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348 Outros materiais · Textos informativos complementares Sequência 1.

Poesia Trovadoresca

Manual · p. 70

As cantigas de escárnio e maldizer


As cantigas de escárnio e maldizer ocupam grande espaço nos Cancioneiros da Vaticana e da

OEXP10DP © Porto Editora


Biblioteca Nacional de Lisboa, mal se distinguindo entre si. Têm por assunto, na sua grande maio-
ria, certos aspetos particulares da vida de corte e especialmente da boémia jogralesca.
A sua leitura revela-nos, além do resto, uma sociedade boémia em que entravam jograis de
5 corte, cantadeiras, soldadeiras (bailarinas), fidalgos. O jogral e a sua companheira tinham um
estatuto social de marginais. Eram “artistas” da boémia, e por isso mesmo permitiam-se-lhes
liberdades de costumes e de fala vedadas no mundo regularmente constituído. Isto explica que
os vícios mais íntimos, as aventuras mais pícaras destes heróis truanescos surjam assoalhados
escandalosamente: as andanças e percalços de uma bailarina versátil, os sapatos dourados de
10 um fidalgo pretensioso, a voz de um cantor enrouquecida pelos abusos do álcool, etc., não fal-
tando mesmo uma abadessa elogiada ou satirizada por um segrel quanto à sua experiência se-
xual. Mas estes marginais fraternizavam com fidalgos, clérigos e até reis no mundo da boémia;
vemo-los misturados nos mesmos mexericos, usando a mesma linguagem, com grande abun-
dância de termos hoje considerados obscenos. É uma explosão carnavalesca com raízes anti-
15 quíssimas e típica da Idade Média.
Raro se encontram nas cantigas de escárnio temas de alcance geral. Mas, nos muitos casos
anedóticos a que se referem, distinguem-se certos motivos frequentes, condicionados pelo am-
biente. Toda uma massa de composições espelha os problemas típicos da vida jogralesca. Nume-
rosas cantigas, por exemplo, ocupam-se da sovinice dos ricos-homens, da miséria envergonhada
20 dos infanções: à escassez das classes nobres são, naturalmente, muito sensíveis os jograis que,
em paga do seu trabalho artístico, pedem roupas ou alimento. Outro grupo de cantigas mostra-
-nos as disputas entre os jograis e os trovadores fidalgos: aqueles porque pretendiam ultrapas-
sar a sua condição, que era, pelo menos convencionalmente, de simples executantes musicais,
metendo-se também a compor versos; estes porque defendiam a jerarquia, que limitava o papel
25 do jogral ao acompanhamento instrumental e ao canto da composição já criada pelo trovador. […]
Como repertório pícaro ou pitoresco de costumes, testemunho voluntário ou involuntário de
uma ideologia, a sátira trovadoresca completa os Livros das Linhagens; em muitos casos o gosto,
por assim dizer, naturalista, da anedota vivida ou testemunhada prevalece mesmo sobre a inten-
ção trocista. E assim perpassam, já só por si interessantes, o velho que desesperadamente se
30 pinta e enroupa muito caro; a rapariga que a mãe antes ensina a saracotear-se do que a coser e
fiar; um cavalo faminto abandonado […], mas que se refaz com erva fresca depois das chuvas;
gabarolices de falsos romeiros à Terra Santa; fracassos imprevistos por um astrólogo; um juiz
que se deixa peitar; agoiros e superstições; incidentes variados de viagem e hospitalidade; uma
ex-soldadeira queixando-se, no confessionário, não dos antigos pecados, mas da velhice; rapari-
35 gas casadas (o poeta considera que vendidas) à força, ou impunemente raptadas; abadessas
cheias de condescendências, etc. Estas pequenas iluminuras entrudescas de costumes
são apresentadas com uma cordialíssima satisfação pelos simples factos, ou com uma desfaça-
tez, um amoralismo, uma real ou imaginária autorridicularização pelos seus protagonistas que
contrastam surpreendentemente com a pudicícia moralizante de quase toda a posterior litera-
40 tura portuguesa.
fotocopiável

SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, 2005. História da Literatura Portuguesa.


17.ª ed. Porto: Porto Editora (pp. 64-66) (1.ª ed.: 1955)

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