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INSTITUTO VERA CRUZ

PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS: TEORIA,


MEDIAÇÃO E CRÍTICA
2022

Natália de Alexandre Macário

FILOSOFAR A EXISTÊNCIA: A BUSCA POR SENTIDO NA LITERATURA PARA


CRIANÇAS

São Paulo
2022
2

Natália de Alexandre Macário

FILOSOFAR A EXISTÊNCIA: A BUSCA POR SENTIDO NA LITERATURA PARA


CRIANÇAS

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


Programa de Pós-Graduação em Literatura para
Crianças e Jovens: Teoria, Mediação e Crítica, do
Instituto Vera Cruz.
Orientadora: Amanda Leal

São Paulo
2022
3

Agradecimentos

Destino os meus mais sinceros e especiais agradecimentos a minha querida orientadora


Amanda Leal, pela infinita generosidade e paciência na orientação cuidadosa desta pesquisa.
Até a conclusão do presente trabalho, eu não imaginava ser possível desfrutar de tamanha
satisfação na elaboração de uma pesquisa acadêmica. Atribuo essa especial satisfação ao
acolhimento e ao respeito com que sempre fui tratada pela professora Amanda, cuja orientação
fez com que eu me sentisse valorizada e incentivada como pesquisadora em todas as etapas do
caminho, e cujos valiosos apontamentos e sugestões foram determinantes para a condução e
conclusão desse estudo. Saliento, ainda, a generosidade e competência de minha orientadora,
atributos raramente encontrados juntos na seara acadêmica e que em sua pessoa se reúnem e
harmonizam perfeitamente. Muito obrigada, Amanda!
Destino, igualmente, um especial agradecimento à coordenação zelosa e impecável da
professora Cristiane Tavares.
Devo, ainda, especiais agradecimentos às professoras Denise Guilherme e Geruza
Zelnys pela leitura carinhosa e atenta do presente trabalho, e pelos valorosos apontamentos que
o enriqueceram.
Todos os meus demais agradecimentos são destinados aos professores, amigos e colegas
que tive a honra e privilégio de conhecer e compartilhar valiosos momentos no Programa de
pós-Graduação em Literatura para Crianças e Jovens do Instituto Vera Cruz, lugar onde fui
acolhida, mesmo sendo de outra área de formação, e onde vi, talvez pela primeira vez na seara
acadêmica, a excelência e competência indubitável de todos os profissionais envolvidos serem
aliadas da generosidade e afetuosidade na partilha.
A todos, os meus mais sinceros agradecimentos e imenso carinho.
4

“Porque a prática da dúvida não se adquire assim em poucos dias ou escassas semanas”.
Kierkegaard
5

Sumário
1. Apresentação.................................................................................................................6
1.1.A construção do problema de pesquisa ..........................................................................7
2. Literatura e filosofia para crianças: o estado da arte ...............................................8
3. Pela libertação da literatura e da filosofia da função instrumental........................17
3.1.O “sentido” da filosofia e da literatura..........................................................................20
3.2.A infância como área de interseção entre literatura, filosofia e busca por novos
sentidos..........................................................................................................................23
4. A busca por sentido como recorte filosófico de análise das
obras.............................................................................................................................30
5. Análise dos livros ........................................................................................................40
5.1. O sentido da vida, de Oscar Brenifier e Jacques
Després..........................................................................................................................41
5.2. A alma perdida, de Olga Tokarczuk e Joanna
Concejo.........................................................................................................................48
6. Considerações finais ...................................................................................................71
6

1. Apresentação

O presente trabalho tem por objetivo analisar o diálogo e a interseção entre literatura e
filosofia em obras literárias infantis, a fim de destacar e, em certa medida, reabilitar a riqueza
investigativa da literatura ao propiciar reflexões de caráter filosófico.

Antes de empreender tal tarefa, porém, considera-se pertinente tecer uma breve
apresentação pessoal da pesquisadora por trás dessas linhas, à guisa de justificativa para a
exploração deste tema enunciado.

Apesar de ser formada e atuar profissionalmente há mais de dez anos na área do direito,
muito antes disso, foi sempre no papel de leitora literária que me senti mais confortável e
habilitada a buscar o acesso a diferentes camadas de sentido da experiência humana. A literatura
sempre pareceu estender a mim um convite ao deslocamento, propiciando um espaço aberto e
seguro para o questionamento de certezas frágeis e ampliação de limites.

Devo à literatura, especialmente, não só essa posição de predileção entre os meus


interesses, mas também a função, a um só tempo, propulsora e organizadora de uma sempre
ativa e intensa curiosidade. Não à toa, foi a literatura a responsável por me abrir as portas e
conduzir a um segundo “território”, por definição permanentemente aberto à dúvida e ao
questionamento -, e onde a investigação é constitutiva de seu modo de ser e estabelecer a si
própria: a filosofia.

Foi a literatura, e mais especificamente, a obra ficcional O estrangeiro, de Albert


Camus, que me conduziu a um mestrado em filosofia, em 2018, onde busquei extrair um
conceito de justiça1, válido no interior do universo camusiano, obtido a partir dos dois
pressupostos existenciais e eixos centrais da obra literária e filosófica do autor, o absurdo e a
revolta. Trabalho que só foi possível desenvolver, pois o autor estudado, assim como eu, não
era muito adepto à divisões formais e, por isso, prescindia de qualquer rótulo, rejeitava a
alcunha de filósofo, sobretudo a de existencialista, a despeito de ter se ocupado em esmiuçar
em seus ensaios o que considerava ser os pressupostos básicos da condição humana, preferindo
o reconhecimento como artista a qualquer outro, por acreditar que toda sua obra – literária,

1
É possível notar uma recorrência do tema nas obras do autor, seja como pano de fundo para as obras ficcionais,
seja como denotativo de uma imperfeição ontológica da condição humana, para Camus, naturalmente injusta.
Apesar de frequente, a justiça é um tema difuso que carece de delimitação na obra camusiana e qualquer tentativa
de definição deve partir da análise prévia de seus dois pressupostos existenciais básicos, absurdo e revolta.
7

ensaística, jornalística, dramatúrgica – conferia suporte adequado para reflexão e circulação de


seu pensamento.

As experiências mobilizadoras - e essenciais - com a literatura, filosofia, existência,


justiça misturaram-se em minha trajetória pessoal e, a partir dali, como pesquisadora também.

Talvez por me sentir ainda incompleta no que acabou se tornando minha profissão, não
propriamente por vocação (a área do direito), foi na reflexão da fronteira entre literatura e
filosofia, justamente onde as margens se esboroam e são quase indistintas, que desemborcou,
mais uma vez, a curiosidade e o desejo propulsores para a realização dessa pesquisa.

1.1.A construção do problema de pesquisa

A ideia inicial consistiu em selecionar e analisar obras literárias infantis que trouxessem
em seu bojo reflexões de caráter filosófico, e a fim de conferir um recorte temático, textos
literários que levantassem, em seu conteúdo, questões de natureza existencial, provocando no
leitor um questionamento acerca do próprio existir, traduzido numa busca por sentido pessoal,
a partir de perguntas de fundo, do tipo: “quem eu sou?” “por que eu existo e sou como sou?”,
“qual o sentido da minha existência e o que posso fazer a partir do reconhecimento dela?”, etc.

O início da pesquisa, entretanto, exigiu um redirecionamento do percurso originalmente


traçado, apontando para uma necessidade prévia à seleção das obras e análise pretendidas, isto
porque, em um breve levantamento de material bibliográfico acerca da relação entre literatura
e filosofia voltada à infância, revelou-se impossível ignorar o estado atual da questão: o
recorrente tratamento conferido à interseção desses dois grandes universos temáticos –
literatura e filosofia –, marcado por uma excessiva instrumentalização de ambos.

O percurso desta pesquisa precisaria abordar , portanto, a demonstração do tratamento


instrumental e utilitário conferido, especialmente, à literatura, quando se tenta estabelecer um
diálogo com a filosofia, sobretudo a voltada para o público infantil, para só então ser possível
sustentar que a literatura, desde que libertada de uma função estritamente instrumental, encerra
em si mesma uma gama muito maior de possibilidades no que diz respeito à sensibilização
estética, ampliação de repertório simbólico e, acima de tudo, em um de seus maiores pontos de
tangência com a filosofia: a investigação.

Assim, será preciso libertar a literatura dessa visão utilitária e instrumental com que
comumente é tratada, quando se busca estabelecer um diálogo com a filosofia, sobretudo a
8

voltada para crianças, para apenas, posteriormente, realizar a análise de algumas obras literárias
infantis passíveis de reflexão de caráter filosófico-existencial.

Nesse sentido, a escolha da busca por sentido como chave de leitura tem por objetivo
não só conferir um recorte para análise do conteúdo filosófico presente nas obras selecionadas,
mas principalmente visa destacar a aproximação entre literatura e filosofia naquilo que ambas
possuem como um recurso ilimitado: a potência investigativa, sem que nem uma ou outra esteja
vinculada à necessidade de conduzir a respostas definitivas, pois em ambas a tônica da reflexão
repousa mais na interrogação e modos de investigar, e menos nas respostas e resultados obtidos.

Ao mesmo tempo, a busca por sentido desponta como o recorte mais adequado, pois
pode ser facilmente traduzido em um modo de investigação cujo resultado, para além de não
estar dado na ordem da realidade das coisas, jamais é certo ou está garantido e, portanto, não é
o mais relevante em jogo, uma vez que o valor da investigação se encontra no próprio
movimento orientador de sua busca, além de poder ser rastreado como um eixo de força e
interesse tanto na literatura quanto na filosofia.

A parte final da pesquisa se concentrará na análise mais detida no tratamento conferido


à existência como um problema filosófico, em dois livros para crianças (“O sentido da vida” e
“A Alma Perdida”) notadamente no que concerne à busca por um sentido deflagrada pela
investigação de quem se é, dos elementos constitutivos da individualidade, os limites entre si e
o outro, e como é possível agir e orientar a conduta a partir da descoberta desses elementos.

Tudo isso buscando destacar, sem perder de vista, como parece ter sido frequente até
aqui, a potência investigativa da literatura em suscitar tal gama de reflexões de natureza
filosófica.

2. Literatura e filosofia para crianças: o estado da arte


Quando se busca estabelecer um diálogo entre literatura e filosofia voltada para a
infância, o primeiro dado invariavelmente obtido como referência central para o tema aponta
para um terceiro universo: o método pedagógico de ensino de filosofia, desenvolvido, no final
da década de 60, pelo professor norte-americano, Matthew Lipman (1923-2010), cuja premissa
básica consiste em estabelecer um percurso formativo de ensino de filosofia para crianças.
9

O trabalho de Walter Omar Kohan2 (2008) apresenta uma sistematização rigorosa da


metodologia, aplicação e recepção do programa “filosofia para crianças” (philosophy for
children) de Lipman, onde destaca o pioneirismo do projeto e enfatiza o propósito pedagógico
de seu idealizador:
Lipman é o fundador do movimento por levar sistematicamente a prática da filosofia
à educação das crianças. Seu propósito é contribuir com a reforma do sistema
educacional para que este desenvolva adequadamente o raciocínio e a capacidade de
julgar dos alunos (...) Lipman não só fundamentou teoricamente o papel da filosofia
na educação das crianças, como também desenvolveu uma metodologia e um
currículo para levá-la às escolas (KOHAN, 2008, p. 15).

Apesar de se tratar de um método pedagógico, foi quase impossível obter qualquer outra
fonte de referência para examinar a relação e interseção entre literatura e filosofia, voltada para
a infância, que não aponte o método de Lipman como o exemplo por excelência de diálogo
entre ambas, quando, na verdade, o método em questão nunca esteve sequer engajado com a
literatura, tendo por objetivo único a promoção do ensino de filosofia, e ainda, apenas sob um
determinado aspecto desta última.

De modo que até para se sustentar uma aproximação entre literatura e filosofia para
crianças, liberadas, tanto uma quanto a outra, de funções estritamente instrumentais, é preciso
fazê-lo em contraposição ao método de Matthew Lipman, pois os estudos elaborados em torno
do assunto o colocam, sempre, como eixo gravitacional da questão, apesar de seu programa
declaradamente prescindir da literatura e trabalhar com a filosofia a partir de uma perspectiva
normativa.

Ainda mais importante do que enfatizar o propósito pedagógico, deve-se destacar o


caráter normativo e prescritivo do método em questão. Não é possível perder de vista que
mesmo quando Lipman fala em filosofia, além de estar relacionada a um contexto específico e
educacional, há uma intenção prescritiva e normativa em disputa. Nesse cenário, a filosofia tem
de ser considerada em seu aspecto prático, dentro de um determinado registro, subordinada,
segundo Lipman, a um deve ser - e não apenas enquanto filosofia em um sentido amplo.

A fundamentação que Lipman oferece para sua proposta é claramente normativa. Isto
significa que, nela, Lipman diz como deveria ser uma educação filosófica das
crianças. Para isso, propõe uma argumentação na qual alguns ideais desempenham
um papel-chave (KOHAN, 2021, p.17).

2
A obra “Filosofia para crianças” de Walter Omar Kohan revelou-se uma importante referência não apenas por consistir num
sério esforço em sistematizar o programa pedagógico de Lipman, mas por também por se tratar de um trabalho crítico, que ao
reconhecer a importância e alcance do método, nem por isso deixa de apontar nele as defasagens pertinentes.
10

A normatividade do método envolve a subordinação da filosofia a apenas um


determinado registro e à perspectivação de sua prática de acordo com a finalidade do projeto
pedagógico em jogo.

De forma geral, parte considerável da abordagem e compreensão de problemas


filosóficos implica a necessidade prévia de se fazer distinções entre os termos e valores em
disputa, a fim de exibir os pressupostos sobre os quais um autor compreende e aborda
determinado problema.

O método de Lipman, nesse sentido, enfatiza a distinção entre filosofia enquanto campo
teórico e prático para buscar enfatizar e viabilizar apenas essa última, o que considera um “fazer
filosofia”3. Isto implica em reconhecer que o programa de Lipman está lastreado em apenas
uma das facetas de um conceito bem mais amplo.

De acordo com o esforço incessante da filosofia em estabelecer distinções para exibir


seus pressupostos, é preciso destacar que, apesar de sugerir algo diverso, a “filosofia” do
método é denotativa de apenas um de seus aspectos, sendo equivocado assumir a parte pelo
todo. A exploração e exposição do campo teórico da filosofia não estão inseridos nos objetivos
do programa, mas apenas aquilo que o autor entende por um de seus aspectos práticos,
correspondente a um modo de “ensinar a pensar” segundo premissas lógicas e visando o
desenvolvimento de certas habilidades de raciocínio das crianças

Assim, não se trata de filosofia, em sentido amplo, mas o que Lipman concebe fazer a
partir dela dentro de um projeto de ensino, tratando-se, portanto, de uma perspectivação da
prática filosófica como meio de se alcançar um objetivo maior: a formação das crianças. De
forma perspicaz, Kohan observa:

Pode-se perceber nessa caracterização o caráter prescritivo do discurso de Lipman.


Quando caracteriza a filosofia, a educação e a democracia como formas de
investigação, ele não fala da filosofia, educação ou democracia existentes, mas de uma
normatividade para elas (KOHAN, 2008, p.28-29).

Embora possa parecer banal, a distinção é necessária até para não se perpetuar as
constantes distorções na aplicação do próprio método e assumir que ele detém compromissos
que não assume. O problema não está na pretensão de normatizar um aspecto prático da filosofia
a fim de torná-la passível de uma metodologia de ensino. O problema, nesse caso, está na
dogmatização e recorrente defesa do programa de Lipman como o único modo de abordar

3
KOHAN, W. Filosofia para crianças. 2008, p.17.
11

filosofia com crianças, sobretudo quando se desconsidera que apenas um aspecto da filosofia é
contemplado e que ele não pode ser estendido à sua totalidade, sobretudo no campo teórico.

A confusão recorrente, por sua vez, traz consequências e promove distorções tanto no
que diz respeito à aproximação com a literatura quanto com relação à filosofia para crianças.

Além disso, deve-se destacar que o contexto em que o programa de Lipman opera é
completamente distinto ao da articulação aqui pretendida, entre literatura e filosofia para
crianças, num âmbito mais amplo e não apenas restrito ao ambiente escolar.

A associação e imposição de uma relação de quase perfeita sinonímia entre a expressão


“filosofia para crianças” e o método de Lipman justifica-se, possivelmente, em razão da larga
difusão e implementação do método nas escolas brasileiras. Traduzido em mais de 30 países, a
América Latina é a região onde o programa de Lipman tem mais força4, e o Brasil é considerado
“como exemplo de institucionalização bem-sucedida da proposta5”.

O problema mais imediato desta correlação com o método de Lipman, como já se viu,
é a subordinação da filosofia a um viés prático e em conformidade, necessariamente, a um
projeto pedagógico, o que a interdita para outros contextos não-formais, além de ceifar a
possibilidade de um verdadeiro diálogo com outras formas de expressão, como a literatura
infantil, e outros campos teóricos e do saber.

Já a correlação – equivocada – com a literatura é comumente estabelecida em razão do


método de Lipman ter se alicerçado na utilização, em sala de aula, de novelas, elaboradas com
a finalidade de induzir discussões de caráter filosófico. Nelas, há uma disposição dos elementos
de forma narrativa e literária apenas para serem mais facilmente acessíveis e compreendidos
pelas crianças, público-alvo do método e que, segundo a concepção de seu idealizador,
precisavam ser inspiradas por modelos ficcionais para aprenderem a pensar e constituírem uma
comunidade de investigação6.
As suas novelas filosóficas são diálogos entre crianças, professores, pais, vizinhos. A
maioria das personagens são crianças – esses diálogos acontecem geralmente numa
escola – que têm a mesma idade dos seus leitores; essas crianças representam modelos
de investigadores que debatem questões significativas do seu cotidiano. Para que os
professores, sem formação na história da filosofia, possam explorar o diálogo
filosófico com seus alunos. (KOHAN, 2008, p.51).

4
KOHAN, W. 2008, p.83.
5
______, p.85.
6
Cf. Kohan:“Lipman tem proposto a criação da ‘comunidade de investigação’ como novo paradigma em educação: as aulas
deveriam deixar de ser aquilo que são para converter-se em comunidades de investigação filosófica” (KOHAN, 2008, p. 29).
12

O currículo do método de Lipman é constituído por oito programas, cada um composto


por uma novela, dirigida às crianças, e um manual do professor. Cada programa é planejado
para ser trabalhado durante dois anos escolares. O primeiro programa escrito e que constituí a
espinha dorsal do método a partir do qual os outros programas são desenvolvidos, é A
descoberta de Ari dos Telles (Ari) que visa desenvolver conhecimentos de lógica, com
indicação para os 5ª e 6ª anos do Ensino Fundamental. Como bem sistematizado por Kohan
(2008, p.53):

A partir dos conhecimentos de lógica nele incorporados, é que fazem sentido os


programas de ética (Luísa), estética (Satie), e filosofia social e política (Marcos),
escritos subsequentemente depois de Ari. Por sua vez, os programas para crianças
menores foram concebidos por Lipman como uma preparação para o trabalho com Ari
(...). Além desse currículo, colaboradores de Lipman têm escrito outros programas
complementares (KOHAN, 2008, p.53).

A título de exemplo, podemos mencionar a novela “Issao e Guga”, programa escrito


para os 1º e 2º anos do Ensino Fundamental, cujo tema central a ser desenvolvido é a filosofia
da natureza7. Trata-se de uma novela em que os protagonistas são duas crianças. Guga é
deficiente visual, o que serve de pretexto para algumas especulações sobre a natureza e
percepção da cor, aparência, textura, como se reproduz no excerto:

Issao me conta a história do seu avô sobre os leões na praia.


- Não entendo a cor dourada.
- Ouro. É como... é como...amarelo! – diz Issao.
- Também não entendo amarelo.
- Ah, é mesmo! Bom deixe-me pensar. Você sabe como é o sabor do mel, não sabe?
- Sei.
- Bom, o mel se parece como seu sabor: o sabor do mel é como a cor do ouro.
(LIPMAN, Matthew. Issao e Guga, 1997, p.14).

A novela inteira é narrada quase que integralmente em forma de diálogo, onde se


interpolam eventos banais com diálogos que tentam inserir, de forma não muito orgânica,
reflexões de caráter filosófico, mas que pela relativa singeleza da exposição, carecem de
aprofundamento pelo professor que conduz a leitura em sala. As lacunas do texto são
aparentemente propositais para permitir a interferência posterior do professor.

Lipman buscou se inspirar na estrutura dialógica dos escritos platônicos que tinham
Sócrates como figura central e inquisidora. Diferentemente dos diálogos platônicos, porém, não
há uma explicitação dos problemas em jogo. Apesar da inspiração, as novelas dificilmente
propõem discussões tão diretas e abertas como “o que é a justiça?” de A República, ou “o que
é o amor?” de Fedro. Não há sequer indagações frontais, o que há é uma certa problematização

7
Cf. KOHAN, 2008, p.52.
13

em torno de situações banais que depois da leitura pressupõe-se terem de ser aprofundadas pelo
professor em sala de aula, que terá a tarefa de trazer à tona as perguntas previamente elaboradas
no manual do professor e cotejar as respostas dos alunos, num processo que em certa medida
relembra à maiêutica8. Um último ponto de similitude com os diálogos platônicos é a falta de
uma resposta definitiva para as perguntas, apontando para uma necessidade da manutenção da
investigação filosófica.

Há algo, porém, na banalidade das cenas em confronto com o conteúdo que se pretende
transmitir que provoca estranhamento, deixando nítida a intenção forçada de provocar reflexão,
num contexto que não é apresentado de modo propício para isso, como é possível perceber na
passagem abaixo:

Então deve ser porque as coisas mudam. Será que o tempo acontece quando as coisas
mudam? Ou o tempo é o que aparece quando a gente mede a velocidade da mudança
das coisas? Minha cabeça está a mil.
Faço um túnel na areia. O túnel é tão grande que dá para colocar o braço inteiro lá
dentro (LIPMAN, Matthew. Issao e Guga, 1997, p.23).

Como se vê, tanto a reflexão acerca da passagem do tempo quanto a especulação acerca
da natureza da mudança e alteração da realidade, se situadas no tempo ou para além dele, são
rapidamente deixadas de lado e ficam sem aprofundamento para serem sucedidas por uma cena
que além de trivial não tem conexão e em nada acrescenta às percepções temporais e até
metafísicas em jogo.

As novelas filosóficas partem da exposição das crianças a textos fabricados com a


intenção de ensinar filosofia, sem exibir, entretanto, qualquer preocupação ou vínculo com a
literatura. Para os objetivos colimados pelo método, bastam que os textos sejam acessíveis e
dispostos de forma literária a fim de tão-somente viabilizar e facilitar a exposição do conteúdo
filosófico a ser ensinado.
Ao se questionar quais características a comunidade de investigação científica,
representada no texto da novela para inspirar os modelos reais, deveria apresentar, Lipmam
trabalha com o conceito de “aceitabilidade literária”9. Sobre essa noção de aceitabilidade,
Ramos (2008, p.199) destaca o seguinte excerto da obra de Lipman:

A qualidade literária do texto deve ser aceitável; o texto deve ser uma obra profissional
– senão de arte – pelo menos satisfatória. Isto não quer dizer que é pouco possível ter
esperanças de uma época quando grandes escritores aceitariam o desafio de escrever

8
Maiêutica é uma técnica obstétrica de parto, o termo é utilizado em alusão metafórica ao método socrático em razão da
conduta típica de Sócrates, nos diálogos platônicos, em conduzir a investigação por meio de perguntas que fazem nascer outras,
daí a metáfora para o conhecimento oriundo de um parto de ideias.
9
RAMOS, Paula Oliveira, 2008, p. 199.
14

livros didáticos para crianças. Mas, primeiro, talvez tenhamos que criar o mercado
que os motivará a encarar essa empreitada (LIPMAN, 1995, p.314).

O conceito de aceitabilidade literária deixa claro não haver um compromisso do método


com a literatura, pois o texto é um meio para fim, bastando que seja acessível e ordenado num
enredo ficcional para ilustrar de forma didática o conteúdo a ser explicitado. É expressa a
ausência de compromisso em fazer literatura, mas sim com uma forma pedagógica de ensino
de filosofia.

Importante destacar que a ausência de compromisso com a literatura não é uma crítica
direta a Lipman. É frequente, entretanto, que os adeptos de seu modelo reputem às novelas, e
até as oficinas de texto para sua elaboração, qualidades literárias em razão dos textos possuírem
aspectos como “fluência e expressividade10”, mas só esses requisitos não tornam as novelas
expressões da literatura, convertidas no método em questão apenas como o meio formal para
expressar uma mensagem.

O método de Lipman também, em nenhum momento, propôs se utilizar da literatura


infantil existente para aproximar as crianças da filosofia. Em verdade, a “literatura”, nesse caso,
apenas emprestou um modelo estruturante para os enredos ficcionais das novelas. Sob essa
ótica, o literário deve ser compreendido não como derivado de uma expressão da literatura, mas
em relação à disposição das frases do texto de modo compreensível e ordenado, e como o
suporte de expressão para se alcançar um fim maior e que excede à materialidade literária, qual
seja: apresentar conceitos filosóficos de modo assimilável às crianças.

A aproximação frequente das novelas filosóficas, nucleares do método de Lipman, com


a literatura, é geralmente estabelecida tão-somente pela similitude do processo de ordenação
dos eventos narrados numa estrutura ficcional, cuja exposição acabará por conduzir a alguma
reflexão de caráter filosófico, vale dizer, induzida pela novela.

A aproximação de literatura e filosofia exclusivamente sob essa chave, para além de


apresentar uma distorção e aproximar fenômenos que no interior do método de Lipman nem
chegam a se encontrar, acaba por apontar para uma visão de excessiva subordinação e
instrumentalização da literatura.

Dentro desse contexto, quando se tenta estabelecer o diálogo com a filosofia, o literário
aparece exclusivamente como a forma através da qual o conteúdo filosófico ganha contorno, é
plasmado e transmitido. A forma literária, portanto, é apenas um molde ou constructo e, por

10
RAMOS, Paula Oliveira, 2008, p. 197.
15

isso, figura nessa relação um tanto forçada com a filosofia de modo instrumental e acessório,
sendo apenas um meio para atingir outro fim, no caso, a exposição de um conteúdo filosófico.

Não há preocupação com a dimensão estética do texto, tampouco com o incremento do


referencial simbólico do leitor, tão caros à literatura, mas, sobretudo, deve-se frisar, nesse
contexto, a falta de reconhecimento da potência investigativa que a literatura detém para não só
suscitar reflexões, como a de manter em aberto as perguntas sugeridas e entretecidas na trama
literária, sem precisar ser cogente e impositiva quanto às soluções, por não ter o compromisso
em fornecer respostas ou certezas, como acontece no discurso científico.

No artigo intitulado “Crianças, filosofia e literatura11”, que já vimos destacando


anteriormente, a Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa “Filosofia para Crianças”
(GEPFC), da Unesp de Araraquara, relata sua experiência em oficinas de elaboração das
novelas filosóficas, nos moldes preconizados por Matthew Lipman. O artigo traz diversas
questões pertinentes em torno da possibilidade de diálogo entre literatura e filosofia para
crianças, como o trecho destacado a seguir:

O que fazemos no GEPFC é literatura? Não é fácil responder a essa questão. Lipman
entende que suas novelas filosóficas pertencem a um gênero particular; elas não são
exatamente literatura. Seriam textos didáticos? Essa também é uma questão que
carrega alguma complexidade. Porém, de uma coisa podemos estar certos: fica difícil
considerar literatura um texto que foi escrito com uma determinada finalidade. Torna-
se evidente a presença de uma instrumentalidade. Além disso, os textos de filosofia
para crianças costumam ser bastante realistas. A fantasia não tem espaço reservado
nesses textos. A partir deles, nós pensamos, mas, quando estamos diante da literatura,
além de um pensar, temos um sentir. Quando chegamos ao final de uma boa história,
inevitavelmente os sentimentos afloram. Por vezes, fica a sensação de que preferíamos
não ter chegado ao fim, só para continuarmos naquela espécie de torpor, naquele outro
mundo possível (RAMOS, 2008, p.200).

As premissas em que a pesquisadora se apoia para tentar responder às próprias perguntas


apontam para um ruído na percepção do que é literatura, sobretudo, a infantil. Ao mesmo tempo
em que declara que as novelas pertencem a um gênero particular e não são necessariamente
literatura, pois escritos com uma certa finalidade, e aponta, acertadamente, para a presença de
uma “instrumentalidade” das novelas, a rejeição de sua categorização como literatura se dá por
outros motivos, seja pela ausência do elemento fantasia nos textos das novelas, o que torna
pertinente perguntar: na literatura infantil só há espaço para fantasia? Sabemos que não. E,
ainda com mais veemência, a literatura é associada, e por isso é rejeitada como suporte de

11
OLIVEIRA, Paula Ramos. Crianças, filosofia e literatura. In: Revista Educação e Cultura Contemporânea Vol.5, nº 9, Ano
2008, p.193-202.
16

aproximação à filosofia, ao espaço de indeterminação das emoções, “onde os sentimentos


afloram”, e, portanto, segundo a lógica apresentada, não há espaço para a reflexão filosófica.

À certa altura, o artigo especula e em seguida aponta como principal motivo para a não
utilização de livros de literatura infantil com o objetivo de aproximar as crianças da filosofia,
ao invés das novelas, pois, segundo a pesquisadora, eles não seriam propícios à reflexão:

Em face do exposto, surgem duas perguntas: 1) Não seria mais interessante usar a
literatura nas aulas de filosofia?; 2) Por que escrever textos para as aulas de filosofia?
Essas são duas perguntas recorrentes e, por isso, a reflexão sobre elas continua sempre
em aberto, mas penso que a diversidade constitui-se como uma alternativa
interessante. Por quê? Porque vejo vantagens e desvantagens no uso de literatura e
também nos textos que escrevemos para o ensino de filosofia. Até o momento, apenas
levantamos alguns pontos problemáticos dos textos de filosofia para crianças e
exaltamos as qualidades da literatura. Façamos o exercício contrário agora. Às vezes,
encontramos literatura que não é de boa qualidade, mas essa precisa ser descartada.
Em outras vezes, encontramos literatura de ótima qualidade, mas que não é muito
convidativa à reflexão (RAMOS, 2008, p.200).

A justificativa oferecida pela pesquisadora para rejeitar a possibilidade de diálogo entre


literatura infantil e filosofia oferece a premissa básica, mas em sentido diametralmente oposto
ao sustentado por esta pesquisa. Ao mesmo tempo, corrobora com a visão instrumental e
limitante da literatura que aqui se pretende rechaçar.

Para finalizar a exposição acerca do atual estado da arte que envolve a literatura e
filosofia para crianças, é possível indicar alguns esforços mais recentes em levar a filosofia para
crianças para meios extraescolares.

Mais recentemente, mas ainda como um corolário de Lipman, é possível destacar o


esforço de autores como Oscar Brenifier (1954) em transformar conteúdos filosóficos, inclusive
herméticos e difíceis, em edições ilustradas para crianças com a finalidade de as aproximar da
filosofia. Do autor, desde os anos 2000, existem coleções, publicadas no Brasil, elaboradas
com a finalidade de sintetizar e explicitar conceitos filosóficos, tais como o bem e o mal, Deus,
amor e amizade.

Em geral, nessas coleções, não há a proposta de inserir os conceitos apresentados dentro


de uma estrutura narrativa fictícia que os acomode, os livros detêm um caráter mais próximo
aos dos livros informativos, embora a exposição do conteúdo na forma de verbetes os tornem
ainda mais semelhantes a um dicionário, e apesar de impressionarem pela capacidade de síntese
em apresentar conceitos filosóficos bastante complexos, escondem o principal e mais
interessante: o processo de investigação que culminou com os conceitos ali expostos.
17

Ao mesmo tempo, tais livros são profícuos em propiciar reflexões, sem apontar soluções
definitivas, e possuem o mérito de manter a investigação em aberto. Na segunda parte desta
pesquisa, o livro “O sentido da vida” de Oscar Brenifier será mais detidamente analisado.

3. Pela libertação da literatura e da filosofia da função instrumental

Como se viu até aqui, o atual estado da questão conferido à interseção entre literatura e
filosofia para crianças aponta para uma visão essencialmente instrumental de ambas. O presente
tópico tem por objetivo demonstrar em que medida a vinculação, tanto de uma quanto de outra,
de servirem apenas de meios para se alcançar determinados fins, mesmo quando louváveis
como a formação pedagógica, acaba por empobrecer o alcance e a potência investigativa que
ambas possuem, quando liberadas de uma função conformativa, para valerem por si mesmas.

Antes, porém, de se proceder propriamente à defesa da libertação de ambas, considera-


se pertinente promover uma breve reabilitação da literatura e filosofia voltada para infância
para além de suas finalidades.

A ênfase conferida à função instrumental com que frequentemente é relacionada a


literatura à filosofia para crianças, que como vimos no tópico anterior, sob esse enfoque nem
pode ser propriamente chamada de literatura, visa enfatizar a importância de libertá-la de uma
função subsidiária e instrumental, pois apenas quando liberada de servir a alguma finalidade é
que será possível que a literatura seja reconhecida em seus próprios termos e valha por si
mesma, sem estar subordinada a compromissos com os quais não se coaduna expressamente.

Especificamente no que diz respeito à literatura voltada para crianças já de saída é


possível observar a dificuldade historicamente enfrentada para ser reconhecida como disciplina
com objeto teórico próprio e robusto o suficiente para ser alvo de estudos literários e
consequentemente da constituição de uma teoria e crítica especializada (HUNT, 2010, p.13).

Não há ninguém, talvez, que saliente de melhor forma a associação frequente da


literatura infantil como denotativa de qualidade inferior, mas também aponte para a recorrente
subordinação da literatura infantil e juvenil a uma função instrumental como a escritora
argentina María Teresa Andruetto, em sua obra e veemente defesa “Por uma literatura sem
adjetivos”, cujo excerto se copia a seguir:

A tendência a considerar a literatura infantil e/ou juvenil basicamente pelo que tem de
infantil ou de juvenil é um perigo, uma vez que parte de ideias preconcebidas sobre o
18

que é uma criança e um jovem e contribui para formar um gueto de autores


reconhecidos, às vezes até mesmo consagrados, que não têm valor suficiente para
serem lidos por leitores tão somente. Se a obra de um escritor não coincide com a
imagem do infantil ou do juvenil do mercado, das editoras, dos meios audiovisuais,
da escola ou de quem quer que seja, deduz-se (imediatamente) dessa divergência a
inutilidade do escritor para que possa ser oferecido a esse campo de potenciais leitores.
Assim, à literatura para adultos ficam reservados os temas e as formas que são
considerados de seu pertencimento, e a literatura infantil/juvenil é, com demasiada
frequência, relacionada ao funcional e ao utilitário, convertendo o infantil/juvenil e o
funcional em dois aspectos de um mesmo fenômeno. (ANDRUETTO, 2012, p.60/61).

Por muito tempo, e possivelmente até hoje, a literatura para crianças quando não esteve
associada a uma forma de expressão literária menor, inferior, e empobrecida em comparação
com a literatura considerada canônica, teve sua qualidade reconhecida apenas quando os livros
em jogo “reforçassem uma determinada visão da infância, da educação e da cultura12”, ou
seja, valores exteriores à literatura. Como aponta María Teresa Andruetto (2012):

A leitura e a experiência estética encontram-se entre os exercícios mais radicais de


liberdade. Porém, por estratégias econômicas dos grandes grupos editoriais, o leitor –
e mais ainda o leitor criança e o leitor jovem – é, muitas vezes condicionado de
antemão por informações e conteúdos impostos por meio de elementos extraliterários
(ANDRUETTO, 2012, p.57-58).

Como resultado dessa tendência em associar a literatura para a infância ou para os jovens
a finalidades cujos valores sejam extrínsecos e com os quais a literatura não está comprometida,
Andruetto (2012) conclui:

Assim, grande parte dos livros destinados ao setor infantil e/ou juvenil – claro que
com honrosas exceções de livros, autores, ilustradores e editores – procura uma escrita
correta, quando não francamente frívola (politicamente correta, socialmente correta,
educacionalmente correta), ou seja, fabrica produtos que são considerados
adequados/recomendáveis para a formação de uma criança ou para seu divertimento.
E já se sabe que correto não é um adjetivo que cai bem na literatura, pois a literatura
é uma arte na qual a linguagem resiste e manifesta sua vontade de desvio da norma
(ANDRUETTO, 2012, p.60).

Para Andruetto (2012), a literatura verdadeiramente liberta, de servir a um fim e atender


a uma funcionalidade, nem sequer tem o compromisso em agradar a todos:

Um bom livro, no geral, tem um campo de leitores menor que um livro funcional em
relação a certas tendências ou exigências do mercado, simplesmente porque os bons
livros não respondem a um gosto global, não agradam a todos, assim é a literatura.
(...) Os bons livros têm, em relação à oferta, à demanda e aos canais de circulação,
uma multiplicação de sentido que é, ao mesmo tempo, uma restrição a sua
uniformidade e sua massividade (ANDRUETTO, 2012, p.66).

Quando voltada para o público infantil, a literatura padece de um estreitamento ainda


maior de seu âmbito pela cristalização de um raciocínio equivocado por pressupor um leitor

12
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Cosac Naify, 2010, p.13.
19

“despreparado”, não só em relação à sua habilidade leitora, ainda em desenvolvimento, mas


sobretudo para o enfrentamento das questões que possam colocá-lo em confronto com a
realidade das coisas, do mundo e até de si mesmo.

Além de debilitante, essa visão de despreparo subordina o leitor infantil à necessidade


de ser sempre tutelado, inclusive, na seleção de suas leituras, daí os debates frequentes acerca
de quais temas sensíveis podem ser acessíveis, mas, principalmente, quais devem permanecer
interditados aos olhos infantis, sob pena de maculá-los.

Ainda com relação à caracterização da literatura em razão de seu destinatário, considera-


se lapidar, mais uma vez, a análise de Andruetto (2012):

O emprego desses rótulos (literatura infantil/literatura juvenil e, nesse marco,


literatura de valores/literatura para educação sexual/literatura como temática
ecológica/literatura sobre bons costumes e urbanidade/literatura para os direitos
humanos/literatura para aprender a viver em novas estruturas familiares e tantas outras
classificações que poderíamos preencher) pressupõe temas, estilos, estratégias e,
sobretudo, as metas e o planejamento antecipado de um livro em relação a
determinada função que se acredita que ele deve cumprir. Atribui-se à literatura
infantil a inocência, a capacidade de adequar-se, de adaptar-se, de divertir, de brincar,
de ensinar e, especialmente, a condição central de não incomodar nem desacomodar,
e é assim que outros aspectos e tratamento estão muito pouco presentes, e quando
estão, aparecem com demasiada frequência tingidos de “deve ser assim”, de
obediência temática ou de suspeita adaptabilidade curricular (ANDRUETTO, 2012,
p.58-59).

Para além de inferiorizada, a literatura infantil acaba sendo esvaziada daquilo sobre o
qual deveria repousar alguns de seus principais valores: sua potência investigativa, a
manutenção ativa da curiosidade do leitor, jovem ou não, ao mesmo tempo que ao prescindir
de certezas e manter em aberto as possibilidades de resposta, também se ganharia em
multiplicidade de vias interpretativas. No que diz respeito à essa riqueza de interpretação que a
literatura propicia, Adilson Miguel (2012) bem sintetizou:

As narrativas literárias deveriam ser valorizadas justamente por sua abertura à


interpretação, por sua capacidade de mostrar ao jovem leitor aspectos da humanidade
que o façam pensar. Ao apresentar personagens complexos, inspirados em seres
humanos reais e não em estereótipos improváveis, a literatura estimula o pensamento e
a percepção do mundo com todos os seus problemas e contradições (MIGUEL, 2012,
In: Revista Emília).

Andruetto (2012), por sua vez, sustenta que a literatura é, por definição, o lugar das
incertezas, motivo pelo qual o escritor é aquele que não deve escrever conforme às demandas
do mercado e nem deve estar preocupado em demonstrar determinadas verdades, mas estar
comprometido em procurá-las por meio da escrita, pois “para escrever, é preciso ter grande
disponibilidade para a incerteza e para o questionamento dos próprios atributos e
20

condições13”. Nesse sentido, defende que a conduta ética do escritor repousa no compromisso
com sua estética, liberando a literatura de compromissos que não exibe por si:

O ético na escrita é a exploração de uma verdade estética pessoal. Palavras e homens


ou mulheres que a exercem convertidos finalmente em uma mesma coisa única. Ética
e estética como um todo, porque o estético, na arte, subsume o ético e nos permite
expressar uma verdade sem dogmas. Por isso, a literatura não é o lugar das certezas,
mas o território da dúvida. Nada há de mais libertário e revulsivo que a possibilidade
que o homem tem de duvidar, de se questionar (ANDRUETTO, 2012, p.68).

Ainda sobre a ausência de uma finalidade ou função instrumental como cerne


constituinte da literatura, aponta-se a sensível reflexão de Andruetto que aborda a questão a
partir de um prisma existencial, apontando que a literatura, por ser marca do humano, não pode
se subsumir a uma finalidade específica:

Para que serve a ficção? Tem alguma utilidade? Alguma funcionalidade na formação
de uma pessoa, em nosso caso, de uma criança, ou seja, justamente de uma pessoa em
formação? Todos nós, homens e mulheres, vamos ao dicionário para saber sobre as
palavras, aos livros de ciência para saber ciência, aos jornais e às revistas para ler as
notícias da atualidade aos cartazes de cinema para saber os filmes que estão passando.
Mas para onde vamos quando queremos saber sobre nós mesmos? Nós, os leitores,
vamos à ficção para tentar compreender, para conhecer algo mais acerca de nossas
contradições, nossas misérias e nossas grandezas, ou seja, acerca do mais
profundamente humano. (...) Uma narrativa é uma viagem que nos remete ao território
de outro ou de outros, uma maneira, então, de expandir os limites de nossa
experiência, tendo acesso a um fragmento de um mundo que não é o nosso. Reflete
uma necessidade muito humana: a de não nos contentarmos em viver uma única vida
e, por isso, o desejo de suspender um pouco o transcurso monocórdio da própria
existência para ter acesso a outras vidas e outros mundos possíveis, o que produz, por
um lado, certo descanso ante a fadiga de viver e, por outro, o acesso a aspectos sutis
do humano que até então nos haviam sido alheios. Assim, as ficções que lemos são
construção de mundos, instalação de “outro tempo” e de “outro espaço” “nesse tempo
e nesse espaço” em que vivemos. Uma narrativa ficcional é, portanto, um artifício,
algo, por sua própria essência, liberado de sua condição utilitária, um texto no qual as
palavras fazem outra coisa, deixaram de ser funcionais, como deixaram de sê-lo os
gestos no teatro, as imagens no cinema, os sons na música, para buscar, através dessa
construção, algo que não existia, um objeto autônomo que se agrega ao real. A ficção,
cuja virtualidade é a vida, é um artifício cuja leitura ou escuta interrompe nossas vidas
e nos obriga a perceber outras vidas que já foram, que são passado, posto que são
narradas. Palavra que chega pelo que diz, mas também pelo que não diz, pelo que nos
diz e pelo que diz de nós, tudo que facilita o caminho até o assombro, a comoção, o
descobrimento do humano particular, mundos imaginários que deixam surgir o que
cada um traz como texto interior e permitem compartilhar os textos/mundos pessoais
com os textos/mundos dos outros (ANDRUETTO, 2012, p.53-55).

3.1.O “sentido” da filosofia e da literatura

13
ANDRUETO, 2012, p.57
21

Como vimos anteriormente, filosofia e literatura padecem de uma instrumentalização


excessiva. Apesar de não ser tão solapada e relegada a segundo plano como a literatura, em
diálogo com a filosofia para as crianças, a filosofia, sob esse registro, por consistir justamente
na finalidade pedagógica a ser alcançada no método de Matthew Lipmam, também acaba
ficando restrita à função de exibir resultados e conduzir por caminhos que produzam
necessariamente reflexões específicas, conduzidas sempre com a finalidade de se chegar a um
lugar ou pontos de discussões determinados, garantindo o acesso a conceitos que, por outra via,
seriam herméticos e mais difíceis de se alcançar.

Ironicamente, o “pensar livre” dificilmente é incentivado e associado à ideia de


apresentar a filosofia para crianças, o que nos leva a pensar que, talvez isso se justifique, pelo
recorrente sequestro da expressão “filosofia para crianças” como sinônima ao método
pedagógico de Lipman, inviabilizando pensar a filosofia para a infância a partir de outro
enquadramento.

Ainda nesse sentido, é possível observar que, ao mesmo tempo em que a literatura em
relação à filosofia para crianças aparece apenas como um meio de explicitação desta última, e
nem deveria ser considerada literatura, para além desse cenário, dificilmente nos deparamos
com a relativização de sua importância por si mesma e desvinculada de fins pedagógicos. Pouco
se questiona a validade da literatura em cenários extra-acadêmicos, apesar da literatura infantil
também lutar pela manutenção de seu status como campo teórico autônomo. Já a filosofia,
sobretudo a voltada para crianças, dificilmente aparece apartada de um contexto instrumental e
pedagógico.

A filosofia, de modo geral, já lida com a pecha de ser apenas especulativa e não conduzir
a lugar algum. Além disso, desabilita de modo constante o senso comum, pois como bem
pontifica Walter Omar Koan (2008, p. 37): “Em filosofia, as mesmas palavras ocultam muitas
vezes desacordos profundos na forma como são entendidas”, o que sem sombra de dúvida torna
árdua a tarefa de sua compreensão. E, por fim, mas não menos pertinente, como aponta de forma
bem-humorada Terry Eagleton (2021, p. 13): “Os filósofos têm o hábito irritante de analisar
perguntas em vez de respondê-las”.

As perguntas, aliás, constituem o cerne da filosofia:

(...) a filosofia pergunta, reconhece limites, pergunta, desconstrói o aparente e o falso,


pergunta, dessacraliza os valores afirmados socialmente, pergunta, cuida de si e dos
outros, pergunta, resiste a ordem instituída, pergunta, outra vez pergunta, sempre
pergunta (KOHAN, 2008, p. 20).
22

As perguntas “O que é filosofia?” e “para quê filosofia?” são alvos de seu próprio estudo
e apenas sobre as tentativas de resposta a elas poderiam se erguer bibliotecas. Há ainda, uma
tendência da relativização de seu campo, talvez pela amplitude de temas de que se ocupa, a
polifonia de caminhos e respostas oferecidas, ou pelo senso comum de que o alcance da certeza
conduz à ciência, e a partir daí qualquer filosofia já não tem razão de ser e pode ser descartada.

Mas além disso, parece que sobretudo quando voltada para a infância, a filosofia precisa
necessariamente estar inserida dentro de um contexto pedagógico, seu esforço precisa ser
justificável e aferível através do alcance de alguma baliza de conhecimento, é necessário se
chegar a algum lugar com a filosofia, ainda que seja para o desenvolvimento do famigerado
senso crítico, o desenvolvimento ético, ou ainda para desempenhar um papel regulador das
emoções das crianças. Papel que o estímulo ao raciocínio, liberto de crenças pessoais, é
certamente favorecido pela filosofia, mas não se confundem apenas a ele.

Talvez por se tratar mais propriamente de um modo racional de investigação e, para


isso, promover o constante desmantelamento de certezas consolidadas em juízos parciais e
derrisórios sobre a realidade, a filosofia enfrente com mais frequência a necessidade de
justificar a si mesma.

Também é frequente uma certa mistificação em torno da filosofia, o que acaba por lhe
conferir um grau de abstração maior do que efetivamente possui. Pensar também é faculdade
de todos, razão pela qual se reforça normalmente a implicância com a filosofia por se prestar a
desenvolver algo que, naturalmente, bem ou mal, já se faz.

É preciso também libertar a filosofia de um sentido exclusivamente pedagógico, de ser


instrumento de condução apenas para um pensamento formal, a fim de se reabilitar sua natureza,
por definição, interrogativa da realidade. Os gregos diriam que é por não ter uma única
finalidade que a filosofia vale em si mesma, e é justamente em sua potência investigativa
inesgotável que repousa a maior área de interseção com a literatura.

Por fim, é possível se interrogar se essa recorrente necessidade de instrumentalizar


literatura e filosofia não diz respeito a uma relativa incapacidade e frustração, intrinsecamente
humana, em se deixar navegar por incertezas. Dificilmente lidamos bem com perguntas cujas
respostas nos estejam interditadas e fora de alcance. Da mesma forma, com frequência,
esperamos que as nossas investigações conduzam a respostas certas e seguras e nos auxiliem
na formação de nossas convicções, do contrário não passam de perda de tempo. Também parece
23

recorrente a sensação de desapontamento com obras artísticas de sentido aberto, finais


inconclusivos.

Num mundo em que a lógica vigente nos conduz a olhar para tudo a partir de um viés
de utilidade, é realmente difícil reconhecer valor naquilo que não está dominado sob a esfera
da necessidade, de servir para algo. Quando buscamos incentivar a libertação da literatura e da
filosofia de servirem a finalidades instrumentais, elas deixam de ter a obrigação de nos conduzir
a respostas confortáveis e seguras, e podem ser apenas a manifestação da multiplicidade da
experiência, naquilo, inclusive, que ela tem de mais curioso e intrigante, mas também frágil,
incerto e inseguro. Apesar de nenhum resultado estar garantido, interrogar parece ser ainda a
única postura capaz de estabelecer uma mediação entre quem investiga e a realidade
interrogada.

3.2.A infância como área de interseção entre literatura, filosofia e busca por novos
sentidos

Para além das dificuldades específicas de cada campo, algumas inventariadas acima,
para estabelecerem a si próprias livres de finalidades instrumentais, o diálogo que aqui se
pretende estabelecer entre literatura e filosofia encontra na infância seu público-alvo e setor de
interseção, o que também traz à tona algumas especificidades a serem observadas.

Embora desde a Antiguidade Clássica possa se observar uma tendência a olhar a infância
como uma fase privilegiada da experiência humana14, por outro lado, parecem ser ainda mais
recorrentes as associações dessa fase inicial da vida com os aspectos mais débeis e
despreparados da alma humana. A esse respeito, como muito bem enfatizado por Kohan:

A essa visão negativa da infância alia-se outra que caracteriza a infância como um
estado não acabado. Nesse sentido a infância é vista, sob o prisma do olhar adulto,
como aquilo que será, mas ainda não é, como o não completo, o indefinido (KOHAN,
Walter Omar. 2008, p.13).

14
Embora existam registros que louvam à infância como fase privilegiada da experiência humana, como observa Kohan, tal
privilégio decorre do fato de se tratar do estágio para a preparação para a vida adulta por meio da educação (Paideia): Assim:
“Por isso, considera Platão, deve-se cuidar de todos os detalhes da educação das crianças. Elas são tão importantes, não pelo
que são, mas pelo que podem ser. A educação deve garantir, nesse paradigma, que elas possam ser os adultos que queremos
que sejam”. (KOHAN,2008, p.13).
24

Nesse mesmo sentido, a associação frequente do adjetivo “infantil” como denotativo


de qualidade inferior ou baixa complexidade para a literatura é destacada por Adilson Miguel,
cujo trecho é transcrito a seguir:

Parece que, ao qualificar um texto como “infantil”, o que fazemos é afirmar que se
trata de algo limitado ou restrito. Basta notar que, quando nos referimos à literatura
em geral – em tese, voltada para os adultos –, usamos apenas a palavra literatura, sem
qualquer adjetivação. Por trás disso está a ideia muito frequente de que um texto
infantil deve ser simples, sem grandes dificuldades de entendimento, tendo-se em
vista que o seu destinatário não teria maturidade e esclarecimento para a fruição de
materiais mais complexos, com recursos de linguagem sofisticados. Segundo esse
modo de pensar, os escritos para criança serão sempre secundários ou inferiores
(MIGUEL, 2012, Literatura infantil, In: Revista Emília).

Em sua defesa por uma literatura sem adjetivos, María Teresa Andruetto (2012), como
já se viu no tópico anterior, alerta para o perigo de se associar a literatura para crianças e jovens
por aquilo que ela tem de “infantil” ou “juvenil”, justamente por partir de concepções
preconcebidas sobre o que é uma criança ou um adolescente e, com isso, subordinar o objeto
literário ao atendimento de determinadas funcionalidades, geralmente estipuladas pelo mercado
editorial e segundo pautas vigentes com valores extrínsecos à literatura, e excluindo, por
conseguinte, a literatura que não atender ou se conformar a esses fins. Nesses casos, Andruetto
(2012, p. 69) aponta para a ocorrência de uma inversão:“convertendo, então, a escrita em
infantil (a escrita, não o destinatário), um adjetivo que se voltou contra o substantivo,
absorvendo sua riqueza”.

Com relação ao destinatário, Andruetto (2012) pontua:

(...) O que pode haver de “para crianças” ou “para jovens” numa obra deve ser
secundário e vir como acréscimo, porque a dificuldade de um texto capaz de agradar
a leitores crianças ou jovens não provém tanto de sua adaptabilidade a um destinatário,
mas, sobretudo, de sua qualidade, e porque quando falamos de escrita de qualquer
tema ou gênero o substantivo é sempre mais importante que o adjetivo. De tudo o que
tem a ver com a escrita, a especificidade de destino é o mais exige um olhar alerta,
pois é justamente ali que mais facilmente se aninham razões morais, políticas e de
mercado (ANDRUETTO, 2012, p.61).

Da mesma forma, a associação frequente da infância como o estágio do inacabado,


“aquilo que será, mas ainda não é15”, também mantém ressonância e pode ser associada à
dificuldade que posturas mais dogmáticas têm em lidar com perguntas cujas respostas não
sejam facilmente localizáveis na realidade, ou estejam suficientemente “maduras” para serem
oferecidas como solução definitiva, demandado, ao invés disso, uma busca constante e sem
garantias de resultados satisfatórios.

15
KOHAN, W. 2008, p.13.
25

A maturidade associada “aquilo que já é”, ou aquilo que já alcançou o ápice do que
poderia ser, não deixa espaço para incertezas, o que justifica o recorrente desconforto com as
perguntas em aberto. O inacabado, por sua vez, “daquilo que será, mas ainda não é”, deixa
espaço em aberto para ser preenchido pelo movimento de busca.

Como se verá mais adiante, essa manutenção da busca em estado de latência, como uma
pulsão constante, própria da infância, relaciona-se estreitamente ao movimento reflexivo
exigido na busca por sentido existencial, justamente naquilo que ambos, infância e busca pelo
sentido da vida, possuem de inacabado, estão permanentemente em estado de passagem, num
eterno devir.

É possível observar uma estreita relação da infância com a própria noção de filosofia,
pois como lembra Kohan: “Em sentido kantiano, a filosofia não pode ser ensinada porque ela,
enquanto ideia de uma ciência possível, sempre é inacabada e, portanto, não pode ser nem
aprendida ou apreendida” (KOHAN, 2008, p.18). Em linhas bem gerais, para Kant, pode-se,
no máximo, aprender a filosofar e não filosofia, assim, na filosofia ninguém sai da infância, seu
conhecimento não alcança à maturidade.

Ainda com relação à filosofia e infância, para além do muito que já se falou acerca do
método de Matthew Lipman, é possível destacar esforços recentes de estudiosos em demonstrar
como a natureza investigativa de crianças pequenas pode, muitas vezes, ser traduzida em
questionamentos só encontrados em livros de pensadores da mais alta filosofia.

Vimos que para o método de Lipman é imperioso estabelecer um modelo de


comunidade científica ficcional a fim de inspirar e estimular o raciocínio das crianças reais, o
que pressupõe, assim como geralmente acontece na literatura infantil, uma criança despreparada
para o enfrentamento da realidade e que precisa de tutoria para desenvolver adequadamente seu
raciocínio.

Numa perspectiva quase que oposta à de Lipman também é possível encontrar quem
sustente de modo bastante diferente, o seguinte:

As crianças filosofam com ‘um frescor e uma inventividade que são difíceis de
igualar, mesmo para o mais imaginativo dos adultos’. Esse vigor surge do fato de elas
acharem o mundo enigmático. Anos atrás, uma psicóloga chamada Michelle
Chouinard ouviu gravações de crianças mais novas passando tempo com seus pais.
Em mais de duzentas horas, ela ouviu quase 25 mil perguntas. Isso significa mais de
duas por minuto. Quase um quarto das perguntas buscava explicações; as crianças
queriam saber como ou por quê. (HERSHOVITZ, Scott. 2022, p.21).
26

No recém-publicado “Aventuras pela filosofia com meus filhos”, de cujo texto foi
extraída a citação acima, Scott Hershovitz, professor de filosofia de direito e ética na
Universidade do Michigan, propõe fazer uma incursão em alguns temas filosóficos tendo como
ponta de partida os diálogos travados com seus dois filhos pequenos. Não se trata de um livro
de filosofia para crianças, mas para adultos, como salienta16.

Antes de abordar os temas, porém, o autor apresenta dados de pesquisas que apoiam a
premissa básica da qual parte: crianças mantém um estado latente e mais criativo para a
investigação da realidade que as cercam.

Adultos e crianças filosofam de maneiras diferentes. Adultos são pensadores mais


disciplinados, crianças são mais criativas. Adultos sabem muito sobre o mundo, mas
crianças podem ajudá-los a ver quão pouco realmente sabe. Adultos tendem a ser
cautelosos e circunspectos, ao passo que crianças são curiosas e corajosas.
David Hills (que dá aulas em Stanford) descreve a filosofia como ‘a desajeitada
tentativa de abordar questões que ocorrem naturalmente às crianças, usando métodos
que ocorrem naturalmente aos advogados’. Essa é uma ótima descrição da filosofia
profissional, mas pressupõe uma divisão de trabalho da qual não necessitamos.
Adultos e crianças podem filosofar juntos.
E devem fazer isso. Conversas entre crianças e adultos podem ser colaborativas, já
que cada parte traz algo diferente à mesa. E também podem ser divertidas. A filosofia
é quase um jogo – com ideias. Sim, deveríamos pensar como as crianças. Mas também
deveríamos pensar com elas. (HERSHOVITZ, S. 2022, p.23)

Mas para além da mudança de paradigma promovida por Hershovitz no que tange ao
protagonismo da criança na investigação filosófica, o autor ainda aponta como referência
teórica um outro autor, o filósofo e professor universitário americano, Gareth B. Matthews, que
segundo relata17 (MATTHEWS, 2001, p.1), foi pensando em como dar aulas no curso de
introdução à filosofia para universitários, que começou a se interessar pelo pensamento
filosófico de crianças, tornando-se referência no assunto.

Matthews realizou diversas entrevistas com crianças, de diferentes idades, a fim de


observar como sua forma de interrogar a realidade tem uma afinidade espontânea e natural com
a filosofia. Como sintetizou bem Hershovitz a respeito das entrevistas de Matthews:

Matthews descobriu que ‘excursões espontâneas à filosofia’ são comuns entre os 3 e


os 7 anos. Aos 8 ou aos 9, as crianças parecem desacelerar, ao menos em público. É
difícil dizer por quê. Pode ser que seus interesses mudem ou que elas se sintam
pressionadas pelos pais ou por seus amigos a deixar de fazer perguntas infantis.
Mesmo assim, Matthews achou fácil iniciar conversas filosóficas com crianças dessa
idade e até mesmo mais velhas (...) de certa maneira, as crianças são melhores
filósofas que os adultos (HERSHOVITZ, 2022, p.20).

16
Como o autor declara: “Este livro foi inspirado por crianças, mas não é para elas. De fato, as crianças são meu cavalo de
Troia. Não estou atrás de mentes jovens. Estou atrás da sua.” (HERSHOVITZ, S., 2022, p.23)
17
Prefácio do livro A filosofia e a Criança. Tradução do Philosophy and the Young Child. Matthews, 2001, p.1
27

Em Philosophy of Childhood18, Matthews aventa como hipótese para o progressivo


abandono das perguntas filosóficas pelas crianças mais velhas, entre os 8 e 9 anos, a plena
adaptação escolar das crianças, momento em que elas passam a entender que apenas
questionamentos úteis são esperados delas, assim a filosofia cai por terra e passa a ser uma
busca pessoal, deixa de ser compartilhada com os outros, ou se torna totalmente dormente19
(MATTHEW, 1994, p.5)

Embora se declare admirador de Lipman, é possível observar que a criança é


considerada por Matthews a partir de um ponto de vista bastante distinto: é a criança, para ele,
quem detém as ferramentas adequadas para a investigação filosófica, ao passo que o adulto
deve de alguma maneira regressar à posição de criança para reaprender a questionar e se afastar
de suas certezas inabaláveis:

Como os estudantes universitários logo aprendem em seu primeiro curso de filosofia,


não é fácil se livrar de suposições adultas, mesmo temporariamente, e até mesmo para
um propósito bastante circunscrito. Não é fácil, isto é, para adultos. As crianças têm
muito menos problemas. De certa forma, então, os filósofos adultos que seguem
Descartes na tentativa de "recomeçar" estão tentando se tornar como crianças
pequenas novamente, mesmo que apenas temporariamente. Isso é difícil para os
adultos. É desnecessário para as crianças. Não é que "recomeçar" seja tudo o que há
para se fazer em filosofia. Isso não é verdade. Mas aprender a se sentir confortável
com perguntas "ingênuas" é uma parte importante de fazer bem a filosofia. Assim, por
esta razão, bem como para os outros dois, quando se trata de fazer filosofia, o
pressuposto avaliativo do modelo estágio/maturação percebe as coisas todas erradas20.
(MATTHEWS, 1994, p.18)

Um dos pontos centrais de Philosophy of Childhood, e que merece ser destacado, é a


ideia defendida por Matthews de que a concepção usual de infância é bastante contaminada
pelas noções de maturidade biológica e psicológica.

Embora não ignore ou rejeite o fato de que há, naturalmente, uma evolução biológica e
psicológica que acompanha o desenvolvimento da criança, Matthews sustenta que o raciocínio
filosófico não necessariamente está relacionado e acompanha essa linha evolutiva que depende

18
Sem tradução no país.
19
No original: My hypothesis is that, once children become well settled into school, they learn that only "useful" questioning
is expected of them. Philosophy then either goes underground, to be pursued privately, perhaps, and not shared with others,
or else becomes totally dormant. (MATTHEWS, 1994, p.5) [Tradução da autora]
20
No original: As college students soon learn in their first philosophy course, it isn't easy to rid oneself of adult assumptions,
even temporarily, and even for a fairly circumscribed purpose. It isn't easy, that is, for adults. Children have far less of a
problem. In a certain way, then, adult philosophers who follow Descartes in trying to "start over" are trying to make themselves
as little children again, even if only temporarily. That is hard for adults. It is unnecessary for children. It isn't that "starting
over" is all there is to doing philosophy. That isn't true at all. But learning to be comfortable with "naive" questions is an im
portant part of doing philosophy well. Thus for this reason, as well as for the other two, when it comes to doing philosophy,
the evaluational assumption of the stage/maturational model gets things all wrong. (MATTHEWS, 1994,p.18) [Tradução da
autora]
28

de uma maturidade, seja biológica ou psicológica, sugerindo que pensar apenas a partir dessas
duas chaves não é adequado, da mesma maneira, para examinar a capacidade de reflexão
filosófica de cada indivíduo.

Em muitas áreas do desenvolvimento humano, esse viés de avaliação parece bastante


apropriado. Não queremos que adultos, ou mesmo adolescentes, tenham que mastigar
seus bifes de tamanho adulto com dentes de leite. Mas quando se trata de filosofia, a
suposição é bastante fora de lugar. Há várias razões para isso. Primeiro, não há
nenhuma razão para supor que, simplesmente em virtude de crescer dentro de um
padrão, adolescentes ou adultos naturalmente alcancem um nível adequado de
maturidade ao lidar com questões filosóficas, como por exemplo, ser capaz de discutir
se o tempo poderia ter tido um começo, ou se é possível dizer que algum
supercomputador poderia ter uma mente21. (MATTHEWS, 1994, p.17)

Ao contrário, seus estudos sugerem que, à medida em que a criança vai amadurecendo
do ponto de vista biológico e psicológico, há um declínio da investigação filosófica. Não se
trata, tampouco, de assumir que a filosofia é uma atividade que pressupõe uma imaturidade
cognitiva ou intelectiva. Adultos filosofam, com mais rigor e menos criatividade do que
crianças. O que Matthews sugere é que há uma propensão da criança a interrogar os mecanismos
da realidade que a circundam e fazer hipóteses, de modo muito semelhante ao que filósofos
rigorosos e canônicos também se propuseram a fazer, a fim de determinar racionalmente a
natureza do tempo, do espaço, entre outros problemas do tipo, sugerindo que esse caráter
investigativo não se subordina a processos de maturação exclusivamente biológicos ou
psicológicos.

Importante também dizer que a “ingenuidade” que Matthews atribui como uma
qualidade da criança a ser resgatada pelo adulto na investigação de filosofia de modo algum a
está inferiorizando ou desqualificando intelectualmente, a ingenuidade da criança é justamente
o estado de busca latente, ainda não ceifado pelas necessidades instrumentais de ter apenas
pensamentos e atitudes úteis para o meio social.

Como o autor aponta, a criança aprende, paulatinamente, que só deve questionar algo
se houver utilidade na pergunta. De modo que as mesmas crianças, que nas fases iniciais da
infância, haviam demonstrado uma propensão à interrogação filosófica, tais como, por
exemplo, qual a natureza das cores, do tempo, ou o alcance da ideia de que sem som não

21
No original: In many areas of human development this evaluational bias seems quite appropriate. We don't want grown-
ups, or even adolescents, to have to chew their adult-sized steaks with baby teeth. But when it comes to philosophy, the
assumption is quite out of place. There are several reasons for this. First, there is no reason whatsoever to suppose that, simply
by virtue of growing up in some standard way, adolescents or adults naturally achieve an appropriate level of maturity in
handling philosophical questions— in, for example, being able to discuss whether time might have had a beginning, or whether
some supercomputer might be said to have a mind. (MATTHEWS, 1994, p.17)
29

existiriam palavras e consequentemente não seria possível pensar, nem por isso, com o avanço
da idade, continuaram com o mesmo apetite para o raciocínio filosófico - reforçando a tese de
Gareth B. Matthews, de que o raciocínio filosófico não obedece à mesma lógica da maturação
biológica e psicológica de um indivíduo e, em certa medida, pode ser paulatinamente
abandonado quando não estimulado ou, principalmente, quando o meio social passa a incentivar
de alguma forma um comportamento contrário: que para melhor “adaptação” da criança, seu
impulso investigativo seja refreado.

Por sorte, o protagonismo infantil vislumbrado por Gareth B. Matthews também teve os
seus sucessores. Compartilhando da mesma percepção quanto à familiaridade das crianças com
o raciocínio filosófico, Thomas E. Wartenberg escreveu “Big Ideas for little kids: teaching
philosophy trough children’s literature (2009)22”, onde descreve a sua experiência como
professor da educação infantil e postula em defesa do ensino de filosofia para crianças
utilizando-se de livros de literatura infantil.

Wartenberg primeiro contextualiza seu trabalho fornecendo a informação de que nos


Estados Unidos, a filosofia não é considerada uma disciplina para crianças, motivo pelo qual
passa, de modo semelhante à Matthews, a quem inclusive agradece no prefácio do livro, a
enfatizar o quanto às crianças, por natureza, são muito mais curiosas e abertas às investigações
típicas da filosofia do que os adolescentes.

Wartenberg defende, ainda, que se aproxime a filosofia das crianças através de livros de
literatura infantil, pois segundo ele, tais livros, além de já integrarem o programa curricular,
contam com todo material simbólico e estético necessário para exposição das crianças à
literatura e filosofia, a um só tempo. Segundo o autor, os livros de imagem selecionados são
suficientes “para discutir todas as questões dos principais campos da filosofia, de ética a
estética e de metafísica para a teoria do conhecimento23”.

A implementação do modelo sugerido por Wartenberg depende, por sua vez, da


aceitação de uma concepção diferente de criança da usual e, também, da inversão do papel
conferida a ela no aprendizado. Segundo a inovadora posição de Wartenberg, o professor não
precisa nem saber de filosofia para dar aulas para as crianças, bastando estar disposto a mediar
as discussões que se sucedem às leituras dos livros de literatura, isto porque são as crianças que,

22
Trabalho sem tradução no Brasil. O título em tradução livre seria o equivalente: “Grandes ideias para crianças pequenas:
ensinando filosofia através da literatura infantil”.
23
WARTENBERG, T. 2009, p.xi [Tradução da autora]
30

através de sua curiosidade, levantam os problemas de natureza filosófica e só precisam ser


mediados na discussão que ocorre entre eles mesmos. A inversão na aprendizagem objetiva
coloca a criança no centro de seu próprio aprendizado, o que além de articular literatura e
filosofia de uma forma bastante original, demonstra uma visão extremamente libertadora e não
subestimada da infância.

Todas essas considerações feitas em torno da infância são pertinentes não apenas por se
tratar do público-alvo, tanto da literatura quanto da filosofia, que aqui se pretende examinar e
estabelecer um diálogo, mas por ser a infância um campo que detém desafios específicos e que
não podem deixar de serem levados em conta, quando se fala em literatura infantil, filosofia
para crianças, ou mesmo literatura filosófica para crianças.

Isto porque, parece-nos crucial reconhecer se a literatura infantil – e seus mediadores -


está considerando seu leitor “despreparado” e, por isso, entende que precisa “protegê-lo” e
“poupá-lo” dos aspectos feios e contraditórios da realidade, assim como, da mesma maneira,
ao apresentar a filosofia para crianças, é preciso saber se está se considerando como público-
alvo crianças presumivelmente incapazes de pensar adequadamente por si próprias e que, por
isso, precisam de modelos inspiradores e corretos, exemplo também aplicável à literatura
quando encarna o papel de ser moralizante e edificante; ou se, ao contrário, a criança
considerada é aquela naturalmente curiosa e, por isso, já inclinada ao pensamento investigativo
e filosófico. A diferença é radical e importa.

Parece-nos que olhar para a infância como um estado inacabado e de constante


atualização não exclui a possibilidade de olhar para a criança como um sujeito capaz do próprio
desenvolvimento e que, por isso, não deve ser de nenhuma maneira subestimado, inclusive na
literatura e filosofia concebidas para o público infantil.

4. A busca por sentido como recorte filosófico de análise das obras


Antes de partir propriamente para a análise das obras selecionadas, considera-se
pertinente fazer uma breve exposição da busca por sentido como problema filosófico e dos
motivos que levaram à escolha deste recorte.
Em linhas gerais e de forma bastante esquemática, é possível dizer que a filosofia se
ocupa precipuamente de problemas, cuja estrutura básica é articulada em torno de dois grandes
31

eixos: o ente humano (uma subjetividade24) e, em contraposição, o mundo/realidade exterior ao


indivíduo ou grupo.

Não se pode perder de vista, aliás, que as definições de subjetividade e de


mundo/realidade, por sua vez, também são assumidas como problemáticas pela filosofia e, por
isso, são constantemente atualizadas e revistas, um dos motivos pelos quais falar em “mundo”,
atualmente, é levar em consideração uma noção radicalmente distinta do que seria a
integralidade do cosmo grego, por exemplo. O que deve remanescer desse raciocínio inicial,
porém, é a percepção de uma estrutura inerente à dinâmica dos problemas filosóficos,
responsável por contrapor, de um lado, uma subjetividade humana interrogante, e de outro, uma
realidade externa e de outra natureza, ambos mobilizados com a intenção de se alcançar um
sentido integrador entre ambos.

Em certa medida, todas as tradições filosóficas foram e são impulsionadas pela


expectativa em obter respostas satisfatórias à demanda humana por sentido sobre as questões
que se desenvolvem a partir desses dois grandes eixos – o indivíduo e o mundo, polos em si
mesmo problemáticos e problematizáveis em várias perspectivas. Assim, seguindo uma
dinâmica própria, a ênfase da investigação filosófica ora pode se deslocar e recair sobre o
indivíduo, a subjetividade que interroga, e ora sobre a realidade interrogada. Em outros
momentos, até mesmo as condições de possibilidade dessa busca e de se obter uma resposta
satisfatória, um sentido, são submetidas à exame e alvo de questionamento pela filosofia.

É preciso salientar que muito embora a filosofia seja passível de uma reconstrução
histórica de seus movimentos principais, os problemas filosóficos, por sua vez, não podem ser
subsumidos a uma exposição estritamente linear ou cronológica. Os aspectos históricos, sociais
e culturais são importantes pois contextualizam os problemas da filosofia, mas são valores
extrínsecos a eles.

Assim, os problemas filosóficos não são lineares, tampouco obedecem a uma escala
evolutiva, o que quer dizer que não há uma progressão na dificuldade dos problemas levados

24
Será inevitável, mas nesse primeiro momento evitou-se a utilização da palavra “sujeito”, por se tratar de termo em si mesmo
problemático para a filosofia. Isto porque a noção de subjetividade sofreu grandes modificações ao longo da história da filosofia
ocidental e que não são auto-evidentes. Nossa concepção atual de sujeito foi inaugurada apenas no século XVII, com a
instauração do cogito cartesiano (o “Penso, logo existo” de Descartes) que pressupõe o indivíduo como o centro da operação
de conhecimento sobre o mundo, num processo que culmina com a autodeterminação da razão humana por Kant. O termo
sofreu ainda desdobramentos e ganhou instâncias psíquicas, na Era Moderna, como o ego e superego freudiano, cuja existência
nem se cogitava na Antiguidade Clássica, por exemplo. Mas mais do que uma espécie de anacronismo quando se fala em
indivíduo na Antiguidade Clássica e Idade Média, o termo “sujeito” também pressupõe uma ideia de “verdade” a ser alcançada
pelo homem como centro e detentor do conhecimento com a qual nem toda tradição filosófica posterior se coaduna.
32

em consideração pela filosofia, tampouco a superação e abandono deles por outros, o que se
observa é um movimento, pode-se dizer espiralado, pois sempre exige a retomada de certos
pontos dos quais já se partiu, que demanda a contínua explicitação dos pressupostos tidos por
estabelecidos e convocados à constante revisão e reformulação.

Nesse sentido, ainda de modo bastante esquemático e não exaustivo, é possível indicar
três movimentos e eixos problemáticos principais para os quais propende e se orienta a filosofia:
um primeiro período ou momento que pode ser chamado de metafísico em que a produção de
pensamento gravita em torno da problemática das condições de possibilidade do ser enquanto
ser, ou, em linhas gerais, sobre o que há no mundo, exemplificadas pelas investigações
geralmente impulsionadas pela pergunta “O que é?”, típicas, por exemplo dos diálogos
platônicos; o segundo período é chamado de epistemológico, da investigação sobre o ser, do
movimento metafísico, desdobra-se a investigação a respeito das condições de possibilidade do
conhecimento sobre o que há no mundo, o que pode ser traduzido pela pergunta “Como é
possível saber o que é?”, ou seja, quais as condições de possibilidade para o conhecimento
sobre o ser, questionamento característico, por exemplo, do racionalismo; por fim, já numa
terceira virada de eixo problemático, torna-se premente a fixação das condições de
possibilidade de se alcançar o sentido ou a relação de significação que se estabelece com as
coisas que são e se conhece, em outras palavras, “Qual o significado?”.

Conforme já destacado, cada movimento não representa uma evolução em termos de


dificuldade, tampouco uma superação ou abandono dos problemas de um momento para outro,
a partir das tentativas de respostas obtidas pelos diferentes pensadores ao longo do tempo, o
que se nota é uma coexistência e constante alternância entre essas perguntas de certo modo
centrais, um deslocamento não linear ou progressivo que passa da questão acerca das qualidades
e condições do ser para as condições de validade do conhecimento sobre o ser, e, enfim, às
condições de alcance da significação sobre aquilo que é e se conhece no mundo. É importante
observar que mesmo questões sobre as condições do ser podem estar relacionadas e serem
questionados em relação ao seu significado, por exemplo.

Mais acima se mencionou que perguntas do tipo “O que é?” são recorrentes nos
diálogos platônicos, por exemplo, o que não quer dizer que mesmo nos diálogos platônicos não
seja possível encontrar perguntas de outra natureza, inclusive com relação às condições de
possibilidade do conhecimento sobre o ser ou sua relação de significação. Do mesmo modo,
os períodos que mais se ocupam em investigar o sentido nem por isso prescindem de perguntas
típicas do primeiro ou do segundo momento. O esquema geral que identifica como
33

proeminentes algumas perguntas, em determinados períodos ou momentos, ainda que


historicamente localizáveis, visa tão somente destacar a existência de alguns eixos atemporais
norteadores da investigação filosófica não sendo de modo algum excludentes entre si.

Embora, como se disse, não seja adequada a abordagem aos problemas filosóficos a
partir de critérios exclusivamente histórico-cronológicos, é possível notar um afluxo maior das
questões assinaladas pelo terceiro momento paradigmático assinalado acima, que dizem
respeito às investigações de significado e sentido, no século XIX, e sobretudo início do século
XX, momento em que também frequentemente se destaca a existência de uma cisão entre os
discursos filosóficos da tradição fenomenológica-hermenêutica e a tradição representada pela
filosofia analítica de origem anglo-saxônica, muito embora ambas as tradições partilhem da
preocupação com o mesmo problema, a questão da significação, para a qual cada uma conferirá
tratamento distinto, mas coerente à lógica interna dos problemas filosóficos.

Ainda no que tange a esse terceiro núcleo de problemas da filosofia mais voltado à
investigação do sentido, é possível reconstruir sua trajetória apontando que mais da metade do
percurso traçado pela filosofia ocidental, da Antiguidade Clássica até a segunda metade do
século XIX, se constituiu pelo esforço dos pensadores em atender à demanda humana por
sentido, seja sobre o homem ou sobre o mundo, oferecendo os resultados dessas investigações,
entretanto, como se constituíssem caminhos direto para a “Verdade”.

A partir do advento da fenomenologia, desenvolvida por Edmund Husserl na segunda


metade do século XIX, a possibilidade de acesso à “Verdade”, ou, em outras palavras, o acesso
a um sentido único e exaustivo, passou a ser alvo de questionamento. O que a fenomenologia
concedia era o acesso à realidade a partir da observação dos fenômenos, sobre os quais o ente
humano até pode ter acesso como espectador, mas jamais pode conhecer a integralidade do
mundo ou do real, pois é próprio do desvelamento dos fenômenos o ocultamento de uma de
suas s facetas. O exemplo mais simples e recorrente, para ilustrar o raciocínio, é o de um cubo
projetado num estádio de futebol, onde cada espectador consegue apreender o fenômeno, porém
sem jamais conseguir enxergar todas as facetas deste cubo. Cada observador é capaz de
apreender o fenômeno (o cubo) a partir de um determinado lugar, assim, todos têm a visão do
mesmo objeto, mas a partir de ângulos e perspectivas diferentes.

Importante destacar que a proposta da fenomenologia jamais foi a de relativizar e


banalizar o conceito de verdade, mas questionar a possibilidade de acesso integral a ela. A
fenomenologia propõe que ao invés de se pretender reduzir a realidade a uma única verdade ou
34

sentido deve-se considerar a existência de uma multiplicidade de fenômenos cujo conhecimento


total é impossível.

Estendido o raciocínio fenomenológico para a investigação filosófica acerca do sentido,


a conclusão é que ainda que exista um sentido, para o mundo ou para a existência humana, este
jamais será completamente apreensível, pois é próprio de qualquer fenômeno ocultar uma de
suas faces e não se dar a apreender integralmente. A fenomenologia, assim, instaura uma certa
desconfiança com relação à possibilidade de se alcançar a verdade, e consequentemente um
sentido. E de forma ainda mais contemporânea é possível verificar até mesmo a postulação de
uma superação da noção de verdade e sentido, como se destaca no excerto a seguir:

“Para pensadores como o francês Gilles Deleuze, a própria palavra sentido se tornou
suspeita (...) A própria ideia de interpretação é atacada: as coisas são o que são, não
são signos enigmáticos de outras coisas. O que vemos é tudo o que há. Sentido e
interpretação pressupõem mensagens e mecanismos recônditos e profundezas. Aos
ouvidos pós-modernos, isso soa como metafísica obsoleta. O mesmo vale para o eu,
que deixa de ser uma questão de dobras secretas e profundezas internas e se expõe à
vista, uma rede descentrada em lugar de um espírito elusivo”. (EAGLETON, 2021,
p.32).

Além dessa espécie de crise e esgarçamento do conceito de verdade, que acaba por
colocar em xeque a possibilidade do alcance de um sentido para a experiência universal e
humana, como salienta o crítico literário Terry Eagleton, a pergunta “qual é o sentido da vida?”
tende a gerar uma certa estranheza e ser relegada a posição de um pseudoproblema, pois possui
uma natureza diversa às perguntas cujas respostas podem ser encontradas em algo existente na
realidade positiva ou para algo concreto e objetivo que possa ser oferecido em resposta, como
por exemplo, “qual a capital do Brasil?”. Além disso, de forma bem-humorada aponta: “É
preciso reconhecer que ele [o sentido da vida] tem algo absurdamente exagerado, em contraste
com os pequenos objetos de que acadêmicos como eu costumam se ocupar” (Eagleton, 2021,
p.11).

Fato é que a ausência de uma resposta objetiva à pergunta pelo sentido da vida faz com
que esse tipo de investigação seja, com frequência, invalidado ou tenha sua importância
descartada por tradições filosóficas mais canônicas, sobretudo a derivada da tradição lógico-
hermenêutica, de origem anglicana, que entende ter problemas mais prementes para investigar.

Para muitos filósofos, porém, sobretudo, os da tradição anglo-saxônica


contemporânea, uma questão como essa é o exemplo consumado de pseudoquestão.
Entendem que seria não apenas difícil, mas impossível responder a ela, pois não está
claro que ela admita uma resposta. Desconfiam que seria um jeito empolado, bem
alemão, de dizer simplesmente algo como “Uau!”. Pode ser válida para um poeta ou
místico, mas não para um filósofo. (EAGLETON, 2021, p.15-16).
35

Assim, se levarmos em consideração as tradições que estabelecem a validade de uma


pergunta em função da resposta obtida ser verdadeira ou falsa, a interrogação sobre o sentido
da existência perde a relevância, sendo relegada a posição de um pseudoproblema e, portanto,
impertinente ou inválida dentro do horizonte de problemas de que a filosofia deve se ocupar.
Ainda nesse sentido, Eagleton elucida bem ao estabelecer:

Há uma boa razão para que alguns pensadores considerem essa pergunta [qual o
sentido da vida?] como inócua e carente de sentido. Pois ela é um bom exemplo de
como o sentido pode ser uma questão de linguagem e não de objetos. Refere-se ao
modo como falamos sobre as coisas, não a algo que pertença a elas. (...) podemos dar
um sentido à vida falando sobre ela, mas ela não tem, em si mesma, nenhum sentido,
não mais do que uma nuvem. Não teria sentido, por exemplo, dizer que uma nuvem é
verdadeira ou falsa, pois verdade e falsidade são funções de proposições humanas
sobre nuvens” (Eagleton, 2021, p. 13-14).

Mas para além de não ter deixado de ser pertinente para outra parcela considerável da
filosofia, sobretudo na segunda metade do século XX, é por estarmos, desde o início, buscando
destacar a importância do ato de investigar em detrimento dos resultados obtidos, que a
pergunta pelo sentido da vida se mostrou o recorte mais adequado para demonstrar que a
investigação em si pode valer mais pelo percurso do que pela resposta encontrada, até porque
para a pergunta sobre o sentido da vida não há resposta, ao menos não uma unânime e definitiva.
Aqui, Eagleton, mais uma vez, é lapidar:

Nada disso, por certo, nos aproxima minimamente do sentido da vida. Mas vale a pena
examinar a questão, pois sua natureza é importante para que se determine o que
poderia ser uma resposta a ela. Na verdade, difíceis são as questões, não as respostas.
Sabe-se que tipo de resposta as questões tolas costumam receber. Formular uma
questão certeira pode abrir horizontes novos ao conhecimento, com outras questões
vitais em seu ensejo. Filósofos de propensão dita hermenêutica veem a realidade como
tudo o que oferece resposta a uma questão. Mas a realidade, como um criminoso
experiente, só responde quando é interrogada, e o faz de acordo com os
questionamentos que lhe são feitos. (...) as questões não surgem num vácuo. E, se não
trazem respostas amarradas a elas, como se fossem caudas, sugerem o tipo de resposta
mais pertinente, e apontam para diferentes direções, indicando uma solução. Não seria
difícil escrever a história do conhecimento em termos do tipo de questão que os
homens e as mulheres julgaram possível ou necessário formular. Nem toda questão
pode ser feita em todos os tempos. Rembrandt não poderia se perguntar se a fotografia
tornou redundante a pintura realista.
Isso não quer dizer que todas as questões tenham respostas. Tendemos a pressupor
que, se há problema, deve haver solução, assim como temos o estranho hábito de
imaginar que coisas fragmentadas poderiam ser reunidas. Mas há muitos problemas
para os quais provavelmente jamais encontraremos soluções, e há muitas questões que
permanecerão sem resposta (EAGLETON, 2021, p.20-21).

A busca por sentido existencial é frequentemente confundida como sendo um corolário


de apenas uma de suas vertentes: o existencialismo francês, corrente intelectual cujo apogeu
aconteceu na década de 1950, encontrando na figura de Jean-Paul Sartre um de seus máximos
expoentes, momento em que a associação entre vida/existência humana a conceitos como
36

angústia e contingência passam a ser mais recorrentes, a partir da segunda metade do século
XX, sobretudo durante e pós Segunda Guerra Mundial.

Questionar o sentido da existência, entretanto, não constitui propriamente o registro de


uma época, porém como parte de uma cultura do questionamento aparece com mais frequência,
tanto na filosofia como na literatura, dentro de um contexto de crise. Não à toa: “Uma das
razões pelas quais o século XX tanto meditou sobre o sentido da existência é que em nenhum
outro período a vida humana valeu tão pouco” (Eagleton, 2021, p.37).

Como problemática tipicamente filosófica, porém, a pergunta sobre o sentido da


existência humana é objeto de reflexão e sua investigação pode ser rastreada, sem exagero,
desde a Antiguidade Clássica, como já denunciava o aforismo socrático “Conhece-te a ti
mesmo”, remontando a uma tradição muito mais longa e anterior, e ocupando o centro do
pensamento de autores como Pascal, Kierkegaard, Jaspers e Heidegger.

Perguntas sobre a natureza do ser/da existência humana não escaparam da elocubração


nem mesmo dos pensadores racionalistas, no Iluminismo, proeminentemente mais preocupados
em estabelecer o que era a racionalidade e as condições de possibilidade do conhecimento
humano, mas que também não se afastaram dos desdobramentos éticos derivados da
investigação por sentido, valendo lembrar, que o imperativo categórico de Kant e a resposta à
pergunta, “como o homem deve agir”, implicava, para o autor, na investigação prévia
impulsionada pela pergunta “o que é o homem?”

Em linhas gerais, também é possível dizer que as tradições filosóficas que se


desdobraram na busca pela obtenção de um significado ou sentido, seja para o mundo, seja para
a existência humana, buscaram encontrar algo não encontrado objetivamente na realidade ou
mesmo no interior da subjetividade humana.

Isto porque, quando a ênfase da investigação recai sobre o sentido da existência não é
para uma natureza externa que a busca por uma resposta satisfatória se dirige, mas para os
pressupostos e atributos que compõem ou fazem parte da existência humana e, portanto, das
condições ontológicas do indivíduo que se debruça sobre si mesmo e submete a própria
existência a um minucioso exame.

Embora tenha assumido diferentes abordagens, ao longo do tempo, perguntas como: (i)
quem eu sou?; ii) por que sou assim?; iii) em que medida é possível modificar/atualizar a
existência concreta a partir de interferências externas?; iv) quais seriam os elementos gerais da
37

condição humana?; (iv) e por conseguinte, se há, ou não, algo efetivamente que possa ser
denominado ou atribuído como uma natureza ou condição humana?, e se houver, sobre quais
pressupostos estaria assentada?; E, sobretudo; (v) qual a finalidade/o sentido que se deve
atribuir à existência humana?; são perguntas que perpassam toda a história da filosofia,
mantendo como traço geral a investigação dos elementos constitutivos do ente humano.

Já havíamos frisado que, em certa medida, a história da filosofia poderia ser resumida
como uma longa e polifônica tentativa em encontrar o sentido do mundo ou do próprio homem.
Com relação à expectativa em obter respostas satisfatórias à demanda por sentido existencial é
possível divisar dois grandes grupos: as tradições filosóficas cristãs e as tradições pré-cristãs
ou não-cristãs. O traço distintivo entre ambas é marcado pelo apoio ou recusa de Deus, ou
qualquer outra causa transcendente, como meio para alcançar o sentido buscado.

Segundo a tradição cristã, os homens teriam sido alijados da possibilidade de encontrar


o sentido à própria existência desde o pecado original, pois estariam divorciados da Verdade,
somente no Éden havia ainda plenitude e unidade com o divino. Após a expulsão do paraíso,
toda busca do homem passou a ser inócua, uma vez que o sentido humano jamais seria
suscetível de suplantar o divino, tampouco garantir plena integração com o mundo. A
possibilidade de reencontro com a unidade foi dilacerada e o mundo e a existência esvaziados
de um sentido. Assim, o agir humano passou a dever ser orientado para buscar sentido somente
em Deus, único garantidor de uma existência com sentido.

Com relação à tradição cristã do sentido, Eagleton faz um aparte, bastante pertinente, ao
considerar que até mesmo o registro da pergunta sobre o sentido da vida para essa parcela da
tradição filosófica é bastante diferente da parcela que rejeita o alcance de sentido com apoio
num transcendente:

A questão “Qual o sentido da vida?” teria parecido a um hebreu antigo tão excêntrica
quanto a questão “Você acredita em Deus?”. Em nossos dias, essa questão equivale,
para a maioria das pessoas, incluindo parte das religiosas, a questões como “Você
acredita em Papai Noel?”, ou “Você acredita em abduções por extraterrestres?”. Desse
ponto de vista, há toda uma gama de seres que podem ou não existir, desde Deus até
os alienígenas, passando pelo Abominável Homem das Neves e o monstro do Lago
Ness. Não há evidências definitivas, e, por isso, as opiniões se dividem. Já para um
antigo Hebreu, a questão “Você acredita em Deus?” significava outra coisa. Pois como
a presença de Jeová era declarada pela terra e pelos céus, a questão só poderia
significar “Você tem fé em Jeová?”. Era uma questão prática, não um problema
intelectual, versava sobre uma relação, não sobre uma opinião.
(...) A ideia [para os hebreus] de que uma vida poderia ter um sentido peculiar,
diferente do sentido da vida de outra pessoa, seria, provavelmente, rejeitada por
completo. O sentido da vida de cada um consistia na função que ela desempenhava
num todo maior. Fora desse significado, o indivíduo era como um significante vazio.
O significado original da palavra indivíduo é: indivisível ou inseparável de. (Eagleton,
2021, p.30/31).
38

Nem por isso deve se considerar que a existência não era de algum modo
problematizável para essa parcela da tradição que apontava em Deus o sentido de sua existência:

Sentir que sua própria vida é uma função de um todo maior não impede que se tenha
robusta consciência de si mesmo, pois o que está em questão é o sentido da
individualidade, não sua realidade. Isso não quer dizer que povos pré-modernos não
se perguntassem quem são ou o que estariam fazendo neste mundo, mas apenas que
essa questão não parece tê-los perturbado tanto quanto ela perturbou Albert Camus ou
o jovem T.S. Eliot; o que se explica, em boa medida, pela fé religiosa. (EAGLETON,
2021, p.31).

Já para qualquer grupo da tradição do pensamento, que tenha procurado atender a


demanda existencial por sentido, sem apelo à transcendência ou em abolição à ideia de pecado
original, a capacidade de buscar sentido encontra-se identificada à própria razão humana. Para
grande parcela das correntes de pensamento que não adotaram Deus como resposta, é a própria
razão humana como detentora do conhecimento sobre as leis naturais que regem o mundo
dotadora do sentido que o mundo não exibe por si, observa-se que para essa visão não é a
existência que alcança um significado, mas a inteligência humana em relação ao mundo.

Em razão da abolição de uma causa transcendente dotadora de sentido, proliferaram as


tentativas de respostas atribuidoras de sentido à experiência humana, o que é razoavelmente
lógico se considerarmos que o esvaziamento de um sentido único para todos (Deus), e a
possibilidade de diferentes sentidos individuais, torna a existência mais problemática em si
mesma.

A existência humana, ainda quando afastada do argumento da gratuidade e permissão


divina, permanece sendo algo que desafia a lógica e pacto de previsibilidade da manutenção da
realidade, tal questionamento também auxilia a manter a angústia e espanto derivados do fato
de apesar de ser perfeitamente natural que nada existisse, apesar de tudo, ainda assim existimos.

Ainda dentro das tradições que aboliram o apoio numa causa transcendente para a busca
de sentido, é possível observar outras direções. Para alguns, a ausência de um todo significativo
fornecido pelo mundo implica num dever aos homens de convergirem para a criação do sentido
que o mundo não exibe por si, a responsabilidade de construir um sentido é, então,
exclusivamente humana. Esta era a direção apontada, por exemplo, por Nietzsche, para quem
se fazia necessária a destruição e rompimento com todas as concepções anteriormente vigentes,
sobretudo as correlatas à moralidade cristã, que criticava e apontava como responsável por criar
uma realidade suprassensível como promessa de consolo e unidade.

É nesse ponto que se considera particularmente interessante retomar o pensamento de


Albert Camus, pois embora a busca por sentido da existência não tenha sido filosoficamente
39

inaugurada por ele, a busca por sentido existencial é central na sua obra, constituindo o ponto
de partida para a análise dos caracteres da existência humana.

Mas mais do que ocupar o centro de seu pensamento, o que Camus enfatiza é a
impossibilidade absoluta de encontrar um sentido para a existência, apesar da busca ser o
propulsor de toda investigação humana, a condição humana é, por definição, incapaz de
encontrar um sentido para si própria e, ao mesmo tempo, a despeito dessa impossibilidade, essa
subjetividade está condenada a buscar incessantemente o sentido de que é carente.

Para Camus, a busca por sentido atende a um desejo inafastável, inerente à condição
humana, por clareza e unidade. Em outras palavras, o ente humano busca um sentido em si e
no mundo a fim de unificar-se, aderir a ele em uma unidade, como forma de pacificação.
Alcançar um sentido significa, portanto, o mesmo que conseguir organizar o caos da
experiência humana.

Embora Camus conceda a inafastabilidade do desejo humano por clareza e unidade, ele
conclui que a pretensão humana se choca contra um mundo fechado ao apelo humano, recaindo
no vazio. Assim, nenhum movimento da razão humana é capaz de alcançar um todo
significativo que atenda a demanda por unidade e sentido.

Além de evidentemente se situar dentro das linhas de pensamento que aboliram


completamente a possibilidade de encontro de sentido em Deus ou outra causa transcendente.
Ao concluir pela impossibilidade de obter sentido, Camus se afasta tanto da metafísica clássica,
que a exemplo de Platão, defendia a existência de um princípio supremo garantidor do encontro
com a unidade, inclusive, num mundo extraterreno e suprassensível; quanto contraria e, em
certa medida, radicaliza a constatação nietzscheana que incumbia ao homem a tarefa de criar o
próprio sentido de acordo com a vontade de poder.

Para Camus, é um traço característico, e trágico, da condição humana estar condenada


a se lançar incessantemente num movimento de busca pela validade e sentido da própria
existência, sem jamais conseguir obtê-lo, não importando o esforço empenhado.

É nesse sentido que o autor retoma a figura mitológica de Sísifo, que segundo conta a
mitologia grega, depois de tentar fugir da morte e enganar Zeus, foi condenado a rolar
eternamente uma pedra gigantesca montanha acima, para ao atingir o topo, depois de muito
esforço, vê-la rolar montanha abaixo para o ponto de partida, reiniciando-se, assim, a sua
40

penitência, infinitamente. A escolha de Sísifo não é arbitrária, a inutilidade de seu esforço é a


mesma da busca por um sentido existencial, segundo Camus.

Mas diferentemente do que se poderia pressupor, não é com pessimismo ou adotando


uma postura de abandono que Camus conclui “O Mito de Sísifo”. A célebre frase final do ensaio
surpreende ao prescrever: “É preciso imaginar Sísifo feliz25”.

Mesmo depois de assinalar a inutilidade do esforço na busca por sentido para a própria
existência, Camus também enfatiza que em se tratando de um movimento inderrogável, do qual
não se consegue abdicar, não resta outra saída senão enxergar alguma felicidade e beleza na
latência dessa busca vital e abraçá-la.

O quê Camus de alguma maneira ensina com essa sua visão e que parece ser bastante
pertinente para o que se vem buscando propor desde o início, é que mesmo diante da
impossibilidade de obtenção de uma resposta, a exploração e investigação, seja literária,
filosófica ou existencial, pode ser extremamente valiosa em si mesma e pode permanecer em
aberto e sem solução sem que sua premência deixe de ser pertinente. Ou como bem sintetiza
Eagleton, mais uma vez: “Para os que ardentemente buscam pelo sentido da vida, a questão é
tudo o que importa”. (Eagleton, 2021, p.45).

E por fim, apenas para se destacar a inexistência de um ponto de chegada tampouco um


consenso sobre a pergunta sobre o sentido da existência humana e ainda assim a importância
latente da manutenção de sua busca, reproduz-se os questionamentos levantados por Eagleton
e que permanecem todos em aberto sobre o tema:

Por que a vida teria um sentido único? Assim como podemos atribuir à vida muitos
sentidos diferentes, é possível que ela tenha variados sentidos intrínsecos, se é que
tem algum. Talvez operem nela muitos diferentes propósitos, alguns deles
contraditórios entre si. Ou talvez a vida mude de sentido de tempos em tempos, como
fazemos. Por que supor que o que é dado ou intrínseco seria estável e invariável? E se
a vida tiver um propósito, mas tal que não coadune, em absoluto, com os nossos
projetos? Pode ser que a vida tenha um sentido, mas que a maioria das mulheres e
homens que um dia existiram tenha se enganado a respeito. (EAGLETON, 2021,
p.47).

5. Análise das obras


5.1.O sentido da vida, de Oscar Brenifier e Jacques Després. Tradução Beatriz
Magalhães. Ed. Autêntica, 2013.

25
CAMUS, A. O mito de Sísifo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2018, p.141.
41

“O sentido da vida”, escrito por Oscar Brenifier e ilustrado por Jacques Després, é um
dos títulos da coleção “filô ideias”, publicado no Brasil pela editora Autêntica. Cada título da
série busca trazer proposições contrastantes acerca de alguns temas nucleares para a filosofia,
voltado para o público mais jovem. Integram a coleção títulos como: “O amor e a amizade”;
“O bem, o mal”; “A questão de Deus”, “O livro dos grandes opostos psicológicos” e o carro-
chefe da série: “O livro dos grandes opostos filosóficos”.

Oscar Brenifier é doutor em filosofia e educador francês, é também um dos autores do


relatório da Unesco26 que defende a propagação do ensino de filosofia pelo mundo para a
formação de indivíduos plenos e capazes. Além de diversas publicações voltadas para o público
infantil e adolescente, Brenifier promove oficinas de filosofia prática ao redor do mundo, sendo
admirador declarado e uma espécie de sucessor de Matthew Lipman27. O ilustrador, Jacques
Després, também francês, é um dos precursores da imagem virtual, possuindo trabalhos em
diversas áreas, como documentários, videogames, arquitetura e cenografia.

O projeto gráfico da coleção lhe confere uma identidade visual consistente e coerente
com a proposta de Brenifier em demonstrar que há muitas e distintas maneiras de se pensar
conceitos amplos e abstratos, tão caros à filosofia. Para atender essa finalidade, os livros
possuem uma determinada estrutura na apresentação textual e visual do tema explorado.

De forma geral, a introdução de cada livro anuncia o caráter fenomenológico da


abordagem conferida ao tema tratado nas páginas subsequentes, enfatizando, sobretudo, a
possibilidade de se ter concepções muito diferentes e inclusive opostas sobre um mesmo tema.

26
La philosophie, une école de liberté (Filosofia, uma escola de liberdade)
27
Mais informações podem ser encontradas no site do autor: www.brenifier.com. Acessado em 20/08/2022.
42

A título de exemplo, destacamos abaixo as páginas iniciais de dois dos livros da coleção:
“A questão de Deus” e “O sentido da vida”. Observa-se que até mesmo a estrutura frasal
utilizada para a inserção do tópico é a mesma nos dois exemplos ilustrados. As palavras
“opostas”, em referência às concepções ou ideias, e o tema, enunciado em seguida, também
aparecem em negrito e separados, em destaque, na segunda linha, em ambos os livros:

(A questão de Deus. Brenifier, O. 2013, p.4-5)

(O sentido da vida. Brenifier, O. 2013, p.4-5).

Depois de anunciado o tópico, com a ressalva de que é possível pensá-lo de diversas


maneiras, o texto, em geral, é estabelecido a partir de proposições acerca do tema, disposto a
cada dupla de páginas em afirmações curtas, contrastantes e em sentido antagônico entre si,
sendo ambas assertivas, porém, igualmente válidas, do ponto de vista racional, não excludentes
e aplicáveis ao assunto em questão, como forma de enfatizar a inexistência de um consenso e a
43

pertinência da investigação sobre o tema em relevo, cujo sentido mantem-se permanentemente


em aberto.

Para além do pareamento do texto, em afirmações opostas entre si, a cada dupla de
páginas, o efeito da contradição é complementado e aprofundado pelas ilustrações de Jacques
Deprés, num verdadeiro trabalho de coautoria, onde as imagens não só complementam, mas
também adicionam camadas de sentido ao texto e lhe conferem, de certa maneira, um fio
condutor, já que as obras não apresentam uma estrutura narrativa, ou seja, não há uma história
sendo contada, mas a constante oposição e tentativa de síntese entre ideias díspares. Aqui, mais
uma vez, considera-se pertinente o exemplo coletado do livro “A questão de Deus”:

(A questão de Deus. Brenifier, O. 2013, p.8-9)

Em todas as obras da coleção, como pode se observar, o texto tem seu sentido
potencializado pelas imagens virtuais de pequenos bonecos com feições humanas, muito
semelhantes às figuras colecionáveis28, com a cabeça mais avantajada em comparação ao corpo
pequeno e esguio, e olhos maiores e mais expressivos do que o restante da expressão facial.

Nas imagens, os bonecos trajados em macacões com capuzes coloridos, em um ar


futurista, aparecem em diferentes cenários e realizando diversas atividades comuns do
cotidiano. Embora apresentem uma unidade visual, sejam todos do mesmo tamanho e tenham
o mesmo corpo, a diferença e particularização entre eles fica por conta das cores dos macacões,
cabelos e acessórios que utilizam, e pelas atividades de que vão se ocupando ao longo do texto,
mas não necessariamente em conexão a ele, já que o texto não sugere ação alguma. Além de

28
Estou me referindo aos Pops, as figuras de vinil colecionáveis da marca Funko, ou mais conhecidos como Funko Pop.
44

recursos gráficos de ambientação que reforçam a percepção visual de quantidade, profundidade


e amplitude dos cenários propostos e, principalmente, da ideia de oposição e contraste entre as
ideias propostas.

Todas essas considerações podem ser atribuíveis à coleção “filô ideias” como um todo,
tratando-se de elementos gerais presentes em todas as obras, o que reforça a unidade do projeto
gráfico e coerência do projeto.

No que tange mais especificamente ao “O sentido da vida”, o livro apresenta vinte e


quatro proposições sobre o sentido da vida, em doze pares de afirmações opostas entre si.

Apesar de contrapor ideias opostas acerca do sentido da vida, não há qualquer sugestão,
nem pelo texto, nem pelas imagens, de discórdia ou disputa entre as diferentes ideias
contrapostas. As diferentes concepções de sentido da vida são apresentadas sempre num mesmo
plano, nenhuma das ideias é destacada como proeminente ou mais relevante do que outra,
também não há qualquer intenção em fazer prevalecer uma ou algumas delas em detrimento
das demais, o texto não toma partido ou advoga em defesa de um determinado registro ou visão
do sentido de vida, e as imagens sugerem uma coexistência harmônica e pacífica entre as
diferentes visões representadas.

É possível observar que cada dupla de páginas atua no interior da obra como um
microcosmo do tema abordado, possuindo valor autodelimitado em si mesma, de modo que
cada um dos doze pares de ideias contrapostos apresenta uma unidade de sentido que poderia
ter existência autônoma e apartada da obra, por exaurir a finalidade de apresentar a oposição de
ideias em torno da questão do sentido de vida. Cada par de afirmações opostas poderia,
igualmente, ser reagrupado ou reordenado em outra ordem de exposição, considerada a ausência
de estrutura narrativa da obra, e ainda assim preservar a intenção nuclear de apresentar visões
contrastantes do sentido da vida.
45

(O sentido da vida. Brenifier, O. 2013, p.26-27).

A coesão, ordenação e certa linearidade da experiência de leitura da obra é em sua maior


parte conferida pelas ilustrações, que concedem uma unidade ao problema encarado por todos
os personagens visualmente homogêneos, aspecto que pode ser considerado em estreita relação
à natureza comum e geral do problema de sentido existencial. A linearidade da obra só não
pode ser atribuída exclusivamente às ilustrações, pois o texto apresenta uma estrutura
introdutória do tema, e na última página o conclui, devolvendo a pergunta para o leitor “E
você?”, possuindo certa ordenação que também não poderia ser ignorada, sob pena de
desorganizá-lo.

É possível ainda estabelecer uma aproximação e paralelo da representação gráfica e


visual homogêneo dos personagens, em suas características mais gerais, tais como o padrão,
cor do corpo, tamanho, proporções, traços faciais, às condições mais amplas e abstratas da
condição humana, ou seja, a parcela humana atribuída a todos de forma uniforme e indistinta,
ao passo que os elementos gráficos utilizados para particularizar os personagens, como os
acessórios, as cores dos macacões, os cabelos, estabelecem uma relação maior proximidade
com o indivíduo, concreto e existente para quem a investigação do sentido da vida afeta
diretamente e de modo particular e único.

Assim, também é possível estabelecer uma conexão entre a multiplicidade de respostas,


oferecidas pelo texto de Brenifier em “O sentido da vida”, e à individualização e caracterização
de cada personagem, como se a ideia apontada no texto para o sentido da vida conferisse
46

particularidade e individualizasse o personagem ali ilustrado, atuando a definição da ideia de


sentido como mais um traço da caracterização individual do personagem para além de seus
elementos gráficos particularizantes como o cabelo, o acessório utilizado e a cor da roupa. Aqui
também, o perfeito casamento entre texto e imagem ajuda a aprofundar essa percepção.

Importante dizer que embora as imagens amplifiquem a oposição das ideias no texto, as
ações executadas pelos bonecos-personagens não são necessariamente opostas entre si, tal
como no texto. Não se trata de mostrar um personagem subindo uma escada, por exemplo,
enquanto outro desce, como seria presumível e até banal. Ao contrário, no mais das vezes, os
personagens ocupam as duplas de páginas compartilhando tanto o cenário quanto a ação, eles
estão, por exemplo, sentados em carteiras escolares, ou olhando estrelas. As atividades
desempenhadas pelos personagens conseguem enfatizar a existência de percepções diferentes a
partir do mesmo objeto em jogo, o que amplifica como resultado, a um só tempo, a percepção
da ausência de um consenso para a ideia explicitada no texto, mas salientando, sobretudo, a
possibilidade de harmonia entre duas posições díspares, alcançada pelas imagens.

(O sentido da vida. Brenifier, O. 2013, p.8-9).

Também não é possível dizer que a ação desempenhada pelos personagens é sugerida
ou acompanha o texto, pois, como já se disse, não há uma história sendo narrada, mas
proposições acerca de um conceito que vão sendo contrapostas e têm seu sentido ampliado pela
ação e expressão dos bonecos na ilustração, motivo pelo qual é possível sustentar que são os
personagens que conferem unidade e uma certa linearidade ao texto.
47

O grande mérito de O sentido da vida é manter em aberto a questão que o norteia. Não
há sequer a sugestão de uma solução possível ou simplificação da busca, as proposições
conflitantes entre si, além de assinalarem a impossibilidade de um consenso e termo comum
que garanta a resposta, apontam para a liberdade individual de escolha quanto aos diferentes
pontos de vista a partir dos quais é possível acessar e mobilizar a própria busca por sentido
pessoal, mesmo as afirmações quando consideradas individualmente não são apresentadas
como convicções estáticas e absolutas, no final das contas, apenas menciona-se haver pessoas
que pensam de determinada forma enquanto outras pensam de forma oposta, o questionamento,
entretanto, atravessa a todos de modo indistinto. A pergunta “E você?”, feita na dupla final de
páginas, com todos os personagens voltados com suas expressões para a frente, propõe ao leitor
o compartilhamento da pergunta feita por todos os personagens. É a hora do leitor debruçar-se
para dentro de si mesmo.

Como se disse, o mérito do livro, a nosso ver, é explorar diferentes possibilidades de


resposta à pergunta pelo sentido da vida, sem a intenção de exaurir as tentativas de resposta,
mantendo, como não poderia deixar de ser, a dúvida em aberto, além de acenar ao leitor a
possibilidade dele mesmo ser o autor de sua resposta.

Outro ponto digno de nota, é que o livro não subestima seu leitor, embora de leitura
bastante acessível, as camadas de sentido da obra, amplificadas pelo casamento com as
imagens, tornam o livro pertinente e interessante não apenas para as crianças menores, mas
também para leitores autônomos e até para o público jovem, mostrando que o sentido
existencial pode ser objeto de questionamento desde muito cedo e ainda se manter relevante em
qualquer idade, já que a questão perpassa o indivíduo de forma atemporal e o livro não
encapsula a questão tornando-a a restrita a apenas uma faixa etária.

Também é preciso salientar o impecável trabalho de síntese operada por Brenifier, sem
que haja qualquer menção a pensadores ou correntes filosóficas, é possível observar que as
proposições sobre o sentido da existência traduzem correntes do pensamento filosófico sobre o
assunto, tais como os niilistas que defendem não haver significado algum, os utilitaristas que
acreditam que a vida deve ser proveitosa e útil, traduzindo-se em facilidades e benefícios, há
também reminiscências ao pensamento clássico que associava à finalidade da vida ao encontro
da felicidade, e ainda a que defendia o encontro da felicidade desde que derivada de muito
sacrifício e esforço.
48

Tão impecável síntese pressupõe, por sua vez, um grande trabalho prévio de
investigação filosófica, e a crítica que pode ser feita à obra repousa justamente na ausência de
compartilhamento do percurso investigativo do autor: é perfeitamente possível ler e
compreender o texto sem conhecimento prévio algum das diferentes correntes filosóficas sobre
o assunto - o que sem dúvida é um dos muitos méritos do livro - , porém, não há um estímulo
a conhecer o percurso traçado para alcançar as proposições feitas sobre o sentido da vida.
Embora o leitor seja convidado, ao final, a interrogar-se sobre o sentido da própria existência,
o percurso do autor não é compartilhado, o leitor é um espectador das dúvidas e tentativas de
definição dos muitos personagens do livro.

Por fim, é possível, talvez, questionar o caráter literário do texto. Decerto, a obra não
pode ser considerada como um livro informativo, pois embora apresente proposições sobre o
sentido da vida, como se disse há pouco, não há nenhuma indicação das diferentes tradições
filosóficas que o autor reconstruiu para apresentar suas proposições.

Por outro lado, não é possível restringi-la como literatura infantil, o objetivo da obra
parecer ser o de mostrar aos leitores – em sua diversidade, inclusive etária - as múltiplas
possibilidades de abordagem a um mesmo problema filosófico, cuja investigação está
permanentemente em aberto e jamais se esgota, podendo ser retomada e atualizada a qualquer
tempo.

5.2.A alma perdida, de Olga Tokarczuk e Joanna Concejo. Tradução de Gabriel


Borowski. Editora Todavia, 2017.

(Imagem da capa de A Alma perdida)


49

“A alma perdida” é um livro-imagem, elaborado em coautoria pela escritora e


vencedora do Nobel de literatura, Olga Tokarczuk, e ilustrado por Joanna Concejo, ambas
polonesas. A publicação no Brasil, pela editora Todavia29, já pode ser assumida como um
indicativo de que embora classificada como literatura infantil e juvenil, a obra destina-se a todos
os públicos, sem restrição de idade.

Por se tratar de um livro em que tanto a autora, Olga Tokarczuk, quanto à casa editorial,
não são propriamente voltadas para o público infantil, considera-se oportuno relembrar as
palavras de María Teresa Andruetto (2012, 43) ao falar sobre a seleção de livros para crianças
e jovens:

Entretanto, na hora de escolher novelas, livros de contos ou poemas para a coleção


destinada a jovens leitores que dirijo, o mais interessante provém quase sempre de
escritores que não escrevem exclusivamente para crianças ou jovens. Eu gostaria que
o campo da LIJ não tivesse proprietários, mas inquilinos, visitantes e viajantes, gente
que simplesmente escreve e em cuja escrita por vezes assoma algum escrito que pode
ser lido por leitores crianças ou jovens. (ANDRUETTO, 2012, p.43).

A Alma Perdida pode, certamente, ser apontado como um exemplo de livro escrito por
alguém que simplesmente o escreveu e cujo resultado pode ser lido desde o leitor mais jovem
até o adulto, como menciona Andruetto acima.

Com efeito, seja pela profundidade da metáfora trabalhada pelo texto, seja pelo
acréscimo de construção narrativa propiciado pelas ilustrações, a obra abre-se a múltiplas
possibilidades de experiência leitora e níveis de análise, tendo a proeza de ser acessível para o
leitor de qualquer idade, e sem jamais subestimá-lo.

O livro demanda um olhar curioso e atento para os detalhes, exigindo uma constante
retomada, um “ir além e voltar” por entre as páginas, a fim de possibilitar a observação mais
acurada e a certificação da existência de alguns elementos que, num primeiro momento, podem
parecer arbitrários ou contingenciais à obra, e até por isso, podem passar despercebidos, mas
que, na verdade, são indispensáveis à construção e amplificação do sentido da narrativa, como,
por exemplo, a presença das plantas ao longo de todo o livro: Observados isoladamente, os
vasos com plantas, presente na maior parte das páginas, podem não representar nada para além
de sua presença, mas ao longo da narrativa auxiliam na construção do sentido, potencializam o

29
A Todavia é uma casa editorial com cinco anos de trajetória e diversas publicações voltadas sobretudo para literatura
contemporânea, sendo a responsável pela inserção no mercado editorial brasileiro de grandes obras com apuro literário mas
que, ao mesmo tempo, fogem do “mainstream”, sendo notadamente voltada para o público adulto, não se tratando de uma
editora especializada e voltada ao público infantil. “A alma perdida”, apesar de classificada como literatura infantil e juvenil
não parece ter apenas um público-alvo específico, sendo pertinente e atrativo para qualquer pessoa, motivo pelo qual a presença
do livro no catálogo da Todavia não destoa de seu perfil editorial.
50

efeito da passagem do tempo, e também fornecem uma chave interpretativa para o cultivo da
espera, colocado em jogo pela narrativa.

Assim, enfatiza-se, desde o início, que a leitura e análise de A Alma Perdida é


indissociável das ilustrações, que neste caso, mais do que amplificar o sentido do texto, têm
papel fundamental na construção da narrativa, acrescentando-lhe camadas de sentido. Por esse
motivo, não é possível fazer qualquer análise de seu conteúdo sem a descrição das imagens,
que mais do que acompanhar o texto, quase integralmente condensado e distribuído em uma
página e meia do livro, também constroem a narrativa para além da literalidade.

A materialidade do livro remonta a um caderno de memórias ou dossiê onde se


rabiscaram pensamentos, juntaram-se desenhos, em seu miolo foram acostadas fotografias e
acrescentaram-se observações, como os carimbos numéricos observados nos topos superiores
de algumas páginas, não necessariamente em sequência, mas de acordo com uma progressão
cronológica.

O bege amarelado, presentes na capa e no miolo quadriculado do livro, e as lombadas


mais escuras com manchas ocasionais e esparsas, típicas da ação do tempo, enfatizam a
percepção de se tratar de um caderno guardado há algum tempo, ou um dossiê, onde se reuniram
os registros tanto do percurso feito pela alma perdida, quanto da espera do personagem que a
perdeu, até o momento do reencontro de ambos. De qualquer maneira, o tom amarelado confere
a ideia de um caderno ou dossiê bastante manipulado, cujas páginas foram esmaecidas pelo
tempo, aprofundando a sensação, ao manipular o livro, de se estar travando contato com algo
acontecido num passado mais distante e não localizável no tempo, percepção enfatizada pela
estrutura narrativa típica dos contos de fadas, iniciada por “Era uma vez” e finalizada em
“felizes para sempre”.

Ao abrir o livro, antes de se chegar ao texto, reproduzido num miolo quadriculado, há


doze páginas de ilustrações, semelhantes a fotografias em preto e branco. Cada dupla de páginas
compõe uma unidade de sentido narrativo e, por isso, devem ser lidas e interpretadas em seu
conjunto, como se estivessem numa única folha ou quadro. O livro, na íntegra, deve ser lido
com as duas páginas abertas formando uma unidade de sentido, como se exemplificará mais
adiante.

A primeira dupla de páginas, (Figura 1) traz arabescos em tons de cinza e bege,


lembrando um papel de parede ou de carta ornamentado. No canto inferior esquerdo, nota-se o
desenho de uma pequena fotografia deitada, como se tivesse sido esquecida ou deixada
51

guardada dentro de um caderno ou de uma pasta. A foto é de uma praça, onde se vê casas e a
torre de uma igreja. A reprodução da imagem abaixo é importante, pois como se observará mais
adiante, as imagens são retomadas ao final com acréscimo de novos elementos.

(Figura 1 – p.2/ 3) 30

As três duplas de páginas seguintes, que antecedem o início do texto, possuem um tom
diferente do miolo, são menos amareladas que o restante, e mais acinzentadas e azuladas,
passando a impressão de serem fotografias, ou desenhos, impressos num papel diferente ao do
caderno que se seguirá e onde será narrada a história.

Depois das páginas com arabescos (Figura 1), as dez páginas seguintes trazem uma
sequência de imagens aéreas, como se fossem fotografias em preto e branco, de um campo
coberto por neve, percepção ampliada pela contraposição do espaço vazio em branco, com as
árvores desenhadas em preto, assim como as silhuetas de pessoas agasalhadas andando e
deixando pegadas pelo caminho.

O distanciamento da imagem aprofunda a sensação de vazio no leitor (Figura 2), tanto


pela contraposição das cores branca e preta, e tons ligeiramente azulados, por destacar, na
composição do quadro, os espaços vazios deixados em branco no centro das duas páginas, assim
como pela trajetória solitária da maior parte das silhuetas, principalmente, a figura no canto
inferior direito, que ocupa a porção inferior e limite da página, mas deixa atrás de si um rastro
de pegadas, iniciado na porção superior da folha, sugerindo um longo e solitário deslocamento.
A silhueta é praticamente a única da página direita, em contraposição ao extremo oposto da

30
As imagens foram copiadas da versão em e-book do livro, mas a análise foi feita a partir da edição física. Ambas as versões
não possuem páginas numeradas. A paginação colocada abaixo das figuras foi feita manualmente a fim de facilitar a exposição
da análise.
52

página, onde é possível observar um agrupamento maior de pessoas. A imagem sugere que o
personagem, além de se deslocar solitariamente, está deslocado das interações sociais retratadas
na margem oposta da página:

(Figura 2 – p.4/5)

A dupla de página seguintes (Figura 3) apresenta a continuação da visão aérea do mesmo


campo coberto pela neve, e deixa adivinhar que a cena observada é a de uma fotografia enviada
num envelope, cujo selo se denuncia no canto inferior da página à direita, acompanhado da
seguinte frase: “Se alguém pudesse nos olhar do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas
que andam apressadas, suadas e exaustas, e também veria suas almas, atrasadas e perdidas
no caminho...31”

A frase será retomada na narrativa e aponta para uma relação importante e central da
trama: a pressa das pessoas como o fator desencadeante da perda da alma, já introduzindo a
ideia de que as almas são mais lentas, “atrasadas” e, por isso, podem se desgarrar e se perder.

31
TOKARCZUK e CONCEJO, 2017, p.6/7.
53

(Figura 3 – p.6/7)

As duplas de páginas seguintes, (Figura 4), retratam o mesmo campo de neve,


aproximando um pouco mais as imagens do leitor-observador, como se alguém tivesse colocado
uma lente de aumento nas fotografias anteriores, (Figura 2 e 3), para permitir a melhor
visualização de detalhes que, antes, escapavam à visão aérea e mostrar recortes mais específicos
da cena. A aproximação permite uma imersão maior nas cenas retratadas. Nota-se, ademais,
um destaque conferido pela faixa de iluminação vertical, no centro da cena, que recai sobre o
banco de madeira vazio, como se a ausência de pessoas sentadas nele estivesse sendo destacada
e particularizada nesse momento da narrativa (Figura 4).

(Figura 4 – p.8/ 9) 32

32
Na versão digital, a ilustração deixa evidente uma faixa de iluminação vertical que atravessa o meio da folha para destacar
especialmente o banco de madeira vazio. Aspecto que na versão física do mesmo livro passa despercebido, pois o contraste das
cores no papel não ficou tão evidente. Além disso, a faixa mais clara, na versão física, ocupa o meio onde o livro é encadernado
e grampeado, o que dificulta sua adequada visualização. O destaque conferido ao banco, embora prejudicado na versão física,
não pode ser considerado uma circunstância acidental, pois o mesmo banco aparece outras vezes ao longo da narrativa.
54

A seguir (Figura 5), a imagem deixa de ser aérea e enfatizar o campo aberto, abandona
a perspectiva de maior amplitude, e passa a mostrar a cena de um ângulo ainda mais próximo,
como se o leitor-observador testemunhasse a cena in loco. No banco de madeira, agora se vê
quatro pessoas sentadas em duas duplas, cada uma ocupando uma extremidade.

(Figura 5 – p. 10/11)

A dupla de páginas seguinte apresenta uma continuação da imagem acima, onde ao lado
se vê o verso amarelado de um envelope, sendo possível deduzir se tratar do mesmo, onde
páginas atrás, havia o selo (Figura 3). Junto a ele, nota-se a presença de mais uma fotografia,
deitada, de um campo onde se vislumbram, sem muitos detalhes, duas silhuetas humanas.

Todo esse conjunto inicial, composto exclusivamente por ilustrações de fotografias em


preto e branco, reforçam a ideia de que estamos tendo acesso ao conteúdo de um envelope,
juntado ao caderno onde a exposição da narrativa escrita se iniciará em seguida, (Figura 6),
compondo, em conjunto ao caderno, uma espécie de dossiê do evento narrado.

Em seguida, (Figura 6), o tom acinzentado das fotografias dá lugar ao amarelado, nota-
se ao fundo o quadriculado que estará presente ao longo das demais páginas, reforçando a
sensação de estarmos lendo um caderno de memórias de alguém, não necessariamente o
personagem principal.
55

(Figura 6 – pág.14 e 15)

À esquerda, nota-se o interior de um café ou restaurante, onde uma jovem segura uma
xícara, enquanto numa mesa ao fundo, um rapaz está sentado com o olhar distante e vago. Na
página à direita, concentra-se quase que a integralidade do texto da obra que narra, em fórmula
enunciativa típica ao dos contos de fadas, iniciado por “era uma vez”, a história de João, um
homem que trabalhava com muita pressa e sem descanso até que em algum momento,
indeterminável, perde sua alma em algum lugar distante.

A sensação de estarmos diante de um caderno de memórias é reforçada pela literalidade


do texto que logo no início faz referência a um aspecto da materialidade imagética do livro, ao
apontar para o quadriculado das páginas relacionando-o ao estado interno do personagem, que
uma vez despojado de sua alma, enxerga sua situação como monótona e esvaziada de sentido,
tal como a folha quadriculada de um caderno de matemática:

Sem a alma, a vida dele até que era boa – ele dormia, comia, trabalhava, dirigia um
carro e ainda jogava tênis. Mas, às vezes, ele tinha a impressão de que tudo a sua volta
ficara plano e sem graça, como se ele se movimentasse numa folha quadriculada e
vazia de um caderno de matemática, coberta por quadradinhos iguais e onipresentes
(TOKARCZUK e CONCEJO, 2017, p.15)

Recapitulando a narrativa, um dia, em uma de suas muitas viagens a trabalho, João


acorda sem saber onde está e sem se lembrar do próprio nome, preocupado vai a uma médica
que lhe explica que sua desorientação se deve à perda de sua alma, em algum lugar de seu
passado, assim como acontece com muitos homens apressados que nem se dão conta da perda.

A médica o orienta a parar em algum lugar para esperar que sua alma o alcance
novamente e regresse, João segue a orientação e aluga uma casa nas redondezas. As páginas
seguintes documentam a espera de João. A primeira dupla de páginas, mantém o quadriculado
56

de fundo do caderno e mostra um lugar cercado por bastante vegetação, o tom carregado do
grafite confere um ar de lugar abandonado e inóspito, assim como João desabitado de sua alma.
Ao fundo, na página à direita, é possível enxergar a casa alugada para aguardar o regresso de
sua alma. A percepção de se tratar do lugar encontrado para realizar a espera é enfatizada pela
frase escrita no rodapé: “Precisa achar um lugar só para si .... E aguardar...”.

(Figura 7 – pág.16 e 17)

Também é preciso salientar que, pela primeira vez, passa-se a notar de forma bastante
discreta, nas extremidades posteriores das páginas, carimbos com números, algumas vezes
entrecortados, como na página abaixo, onde se nota no topo superior à esquerda o número “34”
e na página ao lado, o número entrecortado, possivelmente “35” (Figura 7).

Nas páginas seguintes (Figura 8), à esquerda, observa-se um banco vazio, que pode ou
não estar no mesmo local das fotografias mostradas no início (Figuras 4 e 5), porém, em uma
época e estação do ano certamente diferentes, pois não há neve e a copa das árvores estão cheias
e carregada de folhas, o que já denuncia uma passagem de tempo das primeiras fotos para o
momento retratado. À direita, (Figura 8), é possível observar a silhueta de um homem com
cabelo curto, presumivelmente João, atrás de uma porta com vidro adornados. Nota-se pela
posição arqueada da maçaneta que a porta está sendo aberta pelo lado oposto da posição do
observador. Dessa vez, o carimbo numérico é só observável no topo direito da folha, onde se lê
“39”. Aqui, já é possível especular se os números têm alguma relação com o tempo de espera.
Os tons acentuados de cinza predominam na dupla de páginas, há pouca luz nas cenas. No canto
inferior direito há de novo a expressão: “E aguardar...”, enfatizando a espera de João.
57

(Figura 8 – p.18/19)

A partir da dupla de páginas seguinte (Figura 9,10,11 e 12), o que se nota são eventos
que se desenrolam paralelamente, à esquerda descrevem o percurso de uma criança – que nas
páginas seguintes se descobrirá se tratar da alma perdida – e à direita, João. As imagens à
esquerda preenchem a página toda, e são inicialmente bem escuras, carregadas pelo grafite da
ilustração, sugerindo caminhos áridos e densos por onde a criança passa, enquanto à direita, os
desenhos ocupam apenas o centro da página, deixando bastante espaço vazio nas bordas e
margens.

Nas cenas seguintes, o ângulo de visão do leitor sobre as páginas à direita corresponde
ao de um espectador posicionado atrás de João, que geralmente aparece de costas para o leitor,
com algumas variações discretas de ação e posição. Com o avançar das páginas, a princípio é
possível ver João em pé diante de uma mesa e em frente a uma cadeira servindo-se de um café
ou chá, em seguida, observa-se a mesa e cadeira vazias sem a presença de João e com alguns
animais no entorno, mais adiante, João passa a aparecer sentado na cadeira, de frente para a
mesa, voltado para à janela que tem à sua frente e de costas para o espectador/leitor, posição
que ocupa nas páginas seguintes, observáveis sempre pelo mesmo ângulo, ficando sempre
patente a espera e a passagem do tempo que se insinua principalmente pelo avanço progressivo
do comprimento dos cabelos do personagem e o crescimento das plantas que têm sobre a mesa,
que também sofrem alteração de lugar, crescimento e posição. A alternância entre a ausência e
presença de alguns objetos e animais sugere a ideia de que a espera não é completamente
estática, mas é lenta e gradual e, por isso, sofre poucas variações.

À esquerda, por sua vez, paralelamente, o que se vê são os lugares por onde a criança
anda à procura de João. Ao contrário das imagens à direita, que sugerem a posição de espera,
58

quase que estática de João, cuja passagem do tempo só é notada por detalhes como o
crescimento dos cabelos do personagem e das plantas, as imagens da criança operam um
contraste e sugerem movimento e deslocamento. Não vemos a criança sempre na mesma
posição ou sob o mesmo ângulo. Em alguns momentos o ângulo de visão oferecido pela imagem
ao leitor se situa atrás da criança, mas em outras a vemos de lado, quase que de frente, tomando
sorvete (Figura 10), por exemplo, ou brincando no que parece ser uma praia (Figura 12), já em
outras a vemos bem no canto da página, numa estrada, observando casais dançarem no que
parece ser uma festa (Figura 11).

As imagens à esquerda ocupam a quase totalidade da página, e não apenas o centro do


caderno quadriculado à direita, onde João aparece em espera. O fundo quadriculado das
imagens à esquerda mal se nota, o contraste entre as cores vai diminuindo, as imagens de
deslocamento da criança vão ganhando progressivamente mais luz, os fundos vão ficando
menos carregados do preto do grafite, se aproximando ao tom das cenas à direita, onde há uma
espera pelo encontro, sugerindo um desanuviamento e paulatina aproximação entre a
criança/alma e João.

Como mostra a sequência a seguir:

(Figura 9 – p.20/21)
59

(Figura 10 – p.22/23)

(Figura 11 – p.24 e 25)

(Figura 12 – p.26/27)
60

Na sequência subsequente, pela primeira vez, são inseridas, de modo mais pronunciado,
outras cores, para além do preto e do branco, sugerindo a presença de luz, na paisagem da janela
de trem para onde a criança dirige o olhar (Figura 13).

Também é possível notar um espelhamento e maior alinhamento das posturas da criança


e de João, ambos são retratados de costas e ligeiramente de perfil para o leitor/observador, e
direcionam o olhar à janela para o horizonte que têm à frente, sugerindo uma aproximação
maior entre ambos.

(Figura 13 – p.28/29)

A próxima dupla de páginas (Figura 14) potencializa a percepção de alinhamento entre


os dois. Ambas as imagens, lado a lado, retratam a paisagem que cada um dos personagens têm
a frente, nenhum dos dois aparecem na cena retratada. Pela primeira vez desde a página 18/19,
onde se via à esquerda o banco vazio e à direita João abrindo a porta da casa alugada (Figura
8), a imagem retratada à direita deixa de ocupar apenas o centro e ocupa quase a totalidade da
página, espraiando-se pelas margens (Figura 14).

Como é possível observar abaixo (Figura 14), em ambas as imagens se enfatiza a


distância percorrida pela criança e a espera de João, percepção aprofundada tanto pelo cenário
inóspito da página à esquerda, quanto pela imagem do interior da casa de João, com destaque
para a vista de sua janela ao redor da qual as plantas cresceram e avançam, o que confere um ar
de certo abandono e, também, do avanço do tempo.
61

33
(Figura 14 – p.30/31)

Apesar de demonstrar um certo alinhamento e aproximação dos personagens pela


simetria das representações de ambas as páginas pareadas, nota-se, ainda, na imagem acima
(Figura 14) uma aridez e dificuldade. Os tons de grafite são bastante intensos e carregados. Da
janela de João, à direita, se avista a outra margem do caminho representada à esquerda, no
rodapé da página à direita, mais uma vez consta a expressão: “E aguardar...” Ou seja, há
indicativos de que a espera pode estar no fim, mas ainda não acabou.

A dupla de página seguintes (Figura 15) mostra, finalmente, o momento do reencontro


da dupla. À esquerda é possível observar a criança olhando para o interior da casa de João pela
janela, enquanto à direita vê-se João, sentado em sua cadeira, com um vaso de plantas no colo
cobrindo-lhe todo o tronco e rosto. A visão que temos de João, nesse momento, é a da criança
ao olhar pela janela, o vemos sentado de frente, embora a planta cubra seu rosto.

A planta no colo de João é representada em tons de verde, contrapondo-se ao grafite


ainda carregado das duas páginas, mais à esquerda do que à direita, o que parece enfatizar o
cansaço e a sujeira acumulada pela alma no percurso. As linhas do texto anunciam: “Até que
numa tarde, alguém bateu na porta. Na soleira apareceu a alma perdida de João – cansada,
suja e arranhada.34”

33
A diferença entre os tons da página, mais acinzentado à esquerda e mais próximo à sépia à direita não se notam com tanta
intensidade na versão física do livro, mas apenas na versão digital.
34
TOKARCZUK e CONCEJO, 2017, p.32/33.
62

(Figura 15 – p.32/33)

As páginas seguintes ganham mais cores à medida que o reencontro entre a alma, antes
perdida e agora reencontrada, e João se aprofunda, seus rostos são colocados lado a lado.

(Figura 16 – p.34/35)

Na página seguinte (Figura 17), a fotografia do banco onde, no início, havia duas duplas
sentadas reaparece (Figura 5), mas dessa vez, parece haver uma reconstituição do momento
passado onde as duas crianças estão sentadas lado a lado. Observa-se, ainda que a dupla da
extremidade direita, que não se consegue precisar bem se tratar de duas crianças, uma no colo
da outra, ou de um adulto segurando uma criança, aparece mais apagada, como se a
reconstituição do caminho feito até aqui dissesse mais a respeito da dupla da outra extremidade,
à esquerda da primeira fotografia (Figura 5), sentadas lado a lado.
63

Observa-se, também, que a criança da extremidade esquerda, com casaco xadrez, é


desde o início a alma de João, deduzindo-se que a criança ao seu lado seja o próprio João, porém
mais jovem. O envelope azul da página à direita, com algumas fotografias à frente, potencializa
o efeito da reconstituição de um passado e memórias de um tempo já passado.

(Figura 17 – p.36 /37)

A partir da reconstituição da foto acima (Figura 17), o quadriculado do caderno de


matemática, que se via ao fundo das páginas, é abandonado, já que a monotonia da época em
que João havia perdido sua alma foi superada, dando lugar às cores.

A dupla seguinte de páginas (Figura 18) potencializa o efeito e mostra o ápice do


reencontro e afinidade com a alma não mais perdida, e agora reencontrada, ao reproduzir a
mesma posição da dupla de crianças sentadas no banco da foto anterior, só que agora, João
adulto e num cenário ricamente colorido e aconchegante.
64

(Figura 18 – p.38/39)

A imagem retrata o interior da casa de João. A alma de João, permanece sendo a mesma
criança, sentada à sua esquerda, com o mesmo casaco quadriculado das fotografias anteriores,
só que agora em cores, João amadureceu em comparação à imagem do garoto da foto anterior,
mas está, da mesma forma, sentado ao lado da criança – sua alma – ambos olham um para o
outro. A dupla de páginas representa o interior da sala de João, cheia de plantas, há um gato
deitado no tapete, ambos estão sentados e ocupam a página à esquerda, João é deslocado da
página direita e aparece, pela primeira vez, à esquerda, ao lado de sua alma reencontrada, como
se tivesse conseguido fazer também uma travessia.

Da mesma maneira que começou como um conto de fadas, pela expressão “era uma
vez”, a última página da narrativa escrita anuncia que ambos “viveram felizes pra sempre”,
João, porém, teve de se atentar para não fazer nada numa velocidade que sua alma não pudesse
acompanhar (Figura 19)

(Figura 19– p.40/41)

As páginas finais e seguintes mostram a parte externa da casa de João com muita
vegetação e bastante coloridas.
65

(Figura 20 – p.42/43)

(Figura 21 – p.44/45)

(Figura 22 – p.46 /47)

A página final também retoma as páginas iniciais adornadas, mas dessa vez também são
invadidas pelo colorido (Figura22), denotando que o reencontro com a alma resgatou João de
66

uma vida cinzenta e monótona, restituindo-lhe as cores, os sabores das abóboras, e o


revigorando como o verde das plantas.

Como resultado, a análise do conjunto de A Alma perdida revela que nenhuma escolha
para a composição da obra é arbitrária ou fruto do acaso, o avanço das páginas exige o retorno
constante do leitor ao ponto de partida, ou das páginas anteriores em que se encontra, para se
certificar de que está na trilha correta sugerida para acompanhar a narrativa.

Com relação a esta espécie de convocação do leitor em constantemente retornar a leitura


das páginas anteriores, é possível destacar, ainda, uma significativa diferença entre a função de
cada dupla de páginas de A Alma perdida, e a função exercida por cada dupla de páginas de O
sentido da vida, analisado anteriormente.

No livro de Brenifier e Després, como já dissemos, cada dupla de páginas oferece


proposições contrastantes acerca do sentido de vida, tema central do livro. Assim, cada dupla
de páginas em O sentido da vida atua como um microcosmo em seu interior, de modo que a
ordem de exposição poderia ser alterada e reorganizada de outras maneiras diferentes da versão
final, sem que houvesse qualquer prejuízo à compreensão da proposta do livro.

Já em A Alma Perdida cada dupla de páginas tem um papel de adicionar elementos que
vão se adensando e construindo a narrativa, à medida que faz avançar mais um passo do
caminho da alma em contraste à ação do tempo incidente sobre João, enquanto aguarda o
reencontro. Embora o efeito desse contraste seja facilmente apreendido, ainda que separado de
seu todo, as duplas de páginas de A Alma perdida não poderiam ser reagrupadas aleatoriamente,
como em O sentido da vida, sem prejuízo da compreensão de seu conjunto, pois não têm função
autônoma e tampouco poderiam ser consideradas como um microcosmo em si mesmas, pois
além de terem o papel de fazerem avançar a narrativa, cada dupla de páginas deixa em aberto a
construção do sentido da narrativa, construído progressivamente, ao mesmo tempo em que
estende um convite à retomada do percurso, voltando-se às páginas anteriores, sempre que
necessário.

O convite à retomada constante pelo leitor, em voltar às páginas anteriores, é


potencializado, por exemplo, pela replicação da fotografia do banco com as crianças, em
diferentes momentos, mostrada logo no início, antes mesmo de iniciado o texto (Figura 5), e
novamente, após o reencontro da alma e João, quando a mesma fotografia é reproduzida (Figura
17), porém, com as silhuetas das pessoas sentadas no banco mais apagadas, sugerindo não só a
passagem do tempo, mas a reconstituição do passado pela memória, cujo registro é oferecido
67

ao leitor desde o início (Figura 5 – p.10/11). O leitor que acompanha a narrativa, ao alcançar
essa etapa (Figura 17 – p.36/37), ao olhar para o banco com as silhuetas de contornos
ligeiramente apagados, também é convidado a fazer o movimento proposto pela narrativa e a
rememorar a imagem oferecida a ele lá no início, do banco com as crianças sentadas lado a lado
(Figura 5 – p.10/11). E se ainda assim, o leitor não fizer ou aceitar o convite para rememorar,
ou voltar às páginas anteriores para conferir os outros momentos em que a visão do banco foi
oferecida (Figuras 5 e 8), a página seguinte irá reavivar a memória, inclusive com o uso das
cores, ao reencenar as posições dos dois personagens, a alma/criança e João, sentados lado a
lado, em posturas idênticas a que estavam no banco (Figura 5 – p.10/11), só que agora na sala
de João (Figura 18 – p.38/39).

Ao mesmo tempo, muitos dos elementos constantes nas imagens, quando observados
isoladamente fornecem pistas ao leitor, e permitem um avançar paulatino na narrativa, como se
estivéssemos, a um só tempo, caminhando junto com a alma/criança e aguardando seu retorno
junto de João. De qualquer maneira, em conjunto, ou isoladamente, cada experiência de
retomada a qualquer dupla de páginas é reveladora de novos detalhes que não são aleatórios,
pois aprofundam a percepção do caminho percorrido, seja o efetivamente tomado pela alma,
seja o caminho interior, ao qual não temos acesso, de João, enquanto aguarda.

Aliás, é possível dizer que A Alma perdida é um livro que pode ser descrito por meio de
muitas metáforas ambulatórias e pedestres, por ser recorrente, de forma ilustrativa ou figurada,
as noções de estrada, caminho, percurso, deslocamento, viagem, etc. Em linhas gerais, é
possível sintetizar toda a trama de A Alma perdida como a de um longo caminho percorrido
pela alma até alcançar seu titular, do qual havia se desgarrado e também pressupor todo um
percurso interno sustentado por João e que o permite, inclusive, atravessar uma margem da
página à outra, como vimos na cena, onde ambos, depois do encontro, estão sentados lado a
lado, na sala de João (Figura 18 – páginas 38/39).

No livro, o que está retratado, principalmente, é o caminho de regresso percorrido pela


criança, ou se preferirmos, a atividade, o movimento feito pela alma, até alcançar João. A espera
é passiva, não há movimento ou ação na espera, tampouco somos capazes de vislumbrar o
movimento interno de quem a perdeu, até porque João está esvaziado de sua alma, podendo-se
pressupor que até mesmo por isso, João está e aparece quase imóvel, sem movimento. A
ilustração retrata também a espera, esse caminho interno, que, por sua vez, pressupõe um
caminho anterior percorrido às pressas e que culminou na separação dos dois, reparada pelo
reencontro.
68

Nesse sentido, também é possível especular se a representação de João, ocupando


apenas o centro das páginas, e deixando as margens livres (Figuras 9 a 13), diz respeito
exatamente a essa ausência de movimento provocada pela expropriação da alma, e reproduz o
recolhimento, à necessária introspecção e passividade do caminho interior percorrido por João
durante a espera, uma espécie de debruçamento sobre si mesmo, um retorno para o núcleo de
si, um encapsulamento que impede de ir além e transbordar por toda a página, como o da criança
em constante movimento, trazendo também a ideia de uma necessária contenção física, já que
o deslocamento contínuo impediria a alma de poder alcançá-lo novamente.

Como já se salientou, A alma Perdida deixa em aberto, acredita-se que propositalmente,


várias questões, tais como: Por que a alma é uma criança? Seria ela a criança que João foi no
passado, ou a representação de sua condição anímica e metafísica interior, ou ainda, alguém do
passado de João que serviu como uma espécie de bússola interna? O que dizer das plantas
presentes ao longo da narrativa? E os animais? Por que, no momento em que a alma espia pela
janela, João tem diante de si um vaso de plantas bem verdes à sua frente que lhe cobrem o rosto?

Muitas outras perguntas podem ser feitas e são deixadas em aberto, o casamento entre
texto e imagem inflama a curiosidade do leitor e revela uma relação especial da obra com o
silêncio, deixando muita coisa por dizer e abrindo-se, por isso, a múltiplas possibilidades de
investigação.

Numa perspectiva mais ampla, o texto também pode suscitar questões acerca do nosso
próprio divórcio com a nossa alma, ou outro nome que queiramos dar às nossas instâncias
internas, psíquicas e espirituais35, podendo-se especular, inclusive, de quê ou quem nossa alma
se constitui, se já a deixamos ou sacrificamos pelo caminho, e, em caso afirmativo, como
podemos recuperá-la, entre outros questionamentos possíveis e válidos.

Embora a questão do sentido da vida não se imponha de maneira óbvia, em A Alma


Perdida, é possível destacar alguns pontos de interseção da narrativa visual com questões de
natureza filosófico-existencial, sendo uma das muitas possíveis chaves de leitura da obra.

A própria alma, representada por uma criança, pode ser considerada em estreita relação
e como uma metáfora para nosso movimento interior que se lança em busca de respostas sobre
si mesmo, e que alguns identificam e nomeiam como um substrato da subjetividade individual
de cada um, que todos têm, mas a cada um se manifesta de modo concreto e particular.

35
O termo é aqui empregado em oposição àquilo que é físico, não possuindo cunho religioso, como pode ser confundido.
69

Avançando, nesse sentido, um dos primeiros pontos de similitude é a falta de um início


privilegiado para a investigação existencial. Como vimos, em A Alma Perdida, o personagem
principal até consegue levar sua vida sem se sentir particularmente afetado, para além de uma
sensação de monotonia, pela perda de sua própria alma, inclusive não sabe nem dizer onde a
perdeu. A médica que o atende menciona, inclusive, que muitas pessoas nem sequer se dão
conta da perda da própria alma, seguindo apressadas pela vida.

De modo semelhante, Albert Camus, ao descrever o itinerário da investigação


existencial no ensaio O mito de Sísifo, inaugura o texto afirmando que o sentido da vida, ou
julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida, é a questão mais premente e incontornável
da filosofia. Em seguida, entretanto, o autor contemporiza, considerando que a pergunta
responsável por instaurar em qualquer indivíduo o movimento de busca pelo sentido da própria
existência é um simples “por quê?” e tem um início banal e derrisório, podendo se dar em
qualquer lugar e a qualquer momento: “Numa esquina qualquer, o sentimento do absurdo36
pode bater no rosto de um homem qualquer” (CAMUS, 2018, p.25). Além disso, a pergunta
pelo porquê da existência quando se descortina no horizonte de um indivíduo, entretanto,
instaura uma ruptura da cadeia de gestos e hábitos em que o indivíduo fica imerso no cotidiano.

Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas
de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo,
um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge
o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão atingida de assombro. “Começa”,
isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas
inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca
sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o
despertar definitivo (CAMUS, 2018, p.28).

A pressa, descrita em A Alma Perdida, que impede as pessoas de perceberem a perda da


própria alma, é semelhante a esse estado de lassidão dos atos de uma vida maquinal, descrito
por Camus, ao qual os indivíduos estão imersos e constitui um impeditivo às pessoas de se
questionarem acerca do porquê da própria existência. Apenas o desvelamento do “por quê?”
no horizonte de cada indivíduo é capaz de romper com a cadeia cotidiana de gestos maquinais
e inaugurar o movimento de busca por sentido.

Como já se disse, esse questionamento e olhar dirigido para o interior e cerne da própria
existência não tem um início privilegiado e certo, e pode suceder para cada indivíduos em um

36
A título de observação, Camus chama de absurdo o desajuste do homem perante a própria condição humana, pois ao mesmo
tempo que a pergunta pelo sentido da vida é a mais importante de todas as perguntas, à sua interrogação segue-se a
impossibilidade de obtenção da resposta e sentido buscados. A percepção dessa contradição em que está lastreada a condição
humana recebe o nome de absurdo em Camus, como um resultado da impossibilidade de alcançar um sentido à própria
existência.
70

momento ou modo, podendo, inclusive, jamais ocorrer aqueles que não conseguirem emergir
da vida maquinal, da mesma maneira que em A Alma Perdida, há pessoas que não notam a
perda da própria alma.

Embora o questionamento pelo sentido da vida não se dê para todos os indivíduos de


modo cogente, quando ele ocorre, ou dito de outro modo, quando surge o “por quê?”, tal dúvida
inaugura um movimento na consciência do indivíduo que não pode ser ignorado. A questão do
sentido existencial é incontornável e convoca o indivíduo a se lançar em busca de uma resposta.
Segundo Camus, depois de se certificar do absurdo de sua condição, o homem até pode operar
um salto, em nome da fé ou da razão, e fingir que não foi sacudido pela pergunta pela validade
e sentido da existencial, entretanto, ele jamais consegue retornar ao ponto de partida
imperturbável que estava no estado de lassidão até que ele fosse atingido pelo espanto da dúvida
existencial. De modo semelhante, quando João percebe que perdeu a própria alma não lhe resta
outra saída senão aguardar seu retorno.

Além disso, conforme já destacado, A Alma Perdida é uma narrativa visual que opera
por contrastes, a todo momento confronta uma alma ágil com a espera estática, a fim de
contrapor os efeitos causados pela perda da alma mais lenta. Talvez, por isso, a alma demore
para alcançar João, até porque ela anda em passos de criança.

Mas o que se pretende ao destacar esse movimento de constante confronto e oposições


presentes em A Alma Perdida é destacar mais uma semelhança com o conceito de condição
humana para Camus. Para o autor, a condição humana é marcada pela ambiguidade, e pode ser
caracterizada por um divórcio inconciliável entre a natureza humana e o mundo que o rodeia,
ao passo que toda sua trajetória está orientada para a busca de um sentido que não é capaz de
encontrar.

Apesar de caminhar por oposições e ambiguidades, o final de A Alma Perdida há o


encontro e opera-se a síntese, o que antes estava separado se encontra e, inclusive, vivem
“felizes para sempre”. Diferentemente, para Camus, não existe qualquer possibilidade de
encontro ou reencontro, o homem, por natureza, deseja se diluir no mundo e formar com ele
uma unidade pacificadora, mas a síntese é impossível. A condição humana, portanto, está
lastreada numa ambiguidade insolúvel. Já em A Alma Perdida há possibilidade de encontro e
pacificação.

Por fim, é preciso dizer, optou-se por escolher A Alma Perdida para análise sob o
enfoque da possibilidade de perquirição do sentido existencial, pois desde o início está se
71

defendendo que a literatura, justamente por não ter de se conformar e submeter a nada, detém
um potencial investigativo ainda maior e mais rico simbolicamente para explicitar qualquer
questão humana do que textos concebidos com finalidades exclusivamente didáticas e/ou
preconcebidas para se alcançar alguma obrigação de resultado. Encontrou-se em A Alma
Perdida um exemplo excelente do potencial inesgotável da literatura como recurso
investigativo, cujo valor repousa mais nas dúvidas suscitadas e deixadas em aberto do que em
qualquer certeza peremptória e exaustiva.

Considerações Finais

A ideia original da presente pesquisa visava exclusivamente a análise de obras literárias


infantis que propiciassem investigações de caráter filosófico e, mais detidamente, a questão
pela busca de sentido existencial.

A recorrente relação de sinonímia estabelecida entre a expressão “filosofia para


crianças” e o método pedagógico homônimo de Matthew Lipman trouxe a inesperada
necessidade de, previamente à análise das obras literárias infantis, desambiguar tanto o papel
da filosofia quanto o da literatura, que se considerava em jogo desde o princípio, visando,
posteriormente, destacar e trazer à tona a potência investigativa de ambas e, sobretudo,
evidenciar o quanto a literatura, inclusive a infantil, desde que livre de rótulos e finalidades pré-
concebidas, é capaz de propiciar e abrir caminhos estéticos e simbolicamente ricos para o
aprofundamento de reflexões filosóficas, sobretudo, existenciais.

A escolha da busca por sentido como recorte temático para análise dos dois livros
selecionados – O sentido da vida e A alma perdida – revelou-se pertinente não apenas por se
tratar de questão que permeia a condição humana e, por isso, atinge a todos, ainda que de
diferentes modos, mas, também, por se manter permanentemente em aberto, sem a possibilidade
de alcançar uma solução definitiva, e tampouco sem deixar de perder a relevância, já que é,
justamente, a ausência de resposta, neste quadro, que reabilita a importância da investigação
como eixo propulsor de si mesma.

Mas mais do que se tratar de um tema recorrente, tanto na literatura quanto na filosofia,
é precisamente no potencial investigativo, nuclear da busca por sentido, que se encontrou um
ponto de tangência e estreita articulação entre os três componentes da equação dessa pesquisa:
sentido, literatura e filosofia. Tal articulação, por sua vez, consistiu no critério de seleção das
72

duas obras analisadas – O sentido da vida e A alma perdida –, por ter se considerado possível
enfatizar, em cada uma, a partir de suas respectivas singularidades, diferentes perspectivas e
possibilidades de abordagem literária a um mesmo recorte temático filosófico, destacando-se,
em ambos os casos, a importância da manutenção da investigação para além da possibilidade
de obter respostas e certezas, corroborando a hipótese defendida, desde o início, quanto ao
potencial investigativo tanto da literatura quanto da filosofia.

A análise de questões relativas à busca por sentido existencial na literatura infantil,


entretanto, não se esgota nas obras, aqui, selecionadas, outros livros poderiam ter sido
escolhidos para a mesma tarefa. Para além da análise das obras destacadas, a pesquisa deixa
rastros para investigações futuras, tanto por incentivar a busca de mais livros de literatura
infantil que incitem reflexões mais abertas e profundas sobre o sentido da vida, como também
ao incentivar a realização de novas práticas de mediação de leitura com crianças, a partir de um
novo olhar para os livros de literatura infantil e seu imenso potencial de suscitar perguntas e
propiciar reflexões.

Enfim, espera-se ter demonstrado, que a busca por sentido existencial pode encontrar
na literatura infantil um meio de explicitação de questões prementes a ordem do humano, e que,
portanto, jamais perdem a validade e, com isso, incentivar novas prática de mediação de leitura
com crianças que favoreçam tanto o protagonismo infantil, na construção do seu conhecimento
acerca de si e do mundo, quanto desses livros, que revelaram ser potentes disparadores para a
investigação existencial, pois vale, ainda, lembrar que questões relativas à origem ("de onde eu
venho?”), e identidade (“quem eu sou?”; “por que eu sou como sou?”) são os passos iniciais e
predecessores para o desenvolvimento da ética e apontar qual a conduta a ser seguida,
individual e coletivamente.
73

Referências bibliográficas:

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Cacciacarro. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.

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Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

________. A Questão de Deus. Tradução: Beatriz Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2013.

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. 12ª ed. Tradução: Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de
Janeiro: Record, 2018.

EAGLETON, Terry. O sentido da vida: uma brevíssima introdução. Tradução: Pedro Paulo
Pimenta. São Paulo, Unesp, 2021.

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