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São Paulo
2022
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2022
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Agradecimentos
“Porque a prática da dúvida não se adquire assim em poucos dias ou escassas semanas”.
Kierkegaard
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Sumário
1. Apresentação.................................................................................................................6
1.1.A construção do problema de pesquisa ..........................................................................7
2. Literatura e filosofia para crianças: o estado da arte ...............................................8
3. Pela libertação da literatura e da filosofia da função instrumental........................17
3.1.O “sentido” da filosofia e da literatura..........................................................................20
3.2.A infância como área de interseção entre literatura, filosofia e busca por novos
sentidos..........................................................................................................................23
4. A busca por sentido como recorte filosófico de análise das
obras.............................................................................................................................30
5. Análise dos livros ........................................................................................................40
5.1. O sentido da vida, de Oscar Brenifier e Jacques
Després..........................................................................................................................41
5.2. A alma perdida, de Olga Tokarczuk e Joanna
Concejo.........................................................................................................................48
6. Considerações finais ...................................................................................................71
6
1. Apresentação
O presente trabalho tem por objetivo analisar o diálogo e a interseção entre literatura e
filosofia em obras literárias infantis, a fim de destacar e, em certa medida, reabilitar a riqueza
investigativa da literatura ao propiciar reflexões de caráter filosófico.
Antes de empreender tal tarefa, porém, considera-se pertinente tecer uma breve
apresentação pessoal da pesquisadora por trás dessas linhas, à guisa de justificativa para a
exploração deste tema enunciado.
Apesar de ser formada e atuar profissionalmente há mais de dez anos na área do direito,
muito antes disso, foi sempre no papel de leitora literária que me senti mais confortável e
habilitada a buscar o acesso a diferentes camadas de sentido da experiência humana. A literatura
sempre pareceu estender a mim um convite ao deslocamento, propiciando um espaço aberto e
seguro para o questionamento de certezas frágeis e ampliação de limites.
1
É possível notar uma recorrência do tema nas obras do autor, seja como pano de fundo para as obras ficcionais,
seja como denotativo de uma imperfeição ontológica da condição humana, para Camus, naturalmente injusta.
Apesar de frequente, a justiça é um tema difuso que carece de delimitação na obra camusiana e qualquer tentativa
de definição deve partir da análise prévia de seus dois pressupostos existenciais básicos, absurdo e revolta.
7
Talvez por me sentir ainda incompleta no que acabou se tornando minha profissão, não
propriamente por vocação (a área do direito), foi na reflexão da fronteira entre literatura e
filosofia, justamente onde as margens se esboroam e são quase indistintas, que desemborcou,
mais uma vez, a curiosidade e o desejo propulsores para a realização dessa pesquisa.
A ideia inicial consistiu em selecionar e analisar obras literárias infantis que trouxessem
em seu bojo reflexões de caráter filosófico, e a fim de conferir um recorte temático, textos
literários que levantassem, em seu conteúdo, questões de natureza existencial, provocando no
leitor um questionamento acerca do próprio existir, traduzido numa busca por sentido pessoal,
a partir de perguntas de fundo, do tipo: “quem eu sou?” “por que eu existo e sou como sou?”,
“qual o sentido da minha existência e o que posso fazer a partir do reconhecimento dela?”, etc.
Assim, será preciso libertar a literatura dessa visão utilitária e instrumental com que
comumente é tratada, quando se busca estabelecer um diálogo com a filosofia, sobretudo a
8
voltada para crianças, para apenas, posteriormente, realizar a análise de algumas obras literárias
infantis passíveis de reflexão de caráter filosófico-existencial.
Nesse sentido, a escolha da busca por sentido como chave de leitura tem por objetivo
não só conferir um recorte para análise do conteúdo filosófico presente nas obras selecionadas,
mas principalmente visa destacar a aproximação entre literatura e filosofia naquilo que ambas
possuem como um recurso ilimitado: a potência investigativa, sem que nem uma ou outra esteja
vinculada à necessidade de conduzir a respostas definitivas, pois em ambas a tônica da reflexão
repousa mais na interrogação e modos de investigar, e menos nas respostas e resultados obtidos.
Ao mesmo tempo, a busca por sentido desponta como o recorte mais adequado, pois
pode ser facilmente traduzido em um modo de investigação cujo resultado, para além de não
estar dado na ordem da realidade das coisas, jamais é certo ou está garantido e, portanto, não é
o mais relevante em jogo, uma vez que o valor da investigação se encontra no próprio
movimento orientador de sua busca, além de poder ser rastreado como um eixo de força e
interesse tanto na literatura quanto na filosofia.
Tudo isso buscando destacar, sem perder de vista, como parece ter sido frequente até
aqui, a potência investigativa da literatura em suscitar tal gama de reflexões de natureza
filosófica.
Apesar de se tratar de um método pedagógico, foi quase impossível obter qualquer outra
fonte de referência para examinar a relação e interseção entre literatura e filosofia, voltada para
a infância, que não aponte o método de Lipman como o exemplo por excelência de diálogo
entre ambas, quando, na verdade, o método em questão nunca esteve sequer engajado com a
literatura, tendo por objetivo único a promoção do ensino de filosofia, e ainda, apenas sob um
determinado aspecto desta última.
De modo que até para se sustentar uma aproximação entre literatura e filosofia para
crianças, liberadas, tanto uma quanto a outra, de funções estritamente instrumentais, é preciso
fazê-lo em contraposição ao método de Matthew Lipman, pois os estudos elaborados em torno
do assunto o colocam, sempre, como eixo gravitacional da questão, apesar de seu programa
declaradamente prescindir da literatura e trabalhar com a filosofia a partir de uma perspectiva
normativa.
A fundamentação que Lipman oferece para sua proposta é claramente normativa. Isto
significa que, nela, Lipman diz como deveria ser uma educação filosófica das
crianças. Para isso, propõe uma argumentação na qual alguns ideais desempenham
um papel-chave (KOHAN, 2021, p.17).
2
A obra “Filosofia para crianças” de Walter Omar Kohan revelou-se uma importante referência não apenas por consistir num
sério esforço em sistematizar o programa pedagógico de Lipman, mas por também por se tratar de um trabalho crítico, que ao
reconhecer a importância e alcance do método, nem por isso deixa de apontar nele as defasagens pertinentes.
10
O método de Lipman, nesse sentido, enfatiza a distinção entre filosofia enquanto campo
teórico e prático para buscar enfatizar e viabilizar apenas essa última, o que considera um “fazer
filosofia”3. Isto implica em reconhecer que o programa de Lipman está lastreado em apenas
uma das facetas de um conceito bem mais amplo.
Assim, não se trata de filosofia, em sentido amplo, mas o que Lipman concebe fazer a
partir dela dentro de um projeto de ensino, tratando-se, portanto, de uma perspectivação da
prática filosófica como meio de se alcançar um objetivo maior: a formação das crianças. De
forma perspicaz, Kohan observa:
Embora possa parecer banal, a distinção é necessária até para não se perpetuar as
constantes distorções na aplicação do próprio método e assumir que ele detém compromissos
que não assume. O problema não está na pretensão de normatizar um aspecto prático da filosofia
a fim de torná-la passível de uma metodologia de ensino. O problema, nesse caso, está na
dogmatização e recorrente defesa do programa de Lipman como o único modo de abordar
3
KOHAN, W. Filosofia para crianças. 2008, p.17.
11
filosofia com crianças, sobretudo quando se desconsidera que apenas um aspecto da filosofia é
contemplado e que ele não pode ser estendido à sua totalidade, sobretudo no campo teórico.
A confusão recorrente, por sua vez, traz consequências e promove distorções tanto no
que diz respeito à aproximação com a literatura quanto com relação à filosofia para crianças.
Além disso, deve-se destacar que o contexto em que o programa de Lipman opera é
completamente distinto ao da articulação aqui pretendida, entre literatura e filosofia para
crianças, num âmbito mais amplo e não apenas restrito ao ambiente escolar.
O problema mais imediato desta correlação com o método de Lipman, como já se viu,
é a subordinação da filosofia a um viés prático e em conformidade, necessariamente, a um
projeto pedagógico, o que a interdita para outros contextos não-formais, além de ceifar a
possibilidade de um verdadeiro diálogo com outras formas de expressão, como a literatura
infantil, e outros campos teóricos e do saber.
4
KOHAN, W. 2008, p.83.
5
______, p.85.
6
Cf. Kohan:“Lipman tem proposto a criação da ‘comunidade de investigação’ como novo paradigma em educação: as aulas
deveriam deixar de ser aquilo que são para converter-se em comunidades de investigação filosófica” (KOHAN, 2008, p. 29).
12
Lipman buscou se inspirar na estrutura dialógica dos escritos platônicos que tinham
Sócrates como figura central e inquisidora. Diferentemente dos diálogos platônicos, porém, não
há uma explicitação dos problemas em jogo. Apesar da inspiração, as novelas dificilmente
propõem discussões tão diretas e abertas como “o que é a justiça?” de A República, ou “o que
é o amor?” de Fedro. Não há sequer indagações frontais, o que há é uma certa problematização
7
Cf. KOHAN, 2008, p.52.
13
em torno de situações banais que depois da leitura pressupõe-se terem de ser aprofundadas pelo
professor em sala de aula, que terá a tarefa de trazer à tona as perguntas previamente elaboradas
no manual do professor e cotejar as respostas dos alunos, num processo que em certa medida
relembra à maiêutica8. Um último ponto de similitude com os diálogos platônicos é a falta de
uma resposta definitiva para as perguntas, apontando para uma necessidade da manutenção da
investigação filosófica.
Há algo, porém, na banalidade das cenas em confronto com o conteúdo que se pretende
transmitir que provoca estranhamento, deixando nítida a intenção forçada de provocar reflexão,
num contexto que não é apresentado de modo propício para isso, como é possível perceber na
passagem abaixo:
Então deve ser porque as coisas mudam. Será que o tempo acontece quando as coisas
mudam? Ou o tempo é o que aparece quando a gente mede a velocidade da mudança
das coisas? Minha cabeça está a mil.
Faço um túnel na areia. O túnel é tão grande que dá para colocar o braço inteiro lá
dentro (LIPMAN, Matthew. Issao e Guga, 1997, p.23).
Como se vê, tanto a reflexão acerca da passagem do tempo quanto a especulação acerca
da natureza da mudança e alteração da realidade, se situadas no tempo ou para além dele, são
rapidamente deixadas de lado e ficam sem aprofundamento para serem sucedidas por uma cena
que além de trivial não tem conexão e em nada acrescenta às percepções temporais e até
metafísicas em jogo.
A qualidade literária do texto deve ser aceitável; o texto deve ser uma obra profissional
– senão de arte – pelo menos satisfatória. Isto não quer dizer que é pouco possível ter
esperanças de uma época quando grandes escritores aceitariam o desafio de escrever
8
Maiêutica é uma técnica obstétrica de parto, o termo é utilizado em alusão metafórica ao método socrático em razão da
conduta típica de Sócrates, nos diálogos platônicos, em conduzir a investigação por meio de perguntas que fazem nascer outras,
daí a metáfora para o conhecimento oriundo de um parto de ideias.
9
RAMOS, Paula Oliveira, 2008, p. 199.
14
livros didáticos para crianças. Mas, primeiro, talvez tenhamos que criar o mercado
que os motivará a encarar essa empreitada (LIPMAN, 1995, p.314).
Importante destacar que a ausência de compromisso com a literatura não é uma crítica
direta a Lipman. É frequente, entretanto, que os adeptos de seu modelo reputem às novelas, e
até as oficinas de texto para sua elaboração, qualidades literárias em razão dos textos possuírem
aspectos como “fluência e expressividade10”, mas só esses requisitos não tornam as novelas
expressões da literatura, convertidas no método em questão apenas como o meio formal para
expressar uma mensagem.
Dentro desse contexto, quando se tenta estabelecer o diálogo com a filosofia, o literário
aparece exclusivamente como a forma através da qual o conteúdo filosófico ganha contorno, é
plasmado e transmitido. A forma literária, portanto, é apenas um molde ou constructo e, por
10
RAMOS, Paula Oliveira, 2008, p. 197.
15
isso, figura nessa relação um tanto forçada com a filosofia de modo instrumental e acessório,
sendo apenas um meio para atingir outro fim, no caso, a exposição de um conteúdo filosófico.
O que fazemos no GEPFC é literatura? Não é fácil responder a essa questão. Lipman
entende que suas novelas filosóficas pertencem a um gênero particular; elas não são
exatamente literatura. Seriam textos didáticos? Essa também é uma questão que
carrega alguma complexidade. Porém, de uma coisa podemos estar certos: fica difícil
considerar literatura um texto que foi escrito com uma determinada finalidade. Torna-
se evidente a presença de uma instrumentalidade. Além disso, os textos de filosofia
para crianças costumam ser bastante realistas. A fantasia não tem espaço reservado
nesses textos. A partir deles, nós pensamos, mas, quando estamos diante da literatura,
além de um pensar, temos um sentir. Quando chegamos ao final de uma boa história,
inevitavelmente os sentimentos afloram. Por vezes, fica a sensação de que preferíamos
não ter chegado ao fim, só para continuarmos naquela espécie de torpor, naquele outro
mundo possível (RAMOS, 2008, p.200).
11
OLIVEIRA, Paula Ramos. Crianças, filosofia e literatura. In: Revista Educação e Cultura Contemporânea Vol.5, nº 9, Ano
2008, p.193-202.
16
À certa altura, o artigo especula e em seguida aponta como principal motivo para a não
utilização de livros de literatura infantil com o objetivo de aproximar as crianças da filosofia,
ao invés das novelas, pois, segundo a pesquisadora, eles não seriam propícios à reflexão:
Em face do exposto, surgem duas perguntas: 1) Não seria mais interessante usar a
literatura nas aulas de filosofia?; 2) Por que escrever textos para as aulas de filosofia?
Essas são duas perguntas recorrentes e, por isso, a reflexão sobre elas continua sempre
em aberto, mas penso que a diversidade constitui-se como uma alternativa
interessante. Por quê? Porque vejo vantagens e desvantagens no uso de literatura e
também nos textos que escrevemos para o ensino de filosofia. Até o momento, apenas
levantamos alguns pontos problemáticos dos textos de filosofia para crianças e
exaltamos as qualidades da literatura. Façamos o exercício contrário agora. Às vezes,
encontramos literatura que não é de boa qualidade, mas essa precisa ser descartada.
Em outras vezes, encontramos literatura de ótima qualidade, mas que não é muito
convidativa à reflexão (RAMOS, 2008, p.200).
Para finalizar a exposição acerca do atual estado da arte que envolve a literatura e
filosofia para crianças, é possível indicar alguns esforços mais recentes em levar a filosofia para
crianças para meios extraescolares.
Ao mesmo tempo, tais livros são profícuos em propiciar reflexões, sem apontar soluções
definitivas, e possuem o mérito de manter a investigação em aberto. Na segunda parte desta
pesquisa, o livro “O sentido da vida” de Oscar Brenifier será mais detidamente analisado.
Como se viu até aqui, o atual estado da questão conferido à interseção entre literatura e
filosofia para crianças aponta para uma visão essencialmente instrumental de ambas. O presente
tópico tem por objetivo demonstrar em que medida a vinculação, tanto de uma quanto de outra,
de servirem apenas de meios para se alcançar determinados fins, mesmo quando louváveis
como a formação pedagógica, acaba por empobrecer o alcance e a potência investigativa que
ambas possuem, quando liberadas de uma função conformativa, para valerem por si mesmas.
A tendência a considerar a literatura infantil e/ou juvenil basicamente pelo que tem de
infantil ou de juvenil é um perigo, uma vez que parte de ideias preconcebidas sobre o
18
Por muito tempo, e possivelmente até hoje, a literatura para crianças quando não esteve
associada a uma forma de expressão literária menor, inferior, e empobrecida em comparação
com a literatura considerada canônica, teve sua qualidade reconhecida apenas quando os livros
em jogo “reforçassem uma determinada visão da infância, da educação e da cultura12”, ou
seja, valores exteriores à literatura. Como aponta María Teresa Andruetto (2012):
Como resultado dessa tendência em associar a literatura para a infância ou para os jovens
a finalidades cujos valores sejam extrínsecos e com os quais a literatura não está comprometida,
Andruetto (2012) conclui:
Assim, grande parte dos livros destinados ao setor infantil e/ou juvenil – claro que
com honrosas exceções de livros, autores, ilustradores e editores – procura uma escrita
correta, quando não francamente frívola (politicamente correta, socialmente correta,
educacionalmente correta), ou seja, fabrica produtos que são considerados
adequados/recomendáveis para a formação de uma criança ou para seu divertimento.
E já se sabe que correto não é um adjetivo que cai bem na literatura, pois a literatura
é uma arte na qual a linguagem resiste e manifesta sua vontade de desvio da norma
(ANDRUETTO, 2012, p.60).
Um bom livro, no geral, tem um campo de leitores menor que um livro funcional em
relação a certas tendências ou exigências do mercado, simplesmente porque os bons
livros não respondem a um gosto global, não agradam a todos, assim é a literatura.
(...) Os bons livros têm, em relação à oferta, à demanda e aos canais de circulação,
uma multiplicação de sentido que é, ao mesmo tempo, uma restrição a sua
uniformidade e sua massividade (ANDRUETTO, 2012, p.66).
12
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Cosac Naify, 2010, p.13.
19
Para além de inferiorizada, a literatura infantil acaba sendo esvaziada daquilo sobre o
qual deveria repousar alguns de seus principais valores: sua potência investigativa, a
manutenção ativa da curiosidade do leitor, jovem ou não, ao mesmo tempo que ao prescindir
de certezas e manter em aberto as possibilidades de resposta, também se ganharia em
multiplicidade de vias interpretativas. No que diz respeito à essa riqueza de interpretação que a
literatura propicia, Adilson Miguel (2012) bem sintetizou:
Andruetto (2012), por sua vez, sustenta que a literatura é, por definição, o lugar das
incertezas, motivo pelo qual o escritor é aquele que não deve escrever conforme às demandas
do mercado e nem deve estar preocupado em demonstrar determinadas verdades, mas estar
comprometido em procurá-las por meio da escrita, pois “para escrever, é preciso ter grande
disponibilidade para a incerteza e para o questionamento dos próprios atributos e
20
condições13”. Nesse sentido, defende que a conduta ética do escritor repousa no compromisso
com sua estética, liberando a literatura de compromissos que não exibe por si:
Para que serve a ficção? Tem alguma utilidade? Alguma funcionalidade na formação
de uma pessoa, em nosso caso, de uma criança, ou seja, justamente de uma pessoa em
formação? Todos nós, homens e mulheres, vamos ao dicionário para saber sobre as
palavras, aos livros de ciência para saber ciência, aos jornais e às revistas para ler as
notícias da atualidade aos cartazes de cinema para saber os filmes que estão passando.
Mas para onde vamos quando queremos saber sobre nós mesmos? Nós, os leitores,
vamos à ficção para tentar compreender, para conhecer algo mais acerca de nossas
contradições, nossas misérias e nossas grandezas, ou seja, acerca do mais
profundamente humano. (...) Uma narrativa é uma viagem que nos remete ao território
de outro ou de outros, uma maneira, então, de expandir os limites de nossa
experiência, tendo acesso a um fragmento de um mundo que não é o nosso. Reflete
uma necessidade muito humana: a de não nos contentarmos em viver uma única vida
e, por isso, o desejo de suspender um pouco o transcurso monocórdio da própria
existência para ter acesso a outras vidas e outros mundos possíveis, o que produz, por
um lado, certo descanso ante a fadiga de viver e, por outro, o acesso a aspectos sutis
do humano que até então nos haviam sido alheios. Assim, as ficções que lemos são
construção de mundos, instalação de “outro tempo” e de “outro espaço” “nesse tempo
e nesse espaço” em que vivemos. Uma narrativa ficcional é, portanto, um artifício,
algo, por sua própria essência, liberado de sua condição utilitária, um texto no qual as
palavras fazem outra coisa, deixaram de ser funcionais, como deixaram de sê-lo os
gestos no teatro, as imagens no cinema, os sons na música, para buscar, através dessa
construção, algo que não existia, um objeto autônomo que se agrega ao real. A ficção,
cuja virtualidade é a vida, é um artifício cuja leitura ou escuta interrompe nossas vidas
e nos obriga a perceber outras vidas que já foram, que são passado, posto que são
narradas. Palavra que chega pelo que diz, mas também pelo que não diz, pelo que nos
diz e pelo que diz de nós, tudo que facilita o caminho até o assombro, a comoção, o
descobrimento do humano particular, mundos imaginários que deixam surgir o que
cada um traz como texto interior e permitem compartilhar os textos/mundos pessoais
com os textos/mundos dos outros (ANDRUETTO, 2012, p.53-55).
13
ANDRUETO, 2012, p.57
21
Ainda nesse sentido, é possível observar que, ao mesmo tempo em que a literatura em
relação à filosofia para crianças aparece apenas como um meio de explicitação desta última, e
nem deveria ser considerada literatura, para além desse cenário, dificilmente nos deparamos
com a relativização de sua importância por si mesma e desvinculada de fins pedagógicos. Pouco
se questiona a validade da literatura em cenários extra-acadêmicos, apesar da literatura infantil
também lutar pela manutenção de seu status como campo teórico autônomo. Já a filosofia,
sobretudo a voltada para crianças, dificilmente aparece apartada de um contexto instrumental e
pedagógico.
A filosofia, de modo geral, já lida com a pecha de ser apenas especulativa e não conduzir
a lugar algum. Além disso, desabilita de modo constante o senso comum, pois como bem
pontifica Walter Omar Koan (2008, p. 37): “Em filosofia, as mesmas palavras ocultam muitas
vezes desacordos profundos na forma como são entendidas”, o que sem sombra de dúvida torna
árdua a tarefa de sua compreensão. E, por fim, mas não menos pertinente, como aponta de forma
bem-humorada Terry Eagleton (2021, p. 13): “Os filósofos têm o hábito irritante de analisar
perguntas em vez de respondê-las”.
As perguntas “O que é filosofia?” e “para quê filosofia?” são alvos de seu próprio estudo
e apenas sobre as tentativas de resposta a elas poderiam se erguer bibliotecas. Há ainda, uma
tendência da relativização de seu campo, talvez pela amplitude de temas de que se ocupa, a
polifonia de caminhos e respostas oferecidas, ou pelo senso comum de que o alcance da certeza
conduz à ciência, e a partir daí qualquer filosofia já não tem razão de ser e pode ser descartada.
Mas além disso, parece que sobretudo quando voltada para a infância, a filosofia precisa
necessariamente estar inserida dentro de um contexto pedagógico, seu esforço precisa ser
justificável e aferível através do alcance de alguma baliza de conhecimento, é necessário se
chegar a algum lugar com a filosofia, ainda que seja para o desenvolvimento do famigerado
senso crítico, o desenvolvimento ético, ou ainda para desempenhar um papel regulador das
emoções das crianças. Papel que o estímulo ao raciocínio, liberto de crenças pessoais, é
certamente favorecido pela filosofia, mas não se confundem apenas a ele.
Também é frequente uma certa mistificação em torno da filosofia, o que acaba por lhe
conferir um grau de abstração maior do que efetivamente possui. Pensar também é faculdade
de todos, razão pela qual se reforça normalmente a implicância com a filosofia por se prestar a
desenvolver algo que, naturalmente, bem ou mal, já se faz.
Num mundo em que a lógica vigente nos conduz a olhar para tudo a partir de um viés
de utilidade, é realmente difícil reconhecer valor naquilo que não está dominado sob a esfera
da necessidade, de servir para algo. Quando buscamos incentivar a libertação da literatura e da
filosofia de servirem a finalidades instrumentais, elas deixam de ter a obrigação de nos conduzir
a respostas confortáveis e seguras, e podem ser apenas a manifestação da multiplicidade da
experiência, naquilo, inclusive, que ela tem de mais curioso e intrigante, mas também frágil,
incerto e inseguro. Apesar de nenhum resultado estar garantido, interrogar parece ser ainda a
única postura capaz de estabelecer uma mediação entre quem investiga e a realidade
interrogada.
3.2.A infância como área de interseção entre literatura, filosofia e busca por novos
sentidos
Para além das dificuldades específicas de cada campo, algumas inventariadas acima,
para estabelecerem a si próprias livres de finalidades instrumentais, o diálogo que aqui se
pretende estabelecer entre literatura e filosofia encontra na infância seu público-alvo e setor de
interseção, o que também traz à tona algumas especificidades a serem observadas.
Embora desde a Antiguidade Clássica possa se observar uma tendência a olhar a infância
como uma fase privilegiada da experiência humana14, por outro lado, parecem ser ainda mais
recorrentes as associações dessa fase inicial da vida com os aspectos mais débeis e
despreparados da alma humana. A esse respeito, como muito bem enfatizado por Kohan:
A essa visão negativa da infância alia-se outra que caracteriza a infância como um
estado não acabado. Nesse sentido a infância é vista, sob o prisma do olhar adulto,
como aquilo que será, mas ainda não é, como o não completo, o indefinido (KOHAN,
Walter Omar. 2008, p.13).
14
Embora existam registros que louvam à infância como fase privilegiada da experiência humana, como observa Kohan, tal
privilégio decorre do fato de se tratar do estágio para a preparação para a vida adulta por meio da educação (Paideia): Assim:
“Por isso, considera Platão, deve-se cuidar de todos os detalhes da educação das crianças. Elas são tão importantes, não pelo
que são, mas pelo que podem ser. A educação deve garantir, nesse paradigma, que elas possam ser os adultos que queremos
que sejam”. (KOHAN,2008, p.13).
24
Parece que, ao qualificar um texto como “infantil”, o que fazemos é afirmar que se
trata de algo limitado ou restrito. Basta notar que, quando nos referimos à literatura
em geral – em tese, voltada para os adultos –, usamos apenas a palavra literatura, sem
qualquer adjetivação. Por trás disso está a ideia muito frequente de que um texto
infantil deve ser simples, sem grandes dificuldades de entendimento, tendo-se em
vista que o seu destinatário não teria maturidade e esclarecimento para a fruição de
materiais mais complexos, com recursos de linguagem sofisticados. Segundo esse
modo de pensar, os escritos para criança serão sempre secundários ou inferiores
(MIGUEL, 2012, Literatura infantil, In: Revista Emília).
Em sua defesa por uma literatura sem adjetivos, María Teresa Andruetto (2012), como
já se viu no tópico anterior, alerta para o perigo de se associar a literatura para crianças e jovens
por aquilo que ela tem de “infantil” ou “juvenil”, justamente por partir de concepções
preconcebidas sobre o que é uma criança ou um adolescente e, com isso, subordinar o objeto
literário ao atendimento de determinadas funcionalidades, geralmente estipuladas pelo mercado
editorial e segundo pautas vigentes com valores extrínsecos à literatura, e excluindo, por
conseguinte, a literatura que não atender ou se conformar a esses fins. Nesses casos, Andruetto
(2012, p. 69) aponta para a ocorrência de uma inversão:“convertendo, então, a escrita em
infantil (a escrita, não o destinatário), um adjetivo que se voltou contra o substantivo,
absorvendo sua riqueza”.
(...) O que pode haver de “para crianças” ou “para jovens” numa obra deve ser
secundário e vir como acréscimo, porque a dificuldade de um texto capaz de agradar
a leitores crianças ou jovens não provém tanto de sua adaptabilidade a um destinatário,
mas, sobretudo, de sua qualidade, e porque quando falamos de escrita de qualquer
tema ou gênero o substantivo é sempre mais importante que o adjetivo. De tudo o que
tem a ver com a escrita, a especificidade de destino é o mais exige um olhar alerta,
pois é justamente ali que mais facilmente se aninham razões morais, políticas e de
mercado (ANDRUETTO, 2012, p.61).
15
KOHAN, W. 2008, p.13.
25
A maturidade associada “aquilo que já é”, ou aquilo que já alcançou o ápice do que
poderia ser, não deixa espaço para incertezas, o que justifica o recorrente desconforto com as
perguntas em aberto. O inacabado, por sua vez, “daquilo que será, mas ainda não é”, deixa
espaço em aberto para ser preenchido pelo movimento de busca.
Como se verá mais adiante, essa manutenção da busca em estado de latência, como uma
pulsão constante, própria da infância, relaciona-se estreitamente ao movimento reflexivo
exigido na busca por sentido existencial, justamente naquilo que ambos, infância e busca pelo
sentido da vida, possuem de inacabado, estão permanentemente em estado de passagem, num
eterno devir.
É possível observar uma estreita relação da infância com a própria noção de filosofia,
pois como lembra Kohan: “Em sentido kantiano, a filosofia não pode ser ensinada porque ela,
enquanto ideia de uma ciência possível, sempre é inacabada e, portanto, não pode ser nem
aprendida ou apreendida” (KOHAN, 2008, p.18). Em linhas bem gerais, para Kant, pode-se,
no máximo, aprender a filosofar e não filosofia, assim, na filosofia ninguém sai da infância, seu
conhecimento não alcança à maturidade.
Ainda com relação à filosofia e infância, para além do muito que já se falou acerca do
método de Matthew Lipman, é possível destacar esforços recentes de estudiosos em demonstrar
como a natureza investigativa de crianças pequenas pode, muitas vezes, ser traduzida em
questionamentos só encontrados em livros de pensadores da mais alta filosofia.
Numa perspectiva quase que oposta à de Lipman também é possível encontrar quem
sustente de modo bastante diferente, o seguinte:
As crianças filosofam com ‘um frescor e uma inventividade que são difíceis de
igualar, mesmo para o mais imaginativo dos adultos’. Esse vigor surge do fato de elas
acharem o mundo enigmático. Anos atrás, uma psicóloga chamada Michelle
Chouinard ouviu gravações de crianças mais novas passando tempo com seus pais.
Em mais de duzentas horas, ela ouviu quase 25 mil perguntas. Isso significa mais de
duas por minuto. Quase um quarto das perguntas buscava explicações; as crianças
queriam saber como ou por quê. (HERSHOVITZ, Scott. 2022, p.21).
26
No recém-publicado “Aventuras pela filosofia com meus filhos”, de cujo texto foi
extraída a citação acima, Scott Hershovitz, professor de filosofia de direito e ética na
Universidade do Michigan, propõe fazer uma incursão em alguns temas filosóficos tendo como
ponta de partida os diálogos travados com seus dois filhos pequenos. Não se trata de um livro
de filosofia para crianças, mas para adultos, como salienta16.
Antes de abordar os temas, porém, o autor apresenta dados de pesquisas que apoiam a
premissa básica da qual parte: crianças mantém um estado latente e mais criativo para a
investigação da realidade que as cercam.
Mas para além da mudança de paradigma promovida por Hershovitz no que tange ao
protagonismo da criança na investigação filosófica, o autor ainda aponta como referência
teórica um outro autor, o filósofo e professor universitário americano, Gareth B. Matthews, que
segundo relata17 (MATTHEWS, 2001, p.1), foi pensando em como dar aulas no curso de
introdução à filosofia para universitários, que começou a se interessar pelo pensamento
filosófico de crianças, tornando-se referência no assunto.
16
Como o autor declara: “Este livro foi inspirado por crianças, mas não é para elas. De fato, as crianças são meu cavalo de
Troia. Não estou atrás de mentes jovens. Estou atrás da sua.” (HERSHOVITZ, S., 2022, p.23)
17
Prefácio do livro A filosofia e a Criança. Tradução do Philosophy and the Young Child. Matthews, 2001, p.1
27
Embora não ignore ou rejeite o fato de que há, naturalmente, uma evolução biológica e
psicológica que acompanha o desenvolvimento da criança, Matthews sustenta que o raciocínio
filosófico não necessariamente está relacionado e acompanha essa linha evolutiva que depende
18
Sem tradução no país.
19
No original: My hypothesis is that, once children become well settled into school, they learn that only "useful" questioning
is expected of them. Philosophy then either goes underground, to be pursued privately, perhaps, and not shared with others,
or else becomes totally dormant. (MATTHEWS, 1994, p.5) [Tradução da autora]
20
No original: As college students soon learn in their first philosophy course, it isn't easy to rid oneself of adult assumptions,
even temporarily, and even for a fairly circumscribed purpose. It isn't easy, that is, for adults. Children have far less of a
problem. In a certain way, then, adult philosophers who follow Descartes in trying to "start over" are trying to make themselves
as little children again, even if only temporarily. That is hard for adults. It is unnecessary for children. It isn't that "starting
over" is all there is to doing philosophy. That isn't true at all. But learning to be comfortable with "naive" questions is an im
portant part of doing philosophy well. Thus for this reason, as well as for the other two, when it comes to doing philosophy,
the evaluational assumption of the stage/maturational model gets things all wrong. (MATTHEWS, 1994,p.18) [Tradução da
autora]
28
de uma maturidade, seja biológica ou psicológica, sugerindo que pensar apenas a partir dessas
duas chaves não é adequado, da mesma maneira, para examinar a capacidade de reflexão
filosófica de cada indivíduo.
Ao contrário, seus estudos sugerem que, à medida em que a criança vai amadurecendo
do ponto de vista biológico e psicológico, há um declínio da investigação filosófica. Não se
trata, tampouco, de assumir que a filosofia é uma atividade que pressupõe uma imaturidade
cognitiva ou intelectiva. Adultos filosofam, com mais rigor e menos criatividade do que
crianças. O que Matthews sugere é que há uma propensão da criança a interrogar os mecanismos
da realidade que a circundam e fazer hipóteses, de modo muito semelhante ao que filósofos
rigorosos e canônicos também se propuseram a fazer, a fim de determinar racionalmente a
natureza do tempo, do espaço, entre outros problemas do tipo, sugerindo que esse caráter
investigativo não se subordina a processos de maturação exclusivamente biológicos ou
psicológicos.
Importante também dizer que a “ingenuidade” que Matthews atribui como uma
qualidade da criança a ser resgatada pelo adulto na investigação de filosofia de modo algum a
está inferiorizando ou desqualificando intelectualmente, a ingenuidade da criança é justamente
o estado de busca latente, ainda não ceifado pelas necessidades instrumentais de ter apenas
pensamentos e atitudes úteis para o meio social.
Como o autor aponta, a criança aprende, paulatinamente, que só deve questionar algo
se houver utilidade na pergunta. De modo que as mesmas crianças, que nas fases iniciais da
infância, haviam demonstrado uma propensão à interrogação filosófica, tais como, por
exemplo, qual a natureza das cores, do tempo, ou o alcance da ideia de que sem som não
21
No original: In many areas of human development this evaluational bias seems quite appropriate. We don't want grown-
ups, or even adolescents, to have to chew their adult-sized steaks with baby teeth. But when it comes to philosophy, the
assumption is quite out of place. There are several reasons for this. First, there is no reason whatsoever to suppose that, simply
by virtue of growing up in some standard way, adolescents or adults naturally achieve an appropriate level of maturity in
handling philosophical questions— in, for example, being able to discuss whether time might have had a beginning, or whether
some supercomputer might be said to have a mind. (MATTHEWS, 1994, p.17)
29
existiriam palavras e consequentemente não seria possível pensar, nem por isso, com o avanço
da idade, continuaram com o mesmo apetite para o raciocínio filosófico - reforçando a tese de
Gareth B. Matthews, de que o raciocínio filosófico não obedece à mesma lógica da maturação
biológica e psicológica de um indivíduo e, em certa medida, pode ser paulatinamente
abandonado quando não estimulado ou, principalmente, quando o meio social passa a incentivar
de alguma forma um comportamento contrário: que para melhor “adaptação” da criança, seu
impulso investigativo seja refreado.
Por sorte, o protagonismo infantil vislumbrado por Gareth B. Matthews também teve os
seus sucessores. Compartilhando da mesma percepção quanto à familiaridade das crianças com
o raciocínio filosófico, Thomas E. Wartenberg escreveu “Big Ideas for little kids: teaching
philosophy trough children’s literature (2009)22”, onde descreve a sua experiência como
professor da educação infantil e postula em defesa do ensino de filosofia para crianças
utilizando-se de livros de literatura infantil.
Wartenberg defende, ainda, que se aproxime a filosofia das crianças através de livros de
literatura infantil, pois segundo ele, tais livros, além de já integrarem o programa curricular,
contam com todo material simbólico e estético necessário para exposição das crianças à
literatura e filosofia, a um só tempo. Segundo o autor, os livros de imagem selecionados são
suficientes “para discutir todas as questões dos principais campos da filosofia, de ética a
estética e de metafísica para a teoria do conhecimento23”.
22
Trabalho sem tradução no Brasil. O título em tradução livre seria o equivalente: “Grandes ideias para crianças pequenas:
ensinando filosofia através da literatura infantil”.
23
WARTENBERG, T. 2009, p.xi [Tradução da autora]
30
Todas essas considerações feitas em torno da infância são pertinentes não apenas por se
tratar do público-alvo, tanto da literatura quanto da filosofia, que aqui se pretende examinar e
estabelecer um diálogo, mas por ser a infância um campo que detém desafios específicos e que
não podem deixar de serem levados em conta, quando se fala em literatura infantil, filosofia
para crianças, ou mesmo literatura filosófica para crianças.
É preciso salientar que muito embora a filosofia seja passível de uma reconstrução
histórica de seus movimentos principais, os problemas filosóficos, por sua vez, não podem ser
subsumidos a uma exposição estritamente linear ou cronológica. Os aspectos históricos, sociais
e culturais são importantes pois contextualizam os problemas da filosofia, mas são valores
extrínsecos a eles.
Assim, os problemas filosóficos não são lineares, tampouco obedecem a uma escala
evolutiva, o que quer dizer que não há uma progressão na dificuldade dos problemas levados
24
Será inevitável, mas nesse primeiro momento evitou-se a utilização da palavra “sujeito”, por se tratar de termo em si mesmo
problemático para a filosofia. Isto porque a noção de subjetividade sofreu grandes modificações ao longo da história da filosofia
ocidental e que não são auto-evidentes. Nossa concepção atual de sujeito foi inaugurada apenas no século XVII, com a
instauração do cogito cartesiano (o “Penso, logo existo” de Descartes) que pressupõe o indivíduo como o centro da operação
de conhecimento sobre o mundo, num processo que culmina com a autodeterminação da razão humana por Kant. O termo
sofreu ainda desdobramentos e ganhou instâncias psíquicas, na Era Moderna, como o ego e superego freudiano, cuja existência
nem se cogitava na Antiguidade Clássica, por exemplo. Mas mais do que uma espécie de anacronismo quando se fala em
indivíduo na Antiguidade Clássica e Idade Média, o termo “sujeito” também pressupõe uma ideia de “verdade” a ser alcançada
pelo homem como centro e detentor do conhecimento com a qual nem toda tradição filosófica posterior se coaduna.
32
em consideração pela filosofia, tampouco a superação e abandono deles por outros, o que se
observa é um movimento, pode-se dizer espiralado, pois sempre exige a retomada de certos
pontos dos quais já se partiu, que demanda a contínua explicitação dos pressupostos tidos por
estabelecidos e convocados à constante revisão e reformulação.
Nesse sentido, ainda de modo bastante esquemático e não exaustivo, é possível indicar
três movimentos e eixos problemáticos principais para os quais propende e se orienta a filosofia:
um primeiro período ou momento que pode ser chamado de metafísico em que a produção de
pensamento gravita em torno da problemática das condições de possibilidade do ser enquanto
ser, ou, em linhas gerais, sobre o que há no mundo, exemplificadas pelas investigações
geralmente impulsionadas pela pergunta “O que é?”, típicas, por exemplo dos diálogos
platônicos; o segundo período é chamado de epistemológico, da investigação sobre o ser, do
movimento metafísico, desdobra-se a investigação a respeito das condições de possibilidade do
conhecimento sobre o que há no mundo, o que pode ser traduzido pela pergunta “Como é
possível saber o que é?”, ou seja, quais as condições de possibilidade para o conhecimento
sobre o ser, questionamento característico, por exemplo, do racionalismo; por fim, já numa
terceira virada de eixo problemático, torna-se premente a fixação das condições de
possibilidade de se alcançar o sentido ou a relação de significação que se estabelece com as
coisas que são e se conhece, em outras palavras, “Qual o significado?”.
Mais acima se mencionou que perguntas do tipo “O que é?” são recorrentes nos
diálogos platônicos, por exemplo, o que não quer dizer que mesmo nos diálogos platônicos não
seja possível encontrar perguntas de outra natureza, inclusive com relação às condições de
possibilidade do conhecimento sobre o ser ou sua relação de significação. Do mesmo modo,
os períodos que mais se ocupam em investigar o sentido nem por isso prescindem de perguntas
típicas do primeiro ou do segundo momento. O esquema geral que identifica como
33
Embora, como se disse, não seja adequada a abordagem aos problemas filosóficos a
partir de critérios exclusivamente histórico-cronológicos, é possível notar um afluxo maior das
questões assinaladas pelo terceiro momento paradigmático assinalado acima, que dizem
respeito às investigações de significado e sentido, no século XIX, e sobretudo início do século
XX, momento em que também frequentemente se destaca a existência de uma cisão entre os
discursos filosóficos da tradição fenomenológica-hermenêutica e a tradição representada pela
filosofia analítica de origem anglo-saxônica, muito embora ambas as tradições partilhem da
preocupação com o mesmo problema, a questão da significação, para a qual cada uma conferirá
tratamento distinto, mas coerente à lógica interna dos problemas filosóficos.
Ainda no que tange a esse terceiro núcleo de problemas da filosofia mais voltado à
investigação do sentido, é possível reconstruir sua trajetória apontando que mais da metade do
percurso traçado pela filosofia ocidental, da Antiguidade Clássica até a segunda metade do
século XIX, se constituiu pelo esforço dos pensadores em atender à demanda humana por
sentido, seja sobre o homem ou sobre o mundo, oferecendo os resultados dessas investigações,
entretanto, como se constituíssem caminhos direto para a “Verdade”.
“Para pensadores como o francês Gilles Deleuze, a própria palavra sentido se tornou
suspeita (...) A própria ideia de interpretação é atacada: as coisas são o que são, não
são signos enigmáticos de outras coisas. O que vemos é tudo o que há. Sentido e
interpretação pressupõem mensagens e mecanismos recônditos e profundezas. Aos
ouvidos pós-modernos, isso soa como metafísica obsoleta. O mesmo vale para o eu,
que deixa de ser uma questão de dobras secretas e profundezas internas e se expõe à
vista, uma rede descentrada em lugar de um espírito elusivo”. (EAGLETON, 2021,
p.32).
Além dessa espécie de crise e esgarçamento do conceito de verdade, que acaba por
colocar em xeque a possibilidade do alcance de um sentido para a experiência universal e
humana, como salienta o crítico literário Terry Eagleton, a pergunta “qual é o sentido da vida?”
tende a gerar uma certa estranheza e ser relegada a posição de um pseudoproblema, pois possui
uma natureza diversa às perguntas cujas respostas podem ser encontradas em algo existente na
realidade positiva ou para algo concreto e objetivo que possa ser oferecido em resposta, como
por exemplo, “qual a capital do Brasil?”. Além disso, de forma bem-humorada aponta: “É
preciso reconhecer que ele [o sentido da vida] tem algo absurdamente exagerado, em contraste
com os pequenos objetos de que acadêmicos como eu costumam se ocupar” (Eagleton, 2021,
p.11).
Fato é que a ausência de uma resposta objetiva à pergunta pelo sentido da vida faz com
que esse tipo de investigação seja, com frequência, invalidado ou tenha sua importância
descartada por tradições filosóficas mais canônicas, sobretudo a derivada da tradição lógico-
hermenêutica, de origem anglicana, que entende ter problemas mais prementes para investigar.
Há uma boa razão para que alguns pensadores considerem essa pergunta [qual o
sentido da vida?] como inócua e carente de sentido. Pois ela é um bom exemplo de
como o sentido pode ser uma questão de linguagem e não de objetos. Refere-se ao
modo como falamos sobre as coisas, não a algo que pertença a elas. (...) podemos dar
um sentido à vida falando sobre ela, mas ela não tem, em si mesma, nenhum sentido,
não mais do que uma nuvem. Não teria sentido, por exemplo, dizer que uma nuvem é
verdadeira ou falsa, pois verdade e falsidade são funções de proposições humanas
sobre nuvens” (Eagleton, 2021, p. 13-14).
Mas para além de não ter deixado de ser pertinente para outra parcela considerável da
filosofia, sobretudo na segunda metade do século XX, é por estarmos, desde o início, buscando
destacar a importância do ato de investigar em detrimento dos resultados obtidos, que a
pergunta pelo sentido da vida se mostrou o recorte mais adequado para demonstrar que a
investigação em si pode valer mais pelo percurso do que pela resposta encontrada, até porque
para a pergunta sobre o sentido da vida não há resposta, ao menos não uma unânime e definitiva.
Aqui, Eagleton, mais uma vez, é lapidar:
Nada disso, por certo, nos aproxima minimamente do sentido da vida. Mas vale a pena
examinar a questão, pois sua natureza é importante para que se determine o que
poderia ser uma resposta a ela. Na verdade, difíceis são as questões, não as respostas.
Sabe-se que tipo de resposta as questões tolas costumam receber. Formular uma
questão certeira pode abrir horizontes novos ao conhecimento, com outras questões
vitais em seu ensejo. Filósofos de propensão dita hermenêutica veem a realidade como
tudo o que oferece resposta a uma questão. Mas a realidade, como um criminoso
experiente, só responde quando é interrogada, e o faz de acordo com os
questionamentos que lhe são feitos. (...) as questões não surgem num vácuo. E, se não
trazem respostas amarradas a elas, como se fossem caudas, sugerem o tipo de resposta
mais pertinente, e apontam para diferentes direções, indicando uma solução. Não seria
difícil escrever a história do conhecimento em termos do tipo de questão que os
homens e as mulheres julgaram possível ou necessário formular. Nem toda questão
pode ser feita em todos os tempos. Rembrandt não poderia se perguntar se a fotografia
tornou redundante a pintura realista.
Isso não quer dizer que todas as questões tenham respostas. Tendemos a pressupor
que, se há problema, deve haver solução, assim como temos o estranho hábito de
imaginar que coisas fragmentadas poderiam ser reunidas. Mas há muitos problemas
para os quais provavelmente jamais encontraremos soluções, e há muitas questões que
permanecerão sem resposta (EAGLETON, 2021, p.20-21).
angústia e contingência passam a ser mais recorrentes, a partir da segunda metade do século
XX, sobretudo durante e pós Segunda Guerra Mundial.
Isto porque, quando a ênfase da investigação recai sobre o sentido da existência não é
para uma natureza externa que a busca por uma resposta satisfatória se dirige, mas para os
pressupostos e atributos que compõem ou fazem parte da existência humana e, portanto, das
condições ontológicas do indivíduo que se debruça sobre si mesmo e submete a própria
existência a um minucioso exame.
Embora tenha assumido diferentes abordagens, ao longo do tempo, perguntas como: (i)
quem eu sou?; ii) por que sou assim?; iii) em que medida é possível modificar/atualizar a
existência concreta a partir de interferências externas?; iv) quais seriam os elementos gerais da
37
condição humana?; (iv) e por conseguinte, se há, ou não, algo efetivamente que possa ser
denominado ou atribuído como uma natureza ou condição humana?, e se houver, sobre quais
pressupostos estaria assentada?; E, sobretudo; (v) qual a finalidade/o sentido que se deve
atribuir à existência humana?; são perguntas que perpassam toda a história da filosofia,
mantendo como traço geral a investigação dos elementos constitutivos do ente humano.
Já havíamos frisado que, em certa medida, a história da filosofia poderia ser resumida
como uma longa e polifônica tentativa em encontrar o sentido do mundo ou do próprio homem.
Com relação à expectativa em obter respostas satisfatórias à demanda por sentido existencial é
possível divisar dois grandes grupos: as tradições filosóficas cristãs e as tradições pré-cristãs
ou não-cristãs. O traço distintivo entre ambas é marcado pelo apoio ou recusa de Deus, ou
qualquer outra causa transcendente, como meio para alcançar o sentido buscado.
Com relação à tradição cristã do sentido, Eagleton faz um aparte, bastante pertinente, ao
considerar que até mesmo o registro da pergunta sobre o sentido da vida para essa parcela da
tradição filosófica é bastante diferente da parcela que rejeita o alcance de sentido com apoio
num transcendente:
A questão “Qual o sentido da vida?” teria parecido a um hebreu antigo tão excêntrica
quanto a questão “Você acredita em Deus?”. Em nossos dias, essa questão equivale,
para a maioria das pessoas, incluindo parte das religiosas, a questões como “Você
acredita em Papai Noel?”, ou “Você acredita em abduções por extraterrestres?”. Desse
ponto de vista, há toda uma gama de seres que podem ou não existir, desde Deus até
os alienígenas, passando pelo Abominável Homem das Neves e o monstro do Lago
Ness. Não há evidências definitivas, e, por isso, as opiniões se dividem. Já para um
antigo Hebreu, a questão “Você acredita em Deus?” significava outra coisa. Pois como
a presença de Jeová era declarada pela terra e pelos céus, a questão só poderia
significar “Você tem fé em Jeová?”. Era uma questão prática, não um problema
intelectual, versava sobre uma relação, não sobre uma opinião.
(...) A ideia [para os hebreus] de que uma vida poderia ter um sentido peculiar,
diferente do sentido da vida de outra pessoa, seria, provavelmente, rejeitada por
completo. O sentido da vida de cada um consistia na função que ela desempenhava
num todo maior. Fora desse significado, o indivíduo era como um significante vazio.
O significado original da palavra indivíduo é: indivisível ou inseparável de. (Eagleton,
2021, p.30/31).
38
Nem por isso deve se considerar que a existência não era de algum modo
problematizável para essa parcela da tradição que apontava em Deus o sentido de sua existência:
Sentir que sua própria vida é uma função de um todo maior não impede que se tenha
robusta consciência de si mesmo, pois o que está em questão é o sentido da
individualidade, não sua realidade. Isso não quer dizer que povos pré-modernos não
se perguntassem quem são ou o que estariam fazendo neste mundo, mas apenas que
essa questão não parece tê-los perturbado tanto quanto ela perturbou Albert Camus ou
o jovem T.S. Eliot; o que se explica, em boa medida, pela fé religiosa. (EAGLETON,
2021, p.31).
Ainda dentro das tradições que aboliram o apoio numa causa transcendente para a busca
de sentido, é possível observar outras direções. Para alguns, a ausência de um todo significativo
fornecido pelo mundo implica num dever aos homens de convergirem para a criação do sentido
que o mundo não exibe por si, a responsabilidade de construir um sentido é, então,
exclusivamente humana. Esta era a direção apontada, por exemplo, por Nietzsche, para quem
se fazia necessária a destruição e rompimento com todas as concepções anteriormente vigentes,
sobretudo as correlatas à moralidade cristã, que criticava e apontava como responsável por criar
uma realidade suprassensível como promessa de consolo e unidade.
inaugurada por ele, a busca por sentido existencial é central na sua obra, constituindo o ponto
de partida para a análise dos caracteres da existência humana.
Mas mais do que ocupar o centro de seu pensamento, o que Camus enfatiza é a
impossibilidade absoluta de encontrar um sentido para a existência, apesar da busca ser o
propulsor de toda investigação humana, a condição humana é, por definição, incapaz de
encontrar um sentido para si própria e, ao mesmo tempo, a despeito dessa impossibilidade, essa
subjetividade está condenada a buscar incessantemente o sentido de que é carente.
Para Camus, a busca por sentido atende a um desejo inafastável, inerente à condição
humana, por clareza e unidade. Em outras palavras, o ente humano busca um sentido em si e
no mundo a fim de unificar-se, aderir a ele em uma unidade, como forma de pacificação.
Alcançar um sentido significa, portanto, o mesmo que conseguir organizar o caos da
experiência humana.
Embora Camus conceda a inafastabilidade do desejo humano por clareza e unidade, ele
conclui que a pretensão humana se choca contra um mundo fechado ao apelo humano, recaindo
no vazio. Assim, nenhum movimento da razão humana é capaz de alcançar um todo
significativo que atenda a demanda por unidade e sentido.
É nesse sentido que o autor retoma a figura mitológica de Sísifo, que segundo conta a
mitologia grega, depois de tentar fugir da morte e enganar Zeus, foi condenado a rolar
eternamente uma pedra gigantesca montanha acima, para ao atingir o topo, depois de muito
esforço, vê-la rolar montanha abaixo para o ponto de partida, reiniciando-se, assim, a sua
40
Mesmo depois de assinalar a inutilidade do esforço na busca por sentido para a própria
existência, Camus também enfatiza que em se tratando de um movimento inderrogável, do qual
não se consegue abdicar, não resta outra saída senão enxergar alguma felicidade e beleza na
latência dessa busca vital e abraçá-la.
O quê Camus de alguma maneira ensina com essa sua visão e que parece ser bastante
pertinente para o que se vem buscando propor desde o início, é que mesmo diante da
impossibilidade de obtenção de uma resposta, a exploração e investigação, seja literária,
filosófica ou existencial, pode ser extremamente valiosa em si mesma e pode permanecer em
aberto e sem solução sem que sua premência deixe de ser pertinente. Ou como bem sintetiza
Eagleton, mais uma vez: “Para os que ardentemente buscam pelo sentido da vida, a questão é
tudo o que importa”. (Eagleton, 2021, p.45).
Por que a vida teria um sentido único? Assim como podemos atribuir à vida muitos
sentidos diferentes, é possível que ela tenha variados sentidos intrínsecos, se é que
tem algum. Talvez operem nela muitos diferentes propósitos, alguns deles
contraditórios entre si. Ou talvez a vida mude de sentido de tempos em tempos, como
fazemos. Por que supor que o que é dado ou intrínseco seria estável e invariável? E se
a vida tiver um propósito, mas tal que não coadune, em absoluto, com os nossos
projetos? Pode ser que a vida tenha um sentido, mas que a maioria das mulheres e
homens que um dia existiram tenha se enganado a respeito. (EAGLETON, 2021,
p.47).
25
CAMUS, A. O mito de Sísifo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2018, p.141.
41
“O sentido da vida”, escrito por Oscar Brenifier e ilustrado por Jacques Després, é um
dos títulos da coleção “filô ideias”, publicado no Brasil pela editora Autêntica. Cada título da
série busca trazer proposições contrastantes acerca de alguns temas nucleares para a filosofia,
voltado para o público mais jovem. Integram a coleção títulos como: “O amor e a amizade”;
“O bem, o mal”; “A questão de Deus”, “O livro dos grandes opostos psicológicos” e o carro-
chefe da série: “O livro dos grandes opostos filosóficos”.
O projeto gráfico da coleção lhe confere uma identidade visual consistente e coerente
com a proposta de Brenifier em demonstrar que há muitas e distintas maneiras de se pensar
conceitos amplos e abstratos, tão caros à filosofia. Para atender essa finalidade, os livros
possuem uma determinada estrutura na apresentação textual e visual do tema explorado.
26
La philosophie, une école de liberté (Filosofia, uma escola de liberdade)
27
Mais informações podem ser encontradas no site do autor: www.brenifier.com. Acessado em 20/08/2022.
42
A título de exemplo, destacamos abaixo as páginas iniciais de dois dos livros da coleção:
“A questão de Deus” e “O sentido da vida”. Observa-se que até mesmo a estrutura frasal
utilizada para a inserção do tópico é a mesma nos dois exemplos ilustrados. As palavras
“opostas”, em referência às concepções ou ideias, e o tema, enunciado em seguida, também
aparecem em negrito e separados, em destaque, na segunda linha, em ambos os livros:
Para além do pareamento do texto, em afirmações opostas entre si, a cada dupla de
páginas, o efeito da contradição é complementado e aprofundado pelas ilustrações de Jacques
Deprés, num verdadeiro trabalho de coautoria, onde as imagens não só complementam, mas
também adicionam camadas de sentido ao texto e lhe conferem, de certa maneira, um fio
condutor, já que as obras não apresentam uma estrutura narrativa, ou seja, não há uma história
sendo contada, mas a constante oposição e tentativa de síntese entre ideias díspares. Aqui, mais
uma vez, considera-se pertinente o exemplo coletado do livro “A questão de Deus”:
Em todas as obras da coleção, como pode se observar, o texto tem seu sentido
potencializado pelas imagens virtuais de pequenos bonecos com feições humanas, muito
semelhantes às figuras colecionáveis28, com a cabeça mais avantajada em comparação ao corpo
pequeno e esguio, e olhos maiores e mais expressivos do que o restante da expressão facial.
28
Estou me referindo aos Pops, as figuras de vinil colecionáveis da marca Funko, ou mais conhecidos como Funko Pop.
44
Todas essas considerações podem ser atribuíveis à coleção “filô ideias” como um todo,
tratando-se de elementos gerais presentes em todas as obras, o que reforça a unidade do projeto
gráfico e coerência do projeto.
Apesar de contrapor ideias opostas acerca do sentido da vida, não há qualquer sugestão,
nem pelo texto, nem pelas imagens, de discórdia ou disputa entre as diferentes ideias
contrapostas. As diferentes concepções de sentido da vida são apresentadas sempre num mesmo
plano, nenhuma das ideias é destacada como proeminente ou mais relevante do que outra,
também não há qualquer intenção em fazer prevalecer uma ou algumas delas em detrimento
das demais, o texto não toma partido ou advoga em defesa de um determinado registro ou visão
do sentido de vida, e as imagens sugerem uma coexistência harmônica e pacífica entre as
diferentes visões representadas.
É possível observar que cada dupla de páginas atua no interior da obra como um
microcosmo do tema abordado, possuindo valor autodelimitado em si mesma, de modo que
cada um dos doze pares de ideias contrapostos apresenta uma unidade de sentido que poderia
ter existência autônoma e apartada da obra, por exaurir a finalidade de apresentar a oposição de
ideias em torno da questão do sentido de vida. Cada par de afirmações opostas poderia,
igualmente, ser reagrupado ou reordenado em outra ordem de exposição, considerada a ausência
de estrutura narrativa da obra, e ainda assim preservar a intenção nuclear de apresentar visões
contrastantes do sentido da vida.
45
Importante dizer que embora as imagens amplifiquem a oposição das ideias no texto, as
ações executadas pelos bonecos-personagens não são necessariamente opostas entre si, tal
como no texto. Não se trata de mostrar um personagem subindo uma escada, por exemplo,
enquanto outro desce, como seria presumível e até banal. Ao contrário, no mais das vezes, os
personagens ocupam as duplas de páginas compartilhando tanto o cenário quanto a ação, eles
estão, por exemplo, sentados em carteiras escolares, ou olhando estrelas. As atividades
desempenhadas pelos personagens conseguem enfatizar a existência de percepções diferentes a
partir do mesmo objeto em jogo, o que amplifica como resultado, a um só tempo, a percepção
da ausência de um consenso para a ideia explicitada no texto, mas salientando, sobretudo, a
possibilidade de harmonia entre duas posições díspares, alcançada pelas imagens.
Também não é possível dizer que a ação desempenhada pelos personagens é sugerida
ou acompanha o texto, pois, como já se disse, não há uma história sendo narrada, mas
proposições acerca de um conceito que vão sendo contrapostas e têm seu sentido ampliado pela
ação e expressão dos bonecos na ilustração, motivo pelo qual é possível sustentar que são os
personagens que conferem unidade e uma certa linearidade ao texto.
47
O grande mérito de O sentido da vida é manter em aberto a questão que o norteia. Não
há sequer a sugestão de uma solução possível ou simplificação da busca, as proposições
conflitantes entre si, além de assinalarem a impossibilidade de um consenso e termo comum
que garanta a resposta, apontam para a liberdade individual de escolha quanto aos diferentes
pontos de vista a partir dos quais é possível acessar e mobilizar a própria busca por sentido
pessoal, mesmo as afirmações quando consideradas individualmente não são apresentadas
como convicções estáticas e absolutas, no final das contas, apenas menciona-se haver pessoas
que pensam de determinada forma enquanto outras pensam de forma oposta, o questionamento,
entretanto, atravessa a todos de modo indistinto. A pergunta “E você?”, feita na dupla final de
páginas, com todos os personagens voltados com suas expressões para a frente, propõe ao leitor
o compartilhamento da pergunta feita por todos os personagens. É a hora do leitor debruçar-se
para dentro de si mesmo.
Outro ponto digno de nota, é que o livro não subestima seu leitor, embora de leitura
bastante acessível, as camadas de sentido da obra, amplificadas pelo casamento com as
imagens, tornam o livro pertinente e interessante não apenas para as crianças menores, mas
também para leitores autônomos e até para o público jovem, mostrando que o sentido
existencial pode ser objeto de questionamento desde muito cedo e ainda se manter relevante em
qualquer idade, já que a questão perpassa o indivíduo de forma atemporal e o livro não
encapsula a questão tornando-a a restrita a apenas uma faixa etária.
Também é preciso salientar o impecável trabalho de síntese operada por Brenifier, sem
que haja qualquer menção a pensadores ou correntes filosóficas, é possível observar que as
proposições sobre o sentido da existência traduzem correntes do pensamento filosófico sobre o
assunto, tais como os niilistas que defendem não haver significado algum, os utilitaristas que
acreditam que a vida deve ser proveitosa e útil, traduzindo-se em facilidades e benefícios, há
também reminiscências ao pensamento clássico que associava à finalidade da vida ao encontro
da felicidade, e ainda a que defendia o encontro da felicidade desde que derivada de muito
sacrifício e esforço.
48
Tão impecável síntese pressupõe, por sua vez, um grande trabalho prévio de
investigação filosófica, e a crítica que pode ser feita à obra repousa justamente na ausência de
compartilhamento do percurso investigativo do autor: é perfeitamente possível ler e
compreender o texto sem conhecimento prévio algum das diferentes correntes filosóficas sobre
o assunto - o que sem dúvida é um dos muitos méritos do livro - , porém, não há um estímulo
a conhecer o percurso traçado para alcançar as proposições feitas sobre o sentido da vida.
Embora o leitor seja convidado, ao final, a interrogar-se sobre o sentido da própria existência,
o percurso do autor não é compartilhado, o leitor é um espectador das dúvidas e tentativas de
definição dos muitos personagens do livro.
Por fim, é possível, talvez, questionar o caráter literário do texto. Decerto, a obra não
pode ser considerada como um livro informativo, pois embora apresente proposições sobre o
sentido da vida, como se disse há pouco, não há nenhuma indicação das diferentes tradições
filosóficas que o autor reconstruiu para apresentar suas proposições.
Por outro lado, não é possível restringi-la como literatura infantil, o objetivo da obra
parecer ser o de mostrar aos leitores – em sua diversidade, inclusive etária - as múltiplas
possibilidades de abordagem a um mesmo problema filosófico, cuja investigação está
permanentemente em aberto e jamais se esgota, podendo ser retomada e atualizada a qualquer
tempo.
Por se tratar de um livro em que tanto a autora, Olga Tokarczuk, quanto à casa editorial,
não são propriamente voltadas para o público infantil, considera-se oportuno relembrar as
palavras de María Teresa Andruetto (2012, 43) ao falar sobre a seleção de livros para crianças
e jovens:
A Alma Perdida pode, certamente, ser apontado como um exemplo de livro escrito por
alguém que simplesmente o escreveu e cujo resultado pode ser lido desde o leitor mais jovem
até o adulto, como menciona Andruetto acima.
Com efeito, seja pela profundidade da metáfora trabalhada pelo texto, seja pelo
acréscimo de construção narrativa propiciado pelas ilustrações, a obra abre-se a múltiplas
possibilidades de experiência leitora e níveis de análise, tendo a proeza de ser acessível para o
leitor de qualquer idade, e sem jamais subestimá-lo.
O livro demanda um olhar curioso e atento para os detalhes, exigindo uma constante
retomada, um “ir além e voltar” por entre as páginas, a fim de possibilitar a observação mais
acurada e a certificação da existência de alguns elementos que, num primeiro momento, podem
parecer arbitrários ou contingenciais à obra, e até por isso, podem passar despercebidos, mas
que, na verdade, são indispensáveis à construção e amplificação do sentido da narrativa, como,
por exemplo, a presença das plantas ao longo de todo o livro: Observados isoladamente, os
vasos com plantas, presente na maior parte das páginas, podem não representar nada para além
de sua presença, mas ao longo da narrativa auxiliam na construção do sentido, potencializam o
29
A Todavia é uma casa editorial com cinco anos de trajetória e diversas publicações voltadas sobretudo para literatura
contemporânea, sendo a responsável pela inserção no mercado editorial brasileiro de grandes obras com apuro literário mas
que, ao mesmo tempo, fogem do “mainstream”, sendo notadamente voltada para o público adulto, não se tratando de uma
editora especializada e voltada ao público infantil. “A alma perdida”, apesar de classificada como literatura infantil e juvenil
não parece ter apenas um público-alvo específico, sendo pertinente e atrativo para qualquer pessoa, motivo pelo qual a presença
do livro no catálogo da Todavia não destoa de seu perfil editorial.
50
efeito da passagem do tempo, e também fornecem uma chave interpretativa para o cultivo da
espera, colocado em jogo pela narrativa.
guardada dentro de um caderno ou de uma pasta. A foto é de uma praça, onde se vê casas e a
torre de uma igreja. A reprodução da imagem abaixo é importante, pois como se observará mais
adiante, as imagens são retomadas ao final com acréscimo de novos elementos.
(Figura 1 – p.2/ 3) 30
As três duplas de páginas seguintes, que antecedem o início do texto, possuem um tom
diferente do miolo, são menos amareladas que o restante, e mais acinzentadas e azuladas,
passando a impressão de serem fotografias, ou desenhos, impressos num papel diferente ao do
caderno que se seguirá e onde será narrada a história.
Depois das páginas com arabescos (Figura 1), as dez páginas seguintes trazem uma
sequência de imagens aéreas, como se fossem fotografias em preto e branco, de um campo
coberto por neve, percepção ampliada pela contraposição do espaço vazio em branco, com as
árvores desenhadas em preto, assim como as silhuetas de pessoas agasalhadas andando e
deixando pegadas pelo caminho.
30
As imagens foram copiadas da versão em e-book do livro, mas a análise foi feita a partir da edição física. Ambas as versões
não possuem páginas numeradas. A paginação colocada abaixo das figuras foi feita manualmente a fim de facilitar a exposição
da análise.
52
página, onde é possível observar um agrupamento maior de pessoas. A imagem sugere que o
personagem, além de se deslocar solitariamente, está deslocado das interações sociais retratadas
na margem oposta da página:
(Figura 2 – p.4/5)
A frase será retomada na narrativa e aponta para uma relação importante e central da
trama: a pressa das pessoas como o fator desencadeante da perda da alma, já introduzindo a
ideia de que as almas são mais lentas, “atrasadas” e, por isso, podem se desgarrar e se perder.
31
TOKARCZUK e CONCEJO, 2017, p.6/7.
53
(Figura 3 – p.6/7)
(Figura 4 – p.8/ 9) 32
32
Na versão digital, a ilustração deixa evidente uma faixa de iluminação vertical que atravessa o meio da folha para destacar
especialmente o banco de madeira vazio. Aspecto que na versão física do mesmo livro passa despercebido, pois o contraste das
cores no papel não ficou tão evidente. Além disso, a faixa mais clara, na versão física, ocupa o meio onde o livro é encadernado
e grampeado, o que dificulta sua adequada visualização. O destaque conferido ao banco, embora prejudicado na versão física,
não pode ser considerado uma circunstância acidental, pois o mesmo banco aparece outras vezes ao longo da narrativa.
54
A seguir (Figura 5), a imagem deixa de ser aérea e enfatizar o campo aberto, abandona
a perspectiva de maior amplitude, e passa a mostrar a cena de um ângulo ainda mais próximo,
como se o leitor-observador testemunhasse a cena in loco. No banco de madeira, agora se vê
quatro pessoas sentadas em duas duplas, cada uma ocupando uma extremidade.
(Figura 5 – p. 10/11)
A dupla de páginas seguinte apresenta uma continuação da imagem acima, onde ao lado
se vê o verso amarelado de um envelope, sendo possível deduzir se tratar do mesmo, onde
páginas atrás, havia o selo (Figura 3). Junto a ele, nota-se a presença de mais uma fotografia,
deitada, de um campo onde se vislumbram, sem muitos detalhes, duas silhuetas humanas.
Em seguida, (Figura 6), o tom acinzentado das fotografias dá lugar ao amarelado, nota-
se ao fundo o quadriculado que estará presente ao longo das demais páginas, reforçando a
sensação de estarmos lendo um caderno de memórias de alguém, não necessariamente o
personagem principal.
55
À esquerda, nota-se o interior de um café ou restaurante, onde uma jovem segura uma
xícara, enquanto numa mesa ao fundo, um rapaz está sentado com o olhar distante e vago. Na
página à direita, concentra-se quase que a integralidade do texto da obra que narra, em fórmula
enunciativa típica ao dos contos de fadas, iniciado por “era uma vez”, a história de João, um
homem que trabalhava com muita pressa e sem descanso até que em algum momento,
indeterminável, perde sua alma em algum lugar distante.
Sem a alma, a vida dele até que era boa – ele dormia, comia, trabalhava, dirigia um
carro e ainda jogava tênis. Mas, às vezes, ele tinha a impressão de que tudo a sua volta
ficara plano e sem graça, como se ele se movimentasse numa folha quadriculada e
vazia de um caderno de matemática, coberta por quadradinhos iguais e onipresentes
(TOKARCZUK e CONCEJO, 2017, p.15)
A médica o orienta a parar em algum lugar para esperar que sua alma o alcance
novamente e regresse, João segue a orientação e aluga uma casa nas redondezas. As páginas
seguintes documentam a espera de João. A primeira dupla de páginas, mantém o quadriculado
56
de fundo do caderno e mostra um lugar cercado por bastante vegetação, o tom carregado do
grafite confere um ar de lugar abandonado e inóspito, assim como João desabitado de sua alma.
Ao fundo, na página à direita, é possível enxergar a casa alugada para aguardar o regresso de
sua alma. A percepção de se tratar do lugar encontrado para realizar a espera é enfatizada pela
frase escrita no rodapé: “Precisa achar um lugar só para si .... E aguardar...”.
Também é preciso salientar que, pela primeira vez, passa-se a notar de forma bastante
discreta, nas extremidades posteriores das páginas, carimbos com números, algumas vezes
entrecortados, como na página abaixo, onde se nota no topo superior à esquerda o número “34”
e na página ao lado, o número entrecortado, possivelmente “35” (Figura 7).
Nas páginas seguintes (Figura 8), à esquerda, observa-se um banco vazio, que pode ou
não estar no mesmo local das fotografias mostradas no início (Figuras 4 e 5), porém, em uma
época e estação do ano certamente diferentes, pois não há neve e a copa das árvores estão cheias
e carregada de folhas, o que já denuncia uma passagem de tempo das primeiras fotos para o
momento retratado. À direita, (Figura 8), é possível observar a silhueta de um homem com
cabelo curto, presumivelmente João, atrás de uma porta com vidro adornados. Nota-se pela
posição arqueada da maçaneta que a porta está sendo aberta pelo lado oposto da posição do
observador. Dessa vez, o carimbo numérico é só observável no topo direito da folha, onde se lê
“39”. Aqui, já é possível especular se os números têm alguma relação com o tempo de espera.
Os tons acentuados de cinza predominam na dupla de páginas, há pouca luz nas cenas. No canto
inferior direito há de novo a expressão: “E aguardar...”, enfatizando a espera de João.
57
(Figura 8 – p.18/19)
A partir da dupla de páginas seguinte (Figura 9,10,11 e 12), o que se nota são eventos
que se desenrolam paralelamente, à esquerda descrevem o percurso de uma criança – que nas
páginas seguintes se descobrirá se tratar da alma perdida – e à direita, João. As imagens à
esquerda preenchem a página toda, e são inicialmente bem escuras, carregadas pelo grafite da
ilustração, sugerindo caminhos áridos e densos por onde a criança passa, enquanto à direita, os
desenhos ocupam apenas o centro da página, deixando bastante espaço vazio nas bordas e
margens.
Nas cenas seguintes, o ângulo de visão do leitor sobre as páginas à direita corresponde
ao de um espectador posicionado atrás de João, que geralmente aparece de costas para o leitor,
com algumas variações discretas de ação e posição. Com o avançar das páginas, a princípio é
possível ver João em pé diante de uma mesa e em frente a uma cadeira servindo-se de um café
ou chá, em seguida, observa-se a mesa e cadeira vazias sem a presença de João e com alguns
animais no entorno, mais adiante, João passa a aparecer sentado na cadeira, de frente para a
mesa, voltado para à janela que tem à sua frente e de costas para o espectador/leitor, posição
que ocupa nas páginas seguintes, observáveis sempre pelo mesmo ângulo, ficando sempre
patente a espera e a passagem do tempo que se insinua principalmente pelo avanço progressivo
do comprimento dos cabelos do personagem e o crescimento das plantas que têm sobre a mesa,
que também sofrem alteração de lugar, crescimento e posição. A alternância entre a ausência e
presença de alguns objetos e animais sugere a ideia de que a espera não é completamente
estática, mas é lenta e gradual e, por isso, sofre poucas variações.
À esquerda, por sua vez, paralelamente, o que se vê são os lugares por onde a criança
anda à procura de João. Ao contrário das imagens à direita, que sugerem a posição de espera,
58
quase que estática de João, cuja passagem do tempo só é notada por detalhes como o
crescimento dos cabelos do personagem e das plantas, as imagens da criança operam um
contraste e sugerem movimento e deslocamento. Não vemos a criança sempre na mesma
posição ou sob o mesmo ângulo. Em alguns momentos o ângulo de visão oferecido pela imagem
ao leitor se situa atrás da criança, mas em outras a vemos de lado, quase que de frente, tomando
sorvete (Figura 10), por exemplo, ou brincando no que parece ser uma praia (Figura 12), já em
outras a vemos bem no canto da página, numa estrada, observando casais dançarem no que
parece ser uma festa (Figura 11).
(Figura 9 – p.20/21)
59
(Figura 10 – p.22/23)
(Figura 12 – p.26/27)
60
Na sequência subsequente, pela primeira vez, são inseridas, de modo mais pronunciado,
outras cores, para além do preto e do branco, sugerindo a presença de luz, na paisagem da janela
de trem para onde a criança dirige o olhar (Figura 13).
(Figura 13 – p.28/29)
33
(Figura 14 – p.30/31)
33
A diferença entre os tons da página, mais acinzentado à esquerda e mais próximo à sépia à direita não se notam com tanta
intensidade na versão física do livro, mas apenas na versão digital.
34
TOKARCZUK e CONCEJO, 2017, p.32/33.
62
(Figura 15 – p.32/33)
As páginas seguintes ganham mais cores à medida que o reencontro entre a alma, antes
perdida e agora reencontrada, e João se aprofunda, seus rostos são colocados lado a lado.
(Figura 16 – p.34/35)
Na página seguinte (Figura 17), a fotografia do banco onde, no início, havia duas duplas
sentadas reaparece (Figura 5), mas dessa vez, parece haver uma reconstituição do momento
passado onde as duas crianças estão sentadas lado a lado. Observa-se, ainda que a dupla da
extremidade direita, que não se consegue precisar bem se tratar de duas crianças, uma no colo
da outra, ou de um adulto segurando uma criança, aparece mais apagada, como se a
reconstituição do caminho feito até aqui dissesse mais a respeito da dupla da outra extremidade,
à esquerda da primeira fotografia (Figura 5), sentadas lado a lado.
63
(Figura 18 – p.38/39)
A imagem retrata o interior da casa de João. A alma de João, permanece sendo a mesma
criança, sentada à sua esquerda, com o mesmo casaco quadriculado das fotografias anteriores,
só que agora em cores, João amadureceu em comparação à imagem do garoto da foto anterior,
mas está, da mesma forma, sentado ao lado da criança – sua alma – ambos olham um para o
outro. A dupla de páginas representa o interior da sala de João, cheia de plantas, há um gato
deitado no tapete, ambos estão sentados e ocupam a página à esquerda, João é deslocado da
página direita e aparece, pela primeira vez, à esquerda, ao lado de sua alma reencontrada, como
se tivesse conseguido fazer também uma travessia.
Da mesma maneira que começou como um conto de fadas, pela expressão “era uma
vez”, a última página da narrativa escrita anuncia que ambos “viveram felizes pra sempre”,
João, porém, teve de se atentar para não fazer nada numa velocidade que sua alma não pudesse
acompanhar (Figura 19)
As páginas finais e seguintes mostram a parte externa da casa de João com muita
vegetação e bastante coloridas.
65
(Figura 20 – p.42/43)
(Figura 21 – p.44/45)
A página final também retoma as páginas iniciais adornadas, mas dessa vez também são
invadidas pelo colorido (Figura22), denotando que o reencontro com a alma resgatou João de
66
Como resultado, a análise do conjunto de A Alma perdida revela que nenhuma escolha
para a composição da obra é arbitrária ou fruto do acaso, o avanço das páginas exige o retorno
constante do leitor ao ponto de partida, ou das páginas anteriores em que se encontra, para se
certificar de que está na trilha correta sugerida para acompanhar a narrativa.
Já em A Alma Perdida cada dupla de páginas tem um papel de adicionar elementos que
vão se adensando e construindo a narrativa, à medida que faz avançar mais um passo do
caminho da alma em contraste à ação do tempo incidente sobre João, enquanto aguarda o
reencontro. Embora o efeito desse contraste seja facilmente apreendido, ainda que separado de
seu todo, as duplas de páginas de A Alma perdida não poderiam ser reagrupadas aleatoriamente,
como em O sentido da vida, sem prejuízo da compreensão de seu conjunto, pois não têm função
autônoma e tampouco poderiam ser consideradas como um microcosmo em si mesmas, pois
além de terem o papel de fazerem avançar a narrativa, cada dupla de páginas deixa em aberto a
construção do sentido da narrativa, construído progressivamente, ao mesmo tempo em que
estende um convite à retomada do percurso, voltando-se às páginas anteriores, sempre que
necessário.
ao leitor desde o início (Figura 5 – p.10/11). O leitor que acompanha a narrativa, ao alcançar
essa etapa (Figura 17 – p.36/37), ao olhar para o banco com as silhuetas de contornos
ligeiramente apagados, também é convidado a fazer o movimento proposto pela narrativa e a
rememorar a imagem oferecida a ele lá no início, do banco com as crianças sentadas lado a lado
(Figura 5 – p.10/11). E se ainda assim, o leitor não fizer ou aceitar o convite para rememorar,
ou voltar às páginas anteriores para conferir os outros momentos em que a visão do banco foi
oferecida (Figuras 5 e 8), a página seguinte irá reavivar a memória, inclusive com o uso das
cores, ao reencenar as posições dos dois personagens, a alma/criança e João, sentados lado a
lado, em posturas idênticas a que estavam no banco (Figura 5 – p.10/11), só que agora na sala
de João (Figura 18 – p.38/39).
Ao mesmo tempo, muitos dos elementos constantes nas imagens, quando observados
isoladamente fornecem pistas ao leitor, e permitem um avançar paulatino na narrativa, como se
estivéssemos, a um só tempo, caminhando junto com a alma/criança e aguardando seu retorno
junto de João. De qualquer maneira, em conjunto, ou isoladamente, cada experiência de
retomada a qualquer dupla de páginas é reveladora de novos detalhes que não são aleatórios,
pois aprofundam a percepção do caminho percorrido, seja o efetivamente tomado pela alma,
seja o caminho interior, ao qual não temos acesso, de João, enquanto aguarda.
Aliás, é possível dizer que A Alma perdida é um livro que pode ser descrito por meio de
muitas metáforas ambulatórias e pedestres, por ser recorrente, de forma ilustrativa ou figurada,
as noções de estrada, caminho, percurso, deslocamento, viagem, etc. Em linhas gerais, é
possível sintetizar toda a trama de A Alma perdida como a de um longo caminho percorrido
pela alma até alcançar seu titular, do qual havia se desgarrado e também pressupor todo um
percurso interno sustentado por João e que o permite, inclusive, atravessar uma margem da
página à outra, como vimos na cena, onde ambos, depois do encontro, estão sentados lado a
lado, na sala de João (Figura 18 – páginas 38/39).
Muitas outras perguntas podem ser feitas e são deixadas em aberto, o casamento entre
texto e imagem inflama a curiosidade do leitor e revela uma relação especial da obra com o
silêncio, deixando muita coisa por dizer e abrindo-se, por isso, a múltiplas possibilidades de
investigação.
Numa perspectiva mais ampla, o texto também pode suscitar questões acerca do nosso
próprio divórcio com a nossa alma, ou outro nome que queiramos dar às nossas instâncias
internas, psíquicas e espirituais35, podendo-se especular, inclusive, de quê ou quem nossa alma
se constitui, se já a deixamos ou sacrificamos pelo caminho, e, em caso afirmativo, como
podemos recuperá-la, entre outros questionamentos possíveis e válidos.
A própria alma, representada por uma criança, pode ser considerada em estreita relação
e como uma metáfora para nosso movimento interior que se lança em busca de respostas sobre
si mesmo, e que alguns identificam e nomeiam como um substrato da subjetividade individual
de cada um, que todos têm, mas a cada um se manifesta de modo concreto e particular.
35
O termo é aqui empregado em oposição àquilo que é físico, não possuindo cunho religioso, como pode ser confundido.
69
Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas
de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo,
um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge
o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão atingida de assombro. “Começa”,
isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas
inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca
sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o
despertar definitivo (CAMUS, 2018, p.28).
Como já se disse, esse questionamento e olhar dirigido para o interior e cerne da própria
existência não tem um início privilegiado e certo, e pode suceder para cada indivíduos em um
36
A título de observação, Camus chama de absurdo o desajuste do homem perante a própria condição humana, pois ao mesmo
tempo que a pergunta pelo sentido da vida é a mais importante de todas as perguntas, à sua interrogação segue-se a
impossibilidade de obtenção da resposta e sentido buscados. A percepção dessa contradição em que está lastreada a condição
humana recebe o nome de absurdo em Camus, como um resultado da impossibilidade de alcançar um sentido à própria
existência.
70
momento ou modo, podendo, inclusive, jamais ocorrer aqueles que não conseguirem emergir
da vida maquinal, da mesma maneira que em A Alma Perdida, há pessoas que não notam a
perda da própria alma.
Além disso, conforme já destacado, A Alma Perdida é uma narrativa visual que opera
por contrastes, a todo momento confronta uma alma ágil com a espera estática, a fim de
contrapor os efeitos causados pela perda da alma mais lenta. Talvez, por isso, a alma demore
para alcançar João, até porque ela anda em passos de criança.
Por fim, é preciso dizer, optou-se por escolher A Alma Perdida para análise sob o
enfoque da possibilidade de perquirição do sentido existencial, pois desde o início está se
71
defendendo que a literatura, justamente por não ter de se conformar e submeter a nada, detém
um potencial investigativo ainda maior e mais rico simbolicamente para explicitar qualquer
questão humana do que textos concebidos com finalidades exclusivamente didáticas e/ou
preconcebidas para se alcançar alguma obrigação de resultado. Encontrou-se em A Alma
Perdida um exemplo excelente do potencial inesgotável da literatura como recurso
investigativo, cujo valor repousa mais nas dúvidas suscitadas e deixadas em aberto do que em
qualquer certeza peremptória e exaustiva.
Considerações Finais
A escolha da busca por sentido como recorte temático para análise dos dois livros
selecionados – O sentido da vida e A alma perdida – revelou-se pertinente não apenas por se
tratar de questão que permeia a condição humana e, por isso, atinge a todos, ainda que de
diferentes modos, mas, também, por se manter permanentemente em aberto, sem a possibilidade
de alcançar uma solução definitiva, e tampouco sem deixar de perder a relevância, já que é,
justamente, a ausência de resposta, neste quadro, que reabilita a importância da investigação
como eixo propulsor de si mesma.
Mas mais do que se tratar de um tema recorrente, tanto na literatura quanto na filosofia,
é precisamente no potencial investigativo, nuclear da busca por sentido, que se encontrou um
ponto de tangência e estreita articulação entre os três componentes da equação dessa pesquisa:
sentido, literatura e filosofia. Tal articulação, por sua vez, consistiu no critério de seleção das
72
duas obras analisadas – O sentido da vida e A alma perdida –, por ter se considerado possível
enfatizar, em cada uma, a partir de suas respectivas singularidades, diferentes perspectivas e
possibilidades de abordagem literária a um mesmo recorte temático filosófico, destacando-se,
em ambos os casos, a importância da manutenção da investigação para além da possibilidade
de obter respostas e certezas, corroborando a hipótese defendida, desde o início, quanto ao
potencial investigativo tanto da literatura quanto da filosofia.
Enfim, espera-se ter demonstrado, que a busca por sentido existencial pode encontrar
na literatura infantil um meio de explicitação de questões prementes a ordem do humano, e que,
portanto, jamais perdem a validade e, com isso, incentivar novas prática de mediação de leitura
com crianças que favoreçam tanto o protagonismo infantil, na construção do seu conhecimento
acerca de si e do mundo, quanto desses livros, que revelaram ser potentes disparadores para a
investigação existencial, pois vale, ainda, lembrar que questões relativas à origem ("de onde eu
venho?”), e identidade (“quem eu sou?”; “por que eu sou como sou?”) são os passos iniciais e
predecessores para o desenvolvimento da ética e apontar qual a conduta a ser seguida,
individual e coletivamente.
73
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PORTA, Mário Ariel Gonzáles. A filosofia a partir de seus problemas. 4ª ed. São Paulo: Loyola,
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74