áreas dos empreendimentos rurais, veio estimular uma
memória heroica marcada por características que expressam a capacidade de
enfrentamento, coragem, organização e até mesmo atos de esperteza como forma
de resistência.
A experiência da violência resultou em um exercício de significação
política da resistência empregada pelos posseiros de Porto Alegre do Norte, e, no
caso da narrativa de João da Angélica, como um mecanismo de relatar o indizível
e expressar que a sua atuação de esperteza contra a proposta de assassinato do
padre Henrique pelo gerente da FRENOVA, adveio das diversas violações que os
trabalhadores rurais foram submetidos, e assim, modificando uma possível
memória traumática em uma memória heroica.
Muitas narrativas e documentos que elegemos ao longo desta tese
privilegiam apenas o universo masculino, e, de certo modo, faz com que o leitor
493
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
imagine que as mulheres não tiveram participação na luta pela terra em Porto
Alegre do Norte. Este fato pode ser justificado pelo número de mulheres494 que
conseguimos entrevistar, pois muitas já se mudaram do município, faleceram ou
por motivos variados não puderam nos dar o seu testemunho. Porém, na
introdução desta pesquisa alertamos que ao utilizarmos o termo trabalhador rural
estaríamos nos remetendo aos homens e mulheres que atuaram na resistência pela
terra. Não pretendemos realizar uma discussão sobre os estudos de gênero, pois
este não é o propósito da investigação, e além do mais não possuímos dados
significativos para demonstrar a atuação das mulheres nos conflitos. Portanto,
iremos nos reportar às narrativas de Ana Felicia Araújo com o intuito de
apresentar as suas ações como um sujeito histórico na conquista pela terra e que
provavelmente representam a história de outras mulheres de Porto Alegre do
Norte às quais não tivemos acesso.
Os trabalhadores rurais, ao falar dos conflitos, também expressam o
papel da sua família e isso inclui mulheres e crianças, assim, às vezes é possível
encontrar, nos relatos, de forma indireta, essa presença na luta pela terra. Nas
narrativas apresentadas por Neide Esterci495 sobre Santa Terezinha, os homens
ficaram escondidos e as mulheres fizeram toda a estratégia de logística, levando
comida, roupas, informações para eles na mata, e no vilarejo, mantendo as
aparências de normalidade na casa e nas rotinas diárias, mesmo sozinhas
enfrentando a presença dos jagunços que estavam à procura dos seus maridos.
Outro caso exemplar contra as mulheres ocorreu no povoado de Ribeirão Bonito
(atual Ribeirão Cascalheira) em 1976, a população revoltou-se contra a polícia
militar que acumulava um histórico de arbitrariedades e violências culminando
com a prisão arbitrária de duas mulheres (seus maridos haviam sido acusados de

494
Entrevistamos seis mulheres, dentre elas: Erotildes Milhomem (atuou como professora em São
Félix do Araguaia), Maria José Souza Moraes (advogada da Prelazia, mas chegou à região no
início da década de 1980), Odile Eglin (Irmazinha de Jesus que chegou a Confresa na década de
1980), Maria Luiza Silva (moradora de Porto Alegre do Norte, mas não obtivemos êxito na
entrevista devido o avanço da sua idade), Ana Felicia Araújo (moradora de Porto Alegre do Norte
desde 1962) e Maria Zenaide Araújo (filha de Ana Felícia Araújo).
495
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia...
desentendimentos com um fazendeiro local). Na delegacia elas foram torturadas
sem que os policiais se preocupassem impedindo-as de pedir ajuda. Esse episódio
culminou com o assassinato do padre João Bosco Burnier, como também
provocou uma onda de violência que obrigou o destacamento a sair da cidade e a
delegacia foi demolida por um grupo de pessoas.
De acordo com Erik Marcelo de Moura496, ao estudar o papel das
mulheres na luta pela terra no espaço do assentamento junto ao MST, este
demonstra que a identificação da participação da mulher possui um percurso
distinto junto aos trabalhadores do campo, no que diz respeito às formas de
exclusão política, social, econômica e cultural que esses trabalhadores e
trabalhadoras passaram ao longo das suas trajetórias históricas. Neste sentido, é
importante frisarmos a função da mulher como essencial, sendo um dos sujeitos
históricos nesse processo, pois a sua presença se encontra em várias etapas, seja
na ocupação e posse da terra, ou na articulação e concretização das famílias em
determinada espacialidade. Sob esse aspecto se torna válida a narrativa de Ana
Felicia Araújo:

As mulheres ajudavam, porque nós avisávamos quando a


polícia estava chegando, e então nós o recebíamos. Aquilo que
nós ouvíamos da polícia e o que a polícia nos falava, nós
falávamos para eles. Era assim. De qualquer forma a gente
ajudava. Nós ficávamos em casa para cuidar dos filhos, da casa
e da roça quando eles saíam. E no meu caso eu os enfrentava.497

A participação da mulher ocorria desde a ocupação da terra, ajudando


na sua limpeza para a formação de roça e pastos, plantio e colheita dos alimentos.
Conforme nos relata Ana Felicia, a mesma não participou do enfrentamento direto
por meio de articulações e luta armada, mas sua ajuda se pautou em executar as
tarefas domésticas e cuidar dos filhos durante a ausência do marido, como

496
MOURA, Erik Marcelo de. A mulher e a luta pela terra no Brasil: uma abordagem sócio-
cultural da constituição simbólica no MST no que concerne o estudo de gênero. Anais do V
Encontro de Pesquisa em Educação de Alagoas: Pesquisa em Educação: Desenvolvimento, Ética e
Responsabilidade Social, Maceió, agosto 31 a 03 de setembro, 2010.
497
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
também não delatá-lo as autoridades, tendo a coragem de não se calar e enfrentar
as ameaças que os polícias lhes direcionavam quando iam à procura de Alexandre
Quirino.

Eu disse: agora eu quero fazer uma pergunta para o senhor. [...]


E eu com toda a calma perguntei: qual a razão que o senhor está
deixando uma intimação para o meu marido? Porque eu penso
assim: ele não matou, ele não roubou, ele não desonrou, então

muito valente. Que ele não sai daqui nem que o sangue esteja

não! Nós não temos para aonde ir. [...]

aceitar a gente aqui, porque nós não vamos sair daqui. Quando
ela chegou nós já estávamos aqui. Por que ela não foi procurar
outro lugar para fazer a fazenda? [...] Nós não temos para aonde
ir, nós vamos ficar aqui parados. [...] Aqui ninguém tem medo
da polícia, pois desde que seja polícia a gente até gosta, pois
nos dá forças. Sendo polícia, né. Aí ele ficou olhando assim
brigam muito

condições de comprar armas. [...] Nós brigamos só se for com


faca, facão, enxada e machado, porque as armas nossas são
essas. Mas se o governo desse, essas armas que vocês têm, se
ele também desse para nós, aí nós brigaríamos também. [...] E
nós não vamos sair da nossa roça de onde nós tiramos os nossos
alimentos para comer. [...] Isso é verdade que ele te falou que
nós não vamos sair, porque a gente não tem para aonde ir. [...]
Eu não demonstrava medo. Na hora eu fiquei com medo, mas
eu falava e brigava mesmo, porque a boca era minha. Eu era
muito resistente, graças à Deus. Eu ajudava o meu marido assim
enfrentando os policiais498.

Ao nos relatar esse fato, Ana Felicia mudou a expressão facial e o tom
da sua voz, pois parecia estar vivenciando a presença do policial na porta da sua
casa, já que a nossa entrevista ocorreu em sua varanda em frente ao rio Tapirapé,
ou seja, no mesmo lugar que se constituía a sua posse, em frente à rua que era
usada como pista de pouso dos aviões e na divisa territorial com a agropecuária
FRENOVA, assim, era como se aquele espaço tivesse contribuído para ativar a
sua memória e trazer à tona os mais ricos detalhes daquele episódio.

498
Idem.
A narrativa tecida por Ana Felicia nos mostra como foi importante a
presença da mulher na luta e manutenção da terra na história de Porto Alegre do
Norte, pois evidenciamos na sua fala um enfrentamento diário, físico e
psicológico, momentos de adversidades junto com o seu cônjuge e demais
integrantes da comunidade. Observamos que a conjuntura marcada pela
desigualdade, expropriação e exploração que impossibilitou o trabalho e a
subsistência de base familiar, inibindo a sua identidade e dignidade, fez com que
Ana Felicia encontrasse força e coragem para assegurar os seus direitos sob o que
estavam lhe retirando: a terra.
Para garantir a sua sobrevivência e dos seus familiares, a entrevistada
passou a questionar as formas de ocupação e uso da terra pela FRENOVA, dado
que a conquista da terra era a garantia de um espaço de produção. Portanto, a
organização e resistência pela permanência na terra advêm de uma identidade
social criada ao longo do período que a entrevistada vivenciou em Porto Alegre
do Norte, tendo em vista que a sua trajetória marcada por diversas migrações a
impulsionou a não sair da sua posse mesmo com as constantes ameaças, uma vez
que a consciência dos seus direitos era repassada pelos religiosos, agentes de
pastorais e leigos da Prelazia de São Félix do Araguaia.
O testemunho de Ana Felicia é permeado por atos de coragem, a
mesma cita que em muitos momentos sentiu medo, mas o sentimento de proteger
o seu esposo lhe dava força para ser uma mulher combativa mesmo que isso
significasse apenas se posicionar verbalmente contra a desapropriação da sua
posse, questionar o porquê seu marido estava sendo intimidado sem ter cometido
algum tipo de delito, bem como demonstrar que a resistência dos posseiros não
era mais eficaz pelo fato dos mesmos não possuírem armas de fogo da mesma
qualidade que o governo fornecia ao aparato militar. O seu enfrentamento pode
ser caracterizado pelo fato de não se calar e contestar as ameaças sofridas, sendo
importante destacar que a sua luta era considerada legítima, e, essa legitimidade é
o que assegura o seu papel de agente naquele contexto. A sua coragem também se
manifestava ao ajudar os vizinhos que estavam vivenciando situações de
intimidação, como foi o relato de violência que Anália Souza Lima, esposa de
João da Angélica, passou para contar o paradeiro deste último, que estava
escondido da polícia.

[...] eles estavam procurando o compadre João, e aí ela [Anália]


disse que não sabia. Ela estava até de dieta, tinha acabado de
ganhar um bebê. Eles entraram dentro do quarto e ameaçaram
ela

eu escutei o tiro, pensei: estão matando a Anália! Eu fui para lá,


ela morava ali [apontou com o dedo a localização da casa
próxima a sua residência], porque eu sabia que ela era muito
esmorecida [medrosa]. Eu fui até lá e a polícia estava lá. E ela
tremendo, na hora de cair da cama, levantou com o menininho
nos braços e tremendo. Aí eu briguei com eles. Falei tanta coisa
lá com eles. Eu disse: se essa mulher adoecer, nós vamos
processar vocês! Vocês estão pensando que não? Nós vamos!
Vocês acham que a gente vai ficar aqui? Nós vamos botar para
tirar a faca de vocês. [...] Vocês são todos vagabundos por
humilhar uma mulher desse tipo de resguardo! Mas briguei,
mas xinguei. Eu virei doida lá. Eles também calaram e saíram.
Eles nos humilhavam muito.499

Entendemos a coragem de Ana Felicia como uma forma de resistência


contra as ameaças de alguns elementos da polícia local. As suas lembranças são
marcadas por esses enfrentamentos, e a imagem que constrói de si é de alguém
que tinha coragem de confrontar o aparato militar em momentos que a mesma
julgava juntamente com a sua família e vizinhos estarem sendo injustiçados. Suas
atitudes podem ser consideradas ousadas, desprendida de submissão e
passividade. A memória da entrevistada deseja expressar a representação de uma
pessoa que era apta a contestar a violência policial que humilhava a si e sua
comunidade. Observamos que a luta pela terra em Porto Alegre do Norte é
exaltada pelas testemunhas em virtude da sua capacidade em organizar
resistências e enfrentamentos, assinalados pela união e coragem contra o poder

499
Idem.
público e os funcionários das agropecuárias FRENOVA e Piraguassu. Sob esse
aspecto, a relação em grupo foi fundamental, conforme a narrativa500 abaixo:

Um dia eles chegaram na casa da Anália outra vez. A Anália


estava na cozinha e quando viu eles entrando, ela correu para o
fundo da casa. Tinha uma menininha sentada no chão da
cozinha. Eles voltaram e não viram ninguém, porque os
meninos maiores correram também. Aí ficou uma sentada no
chão e eles derramaram um balde de água e emborcaram o
balde na cabeça da bichinha. E ela sentada. Aí remexeram na
casa caçando arma. E ela correu e deixou a menininha. Depois
eles saíram e a vizinha escutou a menina chorar e disse: a
Anália não está aí para escutar essa menina chorar. E a bichinha
com um balde emborcado na cabeça. A vizinha foi e tirou.
Nessas horas ela correu pelo mato e de repente estava aqui em
casa.501

Em relação à fuga empreendida por Anália, deixando a sua filha para


trás, esta possivelmente imaginou que os policiais não seriam capazes de violentar
uma criança, pois a sua atitude advém do ato de assegurar a sua integridade física,
ou seja,
diferentes estratégias nas interações sociais, de modo a resguardar a sua
502
. Neste contexto de mecanismos tecidos para preservação da vida é
que a casa de Ana Felicia foi descrita como o porto seguro para a vizinha Anália
Souza Lima, que estava fugindo da polícia. Ela é citada pela entrevistada como
uma mulher muito medrosa, e por isso, tinha que ter o apoio e coragem de Ana
Felicia para superar as ameaças e violências sofridas, pois, se elas se deixassem
abater pelo medo, não teriam os seus direitos garantidos sobre as terras que
ocupavam. Portanto,

500
Esse acontecimento também foi relatado por João Souza Lima (João da Angélica) em entrevista
de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de
Porto Alegre do Norte.
501
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
502
MENEZES, Marilda Aparecida de. O cotidiano camponês e a sua importância enquanto
resistência à dominação: a contribuição de James C. Scott. Raízes, v. 21, n. 01, p. 34-44, jan./jun.
2002, p. 42.
Agora a Anália, coitada. O compadre João não ficava em casa,
então acontecia qualquer coisa e ela corria. Ela dizia: só me
conforto de estar perto da senhora, porque se eu não ficar perto
da senhora eu até morro. Aí eu chegava e animava ela e dizia:
não é assim não minha filha! Vamos ter coragem, vamos
confiar em Deus! Ela dizia quando conversava comigo tinha
mais força. Ela era esmorecida, pobre, coitada. Todo mundo é
de um jeito, né?503

O medo poderia ser um grande rival para a preservação da luta pela


terra, mas este também pode ser caracterizado pela ideia de permanência e
garantias dos direitos sob a posse. Portanto, o medo deveria ser anulado para
continuarem lutando, pois além de ter o conforto e motivação de Ana Felicia,
Anália deveria confiar na bênção de Deus para a conquista efetiva da terra. Esse
ideal nos faz lembrar que sem esforço e dificuldade não se alcança a vitória, ou
seja, uma justificativa para acreditar nos propósitos de Deus, já que a terra a ele
pertence e os posseiros podem ter acesso a ela através do trabalho 504. Outra
compreensão seria de que os princípios morais, os quais relacionamos com a
concepção da economia moral tecida por Eduard Thompson505, em que a terra é
vista pelo posseiro como essencial para a sua subsistência e se esta estiver em
risco, eles irão empreender formas de resistências para garantirem direito à
sobrevivência como senso moral que regulamentava o cotidiano dos trabalhadores
rurais. O ato de ocupar não resulta apenas de coragem, é também uma ação
baseada na necessidade econômica e no desejo de gerir um espaço para a
agricultura familiar sob os preceitos da economia moral.
De acordo com o relato tecido por Maria Zenaide Araújo506, as
crianças também tiveram participação na luta pela terra, conforme a narrativa
abaixo:

503
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
504
WOORTMANN, Klaas. .
505
THOMPSON, Eduard P. Costumes em comum...
506
Professora da Rede de Educação Básica do município de Porto Alegre do Norte. Filha dos
posseiros: Ana Felicia Araújo e Alexandre Quirino de Sousa. Nascida em Porto Alegre do Norte
em 14 de agosto de 1963.
Nós fomos criados assim, o pai dizia: olha, se a polícia chegar
aqui você não diz nada, fica caladinho, senão eles vão prender o
seu pai e vão matar. [...] Eu me lembro de quando criança a
minha mãe disse que não era para a gente falar nada. Então,
caiu o tijolo com o barro lá que a parede estava desmontando.
Aí minha mãe falou para o policial que mexeu na arma lá: olha
foi um tijolo que caiu, se vocês quiserem ir lá ver, mas eles não
foram não. Meu irmão e eu estávamos sentados e eu me lembro
de que a minha mãe falou que era para a gente não falar nada.
Então, nós crescemos nesse movimento o tempo todo de tensão,
de medo, né? A infância das crianças aqui foi essa. [...] As
crianças também ajudavam nas estratégias, pois elas se
ofuscavam de falar alguma coisa, né? Todos têm papel na luta
pela terra. Era uma forma de se organizar para resistir. Porque a
criança não tem noção do que está acontecendo e se pergunta
onde está o seu pai, ela diz: o meu pai está ali.507

A narrativa de Maria Zenaide Araújo sobre a participação das crianças


na luta pela terra em Porto Alegre do Norte é elucidativa para entendermos que de
alguma forma os sujeitos históricos, sejam estes homens, mulheres e crianças,
estavam juntos nas estratégias de resistência para a conquista da terra. Assim
como a sua mãe Ana Felicia, Maria Zenaide Araújo também quis demonstrar a
sua atuação enquanto criança nos momentos de tensão que a sua família
vivenciou, mesmo que essa ação consistisse apenas em se calar e não delatar o
paradeiro do seu pai à polícia quando esta lhe questionasse. A entrevistada
demonstra que ela e seu irmão foram instruídos pelo pai a não se comunicarem
com os policiais, pois isso iria ocasionar a prisão e morte do mesmo. Novamente o
medo marca a vida de toda a comunidade, estendendo uma grande
responsabilidade às crianças que diante a presença de autoridades deveriam
permanecer em silêncio, carregando com elas a angústia de não poder falar, e se
necessário, provavelmente teriam que mentir sobre a localização do pai. Fato este
que contraria os princípios morais de uma educação, em que a mentira de uma
criança é algo vergonhoso para os pais, mas no caso relatado pode ser entendida
como uma estratégia de sobrevivência e manutenção da família.

507
Maria Zenaide de Araujo Silva entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
Capixaba

entre os anos de 1978 a 1979, devido aos enfrentamentos dos posseiros para
demarcação e titulação das suas áreas, bem como pela delimitação do espaço
urbano de Porto Alegre do Norte, tendo dentro dessas ações o assassinato de um
jagunço da Piraguassu pelos trabalhadores rurais.
Na década de 1970 foi aprovada a lei municipal para a desapropriação
de 4.500 hectares para Porto Alegre do Norte508. Entretanto, os prefeitos
posteriores, Manoel Costa e Lídio Limeira Brito definiram a demarcação de 3.600
hectares para a área urbana, mas a Piraguassu não aceitou a proposta e cercou todo
o espaço. Para agravar ainda mais a regularização fundiária do patrimônio 509, o
prefeito Sebastião Gomes de Souza, realizou um acordo em 13 de julho de 1977
aprovando 1.500 hectares para o espaço urbano do povoado. Essa delimitação
contribuiu para o acirramento de novos conflitos, pois a localidade estava
recebendo uma média de 5 a 10 famílias por semana510, que vinham
principalmente de Luciara, e de outras vilas como Pontinópolis511 e Serra Nova
Dourada512, fugindo do processo de expulsão e conflitos513.
Diante do contexto da abertura da BR 158 em 1974, intensificou-se o
número de migrantes para o Vale do Araguaia, e Porto Alegre do Norte, por estar
na área de influência da rodovia, passou a receber muitas pessoas atraídas pelos

508
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 90.
509
Porto Alegre do Norte se emancipou de Luciara em 13 de maio de 1986.
510
Não encontramos dados oficiais sobre o número de habitantes de Porto Alegre do Norte na
década de 1970, mas para termos uma ideia o Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do
Araguaia A17. 3.5, 1977, p. 1, informa 1000 moradores na área urbana em 1977. Em 1988 a
estimativa era de 15 mil habitantes no município, com 6 mil na sede e 2000 no distrito de
Canabrava do Norte. o restante encontrava-se nas fazendas e núcleos rurais. CASCÃO, Rodolfo.
Democratização do poder local: uma experiência no Araguaia. Rio de Janeiro: FASE, 1992, p. 49-
50.
511
Conflito dos posseiros com a fazenda Suiá-Missú.
512
Conflito dos posseiros com a agropecuária BORDON S/A.
513
A DURA, conquista da terra...
projetos de colonização propagados pelo governo ditatorial, bem como a procura
de terras e emprego nos empreendimentos rurais. Neste processo, chegaram ao
povoado trabalhadores rurais de localidades próximas ou de outros estados (Piauí,
Maranhão, Goiás e Pará), assim, a partir daquele momento, o patrimônio se
constituiu entre os antigos posseiros e os novos posseiros, contribuindo para uma
nova configuração espacial e engajamento na luta pela terra.
Com a aprovação do prefeito Sebastião Gomes de Souza de 1.500
hectares514 para a área urbana do povoado, os posseiros se mobilizaram por meio
de uma carta coletiva direcionadas ao presidente Ernesto Geisel, representante do
INCRA (Cuiabá), Prefeito de Luciara e Dom Pedro Casaldáliga, alegando que o
espaço não era suficiente para a sobrevivência das famílias de Porto Alegre do
Norte, conforme o documento abaixo:

Será que o I.N.C.R.A como órgão oficial para os problemas de


terra vai aceitar esse acordo que beneficia somente a fazenda,
prejudicando os 1000 moradores e o sertão? Existe um acordo
assinado no tempo do prefeito anterior Sr. Manoel Martins da
Costa sobre a área permitida pela lei e que não está sendo
respeitado pela fazenda e pelo prefeito atual. Nós não temos
condições de vida numa área tão pequena para as nossas
famílias. Esperamos do Sr. atendimento e justiça dentro da lei
que nos defende. Não queremos chegar a situação lamentável e
irreparável.515

A população reclamava por seus direitos, mas desde dezembro de


1976 o INCRA já tinha designado o número de posseiros que receberiam o título
da propriedade e a dimensão das áreas. De acordo com o Ofício do INCRA nº 37
de 1976 elaborado por Antônio Pio da Silva, Chefe da Unidade Fundiária de São
Félix do Araguaia direcionada a Dom Pedro Casaldáliga, este demonstra que
apenas 47 posseiros poderiam adquirir as terras de acordo com os seguintes
parâmetros: 110 hectares para a pecuária, 50 hectares para a agricultura e 5

514
Segundo os dados do IBGE (2015), a área da unidade territorial em km² de Porto Alegre do
Norte é de 3.972,247.
515
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 3.5, 1977, p. 1.
hectares para as atividades hortigranjeiras. O documento cita os nomes de oito516
posseiros que aceitaram 50 hectares e três517 posseiros que receberam 110
hectares. Em relação aos posseiros que receberam 50 hectares, traz a seguinte
justificativa
518
. O
funcionário do INCRA só não informou que de acordo com Ofício Circular
32/nº279 de 13 de novembro de 1974, a área que os posseiros receberam estava
abaixo da metade do tamanho estipulado pelo documento citado. Assim, dos 180
posseiros que existiam no início de 1970, no final da década foram reduzidos a
pouco mais de 40 para obter a regularização das suas posses junto ao INCRA.
Em julho de 1978 a agropecuária Piraguassu moveu uma ação de
notificação judicial contra 51 posseiros. O Oficial de Justiça, Wolfgang Dankmar
Gunther519, que segundo os documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia e o
Jornal Alvorada520 se aproveitou do analfabetismo dos posseiros para que treze
pessoas aceitassem 50 hectares de terra, 9 conseguiram 110 hectares, 14 venderam
as suas posses, 4 ficaram sem nenhum direito, 8 trabalhadores rurais não entraram
em acordo, 1 trocou o lugar da posse e recebeu Cr$ 5.000,00 e 1 posseiro recebeu
90 hectares e mais Cr$ 5.000,00521.
A luta pela terra em Porto Alegre do Norte se arrastou por toda a
década de 1970, e os posseiros aos poucos foram perdendo os seus direitos sob as
posses, sendo alguns não reconhecidos pelo INCRA, outros aceitaram uma área
menor do que a garantida por lei ou venderam as suas terras. Mas, a população

516
Cícero Rufino Guimarães Lima, José de Souza Lima, Rita Pereira Santiago, Raimundo Souza
Parente, Adauta Luz Batista, Raimundo Pereira Mendes, José Pereira Campos e Sebastião Ferreira
de Figueiredo. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.15, 1976, p.
2.
517
Dionel Martins de Almeida, Alexandre Quirino de Souza e Clarindo Pereira Nonato.
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.15, 1976, p. 2.
518
Ofício INCRA /CR-13/T4/UF-1 nº 37/76 de, 22/12/1976. Documento do Acervo da Prelazia de
São Félix do Araguaia A17. 2.15, 1976.
519
Tentamos entrar em contato para realizarmos uma entrevista, mas o mesmo não atendeu as
nossas ligações e mensagens por redes sociais.
520
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 4, 1980, p. 3 e A DURA,
conquista da terra...
521
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 4, 1980, p. 3.
reagiu em julho de 1977 às tentativas da Piraguassu em diminuir a área urbana do
povoado passando uma cerca para estabelecer os limites da agropecuária. Já em
setembro do mesmo ano, aproximadamente quarenta trabalhadores rurais pararam
o trator que estava abrindo uma estrada e impediram por duas vezes que os
pedreiros construíssem um posto de combustível em uma quadra do patrimônio.
Mesmo assim, em julho de 1978 a fazenda tentou novamente construir a cerca e
milhares de estacas amanheceram queimadas pelos moradores522.
Notamos que em muitos documentos da Prelazia, jornais e
testemunhos orais, o ato de se construir a cerca como um exercício de poder sobre
as supostas terras da FRENOVA e Piraguassu era algo constante, bem como o
corte destas pelos trabalhadores rurais como uma ação de resistência aos limites
impostos pelas agropecuárias. Muitas vezes essas delimitações ocorriam de modo
absurdo, prejudicando a sociabilidade das famílias em Porto Alegre do Norte,
conforme o relato a seguir:

Ele [Plínio Ferraz] veio conversar com um filho do Domingão


que cortou um arame, pois a fazenda já tinha cercado tudo. Fez
o arame ali na casa do compadre João que tinha uma casa
grande e a cozinha separada. Eles passaram o arame no meio da
casa. Então a cozinha ficou para cá e casa para lá separada ao
meio pelo arame. Dividiu a casa dele ao meio, porque
antigamente o povo gostava de fazer a casa assim: a casa de
morar separada da cozinha, pois se o fogo pegasse na cozinha
não iria pegar na casa, porque era tudo de palha, né? [...] Eles
passaram a cerca no meio da casa. A cozinha ficou para lá e
compadre João ficou sem poder acender o fogo na cozinha.
Mas, chegavam aqueles malcriados que tacavam o facão e
cortavam a cerca. O compadre João não cortava, porque ele era
muito calmo. Esse não é o João da Angélica. Este é o João
Manoel. As pessoas iam lá e perguntavam: como faz o café?
Então, meteram o facão e cortaram a cerca. O Julinho foi e
cortou o arame da empresa. Então, a fazenda marcou o dia de
buscar a polícia. [...] Aí fizemos uma farofa e quando foi meia
noite eles saíram e foram avisar o prefeito que eles levaram o
Júlio preso. Porque ele tinha cortado a cerca [...].523

522
Idem.
523
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
As cercas utilizadas pelos posseiros tinham um sentido inverso do
dispositivo de dominação empregado pelas agropecuárias. Estas possuíam a
finalidade de impedir que o gado criado solto invadisse as lavouras, e não detinha
a ideia de impor limites entre as propriedades. A construção das cercas pela
FRENOVA e Piraguassu não levaram em consideração a organização espacial
estabelecida há anos pelos trabalhadores rurais, seus caminhos que levavam até as
douro público dos
animais, enfim ao núcleo urbano do patrimônio.
A delimitação do território tinha como um dos objetivos privilegiar o
trânsito das empresas, já que esta necessitava da via do rio Tapirapé para
transportar os seus materiais, bem como da rua principal do povoado que era
usada como pista de pouso dos aviões. As vias de acesso ganharam outras funções
e expressaram a sensação de invasão, pois as estradas da população local
passaram a ser frequentadas por pessoas estranhas que não respeitavam as regras
de convivência do patrimônio. Em relação ao relato de Ana Felicia Araújo,
podemos entender a ação da FRENOVA como a expressão da força poder que a
mesma exercia, tendo em vista que a sua atitude em delimitar a área da casa de
João Manoel sem lhe restituir os seus direitos sob a posse não foi vista como
crime, mas o corte da cerca como forma de resistência ocasionou a prisão do seu
executor.
As estratégias de Keizo Tokuruki, gerente da Piraguassu também
consistiam em ludibriar os posseiros em relação aos acordos para a delimitação
das suas posses. O caso exemplar, é de Izídio Gonçalves dos Santos, morador da
região há cerca de vinte anos, que supôs estar assinando o documento de doação
de 34 alqueires, mas pelo fato de ser analfabeto, foi enganado em relação à
proposta e assinou um contrato de empreitada524 como vigia da mata do rio
Sabino Norte, com o salário de Cr$ 200,00 mensais525.

524
Disponível no Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia Documento A17. 3.25, 1978, p.1-
2.
525
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 4, 1980, p. 3.
Alberto Gomes de Abreu da sua posse pela agropecuária Piraguassu. O
trabalhador rural morava em Porto Alegre do Norte há mais de trinta anos e a
partir do dia 27 de fevereiro de 1979, o gerente Keizo Tukuriki, acompanhado de
jagunços, solicitou a retirada da família da área, mas esta se recusou a sair. Com a
negativa, o funcionário da empresa propôs uma troca, em que a fazenda iria ceder
outra propriedade com benfeitorias. O posseiro aceitou, porém a fazenda não
cumpriu com o acordo e as ameaças continuaram.
Em março de 1979 ocorreram novas investidas para a expulsão de
Alberto Gomes de Abreu e da sua família. O gerente Tukuriki acompanhado pelo
Oficial de Justiça de Barra do Garças, Wolfgang Dankmar Gunther, cabo Torres e
por jagunços armados, foram a posse de Alberto Gomes para realizar o despejo,
entretanto, só encontram mulheres e crianças na casa, facilitando assim, a
expulsão destes que tiveram a sua residência invadida e os seus pertences
carregados por um trator e despejados na posse vizinha. Logo após, as moradias
foram derrubadas e queimadas, cortaram as cercas para que o gado da fazenda
entrasse nas plantações.
A família composta por nove pessoas perdeu os seus bens, assim

mandioca, uma tarefa de banana, 1 de cana, 40 pés de laranja, 26 pés de manga,


uma tarefa de arroz maduro, meio alqueire de arroz plantado e outras frutíferas e
526
, além de animais como patos e galinhas. Diante da expulsão violenta
sofrida, o grupo familiar teve que morar com outro posseiro em Porto Alegre do
Norte, e essa situação ocasionou uma série de necessidades, já que a família
perdeu a terra de onde retirava o seu sustento através da agricultura de
subsistência. Desse modo, Alberto Gomes viajou duas vezes a Barra do Garças
para denunciar o caso as autoridades, mas estas o ignoraram. Depois de quatro
meses, o trabalhador rural resolveu voltar para a sua posse com o apoio dos
vizinhos, os quais ajudaram a construir uma nova casa e novos serviços.
526
Ibidem, p. 4.
No mês de dezembro de 1979, a Piraguassu retomou as ameaças a
Alberto Gomes de Abreu, cercando a sua posse com arame farpado, assim, o
posseiro e sua família ficaram encurralados e, então, Alberto Gomes denunciou o
fato ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Luciara. Sob essa situação, Luiz
Carlos Machado527, conhecido como Luiz Bang, nos relatou da seguinte forma:

Quando foi em 1980528 o Nito era o gerente529 da fazenda


Piraguassu. Nito Japonês. Lá moravam o seu Augusto e o seu
Alberto530, e ele queria tomar e tirar os posseiros por tudo. Eu
conversei com o Raimundo, com o Zé Gonzalez e com o
Domingos Chicote. Se pagar para nós, nós saímos. Eu falei para
o Nito e ele pagou para eles e eles saíram. Aí ficaram o seu
Alberto e o seu Augusto. O Nito queria que eles saíssem. Eu
falei: esses aí não saem. Mas tem que sair! Eu falei: eu não vou
tirar eles não. Eu não vou ameaçar eles, não vou deixar eles
inibidos, pois esse pessoal mora aqui há mais de trinta anos e
eles não querem sair daqui e o direito é deles. Quando você
chegou aqui encontrou eles aqui. Aí ele pegou e veio falar para
mim: então você vai fazer uma cerca passando bem na porta do
seu Augusto e do seu Alberto. Eu peguei e falei para ele: eu não
vou fazer essa cerca. Então o senhor pega o trator e derruba
toda essa mata que está na frente da casa do seu Augusto e do

527
Narrou a sua trajetória de vida por meio de diversas migrações entre os estados de Goiás e Mato
Grosso. Chegou a Porto Alegre do Norte no final de 1977, e entre 1978 a 1979 trabalhou como
empreiteiro da FRENOVA. Entre 1985 a 1986 trabalhou para a Piraguassu como empreiteiro geral
na limpeza da área e plantação de cana de açúcar para a implantação de uma Destilaria (Gameleira
que teve seu nome alterado em 2005 para Destilaria Araguaia devido os casos de exploração de
trabalho análogo ao de escravo). Seu apelido foi dado por Silvana Carraro Carneiro (proprietária
da FRENOVA), pois segundo Luiz Carlos Machado, na década de 1970 era comum as pessoas
portarem armas como um acessório e o fato do mesmo ser alto, magro, usar chapéu, cinto e bota
lembrava os personagens dos filmes de Bang-Bang. Em 1992 foi eleito prefeito de Porto Alegre do
Norte. Já foi considerado o 5º pistoleiro mais perigoso do país, por envolvimento na prática de
grilagem de terras da União, e por isso prestou depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito
da Pistolagem entre 1991 e 1993 na Câmara Federal. O ex-prefeito, também foi envolvido com o
assassinato do ex-senador Olavo Pires (1990), morto num hotel de São Paulo, que era pré-
candidato a governador de Rondônia. Em 2006, Luiz Bang foi julgado e absolvido no caso em que
era acusado de mandar matar o ex-prefeito Rodolfo Alexandre Inácio, o Cascão, a esposa
Fernanda Macruz, e o amigo Avelino Pereira Coelho, em novembro de 1988. Em 2003 O ex-
prefeito também foi preso por exploração de trabalho escravo na Fazenda Cinco Estrelas, em Novo
Mundo (MT). Ele chegou a ser preso, mas solto logo em seguida. Foi preso em 2009 durante
Operação Pluma que combatia a prática de grilagem de terras no Vale do Araguaia. No mesmo
ano, voltou a ser preso sob suspeita de envolvimento em fraudes ao INSS. No dia 27/01/2017 foi
assassinado em sua chácara no município de Confresa/MT.
528
O fato narrado aconteceu em 1979.
529
O gerente era Keizo Tukuriki e o empreiteiro geral Samiyoshi Nito.
530
O caso narrado se refere ao posseiro Alberto Gomes de Abreu.
seu Alberto e vamos fazer um quadrado só para ficar fechada a
casa deles. Também não vou fazer. Aí ele pegou o trator para ir
desmatar. Eu me lembro disso como se fosse hoje. [...] Ele
[Alberto] sentado aqui em cima e eu sentado mais ele aqui, e o
Nito derrubando os matos. O seu Alberto com um
revolverzinho 22 na cintura. Ele rangia os dentes assim [fez a
expressão dos dentes rangidos]. Eu estou numa vontade de dar
um tiro daqui. Eu disse: não faz isso não. Ele vai embora e esse
mato que ele está desmantando fica para o senhor. O senhor
planta mandioca, planta capim. Deixa ele desmatar, pois ele está
gastando dinheiro da fazenda e não do senhor. Se o senhor der
um tiro nele as pessoas vão prender o senhor e o senhor já está
velho. Deixa ele fazer o que ele quer. [Alberto disse] Você sabe
que é mesmo.531

A narrativa de Luiz Bang o retrata como uma pessoa trabalhadora que


lutou muito na vida, tendo executado diversos serviços em diferentes lugares. O
seu propósito era se tornar rico por meio do seu trabalho; ele afirma ter se
transformado em um homem bem-sucedido, e assim conseguir formar os seus
filhos em diversas profissões. O entrevistado alega que ao propagar para os
posseiros que estes deveriam se desvincular da miséria através do trabalho,
provocou na equipe da Prelazia de São Félix do Araguaia, sobretudo em Dom
Pedro Casaldáliga, uma objeção aos seus valores, pois aquela Igreja pregava a
pobreza entre os seus fieis. Neste sentido, Luiz Bang atribuiu a Casaldáliga as
le me perseguiu muito [...] acusado por ele mesmo
de ter mandado matar aquele senador Olavo Pires lá em Rondônia, acusado de ter
cortado gente com motosserra lá no meu serviço, tudo pelo Pedro Casaldáliga por

Ao nos demonstrar que ao longo dos anos foi perseguido pela equipe
da Prelazia e, especialmente, por Dom Pedro Casaldáliga, em seu relato, Luiz
Bang se coloca como um mediador nos conflitos entre a Piraguassu e o posseiro
Alberto Gomes, mesmo que isso supostamente implicasse ter que contrariar as
ordens do empreiteiro geral, Samiyoshi Nito. A sua memória se entrelaça com a
memória coletiva para nos evidenciar que a partir do momento em que chegou a

531
Luiz Carlos Machado (Luiz Bang) entrevista de uma hora e dezenove minutos concedida à
autora, em 9 de fevereiro de 2016 no município de Confresa.
Porto Alegre do Norte, este possuía consciência de que os trabalhadores rurais
estabelecidos na região há mais de trinta anos tinham o direito sob as suas posses,
e a empresa deveria levar isso em consideração. Quando o entrevistado se reporta
a Alberto Gomes, este o descreve em um momento tomado pela raiva,
possivelmente tendo como objetivo atirar com o seu revólver no empreiteiro da
Piraguassu, mas Luiz Bang diz ter aconselhado o posseiro a não fazer tal ato e
aceitar como positivo o desmatamento da sua área pelo funcionário da
agropecuária. A testemunha se enaltece por mediar os conflitos e não se envolver
em agressões ou atos de expulsão dos posseiros, pois o seu papel era interceder ou
se abster junto às partes conflitantes para um resultado pacífico.
Em relação aos crimes dos quais foi acusado, bem como as suas
prisões, Luiz Bang se declarou inocente e injustiçado pelo poder judiciário e pelas
denúncias de Dom Pedro Casaldáliga. Neste sentido, as lembranças de Luiz
Carlos Machado são acionadas em um presente que traz à tona toda a sua
trajetória no Vale do Araguaia, assim, a sua memória também quis nos demonstrar
uma atuação heroica junto à população de Porto Alegre do Norte. Para nos
evidenciar a sua relação de mediador, ele expôs sobre a sua atuação como prefeito
de Porto Alegre do Norte, apresentando-nos uma gestão preocupada com a saúde,
educação e infraestrutura do município, diferentemente dos propósitos de pobreza
disseminados pela Prelazia de São Félix do Araguaia.
Desse modo, nos questionamos, cientes de que conforme Regina
Beatriz Guimarães Neto532 temos que estabelecer uma relação de criticidade aos
testemunhos orais, já que estes possuem diversos usos e interesses na construção
crítica da memória histórica. Esse ato implica em refletir se Luiz Bang tinha a
intenção de se afirmar na cena política e histórica do Araguaia como um sujeito
histórico que possui os mesmos atributos que Dom Pedro Casaldáliga, pois o
mesmo alega ter atuado na mediação dos conflitos entre os posseiros, tendo
consciência de que os trabalhadores rurais tinham direito sob as posses, da mesma
forma que a Igreja, realizou uma gestão municipal com mais competência que as
532
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política...
administrações anteriores desempenhadas pelo agente de pastoral Rodolfo Inácio
Cascão e posteriormente pelo posseiro Pedro Fernandes. Dessa forma, Luiz Bang
mostra que a sua história tem tanto protagonismo e mérito político quanto a
imagem propagada pela mídia sobre Casaldáliga, tal fato pode ser relacionado à
concepção de Guimarães Neto533, de que os testemunhos devem ser analisados
através da ideia de tempo e sua possibilidade de atualização no presente,
tornando-os compreensíveis e delegando a história a mediação crítica.
Ainda sobre o caso de Alberto Gomes de Abreu, o Sindicato de
Trabalhadores Rurais reuniu os posseiros no dia 16 de dezembro de 1979
juntamente com o Sr. Nito, empreiteiro geral da Piraguassu para discutir as
situações dos trabalhadores rurais, sobretudo de Alberto Gomes, cuja posse estava
encurralada por uma cerca construída pela agropecuária. Foi exigido que a
empresa suspendesse os serviços, mas não houve acordo. No dia 17, solicitaram
uma nova reunião, na qual os representantes da fazenda foram contrários à
suspensão das cercas534.
Diante da falta de acordo entre a empresa e os trabalhadores rurais,
estes resolveram no dia 18 de dezembro de 1979 realizar um mutirão para
suspender os serviços de cercamento da posse de Alberto Gomes. Quinze
posseiros utilizaram de uma caminhonete dirigida pelo agente de pastoral,
Rodolfo Inácio Cascão e foram em busca de uma resolução para os conflitos, o
empreiteiro Laudelino Evangelista aceitou o acordo, porém o jagunço Gildo
Mendes de Almeida, conhecido como Capixaba, não concordou, sendo então
assassinado pelos posseiros535. A redação do jornal Equipe assim descreve o fato:

Quando os posseiros chegaram à área, encontrava-se os


536
empreiteiro
recusou a atender o pedido, dizendo que só acatava ordens da
fazenda. Houve uma discussão entre as duas partes, com
533
Idem.
534
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 4, 1980, p. 5.
535
Idem.
536

pistoleiro.
tudo para atirar contra os posseiros. Segundo os próprios
envolvidos no episódio, o segundo tiro foi dado em Capixaba

entrevero, os posseiros retornaram à sede do distrito e,


temerosos de que os companheiros de Capixaba tentassem
vingá-lo, embrenharam-se na mata. Desde o dia do episódio, os
participantes do assassinato ficaram escondidos só retornando a
Porto Alegre depois que as autoridades policiais, que enviaram
reforços para o local, asseguraram que ninguém seria
molestado.537

Entretanto, o testemunho de Luiz Bang descreve a morte de Capixaba


da seguinte forma:

[...] tinha um cara trabalhando comigo que se chamava


Capixaba [...]. Aí ele [Nito] falou: Capixaba eu vou te empreitar
para você fazer 1 km de cerca para o seu Alberto não passar
aqui. O Capixaba falou para mim: o que você acha seu Luiz? Se
você for fazer essa cerca você vai morrer! Não eu não morro
não, porque eu também tenho coragem. Eu disse: você vai
morrer! Vamos supor 1 km de cerca na época custava R$
1.000,00, uma hipótese, então ele pagava R$ 10.000,00 para
fazer 1 km de cerca. O cara doido para ganhar dinheiro pegou a
cerca para fazer. Eu sai daqui em um Jeep que eu tinha que até
eu tinha comprado deles [Piraguassu] e vou para Porto Alegre
do Norte. Quando eu cheguei, pode ir reto e vai reto que vai ter
uma curva e naquela curva encontrei com a caminhonete do
Cascão que era o primeiro prefeito de Porto Alegre do Norte,
cheinha de posseiros! João da Angélica, João Ferreira, Chicão,
Terezino, Laranjinha. Eram uns doze dentro da caminhonete
uma C10. E o homem lá fazendo a cerca. Eles chegaram e
deram mais ou menos uns duzentos tiros nele e matou ele
[Capixaba]. Na época quem comandava, o povo fala a Prelazia
isso e aquilo, mas o que mais mandou matar gente aqui foi a
Prelazia.538

O relato de Luiz Bang se difere dos fatos narrados pelos jornais e


documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia. Novamente, a memória do
entrevistado o apresenta como um mediador nos conflitos em Porto Alegre do

537
LUTA, pela terra em Porto Alegre. Polícia já ouviu 14 indiciados mas não sabe quem matou
Capixaba. Equipe, Cuiabá, 10/01/1980, p. 3.
538
Luiz Carlos Machado (Luiz Bang) entrevista de uma hora e dezenove minutos concedida à
autora, em 9 de fevereiro de 2016 no município de Confresa.
Norte, pois alertou Capixaba sobre o perigo em executar o serviço da cerca na
posse de Alberto Gomes. A testemunha tem objeções em relação à imagem
vinculada da Prelazia como uma instituição mediadora na luta pela terra,
acusando-a de estar envolvida nos crimes praticados na região, ou seja, tal
posicionamento pode ser visto como mecanismos do depoente que possivelmente
são utilizados para engrandecer o seu discurso e dar uma maior importância e foco
a sua pessoa, em detrimento dos demais sujeitos históricos.
No dia seguinte, Porto Alegre do Norte foi tomada pela polícia civil
representada pelo delegado Estevão, escrivão de polícia, Waldemar e dois
policiais, todos vindos de Luciara. Instalou-se um clima de terror no povoado,
pois o aparato militar passou a desfilar armado no carro da agropecuária
Piraguassu conduzido pelo empreiteiro Samiyoshi Nito. Nessa ação prenderam o
agente de pastoral Rodolfo Inácio Cascão, acusando-o indiretamente de assassino,
já que o seu carro foi utilizado para levar os posseiros até a posse de Alberto
Gomes que culminou no assassinato de Capixaba. Foram realizadas buscas em

após, prenderam o Sr. Moacir, irmão de um dos posseiros envolvidos no


enfrentamento. Ele se recusou a ser preso e foi espancado pelos policiais539.
Nesse processo de intensificação das ocupações de imóveis
improdutivos por parte dos trabalhadores rurais e de resistência dos proprietários e
empresários rurais, foi, talvez, a fase em que a violência atingiu com maior
intensidade as lideranças mais expressivas dos trabalhadores rurais. Como afirma

540
.
Conforme a notícia do jornal Diário de Cuiabá, o deputado estadual
Dante de Oliveira relatou que a polícia atuou com o propósito de fazer uma

539
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 4, 1980, p. 6.
540
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Dimensões políticas da violência no campo. Tempo, Rio de
Janeiro, v. 1, p. 126-141, 1996, p. 137.
São Félix. Agiram baseados única e exclusivamente nos dados fornecidos pela
fazenda com o apoio da Associação dos empresários da Amazônia, para tentar
541
. Concomitantemente, cerca de
cinquenta posseiros de Canabrava do Norte vieram prestar apoio aos trabalhadores
rurais de Porto Alegre do Norte, assim estes solicitaram uma reunião de
emergência com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, e exaltados tentaram
derrubar a cadeia para retirar os companheiros presos. Então, propuseram uma
reunião com o delegado, mas ele recusou e mandou soltar dois presos, tomando o
depoimento do motorista da caminhonete como testemunha da morte do jagunço
Capixaba.
Diante da dessa situação, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais foi a Barra do Garças e em Cuiabá para denunciar os fatos aos jornais e
procurar apoio de deputados542 e da FETAGRI que se comprometeu a dar
assistência com um advogado. Conforme, Airton dos Reis Pereira543, por mais que
a luta fosse localizada, no entendimento da CPT e dos STRs, deveria exceder os
interesses locais e divulgar a resistência dos trabalhadores rurais pela terra não
apenas em âmbito local, mas também expressá-la em rede regional, estadual e até
nacional.
Dez dias após o assassinato de Capixaba, chegou a Porto Alegre do
Norte um corregedor ligado à Secretaria de Segurança Pública do Estado, um
tenente de Barra do Garças e quinze soldados. Eles vieram investigar o caso e
registrar o depoimento dos posseiros. Diante desse contexto, os trabalhadores
rurais resolveram permanecer foragidos na mata e a prestação dos depoimentos
ficou para o dia 5 de janeiro de 1980. Os depoimentos foram tomados sem
violência e até os soldados dispuseram das suas armas. Entretanto, cerca de cento
e cinquenta pessoas se colocaram vigilantes próximas à cadeia, dentre estas: os

541
TENSÃO, social se agrava em Porto Alegre do Norte. Cuiabá, Diário de Cuiabá, 10/01/1980, p.
10.
542
São citados nos documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia, o deputado federal Carlos
Bezerra e o deputado estadual Dante de Oliveira.
543
PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no sul e sudeste do Pará... p. 93.
presidentes dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de São Félix do Araguaia,
Nova Brasília544 e Luciara, equipe da Igreja, CPT e da Comissão de Justiça e Paz
de São Paulo545.
De acordo com Medeiros546, o ato dos trabalhadores rurais em
reivindicar os seus direitos tem como princípio colocá-los na cena política como
iguais, ou seja, portadores de direitos. Neste sentido, a atitude de empreender
resistências através de manifestações implica que os latifundiários, assim como o
governo têm que designar agentes onde apenas tinha espaço para o controle e a
dominação.
A emergência dos trabalhadores rurais, com as suas reivindicações,
colocando-se na cena pública como iguais, como portadores de direitos, implica
que os proprietários de terra tenham que aceitar outro interlocutor, pois de acordo

negociação e colocar em risco os privilégios e a capacidade de mando que se


547
. Esta seja, talvez, uma das principais
razões dos conflitos e da violência no campo, nessa parte do território amazônico.
Sob a ótica de João da Angélica, a morte de Capixaba pode ser
compreendida da seguinte forma:

Capixaba era o fiscal da fazenda. O Alberto morava mais o


velho Izídio. Eles iam à Barra e passava umas duas semanas e
vinham. Difícil, naquele tempo as estradas eram todas de chão,
o ônibus era difícil. Aí ia lá e não arrumava nada. O padre
Eugênio disse para ele: Rapaz ir lá não adianta. Vocês devem se
unir aqui mesmo. Então foi indo e a gente se unindo. E lá esse
Capixaba foi o seguinte: se reuniu todo mundo, eles
[Piraguassu] iam fazer uma cerca ao redor da casa do Alberto
que media uns cem metros. Ele [Alberto] ficava com os animais
e as galinhas tudo ali. Ele foi lá para suspender a cerca, para não
fazer. Então, eles [posseiros] agiram também. Derrubaram ele

544
Distrito de Nova Xavantina que fica distante 151 km de Barra do Garças.
545
Foi fundada pelo Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns em 1972. Vinculada à Arquidiocese de
São Paulo, sua atuação visava dar proteção aos perseguidos e familiares por meio da esfera
jurídica, ou, quando não era possível, direcionar conforto e esperança as vítimas.
546
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Dimensões políticas da violência no campo... p. 133.
547
Idem.
[Capixaba]. Defesa pura, mas naquela época a justiça não via as
nossas ações como defesas. Tinha a gente como uns bandidos, e
os bandidos vinham de fora, era a autoridade, os peões que eles
[agropecuárias] contratavam para trabalhar, mas chegavam aqui
eles colocavam para serem pistoleiros. [...] A polícia era pior
ainda! Naquele tempo era duro, porque o governo era ele que
decidia a história. Era assim, daquele jeito. Se nós não
tivéssemos se unido, botado mesmo junto, homem e mulher,
não tinha Porto Alegre. Eles iam fazer a sede da Piraguassu lá
na beira do rio.548

A narrativa de João da Angélica traça relações com as concepções


tecidas por Medeiros549, em que os trabalhadores rurais surgem na cena política
exigindo reconhecimento de direitos em diferentes circunstâncias, como é o caso
da ocupação de terra em Porto Alegre do Norte que culminou em fatos políticos
que tornaram visíveis essa necessidade, e para isso, estes sujeitos históricos
tiveram que confrontar as forças de jagunços e da polícia.
O entrevistado alega que as ações dos posseiros era apenas um ato de
defesa, mas os métodos de resistências eram caracterizados pelas autoridades
como formas de bandidagem, tendo uma agricultura atrasada e irracional, pois ser

apropriadoras como truculência, fraude, vagabundagem, furto ou arrogância em


resumo, todas as etiquetas planejadas para denegrir as muitas faces da
550
. A testemunha ainda afirma que sem a união de homens e
mulheres, não haveriam conseguido defender a área urbana de Porto Alegre do
Norte. De acordo com Karl Monsma551, a resistência cotidiana também provoca
mudanças sociais tão eficazes quanto os movimentos organizados.

548
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
549
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Dimensões políticas da violência no campo... p. 5.
550
SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa... p. 30.
551
MONSMA, Karl. James C. Scott e Resistência Cotidiana no Campo: uma avaliação crítica. BIB,
Rio de Janeiro, n. 49, jan/jun, 2000.
As narrativas tecidas ao longo desse capítulo demonstram que os
posseiros considerados antigos, ou seja, há mais de trinta anos estabelecidos na
região do Araguaia e os novos posseiros que chegaram a partir da década de 1970,
atraídos pelos slogans do governo militar em relação aos projetos de colonização
na Amazônia, passaram atuar em conjunto para garantir a permanência na terra. A
experiência desses indivíduos adveio do apoio da Prelazia de São Félix do
Araguaia, sobretudo de Dom Pedro Casaldáliga que por meio das suas denúncias
contribuiu para que a divulgação desses conflitos tomasse dimensões extra-locais,
essas ações os colocaram como sujeitos políticos e possuidores de direitos dignos
de serem amparados pelo Estado.
A modernização do campo implicou na aceleração da expropriação
dos trabalhadores rurais, esta entrou naquele espaço sem deixar de lado antigas
práticas, ou seja, o uso da violência, pois mesmo com o advento do Estatuto da
Terra e do Estatuto do Trabalhador Rural, estes direitos não foram concretizados
de fato no meio rural, tendo em vista que eles não foram respeitados e
desconsiderados pela elite agrária que desempenhou em demasia o uso da força e
do poder nas relações sociais da fronteira.
A partir da reação dos posseiros contra a tomada das suas terras pela
FRENOVA, e posteriormente pela Piraguassu, estas tiveram que reconhecer os
seus protestos e abrir espaço para negociação, abalando assim o longo histórico da
relação de mando e dominação dos latifundiários no meio rural brasileiro. A
atitude de resistir em suas terras e empreender uma luta para a sua posse efetiva,
denota a presença destes agentes no cenário político munidos pelo fato de serem
ouvidos a partir das redes que apoiavam as suas insatisfações, como: a Prelazia de
São Félix do Araguaia, sobretudo por Dom Pedro Casaldáliga, os agentes de
pastorais das comunidades eclesiais de base através do trabalho da CPT e dos
STRs dando visibilidade política as suas reivindicações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ofício do historiador consiste em questionar o passado para entender


o presente, isto é, a narrativa da história ocorre por meio das indagações que
fazemos no presente. As análises e reflexões que tecemos ao longo desta tese
tiveram como propósito apresentar as condições sociais dos trabalhadores rurais
de Porto Alegre do Norte através de fragmentos significativos que se opõem às
explicações causais e deterministas.
Diante das diversas experiências sociais é que observamos as suas
táticas de resistências na luta pela terra na Amazônia como um território de
disputa, em que nos leva a compreender como o espaço fundiário do Brasil se
delineia pela prática de violência contra os trabalhadores rurais, tendo as suas
ações como atores sociais, pertinentes de historicidade e válidas para a
composição da história do tempo presente.
Ao se tratar do período da ditadura-civil militar no Brasil, muitas
vezes são eleitos os sujeitos que constituíram a luta armada urbana, e as ações da
população do campo, a exemplo dos trabalhadores rurais, são silenciadas. Sob
essa perspectiva, buscamos demonstrar que esses agentes despontaram na cena
política como protagonistas, não apenas entendendo esses atos no passado, mas
demonstrando a sua persistência no presente. Este estudo traçou o histórico de
(re)ocupação da Amazônia, em especial do Araguaia mato-grossense, bem como a
possibilidade de análise da violação dos direitos humanos como elementos que
contribuem para a compreensão da História do Brasil.
Este trabalho se constituiu na análise da atuação dos diversos sujeitos
históricos de Porto Alegre do Norte trabalhadores rurais, religiosos, leigos,
agentes de pastorais, empresários rurais, funcionários das agropecuárias, jagunços,
pistoleiros, instituições do Estado e mediadores envolvidos na luta pela terra entre
os anos de 1970 a 1980 no Araguaia mato-grossense. Procuramos compreender os
conflitos, as estratégias traçadas, as resistências empreendidas pelos grupos
sociais estabelecidos no nordeste de Mato Grosso. Esta pesquisa não se delimitou
apenas na apresentação de uma narrativa histórica de posseiros versus
empreendimentos rurais, mas também no envolvimento de membros do Estado e
instituições de mediações na questão agrária de Porto Alegre do Norte, ampliando
a dimensão do conflito por meio da assimilação de diversos grupos em uma
espacialidade composta por múltiplas culturas, práticas e concepções. Neste
sentido, podemos perceber os significados tecidos sobre a luta pela terra e como
esta é representada pelos atores sociais que a vivenciaram.
Neste contexto, o termo posseiro ganhou novos significados políticos
e sociais como um mecanismo para legitimar a luta pela terra, pois os
enfrentamentos empregados contra a violência no processo de expulsão dos
trabalhadores rurais podem ser vistos como uma forma de resistência que auxilia
na compreensão da questão agrária durante o projeto de (re)ocupação da
Amazônia na década de 1970, e, que ainda tem os seus resquícios na atualidade.
O histórico de ocupação não indígena (posseiros, peões, jagunços,
padres, capatazes, agentes públicos, empresários rurais, etc;) no nordeste de Mato
Grosso remete ao início do século XX com os seguintes povoados: Furo de Pedra
(1909), Lago Grande, Crisóstomo, Santa Terezinha, Mato Verde (1934), São Félix
do Araguaia (1942) e Porto Alegre do Norte (1949). As análises direcionadas a
Porto Alegre do Norte nos aguçaram o interesse em entender como aquela
localidade desenvolvia o seu cotidiano de trabalho antes da chegada das empresas
agropecuárias: FRENOVA e Piraguassu na década de 1970. Entretanto, a maioria
dos documentos utilizados nessa tese é proveniente do Arquivo da Prelazia de São
Félix do Araguaia, e devido ao fato deste ter sido constituído somente após a
chegada de Dom Pedro Casaldáliga a região no final da década de 1960, o mesmo
não possui relatos sobre a sociabilidade dos trabalhadores rurais, o histórico de
migração, os modos de cultivo e criação, suas práticas culturais, entre outros.
Desse modo, recorremos aos testemunhos orais para nos dar a dimensão de como
Porto Alegre do Norte se constituiu em uma espacialidade desprovida de vias de
acesso terrestre até os anos de 1970.
Muitos migrantes instituídos em Porto Alegre do Norte no final da
década de 1940 são provenientes do sul do Pará, norte de Goiás (atual Tocantins)
e Maranhão. De acordo com os relatos orais e com a Carta Pastoral de Dom Pedro
Casaldáliga de 1971, esses indivíduos migraram para o Araguaia em sua maioria

das terras nos seus locais de origem, desejando se libertar dos laços de
dependências dos latifundiários, efetuando o emprego das suas técnicas de
agricultura que exigiam constantes mudanças, abandonando a fome e a seca, se
tornando dono do seu próprio trabalho, possuindo as suas terras, entre outros
motivos objetivos e subjetivos que impulsionaram os movimentos migratórios.
A migração implicou em um processo de violência, pois estes
indivíduos em sua maioria foram expulsos pelo o avanço do capitalismo no campo
dos lugares de origem que lhes conferiam identidade. Sendo válido lembrar que
ao migrar deixaram para trás todo um histórico de trabalho desenvolvido na antiga
posse e o estabelecimento em um novo espaço significava ter que abrir novamente
as áreas de criação e plantação, trabalho executado com alto grau de dificuldade,
tendo em vista que os trabalhadores rurais eram desprovidos de equipamentos
tecnológicos que auxiliassem na derrubada da mata, como por exemplo,
motosserras ou roçadeiras552, como também ter que conhecer e se habituar à nova
fauna e flora local, identificar um novo calendário climático para o plantio e
colheita dos alimentos, entre outros.
Os deslocamentos dessas famílias seguiam geralmente uma lógica de
planejamento traçada pela procura do patriarca por novas terras, este poderia
migrar juntamente com irmãos, cunhados e amigos para verificar a
disponibilidade de terras devolutas, ao encontrarem a área retornavam em busca
da família para o estabelecimento na nova posse.

552
A motosserra foi criada por Andreas Stihl, no ano de 1926 e pesava 56 quilos, sendo operada
por duas pessoas. Na década de 1930 passou a ser comercializada em toda a Europa. Em 1959 esta
foi aperfeiçoada e passou a pesar 12 quilos, nesse período também foi inventada a roçadeira. Na
década de 1950 esses produtos já eram vendidos no Brasil. Disponível em:
<http://www.revistarural.com.br/edicoes/item/6942-quarenta-anos-de-stihl-no-brasil>. Acesso em:
9 de abril de 2017.
Ao se constituírem nesses espaços passaram a desenvolver novos
laços de parentescos assinalados pelo compadrio e vizinhança, em que ocorria
uma afinidade mediada por uma relação à base de trocas, reciprocidade e
cooperação nos trabalhos, a exemplo dos mutirões no plantio e colheita do arroz.
A noção de pertencimento a uma localidade conferia aos trabalhadores rurais a
ideia de cooperação e ajuda mútua, como algo inerente ao fato de estarem
próximos fisicamente. Entretanto, é válido lembrarmos que a ação do mutirão não
está ligada exclusivamente ao sentimento de localidade, mas também a realidade
daqueles indivíduos em não possuírem ferramentas de trabalho avançadas,
necessitando assim da força coletiva. Além disso, procuramos assinalar nessa
pesquisa que o mutirão não foi algo exclusivo para a prática da agricultura, sendo
importante destacar que o desenvolvimento do sentimento de pertencimento a
Porto Alegre do Norte e ao grupo que estavam próximos, evidencia que a
manutenção desses laços de sociabilidade de compadrio e vizinhança foi essencial
nos atos de enfrentamentos contra as empresas agropecuárias FRENOVA e
Piraguassu, polícia local e outras instituições na luta pela terra no Araguaia mato-
grossense.
A (re)ocupação do nordeste de Mato Grosso ocorreu em três
momentos distintos: o primeiro no início do século XX por migrantes nordestinos
atraídos p
procura de terras férteis em que se pudesse praticar a agricultura de subsistência, e
assim, se libertar do domínio dos latifundiários dos seus locais de origem. O
segundo fluxo de ocupação ocorreu no final da década de 1960 por meio da
instalação das empresas agropecuárias no Araguaia (CODEARA e Suiá-Missu) e
a terceira movimentação migratória se deu por meio da instauração dos projetos
de colonização e assentamento, estimulando a migração de pessoas da região
Nordeste e Sul do Brasil. Tais projetos se formaram nos atuais municípios de
Confresa553 (empresa de colonização particular de mesmo nome), Água Boa,

553
Originalmente Vila Tapiraguaia. Confresa é referência à Colonizadora FRENOVA Sapeva. Esta
empresa era proprietária das Fazendas Reunidas Nova Amazônia, que abrangiam inúmeras
Canarana e Querência (COOPERCANA), Santa Cruz do Xingu (COREBRASA) e
Vila Rica (SERVAP).
Os subsídios oferecidos pelo governo militar, como também os
incentivos fiscais e o crédito com juros e taxas muito baixas oferecidas pelo
Banco do Brasil e pelo BASA, fizeram com que muitos empresários, até mesmo
distantes do ramo rural se interessassem pela a execução de projetos de
colonização, agropecuários, agrominerais, entre outros, na Amazônia. Assim, em
1971 a FRENOVA se estabeleceu em Porto Alegre do Norte, culminando em uma
série de conflitos marcados por ameaças e violências. A empresa que adquiriu a
área ciente de ocupantes com direito a posse se recusou a reconhecê-los, traçando
diversos mecanismos para a expulsão dos trabalhadores rurais que ocupavam as
terras há mais de trinta anos. No primeiro momento, Plínio Ferraz, gerente da
agropecuária passou a enviar notificações de despejos aos habitantes do povoado.
Muitos trabalhadores por não terem conhecimento dos seus direitos abandonaram
as suas posses ou venderam por preços abaixo do valor de mercado. Entretanto, se
as notificações não fossem acatadas utilizavam-se outras formas de pressões,
como, por exemplo, o envio de jagunços até as posses com avisos ameaçadores ou
com o uso da violência física, a queimada das roças, das casas e das benfeitorias e
o sacrifício das criações.
A Prelazia de São Félix do Araguaia tomou a frente das negociações e
passou a esclarecer aos posseiros que estes tinham direitos sob as posses de
acordo com o Estatuto da Terra de 1964 e pelo Decreto 70.430 de 17 de abril de
1972. Dom Pedro Casaldáliga juntamente com o padre Francisco Jentel passaram
a negociar com o prefeito de Luciara, José Liton Luz e o Diretor da FRENOVA,
João Carlos de Souza Meirelles a demarcação dos lotes dos posseiros. Assim,
Mesmo com a aprovação da desapropriação de uma gleba de 4.500 hectares para o
povoado de Porto Alegre do Norte, nenhuma providência foi tomada em prol dos

propriedades agropecuárias, além de uma destilaria. Atualmente a empresa denomina-se


FRENOVA Agropecuária Ltda. A Colonizadora Confresa era dirigida por José Carlos Pires
Carneiro e José Augusto Leite de Medeiros, mineiros estabelecidos em São Paulo.
posseiros, pois o próprio prefeito de Luciara ordenou que os mesmos deixassem
as suas posses e as entregassem à FRENOVA.
Diante da negativa dos trabalhadores rurais em abandonarem as suas
posses, a agropecuária passou uma cerca por todo o povoado limitando o direito
de ir e vir da sua população. Perante essa situação, os posseiros enviaram um
abaixo-assinado ao Presidente do INCRA, Dr. José de Moura e Cavalcanti, para
que o órgão pudesse interferir nos acontecimentos, pois a empresa estava
impedindo a sobrevivência da população local. O INCRA não interviu nos
conflitos, e, Dom Pedro Casaldáliga enviou cartas para diferentes órgãos/pessoas,
tais como: Capitão Moacir Couto - delegado regional da polícia militar de Barra
do Garças, Manuel Fernandes Encarregado de Assuntos Sociais do SNI, Dom
Fernando Gomes Arcebispo de Goiânia, ao Secretário de Segurança do Estado
de Mato Grosso, José de Moura e Cavalcanti Presidente do INCRA, e por fim,
ao senhor Osmar Jacintho Gerente da fazenda FRENOVA, para que estes
solucionassem os problemas de terras.
Dom Pedro Casaldáliga desenvolveu um enfrentamento não direto por
meio das denúncias na sua Carta Pastoral de 1971, das suas cartas enviadas a
diversas entidades/pessoas e a divulgação dos acontecimentos dos conflitos tanto
no âmbito interno e externo, como forma de assegurar aos trabalhadores rurais os
seus direitos sob as posses. Recorrer ao INCRA era o único meio de conseguir a
demarcação das terras dos posseiros, entretanto este órgão não dava respostas
concretas aos problemas daquela população.
No ano de 1972, o governo militar descobriu a Guerrilha do Araguaia
na região do Bico do Papagaio entre o sul do Pará e o norte de Goiás (atual
Tocantins), assim a área que compreende o município de Barra do Garças em
Mato Grosso até o a divisa com o estado do Pará, abrangendo toda a extensão da
Prelazia de São Félix do Araguaia se tornou uma zona de segurança nacional, e,
toda equipe pastoral, inclusive, o Bispo, foram enquadrados na Lei de Segurança
Nacional e acusados de subversão. Os conflitos entre os posseiros e a FRENOVA
foram associados às ações organizadas pelo PC do B no Bico do Papagaio. Desse
modo, em outubro de 1972, o Capitão Ailson Munhoz da Rocha Loper, membro
do Comando de Repressão da Amazônia, se infiltrou na Prelazia como um padre.
Ailson Loper passou a se relacionar com a sociedade de São Félix (comerciantes,
fazendeiros e políticos locais), e essa atitude despertou a desconfiança da equipe
da Prelazia que pressionou o militar a revelar a sua verdadeira identidade. Durante
a sua estadia na região, o Capitão instaurou atos de terror em Porto Alegre do
Norte ao prender três posseiros e o padre Eugênio Consoli, que foram levados e
detidos na sede da FRENOVA e ali submetidos a interrogatórios, humilhações e
vexames. O padre Francisco Jentel foi proibido de celebrar missas e Dom Pedro
Casaldáliga foi impedido de relatar na liturgia sobre os incidentes recentes.
Para garantir os investimentos dos grupos econômicos constituídos em
Porto Alegre do Norte, a violência passou a ser empregada contra os trabalhadores
rurais para que estes não impedissem o desenvolvimento das empresas rurais. O
Estado até então inoperante, apareceu para aquela população com o uso legítimo
da violência em prol dos interesses da FRENOVA, assim o poder militar foi
utilizado para efetuar expulsões, ameaças, intimações e assassinatos como práticas
repressivas aos posseiros.
Os conflitos de terras desenvolvidos no Araguaia desde o ano de 1967
(posseiros de Santa Terezinha x CODEARA) e durante o início da década de 1970
dos posseiros de Porto Alegre do Norte contra a FRENOVA fizeram com que a
área da Prelazia de São Félix do Araguaia, devido a proximidade com a região do
Bico do Papagaio se tornasse suspeita de envolvimento com a Guerrilha do
Araguaia no sul do Pará.
Em junho de 1973, o exército passou a empreender os atos de
violência contra a população da Prelazia de São Félix do Araguaia. A casa
pastoral foi invadida e revistada pelos militares, os moradores foram violentados e
leigos e agentes de pastorais sequestrados e torturados no Quartel da 14ª Polícia
do Exército na cidade Campo Grande/MS. A exposição das narrativas de tortura
foi importante para que a história oficial não silencie essas experiências que
envolvem a face da violência emitida pela Ditadura Militar no Brasil. Desse
modo, o Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia é aberto aos
pesquisadores, diferentemente de outros espaços que não permitem o acesso aos

divulgação da memória e o silenciamento a respeito da repressão militar, estes


estarão colaborando para a política de esquecimento e negação em relação às
ocorrências de casos de tortura durante o período ditatorial na América Latina.
Os testemunhos das vítimas são indesejáveis, pois de acordo com a
memória oficial, estas almejam apenas se vigarem ao trazer à tona um período que
deveria ser esquecido. Entretanto, o pesquisador que oportuniza as testemunhas
apresentarem as suas narrativas, estabelece uma sobrevida para aquelas que
voltam de uma experiência traumática.
A presente tese também deseja assinalar que a história do Brasil trata a
ditadura militar, preferencialmente em relação à repressão dos grupos armados nas
grandes capitais, sobretudo do Sudeste do país. Neste sentido, a Guerrilha do
Araguaia ainda tem pouca expressão no âmbito acadêmico, e a sua relação com
Mato Grosso provavelmente pode ser nula. Assim, voltamos a questionar se é
possível conhecer a História do Brasil apenas pela espacialidade Rio-São Paulo.
Imaginamos que as narrativas ditas nacionais devem tecer um diálogo com outras
narrativas que lhes auxiliam na compreensão da História do Brasil.
A Prelazia de São Félix do Araguaia foi uma instituição legitimadora
das resistências dos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte como providos
de direitos sob as suas posses. Entretanto, esta Igreja, juntamente com Dom Pedro
Casaldáliga, passou a ser vista pelo Estado não como mediadora na luta por terra e
sim como um problema de segurança nacional, tendo em vista que o governo
ditatorial a considerava subversiva e incitadora dos conflitos no campo. Os
conflitos não se deram apenas entre os posseiros e as agropecuárias, mas também
entre as instituições de mediação e os órgãos do Estado no Araguaia. A Igreja
tinha dois objetivos: a) manter o trabalhador rural na terra, legitimando o seu
acesso à mesma por meio da agricultura familiar de subsistência; b) uma
comunidade cristã em que os problemas sociais, políticos e econômicos estavam
ligados à atuação das suas pastorais. As denúncias realizadas por Dom Pedro
Casaldáliga deram amplitude e divulgação extra local dos conflitos por terra no
Araguaia, assim os trabalhadores rurais imergiram na cena política como agentes
reivindicantes por acesso a terra.
As estratégias de resistências traçadas pelos trabalhadores rurais na
luta pela terra em Porto Alegre do Norte foram essenciais para a conquista da
posse, mesmo que esta muitas vezes não tenha contemplado a delimitação que o
INCRA lhe conferia como de direito, ou seja, o módulo mínimo de 100 hectares
para exploração agrícola. Muitos posseiros obtiveram a demarcação das suas
posses em 50 hectares devido as artimanhas empregadas pelos funcionários da
Piraguassu juntamente com a conivência do Estado (prefeitura, INCRA, oficiais
de justiça, polícia estadual e militar).
Identificamos ao longo dos relatos orais e da documentação da
Prelazia de São Félix do Araguaia que os atos dos mutirões guiados pelas
concepções de vizinhança e compadrio auxiliaram na disseminação de um
sentimento de grupo, bem como a compreensão de que estes possuíam direito
sobre as terras os colocaram como agentes políticos na luta pela terra em Porto
Alegre do Norte. Podemos observar que os núcleos de ocupações propiciaram as
ações de solidariedade, demonstrados pelos mutirões; assim, a manutenção desses
laços de sociabilidade foi essencial para a constituição dos enfrentamentos contra
as empresas agropecuárias que se estabeleceram na região a partir da década de
1970.
Após a abertura das rodovias federais, a exemplo da BR 158 em Porto
Alegre do Norte, o fluxo de migrantes à procura de terra e trabalho para a região
aumentou. Esses indivíduos caracterizados como novos posseiros assumiram a
luta pela terra junto com os antigos posseiros. Entretanto, conforme os
documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia, somente os posseiros
estabelecidos no povoado antes da instalação da Piraguassu, em 1975, tiveram
direito à demarcação das suas posses.
Diversas estratégias de resistências foram traçadas na luta pela terra
pelos trabalhadores rurais, dentre elas: o corte das cercas das agropecuárias, as
denúncias em jornais e órgãos, o conhecimento das leis que resguardavam os seus
direitos como mecanismos de contestação quanto à delimitação das suas posses,
empreender fugas na mata, atos de espertezas, e, por fim, o enfretamento direto
que culminou no assassinato do jagunço da Piraguassu. Portanto, os trabalhadores
rurais não devem ser vistos como agentes passivos e vítimas desse contexto, pois
desenvolveram variadas formas de resistências pressionando o Estado em relação
aos seus interesses. A violência também foi um mecanismo para se defender das
ameaças dos empresários rurais, dos pistoleiros e da polícia local conivente com
as ações das agropecuárias, ou seja, nesse cenário o conflito e a violência tomaram
nuanças de atos políticos para a conquista da terra.
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Norte.

ARAÚJO, Maria Zenaide. Entrevista de duas horas e dois minutos concedida à


autora, em 6 de fevereiro de 2016 na cidade de Porto Alegre do Norte.

EGLIN, Odile. Entrevista de uma hora e vinte minutos concedida à autora, em 6


de fevereiro de 2016 na Aldeia Tapirapé no município de Confresa.

LIMA, João Souza (João da Angélica). Entrevista de uma hora e quatro minutos
concedida à autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do
Norte.
MACHADO, Carlos (Luiz Bang). Entrevista de uma hora e dezenove minutos
concedida à autora, em 9 de fevereiro de 2016 no município de Confresa.

MILHOMEM, Erotildes da Silva. Entrevista de cinquenta e quatro minutos


concedida à autora, em 06/12/2014 na cidade de São Félix do Araguaia.

SILVA, Ataíde da (Altair). Entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos


concedida à autora, em 02 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do
Norte.

Filmografia

CAMPONESES do Araguaia: a Guerrilha vista por dentro. Direção: Vandré


Fernandes. 2010. 01:13:00.

DESCALÇO sobre a terra vermelha. Direção: Oriol Ferrer. 2012. 02:36:00.

HUMILHAÇÃO e a dor, A. Direção: Renato Tapajós. 1996. 0:31:38.

MEMÓRIA para uso diário. Direção: Beth Formaggini. Documentário. 4 ventos,


Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, União Europeia: Brasil, 2007. 01:20:47.

QUE bom te ver viva. Direção: Lúcia Murat. 1989. 00:48:42.


ANEXOS
Figura 1: Mapa do Estado de Mato Grosso com destaque para as
Mesorregiões e Microrregiões.

Fonte:
https://www.google.com.br/search?q=meso+microrregioes+mt&source=lnms&tb
m=isch&sa=X&ved=0ahUKEwj-
xeuoks_TAhUEyyYKHbIHAjsQ_AUIBygC&biw=1366&bih=613#imgrc=kolKt
9MWnL2WlM:. Acesso em: 1 mai. 2017.
Figura 2: Mapa com destaque dos municípios que compõem a Prelazia de
São Félix do Araguaia.

Fonte: <http://prelaziasfaraguaia.wixsite.com/prelazia/historia-e-missao>. Acesso


em: 1 mai. 2017.
Tabela 1. Municípios que formam o território do Araguaia Mato-grossense e
ano de criação.

Município Ano de Criação Distância para Cuiabá


(Km)

Alto Boa Vista 1993 1.063,50

Bom Jesus do Araguaia 1999 1.027,90

Canabrava do Norte 1993 1.132,50

Confresa 1993 1.165,50

Luciara 1963 1.166,50

Novo Santo Antônio 1999 1.118,00

Porto Alegre do Norte 1986 1.127,50

Querência 1993 912,70

Ribeirão Cascalheira 1989 877.60

Santa Cruz do Xingu 1999 1.021,00

Santa Terezinha 1980 1.313,50

São Félix do Araguaia 1976 1.143,00

São José do Xingu 1993 1.158,00

Serra Nova Dourada 1999 1.046,00

Vila Rica 1986 1.260,50

Distância Média -- 1.106,20

Fonte: SEPLAN MT, 2005. Disponível em:


http://www.seplan.mt.gov.br/arquivos/A_f7d8a74ea3c43ffb50c8eae68f6f985dInf
ormativo%20Socioeconomico.pdf. Acesso: 03 jul. 2010.
Tabela 2. Projetos Agropecuários aprovados pela SUDAM no Araguaia
Mato-grossense.

Nome da Fazenda Área em Incentivos fiscais Cr$


hectares

Agropecuária Suiá-Missu 695.843 7.878,000

CODEARA (Cia. De Desenvolvimento do Araguaia 129.497 16.066,900

SAPEVA (Sociedade Agropec. Vale do Araguaia 72.567 6.208,686

Agropecuária Campo Verde 64.819 6.565,129

COREBRASA (Colonização e Representação do Brasil) 52.272 3.130,000

AGROPASA (Agropecuária do Araguaia) 48.165 7.122,208

Agropecuária Bela Vista 36.125 4.390,924

Agropecuária Santa Silvia 35.574 3.028,000

Sociedade Agropecuária Brasil Central 31.110 3.729,142

Buritizal Agropecuária 30.621 3.939,638

Tracajá Agropecuária 29.880 3.798,133

AGROINSA (Agropec. Califórnia Com. E Indústria) 29.831 3.142,165

APEME (Agropecuária Alvorada Mato Grosso 29.703 4.332,496

Elagro Pecuária 29.466 6.459,426

Agropecuária Tapirapé 27.614 3.109,694

Cia. De Desenvolvimento Agropecuário de MT 26.824 2.342,725

Agropecuária Guanabara 25.800 4.398,889

Agropecuária Tamakavy 24.999 5.144,623

COLBRASA (Coloniz. e Representações Brasileiras 24.969 6.774,833


Agropecuária Roncador 24.251 5.369,188

Cia. Agro-Pastoril Sul da Amazônia 24.200 4.288,877

Agropecuária Duas Âncoras 23.005 4.191,575

Tapiraguaia Agrícola e Pecuária 21.923 2.519,404

Rancho Santo Antônio 21.780 4.788,884

Agropecuária São Francisco do Xingu 21.000 3.921,364

Agropecuária Três Marias 20.000 3.505,768

Agropecuária Tatuibi 19.936 5.973,970

Tabaju Agropecuária 19.931 3.019,474

Agropecuária São José 19.915 4.960,318

Companhia Agropecuária Sete Barras 19.360 6.320,477

Agropecuária Santa Rosa 19.360 3.968,033

Agropecuária 7 de Setembro Ltda 18.582 2.025,620

Rio Fontoura Agropecuária 14.864 3.754,920

AGROPEMA (Agropecuário Médio Araguaia) 11.370 4.288,877

FAASA (Fazenda Associadas do Araguaia) 10.000 1.413,188

Joçaba Agropecuária 9.744 1.417,255

CODESGA (Cia. de Desenvolvimento Garapu) 9.000 3.207,265

Empresa Agropecuária Ema 8.952 1.514,838

Agropecuária Colorado 5.413 1.526,140

Santa Luíza Agropecuária 4.930 1.959,037

Agropecuária Duas Pontas ------- 812, 719

FRENOVA (Agropecuária Nova Amazônica) ------- 4.872,318


Agropecuária Cocal ------- 4.235,909

Agropecuária São João da Liberdade ------- 6.213,140

Agropecuária Rio Manso ------- 2.307,809

Agropecuária Remanso Açu ------- 2.989,015

Cia. Agrícola e Pastoril São Judas Tadeu ------- 5.955,380

CIAGRA (Cia. Agro-Pastoril Aruanã ------- 5.975,784

Fazenda Nova Quênia ------- 2.115,148

Independência Agropecuária ------- 1.460,546

Noideri Agropecuária ------- 2.66,771

Nativa Agropecuária ------- 1.593,654

Norte Pastoril Mato-Grossense ------- 5.881,454

Paubrelândia Agro-Pastoril do Brasil Central ------- 1.913,721

TOTAIS 2.166.189 261.647,972

Fonte: SUDAM apud BARROZO, João Carlos. Os assentados e os assentamentos


rurais do Araguaia. In: HARRES, Marluza Marques; JOANONI NETO, Vitale
(Orgs.). História, Terra e Trabalho em Mato Grosso: Ensaios Teóricos e
Resultados de Pesquisas. São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT,
2009, p. 108-109.

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