Biblioteca Nacional de Lisboa, mal se distinguindo entre si. Têm por assunto, na sua grande maio- ria, certos aspetos particulares da vida de corte e especialmente da boémia jogralesca. A sua leitura revela-nos, além do resto, uma sociedade boémia em que entravam jograis de 5 corte, cantadeiras, soldadeiras (bailarinas), fidalgos. O jogral e a sua companheira tinham um estatuto social de marginais. Eram “artistas” da boémia, e por isso mesmo permitiam-se-lhes liberdades de costumes e de fala vedadas no mundo regularmente constituído. Isto explica que os vícios mais íntimos, as aventuras mais pícaras destes heróis truanescos surjam assoalhados escandalosamente: as andanças e percalços de uma bailarina versátil, os sapatos dourados de 10 um fidalgo pretensioso, a voz de um cantor enrouquecida pelos abusos do álcool, etc., não fal- tando mesmo uma abadessa elogiada ou satirizada por um segrel quanto à sua experiência se- xual. Mas estes marginais fraternizavam com fidalgos, clérigos e até reis no mundo da boémia; vemo-los misturados nos mesmos mexericos, usando a mesma linguagem, com grande abun- dância de termos hoje considerados obscenos. É uma explosão carnavalesca com raízes anti- 15 quíssimas e típica da Idade Média. Raro se encontram nas cantigas de escárnio temas de alcance geral. Mas, nos muitos casos anedóticos a que se referem, distinguem-se certos motivos frequentes, condicionados pelo am- biente. Toda uma massa de composições espelha os problemas típicos da vida jogralesca. Nume- rosas cantigas, por exemplo, ocupam-se da sovinice dos ricos-homens, da miséria envergonhada 20 dos infanções: à escassez das classes nobres são, naturalmente, muito sensíveis os jograis que, em paga do seu trabalho artístico, pedem roupas ou alimento. Outro grupo de cantigas mostra- -nos as disputas entre os jograis e os trovadores fidalgos: aqueles porque pretendiam ultrapas- sar a sua condição, que era, pelo menos convencionalmente, de simples executantes musicais, metendo-se também a compor versos; estes porque defendiam a jerarquia, que limitava o papel 25 do jogral ao acompanhamento instrumental e ao canto da composição já criada pelo trovador. […] Como repertório pícaro ou pitoresco de costumes, testemunho voluntário ou involuntário de uma ideologia, a sátira trovadoresca completa os Livros das Linhagens; em muitos casos o gosto, por assim dizer, naturalista, da anedota vivida ou testemunhada prevalece mesmo sobre a inten- ção trocista. E assim perpassam, já só por si interessantes, o velho que desesperadamente se 30 pinta e enroupa muito caro; a rapariga que a mãe antes ensina a saracotear-se do que a coser e fiar; um cavalo faminto abandonado […], mas que se refaz com erva fresca depois das chuvas; gabarolices de falsos romeiros à Terra Santa; fracassos imprevistos por um astrólogo; um juiz que se deixa peitar; agoiros e superstições; incidentes variados de viagem e hospitalidade; uma ex-soldadeira queixando-se, no confessionário, não dos antigos pecados, mas da velhice; rapari- 35 gas casadas (o poeta considera que vendidas) à força, ou impunemente raptadas; abadessas cheias de condescendências, etc. Estas pequenas iluminuras entrudescas de costumes são apresentadas com uma cordialíssima satisfação pelos simples factos, ou com uma desfaça- tez, um amoralismo, uma real ou imaginária autorridicularização pelos seus protagonistas que contrastam surpreendentemente com a pudicícia moralizante de quase toda a posterior litera- 40 tura portuguesa. fotocopiável
SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, 2005. História da Literatura Portuguesa.
17.ª ed. Porto: Porto Editora (pp. 64-66) (1.ª ed.: 1955)