Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
Este trabalho analisa a luta pela terra em Porto Alegre do Norte, no nordeste do
estado de Mato Grosso, entre as décadas de 1970 e 1980. Tem como objeto de
estudo os conflitos e as violências decorrentes da expulsão de posseiros pelas
empresas agropecuárias FRENOVA e Piraguassu, estabelecidas naquele
município durante a década de 1970, através das políticas de ocupação da
Amazônia pelo Governo Ditatorial. Estes empreendimentos foram sobrepostos em
meio às terras de trabalhadores rurais que residiam na região desde a década de
1940, assim, ocorreram as disputas por terras entre estes indivíduos e os
empresários rurais provenientes do Centro-Sul do país. A Prelazia de São Félix do
Araguaia, juntamente com os agentes de pastorais, leigos, religiosos e o bispo
Dom Pedro Casaldáliga, agiu como mediadora no processo de luta pela terra,
recorrendo aos poderes públicos (Polícia Militar e Federal e ao INCRA), bem
como aos proprietários das fazendas e funcionários para que estes pudessem entrar
em acordo para demarcar as terras dos posseiros de Porto Alegre do Norte. Este
processo acarretou, num primeiro momento, uma negociação pacífica
intermediada por Dom Pedro Casaldáliga junto à FRENOVA, posteriormente as
resistências e os conflitos dos posseiros contra a expulsão das suas posses
colocaram a área da Prelazia de São Félix do Araguaia sob suspeita de manter
elementos subversivos na sua jurisdição e estar aliada à Guerrilha do Araguaia,
descoberta no ano de 1972 na região do Bico do Papagaio entre o sul do Pará e
norte de Goiás (atual Tocantins). Desse modo, no ano de 1973, religiosos, leigos e
agentes de pastorais foram sequestrados e presos no Quartel da 14ª Polícia do
Exército na cidade Campo Grande/MS, onde vivenciaram dias de horrores e
torturas. A luta pela terra também envolveu pistoleiros, Polícias Militar e Federal,
Exército e Igreja Católica, produzindo na questão agrária em Porto Alegre do
Norte uma espacialidade demarcada pela resistência e estratégias dos
trabalhadores rurais para a permanência nas suas posses.
This paper analyzes the struggle for land in Porto Alegre do Norte in northeastern
Mato Grosso, between the 1970s and 1980. Its object of study conflicts and
violence resulting from squatter eviction by agribusinesses - FRENOVA and
Piraguassu established in that city during the 1970s, through the Amazon
occupation policies by the Government Dictatorial. These projects were
overlapping among the lands of rural workers living in the area since the 1940s,
so there were disputes over land between these individuals and rural entrepreneurs
from the Central South. The Prelature of São Félix do Araguaia, together with
pastoral agents, lay, religious and Bishop Pedro Casaldáliga, acted as a mediator
in the process of struggle for land, using public powers (Military and Federal
Police and the INCRA) and as to the ranch owners and employees so that they
could enter into an agreement to demarcate the lands of squatter Porto Alegre do
Norte. This process resulted initially in a peaceful negotiation brokered by Dom
Pedro Casaldáliga next to FRENOVA, posteriorly the problems and conflicts of
squatters against the expulsion of his possessions put the area of the Prelature of
São Félix do Araguaia under suspicion this keep subversive elements in their
jurisdiction and be combined with the Araguaia guerrilla movement, discovered in
1972 in the region Parrot's beak between southern Pará and northern Goiás (now
Tocantins). Thus, in 1973, religious, laity and pastoral agents were kidnapped and
imprisoned in the barracks of the 14th Army Police in the city Campo Grande /
MS, where experienced days of horror and torture. The struggle for land also
involved gunmen, Police Military and Federal Army and the Catholic Church,
producing the agrarian issue in Porto Alegre do Norte one spatiality marked by
resistance and strategies of rural workers to stay in their possessions.
Keywords: Prelazia de São Félix do Araguaia. Porto Alegre do Norte. Violence
in the Countryside. Squatters.
DEDICATÓRIA
MO Movimento Operário
INTRODUÇÃO .............................................................................................................18
2.5 Porto Alegre do Norte sob suspeita de atos guerrilheiros ......................... 142
BIBLIOGRAFIA................................................................................................ 292
Sites................................................................................................................... 308
ANEXOS ......................................................................................................................311
INTRODUÇÃO
1
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1987, p. 223.
2
Remetemos ao processo de (re)ocupação para demonstrarmos que a Amazônia já era ocupada por
etnias indígenas e povos da floresta, antes da entrada das empresas agropecuárias e projetos de
colonização implantados durante a ditadura civil militar no Brasil, a qual alegava que o interior do
país, ou seja, a Amazônia Legal era considerada como espaços vazios. A respeito, consultar:
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil
contemporâneo. Cuiabá: UNICEN, 1986.
viajar para o norte de Mato Grosso, pude perceber que as configurações urbanas
daquelas cidades eram bem diferentes da capital do Estado. As ruas são largas e
planejadas, com praças e jardins nos centros das cidades, as pessoas em sua
maioria tinham origem dos Estados do Sul do Brasil. Com apenas dezessete anos,
aquelas particularidades me chamaram muito a atenção. Assim, ao entrar no curso
de História, conheci o Professor Vitale Joanoni Neto, que me convidou para fazer
parte de uma viagem a campo, financiada pela FAPEMAT, juntamente com o
professor João Carlos Barrozo e a equipe de pesquisadores da professora Júlia
Adão Bernardes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Passamos quinze dias
do mês de julho de 2007 conhecendo e pesquisando os municípios3 ao longo da
BR 158.
Em decorrência das inquietações e curiosidades que eu tinha desde
adolescente sobre o processo de (re)ocupação recente do estado de Mato Grosso, a
viagem realizada pela BR 158 direcionou o meu olhar primeiramente como
pesquisadora VIC para o Projeto de Colonização da cidade de Canarana na década
de 1970. Como bolsista PIBIC no ano de 2008, passei a pesquisar sobre a
violência no uso do trabalho análogo ao de escravo pelas empresas agropecuárias
estabelecidas no Araguaia mato-grossense a partir da década de 1970. A violência
contida nas relações trabalhistas no nordeste de Mato Grosso também foi
3
A viagem a campo ocorreu nos seguintes municípios do nordeste de Mato Grosso: Água Boa,
Canarana, Confresa, Porto Alegre do Norte, Ribeirão Cascalheira, Santa Terezinha e Querência.
4
Após a defesa da dissertação no ano de 2012, ingressei como bolsista no Projeto Ação
Interinstitucional para a Qualificação e Reinserção Profissional dos Trabalhadores Resgatados do
Trabalho Escravo e/ou Situação de Vulnerabilidade, parceria entre Ministério do Trabalho e
Emprego de Mato Grosso (SRTE/MT), Ministério Público do Trabalho, através da Procuradoria
Regional do Trabalho 23ª Região (PRT/MT), e UFMT, representada pelo GPHTT, coordenado
pelo professor Vitale Joanoni Neto. Ao ingressar no Doutorado em História no ano de 2013,
para o uso de mão de obra de egressos do trabalho
análogo ao escravo em atividades de construção civil a partir da experiência da Arena Pantanal em
5
Conforme informações contidas da carta pastoral de Dom Pedro Casaldáliga, o decreto de criação
da Prelazia de São Félix do Araguaia, denominado de "Quo commodius", foi assinado por Paulo
VI, no dia 13 de março de 1970, estabelecendo os limites estritos da Prelazia de São Félix: "Ao
norte, os confins da Prelazia de Conceição do Araguaia, que atualmente delimitam os estados do
Pará e Mato Grosso; ao leste, os confins da Prelazia de Cristalândia, e ao oeste os da Prelazia de
Diamantino, ou seja, os rios Araguaia e Xingu; ao sul, a linha traçada em direção noroeste desde a
confluência dos rios Curuá e das Mortes; e daí em linha reta até a confluência dos rios Couto de
Magalhães e Xingu". A Prelazia de São Félix abrange 150.000 km² dentro da Amazônia Legal, no
nordeste de Mato Grosso, e com a Ilha do Bananal. CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da
Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. São Félix do Araguaia, 1971, p.
4.
6
No ano de 2010, em que eu escrevia a minha dissertação de Mestrado, o estado de Mato Grosso
ocupava o sexto lugar do ranking na lista de empregadores que contratam trabalhadores em
municípios mato-grossenses: em Várzea Grande, Poconé, Novo São Joaquim, Alto Garças, Santa
Terezinha, Paranatinga, Confresa, Porto dos Gaúchos, Nova Bandeirantes, Nova Ubiratã e Novo
Mundo. Disponível em: <http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=74636>. Acesso
em: 08 jan. 2016.
7
Ao longo da escrita desta tese iremos utilizar o termo trabalhador rural para designar de modo
geral, os homens e as mulheres que participaram na luta pela terra em Porto Alegre do Norte.
Microrregião8 do Norte Araguaia9, a cidade de Porto Alegre do Norte aguçou o
meu interesse em estudar a trajetória das migrações para a Amazônia, o processo
de luta pela terra e a mediação da Prelazia de São Félix do Araguaia10, juntamente
com Dom Pedro Casaldáliga11 na resolução dos conflitos entre os
empreendimentos rurais e os posseiros12.
Em relação à espacialidade descrita acima, é importante destacar que
ao longo da tese utilizarei o termo região para denominar as áreas tanto de
deslocamento migratório de famílias quanto a de estabelecimento das empresas
agropecuárias na Amazônia e Araguaia mato-grossense. Apoio-me nas categorias
espaciais de região formuladas pelo IBGE, que define o nordeste de Mato Grosso
8
Em 1987, o IBGE elaborou o estudo da Divisão Regional do Brasil em Mesorregiões e
Microrregiões Geográficas para fins estatísticos em substituição à Divisão Regional em
Microrregiões homogêneas editadas pelo Instituto em 1968. Na década de 1990, o IBGE definiu as
Mesorregiões Geográficas como conjuntos de municípios contíguos, pertencentes à mesma
Unidade da Federação, e as Microrregiões Geográficas como conjuntos de municípios contíguos
integrantes das mesorregiões que apresentam especificidades, quanto à organização do espaço do
quadro natural e sobre as relações sociais e econômicas que compunham a vida de relações locais.
IBGE. Divisão Regional do Brasil em Mesorregiões e Microrregiões Geográficas, v.1. Rio de
Janeiro, 1990.
9
A Microrregião do Norte Araguaia é composta pelos municípios de Santa Cruz do Xingu, Vila
Rica, Confresa, Santa Terezinha, Porto Alegre do Norte, São José do Xingu, São Félix do
Araguaia, Canabrava do Norte, Luciara, Alta Boa Vista, Serra Nova Dourada, Bom Jesus do
Araguaia, Novo Santo Antônio e Ribeirão Cascalheira. A Mesorregião do Nordeste Mato-
Grossense é uma das cinco Mesorregiões do estado de Mato Grosso. É formada pela união de 25
municípios agrupados em três Microrregiões que são: Canarana, Médio Araguaia, Norte Araguaia.
Ver em anexos: Mapa (Figura 1) de Mato Grosso com as Mesorregiões e Microrregiões.
10
A Prelazia é composta por quinze municípios: Santa Cruz do Xingu, Vila Rica, Confresa, Santa
Terezinha, Porto Alegre do Norte, São José do Xingu, São Félix do Araguaia, Canabrava do Norte,
Luciara, Alta Boa Vista, Serra Nova Dourada, Bom Jesus do Araguaia, Novo Santo Antônio,
Ribeirão Cascalheira e Querência (este último faz parte da Microrregião Canarana). Ver anexo o
Mapa (Figura 2) com o destaque dos municípios.
11
Dom Pedro Maria Casaldáliga nasceu em Balsareny, cidade da Província Catalã de Barcelona, no
dia 16 de fevereiro de 1928; Casaldáliga ingressou na Ordem Claretiana, consagrada às missões,
onde foi ordenado sacerdote em 1943. No ano de 1968, Dom Pedro Casaldáliga veio para o
Araguaia mato-grossense como missionário para assumir as responsabilidades pastorais. Sentiu-se
convocado, diante dos problemas encontrados, além das diligências religiosas, investiu tempo e
energia na organização de indígenas e posseiros e nas denúncias das violações dos direitos
humanos que estes e os peões sofriam. Em 1971, ordenaram-no Bispo da Prelazia de São Félix do
Araguaia. Em 2003, ao completar 75 anos, Casaldáliga apresentou seu pedido de renúncia à
Prelazia, como exige o Vaticano de todos os Bispos, exceto ao de Roma, o papa.
12
Para Miranda, o conceito de posseiro, no Direito brasileiro, é todo trabalhador rural que,
independente de justo título e boa-fé, apossa-se de imóvel rural, público ou privado, tornando-o
produtivo com o seu trabalho e nele tiver morada habitual. MIRANDA, Alcir Gursen de. Direito
Agrário e o Posseiro. Revista da Faculdade de Direito UFG, Goiânia, v. 12, n. ½, p. 113-123,
jan./dez. 1988, p. 122.
como a Microrregião Norte do Araguaia, bem como o norte do Estado com os
municípios que integram a Amazônia Legal.
A delimitação de uma região é um processo delicado para a geografia,
pois a sua organização implica a homogeneização de determinados aspectos que
sejam distintos de outros. Para Pierre Bourdieu13, a região é uma representação
que depende do conhecimento e reconhecimento daqueles que a projetaram. O
autor ainda demonstra que existem diversos elementos que estabelecem a divisão,
classificação e interação dos espaços, assim, a definição científica de região está
13
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: DIFEL, 1989.
(Grifo do autor).
Mapa 1: Prelazia de São Félix do Araguaia em relação ao estado de Mato Grosso e ao Brasil.
Os estudos sobre os processos migratórios para o nordeste de Mato
Grosso14 apontam que estes foram realizados ao longo do início do século XX,
criando diversos povoados, tais como: Furo de Pedras (1909), Lago Grande,
Crisóstomo, Luciara (1934), São Félix do Araguaia (1942) e Porto Alegre do
Norte (1949). A respeito dos povos indígenas que ocupavam a região, Soares15
demonstra que, até o final do século XIX, o Vale do Araguaia, entre os rios
Tapirapé ao norte, Araguaia ao leste, Xingu ao oeste e o das Mortes ao sul, era
território ocupado pelos povos Karajá, Kayapó, Xavante e Tapirapé16. A partir da
primeira década do século XX, ocorreu um complexo contato interétnico entre os
posseiros e as sociedades indígenas ali estabelecidas.
As sociedades indígenas Xavante, Karajá, Tapirapé e Kayapó eram
rivais e entraram em constantes conflitos. Os Kayapó são muito temidos pelos
Karajá e Tapirapé. Na década de 1940, os Kayapó atacaram a grande aldeia dos
Tapirapé, saquearam e mataram a população. Os seus sobreviventes procuraram
abrigo junto à população não indígena do Vale do Araguaia. A partir da década de
1950, os Tapirapé reestruturaram a sua sociedade e obtiveram um aumento
populacional de 629 pessoas no ano de 2010, conforme os dados apresentados por
SOARES17. Os Tapirapé atualmente vivem em duas áreas indígenas situadas no
nordeste do estado de Mato Grosso: Terra Indígena Urubu Branco, onde estão
localizadas seis aldeias, e Terra Indígena Tapirapé-Karajá, como também uma
aldeia na qual a maior parte da população se identifica como Apyãwa (Tapirapé) e
14
A respeito, consultar: NUNES, Carla Soraya Ribeiro. Novos olhares sobre a colonização de
Confresa (1970-1980). In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra
na fronteira amazônica (século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010.
SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos: povoamento não indígena no Vale do
Araguaia, parte Nordeste do Estado de Mato Grosso, na primeira metade do século XX. In:
BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica
(século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010. SOUZA, Maria Aparecida
Martins. A luta pela permanência na terra: a resistência dos posseiros de Santa Terezinha. In:
BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica
(século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010.
15
SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos: povoamento não indígena no Vale do
Araguaia, parte Nordeste do Estado de Mato Grosso, na primeira metade do século XX. In:
BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na fronteira amazônica
(século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010, p. 269.
16
Sobre os índios Tapirapé: IRMÃNZINHAS DE JESUS. O renascer do povo Tapirapé: O diário
das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld - Irmãzinhas de Jesus. São Paulo: Salesiana,
2002. RAMOS, Polyana Rafaela. Povo Tapirapé: práticas agrícolas e meio ambiente no cotidiano
da aldeia Tapi'itãwa. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais). Cáceres: Universidade
Estadual de Mato Grosso, 2014.
17
SOARES, op. cit., p. 271.
algumas famílias pertencentes ao povo Iny (Karajá), havendo também outras
aldeias em que moram homens Apyãwa casados com mulheres Iny18.
A Terra Indígena Urubu Branco possui 167.533 hectares, situada nos
municípios de Santa Terezinha, Confresa e Porto Alegre do Norte, no estado de
Mato Grosso, sendo reconhecida como território tradicional dos Tapirapé em
1996, por intermédio da Portaria nº 599, de 02 de outubro, e homologada pelo
Decreto Federal não numerado em 08 de setembro de 199819.
A vinda das Irmãzinhas de Jesus20 e do padre Francisco Jentel foi o
que protegeu os Tapirapé da extinção. As missionárias juntaram-se aos Tapirapé e
atualmente vivem entre eles, contribuindo para o processo de reconstituição dessa
etnia.
Em relação aos deslocamentos migratórios para a Amazônia, estes
decorrem de vários fatores, tais como: a seca, a libertação dos laços de
dependência das propriedades de latifundiários/coronéis, as técnicas da agricultura
camponesa, como a roça de coivara, que depende de mudanças constantes,
relações sociais de ordem pelo parentesco e determinação estrutural em relação à
propriedade da terra, entre outros. Dentre os diversos motivos, objetivos e
subjetivos, para se empregar a migração, Maria Antonieta da Costa Vieira21, em
18
RAMOS, Polyana Rafaela. Povo Tapirapé: práticas agrícolas e meio ambiente no cotidiano da
aldeia Tapi'itãwa. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais). Cáceres: Universidade
Estadual de Mato Grosso, 2014, p. 15.
19
Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/tapirape/1008>. Acesso em 08 jan. 2016.
20
A irmãzinha Genoveva (morreu na Aldeia Tapirapé em 2013), uma das fundadoras que chegou
em 1952, Elizabeth e Odile vieram em 1956. Saíram com os índios da Barra do Tapirapé, onde
ficaram algumas famílias e começaram a viver numa nova aldeia, Tapi'itawa. Disponível em:<
http://www.hermanitasdejesus.org/brasil/tapirape2.htm>. Acesso em: 08 jan. 2016.
21
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. À procura das Bandeiras Verdes: Viagem, Missão e
Romaria. Movimento Sócio-religioso na Amazônia Oriental. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2001.
Desse modo, a autora demonstra que as migrações destes indivíduos
podem ser identificadas como uma metáfora do campesinato da fronteira em
busca do seu lugar social. Estes lavradores queriam se desprender da sujeição de
ter que trabalhar em terras alheias, em não ter liberdade sobre o uso do seu tempo,
bem como conquistar o poder de decisão sobre as atividades laborais que iriam
desenvolver e as mudanças que deveriam empregar na produção agrícola e
pecuária.
Para estudar o processo de (re)ocupação da Amazônia, torna-se
importante citar o sociólogo José de Souza Martins22, o qual afirma que definir e
caracterizar a fronteira no Brasil é apresentar a sua situação de conflito social. Ela
é configurada pela presença de índios de um lado e não índios por outro; com os
grandes proprietários de terras de um lado e os camponeses pobres de outro. O
conflito se configura na descoberta e desencontro do outro, ou seja, o desencontro
da temporalidade histórica, pois cada um desses grupos está situado de maneira
diversa no tempo histórico. Dentre estes grupos é essencial demonstrar o tempo
histórico do pistoleiro, que mata índios e camponeses a mando do patrão e do
latifundiário. Assim, o seu tempo é o do poder pessoal da ordem política
patrimonial e não o de uma sociedade moderna, igualitária e democrática que
atribui à instituição neutra da justiça a decisão sobre os litígios entre seus
membros.
Ainda de acordo com Martins23, a frente de expansão em que se
moviam juntos ricos e pobres ocorria no sentido de que estes se deslocavam com
base nos direitos da sesmaria. O posseiro na Amazônia invoca o seu direito sobre
a terra pelo trabalho que nela foi desempenhado, reclamando o seu direito de
cedê-la ou vendê-la, partindo da concepção de que era preciso ocupar a terra com
trabalho (derrubada da mata e o seu cultivo), antes de obter o reconhecimento das
garantias, conforme ocorria no sistema da sesmaria.
A migração forçada pela expulsão do local de origem impõe a esta
população o estabelecimento em áreas de fronteira, e quando
de encontrar novas terras nem há perspectiva ou disposição de entrar na economia
22
MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo histórico
da frente de expansão e da frente pioneira. Tempo Social, São Paulo, 8(1): 25-70, maio de 1996.
23
Ibidem. p. 42.
da miséria no interior da fronteira econômica, geralmente começa a luta pela terra,
24
. E não somente isso,
pois os camponeses ameaçados optam pela luta da terra, seja para questionar os
supostos direitos alegados pelos proprietários ou a legitimação desse direito
assegurado pela Lei de Terras de 1850, em que o direito à posse (usucapião)
advém da comprovação do posseiro em morada habitual e cultura efetiva na
posse.
O plano de governo para (re)ocupar a Amazônia advém da política
dos militares, que após o golpe de 1964 destituiu em seus fundamentos a ordem e
as tradições-estatistas que João Goulart representava. Assim, de acordo com
Daniel Aarão Reis25, o regime ditatorial colocou em prática a política
internacionalista-liberal, cuja ideia estava associada à abertura econômica para o
mercado, no estímulo aos capitais privados, até mesmo os estrangeiros, em um
ponto de vista distinto do papel do Estado na economia, mais regulador do que
intervencionista. É importante destacar que estas perspectivas foram elaboradas
no IPES26, juntamente com lideranças civis e militares que desempenharam um
importante papel na concretização do golpe.
A presidência da República assumida por Castelo Branco (1964-1967)
englobava um perfil e um programa, como, por exemplo, o internacionalismo que
tinha como proposta se alinhar aos Estados Unidos, culminando na chamada
abertura do Brasil aos fluxos do capital internacional. Este projeto estava pautado
na estabilização da economia e das finanças, assim como no estímulo às
exportações e na atração de consideráveis investimentos de capitais privados,
fazendo com que o processo de modernização conservadora tomasse corpo27.
24
Idem.
25
REIS, Daniel Aarão. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000, p. 34.
26
As articulações para a criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais iniciaram em 1961, a
partir da posse de João Goulart; os empresários passaram a ver o governo com desconfiança e
associá-lo aos movimentos sindicais, comunistas e ao aumento da intervenção estatal,
intensificando assim, as suas ações para a criação de uma organização que apoiasse os seus
interesses. Em 2 de fevereiro de 1962, o IPES foi fundado no Rio de Janeiro, originado da
associação de empresários de São Paulo e Rio de Janeiro que passaram a contestar a
IPES contribuiu para a derrubada
do governo Goulart, em 31 de março de 1964, pelos militares, por meio de um trabalho
propagandístico. PAULA, Christiane Jalles de. Na presidência da República: o Instituto de
Pesquisa e Estudos Sociais IPES. Rio de Janeiro: CPDOC, 2004.
27
REIS, op. cit., loc. cit.
Neste contexto, o nacionalismo também foi uma característica forte do governo
ditatorial, onde civis (empresários) queriam a liberalização da economia e
militares defendiam o nacionalismo, como um modelo de desenvolvimento que
tentava reunir dois elementos profundamente contrários: o nacionalismo e os
interesses de grupos internacionais.
Diante da política de modernização e da guinada na economia
brasileira, os olhares do presidente Emílio Garrastazu Médici foram direcionados
para o Nordeste do país. De acordo com Thomas Skidmore28, nenhuma região do
Brasil podia comparar-se à escala de miséria em que viviam mais de 30 milhões
de nordestinos na década de 1970 como resultado da seca e da estrutura fundiária.
O presidente Médici instituiu uma política que via a Amazônia e o Nordeste como
problemas únicos, os quais deveriam ser sanados pela construção da rodovia
28
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (1964-1985). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1994, p. 202.
29
Idem.
Entretanto, havia uma contradição no discurso geopolítico de proteger
a Amazônia da exploração dos seus recursos por grupos externos, tendo em vista
que o Projeto Jari estabelecido na fronteira entre os estados do Pará e Amapá foi
concedido ao norte-americano Daniel Luwig. Da mesma forma, as distribuidoras
de petróleo e derivados continuaram no país, as montadoras ampliaram seu parque
industrial. Essa presença, como a do Projeto Jari, foi vista como investimento que
traria divisas para o país. O discurso político era o de proteger por meio da
integração à nação e esses empreendimentos, como os de colonização, os
agropecuários, e tantos outros aprovados pela SUDAM, SUFRAMA, SUDECO,
foram caracterizados, dessa forma, como aplicações financeiras que trariam
desenvolvimento.
Segundo Skidmore30, os investimentos do governo militar no setor
público, como no caso da Amazônia, devem ser analisados dentro do contexto de
uma estratégia econômica em que o objetivo consistia em potencializar tanto as
aplicações financeiras privadas como públicas. A esfera privada era beneficiada
por uma política que conferia aos empresários a maior quantia dos resultados de
produtividade e de incentivos tributários, especialmente na agricultura e no setor
de exportações. Os empreendimentos públicos obtinham facilidades por políticas
de preços de custo total, bem como dos empréstimos conferidos por instituições
estrangeiras como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, os quais se tornaram os principais financiadores de recursos
para o Nordeste e a Amazônia.
O governo militar na década de 1970 instituiu a Operação Amazônia,
com o objetivo de eliminar sob vários modos os problemas sociais e econômicos
da região. Para tanto, foram criados os seguintes órgãos e programas federais:
SUDAM, INCRA, BASA, POLOAMAZÔNIA, POLONOROESTE,
POLOCENTRO e PROBOR com o intuito de promover a ocupação produtiva e a
integração da Amazônia e do Centro-Oeste ao restante do Brasil. O governo
não havia produção e integração com o resto do país. Por meio destes órgãos e
programas, o governo passou a coordenar a ocupação da terra, garantindo e
30
Idem.
incentivando o desenvolvimento e a propagação do capitalismo no campo, de
modo a criar bases sólidas para a política de segurança nacional 31. Sob essas
medidas, Octávio Ianni afirma que:
31
Esta política estava baseada na Doutrina de Segurança Nacional que consiste no enquadramento
da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica
antisubversiva contra o inimigo comum. Desse modo, a Doutrina converte o sistema social em
sistema de guerra. BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares.
In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia, de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo da
ditadura regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012.
32
IANNI, Octávio. Ditadura e agricultura: desenvolvimento e capitalismo na Amazônia 1964-
1978. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979C, p. 12.
33
Sobre estes projetos ver: BARROZO, João Carlos. Políticas de Colonização: as políticas públicas
para a Amazônia e o Centro-Oeste. In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: do sonho à
utopia da terra. Cuiabá: EDUFMT/Carlini&Caniato, 2008.
34
Sobre o Projeto Canarana, consultar: MORAES, Adriano Knippelberg. Projeto Canarana:
trajetórias de famílias em busca de terras no Mato Grosso (1971-1981). Dissertação (Mestrado em
História) Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2015.
35
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Amazônia: monopólio, expropriação e conflitos.
Campinas: Papirus, 1987, p. 17.
estrutura fundiária brasileira, em que o Centro-Norte de Mato Grosso, conforme o
autor citado, é formado pela presença de grandes projetos agropecuários, por áreas
de posseiros regularizadas ou não pelo INCRA, por projetos privados de
colonização e pelas terras indígenas.
Com a entrada das atividades agropecuárias a partir da década de 1960
na Amazônia Legal36, o seu território, que antes era composto basicamente por
posseiros
espaço com novos agentes sociais, ou seja, com os grupos de empresários
nacionais e internacionais que estabeleceram as empresas rurais, principalmente
as agropecuárias. As linhas de crédito chegavam a cobrir até 70% do capital dos
empreendimentos, através dos incentivos fiscais e da isenção de impostos. Diante
deste cenário, os projetos agropecuários tinham que ampliar e instituir novos
empregos na região, formar e criar determinado número de cabeças de gado e
construir obras de infraestrutura para o desenvolvimento regional. Entretanto, o
36
A Lei nº 5.173 de 27 de outubro de 1966 extingue a Superintendência do Plano de Valorização
Econômica da Amazônia (SPVEA) e cria a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
(SUDAM), que, através do Plano de Valorização da Amazônia, estabelece que a Amazônia
Acre, Pará e
Amazonas, pelos Territórios Federais do Amapá, Roraima e Rondônia, e ainda pelas áreas do
estado de Mato Grosso a norte do paralelo de 16º, do estado de Goiás a norte do paralelo de 13º e
do estado do Maranhão a oeste do meridiano de 44º. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5173.htm>. Acesso em: 26 mar. 2015.
37
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Amazônia: monopólio, expropriação e conflitos.
Campinas: Papirus, 1987, p. 17.
38
O Relatório da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) apontou que 1.196 camponeses foram
assassinados ou desapareceram em disputas no campo, entre setembro de 1961 a outubro de 1988.
Disponível em:< http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/durante-a-ditadura-1-196-pessoas-foram-
mortas-no-campo/>. Acesso em: 06 jan. 2016.
Diante das problemáticas que os projetos de colonização e os
agropecuários causaram na Amazônia, torna-se importante destacar o conceito de
conflito, elaborado pela Ciência Política, em que
interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que implica
39
. Como podemos
observar, na concepção de Dominko Barillaro, o conflito é exposto de modo geral,
como um embate para ter aquisição e divisão de fundos insuficientes. Tal
entendimento não difere essencialmente do conceito de conflito elaborado pela
CPT para o espaço rural brasileiro:
39
BARILARRO, Dominko. Conflito. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: UNB, 1998, p. 225.
40
Populações tradicionais que vivem nos cerrados do norte de Minas Gerais.
41
CANUTO, Antônio; LUZ, Cássia Regina da Silva; LAZZARIN, Flávio. Conflitos no Campo
Brasil 2012. Goiânia: CPT Nacional, 2013, p. 10.
da expropriação dos latifundiários. A CPT passou a trabalhar com boias frias, sem
terras e pequenos proprietários, com o auxílio dos leigos na resolução dos
problemas agrários. Esta entidade tinha a finalidade de servir de apoio aos
movimentos populares, grupos e associações que lutavam direta ou indiretamente
42
VILLALOBOS, Jorge Ulisses Guerra; ROSSATO, Geovanio. A Comissão Pastoral da Terra
(CPT): Notas da sua atuação no estado do Paraná. Boletim de Geografia, Maringá, v. 14, n. 1, p.
19-32, 1996.
43
Para se tornar agente de pastoral na Prelazia de São Félix do Araguaia, o ingressante deveria
conviver nas casas comunitárias com pessoas de diversas origens sociais, faixa etária, estado civil
e religioso. Os agentes de pastoral viviam em casas semelhantes às dos moradores locais e tinham
resolução dos conflitos de terra existentes no nordeste de Mato Grosso,
especialmente em Porto Alegre do Norte, que também contou com o apoio dos
padres Eugênio Consoli e Francisco Jentel na intermediação da demarcação das
terras dos posseiros junto à FRENOVA e à Piraguassu. Essa situação aumentou a
tensão social e, consequentemente, ocorreu a intervenção militar nos problemas
agrários, bem como o envolvimento de múltiplos grupos nos conflitos por terra,
tendo a inclusão de diversos agentes sociais da Igreja Católica, sendo estes ligados
a CPT, ao CIMI e ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Já na esfera do Estado,
pode-se destacar a atuação do INCRA, da Polícia Militar, do Exército e da Polícia
Federal, estando estes muitas vezes ligados a um trabalho conjunto com os
pistoleiros e jagunços das empresas agropecuárias.
Busco assinalar nesta tese que o Estado representado em Porto Alegre
do Norte, principalmente pelo INCRA, pelas polícias Militar e Federal, se
instituiu como enviado e defensor das empresas agropecuárias. E, assim, atuou de
modo arbitrário nas disputas legais pelo direito à terra, envolvendo a população
anteriormente estabelecida (índios, posseiros, entre outros) e as agropecuárias, em
muitos momentos, participando e efetuando, ao lado dessas empresas, atos de
violência contra trabalhadores rurais, peões, índios, posseiros e pessoas ligadas à
Prelazia. Mas em outras ocasiões, este teve que negociar com os trabalhadores
rurais apoiados pela Prelazia de São Félix do Araguaia na demarcação das suas
posses, a exemplo da luta pela terra em Santa Terezinha (1967-1972) em que os
posseiros, ao empreenderem atos de resistência, conseguiram o direito sobre suas
áreas amparados pelo Estatuto da Terra de 1964.
Pude perceber que no Araguaia a disputa pela terra não ocorreu
apenas entre trabalhadores rurais e fazendeiros, como também contou com a
participação de diversos agentes sociais, engendrados por relações de
enfrentamentos, resistências e mediações. Para entender a luta pela terra em Porto
Alegre do Norte, é necessário ter a consciência de que diferentes atores sociais
estiveram presentes neste processo, ou seja, não se deve nortear apenas na
oposição empresários rurais x posseiros, porém, é preciso destacar que
suas carteiras de trabalho assinadas com o valor de um salário mínimo no desempenho das
atividades eclesiásticas.
instituições mediadoras da Igreja Católica e do Estado estiveram envolvidas nos
conflitos por terras.
Entretanto, é válido especificar que não tenho a visão dos
trabalhadores rurais como vítimas ou passivos neste contexto, pois estes criaram
diversas formas de resistência e enfrentamentos contra os agentes do Estado e
jagunços das fazendas. Assim, os trabalhadores rurais são vistos como atores
políticos que estabeleceram alianças junto aos padres, freiras, leigos e agentes de
pastoral para o embate direto e negociações das áreas em litígios, confrontando
em muitos casos com armamentos e emboscadas as milícias dos proprietários
rurais, bem como movendo ações e contestações para que o Estado reconhecesse
os seus direitos.
As análises desta tese têm como propósito compreender a luta pela
terra empreendida pelos grupos sociais estabelecidos no nordeste de Mato Grosso,
a qual se configura por diversas táticas de enfrentamentos, disputas e negociações.
Elegi como recorte espacial o município de Porto Alegre do Norte, cortado pela
BR-158 e pelo rio Araguaia no sentido Sul-Norte, distante 1.119 km de Cuiabá,
capital do Estado. Diante de uma espacialidade tomada pela hidrografia do rio
Araguaia, bem como por histórias e lugares que se interlaçam com a minha área
de estudo, ao longo deste trabalho, o leitor irá se deparar com as seguintes
denominações que se referem ao recorte espacial: Araguaia mato-grossense, Vale
do Araguaia, nordeste de Mato Grosso, Prelazia de São Félix do Araguaia e
Amazônia.
O recorte temporal estabelecido contempla o período do início da
década de 1970 até o final da década de 1980. O marco inicial justifica-se pela
instauração dos dois maiores projetos agropecuários do Araguaia mato-grossense:
Suiá-Missu e CODEARA, que propiciaram os primeiros conflitos intermediados
pela Prelazia de São Félix do Araguaia, entre as empresas contra os índios e
posseiros. O marco final desta pesquisa tem relação com o assassinato do jagunço
Capixaba pelos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, pois este fato
encerrou um período de enfrentamentos traçado pelos posseiros, e deu lugar às
reivindicações por reforma agrária efetuadas pelo Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, permitindo assim uma nova configuração à luta pela terra.
Mapa 2: Município de Porto Alegre do Norte/MT na Prelazia de São Félix do Araguaia.
Este trabalho visa entender e apresentar estratégias de lutas e
resistências adotadas pelos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte,
denominados como posseiros44, contra a tomada das suas terras pelos empresários
do Centro-Sul do país, ou seja, uma reivindicação pelo direito das suas posses
ocupadas pela instalação dos projetos agropecuários das fazendas FRENOVA e
Piraguassu. Estes conflitos, que ocorreram ao longo das décadas de 1970 e 1980
envolveram diversas instituições do Estado, como o INCRA, a Polícia Militar, a
Polícia Federal e o Exército; e a Prelazia de São Félix do Araguaia, na qualidade
de entidade de mediação45 com o envolvimento de padres (especialmente
Francisco Jentel e Eugênio Consoli), agentes de pastorais, leigos, freiras e o bispo
Dom Pedro Casaldáliga, como expressão maior por meio das suas denúncias
públicas que questionavam os órgãos administrativos em relação às políticas de
integração e desenvolvimento da Amazônia, as quais lesavam os direitos
primordiais da população do campo.
Desse modo, não entendo a mediação apenas como o ato de mediar,
interceder, ser representante em dada situação, inferir em meio à ocasião, mas no
sentido de atuar, conforme Dom Pedro Casaldáliga, atribuindo publicidade e
visibilidade à luta dos trabalhadores rurais da Prelazia de São Félix do Araguaia,
bem como à violência contra os religiosos, leigos, índios, peões e posseiros
daquela região.
A mediação da Prelazia de São Félix do Araguaia nos conflitos por
terra em Porto Alegre do Norte está relacionada às transformações políticas e
sociais que a Igreja Católica vivenciou após as resoluções do Concílio Vaticano
II, realizado entre 1962 e 1965, e das Conferências do Episcopado Latino-
44
Conforme o Estatuto da Terra de 30 de novembro de 1964, Art. 98, posseiro é todo aquele que,
não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar por dez anos ininterruptos, sem oposição nem
reconhecimento de domínio alheio, tornando-o produtivo por seu trabalho, e tendo nele sua
morada, trecho de terra com área caracterizada como suficiente para, por seu cultivo direto pelo
lavrador e sua família, garantir-lhes a subsistência, o progresso social e econômico, nas dimensões
fixadas por esta Lei, para o módulo de propriedade, adquirir-lhe-á o domínio, mediante sentença
declaratória devidamente transcrita. Disponível
em:<http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/104451/estatuto-da-terra-lei-4504-64#art-97>.
Acesso em: 13 jan. 2016.
45
Ver: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação: os antagonismos sociais na
Amazônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e os Estado. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) Rio de Janeiro: Museu Nacional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 1993.
Americano, ocorridas no ano de 1968 em Medellín (Colômbia) e no ano 1979 em
Puebla (México). A partir desses acontecimentos, surgiu a chamada Igreja
Católica Progressista, cujos membros passaram a se envolver com as situações
locais, sobretudo da Amazônia em um período que a região foi invadida por
diversos projetos de colonização e agropecuários que culminaram na presença
massiva de empresários rurais, expulsão de posseiros, povos indígenas, violência
e trabalho análogo ao de escravo.
De acordo com Novaes46, os mediadores podem ser vistos como um
meio de campo, algo que faz ponte ou medeia determinada situação, sendo estas
ações tanto para o bem quanto para o mal, ou seja, elas são capazes reproduzir ou
questionar a dominação. A mediação pode ser exercida por diversos atores e
entidades, como ONGs, Igrejas, Sindicatos e órgãos do Estado. Entretanto, nesta
pesquisa designamos o termo de mediadores para a Igreja Católica Progressista da
Prelazia de São Félix do Araguaia, e seus membros do clérigo, especialmente
Dom Pedro Casaldáliga, agentes de pastorais e leigos. As mediações das
instituições como CPT e STRs, segundo Medeiros e Esterci47
pensadas como ações que tiram movimentos e grupos de sua dimensão local e
46
MEDEIROS, Leonilde et al (Org). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo:
Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994, p.177-183.
47
Servólo de et al (Org.). Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: EDUNESP,
1994, p. 19.
48
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação: os antagonismos sociais na
Amazônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e os Estado. Tese
na Amazônia, pois já vinha desenvolvendo o seu trabalho pastoral junto às
comunidades de posseiros, suscitando assim uma atuação que supria a presença
incipiente do Estado no campo:
Os conflitos agrários que até então não eram reconhecidos pelo Estado
passaram a ser institucionalizados pela Igreja, a qual foi vista como um problema
e não uma interlocutora dos posseiros. O Estado não concordava com o trabalho
político e social da Igreja Católica no campo, pois esta era considerada subversiva
e incentivadora dos conflitos por terras. Entretanto, a presença da Prelazia de São
Félix do Araguaia como mediadora na luta pela terra em Porto Alegre do Norte
fortaleceu a resistência dos posseiros.
De acordo com Airton dos Reis Pereira50, o termo posseiro é um
conceito que foi e é forjado na luta e no conflito. O autor entende que o posseiro
do sul e sudeste do Pará não é somente aquele trabalhador rural ocupante de terras
devolutas de áreas denominadas antigas e é expropriado pelas grandes empresas
do Centro-Sul do Brasil, mas também um agente social que disputa uma mesma
área de terras com empresários/fazendeiros de outros Estados do país e a eles
resistem. Esta palavra que antes designava os ocupantes de terras devolutas na
Amazônia passou a ter novos significados e sentidos na luta pela terra naquele
momento (1970/2000). Do mesmo modo, em Porto Alegre do Norte, os
trabalhadores rurais, a partir do envolvimento com a Prelazia de São Félix do
Araguaia, passaram a se designar como posseiros, conferindo assim o direito de
contestarem a permanência nas suas posses.
51
GREENHALGL, Laura. As veredas de Pedro. Os arquivos de D. Pedro Casaldáliga. Estado de
São Paulo, 2006. Disponível em: <
http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=331>. Acesso em: 11 mai. 2011.
52
Idem.
Carlos Bacellar53 tece uma crítica de modo geral às problemáticas
existentes em grande parte dos arquivos brasileiros, os quais, em sua maioria,
encontram-se abandonados pelo poder público. Tem-se o desafio de trabalhar em
ambientes precários, com documentos mal acondicionados e preservados, e mal
organizados, administrados por funcionários problemáticos. Felizmente o acervo
da Prelazia de São Félix do Araguaia encontra-se em perfeita organização, com
todas as suas informações digitalizadas, disponíveis ao público por meio de cópias
em CD Rom, pois não é possível gravar a documentação em pen drive devido ao
risco de prejudicar os computadores do arquivo com possíveis vírus que possam
danificar ou destruir os documentos da Prelazia. As acomodações são singelas,
mas acolhedoras, e os funcionários são muito prestativos e solícitos.
O historiador deve ter consciência de que os arquivos são resultados
daqueles que os constituíram, da mesma forma que nenhum documento é neutro, e
sempre carrega consigo a opinião da pessoa ou da instituição que o escreveu, os
arquivos não foram pensados para atender as necessidades dos historiadores, e sim
de órgãos e pessoas em específico. Desse modo, podemos fazer a relação com a
elaboração dos documentos do passado que não foram feitos para os historiadores,
mas para responder as determinações intrínsecas do momento histórico em
questão.54
Sob esta ótica, devemos pensar a organização do acervo da Prelazia de
53
BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 49.
54
Ibidem, p. 69.
reconhecidos e a repressão por parte do poder público e privado tomaria conta
daquele espaço em dimensões incalculáveis.
Acredito que o acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia carrega a
insígnia da luta pela terra travada por trabalhadores rurais, bem como o registro da
repressão do governo ditatorial através dos relatos de torturas dos padres, leigos e
agentes de pastorais vivenciadas no ano de 1973. Portanto, este arquivo é um local
a que os historiadores devem recorrer para discorrerem sobre as arbitrariedades do
período ditatorial no Brasil, tendo em vista que a maioria dos arquivos que contêm
Prelazia estão acessíveis para que a memória da luta pela terra e as atrocidades da
ditadura militar não caiam no esquecimento. Neste sentido, temos que ter
consciência de que os documentos da ditadura não são um testemunho da verdade,
55
Trabalhei com a subpasta A08.2, que contém 102 páginas de relatos dos agentes
de pastorais, leigos e padres torturados no ano de 1973, cujos testemunhos estão
expostos e analisados ao longo do capítulo três desta tese.
Como se pode constatar, utilizei neste trabalho as fontes que
expressam a resistência dos posseiros e da Igreja na luta pela terra em Porto
Alegre do Norte, privilegiando a documentação do Acervo da Prelazia de São
Félix do Araguaia. Esta atitude não tem como objetivo exaltar unicamente os atos
destes agentes, mas não tive acesso aos arquivos das agropecuárias ou da polícia
local para que estes pudessem ser contrapostos com a documentação da Prelazia.
Entretanto, as notícias divulgadas pelos jornais locais e nacionais me ajudaram a
demonstrar como a política de ocupação da Amazônia excluiu os direitos dos
posseiros que há anos ocupavam morada habitual e cultura efetiva nas terras
devolutas e/ou improdutivas, sob o respaldo da Lei de Terras de 1850 que
Brasil.
Realizei doze entrevistas, sendo seis delas com antigos moradores do
Araguaia (Erotildes Milhomem, São Félix do Araguaia), João Souza Lima o
João da Angélica e Maria Gomes da Silva (Porto Alegre do Norte), dois posseiros
e ex-vereadores de Canabrava do Norte56 Itamar Lucas de Oliveira e Rafael
Souza do Nascimento), com a ex-posseira Ana Felicia de Araújo (esposa do
posseiro e delegado de Porto Alegre do Norte Alexandre Quirino) e com a sua
filha Maria Zenaide de Araújo Silva, uma com o leigo da Pastoral de Porto
Alegre do Norte (Ataíde da Silva o Altair), com um integrante do movimento
a agente de pastoral Odile Eglin (Irmãzinha de Jesus que vive na aldeia Tapirapé
desde a década de 1980), entrevista com a advogada da Prelazia de São Félix do
Araguaia (Maria José Souza Moraes) e com o suposto pistoleiro e ex-prefeito de
Porto Alegre do Norte Luiz Carlos Machado, conhecido como Luiz Bang. A
escolha destas pessoas está relacionada ao fato de que elas são antigas moradoras
da região e de algum modo presenciaram os conflitos entre posseiros e as
agropecuárias FRENOVA e Piraguassu.
Utilizei sete entrevistas na construção da narrativa desta tese
(Erotildes Milhomem, João Souza Lima, Ana Felicia de Araújo, Maria Zenaide de
Araújo Silva, Ataíde da Silva, Odile Eglin e Luiz Carlos Machado).
A entrevista com Erotildes Millhomem foi realizada em sua residência
na cidade de São Félix do Araguaia. Ela me recebeu no seu ateliê que fica nos
fundos da sua casa, mostrou-me um álbum de fotos, suas pinturas em telas e os
romances de sua autoria. O seu testemunho demonstrou como ocorreu o processo
de migração do estado do Maranhão para o Araguaia mato-grossense,
descrevendo o percurso realizado, as motivações que impulsionaram sua família a
migrar, bem como o misticismo
Erotildes me pediu que assinasse um livro de presença das pessoas que a visitam e
me presenteou com quatro livros que escreveu sobre o Araguaia: Meu querido
Araguaia, Maria Rita da Serra do Roncador, Folclore do Araguaia e Barreira do
Araguaia.
O relato de João Souza Lima foi cedido em sua propriedade rural no
56
O município fica 40 km de distância de Porto Alegre do Norte. No período do nosso recorte
temporal, era um núcleo de ocupação afastado do núcleo urbano (Porto Alegre do Norte), assim
este se referia a uma área considerada de sertão por estar distante do núcleo urbano.
emitiam os seus cantos, assim como cigarras e galinhas que tiveram os seus sons
propagados por toda a narrativa. O entrevistado descreveu a trajetória da sua
família de Barreira dos Campos/PA para o Araguaia mato-grossense, o
estabelecimento da sua família nas posses do núcleo de Cedrolândia, o cotidiano,
a cultura, a religião, as festas, os mutirões, a chegada das empresas agropecuárias,
as resistências e os conflitos vivenciados pelos posseiros, entre outros.
A entrevista de Ataíde da Silva ocorreu na residência do professor da
rede estadual de Porto Alegre do Norte Justiniano Pereira Sales, pois ele me
ajudou a contatar todos os entrevistados pelo fato de ser antigo morador do
município e filho do posseiro José Pereira dos Santos. A narrativa foi realizada na
varanda, onde nos sentamos em volta de uma grande mesa acompanhados pelo
professor Justiniano, que interferiu em pequenos momentos para esclarecer
questões contextuais relatadas pelo seu pai. Ataíde da Silva expôs sobre a sua
trajetória de militância na cidade de São Paulo, a sua migração para Porto Alegre
do Norte e o seu trabalho como leigo e professor da Prelazia de São Félix do
Araguaia, descreveu os conflitos entre as empresas agropecuárias e os posseiros,
assim como os atos de resistência.
A entrevista de Ana Felicia Araújo foi dada em frente à sua casa com
vista para o rio Tapirapé. Ela estava se sentindo um pouco doente, mas concordou
prontamente em ceder o relato em que descreveu a trajetória de migração da sua
família do Piauí ao Mato Grosso, o período em que morou em Luciara e se casou
com Alexandre Quirino (ex-delegado de Porto Alegre do Norte), a mudança para
ocupar as terras de Porto Alegre do Norte, a chegada das empresas agropecuárias
e os conflitos. A sua narrativa foi marcada por muitas lembranças dolorosas que a
fizeram chorar, principalmente quando perguntei sobre Dom Pedro Casaldáliga.
-se de algumas
que marcou o início do seu testemunho e que emitiu muitos significados foi
utilizada na epígrafe desta tese para expressar a importância da luta pela terra em
Porto Alegre do Norte.
O testemunho de Maria Zenaide de Araújo Silva não tinha sido
programado, mas em decorrência do mal-estar sentido durante a entrevista da sua
mãe (Ana Felicia Araújo), ela começou a me relatar as suas impressões e
vivências de quando era criança no decorrer dos conflitos de terra em Porto
Alegre do Norte. Essa narrativa foi muito importante, pois pude descrever a
participação das crianças na luta pela terra.
A entrevista de Odile Eglin foi dada em sua casa, que fica situada na
Aldeia dos Tapirapé no município de Confresa. No momento do seu relato, os
Tapirapé estavam construindo uma estrutura que seria utilizada em uma
cerimônia, assim a gravação está permeada pelos sons dos martelos e motosserras
utilizados na construção. A entrevistada descreveu sua chegada à aldeia dos
Tapirapé, o seu trabalho junto aos índios, a atuação da Prelazia de São Félix do
Araguaia e os métodos de mediação e apoio pastoral nos conflitos por terra na
região.
O relato de Luiz Carlos Machado foi cedido na sua chácara às
margens da BR 158 no município de Confresa. A narrativa elucidou sua migração
para Mato Grosso, seus diversos trabalhos como peão e empreiteiro nas fazendas
da região, principalmente na FRENOVA, descreveu os conflitos de terra, o seu
mandato como prefeito de Porto Alegre do Norte, seu posicionamento em relação
à atuação de Dom Pedro Casaldáliga, os crimes dos quais foi acusado e o período
que passou na prisão.
Ao término das entrevistas, solicitei aos entrevistados que assinassem
um termo de cessão de direitos sobre voz cujas cópias estão disponíveis no
PPGHIS/UFMT.
O uso das fontes orais nesta tese não tem a pretensão de realizar uma
57
JOUTARD, Philippe. História oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos.
In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e Abusos da História Oral.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
ocorrências ou situações ligadas ao tema e que possam fornecer depoimentos
58
.
Estas entrevistas59 foram realizadas de acordo com o método de
pesquisa60 da história oral, caracterizado por Verena Alberti como uma
metodologia que:
O uso dos relatos orais nesta tese tem relação com as concepções
elaboradas por Regina Beatriz Guimarães Neto, que os aponta
privilegiadas da arte de investigação do presente e do discurso sobre o passado; as
fontes orais oferecem rastros, vestígios, discursos reveladores da diversidade de
62
. As entrevistas
orais viabilizam a identificação das construções que os entrevistados possuem de
si e do seu ambiente social. Compreendidos como narrativas, os testemunhos orais
permitem a construção de um relato histórico acerca do passado vivido, revelados
a partir das memórias de experiências e percepção da realidade pelos diferentes
grupos sociais contemplados no presente trabalho, quais sejam: os posseiros,
58
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 31-32.
59
cometidos na linguagem falada não possuem peso equivalente na linguagem escrita. Assim,
mantê-los na entrevista transcrita iria imprimir uma ênfase que não se adquire na conversa.
Ibidem, p. 216.
60
buindo-lhes
significados que respondam as inquietações do presente, uma vez que o passado
continuará como uma incógnita.
Nesta perspectiva, Jeanne Marie Gagnebin66 nos lembra que a tarefa
do historiador consiste no papel constrangedor da luta contra o esquecimento e a
denegação, deve-se lutar contra a mentira, mas sem cair em uma definição
dogmática de verdade. Este trabalho é delicado, pois parte da premissa que o
-
63
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política. Trabalhadores
rurais, conflito social e medo na Amazônia (1970-1980). Revista Mundos do Trabalho, vol. 6, n.
11, p. 129-146, jan/jun. 2014, p. 146.
64
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1987. p. 224.
65
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 67.
66
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 44.
67
BENJAMIN, op. cit., p. 225.
Sul) no ano de 1973 remete ao ato de lutar contra a repetição do horror e quebrar o
silêncio imposto pelos vencedores. Remete-se, assim, à temporalidade da história
do tempo presente, em que uma das principais pecu
contemporâneos ou a coação pela verdade, isto é, a possibilidade desse
conhecimento histórico ser confrontado pelo testemunho dos que viveram os
68
. Esta história se estrutura no que
Walte
objeto de uma construção cujo
69
.
A constituição da trama histórica que tem como ator político o
trabalhador rural na luta pela terra em Porto Alegre do Norte parte de um estudo
que privilegia as práticas deste grupo social, em detrimento dos discursos oficiais
que não levam em consideração as suas estratégias de lutas e resistências, como
fatos cuja exposição nos registros oficiais é válida. Estes indivíduos não possuem
papel central na História, pois suas vidas são marcadas por características
relegadas pela sociedade, como a marginalidade e a exclusão destes ao acesso à
terra. Desse modo, segundo Gagnebin, cabe ao narrador (historiador) que:
[...] não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito
mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que
não tem significação, algo que parece não ter nem importância
nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que
fazer. [...] aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que
não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que
mesmo a memória de sua existência não subsiste aqueles que
desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus
nomes.70
68
FICO, Carlos. História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso
brasileiro. Varia Historia, vol. 28, nº 47, p.43-59, jan/jun 2012C, p. 44.
69
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1987. p. 229.
70
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 54.
1980. Ao montar os restos/rastros que sobram da vida e da história oficial, os
historiadores não realizam apenas um rito de protesto, como também
desempenham o trabalho silencioso, anônimo, indispensável do legítimo
narrador.71
Desse modo, de acordo com Elizabeth Jelin72, a memória é
71
Ibidem, p. 118.
72
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI de España Editores, S.A.,
2002, p. 16.
73
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/Ed. PUC - Rio, 2006, p. 308.
74
Ibidem, p. 309-310.
que essas experiências passadas são incorporadas, pois é impossível localizar uma
memória, um ponto de vista e uma interpretação singular do passado. A luta
política ocorre sobre o significado do passado e, muitas vezes, esta se posiciona
75
.
A presente tese está divida em quatro capítulos. No primeiro capítulo,
o-
contextualizar de um modo geral como ocorreu o histórico de ocupação não
indígena do nordeste de Mato Grosso durante a primeira metade do século XX.
Pelas narrativas dos antigos moradores de Porto Alegre do Norte, em especial do
senhor João Souza Lima (João da Angélica), pude descrever o processo de
migração para aquela localidade no final da década de 1940, conhecida como
Cedrolândia, e, concomitantemente, a chegada de Domingos Medeiros da Silva,
e de sua família, que se instalaram na
beira do rio Tapirapé, formando o patrimônio de Porto Alegre do Norte.
A narrativa de João da Angélica traça o percurso da sua família do
Pará ao Mato Grosso, com a intenção de procurar terras livres e praticar a
agricultura familiar de subsistência, bem como a criação de gado. Apresentei a
vida dessas famílias em comunidade antes da entrada das empresas agropecuárias
na década de 1970. Estes indivíduos viviam em uma relação de parentesco
marcada pela sociabilidade de compadres e vizinhos. O cultivo das suas roças e a
construção de casas, currais, celeiros, etc. se davam por meio da prática do
mutirão, que consistia na ajuda mútua entre os membros de Porto Alegre do
Norte.
A composição do núcleo urbano do povoado de Porto Alegre do Norte
foi traçada pelos trabalhadores rurais e no centro deste havia o bebedouro público
do gado. As pessoas dos núcleos de ocupações próximos ao patrimônio de Porto
Alegre do Norte se reuniam em comemorações, como festas de santos, batizados e
casamentos durante o período das desobrigas76. A inexistência de postos de saúde
75
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI de España Editores, S.A.,
2002, p. 6.
76
Visitas que os missionários faziam, em princípio a cada ano, aos locais remotos. Levando os
sacramentos às populações que não dispunham de assistência religiosa regular, devido ao próprio
isolamento em que viviam ou ausência de padres na região. O nome desobrigas refere-se ao antigo
preceito da Igreja de que o católico é obrigado ao menos uma vez por ano a confessar-se e
na localidade fazia com que a população procurasse na natureza os remédios para
os problemas de saúde.
A migração dos trabalhadores rurais para Porto Alegre do Norte
advém de um histórico de exploração e dominação dos latifundiários nos seus
lugares de origem. O deslocamento destes indivíduos implica várias questões e
comungar. Nas desobrigas, além dos padres celebrarem as missas, também realizam batizados,
confissões e casamentos em grande quantidade. VALÉRIO, Escorsi Mairon. Entre a cruz e a
foice: D. Pedro Casaldáliga e a significação religiosa do Araguaia. Dissertação (Mestrado na área
de concentração de História Cultural). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007, p. 34.
e vir limitado por uma cerca que cortou o povoado ao meio e dificultou o acesso
ao bebedouro público do gado, mas estes resistiram e cortaram a cerca, dando
início a uma série de disputas pelo direito à terra em Porto Alegre do Norte.
Diante desses conflitos, vivenciados entre os anos de 1970 e 1972, o
Exército empreendeu diversas operações militares na região, com destaque para as
missões comandadas pelo Capitão Ailson Munhoz da Rocha Loper, que se
infiltrou na Prelazia como um padre e passou a investigar os trabalhos dos
religiosos, principalmente sobre a vida de Dom Pedro Casaldáliga e do padre
Francisco Jentel. Após ser questionado sobre a sua presença na Prelazia de São
Félix, o Capitão Ailson afirmou que as autoridades estavam convencidas de que a
região era um foco de subversão e guerrilha. Alegou ainda ter reconhecido em
Porto Alegre do Norte um guerrilheiro do Vale do Ribeira que em 1970 tinha lhe
arrancado as unhas numa ação e que estava na região acobertado pelo professor
que a Prelazia lá mantinha. Revelou que se as coisas continuassem como estavam,
os padres e leigos seriam expulsos, e ao Pe. Jentel, presente à conversa, que o
decreto de sua expulsão estava para ser publicado. Apresentou ainda detalhes da
correspondência familiar do bispo. Todos estes acontecimentos não impediram
Casaldáliga de mediar a situação dos posseiros e enviar diversas cartas para várias
autoridades, questionando o não cumprimento do Decreto 70.430 de 1972 que
estabelecia a assistência às pessoas domiciliadas na área dos planos de
desenvolvimento agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em áreas
pioneiras, por estabelecimentos oficiais de crédito.
No capítulo três, intitulad
-me a analisar os acontecimentos repressivos que
ocorreram na Prelazia de São Félix do Araguaia após a região ser enquadrada na
Lei de Segurança Nacional, tendo como justificativa, principalmente, os conflitos
por terras em Porto Alegre do Norte e Santa Terezinha que culminaram na prisão
e expulsão do padre Francisco Jentel do Brasil. O Vale do Araguaia passou a ser
considerado um foco de subversão, pois o regime militar desconfiava que os
agentes de pastorais, padres e leigos tinham relação com a Guerrilha do Araguaia,
devido à proximidade geográfica com esta última. No ano de 1973, a área da
Prelazia de São Félix do Araguaia vivenciou uma forte e violenta intervenção
militar na região que culminou no sequestro, prisão e tortura de alguns agentes de
pastorais e religiosos. A operação foi dirigida pelo Secretário de Segurança do
Estado, juntamente com a Polícia Militar, agentes do Exército, da Marinha, da
Aeronáutica e da Polícia Federal.
Os agentes de pastorais e religiosos foram acusados de incitar os
posseiros a lutarem contra o estabelecimento das empresas agropecuárias na
região, pois estes não teriam capacidade para organizar tais atos de resistências,
sendo influenciados pelos mentores intelectuais ligados à Igreja Católica. Na
madrugada de 4 de junho de 1973, os militares começaram a empreender os atos
de violência contra a população da Prelazia. Foram presos e espancados no dia 08
de julho de 1973 o leigo Tadeu e os padres Antônio Canuto, Eugênio Consoli
(padre do povoado de Porto Alegre do Norte), Leopoldo Belmonte e Pedro Mari
para delatarem o paradeiro do leigo José Pontim. No dia 04 de junho de 1973 na
casa das Irmãzinhas de Jesus foram presos Edgar e Thereza Adão, visitantes do
Rio de Janeiro que estavam na região para conhecer o trabalho dessas religiosas
na Aldeia dos Tapirapé. Em 5 de junho de 1973, a caminho da Cooperativa
Agrícola de Santa Terezinha, a leiga Thereza Salles foi sequestrada por policiais
que estavam à paisana. As análises dos relatos de tortura têm como propósito não
apenas relembrar as atrocidades da ditadura militar, como também conscientizar
para que estes atos nunca se repitam.
resistência do
contexto de instalação da Piraguassu, pertencente ao grupo YANMAR do Brasil,
entre os anos de 1975 e 1976. A empresa se instituiu em Porto Alegre do Norte
ciente de que nas terras havia trabalhadores rurais com direito a posse, entretanto
o seu gerente, Keizo Tukuriki, empreendeu uma série de ameaças para que os
posseiros aceitassem o acordo em receberem apenas 50 hectares, sendo que estes,
conforme o Ofício Circular 32/nº279 de 13 de novembro de 1974, teriam que ser
indenizados em 100 hectares. A Prelazia de São Félix do Araguaia passou a
esclarecer a população de Porto Alegre do Norte sobre os seus direitos,
estimulando para que permanecessem e resistissem na luta pela terra. Esse período
foi caracterizado pela Prelazia em dois momentos: 1976/1977 considerado
e 1978/1979
consistiu nos mecanismos de expulsão dos posseiros, tendo estes resistido nos
enfrentamentos diários, realizando o corte de cerca e denunciando as
enfrentamentos
dos posseiros para demarcação e titulação das suas áreas, bem como pela
delimitação do espaço urbano de Porto Alegre do Norte, tendo dentro dessas
ações o assassinato de um jagunço da Piraguassu pelos trabalhadores rurais.
Neste capítulo, retrato as formas de resistências cotidianas efetuadas
pelos posseiros, bem como a participação de mulheres e crianças na luta pela terra
em Porto Alegre do Norte. A constituição da escrita foi desenvolvida pelas
narrativas de João da Angélica, Altair e Ana Felicia como testemunhas do
processo de instalação das empresas agropecuárias no município. Os entrevistados
nos apresentaram relatos da violência que vivenciaram, assim como os
mecanismos de enfrentamentos que ambos utilizaram para permanecerem na terra.
1. MIGRAÇÕES E OCUPAÇÕES NO ARAGUAIA MATO-GROSSENSE
espaço,
além da ação da frente pioneira, onde a terra não tem valor, não existe legalidade
na posse da terra, o Estado não se apresenta de forma legítima ou, em geral, nem
77
Cf. A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz
(Org.). História da vida privada no Brasil: contraste da intimidade contemporânea. Vol. 4, 4ª
reimp., São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p.659-726; Capitalismo e tradicionalismo: estudos sobre
as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1975; Expropriação e
Violência: a questão política no campo. São Paulo: Hucitec, 1984; Fronteira: A degradação do
outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009; Os camponeses e a política no Brasil:
as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1990.
78
Cf. A luta pela terra: história social pela terra e da luta pela terra numa área da Amazônia.
Petrópolis: Vozes, 1979; Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes,
1979; Ditadura e agricultura: o desenvolvimento do capitalismo na Amazônia: 1964-1978. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; Origens agrárias do Estado brasileiro. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
79
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação: os antagonismos sociais na
Amazônia segundo os movimentos camponeses, as instituições religiosas e os Estado. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) Rio de Janeiro: Museu Nacional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 1993.
80
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008.
se apresenta. É o espaço além da zona de desenvolvimento, em que as relações
são atrasadas, não existe infraestrutura e a violência faz parte do cotidiano.
O conceito de frente pioneira traz consigo a ideia de formulação de
um novo espaço social, baseado no mercado e na contratualidade das relações
sociais. Não é apenas a aquisição de novos territórios, ou um simples
deslocamento populacional; é também a condição espacial e social que convida ou
induz à modernização, à formulação de novas concepções de vida, à mudança
social. Ela constitui o ambiente oposto ao das regiões antigas, esvaziadas de
populações, rotineiras, tradicionais e mortas81.
82
,
discute a transformação das terras amazônicas em mercadoria. Para tanto, o autor
expõe três grupos de campesinato, ou seja, trabalhadores e pequenos produtores
autônomos que viviam da economia familiar e vendiam o excedente da produção
no mercado amazônico. Dentre estes estavam os seringueiros e caucheiros que
com o fim do ciclo da borracha se tornaram sitiantes, não vendo a necessidade de
assegurar o direito da propriedade. Os posseiros que chegaram na década de 1960
se mesclaram com os sitiantes e formaram outros núcleos de ocupação. Eram
migrantes oriundos do Pará, Maranhão, Goiás, Minas Gerais e estados do Centro-
Sul, atraídos pela notícia de terras livres que constituíram povoados onde se
sobreviveria da economia de subsistência negociando o excedente da produção
familiar. E, por último, o grupo dos colonos que era todo o camponês, sitiante ou
posseiro que recebeu do INCRA títulos provisórios ou definitivos de propriedade
para aqueles que desenvolviam cultura efetiva e tinham moradia habitual
(benfeitorias) nas terras.
A terra que antes era tida como meio de subsistência para a população
migrante que se estabeleceu no sul do Pará no início do século XX viu essa lógica
ser modificada a partir da implantação dos projetos agropecuários naquela região
durante a década de 1970, pois esta foi transformada em mercadoria, provocando
assim, a alteração da estrutura fundiária que culminou nos conflitos pela posse da
81
MARTINS. José de Souza. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo:
Contexto, 2009.
82
IANNI, Octávio. A luta pela terra: história social pela terra e da luta pela terra numa área da
Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979A.
terra entre o proprietário legal versus ocupação de diversos grupos ao longo dos
anos.
Para Ianni83, os conflitos e a violência no campo foram provocados
pelo discurso de desenvolvimento econômico da Amazônia, o qual acarretou os
embates entre posseiros x proprietários rurais e grileiros84. As ações de grileiros,
em conjunto com fazendeiros, aceleraram a privatização da terra e transformaram-
na em mercadoria, destituindo, assim, os seus antigos ocupantes que foram
expulsos por meio de ameaças e violência ou pela venda das suas propriedades
por preços abaixo do mercado.
Situação que assume proximidade com a realidade exposta acima diz
respeito às pesquisas desenvolvidas por Neide Esterci em Conflito no Araguaia85,
antropóloga que se debruça em suas análises sobre a luta pela terra no nordeste de
Mato Grosso, especificamente no povoado de Santa Terezinha. A partir de 1966, a
área foi vendida pelo governo do estado para a CODEARA que adquiriu as terras
da região, ciente de que nelas haviam ocupantes com direito a posse. Entretanto, a
agropecuária os ignorou, gerando assim o conflito pela posse da terra entre
posseiros e a empresa.
A empresa tinha um prazo a cumprir para receber os incentivos
facultados pela lei. Então, o ritmo para a implantação do seu projeto foi acelerado,
o que gerou um atrito com os antigos moradores. A companhia propôs aos
ocupantes, ou seja, os posseiros, que fossem remanejados para locais mais
distantes, removendo-os das suas antigas terras de trabalho. Esse fato deu início,
em 1967, à disputa entre posseiros e a agropecuária que durou até 1972. A partir
da intervenção do padre Francisco Jentel como mediador dos interesses do grupo
de posseiros no conflito de Santa Terezinha, o Estado teve que tomar medidas
decisivas para amenizar o conflito entre a CODEARA e os antigos ocupantes do
83
Idem.
84
Falsificador de documentos para tomar posse de terras devolutas ou de terceiros. De acordo com
Miranda, o grileiro é o maior inimigo do posseiro. É aquele que tem apenas a terra como
mercadoria, para vender, e não para trabalhar. No âmbito agrário existem duas formas dessa
figura: o grileiro de propriedade e o grileiro de posse. O primeiro falsifica títulos, prepara
documentos, sem existir a terra, enquanto que o segundo é a pessoa alheia na esfera agrária que
busca a terra, através do apossamento, para depois vendê-la. MIRANDA, Alcir Gursen de. Direito
Agrário e o Posseiro...
85
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008.
espaço. Assim, o governo federal, junto aos órgãos competentes, acelerou o
processo de demarcação das áreas, reconhecendo o direito de posse nos termos
definidos pelo Estatuto da Terra de 1964 à população que já habitava o povoado
antes da chegada do empreendimento.
As pesquisas de Neide Esterci são de fundamental importância para o
desenvolvimento desta tese, tendo em vista que o seu trabalho sobre os conflitos
em Santa Terezinha contêm um material riquíssimo de fontes documentais, orais e
um extenso trabalho de campo na região. As suas investigações de caráter
pioneiro contribuíram para os avanços e divulgação de novos resultados de
pesquisas acerca do Araguaia mato-grossense.
Alfredo Wagner Berno de Almeida86
86
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação...
87
A luta pela terra...
plantations, agroindústrias ou projetos agropecuários
incentivados.88
do
posseiro, considerado por este como desbravador da região nordeste de Mato
Grosso e um indivíduo que vivia à margem da sociedade que atribuía à migração
uma alternativa para uma vida melhor em um lugar distante. Desse modo,
Casaldáliga nos mostra que:
88
ALMEIDA, op. cit., p. 290.
89
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 104.
90
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 6.
dos fatores cruciais para entender a questão agrária brasileira pautada em conflitos
e violência nos espaços de ocupação recente na Amazônia.
É importante levarmos em consideração que a denominação
Naquela época, a gente não falava que era posseiro. Depois que
a fazenda chegou, a gente começou a falar em posseiro. Nós
falávamos que éramos moradores ou compadres. Lavrador já
tinha. O compadre já tinha o nome do lugar, por exemplo, Santo
Antônio, Bela Vista do Sebastião Pereira, era assim que era. O
posseiro começou quando a fazenda chegou. A fazenda falava
este último muito utilizado por Dom Pedro Casaldáliga em seus escritos, em
91
João Souza Lima, conhecido como João da Angélica, veio com a sua família para Porto Alegre
do Norte na década de 1950. Seu pai saiu de Barreira do Campo/PA à procura de terras para a
criação de gado e encontrou no nordeste de Mato Grosso uma localidade próxima ao rio Tapirapé,
onde atualmente é Porto Alegre do Norte. A maior parte da trajetória da família foi realizada de
canoa pelo rio Araguaia e depois adentraram o rio Tapirapé para se estabelecerem no povoado de
Cedrolândia. O entrevistado chegou com a sua família no Araguaia mato-grossense em 6 de
janeiro de 1950, tendo, na época 10 anos de idade.
92
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à autora,
em 3 de dezembro de 2015, no município de Porto Alegre do Norte.
analogia ao tubarão como um peixe grande (o latifúndio) que devora os peixes
pequenos (os posseiros).
Desse modo, de acordo com Reinhart Koselleck93, torna-se necessário
compreender que é atribuição
social, saber a partir de quando os conceitos passam a poder ser empregados de
forma tão rigorosa como indicadores de transformações políticas e sociais de
acterística política e social para
94
, este toma para si uma categoria social que conferiu novos
significados aos seus usos, como demonstramos acima. Assim, a aplicação de
outros sentidos e definições para antigas palavras remete-nos às mudanças de
conteúdo e interpretações dos conceitos.
O trabalhador rural ou lavrador é denominado por José de Souza
Martins95 como camponês, pois se trata de um termo político que procura dar
unidade à situação de classe e, sobretudo, procura dar identidade à luta
camponesa. Desse modo, entendemos a categoria camponês como sinônimo da
designação de posseiro, tendo em vista, como apontamos acima, que este
personagem acionou a condição de posseiro para legitimar a luta pela terra na
Amazônia. Neste sentido, o termo posseiro não designa apenas um novo nome,
mas um indivíduo que está inserido em determinada espacialidade geográfica e
que também deve ser visto como um novo agente histórico.
Caracterizar o posseiro como um agente histórico é entendê-lo como
uma contradição do capitalismo, pois de acordo com Martins, a mesma sociedade
que tira proveito do seu trabalho também deseja eliminá-lo, sobretudo, no que diz
respeito ao fato de que a expansão capitalista ocorre geralmente sobre as terras
ocupadas pelos posseiros, expropriando-os e expulsando-os das suas posses. A
empresa rural via a ocupação como um empecilho na extração da renda sobre a
terra, tanto que as propagandas de venda dos imóveis anunciavam propriedades
93
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado... p. 101.
94
O posseiro é uma designação utilizada para os trabalhadores rurais presentes na Amazônia Legal.
José de Souza Martins demostra que em outras partes do Brasil os trabalhadores do campo
possuem diversas nomenclaturas, tais como: caipira (SP, MG, GO, PR e MS), caiçara (no litoral
paulista), tabaréu (Nordeste) e em outras localidades de caboclo. MARTINS, José de Souza. Os
camponeses e a política no Brasil...
95
Idem.
96
.
Este trabalho, portanto, parte da análise de movimentos migratórios
para o nordeste de Mato Grosso desde o início do século XX, especialmente,
tendo como foco de pesquisa o povoado de Porto Alegre do Norte, que passou a
ser ocupado por uma população não indígena, ou seja, por trabalhadores rurais a
partir do final da década de 1940. O trabalho irá demonstrar alguns aspectos do
modo de vida dessas pessoas antes da chegada dos empreendimentos
agropecuários na região durante a década de 1970, e como consequência deste
fato, problematizaremos a luta pela terra entre posseiros e as empresas rurais, bem
como a mediação da Igreja Católica na resolução desses conflitos. É válido
destacarmos que não é propósito desta investigação analisar os conflitos por terras
entre os fazendeiros da região97, assim como os conflitos que envolveram os
diversos povos indígenas do nordeste de Mato Grosso.
Podemos analisar a história da região do Araguaia a partir de dois
aspectos diferentes, ou seja, das localidades que se formaram à beira do rio
Araguaia: São Félix do Araguaia, Santa Terezinha, Santo Antônio e Luciara,
sendo estas originadas de migrações nordestinas datadas do início do século XX.
E, daqueles municípios mais diretamente ligados à esfera de influência da BR
158, como, por exemplo, Ribeirão Cascalheira, Vila Rica e Confresa. O processo
de (re)ocupação daquele espaço se deu a partir dos projetos agropecuários,
principalmente por empresas privadas, e pela implantação de assentamentos do
PNRA.
A (re)ocupação da região nos permite compreender alguns dos
conflitos vivenciados na década de 1970, desde a implantação dos projetos de
colonização voltados para a Amazônia durante o período ditatorial, bem como a
instauração de empresas agropecuárias com incentivos de órgãos estatais, como a
SUDAM, a SUDECO e o Banco do Brasil, que perduram até os dias atuais.
96
Ibidem, p. 116.
97
Dentre as disputas por terras podemos destacar: A Fazenda Tamakavy do Grupo Sílvio Santos
contra a fazenda Brasil Novo (1975); CODEARA X Fazenda Santa Lúcia (1976); Fazenda Santa
Cruz de propriedade de Antônio José Matoso teve a sua área contestada pelo senhor Amaury
acompanhado por 13 jagunços para expulsá-lo da área (1975).
O Araguaia era habitado por diversas sociedades indígenas, como
Xavante, Tapirapé, Karajá e Kayapó. De acordo com o João Carlos Barrozo98, a
história de colonização daquele espaço ocorreu a partir da Marcha para Oeste do
governo de Getúlio Vargas. Na década de 1940, as concessões de terras aliadas
aos incentivos para as empresas colonizadoras e aos projetos governamentais de
reforma agrária fizeram com que a população na região crescesse de forma
substancial.
Conforme Dom Pedro Casaldáliga, o fluxo de migração para o
Araguaia se deu em três momentos distintos, sendo que esta dinâmica da
população de adentrar e ocupar a região está na base dos problemas de luta e
posse da terra, desde a sua ocupação no início do século XX, que persistem até os
dias de hoje.
Casaldáliga nos mostra que primeiramente a região teve o contato dos
migrantes oriundos dos estados do Nordeste do país, fenômeno que durou até a
década de 1950, quando, por exemplo, chegavam atravessando o rio Araguaia em
98
BARROZO, João Carlos. Os assentados e os assentamentos rurais do Araguaia. In: HARRES,
Marluza Marques; JOANONI NETO, Vitale (Org..). História, Terra e Trabalho em Mato Grosso:
Ensaios Teóricos e Resultados de Pesquisas. São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT,
2009.
Grosso, e outro, um traçado terrestre, atravessando a Ilha do Bananal99 no sentido
100
Leste- .
A partir da crise do comércio da borracha em 1914 e,
consequentemente, a queda do seu preço no mercado internacional devido à
concorrência com o Oriente (Ásia: Ceilão, Indonésia e Malásia), o cotidiano dos
povoados do sul do estado do Pará, principalmente de Conceição do Araguaia
experimentou uma mudança acentuada na esfera econômica devido à redução da
produção do látex na Amazônia.
Como alega Guimarães Neto, os garimpos de diamantes no leste
mato-grossense, atual município de Guiratinga, atraíram grande número de ex-
seringueiros que subiram o rio Araguaia nas primeiras décadas do século XX em
busca de novas atividades laborais. Muitas dessas pessoas que estavam de
passagem para os garimpos do leste de Mato Grosso formaram famílias no
Araguaia.
99
A Ilha do Bananal é considerada a maior ilha fluvial do mundo, situa-se no estado do Tocantins,
na divisa com Mato Grosso. Formada pelo rio Araguaia, estende-se por 320 km com uma largura
máxima de 55 km. Um terço da área corresponde ao Parque Nacional do Araguaia, fundado em
1959, e o restante cabe à reserva indígena, onde vivem os índios Javaé e Karajá. Disponível em:
<http://www.emdiv.com.br/pt/brasil/obrasil/1824-ilha-do-bananal-a-maior-ilha-fluvial-do-
mundo.html>. Acesso em: 24 mai. 2011.
100
SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos... p. 255.
101
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Cidades da Mineração: memória e práticas culturais
Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá: Carlini & Caniato/EDUFMT, 2006, p. 90.
102
SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos...
O segundo trajeto usado para chegar ao povoado de Mato Verde foi
utilizado a partir de meados da década de 1940 pelas diversas famílias do norte do
estado de Goiás (atual Tocantins), sendo este movimento realizado a pé ou em
tropa, seguindo as trilhas nas matas e campos da Ilha do Bananal. Os migrantes
vieram principalmente das cidades de Pium, Cristalândia e Porto Nacional, a
caça, da coleta de frutos e da troca entre a vizinhança. Entre eles não havia
delimitação do espaço com marcos e não tinham a preocupação do registro de
105
.
Constatamos a atração de migrantes nordestinos num primeiro
momento, ludibriados pelos apelos propagandísticos políticos do governo de
Getúlio Vargas, bem como a conquista da terra prometida e anunciada pelas
um lugar promissor, impulsionados também por crises sociais como a fome, seca,
procura por terras livres, melhores condições de vida e a questão mística de que na
Amazônia havia a possibilidade de enriquecimento fácil.
Na primeira metade do século XX o nordeste do estado de Mato
Grosso já apresentava a criação de vários povoados na margem direita do rio
103
Ibidem, p. 257.
104
Considerado o fundador da cidade de Luciara, cujo nome é atribuído em sua homenagem e ao
rio Araguaia.
105
GONÇALVES, Judite; NICOLA, Rafaela. Araguaia do tranquilo balanço das águas à
turbulência anunciada: lutar é preciso. Campo Grande: ECOA, 2002, p. 20.
Araguaia: Furo de Pedra (1909), Lago Grande, Crisóstomo, Mato Verde (1934),
São Félix do Araguaia (1942) e Porto Alegre do Norte (1949), estando esse último
localizado às margens do rio Tapirapé. Estes povoados se constituíram ao longo
106
SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos... p. 270.
107
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 9.
108
A empresa colonizadora era formada por três grandes agropecuárias: CODEARA, FREVOVA e
SAPEVA. Criou o projeto Tapiraguaia, junção dos nomes dos povos indígenas Tapirapé e rio
Araguaia, com o objetivo de acolher os colonos do Sul.
nordeste de Mato Grosso Confresa, Santa Cruz do Xingu e Vila Rica, as
colonizadoras não cumpriram com os acordos estabelecidos durante a compra das
terras no que diz respeito à disponibilização de maquinários agrícolas, sendo que
algumas nem mesmo possuíam máquinas. Não havia escolas, nem estradas de
acesso aos lotes dos colonos. Muitos foram abandonados pelas empresas sem
dinheiro para retornar para o Sul do país.
Vale lembrar que muitas dessas pessoas vieram para essas novas áreas
de fronteiras acreditando nas mensagens publicitárias sobre a fertilidade da terra,
da inexistência de qualquer tipo de conflitos e do apoio de infraestrutura básica
109
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. BR-163 Cuiabá Santarém: Geopolítica, grilagem,
violência, mundialização. In: TORRES, Maurício (Org.). Amazônia Revelada: Os descaminhos ao
longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 91.
Suiá. Na futura cidade de Suiá seria construído um aeroporto internacional para
110
Liqüilândia havia apenas um curral e no lugar de Suiá só a se .
Como alega Barrozo, nos povoados do Araguaia, como, por exemplo,
em Santa Terezinha, os habitantes eram agricultores e pequenos criadores de
gado, os quais praticavam a pesca e a caça como atividades complementares.
ação, até hoje, parte das terras utilizadas para a criação de
111
.
Os empreendimentos agropecuários estabelecidos na região,
merecendo destaque as empresas CODEARA, FRENOVA, Suiá-Missu, Bordon
S/A, Tamacavy, Tapiraguaia112, entre outras, demandavam um número
significativo de trabalhadores que passaram a ser buscados em outros lugares,
especialmente em razão da falta de mão de obra na região para o atendimento de
suas necessidades, de tal sorte que tiveram de procurar trabalhadores no estado de
Goiás e no Nordeste brasileiro.
Nesse contexto de grande fluxo de pessoas que chegavam de
mudanças culturais e físicas, vinham os trabalhadores aliciados dos estados de
Goiás, Maranhão e Piauí. Os que partiam pela primeira vez do Maranhão e do
Piauí se depararam com uma fauna, flora e uma geografia diferentes do seu local
de origem. Em contrapartida, para os que vinham de Goiás havia menos
estranhamento, pois se estabeleceram em uma área muito semelhante daquelas
que estavam habituados, tendo em vista que o referido estado faz divisa com o
Mato Grosso e, assim, possuem aspectos geográficos parecidos.
Este processo de ocupação das terras no Araguaia ocasionou o
aumento da violência do campo, mortes, torturas de líderes comunitários e
militantes da Igreja Católica. Durante esse período, o Araguaia ficou tomado pelo
cenário dos conflitos entre os interesses do capital sob o respaldo do Estado,
contrapondo-se àqueles que defendiam os interesses dos excluídos na região.
110
Ibidem, p. 92.
111
BARROZO, João Carlos. Os assentados e os assentamentos rurais do Araguaia... p. 93.
112
Disponibilizamos uma relação dos projetos agropecuários aprovados pela SUDAM no Araguaia
mato-grossense. Ver Anexos: Tabela 2.
Como resultado de tal processo, foram construídas estratégias de resistência e
lutas pelo território. Foi de grande importância a atuação dos movimentos sociais,
tais como a CPT, CIMI e Sindicato dos Trabalhadores Rurais em conjunto com a
Igreja Católica, estes se organizaram e passaram a atuar junto aos posseiros,
pequenos proprietários, trabalhadores, migrantes e grupos indígenas.
113
GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Sertão, Fronteira, Brasil: Imagens de Mato Grosso no mapa da
civilização. Cuiabá: Entrelinhas/EDUFMT, 2012, p. 58.
117
A DURA, conquista da terra: Porto Alegre do Norte uma conquista dramática, Alvorada, São
Félix do Araguaia, jan/fev-2000, nº 214.
118
Pai do trabalhador rural e entrevistado, João Souza Lima (João da Angélica).
119
De acordo com as informações fornecidas por Justiniano Pereira Sales (Professor da rede
pública de Porto Alegre do Norte), o seu pai, José Pereira dos Santos, conhecido como Zé
Dimiciano (pelo fato da sua mãe se chamar Maria Domiciana), chegou a Cedrolândia no ano de
1950. A sua família naquele momento estava em formação, juntamente com a sua esposa Maria
Luiza Pereira Sales e seus filhos ainda com pouca idade, João Manoel Pereira Sales, Emilio
Pereira Sales e Marcelino Pereira Sales.
120
João Souza Lima (João da Angélica). Entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
121
A DURA, conquista da terra...
foram desapropriadas e passaram a buscar novas terras, até mesmo na condição de
posse ou de trabalhos temporários nas fazendas da região.
Mapa 3: Rota Fluvial a Porto Alegre do Norte/MT. Em destaque o percurso percorrido pelos posseiros que migraram de
Barreira do Campo/PA ao povoado de Porto Alegre do Norte/MT.
Estes migrantes se organizavam em terras ditas devolutas, em que
pudessem explorar uma posse sem que isto lhes gerasse maiores problemas. Desse
modo, esses posseiros adentraram em espaços desabitados, muitas vezes
encobertos pela mata, distantes das regiões densamente povoadas.
A mobilidade dos migrantes para a Amazônia é objeto de estudo de
diversos autores com perspectivas teóricas variadas. José de Souza Martins
122
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 17.
123
KELLER, Francisca Isabel Vieira. O homem da frente de expansão: permanência, mudança e
conflito. Revista de História, v. 51, 102, p. 665-709, abr/jun. 1975, p. 699.
outros grupos sociais. É possível ser o deslocamento no espaço
também uma regra social interna ao grupo.124
124
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 80.
125
WANDERLEY, Maria Nazareth Baudel. Raízes históricas do campesinato brasileiro. XX
Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, outubro. 1996, p. 8.
126
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. À procura das Bandeiras Verdes: Viagem, Missão e
Romaria. Movimento Sócio-religioso na Amazônia Oriental. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2001, p. 115-116.
127
a terra entra co .
É importante destacar que outro fator que impulsionou a vinda destes
trabalhadores rurais para Porto Alegre do Norte está relacionado com a questão da
religiosidade popular propagada pelo mito das
supostamente pelo Padre Cícero. Desse modo, os nordestinos deveriam migrar
para a Amazônia, considerada uma grande área desabitada, um lugar mítico
depois da travessia do grande rio128. Já na concepção de Vieira129
Ver
nordestino em direção à Amazônia, em busca do seu lugar social na fronteira. O
relato abaixo de Erotildes Millhomem130 nos ilustra este fato:
127
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil... p. 131.
128
MARTINS, José de Souza. O tempo da fronteira... p. 53.
129
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. À procura das Bandeiras Verdes... p. 152.
130
A família da entrevistada é oriunda do Maranhão e chegou a Luciara em 1939. Nascida em
Luciara/MT no dia 03/03/1939, filha de João Irineu da Silva e Enedina de Almeida. No final da
década de 1960 começou atuar como professora no GEA a pedido de Dom Pedro Casaldáliga. Ex
vice Prefeita de São Félix do Araguaia, no período de 1982/1989. Faz parte da Academia de
Letras, Cultura e Artes do Centro Oeste, Cadeira 21. Co-fundadora do Museu Histórico e Cultural
Municipal de São Félix do Araguaia.
ano eles ficavam em uma ponta de mata daquela e vinham até
que chegaram à beira do rio Araguaia e atravessaram.131
131
Erotildes da Silva Milhomem, entrevista de cinquenta e quatro minutos concedida à autora, em
06/12/2014 na cidade de São Félix do Araguaia.
132
Dionel Martins de Almeida.
133
José Pereira dos Santos.
Então, quando nós viemos de Barreira dos Campos viemos de
canoa, um monte de canoas. E de lá viemos para São Pedro e
para cá viemos de cavalo e canoa também. Como tinha uma
árvore muito grande com o nome de Cedro, então colocaram o
nome do lugar de Cedrolândia, porque deu muito Cedro. Meu
pai junto com o Dionelo fizeram uma roça, umas casinhas
beirando o chão e nós mudamos. Nossa mudança chegou em
Cedrolândia no dia 6 de janeiro de 1950. Eu tinha dez anos de
idade, justamente naquela época. Daí continuamos a morar e
chegar gente, daqui e de lá. Teve até umas quinze ou dezesseis
casas em Cedrolândia. [...] Eles falavam um seguinte: em
Barreira dos Campos, o pai desse Justiniano era irmão do meu
pai e também o meu padrinho. Aí chamou ele [José Pereira dos
Santos] mais o Dionelo para serem vaqueiros do Lúcio da Luz.
E tinha aquela história mesmo, antiga que o padre Cícero
Romão encomendava o povo a pegar as Bandeiras Verdes e ir
para a beira do rio Grande que era o rio Araguaia, não é? Pegar
as margens pequenas. Aí viemos e ficamos aqui. Chegamos a
Porto Alegre do Norte no dia 6 de janeiro de 1950.134
134
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
Naquela época Porto
Alegre do Norte não tinha ninguém, era toda desocupada. Então, ficamos lá
morando, porque tinha mata e fazia as rocinhas que cultivava, e tinha um gadinho
135
. Esta afirmação dialoga com os dados do censo do IBGE de 1950136, em
que a distribuição percentual da população no censo demográfico em Mato
Grosso era de 0,4%, enquanto que nos estados de Goiás (1,9%), Maranhão (3%) e
Pará (2,2%), de onde vieram a maioria dos migrantes de Porto Alegre do Norte,
havia uma população bem maior do que a do estado de Mato Grosso. Sob esta
ótica, a constatação de João da Angélica se torna compreensível. A falta de um
número elevado de pessoas e de empreendimentos rurais em Porto Alegre do
Norte foi uma prerrogativa encontrada para se ocupar as terras e desenvolver a
agricultura familiar de subsistência.
Partir em busca de novas terras não significava somente encontrar um
lugar para estabelecer a família e viver do sustento que as atividades laborais
proviam. Temos que considerar que por trás das falas dessas testemunhas há
implícita a violência do processo migratório. Essas pessoas não deixaram os seus
locais de origem apenas para seguir uma profecia religiosa; pois precisamos
lembrar que elas foram expulsas dos seus espaços de sociabilidade pela expansão
do capitalismo, pela seca, fome e miséria que assolavam a sua sobrevivência.
Diante desses fatos, é válido assinalarmos que esses indivíduos
deixaram para trás todo um trabalho desenvolvido nas suas antigas moradias,
quando perderam o acesso à terra juntamente com suas benfeitorias, as áreas
desmatadas, as roças, as criações, as casas, etc., todas feitas com muito sacrifício
se levarmos em consideração o baixo nível tecnológico dos seus instrumentos de
trabalho. Desse modo, a violência contida no processo migratório decorre do
prejuízo de muitos anos de trabalho desempenhado para a instalação e
135
Idem.
136
Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=5&uf=00>.
Acesso em: 04 jan. 2016.
subsistência familiar, acarreta a perda dos laços de pertença com o antigo lar, bem
como na destituição da sua história com o espaço que lhe conferia identidade.
O estabelecimento desses migrantes se deu principalmente às margens
do rio Araguaia, na divisa dos estados do Tocantins, Goiás, Pará e Mato Grosso.
As famílias que migraram para Porto Alegre do Norte passaram um período de
estadia na Ilha do Bananal. Portanto, do outro lado do rio Araguaia, formaram
vilas, patrimônios e sertões; plantavam roças e criavam gado em posses de 50 a
100 hectares, dando origem, principalmente aos municípios de Porto Alegre do
Norte, Luciara, Santa Terezinha, São Félix do Araguaia, entre outros.
Ao se instalar em Porto Alegre do Norte e se apropriar de um pedaço
de terra, a família passava a trabalhar na área, conforme as suas necessidades,
cabendo a ela escolher como, quando e o que cultivar de acordo com os limites
impostos pela natureza, bem como pelo acesso aos instrumentos de trabalho
necessários à plantação e o elemento característico da subsistência familiar a
força de trabalho de seus membros.
Entretanto, temos que levar em consideração que o processo de
estabelecimento nas novas áreas não era tão simples como parece ser, pois estas
famílias tinham que começar os trabalhos de desmatamento, construções e plantio
das roças tudo novamente, com o agravante de que elas não conheciam a nova
espacialidade, a fauna, a flora, o calendário climático para a cultura da lavoura e
das criações. Neste sentido, torna-se importante destacar que segundo Maria
Cantuario, o cultivo da mandioca e a técnica de plantar a raiz que era a base da
alimentação dos lavradores, decorreu da produção em área de capão 137 a partir da
observação dos conhecimentos dos povos indígenas que habitavam a região138.
Então, a concretização para a instalação em Porto Alegre do Norte implicava o
conhecimento das características da região, o que demandava tempo até que os
137
Extensão do cerrado, constituído de faixas de mata que não alagam no tempo das chuvas, então
chamadas de terras altas e usadas para plantar todas as culturas locais. CANTUARIO, Maria
Raimunda dos Santos. lavradores
às margens do Araguaia Mato-grossense (1950 1990). Dissertação (Mestrado em História)
Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2012, p. 36.
138
Ibidem, p. 114.
indivíduos reconhecessem os períodos das chuvas e das secas, as frutas e
hortaliças que poderiam ser cultivadas, os locais ideais para a criação de pastos do
gado, etc., ou seja, novamente essas pessoas sofriam com o processo violento da
migração.
As famílias que chegavam tinham que se dirigir aos antigos moradores
para que estes lhes indicassem os locais onde eles poderiam se estabelecer. Um
novo posseiro não poderia demarcar uma gleba já formada sem a permissão do
seu proprietário, assim os novos moradores se direcionavam até Domingos
Medeiros da Silva, conhecido como Domingão para acertar o local pretendido da
posse, conforme o relato de Ana Felicia Araújo139:
139
No final da década de 1950, Ana Felicia, conhecida como dona Nininha, migrou com a sua
família do Piauí para Cristalândia em Goiás (atual Tocantins), pois tinha um irmão que já morava
na localidade. A trajetória para Cristalândia foi realizada a pé. Depois de cinco anos ela se mudou
com uma irmã casada para Luciara/MT, onde posteriormente Ana Felicia se casou com Alexandre
Quirino de Sousa. Em 1962 se mudaram para Porto Alegre do Norte, porque ficaram sabendo que
havia terras para se ocupar e assim o seu esposo foi trabalhar nas fazendas da região. Sobre a
140
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
éramos sustentados por aquilo que dava na roça. Porque não tinha outro lugar para
141
.
As terras apropriadas pelos posseiros de Porto Alegre do Norte
deveriam ser exploradas logo que possível, pois não era permitido manter a área
sem produção à espera da regularização das posses. O posseiro conferia valor a
terra no momento em que esta passava a ser trabalhada, visto que não era a posse
que tinha maior importância, mas sim os frutos do trabalho que ela rendia,
conforme podemos verificar no relato a seguir:
141
Ibidem.
142
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte, grifo nosso.
agricultor que só dispunha da mão de obra familiar cumprir com todas as
obrigações agrícolas sem a ajuda dos vizinhos143.
Em relação às análises tecidas por Antonio Candido sobre o caipira
paulista, empregamos uma associação com as práticas de agricultura dos
trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, mas tendo a consciência dos
aspectos que diferenciam as pesquisas sobre o campesinato do interior de São
Paulo, especialmente no que se refere ao tempo e espaço. No entanto, buscamos
destacar que os posseiros de Porto Alegre do Norte também se utilizavam da
técnica do mutirão para o desmatamento, plantio e colheita nas suas roças.
O mutirão como forma de auxílio mútuo entre a vizinhança ocorria
devido à noção de pertencimento a uma localidade, a qual conferia coesão às
relações sociais além das existentes entre o grupo familiar. Sobre o mutirão,
Antonio Candido expõe que:
143
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010, p. 81-82.
144
Ibidem, p. 81, grifo do autor.
145
Ibidem, p. 76.
vizinhos que era tão importante quanto a exercida com os familiares, pois entre
estes indivíduos predominava uma relação amistosa, assinalada pelo autor como
146
. A sociabilidade entre os vizinhos era regida pelo
146
Ibidem, p. 72.
147
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
148
SÁ, Laís Mourão. Prática missionária e resistência cultural. In: ESTERCI, Neide (Org.).
Cooperativismo e coletivização no campo: questões sobre a prática da Igreja Popular no Brasil.
Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008, p. 15.
destacarmos que a prática dos mutirões em Porto Alegre do Norte, não ocorria
compadrio e vizinhança na ajuda mútua não era algo de todo objetivo, mas sim
fruto de uma atividade laboral desprovida de sofisticadas ferramentas de trabalho
e tecnologia, ou seja, de uma agricultura traçada pela precariedade.
No início da década de 1950, as famílias de migrantes oriundas
principalmente dos estados do Maranhão, sul do Pará e norte de Goiás começaram
a empreender a ocupação de Porto Alegre do Norte pela abertura das posses para a
sobrevivência e manutenção dos familiares. Durante os anos que se seguiram até a
década de 1970, a forma de propriedade na região era a posse, intensificada pela
propagação dos núcleos de ocupações através da chegada dos parentes, amigos e
conhecidos dos primeiros habitantes do local.
A base territorial de Porto Alegre do Norte é configurada pela
instalação das famílias próximas aos rios, córregos e riachos, sendo que o núcleo
urbano se formou às margens do rio Tapirapé, acarretando a formação de um novo
mapa das posses pelas referências das suas comunidades de origem, como as
posses de João da Angélica, dos Glórias - do senhor José Bento do povoado de
Canabrava do Norte, dos Guimarães e dos Fernandes149. A chegada desses grupos
familiares contribuiu para a constituição de novos grupos de indivíduos na
referência os nomes dos patriarcas das famílias. A disposição das posses seguia
dirigir aos antigos moradores e perguntar onde ele poderia demarcar a sua
gleba150.
laços de sociabilidade emitidos pela
relação entre a vizinhança impulsionavam as atividades do mutirão. Entretanto,
devemos considerar que a ajuda mútua disponibilizada de modo esporádico nos
149
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora,
em 02 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
150
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia...
mutirões também era reflexo de uma agricultura precária com poucos
instrumentos de trabalho e desprovida de maquinários, bem como pelo fato destes
indivíduos viverem em condições semelhantes de trabalho e de terem em comum
o contexto histórico imposto pelo processo violento da migração. Mas, além disso,
desejamos assinalar que o mutirão não tinha como expressão exclusiva a
manutenção da agricultura de subsistência, pois o ato de criarem uma consciência
de pertencimento à determinada localidade e ao grupo que estava ao seu redor,
demonstra que a conservação desses laços de sociabilidade foi fundamental para
as ações de enfrentamentos contra as empresas agropecuárias que vieram se
instalar na região a partir de década de 1970, conforme descritos nos capítulos
dois e quatro desta tese.
De acordo com Wanderley151, a agricultura familiar desenvolvida pelo
campesinato brasileiro pode ser expressa pela capacidade de prover a subsistência
do grupo familiar, em dois níveis complementares: a subsistência imediata, ou
seja, o atendimento das necessidades domésticas, e a reprodução da família pelas
gerações subsequentes. A produção camponesa se configura na denominada
-
grande número de atividades agrícolas e de criação animal, pois essa diversidade
de produtos poderia fornecer uma segurança contra possíveis adversidades da
natureza ou desigualdade das colheitas. Neste sentido, vemos que a família de
-
produziam vários alimentos, tais como: o arroz, o milho, a mandioca e a melancia,
criava-se porco, galinha e o gado. Entretanto, observamos que este fato não estava
apenas relacionado ao método de assegurar a alimentação familiar durante uma
possível intempérie, mas também para guarnecer a família com diversos gêneros
alimentícios na sua nutrição.
Em entrevista concedida pelo antigo morador da região, João da
Angélica, podemos perceber que a apropriação da terra ocorria de forma
individual, em que cada família trabalhava de modo autônomo na sua posse, isto
151
WANDERLEY, Maria Nazareth Baudel. Raízes históricas do campesinato brasileiro...
é, escolhendo o que produzir a partir dos ciclos da natureza, do estabelecimento na
terra, da disposição dos instrumentos de trabalho e a força laboral dos familiares e
da vizinhança. Este fato dialoga com Woortmann152, em que a terra para a
campesinidade não era vista como objeto de trabalho, mas como expressão de
moralidade, via-se nela a projeção de um patrimônio familiar, sobre a qual se faz
o trabalho que constrói a família enquanto valor; a terra não era simples coisa ou
mercadoria.
O objetivo fundamental da produção dos posseiros era a subsistência,
garantindo autonomia em relação à vida que tinham nos seus lugares de origem,
tendo em vista que antes o seu trabalho na terra tinha como finalidade atender os
anseios dos grandes proprietários, mas na nova espacialidade a sua produção se
dava de maneira autossuficiente para o seu consumo interno. Portanto, os
posseiros de Porto Alegre do Norte passaram a criar e fazer as suas próprias
reproduções. A venda dos excedentes não ocorria, pois os trabalhadores rurais
plantavam alimentos com pouca expressão no mercado. Assim, apenas o gado era
vendido nas raras vezes em que aparecia um atravessador na região, e com a
venda compravam-se os produtos que não se produziam nas posses, tais como
querosene, sal e tecidos. Nas atividades laborais dos lavradores, não havia o
emprego da mão de obra assalariada, contava-se com a ajuda da família e dos
vizinhos através dos mutirões para o plantio das suas roças. Estes indivíduos
organizaram a exploração do meio natural para atender as suas necessidades.
Nas perguntas que realizamos sobre os grupos indígenas do Araguaia,
as testemunhas apontaram que os índios das etnias Karajá e Tapirapé153 eram os
mais dóceis; já os Kayapó e os Xavante foram caracterizados como os índios mais
violentos. Desse modo, as casas dos moradores de Porto Alegre do Norte foram
152
WOORTMANN, Klaas. o campesinato como ordem moral.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília/Tempo Brasileiro, 1987, p. 11.
153
154
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
155
A palavra Rua significa que foram morar no núcleo urbano. Erotildes da Silva Milhomem,
entrevista de cinquenta e quatro minutos concedida à autora, em 06/12/2014 na cidade de São
Félix do Araguaia.
A família da entrevistada resolveu deixar o sertão para morar em um
núcleo urbano, considerado mais seguro dos ataques dos índios Kayapó. Ela
relatou que a população dos arredores de Luciara não reagia contra os índios, mas
em São Félix do Araguaia os moradores se armavam e matavam os povos
indígenas. Em Porto Alegre do Norte não encontramos relatos de violência contra
os Tapirapé, pois justificaram que estes índios se retiraram passivamente e se
deslocaram para outros territórios. As outras etnias presentes no Vale do Araguaia
causavam medo nas pessoas, conforme podemos verificar no relato do senhor
João Lima, um antigo morador do povoado:
157
IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes,
1979B, p. 13.
Brasília (BR 010). Este trajeto possibilitou também a (re)ocupação do sul do Pará
e norte de Goiás, atual Tocantins, bem como a instauração da rodovia TO 336 que
liga a cidade de Guaraí a Couto Magalhães às margens do rio Araguaia, da mesma
maneira que as rodovias inauguradas a partir da década de 1970, como a Cuiabá-
Santarém, a BR 158 que atravessa o país de Norte a Sul e a Transamazônica, que
passa por sete estados brasileiros: Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins,
Pará e Amazônia, permitindo, assim, um maior fluxo migratório de pessoas
provenientes de diversos estados do Brasil para o nordeste de Mato Grosso.
Os migrantes procuravam áreas de mata fechada providas de água por
meio de rios, fontes e córregos. Desse modo, as primeiras famílias de Porto
Alegre do Norte se organizaram próximas ao rio Tapirapé, um dos principais
afluentes do rio Araguaia, em uma distância média de 100 a 150 km nos varjões
adentro. Estes também partiam em busca de terras férteis, tendo em vista que não
possuíam meios financeiros para recuperação do solo através de fertilizantes ou
adubos sintéticos.
A (re)ocupação da região não teve um projeto programado. Foi feita a
partir do que Ianni158
planejamento elaborado por órgãos públicos ou privados. Os posseiros se
estabeleciam nas áreas, construíam suas moradias e benfeitorias, formavam vilas e
delimitavam os espaços de acordo com a chegada de novas famílias.
A formação do povoado de Porto Alegre do Norte foi constituída
através da (re)ocupação daquele espaço pelas primeiras famílias que, com o
tempo, foram avisando parentes, amigos e conhecidos sobre a existência de terras
devolutas. Dessa forma, com o aumento da população se formou um conjunto
rural e urbano denominado por seus habitantes de patrimônio.
A lógica dos deslocamentos e ocupação dos espaços para a
constituição das moradas em Porto Alegre do Norte possui relação com a
instauração dos novos povoados estudados por Francisca Isabel Vieira Keller na
formação do campesinato maranhense. Em Porto Alegre do Norte a área ocupada
158
Idem.
pelos posseiros era denominada de patrimônio, já no interior das ocupações ao
longo da rodovia Belém Brasília, conforme Keller atribuía-se o nome de
As festas eram boas! Esse povo inventava santo não sei de onde
vinha. Todo dia tinha uma festa de um santo diferente. O santo
fulano de tal, o santo do Bom Jesus da Lapa, São Sebastião, São
Pedro, então tinha aquela festa, dois, três dias de festas. Aí os
padres vinham para a desobriga. Eles ficavam na Idalina. Eles
vinham de canoa ou barco e parava lá. Mandavam avisar que
tinham chegado. Nós saíamos de Cedrolândia para batizar os
meninos, celebrar os casamentos. Aquele tempo era tão bom!
Não é que nem hoje não161.
159
KELLER, Francisca Isabel Vieira. O homem da frente de expansão... p. 674.
160
Essas cerimônias eram realizadas através das visitas das desobrigas dos missionários no
princípio de cada ano, aos locais remotos. Levando os sacramentos às populações que não
dispunham de assistência religiosa regular, devido ao próprio isolamento em que viviam ou
ausência de padres na região. O nome desobrigas refere-se ao antigo preceito da Igreja de que o
católico é obrigado ao menos uma vez por ano a confessar-se e comungar. Foi muito comum no
Brasil desde o período colonial em razão das grandes distâncias e do pequeno número de padres
para atender, principalmente, as comunidades mais distantes do interior.
161
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
As festas de santos, as celebrações de batizado e de casamento eram
os momentos propícios para que a população dos núcleos de ocupação, como
Cedrolândia, próxima ao núcleo urbano de Porto Alegre do Norte, se reunissem e
partilhassem desses momentos de descontração, oportunizada pelas atividades das
desobrigas. Esses acontecimentos contribuíam para o enriquecimento cultural pelo
fato de se encontrarem diversas culturas oriundas de diferentes estados do país,
como também a troca e a criação de novos elementos culturais. Desse modo, o
núcleo urbano era considerado um ponto de referência para os moradores da
localidade, pois era onde os posseiros faziam suas compras, participavam das
festas religiosas batizados e casamentos, e vivenciavam as mais variadas
experiências culturais.
Esses núcleos de ocupação estavam muito distantes dos centros de
saúde, sendo que a Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga, publicada em 1971,
aponta que a saúde era um problema para 80% da população do Araguaia mato-
grossense. Naquele período só existia o Hospital do Índio de Santa Isabel na Ilha
do Bananal, que passou a funcionar no ano de 1969 162. Se a saúde ainda
continuava precária na década de 1970, com a chegada dos empreendimentos
agropecuários, imagine na década de 1950 quando os posseiros criaram diversos
núcleos de ocupações próximos ao núcleo urbano de Porto Alegre do Norte. Neste
sentido, em relação às doenças é válido apresentarmos a descrição de João da
Angélica:
162
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 31.
meninos, aí embrulhava os meninos com as cobertas e quando
suava sarava.163
163
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
164
Idem.
165
MARTINS, José de Souza. A vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil. V.4, São Paulo: Cia. das Letras,
1998, p. 710.
áreas comuns, ou seja, espaços de uso comunitário. Estas áreas conhecidas como
-prima para a
construção das benfeitorias, como a madeira, a palha, o barro para os tijolos
166
O entrevistado explicou que naquela época não se desmatava sem necessidade.
167
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida a
autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
168
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 16.
169
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida a
autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
criação de gado, extrair as minhocas usadas na pescaria, adubo aplicado nos
canteiros e nas plantações do quintal, os capins para encher os sacos, que eram
usados como colchões, retiravam o barro de louça (argila) para a construção de
paredes, adobes, fornos, fogões de lenha, potes, panelas, cachimbos e outros
utensílios domésticos170.
O espaço desmatado dava lugar à vila/patrimônio, mas no seu interior,
ou seja, no sertão, se formaram casas, sítios, roças e áreas de trabalho das
famílias. Alguns possuíam casas nos patrimônios ou se mudavam definitivamente
para o sertão. Desse modo, o povoado se organizou em unidades domésticas sob
determinada liderança, unidos através de laços de parentescos, compadrio e
afinidade intermediada por uma relação à base de trocas, reciprocidade e
cooperação nos trabalhos171.
170
CANTUARIO, Maria Raimunda dos Santos. p. 48.
171
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 15.
172
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida a
autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
qual podemos identificar no relato de Ataíde da Silva173, mais conhecido como
O compadrio tinha mais força do que ser irmão. O compadre era uma
coisa muito forte e tinha mais força que o irmão. Era tão importante que passavam
174
a conviver essa situação de isolamento, de re .
De acordo com Laís Mourão Sá, os três sistemas (parentesco,
compadrio e vizinhança) determinam as relações em todas as instâncias da vida
social camponesa. Estas relações de produção possibilitam às disposições básicas
imprescindíveis as exigências do trabalho. A família camponesa deve ser
entendida ao mesmo tempo como unidade de produção e unidade de consumo,
pois na roça familiar se obtém a sua produção econômica que tem por finalidade
atender as necessidades de consumo doméstico. Já a unidade de produção, se
pauta na propriedade dos meios de produção. Esta decorre da divisão do trabalho,
definida pelo parentesco, o qual se assenta nos critérios do sexo e da idade. O
trabalho familiar também é composto por um sistema de colaboração mais amplo,
o da troca-de-dia, reguladas pelo parentesco, compadrio e vizinhança175.
A unidade doméstica tem como foco de autoridade os propósitos do
chefe da família no controle do processo produtivo, a apropriação e uso do
trabalho. Assim, este procedimento ocorre pelo sistema de parentesco que codifica
o chefe de família que decide sobre o
trabalho de cada membro; é ele quem decide sobre a redistribuição do produto,
feita apenas no momento do consumo (na casa) e de acordo com as necessidades
176
. Ainda sobre o sistema de produção
ado a
autoridade máxima e encarregado pela alimentação dos familiares. O pai é quem
173
Chegou a Porto Alegre do Norte em 1972 para compor a equipe de leigos da Prelazia de São
Félix do Araguaia e atuar como professor da escola do povoado.
174
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora,
em 2 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
175
SÁ, Laís Mourão. Prática missionária e resistência cultural... p. 16.
176
Ibidem, p. 17.
decide o que plantar, quanto, e o que vender, como também atribui os serviços da
roça; e a mãe é quem divide os afazeres domésticos177.
A disposição geográfica do patrimônio de Porto Alegre do Norte era
composta da seguinte forma: o núcleo urbano localizado próximo ao rio Tapirapé,
formado pelas casas dos habitantes compostas por quintais providos de criações
domésticas e árvores frutíferas; os comércios, a escola, a Igreja Católica e o
bebedouro público do gado; as áreas de uso comum: aguada, cerrado, mata, e por
fim, o sertão.
Os núcleos de ocupação direcionavam-se dos sertões para a vila, ou
seja, do patrimônio ou núcleo urbano, através de estradas ou caminhos que iam
sendo construídos ao longo das idas e vindas dos seus habitantes. As famílias
viviam basicamente do que produziam, muitos produtos e principalmente
medicamentos eram trazidos geralmente da cidade de Belém por meio de
embarcações através dos rios Tocantins e Araguaia:
177
ESTERCI, Neide. Roças comunitárias: projetos de transformação e formas de luta. In:
ESTERCI, Neide (Org.). Cooperativismo e coletivização no campo: questões sobre a prática da
Igreja Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008B, p. 25.
178
DUTERTRE, Alain; CASALDÁLIGA, Pedro e BALDUÍNO, Tomás. Francisco Jentel:
defensor do povo do Araguaia. 2. ed. Belo Horizonte: O Lutador, 2004, p. 13.
179
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato: um estudo comparativo a
partir da fronteira em movimento. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009, p.
186.
provenientes de regiões de fronteiras fosse integrada ao mercado nacional por
meio dessas estradas. Entretanto, conforme o relato acima, no Araguaia mato-
grossense a população praticava a agricultura de subsistência, impossibilitando,
assim, uma vinculação comercial com outros locais, tendo em vista que, por
exemplo, em Porto Alegre do Norte, a produção era voltada para produtos pouco
valorizados no comércio, como: o milho, a mandioca, a farinha e o arroz.
Desse modo, quando ocorria a venda dessas mercadorias, estas
recebiam um valor muito baixo, limitando o poder de compra dos posseiros, bem
como dificultando a integração do seu cultivo ao mercado nacional sob a
perspectiva de colaborar no seu abastecimento, haja vista que a agricultura era de
subsistência tendo a sua maior parte destinada ao autoconsumo, sendo apenas o
gado, o item mais importante numa possível comercialização, segundo podemos
identificar no relato abaixo:
Não se vendia nada. O arroz era para o uso nosso, assim como o
milho, a mandioca, tudo, tudo, tudo. A agricultura era de
subsistência. E criava um gadinho, cavalo, porco, jumento e
galinha. Era a maior riqueza aquele tempo. Tudo era para comer
e nada vendia. Até porque naquele tempo não tinha para quem
vender, tudo era uma coisa só, né? Aí quando vendia, vendia
um gado, um boi grande para uns homens que hoje a gente
chama de atravessador que vinha aí e comprava. Aí nossos pais
compravam o sal, compravam a roupa.180
180
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
Para melhor atender as necessidades sociais, culturais e
181
INCRA, 1973 apud IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 61.
182
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A 17.3.16, 1978, p. 3.
com a instalação da Prelazia de São Félix do Araguaia no final da década de 1960
que se fortaleceu uma maior relação entre esses núcleos.
No entanto, as descrições dos empreendimentos rurais só se
assemelhavam aos modos de vida dos posseiros, isto é, da organização dos
núcleos de ocupação dos trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, pois na
prática o posseiro não tinha relações com o INCRA, não possuía meios
financeiros para comprar as terras nas áreas dos projetos de colonização, bem
como não podia fazer financiamentos nos bancos. Assim, estes não eram
183
IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 14, grifos nossos.
184
MARTINS, José de Souza. Fronteira...
185
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A cidadania dilacerada. Revista Crítica de Ciências
Sociais, Coimbra, n. 37, jun. 1993A.
havia entre os
camponeses das regiões de origem, de certa forma acuados pela falta de terras, um
desejo de reproduzir-se como camponeses, quer tratando-se deles mesmos em
melhores terras ou em áreas mais extensas, ou de seus filhos em condições
186
semelhantes . Desse modo, a fronteira possibilitou a busca por terras livres
como um projeto de vida para a constituição de uma espacialidade familiar,
mesmo em um local distante das suas origens.
É importante levarmos em consideração que os migrantes não
buscavam somente a conquista da terra. Eles também almejavam ter uma
cidadania na fronteira, ou seja, constituir a dignidade que lhes era negada nas suas
regiões de origem. A migração garantiria a manutenção dos seus padrões
rotineiros de produtividade, bem como a perspectiva para a realização da
agricultura de subsistência familiar sob melhores condições. Estes desejos
impulsionaram a chegada dos trabalhadores rurais em Porto Alegre do Norte
constituindo, assim, um novo grupo de indivíduos na fronteira.
186
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Matuchos exclusão e luta: do Sul para a Amazônia.
Petrópolis: Vozes, 1993B, p. 258.
2. OS PROJETOS AGROPECUÁRIOS E DE COLONIZAÇÃO NA
AMAZÔNIA LEGAL DURANTE A DÉCADA DE 1970
187
189
.
Segundo Golbery do Couto e Silva:
189
A região Norte está inserida na Amazônia que compreende os estados do Acre, Amapá,
Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins. A Amazônia Legal é acrescida pelo estado de
Mato Grosso e parte do Maranhão.
190
COUTO e SILVA. Golbery. Conjuntura polícia nacional: o poder executivo & geopolítica do
Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 13.
e entregues à pobreza, auxiliaria no desenvolvimento econômico, político e social
da Amazônia.
Durante o governo militar a política de colonização foi definida como:
191
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d59428.htm>. Acesso
em: 31 jan. 2016.
192
JOANONI NETO, Vitale. Amazônia na década de 1970. A fronteira sob o olhar do migrante.
Revista Eletrônica da ANPHLAC, São Paulo, n. 19, p. 186-206, jan./jul. 2014, p. 190.
193
A SUDAM foi criada no governo de Castelo Branco no ano de 1966, sendo um importante
órgão de fomento para projetos agropecuários implantados no Centro-Oeste e em toda a região
SUDECO e programas governamentais como o PIN e o PROTERRA, e os pólos
de desenvolvimento o POLOAMAZÔNIA, o POLOCENTRO194 e o
POLONOROESTE, entre outros. Estes disponibilizavam aos empresários
incentivos fiscais, linhas de financiamentos, juros subsidiados e prazos longos, o
que despertou o interesse em muitos proprietários de empresas distantes do ramo
rural para a implantação de projetos agropecuários, agroindustriais, e,
consequentemente, o de colonização da região.
A SUDAM foi o principal órgão responsável pela aprovação dos
projetos agropecuários e de colonização na Amazônia. Segundo Ianni:
amazônica em meados da década de 60. Substituiu outra autarquia, a SPVEA, criada por Getúlio
Vargas, em 1953, com objetivos semelhantes aos da SUDAM.
194
POLOCENTRO foi criado no governo do general Geisel através do Decreto nº. 75.320, de
29/01/1975 para transformar os cerrados em área de expansão de frentes comerciais a partir do
Centro-Oeste e do Oeste de Minas Gerais. Como meta deveria incorporar cerca de 3,7 milhões de
hectares ao setor produtivo nas áreas de agricultura, pecuária e florestas. Suas ações preconizavam
apoio à infraestrutura (armazenamento, estradas rurais, eletrificação e assistência técnica,
pesquisas de sementes de soja apropriadas para o cerrado).
195
IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 60.
O governo disponibilizou a oferta de incentivos fiscais, conforme
expõe Martins:
196
MARTINS, José de Souza. Fronteira... p. 75.
chegou às mãos de proprietários tradicionais, educados na
tradição oligárquica da dominação pessoal e da violência.197
197
Ibidem, p. 77.
198
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1985, p. 68.
199
BECKER, Bertha; MIRANDA, Mariana; MACHADO, Lia. Fronteira amazônica. Questões
sobre a gestão de território. Brasília/Rio de Janeiro: Ed. UNB/ Ed. UFRJ, 1990, p. 35.
200
Idem.
bem como a rede hidroelétrica, que foi gerada para fornecer energia, o insumo
básico à nova fase industrial do país.
Os projetos de colonização se distribuíram ao longo dos principais
eixos de circulação rodoviária e fluvial. Em sua maioria, estão localizados na
Amazônia Oriental, situada nas proximidades da rodovia Belém-Brasília,
distribuindo-se mais esparsamente pela rodovia Cuiabá-Porto Velho (BR 364)
entre Vilhena e Ji-Paraná, Vale do rio Amazonas e na Transamazônica entre
Itaituba, Santarém e Altamira no Pará. Na BR 153 entre Nova Mutum e Guarantã
do Norte.
A política de colonização para a Amazônia adotou uma extensão que
se relacionava às questões de segurança e de posse e uso da terra numa escala sem
precedentes, tendo em vista que com os fluxos migratórios para a Amazônia
ansiava-se reduzir ou ao menos controlar os problemas sociais ligados à terra em
outras áreas do país. Os projetos de colonização oficial e particular foram muito
questionados e assinalados como executados por motivos de segurança interna,
que tinham como pretensão aliviar tensões e conflitos em outras partes do Brasil,
principalmente nos estados do Nordeste, os quais possuíam estruturas agrárias
favoráveis para a expansão capitalista.
Becker201 demonstra que a inserção do Brasil no capitalismo global
estimulou a capitalização da agricultura cuja articulação com a indústria foi
viabilizada pelo Estado de duas formas: pela integração vertical, com subsídios à
produtividade, e pela integração horizontal, com subsídios à ocupação da
fronteira.
No governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) foi criado o
PIN com o objetivo de integrar a região amazônica ao restante do país. O PIN foi
instituído em 16 de junho de 1970, com recursos previstos de incentivos fiscais,
doações, e contribuições de empresas privadas ou públicas, cujo imposto de renda
seria deduzido em 30% e destinados somente para o projeto.
201
Idem.
O governo começou a executar projetos como a construção da
Rodovia Transamazônica e a Rodovia Cuiabá-Santarém; o monitoramento aéreo
da Amazônia pelo Projeto RADAM; e a implantação dos Projetos de Colonização
às margens da Transamazônica, nas faixas de terra até 100 km às margens das
Rodovias Federais; para além da viabilidade dos projetos de colonização e
agropecuários, a rede de rodovias na Amazônia serviu para reorientar o fluxo
migratório nordestino, desviando-o do Sul para o Norte e Centro-Oeste.
Na década de 1970, foi criado também o INCRA, que tinha como
objetivos: executar a reforma agrária, a colonização e promover o
desenvolvimento rural. O INCRA garantia o título de posse aos colonos depois do
assentamento e, por conseguinte proporcionava às empresas colonizadoras a
rentabilidade do negócio empreendido.
Em 1971 foi instituído o PROTERRA que restabeleceu a regra de
prévi
possibilidades de crédito agrícola para as empresas privadas de colonização, com
a liberação de fundos para a modernização das propriedades agrárias e
202
agroindustriais recentemente e .
A partir dos projetos de colonização e agropecuários, a agricultura no
Brasil toma outro perfil, com as seguintes características: concentração fundiária,
a utilização de processos mecânicos e insumos químicos e biológicos, aumento na
capacidade de armazenamento, transportes, comercialização, logísticas, expansão
dos créditos agrícola.
A entrada dos empresários urbanos nas áreas de fronteira brasileira
acarretou na apropriação de terras pelos novos agentes econômicos que
adentraram nessa região de tal sorte que estes junto aos órgãos como o INCRA
demarcaram os novos espaços a serem utilizados (reservas ecológicas, sociedades
indígenas, extrativismo vegetal e mineral, áreas para projetos agropecuários e de
colonização, etc.). Estes espaços que antes pertenciam às comunidades antigas
como: ribeirinhos, caboclos, posseiros e índios foram ocupados pelos projetos de
202
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Matuchos... p. 53.
colonização ocasionando assim, os vários conflitos e a violência presentes até hoje
na Amazônia203.
a Amazônia Legal.
Os posseiros tiveram suas terras de trabalho desapropriadas pelas
empresas agropecuárias; já as sociedades indígenas adentraram em direção as
203
CASTRO, Sueli Pereira de. et. al. A colonização oficial em Mato Grosso
matas virgens, ou acabaram entrando em conflito204 com os invasores que se
apropriaram de seu território. Em muitas situações, os desapropriados, depois de
perderem a terra, seu principal e único meio de produção, tiveram que vender sua
força de trabalho para os expropriadores, que passaram a explorá-los como força
de trabalho. Assim, o processo de expropriação liberou a terra para o
expropriador, criando a força de trabalho que a empresa precisava, e o
consumidor, que já não produzia mais a sua alimentação.
Com uma política voltada para atender os interesses da elite brasileira,
o processo de (re)ocupação da Amazônia, ao invés de proporcionar para essa
região um lugar para conter os conflitos agrários, tornou-se o ambiente da
violência e da impunidade. Desse modo, o projeto do governo ditatorial se
ião amazônica por
meio das rodovias e estradas a outros pontos do país, bem como viabilizou a
expansão do capital através das empresas agropecuárias; mas em contrapartida,
esses projetos agropecuários geraram os conflitos e a violência sob as camadas
mais vulneráveis, que foram e continuam sendo as vítimas das atrocidades
cometidas pelo capital.
É diante deste contexto, que as frentes de expansão e as frentes
pioneiras estudadas por Martins205 como categorias de análises, em certo
momento se encontram e se contrastam na dinâmica das temporalidades históricas
da fronteira, impostas pela expansão do capital. Nestas novas áreas, as relações
sociais foram alteradas para atender os interesses dos latifundiários, assim, os
trabalhadores rurais, posseiros, e índios que ocupavam a região antes da
implantação dos projetos do governo, desempenhavam atividades mercantis,
baseados em produtos naturais e o cultivo de pequenas roças para a sobrevivência,
tornaram-se as vítimas da reprodução do capital. Em decorrência da entrada do
capitalismo como forma de levar o desenvolvimento para esses espaços distantes
204
Entre os conflitos de expropriação de posseiros e indígenas podemos citar: Santa Terezinha
(CODEARA x posseiros); Suiá-Missu (Xavantes); Tapiraguaia x Tapirapés.
205
MARTINS, José de Souza. Fronteira...
do centro do Brasil, estas populações tradicionais foram excluídas desse processo,
sendo violentadas de várias formas, seja física ou moral para ceder lugar à
exploração de recursos naturais, bem como propiciar a instalação dos
empreendimentos agropecuários.
A inserção do capitalismo no Araguaia mato-grossense o transformou
em uma das regiões com extrema concentração de terra sob o domínio de uma
minoria cuja prática da pecuária é a atividade que ainda predomina naquela
região. Neste sentido, o que podemos verificar no nordeste de Mato Grosso como
em outras partes do seu território, é a preponderante relação de poder que se
uma característica sólida, a
qual beneficiou os donos do capital. Para ilustrar tal situação, Martins assinala
que:
206
MARTINS, José de Souza. Fronteira... p. 80.
comuns os casos de tensão e violência pela ocupação daquele território,
merecendo destaque a disputa pelas terras da antiga fazenda Suiá-Missu da
empresa italiana AGIP Petroli situada no município de Alto Boa Vista. Após o
reconhecimento oficial do governo brasileiro de que o território era indígena, este
se comprometeu em devolver as terras para os Xavante. No entanto, em 1992,
depois da identificação da terra pela FUNAI, os fazendeiros e políticos da região
passaram a incentivar a invasão das áreas indígenas por posseiros, que continuam
nas terras207 sob os recursos da justiça.
Vale referir ainda, o importante papel da Igreja Católica e dos
Sindicatos dos Trabalhadores Rurais na intermediação dos conflitos agrários e no
próprio processo de (re)ocupação, por meio da organização das comunidades
rurais. Outra instituição importante na região é a CPT, atuante naquele espaço
desde a década de 1980, e que ainda desempenha ações de fiscalização, denúncias
de trabalho escravo e a violência no campo no Araguaia mato-grossense.
Pode-se constatar que as ações governamentais realizadas durante a
ditadura militar colaboraram para a intensificação dos conflitos agrários, ao
beneficiar, especialmente, grupos de grandes empresários e latifundiários. Deste
modo, a distribuição de terras no Brasil deveria proporcionar a expansão da
fronteira cuja finalidade seria evitar a violência rural, tendo em vista que os
207
Diversas negociações foram realizadas desde o ano de 1992 para que os posseiros e fazendeiros
fossem retirados das terras indígenas Marãiwatsédé. Em setembro de 2012 foi iniciada a
desocupação da área Xavante que terminou no dia 27 de janeiro de 2013. Entretanto, algumas
pessoas voltaram a ocupar a área no dia 26 de janeiro de 2014, após a saída das Polícias Federal e
Rodoviária Federal do local. Um grupo de cerca de 50 posseiros fechou a rodovia no Posto da
Mata e invadiu a localidade, expulsando servidores da FUNAI que ali trabalhavam. O cacique
Damião Paridzané foi perseguido quando tentava se aproximar do local. Disponível em:
<http://maraiwatsede.org.br/>. Acesso em: 18 jan. 2016. A respeito consultar: ROSA, Juliana
Cristina da. A Luta pela Terra Marãiwatsédé: Povo Xavante, Agropecuária Suiá Missú, Posseiros
e Grileiros do Posto da Mata em disputa. (1960-2012). Dissertação (Mestrado em História).
Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2015.
acesso aos títulos de propriedade, provocando assim, os conflitos com os
posseiros que estavam estabelecidos naquelas áreas muito antes da chegada do
grande capital. Em decorrência disso, os posseiros expulsos de suas terras,
deslocam-se em direção às florestas, abrindo novas áreas para trabalhar,
Amazônia.
Contudo, verifica-se que o discurso da integração através da
ocupação, proferido pelo Estado, deixa aclarar indistintamente a existência de
objetivos conflitantes que explicitam os problemas no planejamento estatal para a
(re)ocupação da Amazônia.
208
É importante lembrarmos que a decisão de dividir o estado de Mato Grosso em dois foi tomada
no ano de 1977 e efetivada em 1979 com a criação de Mato Grosso do Sul.
209
Devemos destacar que neste ano foi constituído o Território Federal do Guaporé, com capital
em Porto Velho, mediante o desmembramento de áreas de Mato Grosso e do Amazonas. No
extremo Sul de Mato Grosso, o governo Vargas criou o Território de Ponta Porã, ocupando a área
explorada pela Cia Mate Laranjeira. Ver: LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha
(A especulação com a terra no Oeste brasileiro nos anos 50). Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 6, n. 12, p. 47-64, mar/ago. 1986.
em torno de Xavantina, restritos basicamente aos funcionários do órgão e sem
expansão dos mesmos. Entretanto, em 1963 a vila foi transformada em distrito
com o nome de Ministro João Alberto e em 1980, elevado a município com o
nome de Nova Xavantina.
Em 1946 foi criado o DTC, pois os governos estaduais 210 tinham
como propósito a política de vendas de terras públicas/devolutas, executando
concomitantemente a colonização em primeiro plano e em segundo, a
regularização fundiária. Desse modo, entre 1950 e 1964, o estado de Mato Grosso
passou a vender indiscriminadamente as suas terras devolutas, bem como a sua
utilização em interesses políticos, sendo empregada como premiação ou
pagamento de préstimos eleitorais211.
Para Lenharo, os políticos locais e os grupos econômicos de fora,
formaram alianças empresariais e eleitorais com a finalidade de controlar a
distribuição de terras devolutas do estado de Mato Grosso. Assim, o governo
estadual não se ajustava por nenhum critério fixo para a concessão das terras.
215
MORENO, Gislaene. O processo histórico... p. 80.
216
Ibidem, p. 81.
Chegar a São Félix não foi fácil. Foram sete dias de viagem
num caminhão, a maior parte deles no meio da mata. Sete dias e
sete noites, de Rio Claro, passando por Goiânia e Barra do
Garças, até chegar em São Félix do Araguaia. Os últimos
quilômetros foram os mais duros, porque a estrada, que ainda
estava sendo feita, era praticamente inexistente em muitos
trechos. Casaldáliga viajava acompanhado por Manoel Luzón,
outro missionário Claretiano. Ambos iam compartilhar a
aventura de fundar a missão de São Félix e, na medida em que
se aproximavam de seu destino, aumentavam a sensação de
chegar a um mundo de onde o retorno era impossível217.
217
ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha. São Paulo: Ed. Unicamp, 2000, p.
14.
218
Ibidem, p. 46.
219
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em conflito... p. 4.
distância da capital do Estado colocava muitas barreiras na comunicação e na
povo, que era nenhuma. Então resolvemos buscar um modelo pastoral que atuasse
222
de maneira completa, e não apenas com o tra .
O modo como a fé era praticada no Araguaia antes da chegada de
Casaldáliga demonstrava uma mescla de sincretismo religioso, o uso de ervas
220
Ibidem, p. 35.
221
ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha... p. 15.
222
CASALDÁLIGA apud VARGAS, Rodrigo. Atuação social ganhou simpatia dos fracos e a ira
de poderosos. 2003. Disponível em:< http://diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=131553>.
Acesso em: 22 jun. 2011.
medicinais para prevenção e a cura de doenças como a única alternativa acessível
para aquela população, bem como o hábito de recorrer a benzedeiras e
curandeiros. Ao chegar a São Félix, Pedro Casaldáliga se preocupou com a fé
daquela população que confiava aos seus filhos como padrinhos de batismo,
pessoas distantes do núcleo familiar ou da Igreja, o critério de escolha estava
atrelado a interesses econômicos e sociais.
223
ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha... p. 16, grifos do autor.
224
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 39.
A Igreja Católica desta região tinha sido durante séculos, ou
uma igreja dependente das metrópoles, fundamentalmente
Portugal e a Espanha, ou uma igreja muito romanizada. Não
tinha o rosto latino-americano. Medelín abriu espaço para esta
opção pelos pobres, pela cultura, pela América Latina225.
225
CASALDÁLIGA apud VARGAS, Rodrigo. Atuação social ganhou simpatia dos fracos e a ira
de poderosos. 2003. Disponível em:< http://diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=131553>.
Acesso em: 22 jun. 2011.
226
CASALDÁLIGA, 1970 apud CANTUÁRIO, Maria Raimunda dos Santos. Descalço sobre a
terra vermelha D. Pedro Casaldáliga. In: Igreja Católica e os cem anos da Arquidiocese de
Cuiabá (1910 2010). PERARO, Maria Adenir (Org.). Cuiabá: EDUFMT, 2008, p. 193.
autoridade popular de uma equipe livremente eleita, conhecida
227
.
Com as denúncias de Dom Pedro sobre a existência de trabalho
escravo nas fazendas da região a partir da divulgação da Carta Pastoral, os
fazendeiros locais proibiram a entrada dos agentes pastorais nas suas fazendas, e
assim os peões ficaram desprovidos do atendimento da Prelazia, segundo
conduta dos donos, gerentes e capatazes. Nem era possível agir com liberdade. Os
228
peões por outra parte, nunca p .
Muitos trabalhadores ao saírem das fazendas se dirigiam para a
Prelazia de São Félix do Araguaia ou para as pastorais locais para pedirem ajuda
aos membros da Igreja. Estes trabalhadores inconformados com as suas condições
de trabalho fugiam das fazendas, e, sem dinheiro procuravam a Prelazia para
denunciar tais irregularidades trabalhistas. Dom Pedro se preocupou em
documentar todas estas denúncias e arquivá-las em seu acervo pessoal, que
posteriormente foi doado à Prelazia. Estes documentos encontram-se na pasta com
o código B08 do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia, relatam as más
condições de trabalho nas fazendas, a falta de contrato trabalhista, a falta de
assistência médica, o não pagamento, as falsas promessas dos gatos229, o acúmulo
de dívidas dos trabalhadores nos armazéns das empresas, além de contabilizar o
número de mortes destes trabalhadores.
Um importante trabalho de Dom Pedro junto a estes trabalhadores
migrantes foi instruí-los que as suas condições de trabalhos eram inaceitáveis,
227
Sobre este documento consultar: CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 122-
123.
228
Ibidem, p. 38.
229
Empreiteiro contratado para desflorestamento, feitura e conservação de pastos e cercas ou
serviços para fazendeiros e empresas agropecuárias na Amazônia. Muitas vezes anda armado,
homicídios. Em geral os mais violentos gozam de prestígio, são considerados eficientes e podem
prestar serviço por anos consecutivos para as maiores empresas. FIGUEIRA, Ricardo Rezende.
Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 17.
pois estavam submetidos a situações de superexploração sem os devidos direitos
garantidos pelas leis trabalhistas, bem como o amparo dos direitos humanos.
230
Ibidem, p. 28.
231
ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha... p. 85.
232
A Teologia da Libertação é uma corrente teológica de interpretação do cristianismo que enfatiza
a atuação político-social do cristão em prol da transformação das estruturas de exploração da
sociedade capitalista (causadora de injustiça, pobreza, violência, sofrimento e etc.) como em
decorrência do amor ao próximo. Desenvolvida após o Concilio do Vaticano II (1962-1965) e a
Conferência Episcopal de Medellín (1968), principalmente por teólogos latino-americanos, a
Teologia da Libertação ganhou nome e corpo com a publicação da obra Teologia da Libertação, do
peruano Gustavo Gutiérrez, em 1971, na qual se formalizou e se estruturou essa leitura mais social
da fé cristã. Os teólogos (Gustavo Gutiérrez, Leonardo e Clodóvis Boff, Jon Sabrino, Enrique
Dussel, entre outros) afirmavam fazer teologia a partir da realidade (de subdesenvolvimento,
dependência, violência e etc.) vivida no Terceiro Mundo e defendia o engajamento social e político
dos cristãos com base em conceitos como o da caridade política. A Teologia da Libertação não se
restringiu às especulações teológicas, mas difundiu-se no plano pastoral (ao qual se alinharam
diversos bispos e padres, entre eles: D. Paulo Evaristo Arns, D. Pedro Casaldáliga, D. Helder
Casaldáliga não se calou diante das injustiças que vivenciou (e
vivencia) no Araguaia. Mesmo em um período de repressão ele denunciou a
desigualdade social, a violência e a morte, suscitados em um contexto político
social cujos indivíduos não são sujeitos da história, mas apenas um dos elementos
que movem a sociedade, os quais tiveram as suas vidas modificadas pelos
interesses das forças políticas que estavam direcionadas naquele espaço para elite
agrária.
aos movimentos sociais, o trabalho desta Igreja passou a ser caracterizado como
político-partidário e apontado como distante do ideal evangelizador, visto que
lutar pelo acesso à terra e por condições dignas de vida não são tidos como um
235
Para visualizar os Murais da Libertação, consulte: BARREDO, Cerezo; CASALDÁLIGA,
Pedro. Murais da Libertação na Prelazia de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, Brasil.
Fotografias: José María Concepción. São Paulo: Edições Loyola, 2005; ALVES, Leonice
Aparecida de Fátima; GOMES, Maria Henriqueta dos Santos. Murais do Araguaia: Uma primeira
aproximação. In: História, Terra e Trabalho em Mato Grosso: Ensaios Teóricos e Resultados de
Pesquisas. HARRES, Marluza Marques; JOANONI NETO, Vitale (orgs). São Leopoldo: Oikos;
Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2009 ou acesse:
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/MURAIS_DA_LIBERTA%C3%87%C3%83O/
236
JOANONI NETO, Vitale. Fronteiras da crença: ocupação do Norte de Mato Grosso após 1970.
Cuiabá: Ed. UFMT/Carlini Caniato, 2007, p. 108.
leigos se tornaram referências na luta pelos direitos humanos, na defesa dos
posseiros, peões e das causas indígenas.
237
Piraguassu Agropecuária S/A. Projeto de concessão de terras aprovado pela SUDAM em:
18/10/1971 no valor de Incentivo Recebido de Cr$7.006.405,00. Tamanho da Propriedade:
42.673,75ha. Composição Acionária: Délio Rodrigues Cardial (21,46%), Geraldo Antônio de
Medeiros Neto (21,44%), José Augusto Leite de Medeiros (21,16%), João Carlos de Souza
Meirelles (11,13%), João Galdino da Silva Neves (11,1%), Abílio Antônio Motta Filho (8,02%),
Jorge Alberto Veiga de Medeiros (2,3%), Milton Leopoldo Endres (1,52%), Renato de Souza
Meirelles (1%), Yara Hungria de Souza Meirelles (0,87%). Dados retirados do Projeto: expansão
da fronteira agrícopecuária e desenvolvimento da Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado
pelo Prof. Doutor Fábio Carlos da Silva.
238
Tapiraguaia Agrícola e Pecuária. Projeto de concessão de terras aprovado pela SUDAM em:
05/07/1967 no valor de Incentivo Recebido de NCr$2.566.140,00. Tamanho da Propriedade:
21.923ha. Composição Acionária: José Augusto Leite (50%), José Carlos Pires Carneiro (25%) e
Antônio Peres Carneiro (25%). Dados retirados do Projeto: expansão da fronteira agrícopecuária e
desenvolvimento da Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado pelo Prof. Doutor Fábio Carlos
da Silva.
239
Sociedade Agropecuária Vale do AraguaiaS/A. Projeto de concessão de terras aprovado pela
SUDAM em: 11/07/1969 no valor de Incentivo Recebido de NCr$6.208.686,00. Tamanho da
Propriedade: 72.587,92ha. Composição Acionária: Clóvis Galante (34,12%), José Augusto Leite
Medeiros (17,29%), Antônio Carlos Peres de Oliveira (8,23%), Jean Jacques Faure (6,71%),
Frederic Paul Grover (6,71%), Emile Besson (6,71%), Auguste Le Diagon (6,71%), Rodolfo
Autonelli (5,38%), Herbert Gauss (3,19%), Azael Magalhães Rodrigues (2,26%), Radamés
Sangiorgi (2,26%), Moacyr Carneiro (0,46%). Dados retirados do Projeto: expansão da fronteira
agrícopecuária e desenvolvimento da Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado pelo Prof.
Doutor Fábio Carlos da Silva.
240
Agropastoril Campo Verde Ltda. Projeto de concessão de terras aprovado pela SUDAM em:
12/11/1970 no valor de Incentivo Recebido de NCr$6.565.129,00. Tamanho da Propriedade:
15.000ha. Composição Acionária: Antônio Carlos Peres de Oliveira (58,53%), Firmino Rocha
Freitas (20%), Joaquim Antônio Bittencourt Couto (20%), Tereza Moraes Bittencourt (1,2%),
Moema Ribeiro de Lima Freitas (0,15%), José Mauro de Freitas (0,07%), Kalil Rocha Abdala
(0,05%). Dados retirados do Projeto: expansão da fronteira agrícopecuária e desenvolvimento da
Amazônia brasileira 1850-2010, coordenado pelo Prof. Doutor Fábio Carlos da Silva.
eram de propriedade das Empresas Tapetes ITA, representada pelos empresários
José Carlos Pires Carneiro e Silvana Carraro Carneiro, e pelos Cartórios
Medeiros, sob administração de José Augusto Leite Medeiros e Maria Lúcia
Medeiros. A implantação da FRENOVA foi executada por um dos seus diretores,
o engenheiro João Carlos de Souza Meirelles 241, vereador na cidade de São Paulo
(1964-1972), e que mais tarde chegou a ser Secretário de Agricultura e
Abastecimento do Estado de São Paulo (1998 - 2002), Secretário de Turismo do
Estado de São Paulo (2003 - 2005) e Secretário da Ciência, Tecnologia e
Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo (2003 - 2006)242.
Toda a área adquirida se situava no município de Luciara, MT. Em
seu interior havia um pequeno povoado, às margens do rio Tapirapé, Porto Alegre
do Norte e uma nação indígena, a Tapirapé. A Fazenda Tapiraguaia se situava na
área da aldeia Tapirapé, nas margens do Araguaia. Os proprietários doaram ao SPI
na pessoa do Sr. Ismael Leitão, chefe da Inspetoria de Goiânia, uma gleba de
pouco mais de 9.000 hectares. Porém, as referidas terras doadas, próximas à
aldeia, ficam alagadas praticamente de dezembro a junho em quase sua totalidade,
sendo o restante das terras composto de cerrado ou mata arenosa de pouca
fertilidade. O restante das terras indígenas foi incorporado ao patrimônio da
fazenda.
Como forma de comprovar os investimentos do governo ditatorial
setembro de 1978 foi instalado o projeto particular de colonização Juruena sendo fundada a Vila
Juruena, núcleo urbano do projeto que lhe serviria de apoio básico. Sua extensão territorial do
projeto inicial era de 200.000 hectares. Disponível em: <
http://www.pmjuruena.com.br/novo_site/index.php?nivel=1&exibir=secoes&ID=1>. Acesso em:
31 jan. 2016.
242
Informações disponíveis em:
<http://www.cnpc.org.br/histobjetivo.php?Categoria=Hist%F3rico>. Acesso 14 jul 2014.
primeiras mil cabeças de gado adquiridas dos melhores plantéis
de São Paulo. Os diretores da empresa comprovaram
pessoalmente o excelente estado sanitário deste lote, que inclui
80 cabeças de touros puro-sangue zebuíno da variedade
Nelore.243
246
. Os trabalhadores rurais constataram que o INCRA não tinha como
finalidade principal defender e promover os seus interesses garantidos pelo
Estatuto da Terra de 1964, pois este passou a vender e regularizar áreas para
grandes projetos agropecuários e de colonização particular em detrimento da
distribuição e assentamento de famílias na Amazônia.
Diante do fato apresentado, é importante destacarmos que no nordeste
de Mato Grosso não houve a implementação da política de colonização dirigida
para o assentamento de trabalhadores rurais durante a década de 1970. As
empresas agropecuárias se instalaram na região em meados da década de 1960, e a
FRENOVA que é o nosso objeto de análise, foi instituída em 1971, ou seja, no
ano em que os projetos de colonização oficial estavam recebendo famílias de
245
IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma... p. 51.
246
Ibidem, p. 77.
agricultores, principalmente do Nordeste do país, como também do Norte, Centro-
Oeste, Sul e Sudeste para ocuparem as terras da Amazônia. O estado de Mato
Grosso teve 80% dos seus projetos de colonização realizados por empresas
privadas com experiência em colonização nos estados de São Paulo, Paraná e Rio
Grande do Sul247.
O processo de vendas de terras em Mato Grosso, desencadeado
principalmente na década de 1950, contribuiu para a formação de imensas
propriedades sob a lógica da especulação imobiliária. Por meio da facilidade de
adquirir e regularizar as terras devolutas no Estado, muitos empresários fizeram
dessa prática uma atividade altamente lucrativa, sob propriedades muitas vezes
248
. A
grilagem deu origem a vários empreendimentos de colonização (projetos
agropecuários, agroindustriais, minerais e projetos de colonização), sendo a
maioria implantada, como é caso da FRENOVA, em áreas indígenas e de
posseiros, com pleno consentimento dos órgãos oficiais.
O discurso proferido por Médici em 6 de junho de 1970 na cidade de
Recife para se ocupar os vazios demográficos da Amazônia, caiu em contradição
como o ideal da nação de se estabelecer naquela região, pois os projetos de
colonização oficial pouco se empenharam em assentar famílias de trabalhadores
rurais direcionando a sua política para o desenvolvimento dos empreendimentos
-se que os planos da
SUDAM privilegiaram o boi. Do montante de recursos aplicados nos cinco anos
249
.
A instalação da FRENOVA, assim como outros empreendimentos de
colonização financiados pela SUDAM, implicou na intensificação da migração
247
SOUZA, Edison Antônio de. Mato Grosso: a (re)ocupação da terra na fronteira amazônica.
Estado e políticas públicas. Tempos Históricos, Marechal Cândido Rondon, v. 16, n. 2, p. 137-144,
set. 2012, p. 137.
248
Protocolos sem valor legal, procurações falsas. FERREIRA, Eudson de. Posse e propriedade: a
luta pela terra em Mato Grosso. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Campinas: Universidade
Estadual de Campinas, 1984, p. 64.
249
Ibidem, p. 49.
espontânea que já vinha sendo realizada para o Vale do Araguaia desde o início
do século XX. Entretanto, essas famílias de migrantes não foram beneficiadas
pelos recursos financeiros e técnicos disponibilizados pelo governo, os quais
foram direcionados para a implantação de projetos agropecuários em detrimento
da política de colonização oficial para o assentamento de trabalhadores rurais na
Amazônia.
Dom Pedro Casaldáliga, em depoimento à CPI da Terra, relata que:
comprar até 10.000 ha, por preços baixíssimos (CR$ 7,00 ha).
Muitas vezes uma mesma família conseguia vários títulos. [...] o
atual governador, Sr. Garcia Neto, reconheceu que seria preciso
invadir os Estados vizinhos se quisesse cumprir com os
compromissos assumidos.250
Prezado Senhor,
250
SEDOC, 1977 apud FERREIRA, Eudson de. Posse e propriedade... p. 65.
251
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A 17.2.25, 1972, p. 1.
de Mato Grosso, tendo a necessidade e o interesse de explorar
pessoalmente e diretamente o imóvel de que tenho pleno
domínio, envio-lhe esta/ carta-notificação para que desocupe a
parte da minha propriedade que ocupa sem justo título e a
explora sem autorização e sem pagar qualquer retribuição,
dando-lhe o prazo de 90 dias, a partir da data que tomar
conhecimento, para desocupar o imóvel.252
Tinha um gerente por nome Plínio Ferraz, ele chegava aqui, faz
de conta que você morava aqui, aí ele chegava aqui e dizia: o
que você está fazendo aqui? Eu estou aqui há oito, dez anos.
Pois é: você sabia que essa terra que você está usando é da
fazenda FRENOVA? Não. Chegamos aqui e não tinha
ninguém. Meus pais que cortaram esses paus aqui, não tinha
ninguém, não existia fazenda. É, mas a gente já tem um
documento velho de muitos anos e agora que viemos usar a
fazenda. Aí dizia: eu vou lhe dar dez cruzeiros para você
desocupar isso aqui. Então eu dizia: mas nós não podemos,
porque tem a minhas coisas, a minha roça. Não, se você birrar,
você vai pagar o estrago que você fez. Derrubou a roça e tudo
que não era para derrubar, porque é nosso. Aí tinha que assinar
um caderno e me dizia: se você não sair eu coloco a polícia e os
homens daqui vão tirar vocês e queimar tudinho, e vocês não
252
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.1.02, 1971, p. 1.
253
José de Souza Martins afirma que uma vaca amazônica expulsa uma família inteira de posseiros,
pois ela ocupa a mesma área que o posseiro precisaria em um ano para sustentar a família e
produzir excedentes para o mercado. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no
Brasil... p. 122.
recebem nada. [...] Você tinha que pegar aqueles dez cruzeiros,
pois ele vinha com o caminhão e tirava a sua mudança e
colocava fogo na casa, porque era tudo de palha, então acaba e
tinha que ir para outro lugar. Era assim.254
consideração que muitas vezes a vida dos trabalhadores rurais são ceifadas para
dar espaço as relações capitalistas na fronteira amazônica.
O prefeito de Luciara, José Liton Luz juntamente com o seu advogado
Olímpio Jaime, fizeram uma reunião em 30 de julho de 1970 para que a
população colaborasse com os gastos do processo da desapropriação. Desse modo,
os posseiros entregaram ao prefeito mais de 170 animais entre reses e cavalos,
como também uma grande soma em dinheiro255.
Em 17 de setembro de 1970, em sessão extraordinária na Câmara
Municipal de Luciara, foi aprovada a desapropriação de uma gleba de 4.500
hectares para o povoado de Porto Alegre do Norte. Na ata da sessão encontramos
as seguintes informações:
254
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
255
Esses dados podem ser encontrados na Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga.
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja na Amazônia... p. 87-90.
solicitava ainda a autorização para desapropriação de uma gleba
de 4.500ha onde se encontra localizado o povoado de Porto
Alegre do Norte, neste município, de propriedade da
FRENOVA Nova Amazônia Ltda. O de nº 60/70 solicita a
abertura de crédito no valor de Cr$ 40.000,00 destinado à
desapropriação dos referidos imóveis.256
256
Ibidem, p. 90-91.
257
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A 17.2.25, 1972, p. 2.
258
Ibidem, p. 1.
259
Estes eram posseiros de Porto Alegre do Norte, falaremos deste caso com maior detalhe no
quarto capítulo desta tese.
[...] tipificam-se os imóveis rurais existentes em minifúndios,
latifúndios por exploração, latifúndio por dimensão e empresas
rurais. O objetivo da reforma agrária seria a gradual extinção de
minifúndios e latifúndios, fontes de conflitos. A empresa,
definida como empreendimento caracterizado pela exploração
260
MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro:
FASE, 1989, p. 87.
261
Estes dados podem ser verificados nos Cadernos da CPT sobre os conflitos no campo.
Piraguassu, que será discutida no quarto capítulo desta pesquisa. Sob esta
perspectiva Bernardo Sorj, demonstra que a política de colonização da Amazônia
estava centrada no desenvolvimento do complexo agroindustrial conduzido por
grandes empresas internacionais e nacionais que buscavam o aumento dos seus
lucros tanto em áreas diferentes de atuação, como pela internacionalização do
mercado interno262.
Entre os anos de 1970 a 1972, a FRENOVA tentou implantar sua sede
no centro do povoado de Porto Alegre do Norte, pois o espaço era bem localizado
em frente ao rio Tapirapé a única via de transporte na época das chuvas. Neste
período foram realizadas muitas negociações entre os posseiros e a empresa com a
intervenção do INCRA e da Prelazia de São Félix do Araguaia. O representante da
agropecuária entrou em contato com Dom Pedro Casaldáliga e o padre Francisco
Jentel para que os mesmos se reunissem para definir as demarcações das áreas e
os posseiros que tinham direitos a posses. Assim, em abril de 1972, o diretor João
Carlos de Souza Meirelles foi até ao povoado com um topógrafo para demarcar as
terras, entretanto, houve resistências dos posseiros que se negaram a receber os
funcionários da fazenda, dado que só fariam a medição da área com a presença do
bispo Casaldáliga. De acordo com os relatos dos posseiros, o senhor Meirelles
achou ruim aquele fato e assim disse:
262
SORJ, Bernardo. Estado e Classes Sociais na Agricultura Brasileira. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1986, p. 69.
263
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.57, 1972, p. 2.
de todos os seus direitos, bem como a demarcação exata das suas posses sem que
estes fossem lesados pela empresa.
Em maio de 1972, um mês após da visita do senhor Meirelles em
Porto Alegre do Norte, a FRENOVA passou ameaçar os posseiros e forçá-los
abandonar as suas posses, cercando todo o povoado. Diante destes fatos, os
posseiros enviaram um abaixo-assinado ao Presidente do INCRA, Dr. José de
Moura e Cavalcanti, para que o órgão pudesse intervir nos acontecimentos, pois a
empresa estava impedindo a sobrevivência da população local 264; assim, as
medidas deveriam ser tomadas a partir do Decreto 70.430 de 17 de abril de
1972265.
É papel do INCRA fiscalizar o cumprimento do Decreto 70.430 de 17
Na execução dos planos de
desenvolvimento agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em áreas
264
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.56, 1972, p. 1.
265
Estabelece a assistência às pessoas domiciliadas na área dos planos de desenvolvimento
agropecuários financiados por incentivos fiscais e, em áreas pioneiras, por estabelecimentos
oficiais de crédito. Publicado no D.O de 18 de abril de 1972. Disponível
em:<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-70430-17-abril-1972-418749-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 26 dez. 2014.
Presidente do INCRA, e por fim, ao senhor Jacintho Gerente da fazenda
FRENOVA, para que estes solucionassem os problemas de terras.
Em uma carta enviada a Moacir Couto, delegado regional da polícia
militar de Barra do Garças, Dom Pedro Casaldáliga relatou os acontecimentos
violentos que aterrorizavam a vida dos posseiros de Porto Alegre do Norte:
fazenda
antigos. Ela os forçou a sair de suas posses, com ameaças de
gerentes e outros funcionários, com a presença da Polícia, com
promessas, intimações e argúcias do Sr. João Carlos Meirelles
dono e diretor cercando com estacas a própria rua e até as
moradias e quintais do povoado, ou pagando indenizações
fraudulentas. Ela, por meio de seu gerente, Sr. Plínio, comprou
supostos capangas para matar o Pe. Henrique Jacquemart,
simplesmente porque o padre, cumprindo a sua missão,
esclareceu ao povo a respeito dos seus direitos. Ela foi
conivente da trágica espoliação de que o povo de Porto Alegre
foi vítima por parte do Prefeito de Luciara, Sr. José Liton Luz.
Ela ultimamente, contrariando o Decreto 70.430 de 17 de abril
deste ano de 1972, vem cercando a terra do povo, nos arredores
imediatos, e, recentemente, fechou os bebedouros e a estrada
pública.266
266
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.36, 1972, p. 1.
econômico através do mercado e o segundo social, a partir da justiça, cabendo a
estes legitimar os seus atos de violência como suporte para solução de conflitos ali
presentes.
Na documentação levantada no Acervo da Prelazia de São Félix do
Araguaia, podemos constatar que o ano de 1972 foi um período muito conturbado
para a população de Porto Alegre do Norte, dado que mesmo com a instauração
do Decreto 70.430 de 17 de abril de 1972 que incumbia ao INCRA e as empresas
rurais prestarem assistência às pessoas domiciliadas em áreas de projetos
agropecuários, a Lei não era respeitada e os moradores daquela localidade
passaram pelas mais variadas formas de violência. Para tentar solucionar os
conflitos por terras, Dom Pedro Casaldáliga enviou uma carta com data de 20 de
outubro de 1972 para o senhor Osmar Jacintho, gerente da FRENOVA, na qual se
expunha o seguinte texto:
Prezado senhor;
Depois de uma longa série de tensões entre a Companhia
futuro.
Como a realidade do dia a dia a cerca tão próxima ao povoado,
as indenizações injustas ou expressam
tristemente o contrário das manifestações de convivência e de
paz feitas pela Fazenda e pelo senhor, pessoalmente, nem eu
nem o povo de Porto Alegre podemos aceitar a sinceridade de
tais manifestações.
[...] Quero lembrar ao senhor, como gerente, e aos donos da
267
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.50, 1972, p. 1, grifos
nossos.
Garças em Mato Grosso até o a divisa com o estado do Pará, abrangendo toda a
extensão da Prelazia de São Félix do Araguaia se tornou uma zona de segurança
nacional, e, toda equipe pastoral, incluindo o Bispo, foi enquadrada na Lei de
Segurança Nacional e acusada de subversão.
As denúncias de Dom Pedro Casaldáliga e a visibilidade que os seus
escritos ganharam dentro do Brasil e no exterior fizeram com que entre os meses
de setembro e outubro de 1972 o Exército realizasse em São Félix do Araguaia
uma Ação Cívico-Social uma espécie de treinamento antiguerrilha com
assistência social para a população daquele espaço. Os militares associaram a
resistência armada dos posseiros de Santa Terezinha268 e os conflitos dos
posseiros de Porto Alegre do Norte contra a FRENOVA às ações organizadas pelo
PC do B no Bico do Papagaio.
Diante deste contexto, no dia 28 de outubro de 1972, apareceu em São
Félix do Araguaia um homem de 30 anos de idade, suposto professor assistente da
Universidade Federal do Paraná. Este senhor, com nome de Ailson Loper, trouxe
uma carta de apresentação do padre claretiano Vicente Fernandez, da cidade de
Curitiba/PR.
O suposto missionário logo começou a se relacionar com a sociedade
de São Félix (comerciantes, fazendeiros e políticos locais). Participou de uma
reunião na casa do Dr. Jamil Thomé com a presença do Sr. Carlos Alves Seixas,
proprietário, diretor técnico da CODEARA e presidente da AEA, o José Bens,
militar aposentado por corrupção e empreiteiro geral da FRENOVA, e o Dr.
Antônio que havia chegado há poucos dias a São Félix do Araguaia. Nesta reunião
os presentes fizeram questão de informar ao Ailson Loper que sabiam que ele era
da Polícia Federal e ofereceram os serviços, pessoal e conduções das respectivas
268
Em 1967, a CODEARA adquiriu as terras do povoado de Santa Terezinha ciente da existência
de posseiros com direito à posse. A empresa não deixou que estes trabalhadores rurais
permanecessem em suas terras praticando a agricultura de subsistência. Iniciou-se a luta pela terra
entre posseiros e a empresa até o ano de 1972, quando o INCRA demarcou as propriedades dos
trabalhadores rurais.
fazendas. O Dr. Antônio, por sua vez, se declarou como agente do DOPS de Mato
Grosso.
Ailson Loper conviveu cerca de 20 dias com a equipe da Prelazia, mas
se relacionava com pessoas contrárias às ações da Igreja Católica local. No dia 13
de novembro, foi realizada uma reunião na biblioteca da Prelazia de São Félix do
Araguaia, na qual estiveram presentes Dom Pedro Casaldáliga, padre Francisco
Jentel, padre Pedro Mary Sola e os professores da equipe da Prelazia, pois haviam
recebido a notícia de que Ailson Loper esteve em Porto Alegre do Norte e
empreendeu ações violentas. Nesta reunião, Loper foi pressionado a revelar a sua
verdadeira identidade. Ele informou que era o Capitão Ailson Munhoz da Rocha
Loper, membro do Comando de Repressão da Amazônia. O militar informou que
as autoridades o Exército e o Governo Federal estavam convictos de que a
casa pastoral de São Félix era um foco de subversão de guerrilha269.
Diante do clima de terror instalado na Prelazia, o militar disse aos
religiosos que eles que criavam tal situação. Negou energicamente que existisse
tortura no Brasil e que houvesse inocente nas cadeias do país. Assim, com a
chegada do Capitão Ailson Loper, instalou-se um forte sistema de pressão e terror,
por parte da FRENOVA, sobre os trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte.
O padre Eugênio Consoli, os posseiros João de Souza Lima, José de Souza Costa
e Alexandre Quirino de Souza foram levados e detidos na sede da FRENOVA e
ali submetidos a interrogatórios, humilhações e vexames durante mais de duas
horas, sob a vigilância armada do empreiteiro José Bens e dos seus capangas
269
BRASIL. Comissão Camponesa da Verdade. Relatório Final Violações de Direitos no Campo
1946 a 1988. Brasília: CNV, 2014A, p. 125.
estivesse em São Félix. Ameaçou o padre Jentel caso pretendesse fugir, e o
submeteu, juntamente com Dom Pedro Casaldáliga, a um interrogatório270.
Essa ação deixou claro que o governo militar era conivente com tais
medidas que visavam excluir aquilo que era considerado um entrave social para o
desenvolvimento da Amazônia. A presença dos posseiros, dos povos indígenas, de
pequenos povoados e vilarejos foi considerada sério obstáculo à implantação das
empresas agropecuárias a partir de 1970, e mesmo que a legislação em vigor
garantisse a esses grupos o direito de permanecerem em suas terras (alguns
posseiros haviam chegado no local em meados da década de 1940), o fato de não
possuírem documentos legais serviu de pretexto para que as empresas alegassem
sua propriedade e exigissem que a população local se retirasse. O Estado se fez
presente para aquela população através da força repressiva que culminou em
torturas e humilhações, inclusive de pessoas ligadas à Prelazia de São Félix do
Araguaia.
Após a retirada do Exército de Porto Alegre do Norte, a população
ainda estava atemorizada e esperava a qualquer momento pela volta dos militares,
tanto que quando pousava um avião na sede da FRENOVA, os trabalhadores e os
agentes de pastoral enviavam cartas a Dom Pedro Casaldáliga para colocá-lo a par
da situação, conforme o relato a seguir:
270
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.24, 1972, p. 1-3.
271
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.60, 1972, p. 1.
Estado brasileiro na resolução dos conflitos por terra na Amazônia advém de uma
política pautada no estabelecimento de empreendimentos rurais de capital
nacional e internacional, em contraposição às antigas formas de manejo da terra
praticada por trabalhadores rurais pobres através da agricultura de subsistência. O
capitão Ailson Loper disse à população local que a sua atuação não tinha relação
com os conflitos de terras e que este trabalho competia ao INCRA. Sua missão era
acabar com os focos de guerrilha e subversão no Araguaia. Porém, este discurso
entra em contradição, quando se considera o sequestro dos posseiros João de
Souza Lima, José de Souza Costa e Alexandre Quirino de Souza e o padre
Eugênio Consoli para serem interrogados e humilhados na sede da FRENOVA.
Em contrapartida, a agropecuária tomou para si o uso da violência com apoio de
uma parcela da polícia militar para garantir a sua supremacia sobre as terras dos
posseiros, controlando sistematicamente a contestação da legitimidade dos
direitos dos trabalhadores rurais na luta pela terra.
Os trabalhadores rurais empreenderam a luta pela terra por
necessidade em tê-la como um instrumento de trabalho, assim, ao resistirem às
desapropriações e expulsões, estes buscavam o reconhecimento dos seus direitos e
amparo social que o Estado lhes deve. Entretanto, o governo militar tentou de
todos os modos abafar esses conflitos a partir da desmobilização de grupos
sociais, como a Prelazia de São Félix do Araguaia, impondo a estes uma série de
perseguições e torturas, bem como a sua desmoralização (acusavam os padres e
agentes de pastoral de práticas subversivas, de serem comunistas, inimigos da
pátria) e o enquadramento destes na Lei de Segurança Nacional.
A estratégia dos militares se embasava em desviar um problema de
cunho político e social para um foco simplesmente econômico, o qual seria
resolvido a partir das desapropriações das terras quando estas fossem de interesse
de ambas as partes, ou melhor, no momento em que não lesasse os interesses dos
latifundiários. Conforme Martins272, a intervenção do exército nos conflitos por
272
MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1985.
terras na Amazônia configura-se como a militarização da questão agrária, pois
algumas ações do governo ditatorial foram estrategicamente criadas para conter a
resistência dos trabalhadores rurais na luta pela terra. Desse modo, a intervenção
do Estado sobre as vidas das populações em conflitos na Amazônia se deu por
meio de mecanismos da inserção de ações como a Operação Cívico-Social273
ocorrida em São Félix do Araguaia no ano de 1972, com o propósito de
estabelecer uma relação entre o exército e a população local como um modo de
controlar os conflitos sociais provenientes da política econômica e agrária que
incentivou a entrada dos investimentos dos empresários do Centro-Sul do país e
do exterior em atividades rurais na Amazônia Legal.
Para conquistar a confiança dos habitantes de Porto Alegre do Norte, o
capitão Ailson Loper reuniu-se com estes com o intuito de acalmá-los quanto a
sua presença e avisá-los que o INCRA iria regularizar os problemas da
demarcação de terras na região. Assim, em uma carta direcionada a Dom Pedro
Casaldáliga pelo padre Eugênio Consoli, temos a descrição da reunião do militar
junto aos posseiros:
Caríssimo Pedro,
273
Dentre outras ações, podemos citar o MOBRAL, criado em 1971, cujo objetivo era a
erradicação do analfabetismo no Brasil, sendo extinto em 1985. Projeto Rondon, elaborado em
1967, tinha como propósito levar estudantes universitários, especialmente da área da saúde, para
prestar assistência à população de áreas carentes do interior do Brasil. GETAT, idealizado em
1980, tinha como finalidade coordenar, promover e executar as medidas necessárias à
regularização fundiária no sudeste do Pará, norte de Goiás e oeste do Maranhão. Martins aponta
que o GETAT não foi instituído no norte de Mato Grosso, pois os empresários viam a situação da
região estável, sendo esta considerada pós-pioneira, mas não para os trabalhadores rurais pobres
cercados pelos latifundiários. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil...
povo, pois a força de que dispunha, poderia ocupar Porto
Alegre em dois minutos. Dizia ao povo que podia falar.274
274
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.59, 1972, p. 1.
275
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor: formação da organização policial,
consenso e violencia. Tempo Social, São Paulo, v. 09, n. 1, p. 155-167, maio de 1997.
276
Ibidem, p. 164.
cultivo da terra pelos trabalhadores rurais, excluindo esses agentes da cena
política e retardando a proposta de reforma agrária, estabilizando, assim, a
estrutura fundiária dominante do país até os dias atuais.
De acordo com Sorj277, os investimentos em grandes projetos
agropecuários não asseguravam altas taxas de lucros, mas as aquisições de terras
na Amazônia contribuíram para a supervalorização destas, tendo em vista que
estas áreas eram inexistentes em termos mercantis e ganharam valor através da
utilização de créditos subsidiados e incentivos fiscais. Portanto, a compra de terras
por empresas do Centro-Sul distantes de atividades rurais, como a FRENOVA,
possibilitou a apropriação de grandes lucros diferentemente da lógica tradicional
de ocupação da terra, a qual para os trabalhadores rurais tinha como finalidade a
subsistência familiar, e, para os empreendedores era caracterizada como um
negócio de alta rentabilidade.
Desse modo, a política de modernização do campo se converteu em
uma prática de estímulo à concentração de terras, ao passo que os incentivos
fiscais conferidos pelo governo colaboraram para a valorização das propriedades,
não significando assim, que houve necessariamente uma extrema mudança na
modernização da agricultura; mas o que ocorreu de fato, foi a concentração de
terras para fins especulativos.
Os recursos da SUDAM foram destinados à expansão de atividades
para exportação como a mineração e a pecuária. O setor da agropecuária obteve
grande investimento do governo, pois em 1974 criou-se o POLAMAZÔNIA, com
o objetivo de desenvolver as atividades de pecuária, principalmente, no norte de
Mato Grosso, norte de Goiás e sul do Pará, em áreas de cerrado, cerradão e mata
fina, possibilitando aumentar o rebanho da Amazônia para 5.000.000 de cabeças
até o final da década de 1970. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, o
277
SORJ, Bernardo. Estado e Classes Sociais... p. 109.
278
localização no espaço amazôni . Dessa
forma, tornou-se interessante para bancos, empresas automobilísticas,
mineradoras, empresas de construção civil e transportadoras do Centro-Sul
investirem na criação de gado na Amazônia, através dos subsídios do Governo
Federal. No Centro-Oeste entre os anos de 1970 a 1980 houve um crescimento das
áreas dos empreendimentos agropecuários de 44,9%, com o aumento de
16.008.922 cabeças na pecuária bovina para corte279.
A SUDAM passou a dar apoio econômico e incentivos ficais para as
grandes empresas que tinham o interesse de ampliar os seus negócios no espaço
rural. Esta política fez com que praticamente o governo doasse recursos públicos
aos empreendedores que quisessem se dedicar à atividade agropecuária na
Amazônia, e, concomitantemente, o Estado aumentou seu poder repressivo no
campo com o intuito de garantir a implantação dos empreendimentos econômicos
criados com seu apoio.
A rentabilidade econômica oferecida pelo governo ditatorial para as
empresas que desejassem investir em atividades na Amazônia mudou a lógica de
se adquirir terras naquele espaço. Antes, esperava-se que os posseiros fizessem a
ocupação da terra e a desbravassem, logo após vinham as grandes empresas que
compravam um pedaço de terra, frequentemente se apropriando de outros à sua
volta. No entanto, com o advento das políticas públicas em benefício do
capitalismo no campo, os empresários passaram a expulsar simultaneamente os
índios e posseiros das terras, como fez a FRENOVA com os Tapirapé e os
trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte.
Esses fatos demonstram que na Amazônia o poder público se tornou
uma simples extensão do poder privado. Para aferir isso, basta que levemos em
consideração que uma ação de despejo que em tese deveria estar sob a
278
O Estado de S. Paulo, de 26 jan. 1974, apud IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma
agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979B, p. 225.
279
HESPANHOL, Antônio Nivaldo; TEIXEIRA, Jodenir Calixto. A Região Centro-Oeste no
contexto das mudanças agrícolas ocorridas no período pós-1960. Revista Eletrônica da Associação
dos Géografos Brasileiros, Três Lagoas/MS, v.1, nº3, p. 52-65, mai. 2006, p. 58.
responsabilidade de um oficial de justiça, muitas vezes era efetuada por jagunços
das empresas. De acordo, com Martins280 as políticas de ocupação do governo
ditatorial fizeram aflorar na Amazônia três tipos de violências distintas;
inicialmente, a violência física do policial e do pistoleiro contra o posseiro e o
peão, para o estabelecimento da estrutura privada em detrimento da ordem
pública. Em segundo, a violência da justiça, desacreditada pela execução de
sentenças de despejos por jagunços, uma política pautada na expropriação
territorial em benefício dos interesses da empresa privada em prejuízo dos direitos
dos índios e posseiros. Em por último, a violência direta realizada pelo Poder
Executivo, através da ação militar e policial nos problemas fundiários. Sobre os
tipos de violência na Amazônia, os relatos de Dom Pedro Casaldáliga são
elucidativos:
exérci
aqui para ajudar, para fazer umas leves pesquisas. Sabemos que
na realidade estão buscando fantasmas: terroristas,
guerrilheiros, subversivos. E que toda área está sendo
vi
militar e policial, na questão fundiária, mediante o alijamento da justiça no
processo decisório, o alijamento das entidades de representação de classe dos
282
interessados, como . Desse modo, o ato de se
privilegiar os interesses de uma empresa privada em detrimento dos direitos de
posseiros denota uma política de expropriação territorial estruturada no princípio
de dominação que entrelaçam o público e o privado, desconsiderando a legislação
existente e utilizando da violência para instituir o poder.
282
MARTINS, José de Souza. A militarização... p. 59.
283
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Conflitos agrários e violência no Brasil: agentes
sociais, lutas pela terra e reforma agrária. Pontificia Universidad Javeriana. Seminario
Internacional, Bogotá, Colômbia. Ago. 2000, p. 1.
284
Ibidem, p. 2.
285
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Conflito e Mediação...
De acordo com Tavares dos Santos286, os processos de exclusão social
e econômica, introduzem o uso da violência como preceito social exclusivo de
diversos grupos da sociedade, presentes em várias dimensões da violência social e
política. As diversas formas de violências existentes configuram-se como um
processo de dilaceramento da cidadania, e conforme o mesmo autor, a prática da
violência em áreas de fronteira, geralmente orientada por mandantes e executadas
individualmente ou por milícias privadas é caracterizada como violência política,
a qual em muitos casos consiste no extermínio físico dos opositores nos conflitos
agrários, assim como na perspectiva ostensiva dos assassinatos, sem a penalização
dos mandantes e executores287. Sob essa ótica, o documento abaixo é elucidativo:
286
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Novos processos sociais globais e violência.
Perspectiva, São Paulo, v. 13, nº. 3, p. 18-23, jul./set. 1999.
287
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A cidadania dilacerada... p. 136.
288
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.07, 1972, p. 1.
para que estes não colocassem em risco os empreendimentos agropecuários. O
Estado que deveria garantir a segurança dos cidadãos, aparece em Porto Alegre do
Norte através do excesso de poder que decide sobre o direito à vida daquelas
pessoas. A violência empregada de forma racionalizada e burocratizada pelo
governo militar se impõe por meio da coerção social para o controle dos
lavradores, cerceando os seus direitos e contribuindo, assim, para a manutenção
das estruturas produtivas em detrimento da economia de subsistência dos
lavradores.
A constituição de milícias privadas, juntamente com o poder legal se
tornou uma prática comum na Amazônia, sendo importante considerar que o
capitão Ailson delegou a um civil (Moacir Ferreira Piloto da FRENOVA), que
este poderia atentar contra a vida dos trabalhadores apreendidos na agropecuária,
denotando assim, o uso da violência ilegítima para justificar a preservação dos
projetos econômicos no espaço rural. Este fato entra em contradição com a
289
.
Em Porto Alegre do Norte, o Estado não se preocupava em preservar
as mínimas condições de vida daquela população, pois estas pessoas eram tidas
como empecilhos para o desenvolvimento do capitalismo no campo. A violência
no Araguaia é aqui caracterizada como um dispositivo de poder para garantir o
exercício da dominação. Porém, esta deveria ser usada em última instância para
obter os fins esperados, ou seja, a força só poderia ser empregada para a
manutenção da segurança do cidadão e para a vigência do Estado. Entretanto, os
posseiros eram vistos como executores de uma agricultura atrasada e irracional,
bem como tachados de invasores, desordeiros, aproveitadores, entre outros
termos. Ao afirmar que eles haviam invadido terras privadas, criava-se a
justificativa para toda a forma de violência utilizada contra os mesmos, isto é, os
culparam de se apossarem de bens alheios e, por conta disso, muitas vezes,
tiveram suas vidas ceifadas.
289
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor... p. 158.
Para demonstrar que a área da Prelazia de São Félix do Araguaia
estava tomada por guerrilheiros, e que a mesma deveria estar sob constante
segurança com a finalidade de garantir o seu desenvolvimento econômico, o
capitão Ailson Loper em meio a uma reunião com os posseiros de Porto Alegre do
Norte apontou três possíveis suspeitos e partiu na captura desses elementos
alegando que um deles era um guerrilheiro, o qual tinha assassinado um colega
tenente. O militar chamou o padre Eugênio para ir em busca dos acusados, mas o
religioso se recusou e logo após voltou dizendo não os ter alcançado. Armado no
meio da rua, ele disse ao povo que entregasse as armas imediatamente. Assim,
-se oprimido
de repente sem saber porque, pois, nem entendem de guerrilha e guerrilheiros. As
armas foram chegando. O capitão disse que as levaria para a sede da Frenova e
290
. O palco estava montado e os três supostos guerrilheiros
foram capturados e levados para o avião da agropecuária, sendo vigiados sob
ameaça de um revólver pelo piloto Moacir com a autorização do capitão Ailson
Loper de atirar caso estes reagissem. Entretanto, os três suspeitos eram
empregados da FRENOVA, demonstrando que toda essa representação foi
elaborada pelo militar juntamente com os empregados da agropecuária para tentar
convencer os trabalhadores rurais sobre a presença de ameaça subversiva na
região, bem como legitimar o uso excessivo da violência naquele espaço.
O religioso Eugênio Consoli, juntamente com os posseiros João da
Ponte291, acusado de ter ajudado a cortar a cerca da FRENOVA no povoado de
Porto Alegre do Norte, em companhia de outros dois vizinhos, Zequinha e
Alexandre, foram levados para a sede da agropecuária, onde todos passaram a ser
interrogados em um quarto fechado, pois eram considerados suspeitos de
subversão. Assim, foram questionados sobre quem instigava o povo a se revoltar,
290
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.28, 1972, p. 1.
291
A alcunha advém do fato deste posseiro morar próximo a uma ponte. João da Ponte é o segundo
apelido de João Sousa Lima também conhecido como João da Angélica. O documento da Prelazia
de São Félix do Araguaia trouxe o nome João da Ponte, então resolvemos mantê-lo conforme a
descrição do mesmo.
e sobre uma possível participação do padre Consoli nesses atos. Este último já
havia se pronunciado sobre essa acusação e afirmado que ninguém persuadia a
população local a se rebelar, esta apenas queria se libertar da opressão da
FRENOVA. O posseiro João da Ponte foi humilhado ao máximo para confessar
em que lugar estava a trincheira e os insufladores dos lavradores, caso não
revelasse o padre Eugênio seria levado preso. O capitão Loper convidou o
trabalhador rural para um duelo oferecendo-lhe um revólver calibre 38 carregado
o qual foi negado. O militar jogou a arma no chão e pediu que o empreiteiro José
Bens a quebrasse junto com as armas apreendidas dos posseiros. Ainda sobre este
Eugênio, você está vendo, não está tendo coação moral com vocês e vocês desde
292
.
De acordo com Yves Michaud293, a prática da tortura não se destina
apenas a colher informações, ela também deve humilhar, fazer mal e quebrar as
vítimas. A violência empregada contra o padre Eugênio decorre de uma
administração do terror alicerçada não apenas em uma carnificina, pois o capitão
Loper o induz a uma chantagem psicológica afirmando que o mesmo foi muito
bem tratado e não sofreu nenhum tipo de coação moral. Como Eugênio Consoli
poderia contrariar tal fala? Após presenciar toda uma farsa acerca da existência de
guerrilheiros em Porto Alegre do Norte, assim como testemunhar a tortura e as
humilhações que passou o posseiro João da Ponte. Contradizer as afirmações do
militar seria provavelmente assinar a sua sentença de morte, pois ainda, conforme
Michaud294, o terrorismo de Estado pratica em escala mundial a despolitização da
vida. Neste sentido, o relato de João Souza Lima pode ser esclarecedor:
292
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.28, 1972, p. 2.
293
MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989, p. 57.
294
Ibidem, p. 58.
Quando foi a tarde vieram trazer o finado Alexandre e o Zeca.
Eu fiquei com o padre Eugênio passando a noite nos
ameaçando. Quando foi de manhã quebraram as armas. Nós não
fomos mais ameaçados. Eles só diziam: Zé amanhã eu vou
comer o fígado daquele boi preto assado, e o outro dizia: eu
quero daquele branco, que era o padre. Aí eu chamei o padre,
meu amigo eu não disse para você como era? Eu dei muito
conselho para você. Porque ele era meio novato. Ele ficava com
medo, aí eu falava assim para ele. Os outros revólveres foram
todos quebrados, mas o dele não. Eu falei: olha, eles vão entrar
aqui amanhã cedo, chamava de capitão Ailson que era chefe dos
pistoleiros, e não tinha nada a ver com capitão. Ele vai entrar
aqui e abrir a porta para pegar a gente. Na hora que ele abrir a
porta, eu fico de cá e você de lá, na hora que ele colocar a cara
eu atiro nele, você toma a carabina velha. Aqui você tem que
virar bandido também, padre Eugênio. Não pensa na batina não.
Pensa na carabina. Só que era o que nós queríamos, mas Deus
foi tão bom que não precisou.295
295
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
296
BARREIRA, César. Massacres: monopólios difusos da violência. Revista Crítica de Ciências
Sociais, Coimbra, n. 57/58, p. 169-186, jun/nov. 2000.
legais para se manter as terras limpas de invasores. Quando as empresas falavam
em limpar a área da presença dos posseiros, estava caracterizando-os como
invasores que deveriam ser despejados daquelas terras. Estas ações se tornaram
um símbolo da violência no campo como elemento imprescindível na instauração
de um novo modelo econômico na Amazônia e aos poucos, da tomada do poder
político local, estadual e mesmo do estabelecimento de redes de influências junto
às esferas de poder nacional. A repressão em Porto Alegre do Norte se deu à
revelia do Estado de Direito, ou na ilegalidade.
299
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.21, 1972, p. 2.
300
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia da Letras, 1999.
atuam de acordo com as normas da instituição que estão vinculados sem
problematizar os seus comportamentos, não se preocupando com as suas sequelas,
e sim com o cumprimento das ordens. Neste sentido, podemos relacionar este
episódio com o trabalho dos jagunços e pistoleiros, os quais conforme a
documentação acima, apenas executam suas tarefas de acordo com que lhes era
ordenado por João Carlos de Souza Meirelles, diretor da FRENOVA sem se
questionarem sobre as suas ações. Diante deste contexto, é importante
destacarmos que o totalitarismo possui outras formas de violência, como, por
exemplo, os campos de trabalho forçado e extermínio em massa, enquanto a
repressão ditatorial se deu por meio de prisões, torturas e assassinatos. Todavia, a
301
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Hipóteses Sobre a Nova Exclusão: dos excluídos
necessários aos excluídos desnecessários. Cad. CRH. Salvador, nº 21, p. 29-47, jul./dez. 1994, p.
32.
semelhantes têm-se a propensão de caracterizá-los como objetos suscetíveis de
extermínio dos espaços sociais.
303
. Ela desenraiza e
exclui para depois incluir segundo as suas próprias regras. É justamente aqui que
reside o problema: nessa inclusão precária, marginal e instável. O período de
passagem do momento da exclusão para o momento da inclusão implica certa
degradação e, segundo Martins, a sociedade moderna vem criando uma grande
massa de população sobrante que tem poucas chances de ser novamente incluída
nos padrões atuais de desenvolvimento, ou seja, o período de passagem entre
exclusão e inclusão que deveria ser transitório, vem se transformando num modo
de vida permanente e criando uma sociedade paralela que é includente do ponto
304
.
Ambos os autores citados veem a exclusão como fruto do processo de
modernização da sociedade capitalista. A mecanização das indústrias e do campo
provocaram alto índice de desemprego e a aceitação de formas degradantes de
ode
302
Ibidem, p.36.
303
MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza
e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 120.
304
Ibidem, p. 148.
ser evidenciado nos relatos de trabalho análogo ao de escravo na FRENOVA305, é
claro que esse aspecto não é objeto primordial de análise desta tese, mas iremos
citá-los como mais um exemplo das atrocidades cometidas pela empresa em Porto
Alegre do Norte.
A sociedade contemporânea impõe aos chamados excluídos formas
humilhantes de inclusão, na qual a pessoa se degrada e o seu trabalho perde o
valor, para que esta possa se inserir na sociedade. Logo, uma das consequências
dessa inclusão, sobretudo no Brasil, está na propagação do trabalho escravo, ou
seja, a inserção degradante do ser humano para a ampliação do capital. Entretanto,
estes trabalhadores migrantes conhecidos como peões só estavam inseridos na
primeira fase da instalação e abertura da fazenda por meio das atividades de
desmatamento, construção de cercas e limpeza da juquira306, após esta etapa, os
peões juntamente com os posseiros eram tidos como desnecessários
economicamente, assim discriminados socialmente e caracterizados como
ameaçadores aos projetos e empreendimentos do campo, tendo desse modo,
justificada a eliminação destes grupos do espaço rural.
Nascimento307 demonstra que a nova exclusão social resulta da
de ele
econômica, e, ameaçador, sob a ótica social, isto é, desnecessários para o êxito do
capitalismo no campo. Neste sentido, tanto os peões como os posseiros podem ser
caracterizados como os novos excluídos que é uma categoria social que se torna
economicamente dispensável, politicamente inconveniente e socialmente hostil,
justificando o seu extermínio físico.
305
Para aprofundamento na questão, ver: CASTRAVECHI, Luciene A. Correntes do Araguaia: A
exploração de trabalhadores migrantes no Nordeste de Mato Grosso durante a década de 1970.
Dissertação (Mestrado em História) Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2012.
306
Brotação das árvores e arbustos cortados. Em geral há predominância de uma espécie
Palmeiras, Babaçu ou Embaúba.
307
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Hipóteses Sobre a Nova Exclusão: dos excluídos
necessários aos excluídos desnecessários. Cad. CRH. Salvador, nº 21, p. 29-47, jul./dez. 1994, p.
44.
A propagação dos conflitos em Porto Alegre do Norte gerou a
violação dos direitos humanos, a desigualdade social rural e a exclusão social
reproduzidas pela violência através da conivência do Estado que fechou os olhos
para os abusos da FRENOVA naquela espacialidade. Esta atitude colaborou com
aquele grupo empresarial para a imposição dos seus projetos em áreas ocupadas
por trabalhadores rurais, bem como no favorecimento de garantias para o acesso
ao mercado de capitais, acarretando assim, o descumprimento dos direitos
essenciais daqueles indivíduos.
Em relação à propagação da violência no campo é importante salientar
que esta possui três grandes características, segundo José dos Reis Santos Filho:
308
SANTOS FILHO, José dos Reis. Violência e projetos de vida em conflitos pela posse da terra.
Estudos de Sociologia, Araraquara, v.6, n. 11, p. 145-159, jul./dez. 2001, p. 147.
309
Idem.
em vista que estão arraigadas na sociedade brasileira. Marilena Chauí 310 afirma
que esta estrutura não é percebida como violenta relegando frequentemente como
um fato momentâneo. Com isso, os procedimentos ideológicos fazem com que a
violência que estrutura e organiza as relações sociais brasileiras não possa ser
percebida, e, por não ser percebida, é naturalizada e essa naturalização conserva o
mito da não-violência na sociedade brasileira.
A violência está atrelada ao cotidiano do trabalhador rural assinalado
pelo sentimento de medo e insegurança constante, pois afinal, a força é utilizada
para manter uma dita ordem social que afeta a sobrevivência deste indivíduo no
campo. É diante desse cenário que temos uma efetiva demonstração do não
reconhecimento dos direitos dos trabalhadores do campo, os quais estão sujeitos a
diferentes formas de subordinação que têm a repressão como uma variável mais
aparente, como podemos observar no relato abaixo de Dom Pedro Casaldáliga:
314
ment , que passa a ser acionada para justificar a repressão
utilizada pelos latifundiários e pelo Estado como legítimas em benefício da
manutenção da propriedade privada, assim, a violência da mentira passa ser
proferida por várias vezes até que se torne uma verdade. Dessa Forma, qualificar
os posseiros como invasores e guerrilheiros torna a prática violenta dos grupos
empresariais justificável, ao passo que a estigmatização dos lavradores fortalece o
discurso que para manter o progresso e desenvolvimento da região se faz
necessário o domínio sobre grandes extensões de terras em detrimento da
agricultura atrasada exercida pelos posseiros.
313
STÉDILE, João Pedro. A luta pela terra no Brasil. Ervália: Ed. Página Aberta LTDA, 1996, p.
71-77.
314
Ibidem, p. 80.
A agropecuária FRENOVA que chegou na década de 1970 violou
de tradicional, sobretudo no que diz
respeito ao uso e posse da terra. Para os posseiros a terra é um bem de uso, não é
uma mercadoria para ser vendida e comprada. Não havia necessidade de
documentos para garantir o uso da terra pelas famílias e por gerações. A empresa
guiada por outros princípios quebrou esse princípio ao expulsar moradores,
baseando-se no pressuposto de que a terra não tinha proprietário porque não era
registrasse.
O povoado de Porto Alegre do Norte estava dividido entre os
interesses dos sócios da FRENOVA, pistoleiros e policiais estaduais e federais
contra os trabalhadores rurais na luta pela terra. Os espaços públicos passaram por
uma privatização por parte dos empresários através de uma organização efetiva da
violência contra os posseiros. Para a concretização das práticas repressivas
surtirem efeito contra os lavradores, a polícia foi contratada para efetuar
expulsões, assassinatos, intimidações e executar intimações oficiais na área da
agropecuária, de acordo com a narrativa de Dom Pedro Casaldáliga:
315
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.21, 1972, p. 4-5.
316
BARREIRA, César. Massacres... p. 169.
violência por parte dos grandes proprietários de terras não é consequência apenas
de um Estado inoperante, mas também em decorrência da imposição de um poder
paralelo que existe de forma simultânea no presente com vistas de atitudes do
passado, em meio ao desenvolvimento e ao atraso de práticas retrógradas para
instituir o exercício da dominação.
É importante observamos na narrativa acima que espaços privados,
como a agropecuária FRENOVA, passavam a ser locais de função pública à
medida que os interrogatórios do padre Eugênio Consoli e do posseiro Alexandre
Quirino iriam ocorrer na sua propriedade, configurando, desse modo, a
interpenetração entre o público e o privado nas áreas de fronteira na Amazônia.
Também é significativo percebermos que uma ação oficial, a qual deveria ocorrer
em uma delegacia (espaço público) foi direcionada para uma propriedade privada
que está em litígio com os moradores locais. Digamos que este fato já demonstra a
imposição de poder por parte da FRENOVA, que além de deter um grande
prestígio econômico, igualmente possuía importância política, evidenciando o seu
poder intimidatório ao ter a polícia estadual e federal à sua disposição na
resolução dos problemas de terras. Por que estes indivíduos não puderam ser
interrogados nos seus espaços de sociabilidade que lhes conferiam identidade e
pertencimento, tais quais: a Igreja, o centro comunitário ou a escola? O fato de
serem intimados a comparecerem na FRENOVA para possíveis esclarecimentos
impõe intimidação e coerção, isto é, se deslocar até o território dos seus opositores
e encontrar naquele ambiente grupos armados tanto da polícia quanto dos
seguranças particulares da fazenda, impõe a estes agentes o medo e a recusa em
cumprir com a intimação.
Desde a instalação da FRENOVA em 1970 até o ano de 1972,
constatamos neste capítulo algumas formas de violência contra a população do
povoado de Porto Alegre:
A tentativa de negação dos direitos sobre suas posses ocupadas há
cerca de 30 anos, sendo estas terras trabalhadas por meio da agricultura
de subsistência por famílias de migrantes provenientes em sua maioria
das regiões Norte e Nordeste do Brasil;
A limitação sobre o direito de ir e vir, provocada pela construção
de cercas de arame farpado sobre os espaços comunitários dos
trabalhadores rurais, dificultando assim, o uso do bebedouro público do
fronteira a visão da qual é vítima quando o europeu olha para o Brasil; sendo estes
passíveis de eliminação no espaço rural.
A agropecuária FRENOVA passou a representar a proposta de
desenvolvimento imprescindível para a expansão capitalista na Amazônia, em
contraposição ao modo de vida dos trabalhadores rurais baseado na produção para
a subsistência, em que o excedente era vendido ou trocado na região. As práticas
dos posseiros passaram a ser ameaçadas, e estes por medo ou até mesmo por um
mecanismo de resistência à tomada das suas terras através da repressão, venderam
as suas benfeitorias para a fazenda, migraram para outros lugares ou se
proletarizaram. Já os que permaneceram em suas posses lutaram contra a
317
das suas áreas. Nesse processo é válido destacar a
conivência do Estado em legitimar o uso da violência em prol dos anseios
econômicos em detrimento destes agentes marginalizados pela exclusão e
desigualdade social, como também pela negação dos seus direitos fundamentais
enquanto cidadãos.
317
3. A REPRESSÃO MILITAR COMO RESPOSTA AOS CONFLITOS DE
TERRA
318
CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças a posseiros pela Codeara. In: BRASIL. Comissão
Camponesa da Verdade. Relatório Final Violações de Direitos no Campo 1946 a 1988. Brasília:
CNV, 2014, p. 120.
319
Já trabalhamos com este episódio na dissertação de Mestrado, mas para que esta memória de
tortura e repressão não seja esquecida, falaremos brevemente deste fato afim de contribuir para o
não silenciamento destas vítimas da ditadura civil-militar no Brasil. Além disso, iremos trazer
novas análises aos relatos de tortura e acrescentar outros documentos.
Santa Terezinha está situada no nordeste de Mato Grosso, banhada
pelo rio Araguaia fazendo divisa com o estado de Tocantins. Com o
estabelecimento das empresas agropecuárias no Vale do Araguaia a partir de
meados da década de 1960320 têm-se uma mudança nas relações sociais da
população que já habitava aquela região desde o início do século XX. Dentre elas
podemos citar o povoado de Santa Terezinha, que teve parte de sua área ocupada
pela agropecuária CODEARA.
A CODEARA teve a área do seu projeto de 195.000ha aprovada pela
SUDAM. O empreendimento se instituiu no distrito de Santa Terezinha, e tanto as
casas quanto o espaço de trabalho dos agricultores foram postos sob o domínio da
empresa. A agropecuária adquiriu as terras da região e mesmo ciente de que nelas
havia ocupantes com direito a posse ignorou esse fato sumariamente, tendo em
vista que estes estavam estabelecidos em um ponto geograficamente estratégico,
próximo ao rio: única via de transporte naquela época e de fácil acesso ao porto
fluvial. A empresa propôs aos ocupantes, ou seja, os posseiros, que fossem
remanejados para locais mais distantes, removendo-os das suas antigas terras de
trabalho. Isso deu início, em 1967, à disputa entre posseiros e a empresa, o que
durou até 1972.
Sobre o conflito entre a CODEARA e os posseiros, ocorrido no dia 3
de março de 1972, Esterci, o descreve da seguinte forma:
321
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia... p. 3.
322
Sobre o trabalho das Irmãzinhas de Jesus junto ao povo Tapirapé, ver: Diário das Irmãzinhas de
Jesus de Charles de Foucauld, 2002.
com o SPI e, depois, com FUNAI, a demarcação das terras dos
Tapirapé.323
323
WAGLEY, 1998 apud SOARES, Luiz Antonio Barbosa. Trilhas e Caminhos... p. 272.
emboscada dos moradores através do comando da ação guerrilheira liderada pelo
324
.
Diante dessas acusações, os bispos de Goiás se manifestaram em
defesa do padre Jentel divulgando uma carta da versão esclarecida por Dom Pedro
Casaldáliga que demonstra os responsáveis pela crise em Santa Terezinha:
1 a CODEARA, pela sua descontrolada ambição;
2 as autoridades municipais de Luciara e as autoridades estaduais de
Mato Grosso, pela conivência pelos desmandos da companhia;
3- Alguns elementos de órgãos federais, pela grave omissão no caso325.
O padre Jentel estava no Rio de Janeiro em uma reunião com o
secretário geral da CNBB Dom Ivo Lorscheiter, e logo após prestou depoimento
à imprensa repudiando
sistemáticas da polícia para capturar os líderes civis do suposto movimento que
326
.
Não só os empresários acusaram o padre Jentel como sendo
responsável pelo conflito em Santa Terezinha, como também o governador do
estado de Mato Grosso, José Fragelli. O governador esteve em São Paulo para
manter uma série de contatos com as autoridades municipais, estatuais, militares e
empresários. Nessa oportunidade, concedeu entrevista ao Jornal Estado de São
Paulo, em
Fragelli declarou que
[...] tanto o padre Jentel como o bispo de São Félix, dom Pedro
Casaldáliga, estavam incitando os posseiros daquela região
contra as companhias agropecuárias que estavam se instalando
na área do Araguaia. De acordo com as investigações feitas
depois do incidente de Santa Terezinha, quando oito
funcionários da CODEARA foram feridos à bala, chegou à
conclusão de que o mentor intelectual da revolta tinha sido o
padre Jentel, que, no momento, se encontra foragido (...) Esses
324
GUERRILHA, Empresários Acusam Padre, 11/03/1972. Documento do Acervo da Prelazia de
São Félix do Araguaia R06. 2.37, p. 2.
325
Idem.
326
Idem.
dois religiosos, de tendências puramente esquerdistas, mantêm
em ação um bem caracterizado plano de agitação, orientados
provavelmente, por agentes de outros países.327
327
Ibidem, p. 1.
328
SOUZA, Maria Aparecida Martins. A luta pela permanência na terra: a resistência dos posseiros
de Santa Terezinha. In: BARROZO, João Carlos (Org.). Mato Grosso: A (re)ocupação da terra na
fronteira amazônica (século XX). São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2010, p.
246.
Com a sentença conferida ao Padre Jentel em 28 de maio de 1973,
julgado em Campo Grande (atual capital do estado do Mato Grosso do Sul) e
condenado a 10 anos de prisão, Dom Pedro Casaldáliga considerou que a vinda do
destacamento militar permeada por atos repressivos estaria vinculada
possivelmente à condenação do religioso, pois os militares pretendiam impedir
uma eventual reação da população de Santa Terezinha ou da região.
Intencionavam ainda atemorizar o bispo e a equipe da Prelazia. Para Casaldáliga
os militares não estavam satisfeitos apenas com a condenação de Jentel, mas
queriam o extermínio da Prelazia e, consequentemente, o fim das ações de justiça
e liberdade desencadeadas por esta Igreja329.
329
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08. 2.03, 1973, p. 1.
políticos contra a segurança nacional, fortalecendo assim a prática da tortura como
aparelho essencial da ditadura.
Em janeiro de 1968, o Conselho de Segurança Nacional aumentou as
funções do SNI e implementou as DSIs. Este fato caracterizava uma ampla rede
de espionagem, instaurada em todo o país, nas seguintes instâncias: ministérios
civis, pastas militares, autarquias, fundações e órgãos públicos. Nestas esferas o
órgão assumiu o nome de AESI, sendo importante destacar que era conveniente
para o mesmo, lotar militares linha-dura que almejavam pouco trabalho e
gratificações. Jayme Portella iniciou a constituição de um planejamento nacional
330
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da
repressão. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano:
O tempo da ditadura regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012B, p. 177.
331
CIE (Centro de Informações do Exército), Cisa (Centro de Informações de Segurança da
Aeronáutica), e o Cenimar (Centro de Informações da Marinha). Entre 1967 e 1971 foram
334
. É neste contexto de negação dos Direitos Humanos e
instauração da Doutrina de Segurança Nacional que os agentes de pastorais e
religiosos da Prelazia de São Félix foram sequestrados, presos e torturados no ano
de 1973.
332
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda... p. 180.
333
BARBOSA, Marco Antonio. Aspectos relativos aos Direitos Humanos e suas violações, da
década de 1950 à atual e o processo de redemocratização. In: BRASIL. Secretaria de Direitos
Humanos. Tortura/Coordenação Geral de Combate à Tortura (Org.). Brasília: Secretaria de
Direitos Humanos, 2010.
334
Ibidem, p. 23-24.
Fábio Konder Comparato aponta que a tortura tem como finalidade
obter informações ou confissões, o castigo e a intimidação ou coação de
determinadas pessoas. Além disso, para o autor, o mundo pós-segunda guerra
mundial propiciou um clima de terror generalizado pelas autoridades
governamentais, como o extermínio aos movimentos subversivos335. Para a
psicóloga Tania Kolker, a violência do Estado no período ditatorial foi
direcionada a toda a sociedade, difundindo o medo, tecendo laços de
aceitabilidade e destruindo qualquer contestação a sua prática. O governo militar
utilizou da violência implícita e explícita para reproduzir o terror, a impotência e o
silenciamento, como também a tortura que ao mesmo tempo pretendia atingir o
máximo de indivíduos e gerar uma forma de subjetividade submissa,
individualizada e despolitizada, apta a justificar as práticas de exceção, a omitir as
sequelas provocadas pelo terror de Estado e a restringir os males nos diretamente
atingidos336.
Diante deste cenário de negação dos Direitos Humanos através do
sequestro e tortura dos agentes de pastorais e religiosos da Prelazia de São Félix
do Araguaia, se torna importante destacarmos que a repressão instaurada naquela
região no ano de 1973 não esteve apenas ligada aos conflitos de terras e à prisão
do padre Francisco Jentel, pois concomitante com este episódio estava ocorrendo
a Guerrilha do Araguaia no sul do Pará e norte de Goiás (atual estado de
Tocantins).
Os primeiros militantes do PC do B começaram a chegar à região no
ano de 1966 e se sociabilizarem com os moradores locais a fim de formarem a
guerrilha. A partir de abril de 1972 os militares se instituíram no sul do Pará para
investigar o foco do movimento guerrilheiro na Amazônia. A organização foi
descoberta em 1972, possivelmente delatada por uma militante que tinha ido fazer
335
COMPARATO, Fábio Konder. A tortura no direito internacional. In: BRASIL. Secretaria de
Direitos Humanos. Tortura/Coordenação Geral de Combate à Tortura (Org.). Brasília: Secretaria
de Direitos Humanos, 2010, p. 81.
336
KOLKER, Tania. Tortura e Impunidade danos psicológicos e efeitos de subjetivação. In:
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Tortura/Coordenação Geral de Combate à Tortura
(Org.). Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010, p. 174. 175.
tratamento médico em São Paulo e foi presa pelos militares. Apesar dos
guerrilheiros serem em número menor e com um armamento relativamente
inferior ao do exército, os militares precisaram efetuar três campanhas para enfim,
conter os conflitos na região do Araguaia em dezembro de 1973337.
A Guerrilha do Araguaia está dividida em três fases distintas. A
primeira campanha338 teve início em 12 de abril de 1972, em que utilizaram
grupos de seis a trinta homens, sendo estes contratados pelo Exército como
337
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta
armada. São Paulo: Ática, 1987, p. 208.
338
Grande contingente de soldados/tropa.
339
NASCIMENTO, Durbens Martins. A Guerrilha do Araguaia: paulistas e militares na
Amazônia. Dissertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento). Belém: Universidade
Federal do Pará, 2000, p. 130.
340
Ibidem, p. 145.
movimentos guerrilheiros para um golpe contra o governo. Desse modo, como já
foi tratado no capítulo dois desta tese, a região entre setembro e outubro de 1972
recebeu a Ação Cívico e Social do Exército, como também contou com a presença
do Capitão Ailson Loper que aterrorizou os posseiros e religiosos de Porto Alegre
do Norte. O bispo Dom Pedro Casaldáliga era acusado de auxiliar os guerrilheiros
que passavam pelo nordeste de Mato Grosso rumo ao sul do Pará, Dom Pedro
Casaldáliga (Jornal Movimento, 17/7/78):
341
CASALDÁLIGA apud ANTERO, Luis Carlos. Araguaia: Presente! Centro de Documentação e
Memória, São Paulo, n. 64, fev/abr. 2002.
Santa Terezinha. Era guerrilheiro ligado ao PCdoB, em
342
342
BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial Sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial Sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007, p. 247.
343
CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças... p. 122.
344
Este encontra-se na lista dos 377 apontados pela Comissão da Verdade como responsáveis por
crimes na ditadura militar. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/12/veja-
lista-dos-377-apontados-como-responsaveis-por-crimes-na-ditadura.html>. Acesso em 10 dez.
2014.
Na madrugada de 4 de junho de 1973 os militares começaram a
empreender os atos de violência contra a população da Prelazia. O povoado de
Serra Nova foi invadido por cerca de sessenta soldados armados de metralhadoras
que iniciaram a operação com descargas de tiros na entrada do patrimônio,
passando em seguida a revistar todos os ranchos. A casa pastoral foi invadida e os
agentes da Igreja foram violentamente despertados com as metralhadoras
apontadas para eles; em seguida todos foram revistados, seus pertences foram
vasculhados e apreenderam todo material escrito (cartas, livros, revistas,
documentos). Os moradores também sofreram os atentados dos militares, com
suas casas invadidas, chefes de famílias sendo violentados fisicamente e as
crianças intimidadas com as armas no momento em que se efetuavam a busca por
revólveres, armas de caça, facões e facas de cozinha.
As casas das Irmãzinhas da missão Tapirapé também foram invadidas
por militares que chegaram até o local de avião, com a presença de um Tenente da
polícia militar de Cuiabá e três soldados armados com metralhadoras. Os policiais
alegaram ter recebidos ordens da Capital para verificar os documentos do local345.
Assim, como os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia, as prisões
e a tortura dos religiosos e leigos da Prelazia de São Félix do Araguaia foram
proibidas de serem noticiadas pela imprensa local e nacional. A ideia era não
deixar que este fato fosse divulgado, pois isto iria enfraquecer a imagem do
-1973)346.
Desse modo, era necessário combater os opositores ao governo e impedir que a
sua versão fosse publicada, através de uma fiscalização sistemática que barrava
qualquer notícia ou comentário contrários aos militares347.
345
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.03, 1973, p. 2.
346
PRADO, Luiz Carlos Delorme;
integração internacional e concentração de renda (1967-1973). In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: O tempo da ditadura regime
militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
347
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda... p. 190.
Portanto, a censura foi um mecanismo fundamental para que a
ditadura militar se legitimasse e construísse uma representação positiva do país,
conforme Antônio Canuto expõe no relato a seguir:
348
CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças... p. 126.
Araguaia. Essa rádio misteriosa ninguém nunca soube. Toda a
noite você podia ligar que a notícia estourava. Nós ouvíamos a
BBC, a Voz de Tirana, e a notícia caia mesmo.349
349
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida a autora,
em 892 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do Norte.
350
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 2.
delatarem o paradeiro do agente de pastoral José Pontim. Essas informações
foram reproduzidas por um grupo que se identificou como leigos e religiosos de
São Paulo, um mecanismo utilizado para driblar a censura e dar publicidade aos
fatos ocorridos na Prelazia como em outras localidades vítimas da repressão
daquele momento351.
O padre Antônio Canuto fez um relatório a respeito da sua prisão e
espancamento, ocorrida no dia 8 de julho de 1973 quando a casa pastoral foi
invadida violentamente por um grupo de militares que estavam à paisana. Ele
descreveu que, primeiramente, foi agarrado pela camisa por um indivíduo armado,
recebeu socos, pontapés e foi levado para o interior de uma viatura onde
interrogaram-no a respeito de José Pontim, sob fortes tapas no rosto e na boca. Em
seguida, o padre Canuto e o padre Eugênio foram conduzidos à fazenda
AGROPASA, onde encontraram os padres Pedro Mari e Leopoldo Belmonte,
sendo este último espancado por vários indivíduos, recebendo tapas no rosto e na
boca352.
Os escritos de Dom Pedro Casaldáliga e o Jornal Alvorada353 foram
apontados como atos injuriosos às forças armadas, sendo o bispo acusado de
incitar o povo contra o regime militar. Depois de muitos questionamentos e
humilhações os padres foram levados de volta para a casa pastoral, com ordens
para não se retirarem até que o Capitão os liberasse.
O AI5 assegurou o uso da tortura contra aqueles que se opuseram à
Segurança Nacional, bem como possibilitou aos encarregados de inquéritos
políticos efetuarem a prisão de qualquer cidadão por 60 dias, dentre os quais 10
dias em regime de incomunicabilidade para corroborar com o trabalho dos
torturadores, e garantir a estruturação dos crimes da ditadura354. A tortura era
351
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.23, 1973, p.1.
352
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.11, 1973, p.1.
353
A Prelazia de São Félix possui o jornal Alvorada, criado desde o início da década de 1970 e está
disponível no site: http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/documentos/index.html#1. Ainda
sobre o histórico do Jornal Alvorada ver: SCALOPPE, Marluce de Oliveira Machado. Práticas
midiáticas e cidadania no Araguaia: o jornal Alvorada. Cuiabá: KCM Editora, 2012.
354
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 357.
justificada como um método indispensável para se obter a confissão do torturado,
assinalada na ideia de defender o regime militar aos que colocavam em ameaça a
ordem política e a segurança do Estado.
Em relação às prisões que ocorreram durante o regime militar, Myrna
Coelho355 as caracteriza como sendo na verdade atos de sequestros, pois havia
uma demora no registro dos presos o que os configuravam como desaparecidos
tanto para os seus familiares e amigos quanto legalmente. Este mecanismo tinha
como objetivo favorecer o trabalho dos torturadores. O desaparecimento ou
sequestro destes indivíduos instituía um presente contínuo nas suas vidas, haja
vista que o futuro de retornar para casa era muitas vezes incerto, estando
destituídos do poder sobre si mesmos e restringidos da sua liberdade.
A experiência de violência e tortura a qual foram submetidos os leigos
e agentes de pastorais da Prelazia de São Félix do Araguaia, conferiu a estes
indivíduos a condição de testemunhas com o domínio de relatar o sofrimento
vivenciado na prisão durante o ano de 1973. Assim, para compreendermos as
diferentes características do conceito de testemunha, nos apoiamos no trabalho de
355
COELHO, Myrna. Sofrimento e Tortura: Brasil (1964-1979) e Argentina (1976-1983). Tese
(Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina) São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2010, p. 112.
356
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo:
Boitempo, 2008, p. 27.
os seus relatos estão carregados pela subjetividade da interioridade do
acontecimento vivido.
Dentre os relatos mais impactantes que expõem a violência militar
contra a população do Araguaia, estão àqueles presentes nas cartas dos leigos e
agentes de pastorais presos durante a ação violenta na Prelazia no dia 4 de junho
de 1973. Na casa das Irmãzinhas de Jesus foram presos Edgar e Thereza Adão,
visitantes do Rio de Janeiro que estavam na região para conhecer o trabalho das
Irmãzinhas na Aldeia dos Tapirapé.
Em 5 de junho de 1973, a caminho da Cooperativa Agrícola de Santa
Terezinha, a leiga Thereza Salles foi sequestrada por policiais que estavam à
paisana. Naquele dia, Thereza não imaginava que a sua realidade iria mudar de
estatuto.
357
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A08. 2.14, 1973, p. 1.
No dia 26/6/73, fui transferida para a PF de Brasília, ficando
incomunicável até o dia 12/7/73. Obs: ao ser transferida nada
me falaram, ao não ser que me encapuzasse, e que iria sair.
Lembro-me que ao sair não andamos mais 40 minutos,
pressenti que percorri outra estrada a fim de desnortear
quanto o local da casa onde permanecera do dia 8/6/1973 a
26/6/73. [...] continuei na PF de Brasília até o dia 12/7/73,
quando novamente viajei, só sabendo para onde quando cheguei
ao local.
Esta viage [sic] [realizada no dia 12/07/1973] foi feita com os
companheiros que também haviam ido para Brasília. Todos de
óculos de borracha, e algemados, entramos em 1 avião vindo
chegarmos a Campo Grande MT. Obs. A sempre uma
incógnita, p/ onde vamos, quem nos leva, etc.358
358
Relato de Prisão de Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.14, 1973, p.16-18, grifos nossos.
359
primeiro luga .
Os agentes pastorais da Prelazia de São Félix do Araguaia foram
presos e conduzidos para Cuiabá onde prestaram seus primeiros depoimentos.
Todos eram questionados sobre o paradeiro de José Pontim, sendo este
360
.A
busca por José Pontim tinha relação com a sua trajetória de trabalhos pelos
povoados da região, pois ele chegou com a sua esposa Selme Lima Pontim no
conturbado ano de 1972, em que os patrimônios de Santa Terezinha e Porto
Alegre do Norte enfrentavam conflitos com as empresas agropecuárias e a área
estava sob constante intervenção militar. Pontim veio incumbido pela missão de
assumir a direção do GEA, em São Félix do Araguaia, pois este possuía nível
superior.
José Pontim, por estar em Santa Terezinha no momento em que o
exército chegou para prender os posseiros envolvidos no conflito contra a
CODEARA, foi acusado juntamente com outros agentes de pastorais: Altair,
Terezinha, Tadeu e padre Francisco Jentel como mentores da luta dos
trabalhadores rurais. Já no final do ano de 1972, Pontim foi para Porto Alegre do
Norte ajudar o padre Eugênio Consoli na substituição do leigo Altair que estava
doente, impossibilitado de lecionar na escola do patrimônio. Em janeiro de 1973,
José Pontim e a sua esposa Selme Pontim mudaram-se para o povoado de
Pontinópolis, onde estabeleceram junto com a Equipe Prelazia a linha de atuação
da pastoral361. Portanto, o fato de José Pontim não ser oriundo da região, possuir
nível superior e estar presente nos principais povoados em que ocorriam os
conflitos pela posse da terra, foi considerado pelos militares como um suspeito de
atividades subversivas, tendo a sua prisão e tortura como atos justificáveis pelo
regime político ditatorial.
359
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma A questão dos testemunhos de catástrofes
históricas. PSIC. CLIN., Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65-82, 2008, p. 66.
360
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08. 2.03, 1973, p. 5.
361
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 4.
No dia 8 de junho de 1973 os agentes de pastorais foram levados para
levavam socos na cabeça ou mesmo os famosos telefones, que são socos nos
362
ouv . A prática da tortura era um mecanismo para se obter informações dos
torturados, assim, ao serem sequestrados e presos os agentes de pastorais tinham a
consciência que a qualquer momento iram ser violentados e que esta violência
seria exacerbada durante o período em que permanecessem desaparecidos. Desse
modo, estes indivíduos ficavam permanentemente inseguros enquanto não
tivessem revelados os seus paradeiros, pois viviam constantemente o medo da
intensificação das torturas como também um possível assassinato. Passar por esta
experiência em si já é torturante, dado que perder o controle do seu corpo e tê-lo
submetido como objeto de espoliação impõe uma situação angustiante e provoca
um temor incessante em relação à morte, bem como a incerteza a respeito do
futuro.
Nos interrogatórios havia muitas perguntas e solicitações de
descrições a respeito da postura política da Prelazia de São Félix do Araguaia,
dentre elas podemos destacar: Qual a organização que a Prelazia fazia parte? Falar
politicamente sobre o Padre Francisco Jentel e Antônio Canuto; Quais as
atividades políticas eram realizadas na Prelazia? Em que lugar ocultavam os
depósitos de armas e rádio transmissor? Falar sobre os códigos de cartas e siglas
utilizadas para os agentes se identificarem como elementos da Prelazia; O que o
Padre Jentel pensava politicamente, o que fazia ao sair de viagem? Como recebia
dinheiro e por parte de quem? Se havia participado de movimento estudantil; O
que era ideologia? Como havia conhecido o padre Jentel?
Os presos políticos são vistos apenas como portadores de informações
que devem ser extraídas de qualquer modo. Essa coisificação imputa aos
torturados o sentimento de humilhação e degradação, bem como a perda da sua
dignidade através da negação dos seus direitos enquanto cidadãos por um Estado
362
Relatório de Prisão de Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.14, 1973, p.19.
de exceção. Relegando a estes indivíduos a sensação de vulnerabilidade
destituídos das suas convivências entre seus familiares e amigos, ao passo que
foram inseridos em um ambiente desumano e indiferente, assinalando os agentes
de pastorais como instrumentos da repressão tendo a sua humanidade rejeitada por
aqueles que os viam como ameaças de uma ordem política, conforme podemos
identificar no documento que se segue:
363
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 01 de maio de 2007, p. 3.
364
CHAUÍ, Marilena. A tortura como impossibilidade da política. In: I Seminário do Grupo
Tortura Nunca Mais: Depoimentos e debates. ELOYSA, Branca (Org.). Petrópolis: Vozes, 1987,
p. 34.
Neste cenário, almeja-se a insanidade do torturado, e o torturador
deseja ter a imagem de portador de uma dita ordem social ao eliminar os
elementos contrários daquele regime político. Dessa forma, o principal objetivo da
tortura, para Chauí365, advém do ato de destituir o torturado da sua humanidade e
subjetividade, reproduzindo outro sujeito através de um teatro que imputa na
pessoa a ideia de não ter direitos e extinguindo a sua humanidade por meio da
tortura sob a farsa desumana da ditadura no Brasil como sinônimo de república.
O ato de relatar uma experiência trágica é caracterizado por
Seligmann-
do trauma de ter escapado da morte, em que a vítima é impelida a verbalizar a sua
história de modo que o indivíduo compreende e desafia os limites da sua narrativa
ao relembrar situações traumáticas366. Assim, o autor assinala estas pessoas não
365
Ibidem, p. 37.
366
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Direito pós-fáustico: por um novo tribunal como espaço de
rememoração e elaboração dos traumas sociais. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN,
Monica (Orgs.). Violência na história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio,
2012, p. 108.
367
Ibidem, p. 109.
368
RUIZ, Castor Bartolomé. A testemunha e a memória: O paradoxo do indizível da tortura e o
testemunho do desaparecido. Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, v. 48, n. 2, p. 70-83,
mai./ago. 2012, p. 72.
respeito ao fato dos vitimários ou torturadores suprimirem as consequências das
suas barbáries através das estratégias de esquecimento com a ocultação histórica e
política das vítimas. Esta atitude implica na legitimação de uma nova ordem
social, bem como na garantia da impunidade dos carrascos naturalizando a
violência; acarretando assim, em dois resultados desumanos: o escamoteamento
da vítima provocando a negação histórica da violência sofrida; e a negação da
injustiça que produz na vítima uma espécie de morte histórica.
A estratégia do esquecimento histórico empregada pelos vencedores
tem como consequência a naturalização e conservação da violência. Desse modo,
os diversos Estados de exceção criaram narrativas que legitimassem as
atrocidades cometidas através de alguns mecanismos que caracterizavam as
vítimas como terroristas, subversivas, criminosas, ou seja, como indivíduos
perigosos que ameaçavam a sociedade, os quais dessa forma, estavam passíveis de
serem eliminados.
Para que esta ótica não seja perpetuada e que as injustiças da tortura
sejam reparadas Ruiz369 convalida a narrativa da testemunha sobrevivente como
uma verdade interna aos acontecimentos que expõe o significado da violência para
a vítima, a qual narra o ocorrido de maneira abstrata diferentemente do observador
externo. Portanto, sob esta lógica, o narrador torna-se parte do acontecimento,
uma dilatação do fato, isto é, um fato novo. Entretanto, faz necessário apontarmos
que ao acionar esta memória não se tem a pretensão de gerar ódio e ressentimento,
mas de conferir às vítimas a restauração da alteridade lesada, bem como a não
naturalização e repetição destes atos dolorosos.
Os presos ficaram detidos em Brasília até o dia 12 de julho de 1973 e
foram transferidos para o Quartel da 14ª Polícia do Exército na cidade Campo
Grande, que na época pertencia ao estado de Mato Grosso. José Pontim havia sido
preso em São Félix do Araguaia no dia 9 de julho e também levado para Campo
Grande. Neste Quartel os agentes pastorais da Prelazia vivenciaram os piores dias
de suas vidas, o medo e a sensação da morte eram constantes; as acusações que
369
Ibidem, p. 78.
lhes pesavam decorriam do simples fato de se comprometerem na luta pela justiça
e liberdade de uma população desamparada pelo Estado, ato este considerado
como subversivo pelos militares que viram tal ação como decorrente de
movimentos políticos que tinham a pretensão de extinguir o governo brasileiro.
Os agentes de pastorais ficaram detidos em Brasília por mais de um
mês em regime de incomunicabilidade que, de acordo com Coelho370, é tido como
um modus operandi da tortura para que os sequestrados sintam ainda mais a dor
do sofrimento causada pela ampliação da solidão e do desamparo. O isolamento e
a falta de comunicação provocam a experiência do desaparecimento, a qual é
acompanhada pela sensação de vulnerabilidade por não possuir laços assistenciais,
bem como pelo fato de deixar de existir legalmente.
O testemunho abaixo expressa, de modo chocante e trágico, o que
significava autoridade e poder para as forças militares do Estado de exceção
brasileiro no período em estudo:
São marcas que certamente estas pessoas levarão pela vida toda, sem
contar que foram também destituídas dos seus familiares e da sua comunidade e
tiveram as suas vidas roubadas enquanto, vivenciavam dias de terror e de
violência. Seus direitos foram ceifados como se não fossem seres humanos e
cidadãos. Neste aspecto, de acordo com Myrna Coelho372, a funcionalidade da
370
COELHO, Myrna. Sofrimento e Tortura... p. 117.
371
Relatório de Prisão de Tadeu Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.15, 1973, p. 13.
372
COELHO, Myrna. Sofrimento e Tortura... p. 79.
tortura sustenta-se na confusão entre interrogatório e suplício, sendo que o
primeiro se pauta em perguntas e respostas, já o segundo almeja a submissão. O
ato da tortura não projeta apenas a prestação de informações ao carrasco, mas
também impõe que o torturado identifique no executor o dominador da sua fala,
da sua humanidade e dignidade. Assim, este indivíduo além de suportar a dor
física ao mesmo tempo tem que se sentir submisso ao poder do torturador.
No Araguaia mato-grossense vemos que o Estado, que em tese deveria
garantir os direitos e a segurança dos indivíduos, bem como atenuar as práticas de
violência contra estes, aparece naquele momento como um Estado de terror. A sua
incipiente presença foi quebrada pelo uso exacerbado da violência, a qual pode ser
analisada de acordo com Yve
ferocidade da repressão estão na verdade ligadas à vontade do Estado de afirmar
373
. O depoimento abaixo é, uma vez
mais, a expressão nua e crua destas premissas de intensidade e ferocidade
aplicadas pelo Estado contra os seus próprios cidadãos, por ele considerados
inimigos a serem combatidos:
373
MICHAUD, Yves. A violência... p. 28.
374
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 4.
dita ameaça que abalava a manutenção do poder naquele contexto, assim Norberto
Bobbio expõe que:
375
BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2007, p. 82.
376
MICHAUD, Yves. A violência... p. 56.
médicos psiquiatras com suas drogas, até especialistas da ação psicológica, do
377
.
No século XX a tortura tornou-se um instrumento corrente no
governo. Passou a ser praticada em inúmeros países, principalmente na América
Latina, sendo esta implícita e o seu caráter de clandestinidade lhe conferia
eficiência, entretanto os cidadãos tinham ciência de que se fossem presos corriam
o risco de serem torturados. A tortura não decorria apenas no ato de obter
informações, mas também estava incumbida de humilhar, fazer mal e violentar a
vítima, bem como aterrorizá-la, ameaçar parentes e amigos, enfim a sociedade de
um modo geral.
A força repressiva empregada pelo regime de exceção advém do
princípio jurídico que confere ao Estado a sua institucionalização pelo poder e
substitui o arbítrio pela regra. Assim, a violência aplicada pelo Estado é exercida
segundo as le
378
, ou seja, a violência empregada pelo
Estado, mesmo por um Estado autoritário, está submetida a restrições legais. Mais
uma vez, o Estado autoritário brasileiro implementou com rigor estas premissas,
como podemos observar no documento abaixo, o qual relata mais procedimentos
de tortura:
377
Ibidem, p. 58.
378
Ibidem, p. 56.
379
Relatório de prisão de Pontim Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.17, 1973, p. 2.
seu corpo, mas as lembranças dessa experiência de morte em vida podem
assombrá-lo durante toda a sua existência. Contestar que os ferimentos nas suas
costas foram em decorrência da tortura, seria como assinar a sua sentença de
morte.
Portanto, não contradizer o seu carrasco era um dispositivo para se
manter vivo, pois tinha-se a consciência de que a justiça não iria reparar tal
impunidade. Esta constatação ampliava ainda mais a angústia de ser assassinado,
tendo em vista que regime ditatorial dilacerou toda a dignidade dos indivíduos
considerados subversivos, assim possivelmente, José Pontim passou a
compreender por meio da convivência com o seu torturador, que a sua vida para
aquele sistema político era passível de ser descartada a qualquer momento, uma
vez que este indivíduo teve a sua condição humana desprezada.
Ao depararmos com a documentação do Acervo da Prelazia de São
Félix do Araguaia, nos perguntamos se o que a vítima falava nos seus
interrogatórios tinha realmente alguma importância? Ouvia-se o torturado? De
fato, almejava-se a obtenção de informações? Ou o objetivo da tortura era
simplesmente alcançar a submissão e o sofrimento do torturado? São dúvidas que
permeiam a nossa imaginação ao lermos os relatos de tortura dos agentes de
pastorais, pois ao analisarmos as questões que lhes foram levantadas durante o
inquérito, os militares já tinham como certeza dada que a população da área da
Prelazia de São Félix do Araguaia apresentava um claro envolvimento com os
movimentos subversivos ligados à Guerrilha do Araguaia.
Desse modo, podemos sugerir que as falas dos torturados que
destoavam da versão dos torturadores eram desconsideradas, tendo em vista que o
carrasco tinha o poder de decisão sobre a vida daquelas pessoas, ou seja, cabia a
ele determinar se aquele indivíduo era passível de morrer ou viver. O que os
torturadores desejavam efetivamente era obter a assinatura que comprovasse o
discurso dos militares, e com isso, constatamos que a tortura, além de fazer falar,
também foi utilizada para silenciar a história dos oprimidos e perpetuar a narrativa
da ditadura militar. Diante do exposto, o documento abaixo é muito elucidativo:
Após os primeiros dias, isto eu ficava em 1 quarto fechado, sem
saber com quem estava, depois deste tempo a coisa amenizou
mais para mim. Mas continuaram o interrogatório; sôbe, [sic]
em que lugar ocultava o depósito de arma, o rádio transmissôr
[sic] coisa que não existe na prelazia. Códigos de cartas, bem
como siglas que usávamos para nos identificarmos como
elementos da Prelazia. [...] Foi obrigada a identificação de
fotografias; nomes, cartas, etc.
Senti, que o interesse era arrancar da gente algo mesmo que
não fôsse [sic] verdadeiro p/ comprometer a Prelazia de São
Félix.
Confesso, que cheguei a um estado psicológico, em que temia
por tudo; pois existia ameaças de sempre possuírem meios de
arrancar tudo que queria. Mas a verdade mesmo não os
interessavam, pois nosso trabalho na Prelazia não esta baseado
em partido politico, nem mesmo existe abuso moral por parte
dos leigos e Padres por isto era uma preocupação marcante em
nossas vidas comunitárias; perante ao respeito que devemos ter
em relação ao povo e a Igreja universal, representada p/ S.
Félix.380
380
Relato de Prisão de Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.14, 1973, p. 12-14, grifos nossos.
381
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
Após uma ou duas sessão [sic], colocaram-me assistindo ao
meu noivo [Tadeu Escame] sendo interrogado c/ choques, foi
horrível p/ mim psicologicamente, pois eu já não estava mais
aguentando.
Confesso que foi horrível mas, assumi com êle [sic] o que foi
colocado; pois meu noivo ainda se lembrava da ata e pode
explicar o que significava as anotações. Fomos obrigados a
dizer que o Bispo era contra o Governo, que nosso trabalho era
politico, e que o objetivo da Prelazia era de conscientização
política.
Nossas confissões a base de choques e pancadas foram
gravadas, temos quase certeza; agora éramos levados para o
interrogatório sempre algemados e encapuçados, não sabemos
quem nos interrogou. [...] Gente, a verdade é que fiquei
psicologicamente arrazada [sic], sinto que se assumimos no
Brasil a Palavra do Evangelho, nós teremos que sofrer
humilhações e até a morte, pois significa subversão.382
382
Relato de Prisão de Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.14, 1973, p. 20-22.
383
CHAUÍ, Marilena. A tortura... p. 33.
- o primeiro momento, o mais conhecido, visa a aniquilação do
indivíduo e a destruição dos seus valores e de suas convicções;
- o segundo momento desemboca numa experiência de
desorganização da relação do sujeito consigo mesmo e com o
mundo, o que chamei, a demolição; - o terceiro momento é a
resolução desta experiência limite.384
384
VIÑAR, Marcelo; VIÑAR, Maren. Exílio e Tortura. São Paulo: Escuta, 1992, p. 45, grifo do
autor.
Quando cheguei à sala, no primeiro dia, puseram-me sentado
numa cadeira, de costas para os interrogadores, e começaram a
me perguntar por que fora trabalhar na Prelazia. Após algumas
indagações, me
fortemente. Mas a
385
Relato de Prisão de Antônio Carlos Moura Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do
Araguaia A08. 2.18, 1973, p. 4-6.
386
PELLEGRINO, Hélio. Um regime que destrói. In: I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais:
Depoimentos e debates. ELOYSA, Branca (Org.). Petrópolis: Vozes, 1987, p. 99.
passa a identificar-se com o seu algoz. Entretanto, não propriamente de forma
heroica, mas como um ato inconsciente em que a própria pessoa passa a se
torturar, assim como Antônio Carlos Moura que para diminuir a dor das agressões
teve que mentir e incriminar Dom Pedro Casaldáliga. Neste contexto o que
confere força e poder ao torturador é a imposição da violência para a eliminação
do outro, ou seja, para ele se sentir eficiente, necessita retirar do torturado a
informação que precisa. No entanto, se o torturador não consegue extrair as
confissões do torturado, este é considerado um derrotado. Dessa forma, podemos
Mas outro fato nos chamou atenção no documento acima, uma vez
que mesmo Antônio Carlos Moura tendo que mentir e incriminar os religiosos da
Prelazia de São Félix como uma forma de resistência contra os maus tratos
sofridos pela tortura, este impôs aos seus torturadores que era contra o tratamento
que ele estava recebendo na prisão. Então, nos perguntamos: Esta atitude foi
realmente consciente? A sua fala adveio de uma espontaneidade ou do sofrimento
causado pela tortura que acarretou neste indivíduo o anseio por explanar a sua
indignação? Ao expor a sua revolta, entendemos que o agente de pastoral
empregou um ato de oposição contra toda a brutalidade que vinha sofrendo no
cárcere. Mesmo que estas fossem as suas últimas palavras, este sujeito não estava
mais disposto a ser conivente com aquela experiência de morte em vida, e, nem
muito menos atribuir sentimentos de poder e submissão aos seus carrascos.
A tortura, como podemos perceber, é algo ligado a um projeto político
que para a sua manutenção e imposição do poder passou a ser disseminada, ou
seja, a população tinha consciência da existência dos espaços de extermínio e do
uso da violência. Assim, consequentemente, o ato de se obter informações e
confissões não estava somente atrelado ao fato de submeter e aterrorizar
determinada vítima, mas na difusão do terror coletivo. Desse modo, a tortura
almejava eliminar as convicções dos torturados e despojá-los dos seus laços
identitários que os caracterizavam como sujeitos de certa comunidade, de tal
modo como a agente de pastoral que assinala a importância da lembrança dos seus
amigos em orações para que a mesma pudesse resistir:
388
. Deste modo, se nos atentarmos para os
escritos da agente de pastoral, iremos notar que ela sublinhou a palavra
ouvido esta expressão por parte dos seus algozes como um termo de acusação das
a de São
Félix do Araguaia cometiam naquela espacialidade. Expor estas lembranças pode
trazer à tona a reprodução do sentimento de dor e reviver a experiência de
proximidade com a morte. A sua fala é delineada pela perplexidade e pelo medo,
mas o ato de narrar confere uma sobrevida à vítima que busca verbalizar as suas
dores e identifica-las em meio aos conflitos e nos casos de impunidade contra a
população da Amazônia que ansiavam pela conquista da terra.
O medo era uma arma importante contra os indivíduos considerados
subversivos de forma que se disseminava a ideia da existência de centros de
tortura que culminavam no ocultamento de pessoas, e que, consequentemente,
qualquer um estava sujeito ao desaparecimento e a tornar-se alguém que nunca
havia exist
387
Relato de Prisão da Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A08. 2.14, 1973, p. 17, grifo da autora.
388
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma... p. 69.
notícias chegavam de todos os quadrantes da Prelazia, agentes, líderes de
caso de óbito levar o corpo e soltar no meio de uma pista, passar uma viatura por
389
. A ameaça foi um mecanismo coercitivo
que impunha ao torturado o temor desta ser cumprida, pois esta geralmente era
político vigente estava
ajustado em exterminar todos os movimentos revolucionários que fossem
contrários a sua imposição através do regulamento do AI 5.
Neste sentido, forjar provas quanto uma fuga ou o suicídio de algum
preso político era um ato simplesmente exequível, principalmente pelo fato deste
indivíduo ser uma ameaça para a sociedade e ordem pública, e além do mais o
torturado estava em uma situação de total degradação humana assinalada pela sua
condição de desaparecido, como também em decorrência do seu estado inumano
reduzido as vontades do seu torturador.
Como consequência desta violência ocorreu a atomização do campo
social, a desintegração da vida pública, a desconfiança e o medo entre os
cidadãos, resultado de uma política de um Estado de terror que culminou na
390
.
Para Castor Bartolomé Ruiz391, a vítima está sempre submetida a uma
condição de sofrimento e de uma violência injusta. Desse modo, a injustiça que os
agentes de pastorais sofreram durante o período de cárcere na cidade de Campo
Grande, gerou para estes a condição de vítimas suscitada pela injustiça
vivenciadas naquele espaço. O autor ainda expõe que toda injustiça opera como
forma de violência, sendo importante destacar que toda violência e qualquer
injustiça tem duas faces: a do vitimário e a da vítima. Assim, na maioria das vezes
o vitimário carrega a insígnia de vencedor através do poder instituído pela
389
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 3-4.
390
Ibidem, p. 5.
391
RUIZ, Castor Bartolomé. A testemunha e a memória... p. 71.
violência legítima, e a vítima caberá em se empenhar na sua posição de vencida
em produzir uma narrativa da violência sofrida.
Ainda conforme Ruiz392, a narrativa do sofrimento confere um novo
acontecimento até então desconhecido, o qual estava oculto ao observador externo
e inserido na interioridade da vítima só sendo possível existir como acontecimento
político se for testemunhado. Este relato expõe a banalização da violência
demonstrando o seu lado camuflado e trazendo à tona a desumanização dos atos
de tortura. Deste modo, ao narrar a experiência de sofrimento se instaura um novo
acontecimento.
392
Ibidem, p. 78.
393
Relato de Prisão de Terezinha Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia -
A08.2.14, 1973, p. 10-15.
Desse modo, de acordo com Elizabeth Jelin394, a testemunha pode ser
caracterizada como alguém que viveu uma experiência e consegue em momento
posterior narrar ou dar o testemunho, que ocorre na primeira pessoa pelo fato dela
ter vivido o que se intenciona relatar. Nessa perspectiva, torna-se importante
mencionar a testemunha, conforme Primo Levi com a função de delação para
aqueles que não puderam ou não conseguiram falar das suas experiências no
campo de concentração:
oculto esses eventos que assombraram a vida de muitos indivíduos. Mas, devemos
levar em consideração que a necessidade de falar pode cair no silêncio quando não
há pessoas dispostas a ouvi-las396.
394
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 80.
395
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes... p. 72-73.
396
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 82.
Devemos ter em mente que toda narrativa do passado decorre da
escolha dos acontecimentos, pois a memória é seletiva como também é impossível
a sua total reprodução. Assim, de acordo com Elizabeth Jelin397, a memória
implica em u
sobrevivência e atuação do sujeito individual e da sua comunidade. No entanto,
não existe um único tipo de esquecimento, mas uma multiplicidade de situações
nas quais se manifestam esquecimentos e silenciamentos, com diversos usos e
sentidos, conforme podemos constatar no relato do enfermeiro do povoado de
Serra Nova, Edgar Serra.
A narrativa de Edgar Serra de um modo geral não apresentou os fatos
com maiores detalhes sobre a sua prisão e tortura no Quartel da 14ª Polícia do
Exército na cidade Campo Grande. Basicamente o seu relato se sistematizou na
descrição do sequestro empregado pelo Comandante da Polícia Militar, Euro
Barbosa de Barros, na sua condução a Brasília, pouco expôs sobre o inquérito
policial, e nada falou a respeito da tortura física e psicológica que sofreu, ou seja,
diferentemente dos outros agentes de pastoral que expuseram de forma descritiva
toda a tortura vivenciada no cárcere, Edgar Serra apontou que sofreu pressão
física e moral sem descrever o trauma que foi aquele acontecimento.
397
Ibidem, p. 29.
398
Relato de Prisão de Edgar Serra Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia -
A08.2.19, 1973, p. 5.
compreendido também leva a silêncios399. Outra questão que também envolve o
silêncio dos fatos, diz respeito em senti-los como traumáticos, assim o agente de
pastoral no momento da sua narrativa reprimiu e negou aqueles acontecimentos,
mas que poderão ser acionados posteriormente no momento em que a vítima
julgar ter uma distância entre o passado e o presente de modo que se possa
recordar o evento ocorrido, e ao mesmo tempo reconhecer a vida presente e os
projetos do futuro. Entretanto, é válido destacar que o tempo da memória não é
linear, cronológico ou racional, o que justifica de certo modo os esquecimentos de
Edgar Serra.
Testemunhar sobre o trauma culmina em obstáculos e entraves para
que a narrativa se reproduza naqueles que viveram e sobreviveram a situações
limites como a tortura. Narrar o sofrimento também implica em causar certos
impactos sob a sociedade, no modo em que essas narrativas serão apropriadas e os
diferentes sentidos que o público irá atribuí-las ao longo do tempo. Além do mais,
para Primo Levi:
399
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p.31-32.
400
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes... p. 20.
401
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 96.
Ainda sobre o relato de Edgar Serra, nos questionamos o fato de como
ele iria negar a Dom Pedro Casaldáliga o pedido de narrar sobre a sua prisão?
Teria ele condições de não atender esta demanda, tendo em vista que os outros
agentes de pastoral a fizeram prontamente? E, se pautando na lógica que
Casaldáliga ao longo da sua presença no Araguaia, utilizou do mecanismo de dar
publicidade aos fatos violentos ocorridos na região documentando e arquivando as
Assim, podemos imaginar que talvez, não acatar esta solicitação seria não dar
importância e contribuição às lutas empreendidas pelos agentes de pastorais,
leigos e religiosos da Prelazia de São Félix do Araguaia.
Outro elemento importante que notamos na sua narrativa, diz respeito
ao fato de que provavelmente Edgar Serra poderia estar sentindo medo de sofrer
algum tipo de repressão ao relatar os momentos que vivenciou na prisão:
402
Relato de Prisão de Edgar Serra Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia -
A08.2.19, 1973, p. 7, grifos nossos.
três agentes da Polícia Federal ao Hospital Militar, para exame
médico, que constatou queimaduras de choque em Tadeu,
Pontim e Edgar, e debilidade física generalizada na Terezinha.
Constou em alguma das seis fichas a existência de sinais de
tortura, mas nós não assinamos nada... Após o exame no
- na
verdade, um militar reformado que também nos examinou,
inventando um monte de doenças para cada um, e nem se
referindo às marcas de torturas. Nesse último (Dr. Simplício,
cujo consultório fica num sobrado velho à Rua Maracaju) não
vimos nenhuma ficha ou laudo a ser feito.403
403
Relato de Prisão de Antônio Moura Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do
Araguaia - A08.2.18, 1973, p. 9, grifo nosso.
404
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria... p. 96.
Dom Pedro Casaldáliga não se calou diante do cenário de violência
que tomou a Prelazia de São Félix do Araguaia, pois se calar significaria atribuir
naturalidade para tal ato compreendido naquele momento como algo corriqueiro e
característico do espaço da Amazônia. Casaldáliga não deixou que esta noção se
petrificasse na sociedade brasileira e indignou-se com a ação do governo em
reduzir o ser humano à condição de coisa violando-o fisicamente e
psicologicamente. Assim, a forma como o Bispo encarou essa siatuação se
resolveu a partir do mecanismo de dar publicidade aos acontecimentos no
Araguaia, utilizando da sua habilidade política de um não enfrentamento direto e
apelando para instituições nacionais e internacionais, as quais se sensibilizaram
com os problemas da Prelazia e abraçaram a causa junto ao bispo, conforme
podemos identificar na notícia do Diário Ya de Madri, reproduzido pelo jornal O
Estado de S. Paulo:
405
BISPO. São Paulo, O Estado de S. Paulo, 03/08/1973, p. 12.
ditatorial brasileiro e ao seu aparato militar. Sendo que este apresenta a sua notícia
com um tom de alerta e contestação ao modo violento que a polícia opera sobre a
sua população, com a ideia de dar publicidade internacional aos fatos que
ocorriam no Araguaia, e com isso, passar a mensagem de que o mundo estava
vigilante sobre a detenção dos colaboradores de Dom Pedro Casaldáliga.
Não perpetuar a imagem de que a fronteira era o lugar comum de
práticas da violência, foi um mecanismo usado por Dom Pedro nas suas
cartas/denúncias ao demonstrar que a Igreja do Araguaia juntamente com os seus
adeptos estava sendo perseguida e que este fato não poderia permanecer
camuflado pela censura, assim, como aconteceu com a Guerrilha do Araguaia que
culminou na morte de 59 guerrilheiros406 devido o silenciamento e ocultamento
deste horror na Amazônia. Dom Pedro Casaldáliga, estando ciente do poder
repreensivo dos militares, não se calou em relação a prisão dos agentes de pastoral
e publicou o documento abaixo:
406
Dados disponíveis no site do PCdoB: <http://www.pcdob.org.br/duvidas_print.php?id_faq=5>.
Acesso em 22 dez. 2015.
407
CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça e na esperança... p. 84-85, grifos do autor.
O tom que Dom Pedro Casaldáliga imprime nos seus
documentos/denúncias é de inconformidade diante das injustiças que a Igreja do
Araguaia vinha sofrendo por se colocar ao lado daqueles indivíduos
marginalizados pelo processo de (re)ocupação da Amazônia. Aceitar tal situação
se consistiria em apoiar a exclusão daquela população que estava descartada dos
projetos políticos e econômicos do Araguaia, sobretudo, no que diz respeito ao
plano de evangelização que se organizava na conscientização de que o homem
deveria ter as suas necessidades atendidas no plano terrestre e não em um fim
escatológico, conforme Casaldáliga aponta ironicamente quando se refere ao
Coronel Euro Barbosa de Barros como um pretenso teólogo que julga as suas
ações como atividades subversivas/políticas desvinculadas da esfera espiritual.
No dia 19 de agosto de 1973 houve uma grande celebração e
manifestação em São Félix do Araguaia com a presença de quinze bispos,
inclusive representantes do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns que se fez
representar no encontro pelos arcebispos de Vitória e João Pessoa, Dom João
Batista da Mota e Dom José Maria Pires 408, bem como alguns enviados da CNBB.
Esta cerimônia repercutiu em toda imprensa nacional e internacional Espanha,
França, Alemanha, Itália, repudiando a ação repressiva do governo militar e
pressionando para a soltura dos agentes pastorais da Prelazia409. Este ato resultou
na soltura dos presos410 na manhã seguinte: Antônio Carlos Moura, Thereza
Salles, Tadeu Escame, José Pontim, Edgar Serra e Thereza Adão, que foram
encaminhados para exames médicos e obrigados a assinar um documento
408
A celebração também contou com a participação dos Bispos: Dom Candido Padim (Bauru/SP),
Dom Antônio Fragoso (Crateús/CE), Dom Hélio Campos (Viana/MA), Dom Gilberto Pereira
Lopes (Ipameri/GO), Dom Tomaz Balduíno (GO), Dom Luiz Perez (Jales/SP), Dom Aldo Gerna
(São Mateus/ ES), Dom Celso Pereira, bispo-auxiliar de Porto Nacional/GO e Dom Estevão
Cardoso Avelar (Marabá/PA). IGREJA desagrava seu bispo. São Paulo, O Estado de São Paulo.
23/08/1973, p. 11). Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19730825-30187-nac-
0011-999-14-cen/busca/Casald%C3%A1liga.>. Acesso em 22 dez. 2015.
409
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 5.
410
Antonio Canuto no seu texto para o Relatório Final da Comissão da Verdade, aponta que além
das pessoas que citamos na tese, também foram interrogados o posseiro de Serra Nova - Luiz
Barreira de Souza, conhecido como Lulu por 3 vezes e a leiga Adauta Batista Luz por 2 vezes.
CANUTO, Antônio. Perseguições e ameaças... p. 125.
afirmando que não haviam sido torturados. Entretanto, José Pontim afirma que
eram testemunhos da tortura pela evidencia [sic] das queimaduras dos choques
elétricos. Os socos chamados telefones custou-me em um dos ouvidos deficiência
411
.
De acordo com Dom Pedro Casaldáliga, a Polícia Federal fotografou,
gravou e anotou tudo o que se passou durante a celebração litúrgica, como
também espalhou panfletos com os símbolos da foice e da cruz, supostamente
412
, bem como
difundiu boatos e ameaças contra os participantes do evento. Mas, estes fatos não
desanimaram ou amedrontaram a população local que participou numerosamente
da concelebração intereclesial413.
Um mês após a celebração intereclesial, os militares empreenderam
um novo trabalho da ACISO na região com a presença da Aeronáutica, Exército e
Polícia Militar. Estes juntamente com os universitários do Projeto Rondon,
414
. O coronel
José Meirelles e o general Tasso Villar de Aquino (Comandante da 9ª Região
Militar, com sede em Campo Grande) em companhia de outras autoridades
assistencialistas do Estado fizeram uma visita aos povoados do Araguaia, em que
se projetou para a população uma série de slides da estrada Cuiabá-Santarém da
qual o coronel Meirelles era o responsável pela obra, com o objetivo de mostrar a
outra face dos militares através dos serviços do Exército. A ideia era criar uma
411
PONTIM, José. Depoimento escrito. São Félix do Araguaia, 1 de maio de 2007, p. 4.
412
A cópia deste panfleto encontra-se no Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia com a
identificação: A2.2.16 P1.1.
413
CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça e na esperança... p. 90.
414
Ibidem, p. 92.
reunião ocorrida no dia 4 de setembro de 1973 entre o Bispo e o general Tasso
Villar de Aquino, em que este expressa que:
dos militares na região, devido ao fato desta estar localizada na extensão dos
conflitos da Guerrilha do Araguaia que só seriam findados em dezembro de 1973.
Interessante apontar que nos relatos dos agentes pastorais, estes
demonstram que não haviam perdido a esperança de lutar pelos problemas
presentes na Prelazia de São Félix do Araguaia. Passar por aquela experiência
trágica os havia fortalecido mais, pois estavam envolvidos com uma Igreja
comprometida com a libertação do seu povo e que não se calava diante as
ameaças de violência. Caminhava sim para denunciar as estruturas de dominação
que empregavam ações sociais de profunda desigualdade econômica, social e
cultural, como impor o poder por meio do uso da violência e o terror de Estado,
seja ele expresso pelas forças militares do Governo Federal ou do Estado de Mato
Grosso.
415
Relatório da Entrevista com o general Tasso Villar de Aquino Campo Grande MT.
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia - A08.2.21, 1973, p. 3.
Ao analisarmos as narrativas traumáticas dos agentes de pastorais da
Prelazia de São Félix do Araguaia, estas nos fizeram lembrarmos o texto
416
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas... p. 115.
estudo se apoiou nos relatos da repressão arquivados no Acervo da Prelazia de
São Félix do Araguaia, justamente para não deixar que estes caiam no
esquecimento e acabem involuntariamente r
417
. Neste sentido, se
estas narrativas não forem apresentadas por pesquisadores que se preocupem com
a problemática da memória e do silenciamento dos casos de tortura no período
ditatorial como uma experiência que deve ser problematizada/narrada, essas falas
serão tão mudas quanto aquelas que não foram proferidas após os horrores da
Primeira Guerra Mundial. Assim, os casos de tortura que ocorreram com os
agentes da Prelazia de São Félix do Araguaia devem ser apresentados como um
ensinamento para a sociedade com a finalidade de que estes fatos não ocorram
novamente.
Cabe ao historiador o trabalho de recuperar as narrativas e transmitir a
experiência dos narradores como uma lição de vida, conforme podemos observar
ue as experiências
estão deixando de ser algo comunicáveis. [...] O conselho tecido
na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A
arte de narrar esta definhando porque a sabedoria o lado épico
da verdade está em extinção.418
417
Idem.
418
Ibidem, p. 200-201.
Entretanto, o esfacelamento da transmissão das experiências coletivas provocada
pela incomunicabilidade do pós-guerra ocasionou o fim da narração tradicional,
ou seja, ou indivíduos ficaram desorientados da ação de dar e receber conselhos.
O diálogo da obra do filósofo Walter Benjamin tem relação com a
historiografia progressista e burguesa, conforme Jeanne Marie Gagnebin expôs no
obrigado a explicar de uma ou de outra maneira os episódios com que lida, e não
pode absolutamente contentar-se em representa-los como modelos da história do
419
.
Jeanne Marie Gagnebin420 demonstra que Walter Benjamin ao constatar o
fim da narrativa tradicional oferece meios para percebermos uma outra narração
transmitida entre os cacos de uma tradição em migalhas, ou seja, uma renovação
da problemática da memória. Para tanto, ela compara o narrador a um sucateiro
(como também o historiador sendo um Lumpensammler, isto é, o catador de
sucatas e lixos das grandes cidades modernas), mas que não tem por alvo recolher
os grandes feitos. O historiador deve se apegar aquilo que é deixado de lado e não
tem significação, algo que a história oficial não saiba como trabalhar. A autora
419
Ibidem, p. 209.
420
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer... p. 53.
aponta para o fato do sofrimento indizível que a Segunda Guerra provocou, bem
como para aqueles que não têm nome, o anônimo ou apagado pelo esquecimento
da memória oficial, elementos com os quais o narrador e o historiador teriam que
trabalhar para transmitir o que a tradição dominante estreitamente não se lembra.
Essa atividade está baseada na atitude de difusão do inenarrável, em um
compromisso com o passado e com as suas vítimas.
Partindo da premissa que o historiador deve se guiar por aquilo que a
história oficial não problematizou, torna-se importante para este estudo, assim
como para a sociedade brasileira, a apresentação dos relatos dos agentes de
pastorais da Prelazia de São Félix do Araguaia que foram torturados no ano de
1973 na cidade de Campo Grande. De acordo com Carlos Fico 421, o nosso
enfrentamento com a nossa história de um passado traumático encontra-se retraído
pelo fato de os presidentes José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco terem
praticamente ignorado a ditadura militar. Quando o tema voltou na pauta de
discussões já haviam se passado dez anos do término do regime, sendo a questão
retomada no governo de Fernando Henrique Cardoso, com a criação em 1995 da
Comissão Sobre Mortos e Desaparecidos. Recentemente temos os trabalhos da
Comissão da Verdade cuja instauração foi negociada com os militares, não se
supondo o julgamento dos repressores assegurados pelo pacto da anistia de 1979.
De qualquer forma, esta não deve ser usada para se vingar dos atos de violência
cometidos durante a ditadura militar, e sim, estabelecer uma cultura da memória
como vemos nos outros países da América Latina.
Essas narrativas estão submergidas por uma política do esquecimento
que impedem o acesso irrestrito aos acervos da ditadura militar, como também
pelo negacionismo de que de ocorreram casos de tortura durante o período
ditatorial na América Latina. Assim, o negacionista elimina novamente as vítimas
e toca na ferida da memória do sobrevivente, a qual só será amenizada quando a
421
FICO, Carlos. Brasil: a transição inconclusa. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN,
Monica (Org..). Violência na história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio,
2012A, p. 33.
esfera pública estiver disposta a ouvir essas pessoas, e, a sociedade se manter
engajada na busca pela reparação dessas injustiças históricas, que de certa forma
irão trazer de volta a sua dignidade422.
Tendo como referencial o regime de historicidade da Historia
Magistra Vitae423, na fundamentação do lembrar para não repetir, torna-se
significativo apontarmos que esta lembrança deve ser orientada, por exemplo, na
inserção dos testemunhos dos sobreviventes como parte do currículo escolar, na
abertura irrestrita dos arquivos, no debate e construção de mais memoriais, na
abertura dos tribunais às testemunhas da ditadura. Desse modo, quando as vítimas
poderem expor as suas lembranças e tensões como um mecanismo para evitar que
o decorrer do tempo faça desaparecer estes agentes históricos, irá garantir a elas
um processo libertador acerca da impunidade vivenciada na história recente do
Brasil424.
Os testemunhos das vítimas de tortura são tidos como indícios
indesejáveis, pois negam-se a estas o direito de acusação. A ditadura militar
conseguiu silenciar as testemunhas e caracterizá-las como agentes vingativos que,
inconformados por sua prisão punitiva, trazem à tona lembranças que deveriam
ser esquecidas, tendo em vista que a sociedade está enveredada a resistir contra a
tríade memória-verdade-justiça425. Desse modo, nos colocamos como o
historiador Lumpensammler, ou o catador de papeis que não se vincula aos
grandes feitos, e, busca dar visibilidade aos fatos postos como secundários que a
memória oficial delegou ao esquecimento.
A história do Brasil em todos os seus aspectos, inclusive quanto à
ditadura militar, é mais que a repressão aos grupos armados nas grandes capitais
litorâneas. A Guerrilha do Araguaia demorou décadas para se tornar alvo das
investigações por parte da imprensa, e quase cinquenta anos para receber
422
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Direito pós-fáustico... p. 113.
423
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado... p. 43.
424
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.
2, n. 1, p. 3-20, jan./jun. 2010, p. 15.
425
Ibidem, p. 16.
expressivos trabalhos acadêmicos que lhe fizessem referência. Em Mato Grosso
essa memória foi aparentemente apagada, e pouco se retrata a sua relação com os
casos de repressão armada durante o governo ditatorial. Apenas recentemente
apareceram os relatos da repressão no campo, principalmente com a divulgação
426
- lançado
427
, desaparecido
há 45 anos e encontrado em abril de 2013, que a Comissão Nacional da Verdade
passou analisar no segundo semestre de 2013, mas pouco se tem escrito sobre ele.
Diferentemente do enorme volume de material que é produzido sobre a luta
armada nos grandes centros litorâneos, notamos que o estado de Mato Grosso não
possui expressão notória a respeito dos trabalhos historiográficos sobre a Ditadura
Militar no Brasil. Assim, nos questionamos se é possível conhecer a História do
Brasil apenas pela espacialidade Rio São Paulo? É possível a compreensão da
extensão dos atos dos governos civis-militares apenas olhando para São Paulo ou
podem prescindir das outras narrativas, que as compõe, que lhes dão formas,
limites, que fazem parte dessa história que se quer nacional, sem as quais não se
entenderá a História do Brasil.
426
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que a partir de uma iniciativa do
Executivo federal, assumiu a responsabilidade para reconhecer formalmente, caso a caso, a
responsabilidade do Estado pela morte de opositores ao regime militar em decorrência da ação de
seu aparelho repressivo, aprovar a reparação indenizatória e buscar a localização dos restos
mortais. Disponível em: <http://dh.sdh.gov.br/download/dmv/retrato_da_repressao.pdf>. Acesso
em: 11 fev. 2016.
427
O Relatório Figueiredo, apurou matanças de comunidades inteiras, torturas e toda sorte de
crueldades praticadas contra indígenas em todo o país principalmente por latifundiários e
funcionários do extinto SPI. A investigação, feita em plena ditadura, a pedido do então ministro do
Interior, Albuquerque Lima, em 1967, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16
mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas.
Uma CPI chegou a ser instaurada em 1968, mas o país jamais julgou os executores que ceifaram
diversas etnias e culturas milenares. Documento disponível em:
<http://midia.pgr.mpf.mp.br/6ccr/relatorio-figueiredo/relatorio-figueiredo.pdf>. Acesso em: 11
fev. 2016.
4. AS TÁTICAS DE ENFRENTAMENTOS E A RESISTÊNCIA DOS
POSSEIROS NA LUTA PELA TERRA EM PORTO ALEGRE DO NORTE
Por muito tempo a história não tratou as ações dos camponeses como
advindas de sujeitos históricos, estes eram tidos apenas como dados estatísticos
sobre densidade populacional, migrações de trabalhadores, informações a respeito
das propriedades de terras e produção rural. Neste sentido, esta tese busca dar
visibilidade para os conflitos e resistências dos posseiros de Porto Alegre do Norte
no reconhecimento das suas áreas de produção, e, consequentemente a obtenção
dos títulos das suas propriedades como uma atitude resultante destes indivíduos
como agentes históricos na luta pela terra no Araguaia mato-grossense.
Nos estudos de Edward P. Thompson428, sobre a Economia moral da
multidão inglesa no século XVIII, o autor tece uma crítica aos pesquisadores que
embasam as suas análises sobre os movimentos populares na Inglaterra do século
XVIII, relacionando-os ao fato de que a fome provocada pela escassez de
alimentos gerava naqueles sujeitos atitudes contestatórias. Para Thompson, esses
autores desprezam o fato de que aqueles agentes históricos estavam pautados na
lógica das relações morais e éticas que a multidão tinha como justas e legítimas ao
se revoltar ou realizar motins durante os períodos de baixa produção de alimentos.
Pensando nos estudos de Thompson, buscamos uma relação com as
resistências empregadas pelos posseiros de Porto Alegre do Norte, mas tomando
cuidado com os aspectos que diferenciam as pesquisas sobre a economia moral no
que diz respeito ao tempo e espaço, porém sendo importante destacar que os
trabalhadores rurais de Porto Alegre do Norte, vinculados por princípios morais,
sobretudo em relação ao significado da terra, sendo esta para a manutenção da
sobrevivência familiar, também desenvolveram estratégias de lutas em oposição à
428
THOMPSON, Eduard P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
lógica da terra de negócio das empresas agropecuárias que agiram violentamente
contra aquela população, muitas vezes até com a conivência do aparelho estatal.
Para compreendermos os posseiros de Porto Alegre do Norte como
agentes históricos e resistentes ao processo de desapropriação das suas terras, nos
embasamos também nos estudos realizados por James C. Scott429, o qual analisa
os atos de resistências empregados por camponeses malaios do povoado de
Sedaka. Estes contrários a suas substituições na colheita do arroz por maquinários
429
SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistencia: discursos ocultos. Mexico:
Ediciones Eras, 2000.
430
SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa. Raízes, Campina Grande, v.21,
n. 01, p. 10-31, jan./jun. 2002, p. 13.
Piraguassu
Araguaia mato-grossense, sendo importante destacar que esta prática foi utilizada
em outros projetos de colonização em Mato Grosso, a exemplo de Sinop, situada
no norte do Estado, onde os conflitos pela posse da terra gerou contradições em
sua colonização, o avanço da agropecuária, a expulsão de colonos e índios, o uso
do trabalho análogo ao de escravo, dentre outras formas de violência para a
431
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.08, 1972, p.9.
432
O primeiro escritório da YANMAR Diesel do Brasil Ltda. foi fundado em 1957, em São Paulo
(SP), na Avenida Rio Branco, onde teve início a comercialização de motores com a série NT65-K
importado da Matriz no Japão. Disponível em: < http://www.yanmarsp.com.br/empresa>. Acesso
em 30 mar. 2017.
433
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.4.11, 1980, p. 2.
434
Termo utilizado para a retirada de posseiros e populações tradicionais de áreas adquiridas pelos
empreendimentos agropecuários.
instauração do projeto SINOP435. No município de Alta Floresta, localizado no
extremo norte de Mato Grosso, o projeto de colonização da empresa privada
INDECO, tendo como proprietário Ariosto da Riva, fez uso da violência contra
índios, posseiros e garimpeiros, expulsando-os violentamente das áreas do projeto,
assim, em seus relatos o proprietário nega a existência de índios na região, fato
436
. Os projetos de colonização tinham como propósito formar
novas cidades na Amazônia Legal e foram parte da estratégia política dos
governos militares de controle dos conflitos agrários no Sul, Sudeste e Nordeste
do país, mas em contraposição, o governo ditatorial para a criação dos mais de
cem municípios
contribuindo no impedimento do acesso à terra por trabalhadores rurais e
restringindo sociedades indígenas dos seus territórios.
O grupo YANMAR adquiriu a área ciente de que havia trabalhadores
rurais com direitos de posse, pois em um boletim de imprensa redigido pela
CNBB, a mesma relatou a seguinte situação:
435
SOUZA, Edison Antônio de. O poder na fronteira: hegemonia, conflitos e cultura no norte de
Mato Grosso. Tese (Doutorado em História) Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2008.
436
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil
contemporâneo. Cuiabá: UNICEN, 1986, p. 83.
437
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Boletim de Imprensa, 1973, p. 1. Documento do
Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Grifos do autor.
Para a resolução dos conflitos, alguns órgãos foram solicitados com o
objetivo de realizar um levantamento de estudos na área. Em agosto de 1975, a
SUDECO e os seus departamentos, o DDL e o DRH, elaboraram o seguinte
lise de Dados da
Área de Porto Alegre do Norte (Luciara-
apontou que Porto Alegre do Norte dispunha de possibilidades para soluções
438
um ponto co . Como conclusão da
investigação, esta demonstrou que o problema mais urgente da região era o da
posse da terra, necessitando assim de lotes urbanos e rurais, sendo este último
estabelecido de acordo com os critérios do INCRA para regularização de terras
públicas.
Entretanto, mesmo com as conclusões da equipe de pesquisa, os lotes
rurais não foram disponibilizados para os trabalhadores do campo de acordo com
os critérios do INCRA no Ofício Circular 32/nº279 de 13 de novembro de 1974
que discorre sobre a dimensão da área a ser titulada.
Diante deste contexto, a Agropecuária Piraguassu contratou novos
funcionários no segundo semestre de 1976, o gerente Keizo Tukuriki e o
empreiteiro geral Samiyoshi Nito. Nesta fase, os documentos da Prelazia de São
438
BRASIL. Levantamento Socioeconômico, Tabulação e Análise de Dados da Área de Porto
Alegre do Norte. [S.l.: s.n.], 1975. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia
A17.2.21, 1975, p. 6.
439
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.4.11, 1980, p. 2.
posseiros para sair e vender as suas terras. As intimidações eram realizadas pelo
gerente da Piraguassu, Keizo Tukuriki. Ele oferecia um preço abaixo do valor real
de mercado ou coagia os trabalhadores rurais a assinar o direito de posse com
apenas 50 hectares.
No entanto, de acordo com os critérios adotados pelo INCRA no
Ofício Circular 32/nº279 de 13 de novembro de 1974440 para regularizar a
dimensão da área a ser titulada, traz as seguintes indicações: 1) módulo mínimo de
100 hectares para exploração agrícola; 2) um acréscimo de 2 hectares por cabeça
de gado, quando houver exploração agropecuária. Porém, a Piraguassu, adotou um
sistema particular: a) módulo de 50 hectares para exploração agrícola; b) módulo
de 110 hectares para quem tinha exploração agropecuária, conforme podemos
observar no relato abaixo:
Querido amigo Pedro e Pedrito. [...] Olha aqui tudo bem só que
o Japonez [sic] é sempre envestino [sic] com um e com outro
para asinar [sic] ou direito de posse mais diz que o direito é só
50 ectare [sic]. Nós dizemos porque que em Santa Terezinha o
direito foi de 100 ectares [sic]. Ele Japonez [sic] respondeu que
lá em Santa Terezinha só tiveram aquele direito porque teve
aquele bangui bangui. Mais diz ele que o coronel disse que aqui
a lei é essa 50 ectare [sic]. E a raimunda [sic] disse que não
temos armas mais temos cacete.441
440
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.20, 1974, p. 2.
441
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.13, 1976, p. 1-2.
seja, pelo gerente Keizo Tukuriki, conhecido como Japonês e também pela
suposta autoridade citada como Coronel. Ao questionarem o porquê de os
posseiros de Santa Terezinha terem adquirido 100 hectares de terra, o gerente
esclareceu que aquele povoado se envolveu em conflitos, mas que em Porto
Alegre do Norte não teria contestações quanto o tamanho das áreas, tendo em
443
PRELAZIA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA. Manual Prelazia de São Félix do Araguaia:
objetivos, atitudes normas. São Félix do Araguaia: [s.n.], 2002, p. 9.
444
CASALDÁLIGA, Pedro. Creio na justiça... p. 73-74.
sentido espiritual, mas também na resolução dos problemas sociais das suas
comunidades.
A dinâmica de discussão das problemáticas, tais como: saúde,
educação, política, economia e religiosidade dos povoados que compunham a
Prelazia de São Félix do Araguaia, era realizada num primeiro momento em uma
445
. Posteriormente ocorria a
Assembleia do
para o Bolão. A reunião da equipe era para marcar os rumos das definições das
atuações446
Ainda sobre o trabalho de esclarecimentos dos direitos dos
trabalhadores rurais, Dom Pedro Casaldáliga, em uma carta direcionada para os
leigos Altair, Teca e Hélio os orientou sobre a importância de lembrar aos
posseiros que estes tinham o direito de permanecer nas suas posses e que somente
o INCRA possuía autoridade para resolver os assuntos das áreas em conflitos. É
INCRA para Mato Grosso era de 20 alqueirões ou 100 hectares de terra. Desse
modo, Casaldáliga também estimulava as pessoas em não desistirem de ter as suas
terras regularizadas. Assim, ele diz que:
449
SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistencia...
450
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.13, 1976, p. 3.
entanto, o seu enfrentamento não teria eficácia de forma individual, conforme
podemos observar no relato abaixo:
uma família para aceitar a proposta em uma reunião, onde cerca de vinte pessoas
também concordaram com o tamanho da área indenizada pela Piraguassu. Desse
modo, os agentes de pastoral se articularam para que os posseiros fossem
ressarcidos conforme os direitos estabelecidos pelo INCRA.
451
Grupos de familiares em que se identificavam os membros pelos nomes dos pais.
452
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.13, 1976, p. 4.
O INCRA voltará dentro dia 3/11/76 para firmar os acordos,
enquanto isso fizemos a nossa reunião com o povo explicando
direito que tem de 100 ha e 2 ha por cabeça de gado segundo lei
do próprio INCRA. Agora o povo está disposto a lutar e não
aceitar a proposta de 50 ha. Formou-se também uma equipe de
4 elementos que são os representantes dos posseiros.453
453
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.17, 1976, p. 1.
454
A Prelazia de São Félix do Araguaia orientava os agentes de pastoral e leigos para que estes
observassem o modo de vida dos patrimônios afim de absorver alguns conhecimentos em relação
aos seus costumes, saberes e crenças. Neste sentido, conhecer o cotidiano da população local era
fundamental para o início das atividades, bem como trabalhar ao lado dos trabalhadores rurais,
morar em casas semelhantes as suas moradias, ou seja, compartilhar do universo cultural daquelas
pessoas para que a equipe da Prelazia ganhasse a confiança daqueles indivíduos no
desenvolvimento dos seus trabalhos junto às comunidades.
benfeitorias nas posses para assegurar a demarcação das suas áreas. Assim, quanto
maior o número de habitantes, maiores seriam as chances de permanência em
Porto Alegre do Norte, sobretudo nas situações de conflitos em que os homens
compareciam para o embate com as suas armas rústicas ou com o uso de
estratégias de sabotagens em algumas atividades, como, por exemplo, no
cercamento das propriedades.
Em relação à mobilização no âmbito externo, a Prelazia de São Félix
do Araguaia atuava por meio das denúncias455, principalmente no que diz respeito
à divulgação e assistência na luta pela terra. A Igreja estava assentada em uma
organização institucional, que através dos seus agentes de pastoral, se apresentava
frente aos posseiros como uma entidade que tinha condições concretas para tornar
pública a sua luta, reconhecendo o seu status de posseiro, ou seja, o modo de
relação que o trabalhador rural desenvolvia com a terra. Neste sentido, o fato de
esse sujeito ocupar-se com a posse e dela retirar o seu sustento familiar era o
argumento utilizado pela Igreja para legitimar a luta pela terra.
As lideranças e os agentes de pastoral procuravam impedir a venda
das terras ou o aceite de posses menores, realizando visitas e reuniões nas
comunidades, principalmente naquelas em que os posseiros estavam dispostos a
desistirem da luta perante as pressões do gerente da Piraguassu, conforme o
documento abaixo:
455
m conflito com o
vista que o documento possui 123 páginas e foi lançado em 10 de outubro de 1971, após a
consagração de Casaldáliga como Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia.
3. Pressões e ameaças de perda da posse, feitas através do
advogado do INCRA de São Félix, Sr. WANDERLEI456.
4. Desonestidade, na medida que se aproveitou da
ignorância que os posseiros tem, dos seus direitos.457
459
REIS, Rossana Rocha. O direito à terra como um direito humano: a luta pela reforma agrária e o
movimento de direitos humanos no Brasil. São Paulo, Lua Nova, v.86, p. 89-122, 2012, p. 108.
460
Em 20 de outubro de 1977, os posseiros Domingos Medeiros da Silva e Manuel José Rodrigues
já tinham enviado uma carta coletiva com a assinatura de 200 famílias ao governador José Garcia
Neto, na qual solicitavam que o governante interviesse nos conflitos com a Fazenda Piraguassu.
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 3.09, 1977, p. 1.
461
GOVERNO, manifesta-se interessado no problema dos posseiros. Cuiabá, Diário de Mato
Grosso, 1/11/1977. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 3.11,
1977, p. 1.
Havia diversos documentos que amparavam os trabalhadores rurais,
desde o Estatuto da Terra de 1964, o Decreto 70.430 de 1972, o Ofício Circular
32/nº279 de 1974 e a pesquisa da SUDECO de 1975, mas a morosidade do Estado
em resolver os conflitos por terras em Porto Alegre do Norte vinha se arrastando
desde o ano de 1971, com a implantação da FRENOVA no povoado. O
documento da SUDECO citado por Garcia Neto já tinha dois anos da sua
publicação, e, mesmo assim, nenhuma orientação foi seguida no que diz respeito à
desapropriação das terras dos posseiros. Pois, se levarmos em consideração que o
seu mandato iniciou-se em 1975 e finalizou em 1978, um ano após a reunião com
os posseiros em Cuiabá, notamos que ao invés de ocorrerem soluções para
finalizar os conflitos de terras, de acordo com os dados da Prelazia de São Félix
do Araguaia, estes se acirraram ainda mais nos anos de 1978 a 1979,
pistoleiros.
Como uma forma de resistência, os trabalhadores rurais continuavam
apelando para instâncias que em tese deveriam assegurar os seus direitos. Em
março de 1978, estes enviaram uma carta ao INCRA de São Félix do Araguaia
para que o órgão tomasse conhecimento das ameaças que o gerente da Piraguassu,
Keize Tokuriki, fez ao posseiro Francisco Pereira da Silva por meio de uma carta:
462
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.3.23, 1978, p. 1.
463
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Conflitos agrários e violência no Brasil... p. 2.
costumeira, ou seja, a presença de empresas capitalistas no campo envolvidas em
casos de conflitos sociais. O fato de o gerente Keize Tokuriki alegar que a
situação de litígio só seria solucionada perante o juiz nos faz refletir sobre o fato
de que a violência emitida pela carta representa o caráter simbólico do poder
empregado pela agropecuária, pois esta detinha condições econômicas e políticas
para contratar o serviço de um advogado, enquanto que Francisco da Silva era
desprovido de tais recursos. Outro aspecto que detectamos no fragmento do
documento acima diz respeito à relação exercida entre a empresa e as instituições
locais, tais como o INCRA, a polícia militar e a prefeitura, o que lhe conferia
tranquilidade para resolver as questões da terra diante do juiz local. Essa situação
é definida por Tavares dos Santos464 como uma violência política em que o Estado
é o agente da violência por meio da polícia, e por outro lado existe uma parcela do
judiciário que detém a responsabilidade pela difusão da violência no campo,
como, por exemplo, pela emissão de títulos em áreas de posse e omissão em
processos criminais.
Outro mecanismo de resistência dos posseiros, era demonstrar para o
poder público que estavam cientes dos seus direitos, assim nas suas cartas com
assinaturas coletivas, estes citavam a lei 5.868 de 12 de dezembro de 1972, que
órgão a quem pertence a nossa defesa, para que a fazenda não repita mais uma
465
.
Ao citarem a lei que os amparava, de certo modo proferiam uma
imagem do trabalhador rural como um indivíduo instruído por uma Igreja atuante
em prol dos direitos da função social da terra. O discurso expresso na carta
acionava o INCRA como uma instituição defensora dos interesses da população
do campo, assim, pesava-lhe a responsabilidade de solucionar os conflitos
agrários de forma que atendesse as necessidades de ambas as partes. Ao relatar as
problemáticas que envolviam a luta pela terra em Porto Alegre do Norte, os
464
Ibidem, p. 4.
465
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.3.23, 1978, p. 1.
posseiros estavam se inserindo como atores sociais na cena política com o
466
BRUNO, Regina Angela Landim. Nova República: a violência patronal rural como prática de
classe. Sociologias, Porto Alegre, v.5, n. 10, jul/dez 2003, p. 285.
467
Mandado de Citação. Documento da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 3.17, 1978, p. 2.
ocupação de terras como mecanismos de oposição em relação à lei e a
legitimidade na posse da terra.
De acordo com Woortmann468, as organizações dos camponeses
estavam constituídas sob uma ordem moral, em que os valores sociais permeavam
todas as relações sociais. Nesta concepção, a terra era vista como pertencente a
Deus e não aos homens, assim havia uma conexão entre os conjuntos de
significados que estabeleciam uma vinculação cujo sentido não separava terra,
trabalho e família. Nessa espacialidade, afloravam valores éticos que se
configuravam como qualidade, enquanto uma realidade singular que se ajustava
na organização familiar. Desse modo, a migração era vista como o primeiro ato de
resistência, e posteriormente, a tentativa dos posseiros em permanecerem em suas
posses pode ser considerada como um esforço para a preservação dos seus valores
tradicionais uma vez que estavam sendo desprezados.
As formas de resistência cotidianas realizadas pelos posseiros de Porto
Alegre do Norte podem ser caracterizadas, por exemplo, pelo fato de estes se
recusarem a saírem das suas propriedades, mesmo com a notificação 469 por escrito
para que deixassem as áreas ou até mesmo com a ameaça verbal dos jagunços da
FRENOVA ou da Piraguassu. Outro mecanismo utilizado diz respeito à coleta de
468
WOORTMANN, Klaas.
469
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.1.02, 1971, p. 1, já utilizado
nesta tese.
470
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.38, 1972, p. 1.
471
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.58, 1972, p. 1.
Scott472, os atos de resistências cotidianas não possuem autores que assumam a
responsabilidade pública por sua realização.
Essa resistência é empreendida contra o avanço do capitalismo no
campo: a perda do acesso ao meio de produção, ou seja, a terra como forma de se
obter o sustento familiar através da economia de subsistência, e, o seu excedente
vendido no mercado local. Assim, entendemos que a resistência sem autor
definido ou explícito tem relação com o fato de consequentemente terem que
sofrer os efeitos da repressão, tanto por parte dos jagunços da agropecuária, como
pelo próprio Estado por meio de alguns policiais locais coniventes com as atitudes
violentas da FRENOVA e da Piraguassu. As formas de resistências são
mecanismos cotidianos contínuos realizados por agentes sociais que vivem em
condições de vidas difíceis, as quais continuarão a existir enquanto a estrutura
agrária brasileira se conservar exploradora e desigual.
Para resistirem à invasão das suas terras, os posseiros passaram a
impedir a navegação de barcos da FRENOVA pelo rio Tapirapé, que era a única
via de acesso ao povoado de Porto Alegre do Norte:
472
SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa... p. 14.
473
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.62, 1972, p. 1.
474
SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa...
polícia local. Ao contrário da resistência cotidiana empregada geralmente sem a
identificação dos agentes sociais, a resistência direta torna explícita a participação
destes, mas em contrapartida eles têm que arcar com as consequências perante a
justiça, diferentemente, por exemplo, conforme ainda o documento acima do
empreiteiro geral da FRENOVA, José Benz ex militar aposentado por
corrupção, o qual proferiu diante de várias testemunhas que eliminaria facilmente
o problema de terras com uso de armamentos, porém este não chegou a responder
por suas ameaças legalmente.
Com a tolerância e conivência do Estado, as empresas agropecuárias
formaram milícias privadas para garantir a defesa das propriedades, contrariando
os preceitos de Max Weber475, em
-grossense, assim como na
fronteira amazônica, o uso da violência foi dividido entre empresários e os seus
pistoleiros, que não eram legitimados socialmente, tampouco validamente
instituídos.
A luta pela terra impunha aos posseiros que estes ficassem atentos à
chegada dos pistoleiros ou militares em suas posses, mas as atividades no plantio
e cultivo das suas roças os impossibilitavam de aguardarem vigilantes os seus
475
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: UNB, 2009.
476
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.58, 1972, p. 2.
O trabalho da Prelazia de São Félix do Araguaia se constituía no apoio
ao lavrador para que este permanecesse na posse, portanto ela passou a ser uma
aliada na conquista da propriedade rural e da organização comunitária a partir da
realidade local. Como instituição legal, a Igreja denunciava de acordo com o
documento acima, e precavia os posseiros de possíveis processos de expulsão,
além de legitimar a luta pela terra.
Outra forma de resistência praticada pelos posseiros de Porto Alegre
do Norte diz respeito à mobilização da comunidade para a preservação das áreas
de trabalho comum, bem como à melhoria do povoado a partir da construção de
casas, horta comunitária, campo de futebol, escola e barracões. Houve ainda uma
atividade mobilizadora de viés político pautado no enfrentamento para a resolução
dos problemas do patrimônio por meio de reuniões e mutirões, os quais podemos
observar no trecho da carta do Padre Eugênio Consoli a Dom Pedro Casaldáliga:
Oi, Pedro, po
477
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.3, 1972, p. 3.
estratégias de enfrentamentos como um modo de resistência contra a ocupação das
suas terras pelas agropecuárias FRENOVA e Piraguassu.
Os atos de resistências foram descritos por Justiniano Pereira Sales478,
filho do posseiro José Pereira dos Santos, um dos primeiros moradores de
Cedrolânida (núcleo de Porto Alegre do Norte), da seguinte forma:
478
Professor da rede pública de ensino do município de Porto Alegre do Norte. De acordo com a
entrevista concedida por João Sousa Lima em Porto Alegre do Norte no dia 3/12/2015, relata que
José de Pereira dos Santos, pai de Justiniano Pereira Sales migrou para o Araguaia mato-grossense
no início da década de 1950.
479
O trecho exposto acima foi concedido na entrevista realizada com Ataíde da Silva, em Porto
Alegre do Norte no dia 2/12/2015. Tentamos formalizar uma entrevista exclusiva com o Justiniano
Sales, mas ele se recusou e disse que só acompanharia as entrevistas, nos ajudando a localizarmos
e contatarmos as testemunhas, e assim, nos fornecer informações e esclarecimentos sem o uso de
uma entrevista formal. Ele também nos relatou a fala descrita acima, de modo informal em meio a
uma conversa numa reunião festiva que ocorreu na sua residência no dia 5/12/2015.
O relato nos mostra que a resistência na luta pela terra adveio das
relações traçadas ao longo do tempo nos núcleos de ocupações em torno de Porto
Alegre do Norte pelos diversos grupos familiares. Visto dessa forma, podemos
imaginar que as reações dos posseiros a partir deste universo formado pela
concepção de vizinhança, compadrio ou irmandade, foi o que criou uma noção de
grupo e a compreensão sobre o direito à terra, e desse modo, fez com que essas
pessoas se colocassem como agentes políticos na intervenção da questão agrária
no Araguaia mato-grossense. Nos núcleos de ocupações é onde se delinearam os
atos de solidariedade, evidenciados por meio dos mutirões como um processo de
organização coletiva que estabeleceu as bases sobre as quais aqueles indivíduos
puderam vivenciar a luta e os processos de enfrentamento contra os
empreendimentos rurais instituídos nas suas posses.
Os núcleos familiares citados pelo entrevistado demonstram que a
espacialidade de Porto Alegre do Norte era o que conferia unidade e consciência
de agrupamento em vizinhança. As famílias organizadas territorialmente
formaram os espaços em que se articulavam para permanecerem na terra. O
sentimento de localidade adquirido ao longo das experiências em comum,
evidenciados nas ações de solidariedade e ajuda mútua através dos mutirões no
primeiro momento da ocupação das posses, foram responsáveis pela criação de
estratégias para resistirem ao processo de expropriação das suas terras.
Os posseiros que estavam estabelecidos na divisa com a agropecuária
eram os mais atingidos pelas ações violentas. Desse modo, para a defesa das suas
terras, surgiu a necessidade de resistências por parte dos trabalhadores rurais que
passaram a constituir lideranças480, as quais conduziam as lutas e agiam como
porta-vozes da comunidade. Estes traçaram duas estratégias de enfrentamento: a
primeira, contra a fazenda e sua pretensão de se apropriar dos limites das áreas
480
Na documentação da Prelazia de São Félix do Araguaia encontramos os seguintes nomes:
Alexandre Quirino de Sousa, Nilo Pereira da Silva, Célio Manuel Azevedo Guimarães e Josias
Nonato, envolvidos nos atos de resistências contra a FRENOVA. Já na mediação dos conflitos
entre posseiros e a empresa em Porto Alegre do Norte tinha a ajuda da Igreja através do padre
Eugênio Consoli e dos Agentes de Pastoral José Pontim e Altair.
dos posseiros, e a segunda em oposição à ação violenta dos jagunços, pistoleiros e
milícias privadas dos empresários. Estas mobilizações tinham como objetivo a
ocupação efetiva daquele espaço por meio da construção de benfeitorias, pois
legitimavam suas posses e reafirmavam a apropriação desses espaços muito antes
da chegada das empresas e, dessa forma, obtinham o direito de permanecerem
nela.
Nesse universo marcado pelas estratégias de lutas, nos deparamos com
as narrativas sobre as resistências em Porto Alegre do Norte permeadas por atos
heroicos, conforme o relato de Altair:
481
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora,
em 2 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
arma. Assim, seus atributos elevavam a sua imagem, e ele não se deixava abalar
pelo fato de que exercia uma função pública e não sabia ler.
A memória de Altair talvez de forma inconsciente esboce um
protagonismo que introduz os atos de resistências no povoado de Porto Alegre do
Norte. Assim, nos questionamos por que esses sujeitos históricos que chegaram à
região por volta do início da década de 1970 se colocam como os iniciantes no
processo de enfrentamento na luta pela terra em Porto Alegre do Norte?
Lembrando que outras famílias se estabeleceram naquela espacialidade no final da
década de 1940, então, por que elas também não iniciaram essa ação? Algumas
482
de Altair483 que pode ser vista como uma tentativa de definir e
reforçar o sentimento de pertencimento social. Primeiramente, a memória
individual do entrevistado ao ser acionada passou a estabelecer relações com a
memória coletiva, então, este quis demonstrar a sua importância no contexto
histórico de ocupação do município. Entretanto, por ele ter atuado como leigo da
Prelazia de São Félix do Araguaia notamos que nos documentos elaborados por
aquela instituição religiosa, Altair também aparece como peça fundamental nos
conflitos, pois o mesmo exercia a função de professor do povoado e ajudava os
posseiros avisando-lhes sobre a chegada da polícia e dos agentes das
agropecuárias que iam em busca daqueles indivíduos para prendê-los ou ameaçá-
los. Já Alexandre Quirino, também é citado no corpus documental da Prelazia e
nas narrativas da sua esposa, Ana Felicia de Araújo e sua filha Zenaide Araújo
482
POLLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2,
n. 3, 1989, p. 3-15.
483
Esta constatação advém do fato de que na entrevista cedida por Altair, o mesmo afirma que
nasceu em São Paulo, contexto social diferente da população local que era majoritariamente
proveniente dos estados do Nordeste do país. Relata que participou de movimentos sindicalistas
em São Paulo, atuou como militante da ALN na guerrilha urbana, colaborando com a ação do
sequestro do Cônsul japonês Nobuo Okuchi. Depois foi enviado para Rondônia e Bolívia para
conhecer umas áreas de treinamento e posteriormente migrou para o Araguaia mato-grossense.
Devido a sua militância, Ataíde da Silva assumiu o codinome Altair com o intuito de driblar a sua
procura pelos militares. Nos documentos da Prelazia encontramos os seguintes nomes: Altair,
Ataíde e Atayde, em referência ao leigo de Porto Alegre do Norte e professor da escola do
povoado.
como uma liderança que tinha o respeito dos moradores locais. Neste sentido, a
trama que eleva os atos de Altair e Alexandre é tecida por diversos discursos que
os indicam como personagens essenciais na execução da resistência e
permanência na terra.
De certo modo, o testemunho de Altair nos leva a imaginar que as
experiências possivelmente adquiridas nos movimentos sindicais e militância na
guerrilha urbana em São Paulo o fizeram possuir uma carga de conhecimento para
tecer as estratégias de enfrentamentos na luta pela terra em Porto Alegre do Norte.
O entrevistado alega ter participado do sequestro do Cônsul japonês Nobuo
Okuchi484, tendo a responsabilidade de esconder o suposto chefe de Estado das
autoridad
põe o japonês? Na favela? Onde põe? Nós não tínhamos. Então entrávamos no
cinema durante o dia, naquele cinema de dois reais e ficávamos o dia inteiro
485
. Neste sentindo, a sua migração para o Araguaia foi resultante da provável
perseguição do aparato militar pelos seus atos como militante em São Paulo.
Antes de iniciarmos a entrevista, Ataíde da Silva nos relatou que
passou a usar o codinome Altair para despistar a sua procura pelo aparato militar.
Ele nos informou que o seu exercício como militante na guerrilha urbana em São
Paulo não foi revelada a equipe e a população da Prelazia de São Félix do
Araguaia para poder manter em sigilo o seu histórico de atuação na luta armada,
484
Em buscas realizadas em sites e acervos online, não encontramos os nomes dos sequestradores
do Cônsul, mas localizamos o nome de Ataíde Silva nos documentos do BNM digital como
integrante da VPR, grupo acusado de ter sequestrado Nobuo Okuchi. O auto de qualificação e
interrogatório da Delegacia Especializada de Ordem Social de São Paulo também relaciona Ataíde
Silva como membro do MO, tendo a sua descrição física semelhante a Ataíde da Silva, fato este
que só nos leva a ter alguma suposição do seu envolvimento com a luta armada urbana em São
assemelha-se a vários brasileiros e não nos dá base para confirmar a sua participação no sequestro
do Cônsul japonês, além disso, a grafia do nome do entrevistado é Ataíde da Silva e o nome que
aparece no BNM é Ataíde Silva; enfim, são constatações que nos levam a pressupor a sua atuação
como militante. BNM_042 (11). Disponível em:
<http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=BIB_01&pesq=Ataide+Silva+Tei
xeira>. Acesso em: 4 mai. 2017.
485
Ataíde da Silva (Altair), entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora,
em 2 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
que de acordo com o relato cedido a um jornal, o mesmo descreveu que:
Infelizmente a guerrilha abortou, com a repressão em São Paulo nós ficamos
desorientados aqui e tentávamos era sobreviver"486. Diante deste contexto, um dos
mecanismos utilizados pelo entrevistado para driblar a investigação sobre si foi
migrar para o Araguaia mato-grossense não utilizando o transporte aéreo,
conforme a narrativa abaixo:
486
FIM, da Ditadura: 50 anos depois do golpe militar, ex-guerrilheiro mora em Porto Alegre do
Norte e relembra a repressão. Confresa, Agência da Notícia, 01/04/2014. Disponível em: <
http://www.agenciadanoticia.com.br/noticias/exibir.asp?id=596¬icia=Fim_da_Ditadura_50_an
os_depois_do_golpe_militar_ex-
guerrilheiro_mora_em_Porto_Alegre_do_Norte_e_relembra_a_repressao>. Acesso em: 4 mai.
2017.
487
Ataíde da Silva (Altair) entrevista de duas horas e cinquenta e um minutos concedida à autora,
em 2 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
escondido, esperando o avião descer, porque chegava o padre ou a polícia. Nunca
488
Idem.
principalmente daqueles que estavam próximos ao rio Tapirapé e na divisa da
agropecuária. Outro procedimento criado por estes sujeitos diz respeito aos
acordos estabelecidos com os peões das empresas, conforme o relato a seguir:
489
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17.2.03, 1972, p. 2.
490
SANTOS FILHO, José dos Reis. Condição e resistência camponesa: práticas de construção e
demolição da heteronomia da vontade do trabalhador rural. Perspectivas, São Paulo: 11, 65-81,
1988, p. 69.
vieram e mataram, então porque a gente não ia também. Aí fizemos isso e foi o
modo que nós vencemos491
Novamente o protagonismo na luta pela terra é exposto nos relatos
491
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
492
No Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A 17.2.25, 1972, p. 1,
encontramos a denúncia de Dom Pedro Casaldáliga sobre o pagamento dos posseiros Sebastião
Ferreira e João Souza Lima para assassinarem o padre Henrique Jacquemart. Este fato também é
citado no capítulo II desta tese.
contamos o caso para ele. Oh seu João eu fui no Balduíno e
estou com o dinheiro aqui de três mil e quinhentos. [...] Aí eu
disse: não seu Plínio nós vamos fazer o seguinte, você junta
esse dinheiro que nós vamos ficar no mato escondidos [...] Nós
passamos três dias escondidos. E o boato... A gente mandou o
compadre Chico ir à rua. Ih rapaz! Lá ninguém quer saber de
notícias de vocês. Está feio! Vocês mataram o padre e tudo. [...]
Então fomos lá. Chegamos lá e o povo estava tudo com a cara
torcida com a gente. [...] Aí o Sebastião velho pegava o dinheiro
e jogava assim: aqui o dinheiro [Risos] que o Plínio Ferraz
pagou para a gente matar o padre e nós deixamos ele vivo.493
494
Entrevistamos seis mulheres, dentre elas: Erotildes Milhomem (atuou como professora em São
Félix do Araguaia), Maria José Souza Moraes (advogada da Prelazia, mas chegou à região no
início da década de 1980), Odile Eglin (Irmazinha de Jesus que chegou a Confresa na década de
1980), Maria Luiza Silva (moradora de Porto Alegre do Norte, mas não obtivemos êxito na
entrevista devido o avanço da sua idade), Ana Felicia Araújo (moradora de Porto Alegre do Norte
desde 1962) e Maria Zenaide Araújo (filha de Ana Felícia Araújo).
495
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia...
desentendimentos com um fazendeiro local). Na delegacia elas foram torturadas
sem que os policiais se preocupassem impedindo-as de pedir ajuda. Esse episódio
culminou com o assassinato do padre João Bosco Burnier, como também
provocou uma onda de violência que obrigou o destacamento a sair da cidade e a
delegacia foi demolida por um grupo de pessoas.
De acordo com Erik Marcelo de Moura496, ao estudar o papel das
mulheres na luta pela terra no espaço do assentamento junto ao MST, este
demonstra que a identificação da participação da mulher possui um percurso
distinto junto aos trabalhadores do campo, no que diz respeito às formas de
exclusão política, social, econômica e cultural que esses trabalhadores e
trabalhadoras passaram ao longo das suas trajetórias históricas. Neste sentido, é
importante frisarmos a função da mulher como essencial, sendo um dos sujeitos
históricos nesse processo, pois a sua presença se encontra em várias etapas, seja
na ocupação e posse da terra, ou na articulação e concretização das famílias em
determinada espacialidade. Sob esse aspecto se torna válida a narrativa de Ana
Felicia Araújo:
496
MOURA, Erik Marcelo de. A mulher e a luta pela terra no Brasil: uma abordagem sócio-
cultural da constituição simbólica no MST no que concerne o estudo de gênero. Anais do V
Encontro de Pesquisa em Educação de Alagoas: Pesquisa em Educação: Desenvolvimento, Ética e
Responsabilidade Social, Maceió, agosto 31 a 03 de setembro, 2010.
497
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
também não delatá-lo as autoridades, tendo a coragem de não se calar e enfrentar
as ameaças que os polícias lhes direcionavam quando iam à procura de Alexandre
Quirino.
muito valente. Que ele não sai daqui nem que o sangue esteja
aceitar a gente aqui, porque nós não vamos sair daqui. Quando
ela chegou nós já estávamos aqui. Por que ela não foi procurar
outro lugar para fazer a fazenda? [...] Nós não temos para aonde
ir, nós vamos ficar aqui parados. [...] Aqui ninguém tem medo
da polícia, pois desde que seja polícia a gente até gosta, pois
nos dá forças. Sendo polícia, né. Aí ele ficou olhando assim
brigam muito
Ao nos relatar esse fato, Ana Felicia mudou a expressão facial e o tom
da sua voz, pois parecia estar vivenciando a presença do policial na porta da sua
casa, já que a nossa entrevista ocorreu em sua varanda em frente ao rio Tapirapé,
ou seja, no mesmo lugar que se constituía a sua posse, em frente à rua que era
usada como pista de pouso dos aviões e na divisa territorial com a agropecuária
FRENOVA, assim, era como se aquele espaço tivesse contribuído para ativar a
sua memória e trazer à tona os mais ricos detalhes daquele episódio.
498
Idem.
A narrativa tecida por Ana Felicia nos mostra como foi importante a
presença da mulher na luta e manutenção da terra na história de Porto Alegre do
Norte, pois evidenciamos na sua fala um enfrentamento diário, físico e
psicológico, momentos de adversidades junto com o seu cônjuge e demais
integrantes da comunidade. Observamos que a conjuntura marcada pela
desigualdade, expropriação e exploração que impossibilitou o trabalho e a
subsistência de base familiar, inibindo a sua identidade e dignidade, fez com que
Ana Felicia encontrasse força e coragem para assegurar os seus direitos sob o que
estavam lhe retirando: a terra.
Para garantir a sua sobrevivência e dos seus familiares, a entrevistada
passou a questionar as formas de ocupação e uso da terra pela FRENOVA, dado
que a conquista da terra era a garantia de um espaço de produção. Portanto, a
organização e resistência pela permanência na terra advêm de uma identidade
social criada ao longo do período que a entrevistada vivenciou em Porto Alegre
do Norte, tendo em vista que a sua trajetória marcada por diversas migrações a
impulsionou a não sair da sua posse mesmo com as constantes ameaças, uma vez
que a consciência dos seus direitos era repassada pelos religiosos, agentes de
pastorais e leigos da Prelazia de São Félix do Araguaia.
O testemunho de Ana Felicia é permeado por atos de coragem, a
mesma cita que em muitos momentos sentiu medo, mas o sentimento de proteger
o seu esposo lhe dava força para ser uma mulher combativa mesmo que isso
significasse apenas se posicionar verbalmente contra a desapropriação da sua
posse, questionar o porquê seu marido estava sendo intimidado sem ter cometido
algum tipo de delito, bem como demonstrar que a resistência dos posseiros não
era mais eficaz pelo fato dos mesmos não possuírem armas de fogo da mesma
qualidade que o governo fornecia ao aparato militar. O seu enfrentamento pode
ser caracterizado pelo fato de não se calar e contestar as ameaças sofridas, sendo
importante destacar que a sua luta era considerada legítima, e, essa legitimidade é
o que assegura o seu papel de agente naquele contexto. A sua coragem também se
manifestava ao ajudar os vizinhos que estavam vivenciando situações de
intimidação, como foi o relato de violência que Anália Souza Lima, esposa de
João da Angélica, passou para contar o paradeiro deste último, que estava
escondido da polícia.
499
Idem.
público e os funcionários das agropecuárias FRENOVA e Piraguassu. Sob esse
aspecto, a relação em grupo foi fundamental, conforme a narrativa500 abaixo:
500
Esse acontecimento também foi relatado por João Souza Lima (João da Angélica) em entrevista
de uma hora e quatro minutos concedida à autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de
Porto Alegre do Norte.
501
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
502
MENEZES, Marilda Aparecida de. O cotidiano camponês e a sua importância enquanto
resistência à dominação: a contribuição de James C. Scott. Raízes, v. 21, n. 01, p. 34-44, jan./jun.
2002, p. 42.
Agora a Anália, coitada. O compadre João não ficava em casa,
então acontecia qualquer coisa e ela corria. Ela dizia: só me
conforto de estar perto da senhora, porque se eu não ficar perto
da senhora eu até morro. Aí eu chegava e animava ela e dizia:
não é assim não minha filha! Vamos ter coragem, vamos
confiar em Deus! Ela dizia quando conversava comigo tinha
mais força. Ela era esmorecida, pobre, coitada. Todo mundo é
de um jeito, né?503
503
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
504
WOORTMANN, Klaas. .
505
THOMPSON, Eduard P. Costumes em comum...
506
Professora da Rede de Educação Básica do município de Porto Alegre do Norte. Filha dos
posseiros: Ana Felicia Araújo e Alexandre Quirino de Sousa. Nascida em Porto Alegre do Norte
em 14 de agosto de 1963.
Nós fomos criados assim, o pai dizia: olha, se a polícia chegar
aqui você não diz nada, fica caladinho, senão eles vão prender o
seu pai e vão matar. [...] Eu me lembro de quando criança a
minha mãe disse que não era para a gente falar nada. Então,
caiu o tijolo com o barro lá que a parede estava desmontando.
Aí minha mãe falou para o policial que mexeu na arma lá: olha
foi um tijolo que caiu, se vocês quiserem ir lá ver, mas eles não
foram não. Meu irmão e eu estávamos sentados e eu me lembro
de que a minha mãe falou que era para a gente não falar nada.
Então, nós crescemos nesse movimento o tempo todo de tensão,
de medo, né? A infância das crianças aqui foi essa. [...] As
crianças também ajudavam nas estratégias, pois elas se
ofuscavam de falar alguma coisa, né? Todos têm papel na luta
pela terra. Era uma forma de se organizar para resistir. Porque a
criança não tem noção do que está acontecendo e se pergunta
onde está o seu pai, ela diz: o meu pai está ali.507
507
Maria Zenaide de Araujo Silva entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
Capixaba
entre os anos de 1978 a 1979, devido aos enfrentamentos dos posseiros para
demarcação e titulação das suas áreas, bem como pela delimitação do espaço
urbano de Porto Alegre do Norte, tendo dentro dessas ações o assassinato de um
jagunço da Piraguassu pelos trabalhadores rurais.
Na década de 1970 foi aprovada a lei municipal para a desapropriação
de 4.500 hectares para Porto Alegre do Norte508. Entretanto, os prefeitos
posteriores, Manoel Costa e Lídio Limeira Brito definiram a demarcação de 3.600
hectares para a área urbana, mas a Piraguassu não aceitou a proposta e cercou todo
o espaço. Para agravar ainda mais a regularização fundiária do patrimônio 509, o
prefeito Sebastião Gomes de Souza, realizou um acordo em 13 de julho de 1977
aprovando 1.500 hectares para o espaço urbano do povoado. Essa delimitação
contribuiu para o acirramento de novos conflitos, pois a localidade estava
recebendo uma média de 5 a 10 famílias por semana510, que vinham
principalmente de Luciara, e de outras vilas como Pontinópolis511 e Serra Nova
Dourada512, fugindo do processo de expulsão e conflitos513.
Diante do contexto da abertura da BR 158 em 1974, intensificou-se o
número de migrantes para o Vale do Araguaia, e Porto Alegre do Norte, por estar
na área de influência da rodovia, passou a receber muitas pessoas atraídas pelos
508
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia... p. 90.
509
Porto Alegre do Norte se emancipou de Luciara em 13 de maio de 1986.
510
Não encontramos dados oficiais sobre o número de habitantes de Porto Alegre do Norte na
década de 1970, mas para termos uma ideia o Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do
Araguaia A17. 3.5, 1977, p. 1, informa 1000 moradores na área urbana em 1977. Em 1988 a
estimativa era de 15 mil habitantes no município, com 6 mil na sede e 2000 no distrito de
Canabrava do Norte. o restante encontrava-se nas fazendas e núcleos rurais. CASCÃO, Rodolfo.
Democratização do poder local: uma experiência no Araguaia. Rio de Janeiro: FASE, 1992, p. 49-
50.
511
Conflito dos posseiros com a fazenda Suiá-Missú.
512
Conflito dos posseiros com a agropecuária BORDON S/A.
513
A DURA, conquista da terra...
projetos de colonização propagados pelo governo ditatorial, bem como a procura
de terras e emprego nos empreendimentos rurais. Neste processo, chegaram ao
povoado trabalhadores rurais de localidades próximas ou de outros estados (Piauí,
Maranhão, Goiás e Pará), assim, a partir daquele momento, o patrimônio se
constituiu entre os antigos posseiros e os novos posseiros, contribuindo para uma
nova configuração espacial e engajamento na luta pela terra.
Com a aprovação do prefeito Sebastião Gomes de Souza de 1.500
hectares514 para a área urbana do povoado, os posseiros se mobilizaram por meio
de uma carta coletiva direcionadas ao presidente Ernesto Geisel, representante do
INCRA (Cuiabá), Prefeito de Luciara e Dom Pedro Casaldáliga, alegando que o
espaço não era suficiente para a sobrevivência das famílias de Porto Alegre do
Norte, conforme o documento abaixo:
514
Segundo os dados do IBGE (2015), a área da unidade territorial em km² de Porto Alegre do
Norte é de 3.972,247.
515
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 3.5, 1977, p. 1.
hectares para as atividades hortigranjeiras. O documento cita os nomes de oito516
posseiros que aceitaram 50 hectares e três517 posseiros que receberam 110
hectares. Em relação aos posseiros que receberam 50 hectares, traz a seguinte
justificativa
518
. O
funcionário do INCRA só não informou que de acordo com Ofício Circular
32/nº279 de 13 de novembro de 1974, a área que os posseiros receberam estava
abaixo da metade do tamanho estipulado pelo documento citado. Assim, dos 180
posseiros que existiam no início de 1970, no final da década foram reduzidos a
pouco mais de 40 para obter a regularização das suas posses junto ao INCRA.
Em julho de 1978 a agropecuária Piraguassu moveu uma ação de
notificação judicial contra 51 posseiros. O Oficial de Justiça, Wolfgang Dankmar
Gunther519, que segundo os documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia e o
Jornal Alvorada520 se aproveitou do analfabetismo dos posseiros para que treze
pessoas aceitassem 50 hectares de terra, 9 conseguiram 110 hectares, 14 venderam
as suas posses, 4 ficaram sem nenhum direito, 8 trabalhadores rurais não entraram
em acordo, 1 trocou o lugar da posse e recebeu Cr$ 5.000,00 e 1 posseiro recebeu
90 hectares e mais Cr$ 5.000,00521.
A luta pela terra em Porto Alegre do Norte se arrastou por toda a
década de 1970, e os posseiros aos poucos foram perdendo os seus direitos sob as
posses, sendo alguns não reconhecidos pelo INCRA, outros aceitaram uma área
menor do que a garantida por lei ou venderam as suas terras. Mas, a população
516
Cícero Rufino Guimarães Lima, José de Souza Lima, Rita Pereira Santiago, Raimundo Souza
Parente, Adauta Luz Batista, Raimundo Pereira Mendes, José Pereira Campos e Sebastião Ferreira
de Figueiredo. Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.15, 1976, p.
2.
517
Dionel Martins de Almeida, Alexandre Quirino de Souza e Clarindo Pereira Nonato.
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 2.15, 1976, p. 2.
518
Ofício INCRA /CR-13/T4/UF-1 nº 37/76 de, 22/12/1976. Documento do Acervo da Prelazia de
São Félix do Araguaia A17. 2.15, 1976.
519
Tentamos entrar em contato para realizarmos uma entrevista, mas o mesmo não atendeu as
nossas ligações e mensagens por redes sociais.
520
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 4, 1980, p. 3 e A DURA,
conquista da terra...
521
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 4, 1980, p. 3.
reagiu em julho de 1977 às tentativas da Piraguassu em diminuir a área urbana do
povoado passando uma cerca para estabelecer os limites da agropecuária. Já em
setembro do mesmo ano, aproximadamente quarenta trabalhadores rurais pararam
o trator que estava abrindo uma estrada e impediram por duas vezes que os
pedreiros construíssem um posto de combustível em uma quadra do patrimônio.
Mesmo assim, em julho de 1978 a fazenda tentou novamente construir a cerca e
milhares de estacas amanheceram queimadas pelos moradores522.
Notamos que em muitos documentos da Prelazia, jornais e
testemunhos orais, o ato de se construir a cerca como um exercício de poder sobre
as supostas terras da FRENOVA e Piraguassu era algo constante, bem como o
corte destas pelos trabalhadores rurais como uma ação de resistência aos limites
impostos pelas agropecuárias. Muitas vezes essas delimitações ocorriam de modo
absurdo, prejudicando a sociabilidade das famílias em Porto Alegre do Norte,
conforme o relato a seguir:
522
Idem.
523
Ana Felicia Araújo (Nininha) entrevista de duas horas e dois minutos concedida à autora, em 6
de fevereiro de 2016 no município de Porto Alegre do Norte.
As cercas utilizadas pelos posseiros tinham um sentido inverso do
dispositivo de dominação empregado pelas agropecuárias. Estas possuíam a
finalidade de impedir que o gado criado solto invadisse as lavouras, e não detinha
a ideia de impor limites entre as propriedades. A construção das cercas pela
FRENOVA e Piraguassu não levaram em consideração a organização espacial
estabelecida há anos pelos trabalhadores rurais, seus caminhos que levavam até as
douro público dos
animais, enfim ao núcleo urbano do patrimônio.
A delimitação do território tinha como um dos objetivos privilegiar o
trânsito das empresas, já que esta necessitava da via do rio Tapirapé para
transportar os seus materiais, bem como da rua principal do povoado que era
usada como pista de pouso dos aviões. As vias de acesso ganharam outras funções
e expressaram a sensação de invasão, pois as estradas da população local
passaram a ser frequentadas por pessoas estranhas que não respeitavam as regras
de convivência do patrimônio. Em relação ao relato de Ana Felicia Araújo,
podemos entender a ação da FRENOVA como a expressão da força poder que a
mesma exercia, tendo em vista que a sua atitude em delimitar a área da casa de
João Manoel sem lhe restituir os seus direitos sob a posse não foi vista como
crime, mas o corte da cerca como forma de resistência ocasionou a prisão do seu
executor.
As estratégias de Keizo Tokuruki, gerente da Piraguassu também
consistiam em ludibriar os posseiros em relação aos acordos para a delimitação
das suas posses. O caso exemplar, é de Izídio Gonçalves dos Santos, morador da
região há cerca de vinte anos, que supôs estar assinando o documento de doação
de 34 alqueires, mas pelo fato de ser analfabeto, foi enganado em relação à
proposta e assinou um contrato de empreitada524 como vigia da mata do rio
Sabino Norte, com o salário de Cr$ 200,00 mensais525.
524
Disponível no Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia Documento A17. 3.25, 1978, p.1-
2.
525
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 4, 1980, p. 3.
Alberto Gomes de Abreu da sua posse pela agropecuária Piraguassu. O
trabalhador rural morava em Porto Alegre do Norte há mais de trinta anos e a
partir do dia 27 de fevereiro de 1979, o gerente Keizo Tukuriki, acompanhado de
jagunços, solicitou a retirada da família da área, mas esta se recusou a sair. Com a
negativa, o funcionário da empresa propôs uma troca, em que a fazenda iria ceder
outra propriedade com benfeitorias. O posseiro aceitou, porém a fazenda não
cumpriu com o acordo e as ameaças continuaram.
Em março de 1979 ocorreram novas investidas para a expulsão de
Alberto Gomes de Abreu e da sua família. O gerente Tukuriki acompanhado pelo
Oficial de Justiça de Barra do Garças, Wolfgang Dankmar Gunther, cabo Torres e
por jagunços armados, foram a posse de Alberto Gomes para realizar o despejo,
entretanto, só encontram mulheres e crianças na casa, facilitando assim, a
expulsão destes que tiveram a sua residência invadida e os seus pertences
carregados por um trator e despejados na posse vizinha. Logo após, as moradias
foram derrubadas e queimadas, cortaram as cercas para que o gado da fazenda
entrasse nas plantações.
A família composta por nove pessoas perdeu os seus bens, assim
527
Narrou a sua trajetória de vida por meio de diversas migrações entre os estados de Goiás e Mato
Grosso. Chegou a Porto Alegre do Norte no final de 1977, e entre 1978 a 1979 trabalhou como
empreiteiro da FRENOVA. Entre 1985 a 1986 trabalhou para a Piraguassu como empreiteiro geral
na limpeza da área e plantação de cana de açúcar para a implantação de uma Destilaria (Gameleira
que teve seu nome alterado em 2005 para Destilaria Araguaia devido os casos de exploração de
trabalho análogo ao de escravo). Seu apelido foi dado por Silvana Carraro Carneiro (proprietária
da FRENOVA), pois segundo Luiz Carlos Machado, na década de 1970 era comum as pessoas
portarem armas como um acessório e o fato do mesmo ser alto, magro, usar chapéu, cinto e bota
lembrava os personagens dos filmes de Bang-Bang. Em 1992 foi eleito prefeito de Porto Alegre do
Norte. Já foi considerado o 5º pistoleiro mais perigoso do país, por envolvimento na prática de
grilagem de terras da União, e por isso prestou depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito
da Pistolagem entre 1991 e 1993 na Câmara Federal. O ex-prefeito, também foi envolvido com o
assassinato do ex-senador Olavo Pires (1990), morto num hotel de São Paulo, que era pré-
candidato a governador de Rondônia. Em 2006, Luiz Bang foi julgado e absolvido no caso em que
era acusado de mandar matar o ex-prefeito Rodolfo Alexandre Inácio, o Cascão, a esposa
Fernanda Macruz, e o amigo Avelino Pereira Coelho, em novembro de 1988. Em 2003 O ex-
prefeito também foi preso por exploração de trabalho escravo na Fazenda Cinco Estrelas, em Novo
Mundo (MT). Ele chegou a ser preso, mas solto logo em seguida. Foi preso em 2009 durante
Operação Pluma que combatia a prática de grilagem de terras no Vale do Araguaia. No mesmo
ano, voltou a ser preso sob suspeita de envolvimento em fraudes ao INSS. No dia 27/01/2017 foi
assassinado em sua chácara no município de Confresa/MT.
528
O fato narrado aconteceu em 1979.
529
O gerente era Keizo Tukuriki e o empreiteiro geral Samiyoshi Nito.
530
O caso narrado se refere ao posseiro Alberto Gomes de Abreu.
seu Alberto e vamos fazer um quadrado só para ficar fechada a
casa deles. Também não vou fazer. Aí ele pegou o trator para ir
desmatar. Eu me lembro disso como se fosse hoje. [...] Ele
[Alberto] sentado aqui em cima e eu sentado mais ele aqui, e o
Nito derrubando os matos. O seu Alberto com um
revolverzinho 22 na cintura. Ele rangia os dentes assim [fez a
expressão dos dentes rangidos]. Eu estou numa vontade de dar
um tiro daqui. Eu disse: não faz isso não. Ele vai embora e esse
mato que ele está desmantando fica para o senhor. O senhor
planta mandioca, planta capim. Deixa ele desmatar, pois ele está
gastando dinheiro da fazenda e não do senhor. Se o senhor der
um tiro nele as pessoas vão prender o senhor e o senhor já está
velho. Deixa ele fazer o que ele quer. [Alberto disse] Você sabe
que é mesmo.531
Ao nos demonstrar que ao longo dos anos foi perseguido pela equipe
da Prelazia e, especialmente, por Dom Pedro Casaldáliga, em seu relato, Luiz
Bang se coloca como um mediador nos conflitos entre a Piraguassu e o posseiro
Alberto Gomes, mesmo que isso supostamente implicasse ter que contrariar as
ordens do empreiteiro geral, Samiyoshi Nito. A sua memória se entrelaça com a
memória coletiva para nos evidenciar que a partir do momento em que chegou a
531
Luiz Carlos Machado (Luiz Bang) entrevista de uma hora e dezenove minutos concedida à
autora, em 9 de fevereiro de 2016 no município de Confresa.
Porto Alegre do Norte, este possuía consciência de que os trabalhadores rurais
estabelecidos na região há mais de trinta anos tinham o direito sob as suas posses,
e a empresa deveria levar isso em consideração. Quando o entrevistado se reporta
a Alberto Gomes, este o descreve em um momento tomado pela raiva,
possivelmente tendo como objetivo atirar com o seu revólver no empreiteiro da
Piraguassu, mas Luiz Bang diz ter aconselhado o posseiro a não fazer tal ato e
aceitar como positivo o desmatamento da sua área pelo funcionário da
agropecuária. A testemunha se enaltece por mediar os conflitos e não se envolver
em agressões ou atos de expulsão dos posseiros, pois o seu papel era interceder ou
se abster junto às partes conflitantes para um resultado pacífico.
Em relação aos crimes dos quais foi acusado, bem como as suas
prisões, Luiz Bang se declarou inocente e injustiçado pelo poder judiciário e pelas
denúncias de Dom Pedro Casaldáliga. Neste sentido, as lembranças de Luiz
Carlos Machado são acionadas em um presente que traz à tona toda a sua
trajetória no Vale do Araguaia, assim, a sua memória também quis nos demonstrar
uma atuação heroica junto à população de Porto Alegre do Norte. Para nos
evidenciar a sua relação de mediador, ele expôs sobre a sua atuação como prefeito
de Porto Alegre do Norte, apresentando-nos uma gestão preocupada com a saúde,
educação e infraestrutura do município, diferentemente dos propósitos de pobreza
disseminados pela Prelazia de São Félix do Araguaia.
Desse modo, nos questionamos, cientes de que conforme Regina
Beatriz Guimarães Neto532 temos que estabelecer uma relação de criticidade aos
testemunhos orais, já que estes possuem diversos usos e interesses na construção
crítica da memória histórica. Esse ato implica em refletir se Luiz Bang tinha a
intenção de se afirmar na cena política e histórica do Araguaia como um sujeito
histórico que possui os mesmos atributos que Dom Pedro Casaldáliga, pois o
mesmo alega ter atuado na mediação dos conflitos entre os posseiros, tendo
consciência de que os trabalhadores rurais tinham direito sob as posses, da mesma
forma que a Igreja, realizou uma gestão municipal com mais competência que as
532
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política...
administrações anteriores desempenhadas pelo agente de pastoral Rodolfo Inácio
Cascão e posteriormente pelo posseiro Pedro Fernandes. Dessa forma, Luiz Bang
mostra que a sua história tem tanto protagonismo e mérito político quanto a
imagem propagada pela mídia sobre Casaldáliga, tal fato pode ser relacionado à
concepção de Guimarães Neto533, de que os testemunhos devem ser analisados
através da ideia de tempo e sua possibilidade de atualização no presente,
tornando-os compreensíveis e delegando a história a mediação crítica.
Ainda sobre o caso de Alberto Gomes de Abreu, o Sindicato de
Trabalhadores Rurais reuniu os posseiros no dia 16 de dezembro de 1979
juntamente com o Sr. Nito, empreiteiro geral da Piraguassu para discutir as
situações dos trabalhadores rurais, sobretudo de Alberto Gomes, cuja posse estava
encurralada por uma cerca construída pela agropecuária. Foi exigido que a
empresa suspendesse os serviços, mas não houve acordo. No dia 17, solicitaram
uma nova reunião, na qual os representantes da fazenda foram contrários à
suspensão das cercas534.
Diante da falta de acordo entre a empresa e os trabalhadores rurais,
estes resolveram no dia 18 de dezembro de 1979 realizar um mutirão para
suspender os serviços de cercamento da posse de Alberto Gomes. Quinze
posseiros utilizaram de uma caminhonete dirigida pelo agente de pastoral,
Rodolfo Inácio Cascão e foram em busca de uma resolução para os conflitos, o
empreiteiro Laudelino Evangelista aceitou o acordo, porém o jagunço Gildo
Mendes de Almeida, conhecido como Capixaba, não concordou, sendo então
assassinado pelos posseiros535. A redação do jornal Equipe assim descreve o fato:
pistoleiro.
tudo para atirar contra os posseiros. Segundo os próprios
envolvidos no episódio, o segundo tiro foi dado em Capixaba
537
LUTA, pela terra em Porto Alegre. Polícia já ouviu 14 indiciados mas não sabe quem matou
Capixaba. Equipe, Cuiabá, 10/01/1980, p. 3.
538
Luiz Carlos Machado (Luiz Bang) entrevista de uma hora e dezenove minutos concedida à
autora, em 9 de fevereiro de 2016 no município de Confresa.
Norte, pois alertou Capixaba sobre o perigo em executar o serviço da cerca na
posse de Alberto Gomes. A testemunha tem objeções em relação à imagem
vinculada da Prelazia como uma instituição mediadora na luta pela terra,
acusando-a de estar envolvida nos crimes praticados na região, ou seja, tal
posicionamento pode ser visto como mecanismos do depoente que possivelmente
são utilizados para engrandecer o seu discurso e dar uma maior importância e foco
a sua pessoa, em detrimento dos demais sujeitos históricos.
No dia seguinte, Porto Alegre do Norte foi tomada pela polícia civil
representada pelo delegado Estevão, escrivão de polícia, Waldemar e dois
policiais, todos vindos de Luciara. Instalou-se um clima de terror no povoado,
pois o aparato militar passou a desfilar armado no carro da agropecuária
Piraguassu conduzido pelo empreiteiro Samiyoshi Nito. Nessa ação prenderam o
agente de pastoral Rodolfo Inácio Cascão, acusando-o indiretamente de assassino,
já que o seu carro foi utilizado para levar os posseiros até a posse de Alberto
Gomes que culminou no assassinato de Capixaba. Foram realizadas buscas em
540
.
Conforme a notícia do jornal Diário de Cuiabá, o deputado estadual
Dante de Oliveira relatou que a polícia atuou com o propósito de fazer uma
539
Documento do Acervo da Prelazia de São Félix do Araguaia A17. 4, 1980, p. 6.
540
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Dimensões políticas da violência no campo. Tempo, Rio de
Janeiro, v. 1, p. 126-141, 1996, p. 137.
São Félix. Agiram baseados única e exclusivamente nos dados fornecidos pela
fazenda com o apoio da Associação dos empresários da Amazônia, para tentar
541
. Concomitantemente, cerca de
cinquenta posseiros de Canabrava do Norte vieram prestar apoio aos trabalhadores
rurais de Porto Alegre do Norte, assim estes solicitaram uma reunião de
emergência com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, e exaltados tentaram
derrubar a cadeia para retirar os companheiros presos. Então, propuseram uma
reunião com o delegado, mas ele recusou e mandou soltar dois presos, tomando o
depoimento do motorista da caminhonete como testemunha da morte do jagunço
Capixaba.
Diante da dessa situação, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais foi a Barra do Garças e em Cuiabá para denunciar os fatos aos jornais e
procurar apoio de deputados542 e da FETAGRI que se comprometeu a dar
assistência com um advogado. Conforme, Airton dos Reis Pereira543, por mais que
a luta fosse localizada, no entendimento da CPT e dos STRs, deveria exceder os
interesses locais e divulgar a resistência dos trabalhadores rurais pela terra não
apenas em âmbito local, mas também expressá-la em rede regional, estadual e até
nacional.
Dez dias após o assassinato de Capixaba, chegou a Porto Alegre do
Norte um corregedor ligado à Secretaria de Segurança Pública do Estado, um
tenente de Barra do Garças e quinze soldados. Eles vieram investigar o caso e
registrar o depoimento dos posseiros. Diante desse contexto, os trabalhadores
rurais resolveram permanecer foragidos na mata e a prestação dos depoimentos
ficou para o dia 5 de janeiro de 1980. Os depoimentos foram tomados sem
violência e até os soldados dispuseram das suas armas. Entretanto, cerca de cento
e cinquenta pessoas se colocaram vigilantes próximas à cadeia, dentre estas: os
541
TENSÃO, social se agrava em Porto Alegre do Norte. Cuiabá, Diário de Cuiabá, 10/01/1980, p.
10.
542
São citados nos documentos da Prelazia de São Félix do Araguaia, o deputado federal Carlos
Bezerra e o deputado estadual Dante de Oliveira.
543
PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no sul e sudeste do Pará... p. 93.
presidentes dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de São Félix do Araguaia,
Nova Brasília544 e Luciara, equipe da Igreja, CPT e da Comissão de Justiça e Paz
de São Paulo545.
De acordo com Medeiros546, o ato dos trabalhadores rurais em
reivindicar os seus direitos tem como princípio colocá-los na cena política como
iguais, ou seja, portadores de direitos. Neste sentido, a atitude de empreender
resistências através de manifestações implica que os latifundiários, assim como o
governo têm que designar agentes onde apenas tinha espaço para o controle e a
dominação.
A emergência dos trabalhadores rurais, com as suas reivindicações,
colocando-se na cena pública como iguais, como portadores de direitos, implica
que os proprietários de terra tenham que aceitar outro interlocutor, pois de acordo
544
Distrito de Nova Xavantina que fica distante 151 km de Barra do Garças.
545
Foi fundada pelo Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns em 1972. Vinculada à Arquidiocese de
São Paulo, sua atuação visava dar proteção aos perseguidos e familiares por meio da esfera
jurídica, ou, quando não era possível, direcionar conforto e esperança as vítimas.
546
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Dimensões políticas da violência no campo... p. 133.
547
Idem.
[Capixaba]. Defesa pura, mas naquela época a justiça não via as
nossas ações como defesas. Tinha a gente como uns bandidos, e
os bandidos vinham de fora, era a autoridade, os peões que eles
[agropecuárias] contratavam para trabalhar, mas chegavam aqui
eles colocavam para serem pistoleiros. [...] A polícia era pior
ainda! Naquele tempo era duro, porque o governo era ele que
decidia a história. Era assim, daquele jeito. Se nós não
tivéssemos se unido, botado mesmo junto, homem e mulher,
não tinha Porto Alegre. Eles iam fazer a sede da Piraguassu lá
na beira do rio.548
548
João Souza Lima (João da Angélica) entrevista de uma hora e quatro minutos concedida à
autora, em 3 de dezembro de 2015 no município de Porto Alegre do Norte.
549
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Dimensões políticas da violência no campo... p. 5.
550
SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa... p. 30.
551
MONSMA, Karl. James C. Scott e Resistência Cotidiana no Campo: uma avaliação crítica. BIB,
Rio de Janeiro, n. 49, jan/jun, 2000.
As narrativas tecidas ao longo desse capítulo demonstram que os
posseiros considerados antigos, ou seja, há mais de trinta anos estabelecidos na
região do Araguaia e os novos posseiros que chegaram a partir da década de 1970,
atraídos pelos slogans do governo militar em relação aos projetos de colonização
na Amazônia, passaram atuar em conjunto para garantir a permanência na terra. A
experiência desses indivíduos adveio do apoio da Prelazia de São Félix do
Araguaia, sobretudo de Dom Pedro Casaldáliga que por meio das suas denúncias
contribuiu para que a divulgação desses conflitos tomasse dimensões extra-locais,
essas ações os colocaram como sujeitos políticos e possuidores de direitos dignos
de serem amparados pelo Estado.
A modernização do campo implicou na aceleração da expropriação
dos trabalhadores rurais, esta entrou naquele espaço sem deixar de lado antigas
práticas, ou seja, o uso da violência, pois mesmo com o advento do Estatuto da
Terra e do Estatuto do Trabalhador Rural, estes direitos não foram concretizados
de fato no meio rural, tendo em vista que eles não foram respeitados e
desconsiderados pela elite agrária que desempenhou em demasia o uso da força e
do poder nas relações sociais da fronteira.
A partir da reação dos posseiros contra a tomada das suas terras pela
FRENOVA, e posteriormente pela Piraguassu, estas tiveram que reconhecer os
seus protestos e abrir espaço para negociação, abalando assim o longo histórico da
relação de mando e dominação dos latifundiários no meio rural brasileiro. A
atitude de resistir em suas terras e empreender uma luta para a sua posse efetiva,
denota a presença destes agentes no cenário político munidos pelo fato de serem
ouvidos a partir das redes que apoiavam as suas insatisfações, como: a Prelazia de
São Félix do Araguaia, sobretudo por Dom Pedro Casaldáliga, os agentes de
pastorais das comunidades eclesiais de base através do trabalho da CPT e dos
STRs dando visibilidade política as suas reivindicações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
das terras nos seus locais de origem, desejando se libertar dos laços de
dependências dos latifundiários, efetuando o emprego das suas técnicas de
agricultura que exigiam constantes mudanças, abandonando a fome e a seca, se
tornando dono do seu próprio trabalho, possuindo as suas terras, entre outros
motivos objetivos e subjetivos que impulsionaram os movimentos migratórios.
A migração implicou em um processo de violência, pois estes
indivíduos em sua maioria foram expulsos pelo o avanço do capitalismo no campo
dos lugares de origem que lhes conferiam identidade. Sendo válido lembrar que
ao migrar deixaram para trás todo um histórico de trabalho desenvolvido na antiga
posse e o estabelecimento em um novo espaço significava ter que abrir novamente
as áreas de criação e plantação, trabalho executado com alto grau de dificuldade,
tendo em vista que os trabalhadores rurais eram desprovidos de equipamentos
tecnológicos que auxiliassem na derrubada da mata, como por exemplo,
motosserras ou roçadeiras552, como também ter que conhecer e se habituar à nova
fauna e flora local, identificar um novo calendário climático para o plantio e
colheita dos alimentos, entre outros.
Os deslocamentos dessas famílias seguiam geralmente uma lógica de
planejamento traçada pela procura do patriarca por novas terras, este poderia
migrar juntamente com irmãos, cunhados e amigos para verificar a
disponibilidade de terras devolutas, ao encontrarem a área retornavam em busca
da família para o estabelecimento na nova posse.
552
A motosserra foi criada por Andreas Stihl, no ano de 1926 e pesava 56 quilos, sendo operada
por duas pessoas. Na década de 1930 passou a ser comercializada em toda a Europa. Em 1959 esta
foi aperfeiçoada e passou a pesar 12 quilos, nesse período também foi inventada a roçadeira. Na
década de 1950 esses produtos já eram vendidos no Brasil. Disponível em:
<http://www.revistarural.com.br/edicoes/item/6942-quarenta-anos-de-stihl-no-brasil>. Acesso em:
9 de abril de 2017.
Ao se constituírem nesses espaços passaram a desenvolver novos
laços de parentescos assinalados pelo compadrio e vizinhança, em que ocorria
uma afinidade mediada por uma relação à base de trocas, reciprocidade e
cooperação nos trabalhos, a exemplo dos mutirões no plantio e colheita do arroz.
A noção de pertencimento a uma localidade conferia aos trabalhadores rurais a
ideia de cooperação e ajuda mútua, como algo inerente ao fato de estarem
próximos fisicamente. Entretanto, é válido lembrarmos que a ação do mutirão não
está ligada exclusivamente ao sentimento de localidade, mas também a realidade
daqueles indivíduos em não possuírem ferramentas de trabalho avançadas,
necessitando assim da força coletiva. Além disso, procuramos assinalar nessa
pesquisa que o mutirão não foi algo exclusivo para a prática da agricultura, sendo
importante destacar que o desenvolvimento do sentimento de pertencimento a
Porto Alegre do Norte e ao grupo que estavam próximos, evidencia que a
manutenção desses laços de sociabilidade de compadrio e vizinhança foi essencial
nos atos de enfrentamentos contra as empresas agropecuárias FRENOVA e
Piraguassu, polícia local e outras instituições na luta pela terra no Araguaia mato-
grossense.
A (re)ocupação do nordeste de Mato Grosso ocorreu em três
momentos distintos: o primeiro no início do século XX por migrantes nordestinos
atraídos p
procura de terras férteis em que se pudesse praticar a agricultura de subsistência, e
assim, se libertar do domínio dos latifundiários dos seus locais de origem. O
segundo fluxo de ocupação ocorreu no final da década de 1960 por meio da
instalação das empresas agropecuárias no Araguaia (CODEARA e Suiá-Missu) e
a terceira movimentação migratória se deu por meio da instauração dos projetos
de colonização e assentamento, estimulando a migração de pessoas da região
Nordeste e Sul do Brasil. Tais projetos se formaram nos atuais municípios de
Confresa553 (empresa de colonização particular de mesmo nome), Água Boa,
553
Originalmente Vila Tapiraguaia. Confresa é referência à Colonizadora FRENOVA Sapeva. Esta
empresa era proprietária das Fazendas Reunidas Nova Amazônia, que abrangiam inúmeras
Canarana e Querência (COOPERCANA), Santa Cruz do Xingu (COREBRASA) e
Vila Rica (SERVAP).
Os subsídios oferecidos pelo governo militar, como também os
incentivos fiscais e o crédito com juros e taxas muito baixas oferecidas pelo
Banco do Brasil e pelo BASA, fizeram com que muitos empresários, até mesmo
distantes do ramo rural se interessassem pela a execução de projetos de
colonização, agropecuários, agrominerais, entre outros, na Amazônia. Assim, em
1971 a FRENOVA se estabeleceu em Porto Alegre do Norte, culminando em uma
série de conflitos marcados por ameaças e violências. A empresa que adquiriu a
área ciente de ocupantes com direito a posse se recusou a reconhecê-los, traçando
diversos mecanismos para a expulsão dos trabalhadores rurais que ocupavam as
terras há mais de trinta anos. No primeiro momento, Plínio Ferraz, gerente da
agropecuária passou a enviar notificações de despejos aos habitantes do povoado.
Muitos trabalhadores por não terem conhecimento dos seus direitos abandonaram
as suas posses ou venderam por preços abaixo do valor de mercado. Entretanto, se
as notificações não fossem acatadas utilizavam-se outras formas de pressões,
como, por exemplo, o envio de jagunços até as posses com avisos ameaçadores ou
com o uso da violência física, a queimada das roças, das casas e das benfeitorias e
o sacrifício das criações.
A Prelazia de São Félix do Araguaia tomou a frente das negociações e
passou a esclarecer aos posseiros que estes tinham direitos sob as posses de
acordo com o Estatuto da Terra de 1964 e pelo Decreto 70.430 de 17 de abril de
1972. Dom Pedro Casaldáliga juntamente com o padre Francisco Jentel passaram
a negociar com o prefeito de Luciara, José Liton Luz e o Diretor da FRENOVA,
João Carlos de Souza Meirelles a demarcação dos lotes dos posseiros. Assim,
Mesmo com a aprovação da desapropriação de uma gleba de 4.500 hectares para o
povoado de Porto Alegre do Norte, nenhuma providência foi tomada em prol dos
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008.
BARROZO, João Carlos. Em busca da pedra que brilha como estrela: garimpos e
garimpeiros do Alto Paraguai-Diamantino. Cuiabá: Carlini&Caniato/UFMT,
2007.
BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade: por uma teoria geral da política.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
CASTRO, Sueli Pereira de. et. al. A colonização oficial em Mato Grosso
FICO, Carlos. Brasil: a transição inconclusa. In: ARAUJO, Maria Paula; FICO,
Carlos; GRIN, Monica (Org.). Violência na história: memória, trauma e
reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012A.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34,
2006.
______. Mundo do Trabalho. Mato Grosso: cidades, vilas e outras áreas entre o
urbano e o rural. In: HARRES, Marluza Marques; JOANONI NETO, Vitale
(Org). História, Terra e Trabalho em Mato Grosso: Ensaios Teóricos e
Resultados de Pesquisas. São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EDUFMT,
2009.
______. Relatos Orais e Pesquisas Históricas. In: Anais do VII Encontro Nacional
de História Oral: História e Tradição Oral. Goiânia: ABHO/ UFG/UCG/UEG,
2004.
IANNI, Octávio. A luta pela terra: história social pela terra e da luta pela terra
numa área da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979A.
SÁ, Laís Mourão. Prática missionária e resistência cultural. In: ESTERCI, Neide
(Org.). Cooperativismo e coletivização no campo: questões sobre a prática da
Igreja Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais,
2008.
STÉDILE, João Pedro. A luta pela terra no Brasil. Ervália: Ed. Página Aberta
LTDA, 1996.
TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Matuchos exclusão e luta: do Sul para a
Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1993B.
VIÑAR, Marcelo; VIÑAR, Maren. Exílio e Tortura. São Paulo: Escuta, 1992.
LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha (A especulação com a
terra no Oeste brasileiro nos anos 50). Revista Brasileira de História, São Paulo,
v. 6, n. 12, p. 47-64, mar/ago. 1986.
MOURA, Erik Marcelo de. A mulher e a luta pela terra no Brasil: uma abordagem
sócio-cultural da constituição simbólica no MST no que concerne o estudo de
gênero. Anais do V Encontro de Pesquisa em Educação de Alagoas: Pesquisa em
Educação: Desenvolvimento, Ética e Responsabilidade Social, Maceió, agosto 31
a 03 de setembro, 2010.
REIS, Rossana Rocha. O direito à terra como um direito humano: a luta pela
reforma agrária e o movimento de direitos humanos no Brasil. São Paulo, Lua
Nova, v.86, p. 89-122, 2012.
SANTOS FILHO, José dos Reis. Violência e projetos de vida em conflitos pela
posse da terra. Estudos de Sociologia, Araraquara, v.6, n. 11, p. 145-159, jul./dez.
2001.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma A questão dos testemunhos de
catástrofes históricas. PSIC. CLIN., Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65-82, 2008.
______. Conflitos agrários e violência no Brasil: agentes sociais, lutas pela terra e
reforma agrária. Pontificia Universidad Javeriana. Seminario Internacional,
Bogotá, Colômbia. Agosto/2000.
Webgrafia
CARVALHO, Vanessa. Casaldáliga critica abandono do Araguaia, o genocídio
dos índios e a agressão ao meio ambiente, 2011. Disponível em: <
http://www.aguaboanews.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=ar
ticle&id=13641:casaldaliga-critica-abandono-do-araguaia-o-genocidio-dos-
indios-e-a-agressao-ao-meio ambiente&catid=1:notas&Itemid=24> . Acesso em:
23 jun. 2011.
FERREIRA, Eudson de. Posse e propriedade: a luta pela terra em Mato Grosso.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) Campinas: Universidade Estadual de
Campinas, 1984.
PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no sul e sudeste do Pará:
migrações, conflitos e violência no campo. Tese (Doutorado em História) Recife:
Universidade Federal de Pernambuco, 2013.
RAMOS, Polyana Rafaela. Povo Tapirapé: práticas agrícolas e meio ambiente no
cotidiano da aldeia Tapi'itãwa. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais).
Cáceres: Universidade Estadual de Mato Grosso, 2014.
ROSA, Juliana Cristina da. A Luta pela Terra Marãiwatsédé: Povo Xavante,
Agropecuária Suiá Missú, Posseiros e Grileiros do Posto da Mata em disputa.
(1960-2012). Dissertação (Mestrado em História). Cuiabá: Universidade Federal
de Mato Grosso, 2015.
Documentos
DURANTE, a ditadura, 1.196 pessoas foram mortas no campo. São Paulo, Veja,
27/09/2012. http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/durante-a-ditadura-1-196-
pessoas-foram-mortas-no-campo. Acesso em: 06 jan. 2016.
FRAGELLI, acusa padre e bispo. São Paulo, Estado de São Paulo, 02/05/1972.
IGREJA, desagrava o seu bispo. São Paulo, O Estado de São Paulo, 23/08/1973.
Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19730825-30187-nac-
0011-999-14-cen/busca/Casald%C3%A1liga.>. Acesso em: 22 dez. 2015.
LUTA, pela terra em Porto Alegre. Polícia já ouviu 14 indiciados mas não sabe
quem matou Capixaba. Equipe, Cuiabá, 10/01/1980.
MT, cai para 6º lugar do ranking de trabalho escravo. Cuiabá, Olhar Direto,
06/01/2010. http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=74636. Acesso
em: 08 jan. 2016.
Sites
http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=BIB_01&pesq=Ata
ide+Silva+Teixeira
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-70430-17-abril-
1972-418749-publicacaooriginal-1-pe.html
http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=5&uf=00
http://www.cnpc.org.br/histobjetivo.php?Categoria=Hist%F3rico
http://www.emdiv.com.br/pt/brasil/obrasil/1824-ilha-do-bananal-a-maior-ilha-
fluvial-do-mundo.html
https://www.google.com.br/search?q=meso+microrregioes+mt&source=lnms&tb
m=isch&sa=X&ved=0ahUKEwj-
xeuoks_TAhUEyyYKHbIHAjsQ_AUIBygC&biw=1366&bih=613#imgrc=kolKt
9MWnL2WlM:
http://www.hermanitasdejesus.org/brasil/tapirape2.htm
http://maraiwatsede.org.br/
http://midia.pgr.mpf.mp.br/6ccr/relatorio-figueiredo/relatorio-figueiredo.pdf
http://www.pcdob.org.br/duvidas_print.php?id_faq=5
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/tapirape/1008
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5173.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d59428.htm
http://www.pmjuruena.com.br/novo_site/index.php?nivel=1&exibir=secoes&ID=
1
http://www.portalbrasil.net/
www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/documentos/index.html#1
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/MURAIS_DA_LIBERTA%C3%87
%C3%83O/
http://prelaziasfaraguaia.wixsite.com/prelazia/historia-e-missao
http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/104451/estatuto-da-terra-lei-4504-
64#art-97
http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=74636
http://www.revistarural.com.br/edicoes/item/6942-quarenta-anos-de-stihl-no-
brasil
http://www.seplan.mt.gov.br/arquivos/A_f7d8a74ea3c43ffb50c8eae68f6f985dInf
ormativo%20Socioeconomico.pdf
http://www.yanmarsp.com.br/empresa
Entrevistas
LIMA, João Souza (João da Angélica). Entrevista de uma hora e quatro minutos
concedida à autora, em 03 de dezembro de 2015 na cidade de Porto Alegre do
Norte.
MACHADO, Carlos (Luiz Bang). Entrevista de uma hora e dezenove minutos
concedida à autora, em 9 de fevereiro de 2016 no município de Confresa.
Filmografia
Fonte:
https://www.google.com.br/search?q=meso+microrregioes+mt&source=lnms&tb
m=isch&sa=X&ved=0ahUKEwj-
xeuoks_TAhUEyyYKHbIHAjsQ_AUIBygC&biw=1366&bih=613#imgrc=kolKt
9MWnL2WlM:. Acesso em: 1 mai. 2017.
Figura 2: Mapa com destaque dos municípios que compõem a Prelazia de
São Félix do Araguaia.