Você está na página 1de 203

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/343386181

CRÔNICAS DO CUS CULTURA, SEXO E GÊNERO

Book · August 2017

CITATIONS READS

0 499

1 author:

Leandro Colling
Universidade Federal da Bahia
86 PUBLICATIONS 359 CITATIONS

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Corpo dissidente e desaprendizagem: do Teat(r)o Oficina aos a(r)tivismos queer View project

Dissident body, mobility and city rights View project

All content following this page was uploaded by Leandro Colling on 02 August 2020.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


CRÔNICAS DO

CUS
CULTURA, SEXO E GÊNERO
LEANDRO COLLING
GILMARO NOGUEIRA

CRÔNICAS DO

CUS
CULTURA, SEXO E GÊNERO
2017, Leandro Colling e Gilmaro Nogueira
Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.
Editor | Gilmaro Nogueira
Capa | André Silva
Diagramação | Daniel Rebouças

CIP BRASIL — CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


C711c Colling, Leandro.
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero / Leandro Colling e
Gilmaro Nogueira (orgs.). 1ª ed. / Salvador, BA: Editora Devires, 2018.
202 p.; 16 x 23cm
ISBN 978-85-93646-07-2
1. Ciências sociais 2. Políticas LGBT 3. Identidade de gênero 4.
Sexualidades I. Colling, Leandro. II. Título.
CDD 300.2
306.76
CDU 00.2.134.3(81)

Índice para catálogo sistemático:


1. Ciências sociais – Miscelânea – Brasil: 300.2
1. Ciências sociais – Cultura e Instituições – Relações sexuais –
Orientação sexual, transgenerismo e intersexualidade: 306.76

Editora Devires
Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA
www.editoradevivres.com.br
Apresentação

Por desconstruções e outras políticas

Praticamente todos os 50 textos que reunimos neste livro foram


publicados no blog Cultura e Sexualidade (http://www.ibahia.com/a/blogs/
sexualidade/) criado no portal Ibahia, em 28 de junho de 2012, para tratar
de forma simples e acessível ao grande público questões sobre diversidade
sexual e de gênero1. O blog possui uma média de cinco mil acessos por
semana e determinados textos aqui publicados já foram acessados mais de
100 mil vezes. Por isso, sempre me pergunto: quantos textos acadêmicos,
que tratam de questões similares, embora, óbvio, com outro nível de
profundidade e propósitos, serão lidos por milhares de pessoas em tão
pouco tempo?
O blog é produzido por pessoas que integram o grupo de pesquisa
Cultura e Sexualidade (CUS), criado em 2007 na Universidade Federal da
Bahia. No grupo sempre tivemos a inteção de disseminar as nossas reflexões
para um público amplo e exterior à universidade. Por isso, além de realizar
pesquisas, publicar livros e artigos acadêmicos, entendemos que esses temas
precisam ser levados à toda sociedade, em especial quando as pessoas, via
de regra, não encontram os assuntos relativos às sexualidades e os gêneros
em qualquer lugar, como na escola, por exemplo, onde eles deveriam estar
de forma sistemática, qualificada e transversal.
A seleção dos textos publicados no livro obedeceu alguns critérios,
tais como o número de acessos gerados no blog e a repercussão que
causaram nas redes sociais e nos comentários das pessoas leitoras. Além
disso, priorizamos os que dialogam entre si, com o objetivo de oferecer,
após a leitura de todo o livro, um certo nível de profundidade nos temas
priorizados. E quais são esses temas? Poderíamos responder essa pergunta
da seguinte forma, de forma bem resumida: a desconstrução das ideias
naturalizadoras, normatizadoras e normalizadoras sobre as sexualidades e

1 As datas em que os textos foram publicados no blog estão informadas em notas de rodapé.
Quando o texto não foi publicado no blog, consta também a informação onde ele foi publicado
originalmente. Os textos sem essas notas são inéditos.
os gêneros e como é possível agir politicamente dentro de outros referenciais
e com outras compreensões sobre este campo do conhecimento que trata e
incide sobre coisas tão importantes para as nossas vidas.
Alguns textos foram agrupados, revisados, editados e reformulados para
corrigir eventuais informações incorretas, deixar mais nítido os argumentos
defendidos e para retirar links e termos mais usuais apenas nos textos
postados em blogs. No entanto, fizemos questão de manter a linguagem
acessível e didática, o mais distante possível dos formalismos acadêmicos,
embora às vezes isso tenha se tornado quase impossível. Enfim, esperamos
ter encontrado uma forma de escrever textos de forma acessível para temas
profundamente complexos e polêmicos.
Tenham uma boa leitura. E que ela acione outras ideias e formas de
intervir neste momento tão grave pelo qual passa o Brasil.

Leandro Colling – coordenador do CUS


Sumário

HETEROSSEXUALIDADES EHETERONORMATIVIDADES
POR QUE A HETEROSSEXUALIDADE NÃO É NATURAL? 11
A DIVERSIDADE DA HETEROSSEXUALIDADE 14
PARA CONTINUAR O DEBATE DA DESNATURALIZAÇÃO DAS SEXUALIDADES 16
HOMEM QUE REBOLA É HETEROSSEXUAL? 19
HÉTERO-PASSIVO É TENDÊNCIA! 23
UM HOMEM HETEROSSEXUAL PODE SENTIR DESEJO ERÓTICO POR OUTRO HOMEM? 27
QUAL A ORIENTAÇÃO SEXUAL DE UMA MULHER QUE PENETRA HOMENS?
BONITA E SEDUTORA, TALVEZ! 30
AQUI NINGUÉM É HETERO! 38
G0YS, HÉTEROS-PASSIVOSFLEXÍVEIS E O FIM DA HETEROSSEXUALIDADE 42
NINGUÉM NASCE HETEROSSEXUAL OU O QUÊ MATOU ALEX 45
PROGRAMADAS PARA SÓ DIZEM SIM (E MUITO OOH YES, FUCK ME, SIR!) 49
MATERNIDADE NO JOGO PERVERSO DA VIDA 54
ESTUPRO, O PRODUTO FINAL DE UM CULTURA POTENTE 58

CORPOS, HOMOSSEXUALIDADES E HETERONORMATIVIDADES


O ÂNUS É UM ÓRGÃO SEXUAL? 63
POR QUE O BRASILEIRO GOSTA DE BUNDA E CONTINUA
HOMOFÓBICO E FALOCÊNTRICO? 67
CHUCA: SUBVERSIVA OU PRODUTO DE MAIS UMA NORMA SOBRE O SEXO ANAL? 71
“NÃO GOSTO DE VIADO, EU GOSTO É DE MULEQUE E MARGINAL”,
OU SOBRE A TRAJETÓRIA DE GAYS QUE NÃO SENTEM ATRAÇÃO POR GAYS 75
“EU, DAR PRA UMA BICHA MOLE? JAMAIS!” – UMA CRÔNICA SOBRE
PERFORMATIVIDADE, GÊNEROS E DESEJOS 77
NÃO SOU HOMOSSEXUAL, SOU BICHA! 80

MÚLTIPLOS GÊNEROS E CISNORMATIVIDADES


PESSOAS TRANS E TRAVESTIS EM TODOS OS ESPAÇOS 85
OS LUCROS DA TRANSFOBIA ENTRAM PELA PORTA DOS FUNDOS 87
MALCOLM X E O NOME SOCIAL DE PESSOAS TRANS* 92
LOMBRA LIBERTÁRIA EM DIA DE MULHERES, DE TODAS MULHERES 96
POR TRAIÇÕES CONTRA O CISTEMA 98
LIGA A TV, VAI COMEÇAR O SHOW DE HORRORES! 100
O QUE O UNIVERSO TRANS NOS ENSINA? 104
SOBRE BANHEIROS, MULHERES, BEAUVOIR E AS TRAVESTIS 111
MASCULINIDADES FEMININAS: NÃO SOMOS LÉSBICAS, SOMOS GOBY! 113
ENCOXADORES DE HOMENS 118
QUEM TEM MEDO DO MENINO AFEMINADO? – UMA FÁBULA DE HORROR E MEDO 120

POLÍTICAS E MOVIMENTOS SOCIAIS


AO COMBATER A “CURA GAY”, SEU ARGUMENTO DIFERE
DO USADO PELOS FUNDAMENTALISTAS? 129
DESCONSTRUINDO AS IDEIAS DO LIVRO DE CABECEIRA
DOS FUNDAMENTALISTAS RELIGIOSOS 133
QUEM TEM “IDEOLOGIA DE GÊNERO”? 139
NEM PASTOR, NEM GENETICISTA: É A CULTURA CARALHO! 142
MANIFESTO CONTRA A DITADURA GAY NO BRASIL:
OS PRIVILÉGIOS DE UMA “MINORIA” 147
EM DEFESA DA FECHAÇÃO 153
CASAMENTO GAY: COMO USAR UMA CONQUISTA
SEM TRANSFORMÁ-LA EM UMA CILADA 155
AINDA SOBRE O CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO 159
O QUE TEMEM OS FUNDAMENTALISTAS? 162
QUAIS OS LIMITES DOS MOVIMENTOS LGBT’S E QUEER INSTITUCIONAIS? 168
COMO OS HOMOSSEXUAIS PODEM LIDAR COM A SOLIDÃO
E O ABANDONO NA VELHICE? 171
DIANTE DA OLIMPÍADA DE OPRESSÃO, OU PRODUZIREMOS UM PARENTESCO
SUBALTERNO OU JAMAIS CONSEGUIREMOS TER EFETIVAMENTE UM MOVIMENTO LGBT 173
É PRECISO TRANS-FORMAR O MOVIMENTO LGBT 176
E AÍ, NESTE DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA, VAI UM NEGÃO? 178
COTAS RACIAIS: O QUE OS ESTUDOS QUEER TÊM A DIZER SOBRE ISSO? 181
SERIA POSSÍVEL UM “ROLEZINHO” GUEI? 184
POR QUAIS MORTES NÓS CHORAMOS? UMA REFLEXÃO SOBRE
OS CORPOS QUE IMPORTAM 186
QUANTAS ORELHAS AINDA TEREMOS DE ARRANCAR?
A VIOLÊNCIA COMO POLÍTICA LEGÍTIMA DE RE(EX)SISTÊNCIA 191
O CANTO DOS MALDITOS* A ALA DAS BICHAS, SAPATAS, BISSEXUAIS,
TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E DEJETOS DA SOCIEDADE 195
MONSTROS PELAS SALAS E CORREDORES: A ESCOLA E O
DEBATE SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE 198
HETEROSSEXUALIDADES E
HETERONORMATIVIDADES
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

POR QUE A HETEROSSEXUALIDADE


NÃO É NATURAL?2
LEANDRO COLLING

Vou tratar hoje sobre a desnaturalização da heterossexualidade. No dia


17 de maio de 2011, Dia Mundial de Combate à Homofobia, a Folha de
S. Paulo publicou um pequeno artigo meu sobre o tema. Naquele pequeno
texto eu apenas defendo que o combate à homofobia deve incluir também a
problematização da heterossexualidade. Que, além de afirmar as identidades
de LGBTs, devemos também evidenciar o quanto a heterossexualidade é
imposta sobre todas as pessoas. Eu apenas tratava de temas recorrentes em
dezenas de estudos mais recentes sobre sexualidades existentes no mundo,
mas o texto recebeu críticas tanto de setores conservadores quanto de várias
pessoas LGBTs.
Lendo algumas dessas críticas, percebo que muitas pessoas não
compreenderam o argumento central porque ainda possuem uma forte
convicção de que a nossa sexualidade, seja ela qual for, é um dado da
natureza, da “biologia” ou até um designo de Deus ou qualquer outro ser
sobrenatural. Vou aproveitar agora para apresentar mais argumentos e
evidências concretas que demonstram o quanto a heterossexualidade não
pode ser explicada apenas como um fenômeno “biológico” (no quesito
religião não vou entrar agora). Ou seja, por que a heterossexualidade não é
natural?
Primeira observação: quando dizemos que a sexualidade de alguém
não é natural ou “normal” não queremos dizer, com isso, que as pessoas
são doentes. Apenas queremos dizer que a sexualidade de cada pessoa
não é intrínseca ou o resultado de ações exclusivas de cada um de nós.
Ou melhor, que as nossas sexualidades sofrem fortes influências do meio
em que vivemos. Por isso, provocamos ao dizer que, na verdade, todas as
sexualidades são, de alguma forma, “anormais”. O objetivo da provocação é
o de retirar o carimbo de “anormalidade” apenas de determinadas expressões
da sexualidade. Certamente muitos heterossexuais ficam chocados quando

2 Publicado dia 18 de julho de 2012.

11
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

digo que ser heterossexual é ser “anormal”. Eles sempre pensam que os
“diferentes”, LGBTs, é que são anormais e de que eles, heterossexuais, são
normais.
Mas por que, afinal, a heterossexualidade não é “normal”, nesses termos
que esbocei acima. Não é “natural e normal” porque a sociedade obriga
que todos sejamos heterossexuais e, para isso, desenvolve o que alguns/
mas pesquisadores/as, como Guacira Lopes Louro, chama de “pedagogia
da sexualidade”. O que é isso? Mesmo antes de nascermos, a nossa
heterossexualidade já é imposta sobre nós. Vários instrumentos são usados
nesse processo, em especial as normas relativas aos gêneros (nas minhas
reflexões eu nunca desvinculo as orientações sexuais das identidades de
gênero). A escolha do nome e das roupas de bebês, por exemplo, precisam
atender aquilo que a sociedade determinou como nomes e coisas de menino
ou de menina.
Na medida em que crescemos, começamos a ser criados/educados
e violentados para nos comportar como meninos ou como meninas “de
verdade”. Caso não sigamos as normas, começamos a sofrer violências
verbais e/ou físicas. Ou seja, a violência sofrida por aqueles que não seguem
as normas comprova que a norma não é natural e normal. Se assim o fosse, a
violência não seria necessária, pois todos e todas nasceriam heterossexuais!
A violência é o modus operandi com o qual a heterossexualidade sobrevive
inabalável. Temos esse modelo hegemônico de heterossexualidade a custa
de muito sangue e dor.
Quando falo dessas questões em palestras, os heterossexuais ficam
nervosos, às vezes levantam e vão embora. Alguns recorrerem à reprodução
da espécie e aos hormônios para explicar a atração entre pessoas de sexos
diferentes. Os mais afoitos dizem que se todos fossem homossexuais a vida
humana na terra estaria ameaçada. Tudo isso revela o poder do discurso
naturalizante sobre as nossas sexualidades. Primeiro: faz muito tempo que
os homens perderam a capacidade de identificar quando uma mulher está no
cio. Ao ingressar em uma nova etapa do processo histórico da humanidade,
que Freud, por exemplo, chama de “civilização” ou de “cultura”, os homens
e mulheres domaram os seus instintos e, no mínimo, os transformaram em
“pulsões”.
O conceito de pulsão é complexo, é “aquilo que está entre o mental e o
somático” e aqui pode ser traduzido entre aquilo que diz o corpo (“biologia”/
instinto “natural”) e a mente. Ou seja, a nossa sexualidade não pode mais
ser explicada como um dado exclusivo de nossos instintos, hormônios etc
desde, pelo menos, Freud, lá pelos idos de 1900. É evidente que temos

12
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

cargas hormonais diferentes entre homens e mulheres, mas não são elas
que acionam o nosso gozo e não são elas que comandam o nosso processo
de identificação em relação às orientações sexuais e identidades de gênero.
O nosso gozo e identificações são acionados por um sem número de outras
coisas, a exemplo de imagens, experiências anteriores, associações que
fazemos de forma consciente ou não.
Isso não quer dizer que a ação de alguma pessoa seja determinante
para a sexualidade de alguém. Os processos de identificação, todos eles,
desde porque gostamos de determinada cor e não outra, sofrem milhares de
influências externas que são decodificadas de formas igualmente diversas
pelos sujeitos. Isso também explica porque, mesmo educados para serem
heterossexuais, muitas pessoas não decodificam a mensagem como deseja a
maioria e orientam o seu desejo para outros “objetos”.
Essas explicações são as mais aceitas entre a comunidade científica
do mundo, mas existem várias pesquisas que já tentaram comprovar se
existe algum gene ou causa “biológica”/genética para a homossexualidade.
Nenhuma delas é reconhecida como válida por pessoas que estudam
sexualidades e gêneros nas ciências humanas. Eu sempre pergunto por que
os pesquisadores das áreas médica e da genética não fazem investigações
para explicar porque as pessoas se tornam heterossexuais. O que a norma
heterossexual (que nós chamamos nos estudos de heteronormatividade)
deseja é controlar e dar apenas uma resposta para isso. Para a lógica do
pensamento heterossexual, todos devem ser héteros de uma forma só.
E sobre a perpetuação da espécie humana? Ora, eis mais um argumento
que, no fundo, é homofóbico e profundamente vinculado a uma perspectiva
naturalizante. Primeiro: ao dizer que a heterossexualidade não é natural,
não estamos dizendo que todos devam ser homossexuais (aliás, que pânico
é esse, não é amigas?). Segundo: hoje existem tecnologias suficientes para
a produção de gestações sem o famoso sexo papai-mamãe. Os primeiros a
usar esses métodos, aliás, foram os heterossexuais, é bom lembrar.
Enfim, toda essa discussão não é feita, pelo menos no meu caso, para
que todas as pessoas sejam homossexuais. Nada disso. O maravilhoso da
humanidade é a sua diversidade. Problematizar a heterossexualidade tem
a vantagem de: 1) denunciar a violência com a qual ela se mantém no
centro; 2) revelar o seu caráter histórico e construído; 3) evidenciar que
ela produz homofobia; 4) possibilitar que outras heterossexualidades sejam
respeitadas e construídas.

13
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

A DIVERSIDADE DA
HETEROSSEXUALIDADE3
LEANDRO COLLING

Neste texto voltarei a falar de heterossexualidade.


Mas antes quero ligar o meu texto com um do Gilmaro Nogueira.
Ele chama a atenção para duas coisas: 1) a homofobia não mata apenas
LGBTs; 2) é preciso convocar, conquistar, convencer os heterossexuais
a aderir à causa do respeito à diversidade sexual e de gênero. Mas como
pode ser possível transformar em realidade esse segundo item? Essa ideia,
sempre que colocada em determinados lugares, gera muita polêmica. O
que estamos propondo é que LGBTs defendam os heterossexuais? Os
heterossexuais podem ser os representantes dos LGBTs? Essas são sempre
as primeiras questões que surgem. A minha resposta é: não estamos
falando que os LGBTs devem defender os heterossexuais ou de que eles
devem ocupar as representações dos LGBTs. Trata-se de não afastarmos
os heterossexuais da luta pelo respeito à diversidade sexual e de gênero e,
também, de problematizar a própria heterossexualidade.
Já ouvi, muitas vezes, as seguintes frases ditas por gays: “adoramos os
heterossexuais, eles são necessários para produzir mais filhos gays para nós”.
Ou: “heterossexual simpatizante não existe, existe é suspeito”. Ora, essas
frases são exemplos de dois imensos erros políticos. Ao invés de conquistar
parceiros, criamos mais inimigos. Ou seja, os possíveis heterossexuais que
poderiam nos auxiliar em nossas causas se afastam, ou melhor, são afastados.
É óbvio que não é qualquer heterossexual que desejará entrar na luta
por uma sociedade que respeite a diversidade sexual e de gênero. Mas o que
precisamos evidenciar, e esse é o tema deste texto, é que existe uma imensa
diversidade também entre heterossexuais. Falo de uma diversidade tanto
nas práticas sexuais quanto nos comportamentos de homens e mulheres
(estou falando agora de questões de gênero) que se identificam como
heterossexuais.
Primeiro vou falar das práticas sexuais: eu já tive a oportunidade de

3 Publicado em 11 de julho de 2012.

14
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

conhecer muitas pessoas heterossexuais que possuem práticas sexuais tidas


como nada convencionais. Por exemplo: adoram de pés, fetiches (saltos,
couro etc), homens que gostam de carícias no ânus ou que até são penetrados
com consolos por suas esposas ou namoradas. Nada disso transforma esses
homens em homossexuais, ao contrário do que apregoam os desinformados
e/ou pessoas que não respeitam ou desconhecem a diversidade sexual
existente nas heterossexualidades.
O fato de um homem sentir prazer no ânus não o transforma em
homossexual. Como dizem alguns estudiosos, somos castrados pelo ânus,
uma área erógena que passa, sistematicamente, por um processo brutal de
repressão. Quem tem o poder de definir quais áreas dos nossos corpos são
erógenas? Essa é uma questão central.
Ser homossexual, heterossexual ou bissexual é uma identidade cultural
que jamais pode ser resumida apenas nas experiências sexuais em si. Vários
profissionais do mercado do sexo, chamados de garotos de programa, que
possuem clientes gays, se dizem heterossexuais. Alegam que o desejo e o
gozo deles são acionados pelo dinheiro, pelo que farão com o dinheiro, e
não pelo corpo de outro homem. E essa explicação precisa ser respeitada,
pois cada um de nós aciona o seu desejo de uma forma. Por que só a minha
forma de desejar e gozar deve ser a verdadeira? Só quem desrespeita a
diversidade carimba esses homens como homossexuais.
Para terminar, vou apontar apenas alguns aspectos de como os homens
heterossexuais também são diferentes nas suas formas de expressar as suas
identidades de gênero. Em Salvador, é muito comum ver homens que
pintam as unhas e os cabelos e que fazem a sobrancelha (alguns as deixam
finíssimas). Ao dançar, quase todos rebolam. Em muitas outras cidades do
Brasil (falo, por exemplo, do interior do Rio Grande do Sul, onde nasci)
a heterossexualidade de todos esses homens baianos seria colocada em
questionamento por causa dessas ações. Ou seja, a depender da cultura de
cada lugar, um homem pode fazer determinadas coisas ou não.
Logo, o que é ser um homem ou mulher heterossexual não é apenas
um dado da “biologia”, mas também e fundamentalmente da cultura.
Gostaria apenas de finalizar dizendo que são os heterossexuais “diferentes”
e simpatizantes que deveríamos convencer para serem parceiros da luta
pelo respeito à diversidade sexual e de gênero. Para fazer isso, precisamos,
antes de mais nada, falar sobre a diversidade nas heterossexualidades e,
inclusive, de como essa diversidade também não é respeitada.

15
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

PARA CONTINUAR O DEBATE


DA DESNATURALIZAÇÃO DAS
SEXUALIDADES4
LEANDRO COLLING

Como eu previa, o texto sobre a desnaturalização da heterossexualidade


provocou várias reações. Adoro as discussões, mas desde que elas se
mantenham em um nível de diálogo e respeito recíproco. Não tenho
nenhum problema com quem pensa diferente, porém só mantenho o
papo com quem está minimamente aberto para ouvir. Eu ouvi as reações
contrárias e agora vou responder aquelas que apresentaram argumentos
que tentam colocar em xeque os que eu desenvolvi.
1. Uma pessoa disse que “ninguém é forçado a ser heterossexual”. Ora,
as evidências mostram exatamente o contrário. A nossa sociedade força
(e usa inclusive força física, muita violência, lembrem do assassinato de
um dos gêmeos em Camaçari?) para que todos sejamos heterossexuais.
Como eu disse no meu texto anterior, antes mesmo do nosso nascimento
já começam a nos imaginar como heterossexuais, através da escolha dos
nossos nomes, roupas, decoração do quarto etc e etc. Ninguém cria um filho
para ele ser homossexual (e não estou defendendo que as pessoas façam
isso), mas todos criam as crianças para que elas sejam heterossexuais. Se a
criança começa, por alguma razão, a não se comportar como uma pessoa
heterossexual e dentro de todos os papéis que cabem a uma mulher ou a
um homem “de verdade”, muitas pessoas agem com violência verbal e/ou
física. Ou seja, nós controlamos todas as pessoas para que elas se encaixem
naquilo que é tido como aceitável;
2. Outro comentário diz: “O autor confunde influência com
determinação. A despeito do conjunto de influências que a civilização
exerce sobre nós, continuamos responsáveis pelas nossas próprias escolhas.
Não somos determinados, embora influenciados”. Adorei esse comentário
porque ele é um bom exemplo de tentativa de diálogo respeitoso. Mas

4 Publicado em 26 de julho de 2012

16
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

tenho problemas com esse comentário também pois em nenhum momento


eu pensei pela lógica da determinação. Quando eu falo de como ocorre
o processo de construção de nossas identidades, ou mesmo dos nossos
processos de identificação mais gerais, eu deixo explícito que o sujeito tem
sim uma margem de liberdade de escolha. Mas em relação à sexualidade e
aos gêneros, essa margem é pequena ou quase nula, mesmo com os avanços
que temos conquistado nessas áreas. Quando digo que o sujeito tem certa
parcela de liberdade isso não quer dizer que esse processo é todo feito
de forma consciente, racional, ou que o sujeito então escolheu, por livre
vontade, ser LGBT. Tento explicitar que ninguém tem essa livre escolha
absoluta, inclusive os heterossexuais;
3. Outra pessoa concorda comigo, mas diz que seria inimaginável a
criação de um terceiro gênero. Eu nunca propus a criação de um terceiro
gênero. O meu raciocínio vai no sentido de evidenciar (e não de criar)
que já existem muitos gêneros, para além de dois ou três. Por que? Porque
os gêneros, na realidade, não são puros, todos nós temos algo do gênero
masculino e do gênero feminino. E, com isso, fazemos diversas combinações
que resultam em uma diversidade de gêneros. Ou seja, a norma quer, a
qualquer custo, que existam apenas dois gêneros puros (o masculino e o
feminino), mas a “vida real” nos mostra o contrário. E isso tem ficado mais
explícito a cada dia, não apenas entre as pessoas LGBT, mas também entre
as heterossexuais. Ser homem hoje não é mais ser um homem da década
de 70 no Brasil. Existe uma diversidade de masculinidades, feminilidades,
heterossexualidades, homossexualidades, bissexualidades, travestilidades,
intersexualidades. Só não vê isso quem não quer ou usa apenas um modelo
normativo para ler o mundo;
4. Outro leitor, que chamou meu texto de estranho, fez considerações
interessantes sobre se é estratégico politicamente, para LGBTs, defender a
desnaturalização da sexualidade. Ele disse que isso poderá provocar mais
ódio ao invés de conquistas. Vários/as ativistas LGBT pensam como ele, mas
eu e muitos/as outros/as ativistas e pesquisadores/as pensamos o contrário.
Mas não se trata apenas de opinião. Por que? 1. Uma estratégia política
jamais pode ser baseada em um argumento falso. Provem que as sexualidades
e os gêneros estão imunes à cultura, às normas sociais, e daí poderei pensar
diferente; 2. Conquistar direitos alegando que “eu nasci assim”, além de
não ser um argumento compatível com a realidade, gera apenas aquela
sensação “é, nós somos obrigados a aceitálos” e, principalmente, deixa a

17
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

norma hegemônica na mesma situação de conforto, inabalável. E são essas


normas hegemônicas que causam a falta de respeito à diversidade. Tenho
frisado que existe também uma diversidade nas heterossexualidades, que
também deve ser respeitada. O mesmo leitor lamenta que eu não tenha
entrado na discussão religiosa. Teria muito a dizer sobre isso e posso fazê-
lo, mas não dá para discutir com quem não entende a religião também
como uma construção cultural e histórica! Como iniciar um debate se a
pessoa acha que as pessoas sempre foram da mesma forma, desde “Adão e
Eva”? É nesse tipo de debate que eu não entrarei, ok? São dogmas desse
mesmo quilate que defendiam que os negros não tinham alma, não eram
humanos, e que as mulheres eram seres inferiores. E, às vezes, ainda dizem
que os dogmáticos somos nós!;
5. Outra pessoa disse: “Na minha opinião ser heterosexual é o caminho
da natureza em todas as espécies visto do ponto da sua continuidade na
Terra”. A heterossexualidade existe apenas entre os seres humanos. É um
tremendo equívoco dizer que animais são heterossexuais ou homossexuais.
A sexualidade dos animais é regida, basicamente, por instintos. A nossa, em
alguma época remota, também talvez o foi, mas não é mais. É isso que eu
disse no meu texto anterior. Isso não quer dizer que nossos instintos foram
completamente apagados, mas eles foram domesticados. Foi esse processo
de domesticação que possibilitou a vida em sociedade, tema de dezenas de
clássicos estudos que tratam sobre a história da humanidade.
Os humanos têm uma complexa sexualidade, algo que não se reduz
à prática sexual. Mas mesmo se ficarmos no plano das práticas sexuais,
veremos que essas mesmas práticas mudam ao longo do tempo, elas ganham
outros significados e releituras. Fale com seus avós para saber se eles/elas
transavam, na adolescência, na mesma forma como transamos hoje. Hoje
somos influenciados por uma série de imagens, histórias, produtos que
não existiam. Hoje, inclusive os filmes de pornografia comercial acabam
por estabelecer um certo modelo de transa, o que deve vir primeiro, o que
deve vir por segundo, onde o homem deve gozar e quando. Onde está a
“naturalidade” disso tudo?

18
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

HOMEM QUE REBOLA É


HETEROSSEXUAL?5
LEANDRO COLLING

Toda vez que nós falamos sobre a desnaturalização das


heterossexualidades, a exemplo do que fiz várias vezes em meus textos e em
entrevista à revista Muito, do jornal A Tarde, publicada no dia 26 de maio
de 2013, duas reações são comuns vindas especialmente dos homofóbicos:
as pessoas dizem que a heterossexualidade é natural porque apenas com ela
ocorreria a reprodução da espécie e outras dizem que queremos atacar os
heterossexuais com os nossos argumentos e pesquisas.
Vou tratar dessas duas críticas sem o propósito de convencer os
homofóbicos convictos (penso que essa é uma operação impossível), mas
volto a falar disso com outro objetivo: o de esboçar mais algumas linhas
sobre a diversidade existente entre as pessoas que se identificam como
heterossexuais e compartilhar com vocês uma experiência que tive ao
palestrar para estudantes do ensino médio em Salvador.
Sobre a questão da reprodução, quatro observações: Primeira: nós,
seguindo centenas de pesquisadores/as da área, não pensamos a sexualidade
das pessoas apenas e exclusivamente a partir da lógica reprodutiva. E por
que? Porque as pessoas, felizmente, não transam apenas para procriar, para
o horror dos fundamentalistas religiosos. Nós, independente de nossas
orientações sexuais, transamos porque isso nos dá prazer, porque é gostoso,
o sexo nos faz bem. Pensar o sexo exclusivamente pela ótica da reprodução,
no final das contas, é uma operação que simplifica demais a sexualidade e,
além disso, reifica um discurso normativo sobre a sexualidade, criado por
parte dos saberes ditos científicos e de outras instituições como a religião.
Segunda: na história da humanidade, houve um período em que os
“machos” identificavam quando as “fêmeas” estavam no cio. Isso ocorre
ainda no reino animal. Mas com o ingresso do homem na civilização
e na cultura, os humanos perderam muito de sua capacidade do olfato.
Isso fez com que o desejo do homem pela mulher seja acionado por uma

5 Publicado em 26 de julho de 2012

19
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

série de outros elementos marcadamente culturais (e não biológicos),


como perfumes, sapatos, cabelos e roupas da moda, imagens valorizadas
pelo cinema, entre outros zilhões de aspectos inerentes à nossa vida em
sociedade. Apesar disso, o discurso sobre a naturalidade é tão forte que
as pessoas naturalizaram todo o campo da sexualidade e também outras
identidades e esferas de nossas vidas. O discurso naturalizante, por exemplo,
defende que, para ter uma identidade baiana, é imprescindível ter nascido
na Bahia. Ora, já conheci diversos soteropolitanos que se identificam muito
mais com paulistas do que com baianos! E a identidade baiana também
mudou radicalmente nos últimos anos.
Terceira observação: quando desnaturalizamos as heterossexualidades,
falando sobre a heteronormatividade, não estamos atacando os
heterossexuais ou as suas práticas. Estamos questionando uma norma
opressiva que incide sobre todas as pessoas, sejam elas heterossexuais ou
não. Como assim? Ora, o que é ter um comportamento digno de um
homem e de uma mulher heterossexual não se resume ao que as pessoas
fazem na cama. Ser homem ou ser mulher pressupõe seguir todo um script.
Um homem, por exemplo, pode ter práticas sexuais homossexuais e, caso
exerça o papel como um homem na sociedade, ou seja, se vista como tal, se
comporte de forma máscula, por exemplo, ele provavelmente sofrerá menos
ou nenhuma violência.
Por último, mais uma coisa sobre essa questão da reprodução: faz
tempo que a medicina desenvolveu técnicas de reprodução de nossa espécie
sem a necessidade do sexo papai e mamãe. Portanto, não faz o menor
sentido esse pânico em torno da idiota hipótese de que todos vão se tornar
homossexuais com a desconstrução da heterossexualidade compulsória
e da heteronormatividade. Aliás, esse pânico apenas comprova como a
heterossexualidade e a heteronorma são frágeis, não é? Que medo é esse,
minha gente?! O que queremos é uma sociedade que respeite a diversidade
sexual e de gênero e não que todos se transformem ou sejam criados para
serem homossexuais. Percebem a diferença entre essas duas coisas?
E no bojo dessa diversidade existe também a diversidade dentro das
heterossexualidades. Nem todas as pessoas praticam sexo heterossexual
do mesmo modo. Nem todas as pessoas heterossexuais gozam da mesma
forma. O que aciona o gozo de uma pessoa nem sempre é a mesma coisa
que aciona o gozo da outra. E para pensar o ato sexual, seja ele qual for,
não basta analisar apenas a penetração em si, mas tudo o que envolve esse
ato. Por exemplo: existem aqueles que gostam de transar usando meias, uns

20
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

demoram mais para gozar, outros gozam mais rápido, uns preferem fazer no
escuro, outros na claridade, uns se satisfazem com relações monogâmicas,
outros são poligâmicos, uns preferem a dois, outros a quatro, uns homens
preferem a vagina das mulheres, outros curtem sexo anal com suas parceiras.
Enfim, existe uma imensa variedade de posições, práticas, configurações e
cenários para a prática heterossexual e, apesar disso, nós ainda a pensamos
apenas pela lógica da reprodução?
Para finalizar, vou dar um exemplo que fez sucesso em uma palestra que
ministrei para estudantes do Colégio Modelo Luís Eduardo Magalhães, da
Avenida San Martin, em Salvador. Ao falar sobre a diversidade existente na
heterossexualidade e dos papéis que a sociedade determina como desejáveis
para um homem e para uma mulher, lembrei das minhas primeiras impressões
ao chegar em Salvador, em 1998. Eu ficava surpreso como aqui os homens
pintam o cabelo, fazem e pintam as unhas, desenham as sobrancelhas e, em
especial, rebolam ao dançar pagode e outras músicas. Naquele ano, Xanddy,
da banda Harmonia do Samba, estava no topo das paradas e rebolava como
ninguém (nos últimos anos, ele quase não rebola mais, e várias pessoas
associam a mudança com a sua conversão à uma denominação evangélica).
Lembrei disso tudo e disse algo assim lá no Colégio: “Na cidade onde
eu nasci, no interior do Rio Grande do Sul (ironicamente chamada pelo
mesmo nome do endereço da escola – São Martinho), vocês meninos
certamente teriam a sua heterossexualidade questionada se dançassem da
forma como dançam aqui. Muito provavelmente vocês seriam chamados
de viados porque um legítimo gaúcho não rebola, isso é coisa de mulher.
O quadril do homem gaúcho é um dos mais regulados que eu conheço no
Brasil. E traço feminino em corpo masculino é coisa de viado.”
Moral da história: ser considerado como heterossexual pressupõe uma
série de comportamentos que vão além do que a pessoa faz na cama e isso
muda a depender do contexto cultural em que a pessoa vive. Ser hétero
em Salvador é uma coisa, ser hétero no interior do Rio Grande do Sul é
outra. E estamos na mesma época e país! E aí, vão continuar pensando
as heterossexualidades apenas pela via da reprodução da espécie e da
naturalização?
Despeço-me aproveitando para mandar um abraço com beijos (outra
coisa de viado, não é?) para os/as estudantes do Colégio. O ótimo debate
que lá fizemos, com perguntas muito interessantes, me mostrou, mais uma
vez, que existe uma luz no fim do túnel e que é fundamental a concretização
de um projeto como o Escola sem homofobia, paralisado pela presidenta

21
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

Dilma em função da pressão dos fundamentalistas. Conversar com os


adolescentes e impedir que se tornem preconceituosos, essa sim é uma
operação possível.

22
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

HÉTERO-PASSIVO É TENDÊNCIA!6
GILMARO NOGUEIRA

Um homem heterossexual pode sentir prazer sendo penetrado por


outro homem? Um homem que sente prazer sendo penetrado por outro
homem pode ser chamado de heterossexual?
No Brasil, segundo alguns estudos antropológicos, até a década de 80,
os homens se dividiam em machos e bichas. O macho era o que penetrava
outros homens e as bichas eram penetradas. O homem que penetrava não
perdia o status de macho, inclusive em algumas situações tal fato era uma
prova de sua virilidade.
A partir dos anos 80, com a popularização dos discursos científicos
oriundos da Europa, uma nova concepção de sexualidade ganha amplitude
no Brasil e os sujeitos não são mais divididos em machos e bichas, mas
em heterossexuais e homossexuais. Os heterossexuais são os que desejam
e mantém práticas sexuais com o sexo oposto, enquanto os homossexuais
com o mesmo sexo. Uma concepção não substitui a outra e, embora a
segunda passe a ter mais força, as duas continuam operando no Brasil.
É comum ouvir casos de homens considerados heterossexuais que
penetram outros homens, isto é, de alguma forma, nossa cultura mantém
uma certa permissividade ao homem considerado heterossexual penetrar
um outro homem, desde que não tenha ocorrido algum envolvimento
emocional e afetivo e os atos não tenham sido sistemáticos (constantes).
Esse tipo de homem, heterossexual, masculinizado, foi e é considerado
o ápice do desejo de muitos homossexuais, símbolo de uma masculinidade
verdadeira e autêntica. Não obstante era preciso que, além de masculinizado,
esse homem fosse ativo, isto é, um “comedor”, mas eis que agora começa a
surgir uma categoria de sujeitos que se dizem heterossexuais passivos.
Quem é esse homem hétero-passivo? São homens que se identificam
com a heterossexualidade (evidente), mantém relações afetivossexuais com
mulheres (essas relações podem ser através de vínculos matrimoniais ou
casuais, com ou sem vínculo afetivo), rejeitam qualquer traço de feminilidade

6 Publicado em 8 de abril de 2013.

23
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

em si ou nos parceiros, sentem prazer ao penetrar mulheres mas, nas


relações com homens, querem ser penetrados. Os heterossexuais passivos
não penetram homens, são sempre penetrados. Os que mantém relações
sexuais penetrando e sendo penetrados por outros homens se denominam
de heterossexuais versáteis, que é uma categoria bem mais comum.
Não sou tão ingênuo de acreditar que em outros momentos da história
esses homens não existissem, mas, hoje, com a popularização da internet,
utilizada como mecanismo de busca por parceiros, esses sujeitos parecem
aumentar e formular/textualizar uma identidade: a de hétero-passivo.
Onde se encontram tais sujeitos? Minha aposta é que em muitos espaços
de sociabilidade, principalmente em bairros populares (mas duvido muito
que seja apenas nestes), ocorrem interações que não podem ser explicadas
pela dualidade heterossexual versus homossexual ou ativo versus passivo.
Foi nos sites de relacionamentos manhunt e disponível que analisei
muitos desses perfis em minha pesquisa de mestrado realizada no Programa
Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade. Alguns
diziam que buscavam novas experiências e que estavam dispostos a serem
penetrados; outros sinalizavam que eram experientes e que desejavam
serem apenas passivos nas relações sexuais.
Outra forma de sociabilidade entre esses homens ocorre nos chats
do UOL. Existem salas específicas e uma delas é destinada a sexo entre
homens heterossexuais. Na maioria das vezes essas interações se iniciam
com diálogos sobre o sexo com mulheres, depois eles começam a falar de
masturbação entre homens e, por fim, sexo anal entre homens. No Yahoo
Respostas encontrei a seguinte dúvida em fórum que tem por objetivo
trocar informações entre usuários da internet:

Sou casado e tenho uma vida hetero prazerosa. Só que


desde 5 ou 6 anos de idade dou minha b… e preciso
disso. Não sei se é homossexualismo ou vício… Só sei
que é uma necessidade. Minha mulher não sabe e nem
quer saber desses meus desejos. Não sinto atração por
homens, só por pênis, por isso nunca tive um namorado,
nem fui ativo com homem…Acho que sou um bissexual
diferente e não sei o que fazer.

O sujeito acima não consegue um lugar identitário para seu desejo.

24
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

Sente prazer com o “sexo heterossexual”, mas não consegue evitar o desejo
de ser penetrado.
Um caso explorado midiaticamente é do ex-pastor evangélico da
Igreja Universal, Alexandre Senna, que tornou-se ator pornô passivo, após
o pedido da esposa, que não aceita que ele penetre mulheres, mas também
porque seu pênis não está no padrão da indústria pornô. As pessoas que
comentam as notícias nos sites e blogs sempre dizem que o mesmo é um
homossexual enrustido, pois não concebem um heterossexual fazendo sexo
anal passivo.
O que podemos dizer sobre esses sujeitos? O mais comum e pouco
reflexivo, mas que tem lá sua verdade, é pensarmos no modo com as
representações sociais negativas da homossexualidade podem fazer com
que um grande número de sujeitos recuse tal identidade. Acho, contudo,
que isso não responde completamente a questão.
É mais produtivo invertermos a pergunta: o que esses sujeitos dizem
a nós? Essa questão faz muita diferença, pois se tomarmos os sistemas
classificatórios para explicar os sujeitos, aniquilamos as diferenças,
enquadrando-os em poucas possibilidades. Ao contrário, se utilizarmos
as experiências e questionarmos os sistemas classificatórios, podemos
problematizar o quanto a divisão heterossexual, homossexual e bissexual é
limitante e não dá conta de explicar a sexualidade humana, que é complexa
e atravessada por diferenças e singularidades.
Vale ressaltar que, mesmo recusando a homossexualidade, esses sujeitos
assumem uma outra identidade problematizada, considerada anormal até
por aqueles que aceitam a homossexualidade. Constroem, também, uma
identidade considerada desviante.
É bem certo que a heterossexualidade confere um status de privilégio,
no entanto, a passividade marca negativamente o homem. Poderíamos
pensar numa tentativa de limpar a passividade de um status negativo e
histórico? Talvez a masculinidade se transforme em um padrão cultural tão
fortemente exigida que mesmo na passividade seja preciso estar dentro de
tais padrões.
Podemos dizer que essa identidade hétero-passivo é uma invenção?
Sim, toda identidade o é! A divisão hétero versus homo, ampliando para
bissexualidade, é também uma invenção da ciência oitocentista, uma ficção.
Uma criação que, apoiada no positivismo, acredita que poucas palavras
conseguem dar conta da paisagem sexual. Uma limitação e higienização da

25
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

nossa singularidade.
Nós estamos, no entanto, tão impregnados dessa construção binária
que se um homem se envolve com outro nós questionamos o sujeito e
nunca a divisão binária. Por que não questionamos essa ideia de que os
heterossexuais não sentem prazer anal? Será que é possível mesmo que
exista um grupo tão hegemônico em termos quantitativos que ignore
determinada área do corpo?
Não estou desconsiderando (digo mais uma vez) o modo como o
preconceito dificulta uma assunção à homossexualidade, mas considerando
que, além de se proibir uma identidade, se interdita também o corpo, isto é,
há uma castração anal, um interdito sobre o ânus. Os heterossexuais têm o
ânus castrado, diz Paul B. Preciado.
Bem, enquanto a gente fica tentando responder essas questões, e por
mais que alguns queiram simplificar tudo, achando que o mundo se divide
em duas ou três possibilidades, os sujeitos vão vivendo suas fantasias, cada
um com uma história singular, que problematiza nossas concepções e
classificações.
Por essas e outras, hétero-passivo é tendência e está na moda!

26
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

UM HOMEM HETEROSSEXUAL PODE


SENTIR DESEJO ERÓTICO POR OUTRO
HOMEM?7
GILMARO NOGUEIRA

Já perguntei em outro texto se um homem homossexual pode sentir


desejo sexual por uma mulher e agora falarei da experiência de homens
que se identificam como heterossexuais, mas mantém relações sexuais com
outros homens.
Em minha pesquisa de mestrado constatei que o modo como esses
homens nomeiam suas orientações sexuais aranham as definições clássicas
de heterossexualidade e homossexualidade, ou seja, essas experiências
mostram como essa divisão é precária, limitada e que se modifica conforme
o contexto.
Essa divisão das identidades sexuais foi tema de muitas pesquisas
no Brasil. Uma concepção popular de sexualidade operou de forma mais
contundente até 1980, e divide esses homens em dois grupos: os machos,
homens que mantém relações sexuais com mulheres e que eventualmente
se envolvem sexualmente com outros homens, penetrando-os, e as “bichas”,
homens que são penetrados por outros homens. São chamados de “bichas”
porque não são considerados dignos de portar o termo homem ou qualquer
associação com o masculino.
Importante ressaltar que, nessa concepção de sexualidade, um homem
não é considerado gay apenas por se envolver com outro homem, desde
que ele assuma um papel de macho e penetre-o. Assim, o que determina
a identidade sexual é o papel de gênero assumido na relação. O homem-
macho penetra; mulheres e “bichas” são penetradas.
Após a década 80, os discursos europeus e as concepções de sexualidade
promovida pelas ciências do séc. XIX chegam ao Brasil e modificam os
entendimentos acerca da sexualidade e, assim, incorporam-se ao discurso
os termos heterossexual e homossexual e o que define a identidade não

7 Publicado em 8 de dezembro de 2012.

27
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

é apenas a prática sexual, mas também o desejo, isto é, se um homem


desejar outro homem, independente da prática sexual, é marcado como
homossexual.
E como esses sistemas classificatórios funcionam hoje? De diversas
formas e combinando todos esses modelos. Em alguns lugares ainda se
estabelece a divisão macho versus “bicha”. Muito forte ainda é a divisão
heterossexual versus homossexual, e se desenha agora, de modo muito mais
contundente, diversos sujeitos que não se enquadram nessas categorias ou
que reconfiguram essas categorias de modo muito diferente das que foram
concebidas.
Um exemplo dessa reconfiguração das identidades: hoje muitos sujeitos
que se denominam de heterossexuais se envolvem com outros do mesmo
sexo. E se antes se pensava que essas relações incluíam apenas sexo, na
atualidade, essas relações são variadas e muitos se envolvem afetivamente.
Muitos desses homens são casados ou mantém compromissos com
mulheres, mas, então, por que mantém relações com homens? Será que não
gostam de mulheres e apenas estão fingindo essas relações por conta do
preconceito da sociedade? Até pode ser o caso de alguns, mas há sujeitos
que se realizam melhor sexualmente envolvendo-se com outrxs de ambos
os sexos, ou dito de outra forma, há sujeitos que se sentem limitados caso
restrinjam suas vivências eróticas a apenas um sexo.
Há homens que gostam apenas de parceiros brancos, outros apenas de
negros; uns envolvem-se apenas com homossexuais, outros apenas com o
sexo oposto, e outros que desconsideram o sexo e a cor da pele dos parceiros.
Não que esses sujeitos não tenham suas limitações, mas que mantém uma
experiência sexual muito mais livre - fluída.
Hoje assisti ao filme A vida secreta das abelhas, que trata de um preconceito
muito forte sobre as relações entre negros e brancos. A sociedade da época
(e a nossa nem sempre aceita) não aceitava que um homem branco se
casasse com uma negra ou que uma criança branca fosse educada e adotada
por uma família negra. Aposto que muita gente veria esse filme com certa
indignação, pelo modo como a cor da pele limita as relações sociais e
amorosas. Será que um dia também não nos envergonharemos de termos
balizado nossas relações por conta do sexo do parceiro?
Por que a escolha do nosso parceiro deve se limitar a questões de cor,
sexo etc.? Quais efeitos ocorrem em nossa subjetividade o fato de termos
aprendido desde pequenos que devemos escolher uma pessoa do sexo

28
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

oposto e amá-la para o resto de nossas vidas? Quais possibilidades teriam


se aberto caso essa linguagem não restringisse as relações a “uma” pessoa e
ao sexo dela?

29
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

QUAL A ORIENTAÇÃO SEXUAL DE UMA


MULHER QUE PENETRA HOMENS?
BONITA E SEDUTORA, TALVEZ!8
GILMARO NOGUEIRA

Esse texto é uma continuação do Hétero-passivo é tendência!, que gerou


muita discussão no blog e nas redes sociais. Vou abordar o tema agora
falando das mulheres por dois motivos: a) quero enfatizar o protagonismo
das mulheres no ato sexual com homens; b) pretendo problematizar as
concepções de identidade a partir da prática sexual anal.
Geralmente, nos textos do blog, que agora publicamos neste livro,
evitamos trazer muitas referências teóricas, pois entendemos que a escrita
aqui deve ser mais leve/livre. Mas, neste texto, vou me permitir citar teóricxs,
pois algumas pessoas acreditam que estamos trazendo esses temas sem
nenhuma reflexão científica, apenas como divagações de nossas mentes.
Gostaria também de dedicar este texto a uma mulher excepcional, uma
pessoa carinhosa, afetuosa, amiga, verdadeira e solidária. Uma mulher que
conheci nas discussões de filmes e que aqui vou chamar de Nina Donna
(ND), por uma escolha dela mesma. A primeira vez que ND penetrou
um homem foi aos 19 anos, quando convenceu um namorado a aceitar tal
prática e depois fez o mesmo com outros homens.
Quero acrescentar que ND não sente atração por mulheres e se
relaciona exclusivamente com homens. Não importa se esses homens são
heterossexuais ou homossexuais, pois ela não considera essa diferença.
Certa vez disse: “não vejo heterossexuais ou homossexuais, vejo homens!”
Outra singularidade é que, no ato sexual, há uma inversão de gêneros e, às
vezes, ND se masculiniza e o companheiro se feminiliza.
Qual seria a orientação sexual dessa mulher? Seria heterossexual ou
homossexual? Alguns diriam heterossexual, pois suas relações são apenas
com homens, mas sua prática sexual difere, e muito, do script heterossexual,
em que o homem penetra a mulher – a domina. Para outros, a prática

8 Publicado em 21 de abril de 2013.

30
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

seria homossexual, pois centrariam sua análise no homem que é penetrado.


No entanto, essa prática se dá entre sexos opostos, logo, não pode ser
homossexual.
Até me surpreendi com a grande quantidade de comentários no blog
que consideram heterossexual a penetração de uma mulher num homem
(sinal que a prática é mais comum do que imaginamos), mas cabe ressaltar
que a prática sexual heterossexual, tal como pensada pelos psiquiatrias do
séc. XIX, está ligada à reprodução da espécie e, por isso, confunde órgãos
sexuais com órgãos reprodutivos. Logo, essa prática (mulheres penetrando
homem) está fora do roteiro sexual prescrito.
Por isso questiono: qual a orientação sexual dessa mulher que penetra
homens? Nenhuma dessas orientações mais conhecidas dão conta de
explicar a sua sexualidade, mas não só a dela, todas as outras também
escapam dessa divisão binária. É por isso que a heterossexualidade e a
homossexualidade são consideradas apenas aproximações grosseiras e não
realidades em si mesmas.
Surpreendi-me também com a grande quantidade de pessoas que
pesquisam sexualidade e criticaram o texto tentando encaixar o hétero-
passivo em homossexual do armário, aderindo assim à divisão hétero versus
homo. Mais uma vez gostaria de ressaltar que não estou desconsiderando
o preconceito contra homossexuais, o que empurra muitos sujeitos para
o armário, mas não se pode perder de vista que a homossexualidade e
heterossexualidade não são identidades naturais, mas invenções (não estou
falando da prática sexual, mas da identidade e/ou da leitura que se faz da
prática).
Vou discutir um pouco essa questão, lembrando que muitas pessoas,
com problemas de interpretação de texto, leram o artigo de Leandro
Colling, Porque a heterossexualidade não é natural?, como se ele estivesse
afirmando que a heterossexualidade é anormal ou patológica, ou como se
ele quisesse naturalizar a homossexualidade como padrão.
Quando dizemos que a heterossexualidade não é natural, e que as
identidades são invenções, estamos afirmando que nenhuma identidade é
natural, nenhuma delas é anormal em si, mas que suas construções e signos
associados são invenções humanas. Não estamos patologizando nenhuma
identidade, nem dizendo que as pessoas devam ser isso ou aquilo, mas
apenas afirmando que “nenhuma identidade é natural – são ficcionais!”.
Mas com base em que fazemos tais afirmações? É apenas um modo de
fazer política ou temos alguma teoria por base nessas considerações? Em

31
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

que teoria se apoia a ideia de que a identidade não é natural?


Vou começar com a psicanálise. Para a psicanálise freudiana, ninguém
nasce mulher ou homem, nem masculino ou feminino, nem heterossexual
ou homossexual. Os caracteres biológicos (pênis/vagina) não determinam
nossa sexualidade. Nesse sentido, o sujeito só tem uma identidade após a
saída do complexo de édipo, por volta dos 4 a 6 anos de idade. Não vou
discutir aqui a teoria do édipo, mas importa saber que a identidade (sexual)
é resultado da identificação da criança com um traço, e não o sexo, de um
seus genitores.
Vou citar ainda alguns psicanalistas, entre eles Paulo Roberto Ceccarelli9,
que considerou que a homossexualidade é um artefato classificatório, uma
invenção que faz parte de uma construção simbólica da cultura ocidental,
que impõe uma sexualidade como natural e a reduz a função reprodutiva.
Ainda segundo Ceccarelli, os padrões de sexualidade humana não são
inatos, mas criados, vivenciados dentro de um imaginário social ao qual
estamos inseridos e, embora acreditemos na existência “natural” dos
sujeitos heterossexuais, bissexuais e homossexuais, trata-se de uma crença
ideológica, vivida como algo intuitivo e universalmente válido.
Outro psicanalista que questionou a concepção de identidade sexual
natural foi Jurandir Freire Costa10, motivo pelo qual ele cunhou o conceito
de homoerotismo, por acreditar que esse conceito não representa uma
substância homossexual, orgânica ou psíquica, comum a todos os homens.
Costa criticou a ideia de um psiquismo ou estrutura psíquica heterossexual
ou homossexual e, em vez disso, propõe que pensemos nessa divisão não
como realidade natural, mas linguística.
Um terceiro psicanalista, Contardo Calligaris11, problematizou a
distinção homossexual e heterossexual como ponto crucial para definir a
personalidade dos sujeitos e refletiu que a fantasia define muito mais uma
pessoa que a identidade. Um exemplo dado é que um homossexual com
fantasias sadomasoquistas tem muito mais a ver com um heterossexual

9 CECCARELLI, P. R. A invenção da homossexualidade. In: Bagoas – estudos gays, gêneros


e sexualidades, Natal, 2, 2008, pp. 71-93. 10 Uso o termo identidade sexual não como forma de
designar o gênero, o que é mais habitual, mas para qualificar o termo identidade, que é muito
genérico.
10 COSTA, J.F. A inocência e o vício. Estudos sobre homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume
Dumara, 2002.
11 CALLIGARIS, C. O psicanalista explica por que a homossexualidade incomoda
tanto? Revista Trip. Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/revista/204/reportagens/
contardocalligaris.html Acesso em: 20/01/2012.

32
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

também com fantasias parecidas, do que com outro homossexual.


Mas um sujeito ressaltou no blog que a psicanálise não é uma ciência.
Eu, pessoalmente, vejo muita coerência na psicanálise, mas se alguém não
quiser aceitar os argumentos psicanalíticos, podemos falar em antropologia,
embora nos últimos dias existam antropólogos aderindo à biologia como
forma de explicar as diferenças sexuais – uma vergonha!
Um dos antropólogos que discutiu a questão das identidades foi
Richard Parker12. Ele analisou que a experiência sexual é produto de
um conjunto de processos sociais, culturais e históricos, e não de uma
natureza humana imutável. Muito embora os indivíduos tenham ao seu
dispor um sistema de referência, e perspectivas culturalmente construídas
e valorizadas, as experiências são singulares, produzindo um complexo
múltiplo de subsistemas, conflitantes e contraditórios.
Ainda segundo Parker, muitas categorias e classificações centrais
utilizadas pela medicina ocidental estão longe de serem universais. Ao
contrário, essas classificações podem estar ausentes ou, no mínimo,
estruturadas de formas diferentes em muitas sociedades e culturas. Assim,
a interação sexual entre homens, por exemplo, pode organizar uma
diversidade de identidades.
Peter Fry e Edward MacRae13 também estudaram como foram
produzidas as identidades sexuais no Brasil e evidenciaram o modo como
a ciência europeia cristalizou a divisão heterossexual versus homossexual.
Esses dois antropólogos situaram a identidade menos como um objeto da
medicina ou psicologia e mais como parte da cultura e da política.
Um outro teórico importante é o sociólogo e historiador Jeffrey
Weeks14, que discutiu o modo como essas identidades foram construídas
pela ciência e, antes de representar uma realidade natural, são produções
políticas que tem por objetivo hierarquizar os sujeitos.
Os estudos culturais também têm questionado a ideia de uma identidade
natural ou una, assim como a concepção de um sujeito heterossexual ou
homossexual, opostos, que não sejam fluídos, marcados por inconstâncias,
incoerências, mas, acima de tudo, situando essas identidades a partir de

12 PARKER. R. G. Cultura, economia política e construção social da sexualidade. In: LOURO.


G. L. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora, 2000,
pp.125150.
13 FRY, P. & MACRAE, E. O que é a homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1985.
14 WEEKS. J. O corpo e a sexualidade. In: LOURO. G. L. O corpo educado. Pedagogias da
sexualidade. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora, 2000, pp.35-82.

33
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

processos históricos e políticos.


Stuart Hall15 inclusive alertou para o risco de essencializar posições
identitárias, naturalizadas e fixadas sobre determinado significante (étnico,
gênero ou sexo) fora da história e da intervenção política. Destacou
também que não podemos ser representados somente por determinado
signo. Estamos sempre negociando diversos tipos de diferenças, de gêneros,
sexualidades e classes, para citar apenas alguns marcadores. Essa negociação
se dá não apenas com um único conjunto de posições, mas com uma
série de posições diferentes. Para Hall, a identidade tem se tornado uma
“celebração móvel”, constantemente transformada nos sistemas culturais
que nos rodeiam. Dessa forma, surgem novas identidades que fragmentam
o indivíduo pós-moderno.
E, por fim, os estudos queer, que questionam as posições binárias e
essencializadas, têm jogado mais uma pá “pedra de cal”16 sobre essas
concepções essencialistas, ao ressaltar o modo como as tecnologias de
gênero produzem sujeitos normais e anormais. Esses sujeitos, organizados
em identidades estáveis, não são realidades em si mesmas, mas produzidos
através de saberes e poderes. Esses estudos têm realizado uma crítica à
heterossexualidade compulsória e à heteronormatividade.
Não vou continuar citando teorias que questionam a identidade,e importa
dizer que essa concepção de heterossexualidade ou homossexualidade como
natureza humana não se apoia na psicanálise, antropologia, sociologia,
estudos culturais, história, estudos culturais e queer.
Alguém pode desmerecer esses saberes e valorizar apenas as ciências
exatas e biológicas como fonte de verdade. É bom lembrar que Ilya
Prigogine, Nobel de química de 1977, ressaltou que as ciências duras não
possuem um saber absoluto, isto é, são passíveis de questionamentos. Por
isso, eu realmente prefiro as ciências humanas e sociais como modo de
explicação da sexualidade, por um compromisso político e pelo valor que
colocam no estudo da cultura e da história, o que pode explicar como
pensamos o que pensamos.
Significa dizer que não nascemos heterossexuais ou homossexuais, logo
não há motivo para cura, uma vez que não há desvio, mas uma concepção
de desvio que hoje não se sustenta mais na ciência, ou melhor, nos saberes

15 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomás Tadeu da Silva,


Guacira Lopes Louro. 6. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
16 Embora cite o termo “mais uma pá de cal” com uma analogia a um enterro, não estou
dizendo que acredito no fim das ideias essencialistas e naturalizantes.

34
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

que citei acima.


Mas o que fazemos? Policiamos a sexualidade de modo a enquadrar
as pessoas em heterossexuais ou homossexuais e fazemos uma assepsia
de modo que a naturalização da heterossexualidade seja constantemente
garantida por estudos que deveriam questionar a essencialização.
Vou citar um exemplo: em um estudo sobre comportamentos
epidemiológicos entre homens que fazem sexo com homens, realizado em
Minas Gerais no ano de 2000 e publicado pelo Ministério da Saúde17,
perguntaram para 446 participantes: “Que palavra você usa para descrever
sua sexualidade?”. As respostas foram:

Ambígua, ativo, ativo liberal, atraente, bicha, bissexual,


bofe, bonita, coisa boa, confuso, desejo, diferente,
doentio, entendido, entendido ativo, entendido
passivo, feliz, feminino, florzinha, frio, frio homem,
gay, gostoso, hetero-homo, homem, homem muito
macho, homoerótico, homossexual, homossexual ativo,
homossexual passivo, homoternurista, indefinida,
intensa, liberado, liberdade, libidinoso, livre, mulher,
normal, o máximo, pansexual, passivo, polissexual,
prazer, relacionamento, responsável, sentimental,
sexuado, sexual, tarado, ternura, tímido e metódico,
travesti, veado, versátil, voraz, além de outros do tipo,
não sei me categorizar, não me ocorre nada, não sei,
não gosto de rótulo e isso parece um rótulo, não quero
responder, nenhuma, num ambiente careta sou hétero.

A partir dessas respostas os pesquisadores enquadram esses sujeitos


em três categorias: entendidos, gays e bissexuais. Ou seja, nos esforçamos
constantemente para manter a divisão binária de heterossexual versus
homossexual e às vezes consideramos a bissexualidade. A sexualidade é
enquadrada em categorias limitadas.
As pessoas internalizaram essa divisão e algumas não conseguem
pensar além dessas fronteiras. Mas como superar essa divisão? Alguns
podem recusar a identidade e os rótulos, o que é válido. No entanto, os

17 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Bela Vista e Horizonte: estudos comportamentais e


epidemiológicos entre homens que fazem sexo com homens. Brasilia: 2000.

35
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

outros lhe atribuirão rótulos mesmo quando você não se identifica com tal
identidade.
Há também uma outra alternativa, de Jack Halberstam18, teórico queer,
que faz política através das identidades vernáculas ou populares. E isso
justifica a identidade
do heterossexual-passivo, do bolo-doido, total-flex, hétero-que-abre-
excessão e outros termos utilizados em Salvador, pelos sujeitos, para
descrever suas sexualidades. Essas identidades questionam a essencialização
e, de certo modo, contaminam o binarismo.
Não estou aderindo a ideia de um novo sujeito natural, mas pensando
que é tão viável o hetero-passivo quanto o heterossexual, uma vez que
ambos são invenções, ficções. Ressalto que não desejo tornar, com isso,
ninguém homossexual, ao contrário, o que menos queremos, e digo isso
no plural, é designar ou imputar uma identidade ao outro, mas respeitar as
identidades que os sujeitos escolhem. A poesia não está no heterossexual
nem no homossexual, mas nas diferenças, em nossas singularidades e, por
isso, cada um de nós temos uma orientação sexual diferente, haja vista que
não somos iguais.
E o que isso tem a ver com nossa mulher sedutora? Tudo! Ela é
mais uma dessas pessoas que questionam essa divisão. Sem nenhuma
teoria acadêmica, ela recusa esses rótulos e não separa os homens como
heterossexuais ou homossexuais e, por isso, já “ficou” com vários amigos
gays.
E para aqueles que acham que nossas concepções de sexualidade são
um desserviço eu questiono: como as suas concepções de sexualidade
natural têm produzido menos hierarquia? Que lugar há para os sujeitos
que não se enquadram nas posições dicotômicas? Que propostas políticas
suas concepções científicas têm para oferecer aos sujeitos que, através das
ideias preconceituosas, são considerados anormais? Não afirmo que não há
alguma vantagem em outras concepções de sexualidade, mas é importante
pensarmos os limites dessas concepções.
Ao ler um artigo meu sobre o questionamento das identidades, ND
respondeu por email:

18 HALBERSTAM, J. Masculinidad femenina. Barcelona & Madrid: Egales, 2008.

36
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

Aprendi coisas com ele. Eu fico pensando nessas horas


que se eu n tivesse te conhecido o qto de mim mesma
eu tb n teria descoberto! Acho q só vc p me ver ou me
mostrar como vc colocou em seu texto. E como isso
explicou tantas coisas de toda a minha vida e como isso
tb me fez ver outras possibilidades e quetões q antes n
existiam por total falta de informação minha e tb por
n saber direito o q pensar ou fazer com meus desejos,
práticas e fantasias. No apagar das luzes ainda existe
o q iluminar sobre o infinito mistério q somos nós
mesmos. Sou muito grata ao universo pela possibilidade
de te conhecer e de dividirmos ideias, pensamentos,
esperanças … Essas trocas alimentam meu ser, minha
alma.

É nisso que acredito: quando desnaturalizamos as sexualidades e


respeitamos os sentidos que cada pessoa dá às suas vivências, nós permitimos
ao outro um lugar humanitário, não-patológico. Quando enquadramos
tudo em duas ou três posições, fazemos uma assepsia marginal na vida
alheia. Em outras palavras, violentamos os sujeitos.
Quanto a identidade da mulher que penetra homens, não sei em qual
ela se enquadraria, mas certamente “bonita e sedutora” seriam bem mais
apropriadas do que heterossexual ou homossexual.

37
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

AQUI NINGUÉM É HETERO!19


GILMARO NOGUEIRA

Antes de tudo, gostaria de dizer que a ideia do título desse texto veio
da fala de um aluno, situação parecida que também inspirou o livro Aqui
ninguém é branco, de Liv Sovik. Embora o título venha dessa referência, esse
texto é uma tentativa de responder uma pergunta que recebi por e-mail:
“A psicologia explica a possibilidade de um indivíduo heterossexual virar
homossexual, mas é possível um indivíduo homossexual tornar-se hetero?”
A questão supõe que existe um indivíduo heterossexual ou homossexual
que, em algum momento da vida, possa se movimentar de um lado a outro.
Considerei interessante o fato de o autor da pergunta pensar os dois
movimentos mas, neste texto, vou questionar apenas a heterossexualidade,
por ser incomum. Mas que elementos existem para sustentar a ideia de
que não existe uma identidade sexual heterossexual tal como é pensada em
nossa cultura?
1 - A divisão social dos sujeitos em heterossexuais e homossexuais,
como duas categorias opostas, data-se de 1869. Até então, não havia a
concepção de que a sexualidade é dividida nesses dois polos. A palavra
heterossexualidade nasce com um sentido de depravação para então depois
migrar para um ideal sexual. Após essa data, a ciência se empenhou em
construir o paradigma de que existe uma pessoa que nasce com uma
substância mental heterossexual e que isso é o padrão da sexualidade
humana. Embora eu já tenha dito isso outras vezes, gostaria de afirmar que
não estou fazendo suposições, mas discutindo uma análise histórica. Quem
desejar ler mais sobre esse tema, leia o livro A invenção da heterossexualidade,
de Jonathan Ned Katz.
2 - A ideia de que existe um sujeito com uma essência inata que
determine o comportamento e a subjetividade foi sendo abandonada pelas
ciências humanas e sociais. Alguns cientistas cooperaram para a destituição
da concepção de um sujeito natural, entre eles Karl Marx, que afirmava que

19 Publicado em 10 de novembro de 2012.

38
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

as condições concretas de existência determinam a consciência, ou seja, não


há uma consciência inata. Sigmund Freud pensava a consciência apenas
como uma parte de um sistema governado pelo inconsciente; Ferdinand de
Saussure afirmava que não somos autores das afirmações que fazemos. Várias
autoras das teorias feministas também produziram o questionamento de que
“o pessoal é político”, isto é, mesmo o que pensamos como características
individuais são produzidas na política, que privilegia determinados grupos
de sujeitos. Alguns teóricos como Suart Hall, Zygmunt Bauman, Anthony
Giddens, entre outros, que refletem sobre a construção das identidades,
discutem esses pontos com muita propriedade e profundidade. Todas essas
discussões científicas e/ou filosóficas desconstroem a ideia de um sujeito
que age, fala e sente a partir de uma natureza humana e enfatizam o
contexto social na produção das subjetividades.
3 - Após essas reflexões citadas, desde o ano de 1980 tem crescido
dentro da academia os estudos queer, que em inglês significa “estranho,
torto”, e que têm enfatizado o modo com os sujeitos são produzidos pelo
discurso (sobretudo o científico) como anormais, patológicos e desajustados.
Uma das principais autoras, Judith Butler, no livro Problemas de gênero, traz
algumas considerações importantes para pensarmos a questão.
Butler problematiza a ideia de um sujeito que préexista ao discurso, ou
seja, é no discurso e principalmente no discurso científico que se produz a
concepção de um sujeito essencializado e naturalizado. Assim, não há um
sujeito antes, mas depois do discurso. Significa dizer que o discurso social
de nossa cultura pressupõe um sujeito antes de sua existência, que é estável
e linear, de modo que ter um pênis significa, nessa maneira de pensar,
ser homem, masculino e heterossexual. Assim, as pessoas não escolhem
seu sexo, gênero e desejo livremente, mas são coagidas a constituírem
suas sexualidades dentro dessas linearidades, caso não queriam ser
problematizadas e consideradas como aberrações. Obviamente nem todos
os sujeitos atendem as demandas do discurso hegemônico, senão todas as
pessoas seriam heterossexuais.
Resumindo até aqui: a heterossexualidade foi produzida no século
XIX; cientistas e teóricos já problematizavam que não existe um sujeito
natural, mas constituído no contexto; as recentes teorizações enfatizam o
papel do discurso (científico ou não) não apenas como algo que descreve,
mas produz as subjetividades e sexualidades.

39
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

1 - Para existir uma heterossexualidade é preciso que esta seja oposta a


homossexualidade e vice-versa. No entanto, alguns estudos antropológicos
têm problematizado essa distinção, enfatizando que as categorias sexuais
se organizam dentro de contextos específicos e que a construção de uma
categoria como oposta a outra, seja hetero versus homo, ou homem versus
mulher, tem a intenção de conferir uma espécie de purificação ao primeiro
grupo e apresentá-los como superiores, ou seja, a oposição produz a
hierarquia.
2 - Para Freud, uma escolha de desejo heterossexual conserva
vestígios de homossexualidade; para o filósofo Gilles Deleuze ninguém
é exclusivamente heterossexual ou homossexual. As ideias desses dois
pensadores permitem negar uma identidade exclusivamente heterossexual
ou homossexual. Certamente alguém diria: “não tenho desejo pelo mesmo
sexo” ou algum sujeito identificado com a homossexualidade diria:
“jamais ficarei com o sexo oposto”. Mas essas pessoas estão pensando a
heterossexualidade ou homossexualidade como sinônimo exclusivo de
prática sexual. Um heterossexual pode rejeitar a prática sexual com alguém
do mesmo sexo, mas se identificar com estes de muitas outras formas.
3 - Não existe algo como a heterossexualidade, mas uma diversidade de
sujeitos, o que nos permite pensar em heterossexualidades.
4 - Outro argumento dos estudos queer, em especial da já citada
Butler, evidencia que uma prática sexual com alguém do sexo oposto não
é necessariamente algo que deve ser considerado como uma prática sexual
heterossexual, pois um desses sujeitos pode fantasiar, nessa prática, alguém
do mesmo sexo. E o campo da sexualidade, é sempre bom lembrar, é
dominado por muitas fantasias. Significa dizer que não sabemos, em nossa
consciência, o sexo de quem levamos para cama, ou seja, podemos projetar
numa pessoa um sexo diferente daquele com o qual ele se identifica.
Esses são alguns dos argumentos que desconstroem a ideia de um
sujeito heterossexual como parte da natureza humana. Não são ideias
minhas, mas análises históricas, psicanalíticas, antropológicas, dos estudos
culturais etc. Será que todos esses pensadores, estudiosos e cientistas estão
equivocados? É coerente sustentar a crença que o mundo se divide em
heterossexuais e homossexuais apenas por que assim nos foi ensinado?
Após esses argumentos, gostaria de retornar a questão. Por que alguém
deixa de ser heterossexual e torna-se homossexual ou vice-versa? Mas, se

40
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

não existe uma heterossexualidade ou homossexualidade natural, no sentido


como as pessoas a entendem, um sujeito portador de alguma essência, como
alguém pode deixar de ser aquilo que não existe?
Mas agora eu criei um problema, que é: se não existe uma identidade
hetero ou homo, o que permite uma pessoa mudar seus desejos sexuais, de
um sexo por outro? Mas não dá para responder tudo num único texto, não
é?
Vamos adiante!

41
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

G0YS, HÉTEROS-PASSIVOSFLEXÍVEIS
E O FIM DA HETEROSSEXUALIDADE20
GILMARO NOGUEIRA

A cada dia surgem novas identidades e classificações sexuais. É


um movimento que vem das vivências e experiências, ao contrário das
identidades peritas que nascem no sistema médico/psiquiátrico europeu.
Enquanto o sistema médico encaixa as pessoas em suas nomenclaturas,
com fronteiras definidas e associações com o modelo saúde/doença ou
normal/patológico, no cotidiano as pessoas tentam renomear as suas
vivências e redefinir parâmetros.
Essas redefinições são subversivas porque extrapolam os limites peritos,
mas podem reiterar normas e valores sociais. No que tange a sexualidade
quase sempre ocorre a hipervalorização da masculinidade, que não tem
nada de subversivo em corpos tidos como de “homens biológicos”, mas
continua sendo opressor com determinados sujeitos.
Quando publiquei um texto sobre heteropassividades, muitos me
acusaram de criar, inventar identidades. Aliás, é comum ouvir que nós, dos
estudos queer, fragmentamos as identidades e que somos um perigo às
políticas LGBT. Como se tivéssemos esse poder.
A verdade é que os sujeitos, no dia-a-dia, têm experiências que
ultrapassam os limites hetero x homo. Esses
sujeitos estão “cagando e andando” para nós que estudamos a
sexualidade. Quando publicamos algo sobre essas sexualidades, é sempre
um movimento atrasado, posterior às vivências, e não o contrário.
Pois eis que agora surgem de forma midiática os G0ys, os homens
que mantêm práticas sexuais periféricas, isto é, sem penetração com outros
homens e não se consideram gays. Não aderem ao que chamam de cultura
gay ou às práticas que envolvem penetração.
Surgem também críticas dos caciques do movimento LGBT a essas
nomeações. Eles dizem: “a causa dessas identidades é o preconceito ou

20 Publicado em 18 de abril de 2014.

42
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

homofobia contra os gays”, ou seja, se não houvesse homofobia, eles se


diriam gays. Até certo ponto estão certos, pois esses homens querem
manter o status heterossexual, senão não precisariam deixar evidente que
não são gays, não podem ser confundidos com gays, mas heterossexuais-
passivos ou heterog0ys.
Mas é só isso? É tudo que podemos dizer sobre esses sujeitos? São
gays enrustidos? Soam inocentes e simplistas essas explicações. Aliás,
as explicações soam tão menos subversivas que as próprias nomeações
desses sujeitos. Na verdade, parte do movimento LGBT (de onde vem
essas “teorias”) é tudo menos subversivo, pois: 1 - Acreditam que o
mundo se divide em hetero e homo. Tomam essas identidades como
verdades, posições naturais e não discursivas. Acreditam que essas duas
palavras têm a capacidade de nomear toda realidade ou sexualidade; 2 -
Vigiam as fronteiras entre hetero e homo, marcando quem é quem num
campo complexo que é a sexualidade. São ávidos a definir quem é o que
e, principalmente, nomear quem é gay; 3 - Não conseguem pensar uma
proposta política que não passe pela identidade gay e perdem a chance
de refletir em que esses sujeitos que não aderem ao binarismo tradicional
podem ser parceiros e, o mais importante, o quanto eles nos mostram que
as identidades são ficções, sujeitas as novas interpelações, multiplicidades
(o que é diferente de fragmentações), etc.
É por isso que esses sujeitos temem/rejeitam os militantes (palavra
que define bem essa vigilância da sexualidade). Sobre isso, lembro que um
amigo comentou que ninguém falava com ele no aplicativo de caça scruff.
Ele tinha inserido no perfil que era militante LGBT. Militância não rima
com subversão, nem com sexualidades pósidentitárias, mas com encaixe,
classificações binárias e “abichornamento”.
Os sujeitos políticos, atuantes e que defendem os direitos humanos,
lidam bem com o modo como o outro encontra um lugar humano no
mundo, em suas nomeações, mas os militantes defendem o tradicional e
são inimigos das sexualidades contemporâneas.
Voltando aos heteros, ao mesmo tempo em que esses sujeitos subvertem
as normas das identidades, pois o que se supõe é que a heterossexualidade
seja uma identidade pura, que seu desejo seja somente para o sexo oposto,
o que a prática cotidiana mostra é que ela é múltipla, diversa e também,
embora não obrigatoriamente, atravessada por desejos por pessoas do
mesmo sexo.
Mas nem os g0ys, nem os heteros-sei-lá-o-que são tão subversivos

43
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

assim, pois reiteram normas de masculinidade, isto é, experienciam uma


sexualidade contrária às normas, mas lutam por manter um padrão de
masculinidade que é hierarquizante e violento com outros sujeitos. Essas
“novas” identidades não refazem o cenário hierárquico em que o homem
masculino e branco é considerado como de maior valor.
Mas se romper com a masculinidade dominante for um padrão para
julgamento do que é subversivo, os homossexuais não estão em melhor
posição, pois é comum os gays rejeitarem parceiros afeminados. Então o
que há de tão subversivo na identidade homossexual em comparação a
esses homens? Apenas o fato de assumir uma identidade, um lugar perito?
Nem todos os que assumem esse lugar se comprometem com a luta pelos
direitos humanos, com os direitos LGBTs, e menos ainda contra o racismo
e opressão às classes populares ou violências de classe.
E se essas classificações são modismos, e os sujeitos logo desistirão
dessas nomeações, como dizem alguns militantes profetas, o ato de dividir,
renomear é perene e é o que é mais importante. Os sujeitos têm tentado,
a partir de suas vivências, e não de nossos estudos, refazer a paisagem das
sexualidades. Esse refazer não sai de moda, e é esse ato que devemos tomar
como válido, a recusa pelo binarismo tal como idealizado no século XIX
gagueja desde muito tempo a dizer que essa divisão é um equívoco.
Hetero-passivo não existe, G0y não existe, tanto quanto o heterossexual
e o homossexual também não. O fato de que algumas identidades
permanecem por décadas é justamente pela força dos sistemas especialistas
e militantes que conservam a pureza da ficção. Existem como normas, não
como realidades naturais.
Enquanto isso, nesse movimento fragmentador, é possível dizer que a
heterossexualidade tradicional, tal como concebida, é passado, é morta, ou,
no mínimo, está em declínio. Essa heterossexualidade existe como ideal,
como norma, obrigação, exigência, mas no dia-a-dia as coisas andam às
avessas. E não há porque lamentar.
Essa heterossexualidade é prejudicial aos gays, pois exige que eles se
adequem a identidade esperada e é prejudicial também aos heterossexuais,
pois limita suas experiências, castra seus corpos e os priva de outras
vivências. Vivam os heteropassivos, os g0ys, os bolo-doidos, tudo mais que
multiplicar e possibilitar uma vivência mais libertária.
Viva o movimento!

44
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

NINGUÉM NASCE HETEROSSEXUAL


OU O QUÊ MATOU ALEX21
GILMARO NOGUEIRA

Após ler as chocantes notícias do pai que matou o seu próprio filho
Alex22 porque ele não se comportava como um homem, tive vontade de
retomar um tema. Esse e outros casos mostram o quanto ainda é necessário
evidenciar como a heterossexualidade é obrigatória sobre todos nós e, caso
não nos comportemos como prevê a norma, corremos o risco de sermos
assassinados, inclusive por nossos pais, aqueles que figuram na imagem da
sagrada família que nos protege.
Quando realizo alguma palestra ou oficina sobre sexualidade, começo
refletindo sobre questões de identidade posicionando-a como uma
construção humana. Rapidamente as pessoas entendem que, a partir de
algumas características corporais, a cultura constrói identidades, separa
grupos e produz hierarquias.
Embora nossa pele tenha diferentes cores, formatos, etc, a cultura
inventou a ideia de raças, que separa e hierarquiza os homens e confere à
branquitude uma série de privilégios. Se cada um tem uma pele diferente, na
cultura os sujeitos são enquadrados como negros ou brancos. O mesmo com
a questão do gênero, isto é, embora cada um de nós combine masculinidades
e feminilidades de uma forma diferente, a cultura nos enquadra num único
gênero entendido como oposto ao outro e puro em si mesmo.
Após essas explicações: como a cultura toma a diversidade e pluralidade
e transforma-nos em uma única categoria em oposição a outra – as pessoas
entendem que toda identidade/categoria é uma produção cultural que
separa e hierarquiza. Mas ao afirmar que a identidade é construída questiono
se a heterossexualidade é também construída ou se as pessoas nasceram
heterossexuais. Os sujeitos entram em um momento de conflito de ideias,

21 Publicado no dia 6 de março de 2014.


22 Menino teve fígado dilacerado pelo pai, que não admitia que criança gostasse de lavar
louça. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/menino-teve-figado-dilacerado-pelo-paique-
nao-admitia-que-crianca-gostasse-de-lavar-louca-#ixzz4WRulENB9 - Acesso em: 05/03/2014

45
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

por acreditar que a identidade é construída, mas sua heterossexualidade é


natural.
A contradição: toda identidade é construída, mas minha
heterossexualidade é natural, coloca os sujeitos numa encruzilhada ou
diante de uma crença - o mito que todos nascemos heterossexuais e de
que algo desvia alguns sujeitos. Percebo também que quase nenhum dos
sujeitos se perguntou o que é a heterossexualidade e o que a produz, pois
são ensinados que é assim que se nasce - uma condição.
Desconstruir a heterossexualidade como uma identidade natural não é
um empreendimento dos tempos atuais, nem se trata, como alguns pensam,
de um intento do movimento LGBT (que, aliás, de uma forma geral, no
Brasil, nem faz isso), mas algo que já foi feito por diversos saberes.
É surpreendente quantas pessoas leram Freud e não questionaram
a heterossexualidade. A psicanálise, no entanto, não concebe a
heterossexualidade, a homossexualidade, o ser homem ou mulher como
natureza humana. Freud adverte que é preciso não ceder à anatomia dos
corpos, isto é, não devemos buscar uma verdade no corpo, nas genitálias,
para o ser homem ou mulher. Não compete, diz Freud, dizer o que a mulher
é, mas o que vem a ser na cultura.
Ainda na psicanálise, não se concebe que alguém nasça mulher
ou homem, heterossexual ou homossexual, mas que nos posicionamos
em algum desses lugares através de identificações inconscientes, com
os genitores, através do complexo de édipo. Quando discuto o édipo
e a heterossexualidade como uma posição produzida após a saída desse
complexo, algumas pessoas ficam surpresas, como se eu tivesse inventando
algo novo.
Nos estudos antropológicos discute-se que aquilo que achávamos que
era natural ou inato é, na verdade, cultural. Ao se deparar com o outro,
o diferente, os primeiros antropólogos os classificaram como “selvagens”,
primitivos e poucos humanos ou anormais. Com o tempo esse outro
mostrou que nossa humanidade é apenas um modo de humanidade, e que há
outras formas, modelos de vivenciar costumes, crenças e sexualidades. Esse
mesmo conceito pode ser utilizado para entender que a heterossexualidade
é apenas uma forma de sexualidade.
Diversos estudos antropológicos, hoje, evidenciam o caráter cultural
e contextual das identidades heterossexuais e homossexuais, evidenciando
que, em diferentes contextos, esses termos têm sentidos diferentes. Atos

46
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

sexuais idênticos têm sentidos diversos, e assim evidencia-se que as


identidades sexuais são inventadas, contextualizas e recontextualizadas,
plurais e diversas e que não são estáveis e naturais.
Estudos sociológicos, de psicologia social e estudos culturais têm
evidenciado o caráter contextual e social das identidades. Quando pensamos
a heterossexualidade, no entanto, desconsideram-se esses estudos. “Que
provas científicas há de que não nascemos heterossexuais?”, perguntou
uma aluna. Eu sempre evidencio os saberes citados acima, mas o mito da
heterossexualidade e do ser homem e mulher como essência parece ser mais
forte e legítimo sob o qual se erigiram as identidades dos sujeitos. Sem falar
de uma longa tradição de não questionar o que socialmente foi considerado
como única forma normal de identidade.
Dizer que não nascemos heterossexuais ou homens não significa dizer
que nós aprendemos voluntariamente a ser isso ou aquilo. Digo isso porque
algumas pregações religiosas tendem a supor que nascemos heterossexuais
e que a homossexualidade ou qualquer outra forma de vivência sexual se
aprende pela influência da cultura. Não escolhemos voluntariamente o que
queremos ser, mas nos identificamos, também inconscientemente, com
determinadas posições, numa cultura que concebe as categorias como duais
e opostas. Isso acontecia com Alex, assim como aconteceu e acontece com
todos nós, sejamos LGBT ou não.
Acreditar que nascemos alguma coisa traz um conforto que não
escolhemos, que somos naturais e normais ou, em última instância, não
somos culpados por alguma posição socialmente desvalorizada. Muitos
sujeitos inclusive afirmam a homossexualidade como natural, essência
presente antes do nascimento. Colocar a homossexualidade como natureza
humana equiparando-a ao mito da heterossexualidade originária não
permite, contudo, criticar as hierarquias produzidas na cultura, além de
deixar de fora diversas outras formas de vivência da sexualidade, pois não
há lugar para todos na concepção de sexualidade natural.
De certo modo, os sujeitos, ao afirmar “nasci homossexual, não foi uma
escolha”, parecem dizer: “não tenho culpa, nasci assim”. A desvalorização
cultural de algumas formas de sexualidade empurra os sujeitos para a busca
de uma natureza humana, em vez de problematizar que somos o que somos
na cultura que transforma características corporais em agrupamentos e
hierarquizações.
E assim vamos criando e recriando nossos mitos e talvez um dos
mais fortes deles é o de que nascemos heterossexuais, homem ou mulher.

47
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

Mito que sustenta as hierarquias e é desfavorável a não-heterossexuais e


nãohomens. Mito não sustentado pela psicanálise, estudos antropológicos,
sociológicos, culturais, feminismos e estudos queer.

48
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

PROGRAMADAS PARA SÓ DIZEM


SIM (E MUITO OOH YES, FUCK ME,
SIR!)23
FÁBIO FERNANDES

A inspiração para este texto veio de um filme da década de 70, assistido


recentemente, chamado Esposas em conflito/As esposas de Stepford (The
Stepford Wives, EUA, 1975). Fiquei instigado com a ideia provocativa e
o charme da história, mesmo achando a produção já com um certo cheiro
de naftalina (até existe uma refilmagem de 2004, mas esqueçam, é uma
porcaria). Eu comecei a refletir sobre como as pessoas, ainda hoje, são
fortemente persuadidas de inúmeras formas a serem submissas, aprisionadas
a “tradições” opressoras que pareciam superadas, mas se revelam ainda
enraizadas nas sociedades. A gente às vezes fica com a visão turva para
algumas coisas…
Stepford é uma cidade pequena, limpa e pacata onde a vida é tranquila,
segura, calma e as pessoas são amistosas. Na história do filme, as mulheres
são esposas atenciosas e mães exemplares, além de muito belas, perfeitas
donas de casa, gentis, submissas, doces, excelentes anfitriãs, cozinheiras
irretocáveis e muito, mas muito gostosas, furacões na cama. Joanna
Eberhart, fotógrafa freelance, seu marido Walter, advogado, e seus dois
filhos mudam-se para essa região de pessoas atipicamente domesticadas,
em busca de uma vida mais sossegada e para fugir do caos e confusão da
grande metrópole Nova York.
Joanna logo estranha esse mundo de plástico, mas rapidamente faz
amizade com Bobby, outra recém-chegada ao “paraíso”. Ambas possuem
experiências com discussões e grupos feministas, debates que estavam em
ebulição na década de lançamento do filme. Ao perceberem a existência
de uma Associação de Homens na cidade, uma espécie de clube do
Bolinha, elas resolvem criar um grupo de conscientização para as mulheres
discutirem esse mundo inexplicavelmente arcaico, ultrapassado, “old

23 Publicado em 31 de janeiro de 2013.

49
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

fashion”: inicialmente nenhuma mulher aceita, elas preferem continuar


com suas vidas e rotinas de donas de casa perfeitas e máquinas de prazer
sexual subservientes aos seus maridos e… donos.
Com muito esforço, Joanna e Bobby conseguem reunir as mulheres
e iniciam uma discussão sobre relacionamentos, a mulher na atualidade,
entre outros temas, mas as esposas de Stepford só conseguem falar sobre
afazeres domésticos, receitas culinárias e como ser A dona de casa, sempre
sorrindo como em um comercial de TV. Todas são estranhamente felizes,
uma felicidade artificial… essas mulheres parecem viver em outra dimensão.
As novas moradoras investigam sem sucesso o motivo dessa “tranquilidade”
e submissão fora do comum, algo que as aterrorizava.
A protagonista logo se vê encurralada ao encontrar sua amiga Bobby
“transformada” em um modelo de esposa de Stepford. Totalmente diferente
e exatamente igual a todas as outras. A “perfeição” é exagerada e reproduzida
com simetria: elas são tão perfeitas que na verdade se revelam… robôs. Os
homens da cidade substituem suas esposas por máquinas e esse pode ser
o fim da “rebelde” Joanna. O líder da Associação de Homens da cidade, e
também a mente por trás do projeto Stepford, a captura e anuncia com
um tom sádico de vitória: “Veja, pense nisso de outra maneira. Você não
gostaria de um cara perfeito esperando por você em casa? Adorando você?
Servindo você?”.
Há na película uma atmosfera sombria, assustadora e claustrofóbica,
em uma metáfora perversa do machismo que se opunha com força aos
movimentos feministas da época. Fiz essa longa introdução para discutir
sobre duas cenas atuais que me fizeram refletir sobre como esse mundo de
Stepford não está tão distante de nós…
A primeira cena é a de um vídeo que encontrei no youtube, postado
em 2012, chamado Como ser submissa a uma pessoa omissa? – 2º Congresso de
Mulheres Diante do Trono. Nesse pequeno vídeo, essas referidas mulheres
diante do trono (?) discutem e valorizam o valor da mulher submissa em
contraponto a mulheres com “atitude” demais, que sequer consultam os
maridos antes de tomar qualquer decisão. Em certo ponto do registro, a
Pra. Ângela Valadão, sempre com um belo sorriso no rosto, defende seu
argumento sobre a ideia da submissão:

[…] eu tenho visto hoje algo muito sério acontecendo


nas famílias. É que sem perceber, as mães, os pais

50
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

estão criando as suas filhas não para o lar, não para


serem esposas, não para serem mães, mas criando
para a sua carreira profissional. Então, as mães
se alegram: a minha filha passou em primeiro lugar
no vestibular, ah ela passou no concurso… eu já ouvi
pais, pais maduros e irmãos nossos, líderes dizendo
assim: não, minha filha não vai namorar até formar, até
terminar a faculdade. Aí o que acontece, passa a fase mais
linda da menina, passam os momentos mais bonitos, a
menina estuda excelente, mas não sabe cozinhar, não
sabe pregar um botão numa camisa, não sabe passar
uma camisa, não sabe organizar, nunca arrumou uma
cozinha… então, ela não está sendo preparada para
o lar, ela está sendo preparada para competir com o
homem no mercado. Aí ela forma e o pai fala assim:
“olha, eu gastei muito pagando faculdade, agora
você tem de trabalhar”, aí ela vai trabalhar, e aí ela
tem de trabalhar e a primeira coisa que ela faz é
comprar um carro, […] agora ela vai comprar…
um apartamento, aí ela descobre que ela está com
seus 32, 33 anos e está no sucesso total, ganha um
dinheirão, é formada, ela diz: eu quero casar, eu
quero ser mãe, eu quero ter filhos… mas aí já não
tem os rapazes solteiros, livres, muito difícil, que
ganham o mesmo que ela, que tenham o mesmo
nível intelectual, então aí ela vai atrás de qualquer
um, é um divorciado, é um cara esperto que vê a
menina ter um carro, ter um apartamento, ter um
bom salário e ele casa por conveniência. Mas lá
atrás, quem provocou tudo isto? Uma educação mal
direcionada! Então eu vejo que a submissão é um
princípio que abrange algo muito mais profundo,
muito mais maravilhoso, as consequências, elas
são muito fortes […] é muito importante que as
meninas que estão aqui sonhem em ser esposas
[…], sonhem em se realizarem como esposas,
sonhem em ser mães e que nós possamos preparar
as nossas meninas para o casamento.

51
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

Ao transcrever essa extensa fala me perguntei se essas mulheres não


foram programadas, robotizadas/substituídas como as esposas de Stepford.
Não pretendo aqui discutir escolhas nem crenças religiosas, muito menos
impor um modo de pensar, viver e existir, mas sim refletir sobre como
alguns discursos são tão opressores e limitam outras muitas possibilidades
de existência a determinados corpos e sujeitos; trato especificamente, nesse
caso, do corpo feminino e da mulher cisgênera. É mais do que perceptível
nessas falas o peso do que é ser essa mulher, uma “mulher diante do trono”,
cujo rei é um macho supremo e há todo um encaminhamento para tornar-
se submissa ao marido e ao lar, mesmo diante de tantas conquistas e
revoluções realizadas com muita luta durante décadas.
O que acontece com as meninas que não se enquadram dentro do
universo tecido por essas pessoas? Há que se ponderar o quanto o nosso
mundo, voltado para produzir “pessoas realizadas”, que devem conquistar o
suce$$o no mercado de trabalho e batalhar incessantemente para atender
a inúmeras expectativas, é muito opressivo tanto para homens quanto
para mulheres, mas para a mulher parece que há um fardo ainda maior na
exigência do alcançar esse status de pessoa bem sucedida e, ao mesmo tempo,
de boa mãe, esposa e dona de casa. Essa opressão ainda ecoa fortemente em
discursos e práticas reproduzidas em nossa sociedade ocidental, capitalista,
cristã e “higienizada” (notem que nem vou tratar de outros corpos ainda
mais estigmatizados/invisibilizados, como o de lésbicas e mulheres trans).
Em tempos de uma chamada liberdade sexual, tão gritada como uma
conquista feminista e de outros coletivos sociais, inclusive debatida com
vigor no recente movimento internacional Marcha das Vadias, que discute
a liberdade das pessoas sobre o próprio corpo e também combate a violência
contra mulher, gostaria de discutir outra cena que me deixou instigado:
a do concurso Belas da Torcida, realizado pelo portal UOL Esporte. O
públicoalvo desse site é o típico macho brasileiro aficionado por futebol
e por mulheres… com essa pequena descrição acho que dá pra se ter uma
noção das figuras idealizadas pelo portal.
Nesse concurso, havia tópicos de votação para eleger o melhor decote,
as melhores pernas, a melhor barriguinha, o melhor bumbum, a melhor
garota de lingerie, a melhor de biquíni, entre outros como o sorriso, olhos
e a mais simpática (?). As categorias enquadravam as partes do corpo das
candidatas como pedaços de carne exibidas numa “TV de cachorro”, com
direito aos singelos comentários e avaliações dos leitores discutindo qual
parte é mais gostosa, qual moça merece ser a musa etc… percebese, na

52
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

escolha das imagens e na própria formulação do discurso, uma mulher


que, assim como as esposas de Stepford, são também máquinas de prazer,
produzidas para fazer os machos gozarem.
O corpo e a identidade femininas são ainda produzidas/construídas/
oprimidas por discursos que as limitam a serem robôs, objetos domésticos
e sexuais. É um discurso violento que ainda não foi superado mesmo depois
de tantas décadas de debates e reflexões, reproduzindo e ramificando-se de
outras formas, muitas vezes por ângulos que supõem uma liberdade falsa,
seja na insana busca por uma “carreira promissora” ou da segurança pela
constituição de uma família feliz de comercial de TV, ou os dois no mesmo
pacote.
As normas sociais parecem operar para estender e transformar o mundo
em uma grande Stepford, um lugar onde não é possível ser diferente de alguns
modelos pré-estabelecidos, pelo contrário, pois só haveria a possibilidade
de pertencer a uma linha de produção: limitada, homogênea, padronizada.
E até mesmo as “peças defeituosas” são absorvidas, disciplinadas e não
escapam desse controle. A grande luta do ser humano ainda seria pela
destruição desses chips e programações que nos tornam automatizados,
robôs sem liberdade de escolha. Um confronto pela possibilidade de sermos
plurais, sem sofrer tantas sanções ao fugirmos de um conjunto de normas
impiedosamente rígidas.

53
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

MATERNIDADE NO JOGO PERVERSO


DA VIDA24
CARLA FREITAS

A maternidade, muitas vezes, é cruel, perversa e um potente instrumento


de perpetuação do sexismo e violência contra a mulher. Isso é um fato. Não
vou discutir aqui se é ou não. É. É só traçar o itinerário e os desdobramentos
desse percurso.
Na verdade, os implicamentos desse discurso já se dão desde o debate
sobre o direito ao aborto. Em uma cultura que sequer consegue admitir a
descriminalização do aborto já dá pra imaginar o lugar que a mulher tem
em matéria de direito ao próprio corpo.
Mulheres cis (que não são trans*) desde crianças são disciplinadas com
a pedagogia da maternidade, em via dupla homens também vão construindo
suas noções de paternidade. Lembro-me da preocupação de uma amiga:
— Carla, deixe sua filha participar desse momento do irmão caçula!
Deixe ela dar a mamadeira, estimule que ela lhe ajude no banho, trocar
fraldas….Você e ela só ganham com isso, é assim que ela vai aprender a ser
mãe.
— QUEM DISSE QUE ELA VAI QUERER SER MÃE? (minhas
inquietações ecoam).
Bom, pelo menos numa coisa concordamos, maternidade não é algo
instintivo, é algo que se aprende a desejar a ser, ou não. Debaixo de muita
pedagogia, violência, insistência e moralidade.
Assim, de forma geral, fica muito difícil escapar da rota pré-determinada.
Ainda criança, minha filha ganhou um jogo de tabuleiro, que se chama
“jogo da vida”, muito simbólico. O jogo se dá no girar da roleta. A depender
do número, o carrinho vai seguindo cartesianamente sua vida…. Nesse
jogo você pode até ser um ‘sem profissão’, viverá com um baixo salário, mas
o jogo continua. Porém, nessa trilha existem duas paradas obrigatórias: o
casamento e os nascimentos dos filhos. Não adianta fugir. É regra. Não é

24 Publicado no dia 1º de outubro de 2014 no site www.políticasdocus.com

54
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

possível não casar. Não é possível não ter filho. Casar e ter filho são a base
para o restante do jogo. Se você é homem, usa bonequinho azul, se você é
mulher, usa bonequinho rosa. Lógico!
O jogo também determina se seu filho será menino ou menina e aí,
de acordo com isso, você encaixa o bonequinho rosa e azul. A partir daí
se conquista e se gasta muito dinheiro. E adivinha? Vence o jogo quem é
‘melhor sucedido’ e chega ao ponto de chegada, sendo uma pessoa rica.
Fiz uma intervenção, numa partida entre minha filha e amigos dela,
na minha casa, e subverti e casei com outra menina. Isso foi suficiente para
o alvoroço ficar armado. Foi tenso perceber o quão parecia sem sentido,
para aquelas crianças, aquilo seguir adiante. As crianças que disputavam a
partida tinham por volta de oito anos de idade e todas concordaram que,
se eu casasse com uma menina, o jogo não poderia continuar porque eu
não poderia ter um filho. Permaneci desobediente e casada com minha
bonequinha rosa e o desconforto foi notório.
O jogo não é uma inocente brincadeira. Pelo contrário, é mais um
aparelho pedagógico de domesticação da sexualidade, das categorias de
gênero enquanto fixas e de perpetuação de valores e normas heterossexuais
compulsórias que geram violência e exclusão. Mas me parece que a educação
enquanto instituição está bem pouco preocupada com isso, para não dizer
que ela silencia e corrobora com essas estratégias. O não posicionamento é
posicionar-se.
Seguindo esse roteiro, na vida para além do tabuleiro…
Estudamos e trabalhamos para ter uma família. Foi por isso que muita
gente me olhava, na adolescência, e dizia que se eu não ‘desse um jeito na
minha vida’ acabaria sem marido e sem filhos. Claro que sim! Faz sentido,
esse é jogo da vida! Essa é a família que será mantida a QUALQUER
CUSTO. Sabemos bem quem sai violentada nisso. Sabe-se quem precisa
entender que ser mulher é ceder, porque os homens são imaturos e nós
mulheres sagradas precisamos nos manter santificadas e sucumbir pelo
bem da família, já que essa é a estrutura familiar tida como fundante para
a formação de um sujeito emocionalmente saudável. Quem carrega isso é
a mulher.
Os desdobramentos disso eu vejo todos os dias. Enquanto mãe eu sinto
na pele, nos olhares inquisidores, na deslegitimação de minhas escolhas
contra-hegemônicas, no tomar as rédeas da minha vida. Muitas vezes sou
acusada de ser uma mãe relapsa. Outras tantas de doutrinar meus filhos

55
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

contra a pedagogia opressora. O que eu sei é que dando ‘tudo certo’ ou não,
os ‘erros’ dxs filhxs será mérito meu.
Enquanto professora, sinto no impacto das relações entre meninos e
meninas na sala de aula, entre o esforço para se manter as coisas nos seus
devidos lugares, enquanto ainda se é possível. Pois a infância ainda é o lugar
de controle e autorização para o exercício de normas perversas.
Vejo muitas mães se preocuparem em manter relações de amizade de
menina com menina, porque ‘assim fica mais fácil na adolescência’. Aí a
menina experimenta o corpo da coleguinha e é catequisada pela mesma
mãe a obedecer a heteronorma. É preciso reproduzir, é preciso ser mãe, é
preciso dar netos. Isso é enlouquecedor! Mas… Essa mãe certamente já
experimentou carregar o fardo de ter que acertar o destino da filha.
O resultado dessa infância saudável é responsabilidade da mãe. Ainda
que muitos (maus) comportamentos infantis sejam justificados pela
ausência paterna, a culpa muitas vezes recairá sobre a mãe, que depois de
não ter sido mulher suficiente para ‘segurar esse homem’, quase sempre não
terá sido macho suficiente para suprir a falta dele na vida dessa criança.
A culpa é uma forte aliada nesse processo. O mito da maternidade
enquanto sagrada se encarrega de enlouquecer corações maternos e
desestabilizar a autoestima de qualquer mulher. A culpa pela ausência,
culpa pelo excesso de presença, culpa pela falta de afetividade, culpa pelo
excesso, culpa, culpa, culpa, o equilíbrio parece ser algo inatingível para nós.
Até aqui eu descrevo situações corriqueiras de mulheres cis, mas
podemos sim fazer um recorte de classe e etnia, já que sabemos que as
demandas de mulheres negras e de classes tidas como menos favorecidas,
no que diz respeito à violência do discurso de maternidade, serão outras,
muito mais específicas. Muitas crianças dessas mães não terão acesso ao
jogo da vida, mas a viverão em seus dias e noites através de violência e até
ludicidade e resistência.
Mas as opressões da maternidade não só respigam nessas outras
mulheres. Sabemos que, por exemplo, esse é um discurso muito acionado,
inclusive por mulheres cis, para deslegitimar o gênero de mulheres trans.
Se não tem útero, não pode reproduzir, se não pode reproduzir, não pode
ser mulher. Ora, ora… logo mulheres ativistas pelo direito ao uso do corpo,
logo mulheres que precisam ir pra rua para dizer que não terão filhos porque
simplesmente não querem ter se articulam no intuito de fazer esforços para
utilizar justamente de argumentos que lhe desqualificam para se achar no

56
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

direito de se apropriar da categoria mulher e determinar que as mulheres


trans são ou não “de verdade”. No mínimo incoerente. Os homens trans,
então, têm o direito de reprodução deslegitimado completamente pelo
discurso hegemônico da maternidade. Homem engravidar, numa sociedade
em que a maternidade é mais um instrumento de garantia de poder
masculino, é um afronta. É como se esses homens estivessem negando todo
poder que “naturalmente” lhes foi dado.
Os desdobramentos não param por aqui, podemos falar de como a
paternidade, não por acaso, se torna uma vivência muitas vezes silenciada,
seja em suas conquistas e direitos como em seus privilégios ‘naturais’. Sobre
isso caberia escrever outro texto. O que eu quero com este texto não é me
colocar contra a maternidade, isso seria insano. O meu esforço é, mais uma
vez, me colocar contra a imposição de um modo de vida. É desconstruir
a tese de que só há felicidade na maternidade. Que uma mulher só será
completa se for mãe. Isso é mentira. Muitas pessoas, por escolha ou falta
de escolha, não são mães e resignificam isso, ocupam suas vidas com outras
prioridades, trabalham de outras formas suas afetividades e constroem suas
famílias em moldes outros. O que eu trago aqui é a forma como o machismo
se apropria da maternidade para promover violência, exclusão em corpos e
subjetividades que transitam por desejos outros que não o de procriar.
O importante é salientar mais uma forma de estruturação de gênero,
que é cruel, e denunciar que, no jogo da vida, as paradas podem parecer
obrigatórias, mas há várias linhas de fuga. Porém, o risco é constante e esse
texto também é sobre todos os jovens que vêm sendo mortos por serem
gays, lésbicas e bissexuais, é também sobre a morte diária de travestis e
pessoas trans* que são assassinadas por não seguir uma das normativas de
gênero básicas do jogo da vida.

57
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

ESTUPRO, O PRODUTO FINAL DE UM


CULTURA POTENTE
CARLA FREITAS

Embora o cenário político pós-golpe do Brasil esteja caótico para quem


pensa nos avanços sociais, talvez a reflexão sobre a cultura do estupro nunca
tenha sido tão popularizada. As novas mídias colaboram com as antigas
redes ativistas e de apoio às mulheres. As denúncias viralizam, as reações às
violências multiplicam-se e novas formas de enfrentamento acontecem. O
cenário é bastante ilustrativo.
Diante do caso do estupro coletivo de uma jovem no Rio de Janeiro,
tivemos todo tipo de reação e podemos colocar aqui, como marca desse
caso, a resistência e, principalmente, o enfrentamento. As redes sociais
foram tomadas, assim como as ruas, as escolas, os ambientes de trabalho. O
assunto, durante a última semana de maio de 2016, no Brasil, foi o estupro
de uma adolescente por parte de 33 homens. Com isso, entre as reações de
apoio à vítima, a revolta contra o crime e todas violências contra as mulheres,
as estratégias de pressão popular e as outras denúncias que vieram a partir
disso, pudemos presenciar uma série de outras ações e reações.
Nas mesmas redes sociais que acolherem e se indignaram, outrxs
sentiam-se à vontade para questionar a legitimidade da denúncia daquela
violência sexual, a veracidade dos fatos, a dignidade da vítima. Muitas pessoas
puseram em circulação questões tais quais: o sexo sem consentimento, a
condição da cultural das mulheres cis, o direito ao corpo e, principalmente,
a naturalização das violências.
Em uma busca breve em um site de pesquisa, após o caso do Rio de
Janeiro, aparecem notícias de diversos estupros coletivos. Em Salvador, uma
jovem foi sequestrada no ponto de ônibus e violentada por três homens. Em
Belo Horizonte, uma mulher de 38 anos também foi sequestrada e sofreu
diversas agressões, por quatro homens. Em Caxias do Sul, outra denúncia,
dessa vez com nove violentadores, em Caeté, cidade de Minas Gerais, outra
denúncia, envolvendo três agressores. Quatro casos noticiados de estupro
coletivo ao longo de um mês. Se ampliarmos o recorte de tempo da pesquisa

58
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

por notícias desse tipo de violência coletiva contra mulheres, o resultado é


ainda mais assustador.
A cultura do estupro é isso: a naturalização de práticas violentas ao
corpo da mulher. O estupro, de fato, é a tragédia consumada, mas o caminho
de construção dos processos pedagógicos de naturalização dessas violências
é que garantem o sucesso da tragédia. Nossa dificuldade de compreender
passa pelo fato de que temos dificuldade de aceitar que, de alguma forma,
possamos ter corroborado para isso. E, então, o caminho mais fácil parece
ser a patologização do crime de estupro. Tomar o estuprador como um
maníaco, desequilibrado, atribuir-lhe uma face monstruosa parece ser uma
via de escape em um contexto em que é pavoroso aceitar que o machismo
mora ao lado ou mesmo em nós. Quando, na verdade, o estupro é o produto
final de uma sociedade que levou ao pé da letra o que a cultura nos ensina:
esse corpo é violável a seu bel prazer.
O mais chocante é que, na contramão da urgência de pormos a cultura
do estupro no centro do debate político, temos em vigência um recém
aprovado Plano Estadual de Educação na Bahia, e em outros estados,
no qual foram excluídas as questões de gênero e sexualidade, apesar das
manifestações contrárias da sociedade civil, de ativistas e da academia.
Além da bancada evangélica do Congresso Nacional, temos nomeada,
como atual titular da Secretaria de Políticas para as Mulheres, uma mulher
(Fátima Pelaes) declaradamente contrária a descriminalização do aborto, e
um Projeto de Lei, a ser votado, que relativiza o aborto em caso de estupro.
Quando sabemos que mesmo antes do aborto legal a prática de interrupção
da gravidez já era comum e já continha em si um forte recorte de classe/
raça no qual: as ricas/brancas abortam e as negras/pobres morrem.
Por conta do caso da jovem no Rio de Janeiro, o Senado votou e aprovou,
em caráter de urgência, matéria que aumenta para até 30 anos a pena de
casos de estupros e divulgação, sem autorização, de imagens das práticas
sexuais. A quem interessa isso em um país que possui uma das maiores
populações carcerárias do mundo? A quem interessa dificultar o acesso da
mulher ao aborto nos casos previstos em lei? A quem interessa a proposta
de castração química dos estupradores como se esses mesmos fossem
feras sem controle de seus atos? Estamos, então, mais uma vez, apostando
somente nos marcos legais para tratar da c-u-l-t-u-r-a do estupro?
Se não tivermos garantido um forte trabalho conjunto de
desnaturalização das violências de gênero, continuaremos achando bonito
menininho roubar o beijo da menininha, continuaremos achando engraçado

59
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

piadas machistas. Continuaremos questionando as legitimidades das


narrativas de violência, continuaremos colocando em xeque a dignidade da
mulher violentada. Continuaremos nos chocando com estupros coletivos
como se fossem algo fora de nós, como se não colaborássemos em nada
com isso. Continuaremos, por exemplo, ignorando os dados históricos
de violência do corpo da mulher negra, escandalosamente estuprada por
seus patrões. Continuaremos ignorando e, inclusive, desconsiderando, os
estupros coletivos sofridos por mulheres trans e travestis nas penitenciárias
e que, em geral, já começam desde dentro de suas casas. Continuaremos
achando que há corpos que valem e corpos que valem menos.
A problematização da cultura do estupro precisa estar na sala de jantar.

60
CORPOS,
HOMOSSEXUALIDADES E
HETERONORMATIVIDADES
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

O ÂNUS É UM ÓRGÃO SEXUAL?25


LEANDRO COLLING

Vou direto à resposta da pergunta do título: sim, o ânus pode ser


considerado um órgão sexual. Na verdade, qualquer outra parte do seu
corpo pode ser considerada como um órgão sexual, se assim você desejar e
o sentir. Primeiro vou falar do ânus especificamente e depois ampliarei o
debate para pensar o corpo como um todo, ok?
Sobre o ânus ou, para usar a palavra mais usada pelas pessoas, o cu:
alguns profissionais da saúde e da sexologia até concordam que o ânus pode
ser considerado uma área erógena, que pode gerar prazer ao ser tocado.
Alguns recorrem inclusive a Freud, que disse que um dos nossos primeiros
prazeres na vida se dá através da chamada “fase anal”. Pois eu quero ir
além disso, sem me filiar aos freudianos. Quero defender que o cu pode ser
considerado um órgão sexual, tal como o pênis e a vagina o são.
Profissionais da saúde considerados bem progressistas dizem não ter
nada contra a prática sexual anal, mas enfatizam que o ânus não teria sido
criado para essa finalidade e que, por isso, não pode ser qualificado como um
órgão sexual, mas como um órgão do aparelho digestivo do corpo humano.
Por mais simpática e progressista que essa leitura possa ser ela esconde
uma norma sobre a sexualidade, ou melhor, um conjunto de normas criadas
pelo discurso médico em consonância com outras instituições sociais que
historicamente desejam controlar e regulamentar a sexualidade das pessoas.
Por que? A boca também faz parte do aparelho digestivo e nem por isso é
desqualificada no sentido de que pode ser utilizada na prática sexual.
Os profissionais da saúde, em sua maioria, dizem que o ânus é um
local cheio de impurezas, em suma, é um local sujo e isso pode disseminar
a proliferação de muitas doenças. No entanto, as pessoas que praticam sexo
anal (gays ou não), já faz muito tempo, descobriram uma forma de deixar
o ânus bem limpo, através do que os gays chamam de chuca (ou enema),
uma espécie de lavagem que consiste na introdução de água no canal do
ânus para ser despejada logo em seguida. A vagina, o pênis e boca, caso

25 Publicado em 7 de novembro de 2012.

63
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

não sejam bem limpos, também serão órgãos bem sujos e proliferadores
de doenças. Então, por que considerar que apenas um órgão é sujo? O que
opera por trás desse discurso?
Certamente, trata-se de uma leitura que é influenciada pela norma
hegemônica que estamos sempre problematizando em nossos textos.
Michel Foucault estudou muito bem isso e devemos muitas dessas reflexões
a ele. Em suma, a norma tenta determinar tudo sobre a nossa sexualidade.
Obriga que todos sejamos heterossexuais e de que façamos sexo apenas
de uma determinada maneira e também especifica muito detalhadamente
quais partes dos nossos corpos são erógenas e que podem ser consideradas
como órgãos sexuais.
Outros poderão alegar que o sexo anal deve ser combatido porque essa
prática seria anti-natural, uma vez que não gera a reprodução da espécie
humana. Mais um argumento que não fica em pé porque, se concordarmos
com ele, toda e qualquer prática sexual só poderia ser feita se tivesse como
objetivo a reprodução.
Mas, como eu disse no início, não quero tratar apenas do ânus. Uso o cu
apenas como um exemplo bem provocativo e polêmico para ilustrar como
nossos corpos sofrem as influências de saberes que regulam, historicamente,
os nossos corpos, nossas sexualidades e nossos gêneros. Eu poderia falar
de outras partes do corpo que são usadas, por algumas pessoas, como
legítimos órgãos sexuais. Entre elas, certamente, estão as mãos. Para muitas
lésbicas, por exemplo, as mãos são verdadeiros órgãos sexuais, elas podem
se transformar em instrumentos fundamentais.
Para os/as praticantes de fist-fucking ocorre o mesmo. Para quem não
sabe, praticantes de fist-fucking introduzem as mãos e até os punhos no
ânus de parceiros/as sexuais. O pênis e até mesmo a ereção, em geral, não
possuem importância alguma nessas relações sexuais. Como nos alertam
alguns pesquisadores, talvez essa seja única prática sexual que foi inventada
no século 20. Vejam como nossa criatividade em relação às práticas sexuais
ficou bloqueada a ponto de que em 100 anos apenas uma nova forma de
praticar sexo foi criada. Enquanto isso, quase sempre fazemos sexo mais ou
menos da mesma forma, muitas vezes seguindo um roteiro que obedece
inclusive os padrões de uma indústria do entretenimento, notadamente a
indústria pornô hegemônica.
Para finalizar, quero lembrar de Deleuze e Guattari. Pelo menos desde
o livro O anti-édipo, de 1972, eles nos permitem entender o corpo inteiro
como um corpo sexual. Ou seja, nós não transamos apenas com pênis, vaginas

64
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

ou ânus, mas transamos com nossos corpos e gêneros. E mais: transamos


sempre em um contexto, com algum cenário, transamos, em suma, em um
ambiente. Aliás, às vezes pensamos em detalhes sobre qual será o ambiente
da nossa transa. Se isso é verdade, por que ainda vamos considerar como
sexuais apenas determinados centímetros de nossos corpos? Não estou
sugerindo que todas as pessoas devam usar o ânus como órgão sexual,
da mesma forma como muitas pessoas não consideram os seus pênis ou
vaginas como aparelhos fundamentais para a prática sexual e obtenção de
prazer. Apenas estou evidenciando mais uma questão relativa à diversidade
sexual que existe por aí, queiram algumas pessoas e/ou instituições ou não.
Devo boa parte das reflexões realizadas acima a Javier Sáez e Sejo
Carrascosa, autores do livro Por el culo – políticas anales, da editora Egales.
Nessa obra, eles discutem esses e vários outros temas. Termino com apenas
um pequeno trecho da introdução do livro, na qual eles dizem que a
proposta do texto é

ver o que o cu põe em jogo. Ver por que o sexo anal


provoca tanto desprezo, tanto medo, tanta fascinação,
tanta hipocrisia, tanto desejo, tanto ódio. E, sobretudo,
revelar que essa vigilância de nossos traseiros não é
uniforme: depende se o cu penetrado é branco ou negro,
se é de uma mulher ou de um homem ou de um/a trans,
se nesse ato se é ativo ou passivo, se é um cu penetrado
por um vibrador, um pênis ou um punho, se o sujeito
penetrado se sente orgulhoso ou envergonhado, se é
penetrado com camisinha ou não, se é um cu rico ou
pobre, se é católico ou muçulmano. São nessas variáveis
que veremos o desdobramento da polícia do cu, e
também é aí onde se articula a política do cu; é nessa
rede onde o poder se exerce, e onde se constroem o ódio,
o machismo, a homofobia e o racismo (2011, p. 13).

Agora compare a possibilidade de pensarmos em políticas anais e o


grau de caretice e conservadorismo que estamos vivenciando no Brasil neste
momento em matéria de respeito à diversidade sexual e de gênero. Talvez
assim outros textos que já publicamos sejam melhor compreendidos. Ou
não.

65
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

Beijos, no lugar que você desejar… E não adianta me mandar tomar


naquele lugar… Não vou interpretar como um insulto.

66
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

POR QUE O BRASILEIRO GOSTA DE


BUNDA E CONTINUA HOMOFÓBICO E
FALOCÊNTRICO?26
LEANDRO COLLING

Vou pedir licença para fazer um preâmbulo antes de entrar diretamente


no objetivo do meu texto, que é o de responder a pergunta do título.
Também sugiro que, para ter mais facilidade de seguir o meu raciocínio, se
tiverem um tempinho, leiam outros textos, a exemplo de O ânus é um órgão
sexual? Nele escrevi sobre a vigilância que impera sobre os nossos traseiros
e define o que poderíamos ou não fazer com eles. A partir disso, também
fiz rápidas reflexões sobre quais partes dos nossos corpos são dignas de
ser utilizadas como órgãos sexuais. Apontei também que, paradoxalmente,
ainda que essas normas existam, várias pessoas elegem outras partes dos
seus corpos como áreas privilegiadas para alcançar o gozo. Elaborei boa
parte das minhas reflexões a partir do livro Por el culo – políticas anales, de
Javier Sáez e Sejo Carrascosa. Mas também sofri influências de outro livro
bem mais antigo, de 1972, republicado em espanhol em 2009, chamado El
deseo homosexual, do escritor e ativista francês Guy Hocquenghem, falecido
em 1988.
Guy escreveu a sua obra muito influenciado pelo livro O anti-édipo,
de Gilles Deleuze e Félix Guattari, e ficou muito conhecido com a frase
“meu cu é revolucionário”. O bordão chegou a fazer parte de discursos de
famosos militantes gays brasileiros na década de 70 e 80, quando eles ainda
não eram tão caretas e comportadinhos/disciplinados como hoje. Ao final
da nova edição do livro de Guy, encontra-se um texto de Paul B. Preciado,
intitulado Terror anal: apuntes sobre los primeiros días de la revolución sexual.
Preciado defende que Guy foi um dos precursores do que hoje chamamos
de estudos queer, um conjunto variado de trabalhos que influenciam nosso
grupo de pesquisa na UFBA e os textos publicados neste livro. Um dia,
quem sabe, farei o mesmo esforço para tratar de precursores dos estudos
queer aqui no Brasil. Certamente Nestor Perlongher, com o seu O negócio

26 Publicado em 25 de janeiro de 2013.

67
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

do michê, deve figurar entre essas obras.


Ao final do seu texto, publicado na nova edição do livro de Guy, e no
seu livro, chamado Testo Yonqui, Preciado trata sobre o potencial político
do ânus. Ele desenvolve vários argumentos, entre eles destaco: o quanto o
sexo anal provoca a desterritorialização do ato sexual, que esses atos podem
inclusive prescindir do pênis (o que ajuda a detonar o falocentrismo),
trabalha com o prazer e não com a reprodução (argumento preferido da
lógica conservadora), entre outras questões. Mas, ao falar de outras “virtudes
revolucionárias anais”, escreve que “o ânus não tem sexo, nem gênero, como
a mão, escapa da retórica da diferença sexual”. Aí reside o seu equívoco, que
nos ajuda a entender porque o brasileiro gosta tanto de bunda e, ao mesmo
tempo, continua tão homofóbico e misógino.
Nesse momento, Preciado parece apostar excessivamente nas políticas
anais, como se elas pudessem resolver os nossos problemas em relação à
falta de respeito à diversidade sexual e de gênero. O cu, que todos possuem,
teria a capacidade de implodir a diferença sexual, que gera a hierarquia
entre as práticas sexuais, as orientações sexuais e os gêneros. Em especial
quando falamos do Brasil, o diagnóstico de Preciado está equivocado. Mas
não só em relação ao nosso país. Os espanhóis Sáez e Carrascosa, no livro
já citado, também perceberam esse equívoco de Preciado e, ao final da sua
obra, dizem:

Ao longo desse livro temos comentado em várias


ocasiões que o cu não tem gênero, e que pode ser uma
fonte de prazer sexual que não está marcada por ele.
Mas talvez isso não seja bem assim. Na realidade, tal
como se exerce a política anal hoje em dia, dentro de
um regime heterocentrado e machista, o cu sim tem
gênero: se é penetrável é feminino; se é impenetrável é
masculino. Para este dispositivo, um homem penetrador
é heterossexual ainda que penetre a outros homens.
(2011, p. 172)

Penso que as políticas anais podem ser muito úteis politicamente, como
eu mesmo apontei em meus textos anteriores, mas elas também apresentam
os seus limites, como sugerem Sáez e Carrascosa. E quais são eles? Vou
tentar responder com o apontamento de duas evidências. No Brasil, talvez

68
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

com alguma intensidade maior que outros lugares, o cu tem gênero sim.
Aquela pessoa que é tida como a passiva no ato sexual anal é vista como
a “mulherzinha” da relação. Se a pessoa passiva for do sexo masculino, ela
automaticamente é considerada como homossexual, gay, viado ou qualquer
outra expressão que a defina como alguém que traiu a sua masculinidade.
Já o homem, considerado ativo, mesmo praticando o ato sexual com
outro homem, desde que não permita ser penetrado, muitas vezes não é
considerado como uma pessoa homossexual e nem está automaticamente
traindo a sua masculinidade. Isso já está fartamente documentado em várias
etnografias muito conhecidas realizadas no Brasil (além do Perlongher, ler,
por exemplo, o livro Para inglês ver, de Peter Fry).
Aqui no Brasil o homem que penetra outro homem não tem
necessariamente a sua sexualidade heterossexual colocada em questão. E
eu não estou reivindicando que tenhamos que considerar esses homens
como homossexuais, apenas aponto que, ao “comer o cu” de um homem, ele
continua seguindo o script esperado de um cara considerado socialmente
como “macho”. O mesmo não ocorre com o homem penetrado, pois ele é
associado automaticamente e pejorativamente com a feminilidade, traiu
muito masculinidade hegemônica dos considerados “machos de verdade”.
Talvez o que diferencie mais os brasileiros dos homens de outros países
seja o fato (real e/ou apregoado) de que por aqui a maioria deles gosta de
bunda. Mas, paradoxalmente, isso também não torna os brasileiros menos
homofóbicos, misóginos, falocêntricos e heteronormativos. Sim, eu sei
que bunda e cu são coisas diferentes, mas também não são indissociáveis.
Quando um homem admira a bunda de uma mulher (e nas ruas de muitas
cidades é sinal de masculinidade o homem parar, virar as costas, olhar para
a bunda das mulheres e fazer alguma exclamação do tipo “gossstoooosa!!!”)
obviamente não é só a bunda que o homem está admirando. Ele também
está pensando, pelo menos em termos gerais, no que poderia vir a fazer com
aquela área do corpo da mulher.
Quer dizer, é o homem quem continua determinando qual é o objeto de
seu desejo, mesmo que seja para uma área do corpo que não é considerada
como um órgão sexual pelo discurso médico e pelo próprio senso comum.
Obviamente, algumas mulheres também admiram e até penetram os cus
dos seus parceiros, mas essas práticas são bem menos recorrentes.
Ou seja, no Brasil as bundas e cus têm gênero. Por aqui, o cu não “escapa
da retórica da diferença sexual”, como pensa Preciado. Pelo contrário, o cu
foi apropriado pela retórica da diferença sexual. Ter o ânus aberto, ou não

69
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

castrado, não significa revolucionar a sexualidade a ponto de exterminar as


normas sexuais que tantos preconceitos produzem. Eis alguns dos limites
das políticas anais. E esses limites, é bom lembrar, foram novamente criados
pela norma hegemônica, que tem uma incrível capacidade de ressignificar
as práticas que dela advém para se manter no topo da hierarquia.
Agradeço ao meu querido Gilmaro Nogueira pelas colaborações neste
texto.

70
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

CHUCA: SUBVERSIVA OU PRODUTO


DE MAIS UMA NORMA SOBRE O SEXO
ANAL?27
FÁBIO FERNANDES

Nós falamos muito de sexo. As músicas, as mídias, as artes, as ciências,


a sociedade como um todo fala verborragicamente sobre sexo, sobre
transar, foder, gozar. Consumimos muito pornô, cada vez mais. Mas o que
esse volume imenso de discursos sobre práticas sexuais revela sobre nós
mesmos? Qual a provocação que grita nesses discursos? Quais corpos e
práticas estão/são incluídas e legitimadas, em detrimento de outras que,
sob uma leitura e referência do que é normal, saudável e “gostoso”, são
consideradas anormais, imorais, sujas, asquerosas e abjetas?
Presumo que esse incessante falar, falar e falar sobre sexo é também
uma estratégia de estabelecimento do que é normal, humano e do que é
errado, anormal e inumano. Refletindo sobre umas das partes do corpo
injuriadas, atacadas e insultadas do corpo, o cu, principalmente quando
o mesmo é vivenciado como um pulsante orgão sexual, o mesmo pode
pôr em jogo muitas questões relativas às raças/etnias, gêneros, sexualidades,
classes e até mesmo religiões. Um cu branco se difere de um cu negro, assim
como um cu rico ou pobre, cisgênero ou trans, ateu ou evangélico, entre
outras variantes. Há aí uma vigilância acentuada a depender de e em qual
corpo se encontra o cu.
E é mais uma vez pensando a respeito do sexo anal, do cu e do corpo
que o carrega, que me impulsiono na escrita deste texto. Estava com um
grupo de amigos comentando sobre a chuca e surgiu ali uma provocação
sobre essa prática de limpeza e higienização de ânus e retos. Pensei e lancei
a provocação do quanto esse referido discurso de limpeza e higienização
nos incita a exigir uma certa “pureza” dos parceiros e parceiras, ou até
mesmo um certo manual rígido sobre a prática sexual.
A chuca (ou enema) funciona como uma lavagem, na qual introduz-se

27 Publicado em 19 de agosto de 2013.

71
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

água no canal do ânus e depois ela é expelida em uma operação repetida até
que tudo esteja bem limpo. Algumas pessoas utilizam mangueiras, outras
garrafinhas de água e já há até produtos tecnológicos específicos para a
realização da chuca (não necessariamente o enema das farmácias, utilizado
para lavagens em contextos médicos, mas sim equipamentos pensados para
a prática sexual anal).
Ouso dizer que o ritual que envolve a chuca está inserido em uma
cultura erótica, um conhecimento até transmitido de geração a geração. As
gueis mais experientes ensinam às mais novas como se deve fazer a chuca
e o quanto ela é indispensável para realizar o sexo anal. Há vários textos
na internet tratando dessa prática. Muitas mulheres também consultam as
gueis ou outra pessoa capacitada para aprender sobre a chuca e fazer bonito
durante o sexo anal.
Já ouvi de amigos a seguinte frase: “não vou nem à padaria sem estar
chucada, vai que algo aconteça no caminho? Precisamos estar sempre
preparadas!”. Mas aí eu lanço minha provocação: até que ponto a prática
da chuca serve apenas para garantir uma certa comodidade durante o ato
sexual e, para além disso, também não incide sobre os corpos numa espécie
de prisão, limitação e esforço para atender a um modelo higienizante de
desejo e prazer? (um modelo único, aliás).
Minha intenção aqui não é demonizar ou estigmatizar uma prática,
não é gritar “LIBERTE-SE DA CHUCA!”, mas cogitar sobre imposições,
normas e noções rígidas de higienização/pureza que podem estar
atreladas à chuca. A consequência-mor do descumprimento dela estaria
na possibilidade de passar cheque, ou seja, que fezes possam “sujar” o ato
sexual. Aliás, porque somente o cu é considerado o lugar da sujeira? Outras
partes do corpo, se não forem limpas, também podem transmitir doenças
e estarão… sujas. Penso que atravessa por aí um discurso opressor sobre o
cu, produzindo nele o lugar por excelência da abjeção, nojento e condenado
por discursos médicos sanitaristas, religiosos e moralistas.
O medo de passar cheque inclui muitas vezes uma rígida (e insana)
vigilância até sobre a dieta alimentar: “se eu for dar hoje, eu não posso me
acabar de comer, tem que ser algo leve e que não me deixe cheio, pesado”.
Alimentos específicos e laxantes não são incomuns nesse quase esquema
tático de guerra. E se, por acaso, independente do motivo, não ocorra o ato
sexual, fica em alguns a terrível sensação de chuca perdida (“ah, bicha! E
quem nunca perdeu uma chuca?”).
Perpassaria pela chuca a absorção desses mesmos discursos que

72
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

confinam corpos e práticas ao local da impossibilidade e de uma não


humanidade? Pode-se também pensar a chuca como uma possibilidade
de gozo numa norma opressora? Ou então em uma relação de poder que
fortalece opressões e produzem corpos “sujos” e “limpos”, hierarquizando-
os? São muitas as questões que me inquietam.
O cu definitivamente não é um lugar neutro, tampouco não o é o que
dele e nele se faz. Eu lanço essas questões para desestabilizar noções rígidas
de prazer, desejo e dos caminhos para se chegar até lá e por isso questiono:
a chuca é indispensável ao prazer anal? Seria mais um instrumento de
vigilância?
Podemos, portanto, pensar no sexo anal como uma forma de subversão
que propicia a desterritorialização do sexo pênis/vagina, ao potencializar
o cu como zona erógena? Muitos afirmam não se importar se o cu está
chucado ou não, mas reforçam a ideia de que o limpo é sempre mais
prazeroso. Até porque o cu não é apenas penetrado pelo pênis, há quem
goste (e muito!) de por a língua, os lábios e o rosto ali (no chamado beijo
grego) e por isso existe toda uma geografia da sexualidade apontando quais
caminhos são os corretos para se alcançar o prazer.
Reforço também que essa demasiada limpeza da região anal é uma
tentativa de higienizar o cu de modo que ele deixe de ser o cu e não remeta
à ideia do senso comum sobre o mesmo, isto é, apenas um excretor de fezes.
A chuca faria parte de técnicas – e aí também incluo a depilação,
esfoliação, a possibilidade de implantação de próteses e a imensa quantidade
de exercícios físicos para aumentar a região das nádegas – que associariam o
corpo ao que é entendido como “corpo/órgão sexual feminino”? O cu ideal
para o sexo anal seria então aquele mais próximo desse modelo de bunda
grande, lisa, cheirosa e limpa?
Afinal, um cu peludo seria impensável para muitos (daí surgem máximas
como “quer o cu e ainda quer raspado?”): há inúmeros recursos tecnológicos
e especialistas na tal da “depilação íntima”, pois aquela bunda, aquele cu
que não está lisinho seria também… sujo. Ah, mas bunda mole também
nem pensar, ela tem que estar durinha, deve ter volume, ser preenchida de
uma aBUNDÂncia visível, palpável. São muitas as limpezas e normas que
incidem sobre o cu e a bunda, para além da chuca.
Eu falo aqui de cus que não querem ser fechados para a impossibilidade
de prazeres e vivências; enuncio práticas que suplantam e derrubam uma
possível castração anal e questionam pedagogias corpóreas e sexuais que

73
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

produzem corpos… e cus. Reitero mais uma vez a provocação: há um gozo


e uma potência na chuca ou ela por si própria é a incidência de uma norma?
Não pretendo esboçar respostas definitivas a essa questão, apenas
apontar para a potencialização de vias de prazer que não estejam atreladas
necessariamente aos manuais do “sexo saudável e ideal”. Os cus chucados
podem sim representar a potência do prazer e gozo anal, mas não devem
ser o parâmetro e O modelo único para alcançá-los. Esse (quase)manifesto
escrito por mim é, portanto, por corpos e cus livres, empoderados e
possíveis, para além de técnicas e discursos limitantes e opressivos. Mas
também é pelo sexo anal, pelos prazeres, pelos gozos, pela proliferação de
possibilidades. Apenas. Experimente. Permita-se.
*Com contribuições e reflexões dos meus amigos especialistas em cus e
chucas, Gilmaro Nogueira e Julio César Sanches.

74
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

“NÃO GOSTO DE VIADO, EU GOSTO


É DE MULEQUE E MARGINAL”, OU
SOBRE A TRAJETÓRIA DE GAYS QUE
NÃO SENTEM ATRAÇÃO POR GAYS28
GILMARO NOGUEIRA

Essa foi a frase que chamou minha atenção na virada de ano 2016/17.
Foi dita por um homem gay de uns 25 anos, mas endossada por um grupo
de uns 5 ou 6, de mais idade. Pude compreender melhor as trajetórias
desses homens e como se relacionam com outros. Homens que desde cedo
sofreram as agruras da homofobia. Segundo a mãe de um deles, seu esposo
disse, ao constatar que o filho, ainda criança, era afeminado: “ou ele ou eu!”.
A mãe escolheu o filho e, desde então, tem sido muito próxima dele. O fato,
no entanto, revela uma trajetória de violências, muitas das quais, pelo que
pude perceber, os sujeitos sequer têm noção.
Nessas narrativas há muitas histórias de desilusões amorosas, algumas
relembradas com risos ou piadas, isto é, uma forma de dar um novo sentido
a tais sofrimentos. Histórias que evidenciam que ser gay, há tempos
atrás, era muito mais difícil, muito embora a predileção por homens
heterossexualizados não seja uma exclusividade de homens mais maduros.
Essas vivências dividem as pessoas em: homens (heterossexualizados);
viados (os gays) as sapatonas (lésbicas) e as mulheres (heterossexuais).
Nessa concepção, os homens são disputados por mulheres e viados, talvez
um dos motivos pelos quais há sempre falas misóginas e lesbofóbicas. Os
homens heterossexuais formam o grupo mais valorizado.
Esses homens não se colocam como vítimas, ao contrário, há um
certo gozo nas relações que estabelecem com esses ditos “muleques”29, que
relevam um outro marcador, a predileção por garotos mais jovens e, de
certo modo, estereotipados como marginais30, pois são jovens que, gostando

28 Publicado em 7 de janeiro de 2017


29 Escrevi muleques, em vez de moleques, para se aproximar da pronúncia utilizada pelos
gays.
30 Uso o termo marginal, da mesma forma como foi dito pelo sujeito, mas compreendo que
é um termo essencialista, que supõe existir um sujeito marginal, desconsiderando questões sociais e

75
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

ou não de homens, mantêm relações em troca de dinheiro ou algum tipo


de benefício, por alguns chamado de “agrado”. Se esse jovem não pede nada
em troca, então não é um “autêntico muleque”.
Um desse sujeitos disse: “o muleque (com quem mantém uma relação)
só falta me levar a alma, mas bicha tem que pagar mesmo, tem que sustentar
– viado nasceu para sofrer!”. Essa fala denota não apenas o lugar que a bicha
ocupa na relação afetiva, mas um certo pensamento cristalizado de que gay
precisa necessariamente pagar por afeto, seja com dinheiro ou sofrimento.
Importante dizer que não era uma fala vitimista, pois havia um certo poder
em pagar, conseguir, ter, sustentar etc.
Tais frases e atos relevam que a primeira grande violência que esses
sujeitos sofreram foi, e ainda é, a heteronormatividade. A exigência social
de que ser homem signifique ser viril ou até mesmo de que ter um pênis
signifique ser homem. Há de fato uma crença na naturalidade do ser
homem ou mulher e de que ser homem significa ser macho.
A violência da heteronormatividade é tão rígida que muitos gays, que
falam das normas de gênero e reclamam dos padrões de masculinidade,
não aceitam gays afeminados como parceiros. Sob a justificava de estar
produzindo uma subverção ao se relacionar com homens heterossexuais,
excluem os gays afeminados de relações afetivas e sexuais. Ou gays
afeminados que também não desejam outros afeminados. Por se relacionar
com outros gays, um amigo é chamado por esses homens de lésbica, ou seja,
na visão deles, são duas mulheres se pegando! Até parece que ser lésbica é
um problema.
Mas do que isso: quando esses homens rejeitam os afeminados, estão
rejeitando a si mesmos, de certo modo, ainda que inconscientes, colocando-
se no mesmo lugar que colocam “as gays”. As normas não apenas ditam
quem deve ser desejado, mas também quem deve ser rejeitado ou até mesmo
auto-rejeitado. São as violências simbólicas de nossa cultura que impelem
muitos meninos a odiar o que é socialmente considerado feminino, inclusive
odiar a si mesmo.
Por essa e outras que nossos desejos jamais podem ser considerados
como naturais, mas construídos a partir de posições hierárquicas. Não
adianta estudarmos, problematizarmos a heteronormatividade, se não
questionarmos não apenas o que desejamos, mas principalmente o
que repelimos, como se isso não tivesse nenhuma relação com nossas
subjetividades.

históricas e os usos ideológicos do termo.

76
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

“EU, DAR PRA UMA BICHA MOLE?


JAMAIS!” – UMA CRÔNICA SOBRE
PERFORMATIVIDADE, GÊNEROS E
DESEJOS31
FÁBIO FERNANDES

Estava conversando com meu amigo Carlos Henrique sobre homens,


sexo e desejo (assuntos sempre recorrentes entre nós) e entramos no tópico
que intitula este texto. A questão levantada foi: a bicha afeminada também
“come”, ou seja, desempenha o papel de ativo ou será necessariamente
passiva na relação sexual?
A aparente simplicidade e ironia da pergunta não exprime, à primeira
vista, o que realmente nos incomodava: os muitos discursos que tentam
determinar, através da performatividade de gênero, os desejos e as posições
sexuais entre homossexuais, particularmente cisgêneros. Se há um tema
que podemos seguramente tomar como chave na homocultura brasileira é
esse incessante falar sobre sexo, parceiros e o jogo de “certo ou errado” sobre
se tal sujeito é ativo, passivo ou versátil na relação sexual.
Esse sexo guei guardaria, portanto, um mistério, um quase enigma que
cria expectativas (mas também por vezes frustra) e cerca o corpo masculino
desejado. Afinal, aquele cara curte o quê? Quantas e quantas vezes já não nos
fizemos essa pergunta ou então, a partir de um suposto sistema detector, um
“radar”, definimos o nível de atividade ou passividade dos sujeitos… nada
escapa a essa análise cuja medida é a masculinidade, atrelada a elementos
como jeito de andar, falar, vestir, lugares que frequenta, aparência, grupos
de amigos que possui e até o estilo musical apreciado pode ser parâmetro.
Isso sem contar o elemento racista que muitas vezes delibera que negro tem
que ser ativo.
A performatividade que é esperada de um corpo com pênis é fruto
de um modelo normativo de masculinidade: o homem, seja guei ou não,
precisa ser másculo, viril e se comportar como tal dentro do referido

31 Publicado em 15 de janeiro de 2014.

77
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

sistema da heteronormatividade. As gueis afetadas/fechativas, por não


se enquadrarem nessa caixa, sofrem as mais diversas formas de violência,
lembrando inclusive que não existe para essas pessoas alguma possibilidade
de armário: sua performatividade destoante das normas de gênero já as
posiciona no local da estranheza e da repulsa social (mas também desperta
os desejos de muitos e muitas…).
No referido senso comum do discurso da homocultura brasileira, essa
bicha afeminada é quase sempre automaticamente interpretada como
o provável passivo na relação sexual. Aliás, passivo não, passiva, pois
“feminina”! – é assim que muitas gueis se referem a eles, e o termo passiva
tem sindo utilizado para injuriar, ofender, como no exemplo: “Ah, aquela
passiva desgraçada!”.
Percebe-se nesse discurso o tempero do machismo que incide sobre
um corpo que é oprimido por supostamente possuir uma performatividade
mais próxima do que é culturalmente compreendido como feminino. Ele
também está rompendo uma expectativa em relação ao gênero que lhe foi
designado no nascimento (“é homem, comporte-se como homem!”). “Mas
as bichas afeminadas não são homens”, é o que dizem por aí! Já ouvi muito
o termo “homem” como régua pra medir masculinidade entre os sujeitos
gueis: “hummm, ele tem jeito de homem”, “bem homem ele, né?”, “oxe, ali
é mais mulher do que eu e você juntas”.
Ainda sim, muitos podem me questionar: “ah, se você for averiguar, fizer
um censo, confirmará que a maioria das bichas afeminadas são passivas”. O
que, portanto, posicionaria os gueis másculos e viris como necessariamente
ativos… apesar de haver uma maior compreensão/aceitação de que esses
últimos possam também ser passivos (ou outras tantas formas de expressão
de desejos e práticas sexuais). Mas, então, eu questiono: por que uma bicha
afeminada, ao desempenhar o papel de ativo, ou demonstrar desejo para tal,
causa estranhamento e muitas vezes repulsa? E se supostamente concluímos
que a maioria dos gueis afetados/afeminados são mesmo prioritariamente
passivos, estaríamos comprovando que há nesses corpos algo de natural/
biológico determinando a “passividade”?
As próprias normas rígidas que regulam os gêneros e os corpos impelem,
coercitivamente, os sujeitos a emulálas: essas mesmas bichas também
realizam tal processo de reiteração… mas é nessa repetição constante
que também se criam brechas para que as leis que alinham identidade de
gênero e performatividade (bichas afeminadas) e desejo e prática sexual
(passividade) sejam deslocados e subvertidos.

78
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

Fico pensando no quanto tais normas, ao se “fixarem” compulsoriamente


em alguns corpos, podem embotar os desejos e impedir que os gueis
experenciem sua vida sexual com mais amplitude, possibilidade, versatilidade.
E por que há tantos especialistas em vigiar, detectar e determinar algo tão
íntimo como o desejo do outro? Parece haver uma verdadeira “polícia” do
sexo produzindo os corpos e querendo direcionar os desejos alheios para
certos modelinhos e cartilhas.
Que tal experimentar o seu corpo de uma forma mais criativa, menos
regulada e mais sensível aos desejos? Por outro lado, por que regulamos
tanto o desejo e as práticas sexuais dos outros, como se aquela diferença
fosse impossível e por isso deva ser estranhada? Será mesmo que há nos
corpos uma fórmula matemática rígida e imutável definindo o tipo de
prazer que é possível, ou de fato podemos experimentar mais, descobrir
e nos redescobrir ao longo da vida? As possibilidades de se aventurar em
novas possibilidades, por mais cerceadas que sejam, rompem os diques
dos desejos, mas ao mesmo tempo comer aquele feijão com arroz seguro,
tranquilo e com o mesmo sabor deve ser um modo possível e respeitado em
um mundo que privilegie o respeito às escolhas e às identidades. Tudo o
que não precisamos são mais manuais de como sentir, experimentar e guiar
nossos desejos, prazeres, corpos e gozos.

79
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

NÃO SOU HOMOSSEXUAL, SOU


BICHA!32
GILMARO NOGUEIRA

Já ocorreu mais de uma vez alguém me censurar por eu usar a palavra


bicha. Cada vez que quero diferenciar os “gueis” femininos dos masculinos
recorro ao termo. Às vezes, antes de citar a palavra bicha, eu já faço uma
ressalva para explicar o motivo do uso. A palavra bicha é uma injúria,
um termo ofensivo, odioso. Até os anos 80, por exemplo, não havia se
popularizado no Brasil o termo homossexual e as pessoas usavam os termos
macho ou bicha para se referir às masculinidades. O macho era o homem
que penetrava mulheres ou outros homens; a bicha era o homem que era
penetrado.
Bicha era/é a forma de ofender alguém que não atendia/não atende
ao ideal de masculinidade: macho, forte, viril e penetrador. A bicha traía/
trai a masculinidade e a sociedade dos homens. A questão não era a prática
sexual entre homens, mas a desconsideração social a um homem que é
penetrado ou mantém outro comportamento considerado feminino.
Bicha é uma ofensa com potencial não apenas enunciativo, mas
produtivo, na medida em que, enquanto ofensa, serve como modo de
coagir os sujeitos através da ameaça de desrespeito, deslegitimização e
desumanização. Cada vez que o termo é acionado é como se disséssemos:
“Se você não for macho, vamos te chamar de bicha; ninguém vai te respeitar; você
será sempre uma piada e nós vamos te ofender – sempre!”.
Termos injuriosos são modos de desqualificar pessoas e isso já ocorreu/
ocorre com índixs e negrxs. Com relação aos indígenas, Colombo, ao
chegar nas Américas, achou que estava na Índias e chamou as pessoas
que aqui estavam de índios. O termo associa xs indixs a outros termos
como: selvagens, bárbaros e incivilizados. Durante muito tempo, indígenas
tentaram se dissociar desse termo preconceituoso. Nos anos 70 desistiram
e resolveram utilizar a palavra para criar um laço de solidariedade e
parentesco diante de tão grande diversidade étnica e cultural. Índix passou

32 Publicado em 14 de dezembro de 2015.

80
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

a ser assumido por esses sujeitos como uma forma de luta.


O termo raça também é pejorativo. Foi criado com uma tentativa de
representar os europeus como superiores através da ideia que a raça negra
é doente, suja e sem inteligência. Ou que xs negrxs não são tão evoluídos
como os europeus brancos. Concepções que foram produzidas também por
uma ciência racista. Sem ter como provar a existência de raças e sabendo
o quanto esse termo era prejudicial aos negrxs, passamos a substituir o
termo por etnia, com uma vertente mais cultural e menos biológica. O
movimento negro, no entanto, resolver assumir o termo como um objetivo
político, não apenas de união e solidariedade entre sujeitos, mas também
na tentativa de positivar as identidades negras. Raça é utilizado com fins
políticos e não com uma aderência ao determinismo biológico.
Sem tradução para o português, queer também passa a ser utilizado por
alguns sujeitos, sendo sinônimo de estranho, perverso e doente. A ideia era
assumir a injúria como forma de esvaziar o potencial negativo do termo ou
positivá-lo.
Podemos questionar os limites da utilização de termos pejorativos como
forma de esvaziamento da injúria ou como modo de positivar identidades,
tal como diz o psicanalista Jurandir Freire Costa, que não acredita que seja
possível retirar o sentido negativo da linguagem. Ele propôs inclusive a
troca do termo homossexual por homoerotismo. No entanto, fugir e escapar
das palavras e seu potencial de subalternizar sujeitxs é complexo e, por isso,
muitos assumem a injúria, por não conseguir escapar dela.
Assim também foi com o termo “favela”, hoje substituída por
comunidade, na tentativa de fugir da associação com a marginalidade. Se
antes muitos sujeitxs negavam morar na favela, hoje muitos assumem o
termo e o positivam como, por exemplo, na música Sou favela, do Grupo
Parangolé.
Certa vez disseram à Gabriela Leite, ativista, que ela não poderia ser
feminista por ser puta. Ela respondeu: “Sou uma puta feminista!” Em
entrevista concedida para Marília Gabriela, ela disse preferir a palavra puta
ao invés de profissional do sexo e seguiu na mesma lógica de enfrentar o
estigma.
Quando um sujeito é apontando na rua como puta, bicha, favelado,
etc, isso caracteriza um ato odioso, violento e subalternizante. Se vitimizar
e sofrer por isso é dar forças ao agressor. A auto-referência como bicha ou
puta é um ato político. O agressor perde seu poder de ofensa.

81
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

O termo bicha pode ser utilizado de diversas formas atreladas à


sonoridade, intenção, etc. Pode ser dito de forma odiosa ou de forma
libertadora. Depende muito de quem diz.
O termo homossexual é tão associado à masculinidade, cientificidade,
virilidade e higiene. Homoafetivo, pior, parece marca de sabonete, pelo
menos da forma como passou a ser usado e desvirtuado a partir do casamento
entre pessoas do mesmo sexo, em especial pela advogada Berenice Dias
(antes disso, pesquisadores como Denilson Lopes usavam o conceito
para demonstrar que as pessoas heterossexuais também possuem relações
homoafetivas). Agora bicha, bichinha, viadinho, como diz Gabriela Leite
sobre a palavra puta: é sonora e quente. Cada vez que alguém grita: “Sou
bicha mesmo, meu amor!”, é libertador.

82
MÚLTIPLOS GÊNEROS E
CISNORMATIVIDADES
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

PESSOAS TRANS E TRAVESTIS EM


TODOS OS ESPAÇOS
VIVIANE V.

É comum, em muitos espaços em que pessoas trans e travestis


participamos, perguntarmos às pessoas quantas mulheres e homens trans
elas conhecem, quantas travestis já estiveram entre suas amigas ou colegas,
e se essas pessoas trans parecem existir nos ambientes que elas frequentam.
Não raro, a resposta de muitas delas é de não conhecerem nenhuma pessoa
trans ou travesti, ou mencionar somente alguma pessoa trans publicamente
conhecida. Ocasionalmente, algumas poucas delas dizem conhecer, como
colega ou amiga, alguém trans ou travesti.
A dor dessas ausências não me remete à ideia de que somos seres
estranhamente raros e exóticos, mas especialmente aos processos que a
sociedade executa no sentido de tornar nossos corpos e vidas invisíveis,
descartáveis, ignorados. As travestis, os homens trans e mulheres trans que
não conhecemos no trabalho, na escola, na mercado, na vida, podem ter
sido, em outros tempos e espaços, silenciados, ridicularizados, agredidos,
assassinados ou suicidados: se nos surpreendemos com essa relação entre
ausência e violência parte da nossa dor notará como os genocídios vão
naturalizando a inexistência de determinados grupos em determinados
espaços.
E os corações são um desses espaços, certamente: quem chora a morte
dessas pessoas, a partir da maneira como elas se identificam? Quem considera
essas vidas importantes, quem se relaciona com elas? Por que os homens
não estão amando as mulheres trans?33 Por que tantos assassinatos com
marcas tão explícitas de ódio34, com polícias e judiciários tão indiferentes?
Ao não existirmos em documentos, políticas públicas, afetos,
sexualidades, bulas de remédios, lápides e memórias, cada uma de nossas

33 Texto de Maria Clara Araújo: http://blogueirasnegras.org/2015/10/17/por-que-os-


homens-nao-estaoamando-as-mulheres-trans-2/ . Acesso em 20 de janeiro de 2017.
34 Um monitoramento de assassinatos de pessoas trans tem sido realizado pela Rede Trans
Brasil: http://redetransbrasil.org/monitoramento.html . Acesso em 20 de janeiro de 2017.

85
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

inspirações, escritas, narrativas, histórias, amores é uma forma de luta


e sobrevivência. Cada política que reconheça a necessidade de nossa
presença35 deve ser ampliada, cada informação que nos permita resistir deve
ser difundida, cada acesso uma brecha para respirar.
Para que, enfim, possamos ir descolonizando todos os espaços da
ocupação que impede e agride tantas vidas trans e travestis mundo afora.

35 Considere-se, a adoção de sistema de cotas para pessoas trans, na pós-graduação da


Universidade Federal da Bahia: http://www.atarde.uol.com.br/educacao/noticias/1830843-ufba-
criasistema-de-cotas-para-mestrado-e-doutorado . Acesso em 20 de janeiro de 2017.

86
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

OS LUCROS DA TRANSFOBIA ENTRAM


PELA PORTA DOS FUNDOS36
VIVIANE V.

[nota inicial: ‘cis’, prefixo latino oposto ao prefixo ‘trans’, refere-se a


‘não trans’ quando pensamos identidades de gênero. Uma ‘pessoa cis’ é,
assim, simplesmente uma ‘pessoa não trans’, para os efeitos desta análise.
Cissexismo, por sua vez, se refere a uma miríade de discursos institucionais
e sociais, de cunho supremacista e discriminatório, que inferiorizam
identidades de gênero trans*, ou ‘não cis’.].
Este post é uma tentativa de reflexão sobre um recente produto
comercial veiculado pelo grupo ‘porta dos fundos’, um vídeo denominado
‘casal normal’ (não fornecerei links, mas o produto é facilmente encontrado
ao se buscar ‘porta fundos casal normal’), e os principais motivos para que
ele valha tal investimento de meu (nosso) tempo são as possibilidades que
ele traz de (1) analisar (mais uma) instância transfóbica e cissexista, e (2)
perceber algumas formas pelas quais certas violências se revestem de uma
capa de humor que passa despercebida, inclusive, por pessoas ditas aliadas
no movimento GGGG e (infelizmente) por algumas pessoas trans*.
O casal trans* discute sob o olhar confuso de uma pessoa (cis)
profissional.
Pontuarei alguns argumentos centrais para pensar estas duas
possibilidades de reflexão:

(1) Não, não se trata de ‘somente’ uma piada.

Piadas são discursos e discursos têm efeitos, têm poder: é através


de discursos que constituímos, por exemplo, as ‘sacrossantas’ noções de
homem e mulher, de moral e imoral, de ordem e progresso, de ‘humildade’
papal, de ‘vandalismo’. Piadas se inserem como mais um entre inúmeros
instrumentos para construirmos o mundo e, infelizmente, construímos (ou

36 Publicado em 06 de agosto de 2013.

87
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

talvez tenham construído para nós) um mundo fodido de merda.


Sendo assim, torna-se necessário analisar que mensagens essas
supostamente ‘inofensivas’ piadas estão transmitindo, nesse caso particular
sobre vivências trans*, ou vivências de gêneros inconformes.

(2) Instâncias de transfobia e cissexismo no vídeo.

(2.1) Comecemos pelo título, ‘casal normal’. Trata-se de uma evidente


ironia com a qual a posterior ‘confusão’ gerada pela presença de um casal
trans* (propositalmente exagerada no roteiro com os equívocos cometidos
pelo casal e pelo personagem), trata de ‘brincar’, em uma onda de ‘hoje tudo
é normal só que confuso’. Pensemos na chamada do vídeo, disponível no
insuspeito site ‘kibeloco’, do qual faz parte ao menos um dos integrantes do
‘porta dos fundos’:
“Sabe quando tua mãe te flagra aos nove anos dançando Madonna
escondido, te dá uma surra de toalha molhada, chora, se arrepende, diz que
você pode ser quem você quiser, e quando você completa vinte e três anos,
te espera no aeroporto voltando da Tailândia com peitos e se chamando
“Paloma”? Normal.” Normal. O ‘só que não’ fica por conta de quem assiste
e se diverte com a ‘confusão’ instaurada no vídeo.

(2.2) Algumas pessoas contrapuseram que o vídeo seria positivo por


mostrar o despreparo do personagem profissional em lidar com questões
trans*. Eu começaria rebatendo isso com a simples constatação de que
praticamente todas as pessoas profissionais estão despreparadas para
lidar com questões trans* de maneira crítica (posso elaborar este ponto
posteriormente), e que é bastante evidente que discursos como “então você
é homem” (dirigido à mulher trans* do vídeo), “não estamos acostumados
com esse tipo de coisa [sic]” e “então vocês são um casal gay” (dirigido ao
casal trans* hetero) são percepções comuns da sociedade dominante.

(2.3) O esquema problemático feito pelo personagem (cis)


profissional. O riso, inequivocamente, advém do choque gerado pelo ‘casal
[sarcasticamente] normal’ em relação à normatividade de gênero. “Não
estamos acostumados com esse tipo de coisa”, diz o personagem e diz a
sociedade em geral, e é na confusa explicação que o casal tenta dar que
reside a piada. Como confirma um comentário de facebook ao vídeo, “Pois

88
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

eh, tá ficando complicado mesmo entender” esse tipo de ‘coisa’.


Essa hipótese também se desmonta quando assistimos ao ‘making-of ’
do vídeo37. Quando uma das pessoas da produção fala em “de repente ter
uma última confusão de quem é a mulher” (em 2´15”, sobre o fechamento do
roteiro com a questão da gravidez), fica explícito que o objetivo ‘humorístico’
é a confusão que pessoas trans* causam, e não qualquer apontamento sobre
a incompetência do profissional — que, repito, é o arroz com feijão mundo
afora. A pessoa da produção explica sua sugestão de como estabelecer uma
“última confusão de quem é a mulher”.

(2.4) Precisamos também analisar a violência que existe na banalização


do desrespeito aos nomes escolhidos por pessoas trans* neste produto.
Todo o esquema que o profissional faz dos nomes sociais e de registro das
pessoas trans* (desenhando ‘Mauro é Solange’ e ‘Cláudia é ‘Waldir’, bem
como uma figura de seus corpos) retrata (problematicamente) desrespeitos
cotidianos pelos quais passam essas pessoas. Novamente, o alinhamento
discursivo está na ‘justificada’ confusão do profissional, afinal “não estamos
acostumados com esse tipo de coisa”. A ‘graça’ estaria em saber que aquela
mulher chamada Cláudia (interpretada por uma mulher cis) é o Waldir,
e que aquele homem chamado Mauro (interpretado por um homem cis)
é a Solange — conforme indicado pela produção, é precisamente nessa
confusão que está o cerne do ‘humor’.Algo que talvez seja engraçado até
que alguém de nosso convívio próximo passe por diversos constrangimentos
e problemas devido ao fato de acharem que ‘ela é o Waldir’ ou que ‘ele
é a Solange’. Até que alguma pessoa querida se depare com familiares e
instituições negando a todo o tempo o respeito a seu nome escolhido, e não
um nome imposto no nascimento, até que essa pessoa tenha de se submeter
aos olhares invasivos das instituições jurídicas e médicas para ter concedida
a oficialidade do nome escolhido — concessão que é algo muito diferente
de direito consolidado.

(2.5) Finalmente, para além das tentativas de dizer que a mulher trans*
é, na verdade, um homem, e que o homem trans* é, na verdade, uma mulher,
existe uma promoção dos estereótipos de gênero que é baseada no que essas
pessoas seriam ‘de verdade’ – ‘homem’ e ‘mulher’, respectivamente. É assim

37 Vídeo disponível em http://bit.ly/145K9m7 . Aviso de conteúdo transfóbico. Acesso em 20


de janeiro de 2017.

89
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

que, ao final, surge a ‘verdadeira essência’ dessas pessoas: a mulher trans* se


torna agressiva e impositiva e o homem trans*, frágil e sensível.
Talvez a parte dos estereótipos de gênero seja mais facilmente
criticável, afinal essa é uma luta também encampada por pessoas cis diante
dos modelos de gênero dominantes. ‘Por que homens têm de ser assim?’,
‘Por que mulheres têm de ser assim?’ são questionamentos relativamente
comuns. Mas também é preciso notar a transfobia que está presente na
essencialização das identidades e expressões de gênero a partir do que os
corpos supostamente diriam, isto é, na pressuposição de que mulheres
trans*, por serem ‘corporeamente homens’, teriam comportamentos ditos
‘masculinos’ que, no máximo, são camuflados e disfarçados.
Um pouco além disso, temos também de refletir sobre o estereótipo
constante de que pessoas trans* necessariamente se alinhem ao binário de
gênero – ou seja, que necessariamente almejem serem homens e mulheres
à imagem e semelhança das pessoas cis. Isto é uma simplificação grosseira
do conceito de gênero como um todo, e um apagamento de diversas
identificações fora do binário. É provável que essa discussão, entretanto,
seja complexa demais para quem sequer notou a evidente transfobia e
cissexismo do vídeo.

(3) O surreal como problema.

Representações de pessoas trans* na mídia, de uma forma geral, são


associadas ao deboche, ao abjeto, ao falso, ao fantástico e-ou ao hipersexual,
seja nas representações supostamente humorísticas (nas quais tanto este
produto do ‘porta dos fundos’ quanto o ‘zorra total’ e tantos outros se
encaixam), seja nas representações supostamente ligadas à visibilização
de pessoas trans* (pensando, por exemplo, em programas de auditório e
documentários). Evidentemente, e apesar da baixíssima qualidade que a
esmagadora maioria destes produtos midiáticos têm, há alguns elementos
a serem aproveitados — a percepção de que pessoas trans* existem talvez
seja uma delas (iupi). Entretanto, permito-me estimar que o saldo geral
está longe de ser positivo: muito pelo contrário.
Se é verdade que existências trans* passaram a ser visíveis e a configurar
identificações e identidades em diversos lugares através dos produtos
midiáticos (há, por exemplo, diversos relatos de pessoas trans* que passaram
a se compreender no mundo a partir de histórias midiatizadas como as de

90
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

Christine Jorgensen e Roberta Close), também é muito marcante que a


constituição dessas vivências, identificações e identidades seja permeada
por uma luta constante contra estereótipos desumanizantes, degradantes e
inferiorizantes.
Pessoas trans* convivem com a ideia constante de que suas identidades
são falsas, um mero devaneio ou imoralidade.
Pessoas trans* convivem com a ideia constante de que não há lugar
para si em lugares tidos como ‘normais’ (mesmo lugares GGGG), a não ser
que sua presença seja monitorada por olhares e comentários inferiorizantes.
Pessoas trans* convivem com a ideia constante de que, se não acreditam
na verdade natural de que são homens e mulheres, devem ser doentes
mentais ou pessoas confusas que, no máximo — e via patologização
médica — devem almejar serem mulheres e homens mais estereotípicos
que mulheres e homens cis, e detestar seus próprios corpos.
Acima de tudo, finalmente, o vídeo, ao retratar com escárnio um casal
trans* hetero, passável, de classe média e cuja grande preocupação é sobre
como falar de sexo para sua criança, é um tapa na cara da grande maioria
das vivências trans* que lutam para terem suas identidades reconhecidas
(e não debochadas), que lutam contra o desemprego, o subemprego e
sobrevivem a prostituições em condições degradantes, que lutam contra
a disforia corporal, a depressão e o suicídio que a sociedade provoca, que
lutam contra a babaquice das representações midiáticas, das exotificações
acadêmicas e das conivências de movimentos GGGG e de pessoas ‘confusas’
e ‘bem intencionadas’, que sobrevivem a assassinatos brutais que envolvem
torturas, estupros e espancamentos. Sinceramente, explicar para uma
criança como trepamos não está no primeiro lugar da lista - em realidade,
poucas são as pessoas trans* que têm o privilégio de cuidar de uma.
O vídeo, em suma, é um tapa na cara da luta antiopressiva que, por
todos os meios necessários, procura humanizar as pessoas trans* em toda
sua complexidade, diversidade e resistência.
Não daremos a outra face.

91
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

MALCOLM X E O NOME SOCIAL DE


PESSOAS TRANS*38
VIVIANE V.

A conversa a seguir aconteceu no programa City Desk, em 1963, e


está disponível online39. A partir dele, pretendo fazer uma reflexão sobre
nomes sociais - os nomes que pessoas trans* (travestis, transexuais e outras
identidades de gênero) definem para si mesmas, e que podem ou não serem
‘legalizados’, isto é, reconhecidos legalmente.
“[04min:42seg]
Apresentador (Hurlbut): Senhor O’Connor.
O’Connor: Qual é seu nome de verdade?
Malcolm X: Malcolm. Malcolm X. Ahn..
O’Connor: [interrompe] Este é seu nome legal?
Malcolm X: Até onde me importa, este é meu nome
legal.”
Esta entrevista com Malcolm X, uma pessoa muito importante para as
reflexões sobre questões raciais – em particular no contexto estadunidense
–, ilustra um pouco de sua percepção crítica sobre o racismo, e das bases de
seu pensamento, que podem ser resumidas em três princípios: autodefesa,
autorespeito, autodeterminação.
Pretendo me inspirar nesse breve trecho de entrevista, e em alguns
outros posicionamentos de Malcolm X, para pensar sobre os nomes
escolhidos pelas pessoas trans* e gênero-diversas para suas vidas (incluindo-
se, aí, pessoas transexuais, travestis, transgêneras, e muitas outras): os nomes
sociais.
Esses nomes autodefinidos, tão reais e legítimos quanto quaisquer
outros, serão aqui referenciados como ‘nomes sociais’ para facilitar
compreensões: esse é um dos termos mais correntes ao se pensar, em políticas
públicas e outros contextos, sobre demandas políticas pelo reconhecimento

38 Publicado em 22 de abril de 2014.


39 https://www.youtube.com/watch?v=bBSWxy05QLg . Acesso em 20 de janeiro de 2017.

92
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

e dignidade de pessoas trans*.


Viviane V., por exemplo, é meu nome social. É, basicamente, um nome
não reconhecido pelo cistema jurídico.
E, assim como para Malcolm X, esse não reconhecimento deve ser
enfrentado: até onde me importa, esse é meu nome legal.
“[05min:57seg]
O’Connor: Você se importaria em me dizer qual era o sobrenome de
seu pai?
Malcolm X: Meu pai não conhecia seu sobrenome. Meu pai recebeu
seu sobrenome de seu avô, que o seu avô recebeu de seu respectivo avô, que o
recebeu do escravocrata. Os nomes reais de nossos povos foram destruídos
durante a escravidão.
[...]
O’Connor: [interrompe] Quer dizer, você não vai sequer me dizer qual
era o suposto sobrenome de seu pai?
[...]
Malcolm X: Eu não o reconheço de maneira nenhuma.”
Os projetos coloniais podem ser vistos como projetos que buscam
‘verdades’ sobre as pessoas colonizadas, na medida em que esse conhecimento
sirva aos colonizadores de alguma forma (para invadir, ocupar, ridicularizar,
assassinar, por exemplo). Quando o entrevistador insiste em saber o
sobrenome de Malcolm X, ele quer produzir duas coisas, discursivamente: 1.
Deslegitimar a autoidentificação de Malcolm X; 2. Explicitar a legitimidade
última – perante o cistema – do nome do escravocrata que brutalizou os
ancestrais de Malcolm X.
Vejo processos colonialistas semelhantes acontecerem quando noto a
curiosidade que as pessoas que não são trans* – as pessoas cis – têm pelos
nomes dados para as pessoas trans* em seus nascimentos.
“Qual seu nome de verdade?” “Por que você não quer dizer seu nome?”
“Ah, então você não é uma mulher de verdade?”
É preciso resistir a esses processos, é preciso enfrentá-los através do não
esquecimento da história: lembrar-se que a história de inúmeras pessoas
negras foi destruída pela escravidão branco-europeia, e que a dignidade de
pessoas trans* ainda está abaixo de pseudoverdades científicas sobre corpos
humanos, e de determinações médicas e jurídicas que lhes são impostas
goela abaixo. Lembrando que, afinal, eu tenho o direito a me autoidentificar
como viviane.

93
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

É nesse contexto,enfim,que se situa a (ainda) precária utilização de nomes


sociais por pessoas trans*, objeto de lutas políticas trans* contemporâneas,
particularmente em âmbitos institucionais, como universidades e cistemas
de saúde. E, mesmo dentro desses mínimos direitos, ainda há um longo
caminho a percorrer: a Universidade Federal da Bahia, por exemplo, uma
das mais tradicionais do país, ainda não tem um instrumento para que
pessoas trans* exerçam seu direito de serem chamadas pelos seus nomes
autoidentificados40. E, tristemente, esta universidade não está sozinha nesta
violência e desconsideração.
Sendo assim, podemos considerar essa situação inaceitável para
pessoas trans* e gênero-diversas em comparação a um cenário em que a
autodeterminação dessas pessoas fosse mais respeitada. Uma aproximação
possível é estudar instrumentos como a Lei de Identidade de Gênero
argentina, por exemplo: neles, a autodeterminação de gênero das pessoas,
ao menos formalmente, está acima de controles impostos a elas, tais
como a necessidade de diagnósticos médicos de valor científico bastante
questionável, de demandas absurdas feitas condições imprescindíveis para
alterações de nomes civis, ou de portarias para o uso de nome social bastante
limitadas por um ambiente institucional cissexista/transfóbico.
Daí a importância de fazer avançar politicamente a Lei de Identidade
de Gênero brasileira, que tem uma versão proposta no Congresso Brasileiro
por Érika Kokay e Jean Wyllys. As dificuldades em sua aprovação
nos permitem analisar o quanto tem realmente havido progressos nas
lutas trans*, e no quanto efetivamente podemos pensar que há alianças
(verdadeiras, e não intere$$eiras) em movimentos autodenominados
LGBT (considerados, em algumas análises, como ‘gggg’, por seu histórico
de centralidade nas demandas de homens cis gays de classe média e alta).
E, novamente, podemos nos inspirar em Malcolm X para essa análise:
“Eu nunca direi que estamos tendo progresso. Se você enfiar uma faca 9
polegadas nas minhas costas e a retirar 6 polegadas, isso não é progresso. Se
você a retirar totalmente, isto não significa progresso. O progresso é curar
a ferida que o esfaqueamento causou. E eles sequer começaram a retirar a
faca, quanto menos curar a ferida. Eles sequer admitem que a faca está lá.”
Portanto, temos de estar atentas para não confundir aquilo que é uma
retirada de faca parcial – ou, noutras palavras, mera amenização de violências

40 O nome social foi aprovado na UFBA em 18 de junho de 2014. Ver https://www.ufba.br/


noticias/estudantes-poder%C3%A3o-usar-nomesocial-na-ufba - Acesso 23 de janeiro de 2017.

94
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

– com aquilo que está efetivamente comprometido com a cura, a reparação,


e a promoção dos direitos humanos trans*. Para isso, é fundamental ao
menos notar que sangues trans* – em particular os marginalizados também
por racismos, elitismos e outras normatividades – continuam agonizando
esfaqueados por aí.

95
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

LOMBRA LIBERTÁRIA EM DIA DE


MULHERES, DE TODAS MULHERES41
VIVIANE V.

“O dia da mulher é pra lembrar a luta de TODAS as mulheres, inclusive


mulheres trans e travestis”, diz uma mulher. E, quando se pensam ‘todas’ as
mulheres, é fundamental perceber que nossas complexidades (nossos corpos,
nossas experiências de vida, nossas dificuldades) excedem enormemente
qualquer simplificação feita por cartéis de comunicação machistas, chefes
e professores em flores cínicas, médicos e parentes ‘engraçadinhos’ que
atravessam tantos cotidianos.
Não queremos flores nem ofertas: demandamos reparações por
violências históricas.
“Estarmos vivas é resistência, estarmos vivas é luta. Estarmos vivas num
país que é líder mundial em transfeminicídio, onde apenas em 2014 mais
de 120 travestis e transexuais morreram (apenas as catalogadas, com base
no grupo LGBT queniano Denis Nzioka), por serem quem são, mostra que
o dia é nosso também.” Juntas a esta mulher, resistimos.
E assim, em meio a oceanos de marvadezas — de netinhos, voinhos,
ditadores e transfóbicos –, emerge uma breve lombra libertária:
“Proclamar-se na ausência de todas condições necessárias para tal: atos
revolucionários como atos de amores impensáveis, impossíveis.
E a proclamação, se vista como demasiado perigosa quando não
neutralizada via patologia e invisibilização sociocultural – pode levar
a violências brutais. Violências de gênero, de identidade de gênero.
Executam-nos por tantas ruas e por tantas pistas, tantas delegacias, viaturas,
clínicas e tantas famílias, que se há de pensar no que fazer em resistências, e
haveremos de pensar em como executar estes pensamentos.
Em como viabilizar autoproclamações de autonomias: nossas corpas,
nossas identidades, nossas vidas, contra todo auto de resistência conservador
e genocida. Nem reis, tampouco rainhas, mas pessoas autônomas em

41 Publicado em 08 de março de 2015.

96
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

revoluções.
Talvez os amores impossíveis, impensáveis?, sejam tudo do nada que
temos.”
‘standing low challenge the king for the throne’ (Smile – Groundation42)

42 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=NRb8BTscQfU . Acesso em 20 de janeiro de


2017.

97
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

POR TRAIÇÕES CONTRA O CISTEMA43


VIVIANE V.

(Cistema: uma corruptela de ‘sistema’, com a intenção de denunciar


a existência de cissexismo e transfobia no sistema social e institucional
dominante)
Pessoas cujos corpos e identidades de gênero diferem daquilo que
é tomado como natural, saudável, divino e normal – ou, para usar uma
simplificação que se ouve com frequência, que não sejam ‘o homem com
pênis e a mulher com vagina’ – são construídas (por mídias, cristianismos,
famílias, …) como traidoras do cistema, ou no mínimo como potenciais
traidoras dele.
E, por sua traição – ou mera suspeita de traição – aos padrões de gênero
dominantes, são assassinadas, ridicularizadas, estranhadas, ojerizadas.
Controlam e realizam intervenções sobre seus corpos, até mesmo antes que
tenham consciência para decidir, e, por sua vez, impedem ou dificultam
ou corrompem o acesso às mudanças que essas pessoas desejam para si.
Subempregos, desempregos, pistas marginalizadas: a traição tem um preço
alto.
Pessoas trans*, pessoas transexuais, pessoas travestis, pessoas não
binárias, pessoas… quando se reconhecerão os direitos dessas pessoas?
Quando suas existências poderão ser descolonizadas dos modelos
inferiorizantes que o cistema oferece em seus programas de tv, em suas
matérias pseudojornalísticas incompetentes (que estão por todas partes), em
seus consultórios brutalizantes, em seus programas e projetos institucionais?
Possíveis respostas, acredito, estão na apropriação crítica da ideia de
‘traições’ a partir do desenvolvimento da consciência desses – e tantos
outros – aspectos colonizatórios do cistema, levando a conclusões políticas
sobre a necessidade de executar traições anticoloniais de gênero.
É preciso cometer aquilo que o cistema verá como crimes e contravenções
– traições à ordem – de gênero. Autoorganizações econômicas e políticas
trans*, redes de proteção e cuidado independentes do cistema patologizante

43 Publicado em 17 de março de 2014.

98
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

colonial, propostas e ações culturais e intelectuais descoloniais críticas.


Fechações. Marchas. Legítimas defesas. Barracos. Artigos acadêmicos.
Economias solidárias trans*. Artes. Amores. Rexistências.
Rexistências por todos os meios necessários para que nossos direitos
humanos sejam garantidos – no mínimo, de acordo com os Princípios de
Yogyakarta: é preciso organizar traições ao cistema.
Por traições intersecionais anticoloniais ao cistema heterossexista,
racista, elitista, capitalista, especista.

99
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

LIGA A TV, VAI COMEÇAR O SHOW DE


HORRORES!44
FÁBIO FERNANDES

Desde tempos muito remotos, o ser humano transforma aqueles que


são “diferentes” em fetiches, espetáculos a serem contemplados e aplaudidos
sob olhares de espanto, riso, medo e chacota. Esses seres, distantes da
definição de normalidade aceita e postulada por discursos e regimes
jurídicos e políticos, já tiveram o seu lugar em um palco circense mais…
“bizarro”, digamos assim.
Eram muito comuns em cidades norte-americanas, nos séculos XIX
e XX, os freakshows (show de horrores), espetáculos em que o objetivo era
causar espanto no público exibindo uma diversidade de atrações cujos corpos
apresentavam diferenças genéticas mais incomuns, como o gigantismo, o
nanismo, a neurofibromatose, pessoas albinas, gêmeos siameses, além de
animais como vacas de duas cabeças, bichos com um olho só, porcos e
cabras de quatro chifres etc.
São esses os considerados seres marginais, ou simplesmente abjetos,
situados em zonas invivíveis, já que não se adequam a modelos de corpos
nem de vivências exigidas para serem considerados normais: falta-lhes algo
para possuírem o estatuto de sujeitos, como se fossem menos humanos ou,
enfim, inumanos.
E as pessoas travestis, transexuais, intersexos e transgêneros? Seus
corpos embaralham a noção de gênero inteligível, ou seja, resultante da
perfeita equação entre sexo, gênero, desejo e práticas sexuais (nessa lógica,
os que nascem com pênis devem se tornar homens, desejar e praticar sexo
com mulheres e essas seguiriam o modelo pelo mesmo raciocínio binário),
como reflete a pensadora Judith Butler. Esse é um dos caminhos para o
sonho perfeito criado pelo capitalismo, o do conforto de uma sociedade
que se realiza em bens de consumo, trabalho digno, casa aconchegante e
família feliz de comercial de margarina.
A identidade travesti está, de um modo geral, associada à fabricação

44 Publicado em 1 de março de 2013.

100
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

de um novo corpo, ao invés de sua constante simplificação em práticas


e orientações sexuais, que podem ser as mais diversas. Elas investem
justamente nesse contínuo de construção/desconstrução de seus corpos e,
por conseguinte, das próprias vivências e matrizes sociais a que pertencem.
Mas qual corpo não é modificado, interferido, alterado de uma forma ou
outra?
Quantas medicações não ingerimos durante toda a nossa vida? E
as longas sessões de academia, as tatuagens e as mudanças em salões de
beleza? E as cirurgias plásticas também não são alterações corporais? Com
certeza, sim. Mas tocar no sacrossanto sexo/gênero é um crime, um pecado,
um passaporte para se tornar uma aberração. Contraditório, não?
Travestis rompem as linhas tradicionais de gênero e nos propõem
reflexões sobre o quanto diversificado é todo e qualquer ser humano. Suas
identidades, no entanto, são estigmatizadas e não incluídas na “zona de
conforto” que – ilusoriamente – nos traria a segurança e a “felicidade”
amplamente divulgada na contemporaneidade.
Corpos trans têm dificuldades em acessar a bens básicos como
educação, saúde e a possibilidade de emprego. Por isso, muitas travestis
encontram na prostituição sua única alternativa: elas são estigmatizadas,
violentadas e invisibilizadas… mas, por outro lado, atraem os muitos
homens que as desejam e se tornam fetiches e personagens desse show
de horrores contemporâneo que toma conta das TVs, invade nossos lares,
expondo acriticamente as mazelas de nossa população mais humilde, ou
pior, transformando a miséria, a violência e a pobreza em espetáculo.
Esses referidos programas de televisão, também conhecidos como
“jornalismo de esgoto”, recorrem constantemente a personagens que
possam se tornar os mais novos monstros expostos em seus palcos bizarros.
São programas que existem em todo o Brasil, com um formato semelhante,
exibindo cadáveres, entrevistando presos em flagrante e sugando ao máximo
o sofrimento alheio para transformar tudo isso em “notícia”, em show.
Travestis são personagens recorrentes nesses programas, quase sempre
exibidas em delegacias e em situações que as identificam como “fora da lei”,
bandidas, marginais, roubando e/ou agredindo seus clientes ou envolvidas
em confusões que merecem as luzes desse freakshow. O que quase nunca é
respeitado, inclusive, é o próprio gênero delas: os repórteres quase sempre se
referem às travestis como ele, “o travesti”. Seu gênero está visível na forma
como se apresentam, seja em seus nomes sociais ou na identificação mais
que explícita com o feminino; a opção por referir-se de forma contrária é a

101
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

de denotar o seu status de anormalidade.


A intenção dessas reportagens em “coisificar” as travestis é refletida
nas situações de acusação por roubo ou violência supostamente praticados
por elas: quase sempre as supostas “vítimas” são poupadas do escracho de
aparecer em tal situação, tem o rosto tapado pela edição ou sequer aparecem
nela. Sem contar os efeitos sonoros que ajudam na ridicularização desses
corpos, completamente expostos aos risos perversos que se ouvem nas
delegacias (e também de cada espectador).
A exposição desses rostos vai além da TV, pois essas reportagens logo
são compartilhadas na internet e vistas por milhares de pessoas. Não são
raros os comentários rotulando-as como aberrações, pobres coitadas, almas
perdidas ou mesmo criminosas. Essa exposição é um verdadeiro gozo
para quem gosta de se deliciar com a desgraça alheia e conferir casos de
“bizarrices” e “anormalidades” (basta jogar no google ou youtube termos
como “delegacia” e “travesti”, para conferir alguns exemplos).
A narrativa desses jornalistas de esgoto reforça com intensidade o
caráter de abjeção e inumanidade que seria intrínseco às pessoas trans e
travestis… aprisioná-las nessas margens garantiria o conforto higiênico
de ter e fazer parte de uma família normal, de ser uma pessoa normal,
refletindo-se, em alguns pais, na reprodução de uma recorrente frase: “meu
filho, seja gay, mas nunca se torne UM travesti, pelo amor de Deus!”.
Podemos discutir de onde vem essa noção de abjeção e normalidade.
Quem cria e quem determina quem é normal ou anormal? Quem merece
esse rótulo? Quem merece ser aceito e fazer parte de forma íntegra à
sociedade? Quais são os corpos que de fato importam? Assim como algumas
comunidades ditas populares, muitas vezes circunvizinhas a bairros de luxo,
são consideradas cânceres nas cidades, e cidadãs e cidadãos negros e pobres
são ainda constantemente marcados por cor da pele e classe social, existem
pessoas ainda menos humanas. Há elementos desse abjeto em cada ser
humano, em todo o campo social e essa abjeção é um ponto de vista, assim
como as culturas também são, ou seja, o que nos causa estranheza aqui pode
ser o referido “anormal” existindo e resistindo em outros lugares e contextos
socioculturais.
Podemos dizer que todos temos nossos monstros, que não vivem em
armários e florestas, mas em toda parte, subjetivos e ao mesmo tempo
reais, parte de si, parte do outro, para além de linhas ou traços definidos
simplesmente pelos parâmetros de normalidade. Mas os “monstros” que a
sociedade elege para serem alvo de risos, contemplação e violência, esses

102
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

sim são os que sofrem com a invisibilidade, a exclusão e a ignorância.


São inúmeras as violências sofridas, porém ocultadas ou impunes, mortes
frequentemente ignoradas e subjetividades destruídas sob as luzes de um
palco impiedoso. Levantem-se, aplaudam nossas aberrações, plateia.

103
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

O QUE O UNIVERSO TRANS NOS


ENSINA?45
LEANDRO COLLING

Quais as diferenças entre travestis, transexuais, transformistas e


transgêneros/as? Lembrei de falar sobre o tema assim que li a notícia de
que o governo do Estado da Bahia passará oficialmente a respeitar e usar o
nome social dos/as servidores/as travestis e transexuais. Esse é apenas um
exemplo de como uma ação política pode diminuir muito o sofrimento de
algumas pessoas, sem gastar um centavo.
No Brasil, em geral, quando se fala em travesti imediatamente as
pessoas pensam em pessoas que “nasceram homens, se vestem de mulher”
e fazem algumas intervenções no corpo, como uso de silicone (em especial
nos seios e nas nádegas). Ou seja, são pessoas que possuíam um corpo tido
como masculino e que se identificam fortemente com o universo feminino
e, por isso, realizam variadas mudanças. A identidade dessas pessoas é
feminina e o indicado é que todos/as respeitam essa identidade e, por isso,
as chamamos por “as” travestis, e não “os” travestis. Além disso, é preciso
dizer que a palavra travesti, em outros contextos e países, pode significar o
que nós chamamos de transformistas.
Os e as transformistas (aqui também o indicado é usar o artigo de
acordo com a identidade com a qual a pessoa se apresenta e/ou deseja)
são artistas que se “travestem” com o gênero tido como oposto apenas
momentaneamente, em especial para apresentações artísticas. Também
ligadas ao universo artístico, mas não só, ainda existem as drags queens e os
drags kings. Em geral, o universo drag se difere do transformismo porque
nessas performances não existe o objetivo de “parecer” uma mulher ou um
homem. O objetivo é parecer drag mesmo, através do exagero, do choque,
da montagem em si.
Nenhuma drag queen quer parecer uma mulher, passar despercebida
como um “homem montado de mulher”. Esse é (ou era) um objetivo
muito recorrente entre as transformistas. Na Bahia, por exemplo, existem

45 Publicado originalmente em três partes, nos dias 11, 20 e 27 de setembro de 2012.

104
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

transformistas que querem parecer ao máximo com Daniela Mercury ou


Ivete Sangalo. Vejam as fotos de Scarleth Cabochard Sangalo e Scher
Marie Mercury e compare com a de Sfat Auerman, uma drag queen muito
talentosa da Bahia.
Mas todas as distinções que já fiz e vou fazer são muito precárias.
Isso porque existe uma variedade de modos de ser travesti, transexual,
transformista e drag. Em relação às travestis, por exemplo, existe uma
grande diferença entre a chamada “nova geração”, composta por jovens
que “se montam” às vezes e não fazem uso do silicone. Muitas dessas
pessoas também se identificam como travestis, para espanto e indignação
das travestis mais velhas, que muitas vezes chamam as mais jovens de “as
gays”, que não seriam “travestis de verdade”. Um ótimo estudo sobre o tema
foi feito pelo pesquisador Tiago Duque, publicado no livro Montagens e
desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis adolescentes (Editora
Annablume).
Uma grande diversidade também existe no universo transformista e
drag. Algumas pessoas que se apresentam como artistas transformistas
incorporaram alguns elementos do universo drag com a cultura local e
geraram novas misturas muito interessantes. Na minha leitura, esse é o
caso de Valerie O’rarah. Valerie é, nesse sentido, inclassificável. Talvez isso
explique, inclusive, o seu sucesso entre a comunidade LGBT da Bahia.
Além do seu talento como artista dubladora e comediante de stand-up,
é claro. Mas, repito: a riqueza dessas experiências é muito maior do que
estou delineando aqui, pois ainda existem as travestis que são artistas
transformistas também, como é o caso de Marina Garlen46.
Já as pessoas que se identificam como transexuais, diferente das
travestis, em geral são caracterizadas pela sociedade como aquelas que
desejam fazer a chamada “cirurgia de mudança de sexo”. No entanto, vários
estudos acadêmicos realizados no Brasil, a exemplo dos realizados por
Berenice Bento (leia, por exemplo, o livro A reinvenção do corpo), apontam
que existem muitas pessoas que reivindicam a identidade transexual mas
que não desejam fazer a completa intervenção cirúrgica de “mudança de
sexo”.
Muitas vezes, essas pessoas se contentam em realizar parte do processo
transexualizador, a exemplo de implantar ou retirar os seios, tomar
hormônios para que cresçam ou desapareçam pêlos no corpo etc. Aí algumas

46 Marina Garlen, ativista e artista, faleceu no dia 31 de janeiro de 2016.

105
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

pessoas perguntam: mas então muitas transexuais na verdade são travestis?


Eu respondo: não. Por que não? Porque nós estamos falando de identidades
e cada identidade é composta por um grande leque de características que
nunca deixam de ser criadas e recriadas. Não podemos criar categorias tão
rígidas do que é ser, por exemplo, uma ou um “transexual de verdade”, como
faz boa parte do discurso médico em relação ao tema.
Por isso, sempre que estamos falando de identidades, o fundamental
é respeitar o modo como as pessoas desejam ser identificadas. Ou seja, as
pessoas que se identificam como transexuais possuem diferenças em relação
às travestis. E essas diferenças não podem ser reduzidas a ter ou querer ter
determinado órgão sexual. O que quero dizer é que existem modos de ser
travesti e modos de ser transexual que irão fazer com que as pessoas se
identifiquem ou não com essas identidades.
No Brasil, até bem pouco tempo, praticamente só conhecíamos as
transexuais, mas nos últimos dois anos cresceu a visibilidade dos homens
transexuais, que inclusive fundaram uma associação nacional própria.
Quem quiser conhecer a história daquele que é considerado o primeiro
transexual que passou por cirurgias no Brasil, leia ótimo livro de João W.
Nery, intitulado Viagem solitária.
Um dos grandes problemas é que a transexualidade ainda é considerada
uma doença. Ou seja, para que uma pessoa tenha acesso ao Sistema Único
de Saúde e tenha o direito de realizar o chamado processo transexualizador,
ela precisa passar por um longo acompanhamento médico e ser considerada
uma pessoa doente. Felizmente, cresce no mundo a campanha pela
despatologização das identidades trans. São várias as razões para defender
o fim da patologização das identidades transexuais. A mais importante
delas talvez seja a de que, ao patologizar a identidade trans, na verdade as
organizações ligadas à saúde continuam a patologizar uma identidade de
gênero que é distinta da norma hegemônica. Se a transexualidade é mais
uma das possíveis identidades de gênero que existem na sociedade, por que
consideramos uma dessas identidades como doença e as outras não?
Voltando ao propósito central deste texto, falta falar do outro T, de
transgêneros/as. Definir o que são pessoas transgêneras também é um
desafio. Alguns/mas pesquisadores/as e ativistas usam o termo como
um guardachuva para se referir a todas as pessoas que, de alguma forma,
transitam entre os gêneros mais conhecidos (ou seja, o masculino e o
feminino). Eu tenho problemas com essa perspectiva porque a observação
da vida mostra duas coisas: 1) É crescente o número de pessoas que se

106
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

identificam como transgêneras e que apresentam diferenças entre travestis


e transexuais; 2) Todos nós, a rigor, somos um pouco transgêneros, pois
não somos 100% masculinas ou 100% femininas, embora a maioria assim
se entenda.
Mas o que as pessoas transgêneras têm de diferente das travestis e das
e dos transexuais? Várias coisas, entre elas: a) As pessoas transgêneras, que
também podem se identificar como não-binárias, lidam de outra forma
com a ideia de transitar entre os gêneros. Em determinados dias, elas
podem estar a fim de sair de casa com alguns elementos marcados como do
universo feminino (algumas peças de roupa, maquiagem, jóias, adereços etc)
e em outros dias estão mais identificadas com o que é considerado como
universo masculino e assim se vestem e comportam. Isso não tem nada a
ver com performances artísticas, estou falando da vida cotidiana, ok?; b)
Pessoas transgêneras não aspiram o gênero que é tido pela sociedade como
oposto ao seu, desejo que é bastante comum nas (mas não em todas) travestis
e transexuais. Elas (as transgêneras) não se identificam nem como homens
e nem como mulheres porque não se identificam com o que a sociedade
construiu como dicotômicas identidades masculinas e femininas. Essas
pessoas se sentem bem no trânsito e, com isso, estão sempre construindo
novas combinações de gênero. Todos nós cotidianamente construímos o
nosso gênero, nos “montamos”, para usar uma expressão usual do universo
trans. A diferença é que as pessoas transgêneras fazem isso de forma mais
explícita e, algumas vezes, até como uma política do cotidiano.
Não estou dizendo que qualquer pessoa pode trocar de gênero a
qualquer momento que desejar. A maioria de nós internalizou de tal forma
as normas de gênero que jamais conseguirá sequer passar um batom (no
caso das pessoas fortemente identificadas com o universo masculino).
E o trânsito entre os gêneros não pode ser um argumento para validar
determinadas teses de cura da transexualidade. Já ouvi coisas como: “se a
pessoa pode transitar, porque ela não transita para uma identidade que é
repeitada pela sociedade e não fica lá?”. Se quisermos uma sociedade que
respeita a diversidade sexual e de gênero, os trânsitos devem ser respeitados
e jamais devem ser trânsitos obrigatórios, compulsórios.
Além disso, em nenhum momento, até agora, eu falei sobre a prática
sexual das pessoas travestis, transexuais, transformistas, drags e transgêneras.
Até agora eu falei de questões de gênero, mas em geral as pessoas ligam
a prática sexual homossexual com o universo trans. Pois é preciso dizer
que existem pessoas trans que são heterossexuais, homossexuais, lésbicas,

107
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

bissexuais, assexuais, pansexuais, etc, etc e etc. O gênero de cada pessoa não
determina a prática sexual desta pessoa.
Sempre tivemos quem prefira o livre transitar entre os gêneros. Vide
o exemplo de nossa heroína Maria Quitéria. Algumas vezes essas pessoas
também foram chamadas de andróginas, em especial nas décadas de 60
e 70 no Brasil. Para ficarmos entre os baianos, basta lembrar de como a
androginia era um elemento forte para os tropicalistas, em especial Gilberto
Gil e Caetano Veloso. Sobre o mesmo período, quem ainda não viu, corra
e veja o documentário sobre os Dzi Croquettes.
Repito: não estou dizendo que Quitéria, Caetano, Gil ou os Dzi são ou
foram pessoas trans. Eu estou falando de como os seus comportamentos,
vestimentas, adereços e gestuais embaralhavam as rígidas categorias de
gênero. Mais recentemente, apareceu outro nome para designar alguns
meninos andróginos sensíveis. Falo dos emos, que também foram
imediatamente associados como gays. Enfim, em cada época e lugar (em
outros países existem outros nomes para designar pessoas que transitam
entre os gêneros) são criados novos termos, categorias e identidades para
nomear, e muitas vezes insultar, quem transgride as normas de gênero. Mas,
apesar de tudo isso, o movimento social LGBT brasileiro, quando explica o
T de sua sigla, não inclui as pessoas transgêneras.
Teria muito mais a dizer sobre algumas características que diferenciam
as pessoas travestis, transexuais, transgêneras, transformistas e drags.
Por exemplo, alguém poderia dizer que transformistas e drags não são
identidades, tais como são os/as demais TTs. Essa é uma leitura muito
comum, mas eu tenho minhas dúvidas. Realmente, por um lado, elas não
se constituem em identidades mas, pelo contato que tenho com várias
dessas pessoas, percebo que as “personagens” das transformistas e drags não
desaparecem por completo depois dos espetáculos. Mesmo desmontadas,
muitas transformistas continuam sendo chamadas, por exemplo, pelos
seus nomes artísticos. Muitas vezes inclusive passam a adotar mais os seus
nomes artísticos do que os que constam em seus documentos. Isso não é
uma evidência de que existe ali uma outra discussão sobre identidades? Mas
agora, para finalizar, vou cumprir a promessa e responder a questão: afinal, o
que o universo trans nos ensina, em especial em relação à heterossexualidade
e à heteronorma?
Todas as pessoas trans, em algum grau, evidenciam que o dito “sexo
biológico” não necessariamente determina o gênero do sujeito. Ou seja, se
eu nasci com um pênis não sou obrigado a ter um gênero masculino e se

108
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

nasci com uma vagina não sou obrigado a ter uma identidade feminina. As
pessoas trans nos mostram que a “biologia”, a materialidade do corpo, não
é um destino.
As pessoas trans são, por sua simples presença no mundo,
transgressoras. Isso não quer dizer que elas tenham, obrigatoriamente, um
discurso racional transgressor verbalizado em suas falas. Algumas delas,
inclusive, quando falam de sexualidade e gênero, são muito conservadoras
e defendem normas rígidas. Já li um texto nas redes sociais de uma famosa
transformista baiana ofendendo duramente os gays afeminados ao passo
em que elogiava os masculinizados. Apesar disso, a presença das pessoas
trans nos espaços públicos desloca e problematiza as normas hegemônicas
sobre as sexualidades e os gêneros. Não tenho dúvida de que este é um
dos grandes motivos da violência sofrida pelas pessoas trans. Travestis,
por exemplo, não são assassinadas com tanta frequência no Brasil apenas
porque moram ou trabalham em locais inseguros. Travestis são assassinadas,
muitas vezes com requintes de crueldade, porque transgridem as normas.
Subjetivamente, os assassinos mandam um recado para toda a sociedade:
“ou você se comporta como homem, ou veja o que nós fazemos com vocês”.
As pessoas trans, pela sua presença nos espaços públicos, mandam
outros dois recados para todas as demais pessoas, sejam elas homo ou
heterossexuais. O primeiro: “Se eu me montei desse jeito, se eu construí
meu gênero desta forma, qualquer um pode fazer o mesmo”. O segundo:
“Eu me montei com esta identidade de gênero que lhe apresento, você se
montou com a sua identidade. Assim como eu me monto, você também
se monta todos os dias antes de sair de casa”. Ou seja, para que tanto
preconceito e violência só para com a minha montagem?
As pessoas trans, além de colaborar para ampliar significativamente
as categorias homem e mulher, também ampliam a noção do que é ser
heterossexual. Conheço várias pessoas trans que são heterossexuais. Até
então, eu praticamente não falei da orientação sexual das pessoas trans,
pois preferi focar na questão de gênero. Por que? Porque as pessoas, ao
irem para a cama com alguém, não consideram apenas o “sexo biológico”
da outra pessoa. Conta muito a performatividade de gênero da pessoa. Sim,
transamos mais com gêneros do que com sexos. Por isso, tantos gays não
suportam a ideia de transar com gays afeminados ou travestis, mesmo que
eles e elas possuam um pênis e desempenhem o papel de “ativos” na relação
sexual. Se isso é verdade, por que quase sempre consideramos como sexo
homossexual aquele praticado por uma pessoa trans que possui pênis, e se

109
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

identifica como portadora de uma identidade feminina, com uma pessoa


que possui pênis e identidade masculina? Ou seja, o universo trans ensina,
para os/as heterossexuais e LGBTs, que a heterossexualidade não é um
privilégio apenas de quem pratica sexo com pessoas tidas como do sexo
oposto. Não é incrível e apaixonante esse universo?
Um beijo enorme para todas as pessoas trans que eu já tive a honra de
conhecer e com quem aprendo todos os dias.

110
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

SOBRE BANHEIROS, MULHERES,


BEAUVOIR E AS TRAVESTIS47
LEANDRO COLLING

No dia em que o mundo comemorou os 106 anos de nascimento de


Simone de Beauvoir, a feminista mais conhecida do mundo, recebi, logo
cedo, uma mensagem de Carla de Freitas, integrante de nosso grupo de
pesquisa, sugerindo que o CUS se manifestasse sobre um ato de transfobia
que ocorreu no Shopping Barra, em Salvador.
Vinte e uma pessoas que trabalham no shopping, em sua maioria
mulheres, fizeram um abaixo assinado para impedir que uma travesti,
funcionária de uma lanchonete do mesmo centro de compras, usasse o
banheiro feminino. Lançamos a nota, mas eu gostaria de aproveitar esse
caso para pensar mais um pouco sobre gênero feminino (tema central na
obra de Beauvoir), sexualidade e o que os banheiros públicos fazem conosco
e as normas que nos regem nesse campo.
Vou começar com uma frase que o jornalista Ricardo Ishmael, da
TV Bahia, postou em sua rede social. Ele teria ouvido um jovem, de
cerca de 19 anos, bradando: “banheiro feminino não é lugar de travesti”.
Mas qual é mesmo o lugar que reservamos para as travestis? Qualquer
pessoa minimamente informada sabe a resposta. Preferimos ter as pessoas
travestis nos piores lugares e elas sequer cabem nos nossos banheiros, sejam
masculinos ou femininos. E por quê? A travesti em questão é uma exceção
à regra porque conseguiu entrar no tal mercado formal de trabalho. Mas,
como esse caso nos mostra, sua batalha deve ser diária, pois sequer tem
a tranquilidade de usar o banheiro feminino, gênero com o qual ela se
identifica. Mas por que sempre ocorre esse pânico sexual quando alguma
pessoa trans resolve usar o banheiro? As respostas podem ser várias e bem
mais extensas do que vou escrever aqui neste texto. Vou desenvolver apenas
uma delas.
A divisão dos banheiros entre masculino e feminino é uma das formas
com as quais a sociedade tenta manter o controle sobre os nossos gêneros

47 Publicado em 10 de janeiro de 2014.

111
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

e também sobre as nossas sexualidades (basta estudar como os banheiros


públicos foram criados na história). A sociedade tenta, violentamente,
mas nem sempre consegue. Essa divisão é feita dentro de um esquema
absolutamente e absurdamente dicotômico e baseado na presumível
genitália da pessoa. A identidade de gênero, ou como a pessoa performa
o seu gênero (como se comporta, gesticula e se veste, por exemplo) pouco
importa nessa imbecil, autoritária e, repito, violenta divisão.
Para solucionar o problema, algumas pessoas sugerem a criação de um
terceiro banheiro, exclusivo para as pessoas travestis. Ou seja, para combater
uma exclusão, cria-se outra exclusão, um local identificado, obviamente,
como dos restos de nossa sociedade. Ao invés disso, diversas pessoas ligadas
aos estudos mais recentes do campo das sexualidades e dos gêneros, aos
quais me filio, têm proposto algo muito mais radical (no sentido de ir na
raiz do problema): acabar com a divisão de gênero nos banheiros públicos.
Por que não dividimos os banheiros por gêneros em nossas casas, ou
até na maioria dos aviões, por exemplo, e fazemos isso no espaço público?
Quando alguém propõe isso, os preconceituosos de plantão (os piores são
aqueles que justamente começam as suas frases assim: “olha, eu não sou
preconceituoso, mas…”) gritam. As mulheres, que entendem por mulheres
apenas quem tem vagina, dizem que temem ser estupradas pelos homens
(claro, todos como uns tarados incapazes de controle, não é?) ou alegam
que os mijões não sabem fazer xixi sem molhar metade do banheiro (todos
eles uns porcos que não podem ser educados para acertar a pontaria ou que
sejam, inclusive, orientados a mijar sentados também. Ou a masculinidade
deles é tão frágil que sucumbirá ao ato de mijar sentado?). As duas alegações
não se sustentam e só demonstram, mais uma vez, como as pessoas insistem
em encontrar razões para justificar os seus tremendos preconceitos, que
nascem exatamente da rigidez das normas sobre as sexualidades e os
gêneros.
Normas que Simone de Beauvoir muito bem estudou e denunciou, mas
que ainda não alcançavam, de modo direto, a realidade das pessoas trans,
apesar dela ter ficado conhecida com a célebre frase “não se nasce mulher,
torna-se”. Dentro do universo trans, existem pessoas que, independente da
genitália que possuem, se identificam como mulheres, ou seja, tal qual as
mulheres com vagina, também se tornaram mulheres ao longo da vida. Há
muitas formas de ser mulher, tendo vagina ou não, e a sociedade precisa
respeitar a forma como cada pessoa se identifica. Por isso, muitas outras
simones precisam existir.

112
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

MASCULINIDADES FEMININAS:
NÃO SOMOS LÉSBICAS, SOMOS
GOBY!48
CARLOS HENRIQUE LUCAS LIMA

Neste texto farei algumas reflexões sobre as masculinidades femininas


e peço à leitora e ao leitor que me acompanhem, sobretudo na parte
inicial em que dialogo com um importante autor dessa área de estudos.
Tecerei comentários de inspiração culturalista, que pretendem mobilizar
um referencial crítico vinculado aos estudos queer, e tal procedimento não
pode querer detectar o início de algo, já que o próprio momento do início
foi arruinado pela história, não lhe sendo possível ser recuperado como
totalidade, mas sim reconstituído e, nesse mesmo momento, criado pelo
estudioso/a que a esse trabalho se dedica. Ressalva feita para aqueles/as que
pretendiam encontrar aqui uma etimologia da palavra goby, presente no
título do texto.
Essa foi a reflexão que me ocorreu após ser indagado sobre a origem
da palavra goby por uma companheira do movimento LGBT da cidade
de Vitória da Conquista/BA. Vale dizer que eu não conhecia essa palavra
antes de chegar à Bahia, talvez um indício de que tal vocábulo, que já tomei
como pertencente ao repertório pajubá, possivelmente tem uma localização
geográfica baiana; e foi por uma dessas coincidências da vida, já que tenho
por sentado que a vida não passa de contingências, tropeços e encontros
doidos, que, nesse ínterim, enquanto era provocado a escrever sobre a
palavra goby, estava lendo dois
capítulos do livro Masculinidad femenina (título em espanhol), do
pesquisador J. Jack Halberstam49, em especial o primeiro capítulo, que
trata exatamente de introduzir os argumentos do autor no que se refere à
possibilidade de a masculinidade existir – ou nos termos de Judith Butler,
ser performada, a despeito do corpo do homem (o homem cisgênero).

48 Publicado em 21 de agosto de 2013.


49 HALBERSTAM, J. Masculinidad femenina. Trad. Javier Sáez, Barcelona-Madrid: E.
Egales, 2008.

113
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

Esse pesquisador vai afirmar, com o auxílio de alguns estudos


disparadores sobre masculinidade vivenciada por mulheres, que, no filme
007 contra Goldeneye – e poderíamos estender o exemplo para todos os
filmes da franquia –, a masculinidade do agente Bond, o protagonista da
saga, não tem nada de concreta em si mesma, estando dependente, a todo
o momento, de acessórios, ou próteses de masculinidade: talvez um relógio
que dispara raios laser, um paletó blindado, um cadarço letal etc. Halberstam
evidencia que Bond termina por se apresentar como “uma paródia ou uma
revelação da norma”, e que quem consegue interpretar a masculinidade de
uma forma mais contundente é a personagem “M”, a chefe mandona que
“encabeça” – uma cara palavra do repertório patriarcal, as missões do agente
(lembrem-se, por exemplo, do discurso religioso que afirma ser o homem
“o cabeça” da mulher).
Em seguida, Halberstam traz à tona o exemplo dos “chicazos”,
palavra costumeiramente utilizada em contextos de fala espanhola, para
designar “meninas ou adolescentes com características físicas e aspecto
masculino, com um comportamento parecido ao dos meninos, ou que
realiza atividades que se supõem próprias de meninos” (p. 27, a tradução é
minha). Os “chicazos”, afirma, permitem que os modelos hegemônicos de
masculinidade sejam postos sob suspeita, tensionando a normatividade de
gênero, quer dizer, os regramentos sociais que dizem de que maneira devem
ser os gêneros.
E um parêntese é necessário. Há uma tendência a crer que, em se
comparando as meninas masculinas com os meninos femininos, aquelas
seriam mais toleradas, já que características masculinas em corpos de
mulheres são valorizadas. Por exemplo, uma mulher que seja decidida,
forte, valente, qualidades comumente reputadas ao gênero masculino, é
desejável e socialmente valorizado. Contudo, Halberstam sustenta que é na
adolescência que se dá, de forma mais pontual, posto que é nesse período
da vida que se processa a puberdade, o policiamento de gênero, quando a
menina-mulher precisa ser moldada, ensinada a desempenhar suas futuras
tarefas como esposa e mãe, a cuidadora do lar, o lugar da. E aqui já vemos
que a feminilidade nada tem de natural, mas sim é moldada, ensinada e
reforçada durante esse período da vida (e não só durante a adolescência,
pensem, por exemplo, nos reiterados discursos midiáticos que a indústria
dos cosméticos faz com vistas a instituir um único modelo de mulher,
aquela sempre bela e perfumada).
Não me interessa apontar se são as meninas masculinas ou os meninos

114
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

femininos quem mais desestabilizam a matriz de inteligibilidade dos


gêneros e das sexualidades; vale dizer, entretanto, que em uma sociedade
organizada a partir de relações em torno do falo, do poder e da autoridade
do homem, calcada no patriarcado – e, como outro parêntese, a força do
patriarca não diminuiu, como se vem alentando em alguns círculos dos
movimentos sociais, antes ganhou novas máscaras, ou velhas máscaras
novamente envernizadas –, meninos femininos são sobremaneira
indesejáveis e problemáticos.
De qualquer maneira, “as sapatinhas” ou lekinhas, pra fazer uso de
algumas expressões pertencentes ao repertório do pajubá, os “chicazos”,
apontam não para um desejo de usurpar o poder reputado ao homem,
tampouco para um símbolo de patologia, as “invertidas”, mas, antes, para
outras possibilidades de masculinidades, descoladas do corpo do homem
cisgênero, cuja maior potência reside na intervenção nos processos de
outorga de um gênero a um corpo e, em última instância, na definição da
humanidade de alguém, isto é, em sua inteligibilidade.
Essas observações sobre as lekinhas valem, também, para as mulheres
masculinas, cuja visão em muitos círculos, infelizmente alguns deles gueis
e lésbicos, é, ainda, hostilizada. E acerca disso vale a pena abrir um outro
parêntese. O movimento feminista, por um largo tempo, visando a um
integracionismo de pinta burguesa, rejeitou as mulheres masculinizadas, as
machonas, caminhoneiras, scania. A rejeição se dava tanto por esse motivo,
o da assimilação, o de uma maior aceitação das lésbicas na sociedade e do
próprio movimento LGBT como um todo, quanto por um medo que os
movimentos de lésbicas tinham de ter suas identidades sexuais associadas à
doença, ao conceito de inversão, conceito cunhado no centro dos discursos
médicos coincidentemente com o conceito de homossexualidade masculina
no final do século XIX e início do século XX. Movimento similar ocorreu
(ocorre ainda?) nos círculos de gueis visando a exatamente obter uma
aceitabilidade mais ampliada da sociedade no que diz respeito às relações
homossexuais.
O investimento em pautas como o casamento igualitário e a adoção
de crianças por esse tipo de casal são disso indícios. Nessa perspectiva,
é desejável que as lésbicas sejam femininas, se possível super femininas,
demonstrando para a normalidade sexual que a “essênciamulher”, o “ser
mulher”, está no corpo a despeito da lesbianidade, e que os gays sejam
masculinos, “homens de verdade”, preservando, também, o estatuto social
do macho.

115
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

A masculinidade feminina, nesse sentido, irrompe como um turbilhão


de águas para retirar a feminilidade e a masculinidade de “seus lugares”,
indicando a possibilidade de um leque muito grande de maneiras de se
experienciar os gêneros (eis o som do leque: trah!). Halberstam mobiliza
um repertório teórico de filiação pós-estrutural, com o qual me identifico,
como apontei no início do texto, que nomeia a masculinidade do homem
branco, burguês e heterossexual não como “hegemônica”, mas sim como
“dominante”, e as masculinidades possíveis, como é o caso das masculinidades
femininas, de “alternativas”. Nesse ponto, vale a pena explicar as tênues,
mais importantes, diferenças entre esses termos.
As masculinidades femininas tomadas enquanto “alternativas” apontam,
e aqui recorro a Foucault, para desenvolver o argumento, não para um desejo
de tomar a masculinidade hegemônica para si, de reivindicá-la enquanto
poder e privilégio, mas sim para propor, com a força da performance,
possibilidades outras, não cobiçando os privilégios de dominação próprios do
patriarca. Perceber as mulheres masculinas, portanto, como pessoas desejosas
do lugar do homem burguês e heterossexual é reduzir as masculinidades
femininas a simples cópias, simulações, da masculinidade dominante. Essa
masculinidade, a dominante, nada mais é do que exatamente um modelo
dominante, cuja genealogia pode ser apontada na história, portanto, não
tendo nada de natural ou legítima. Se tem chão histórico, refuta-se a verdade
naturalizante.Feitas essas reflexões, o e a leitor/a deve estar pensando: e as
goby? Bem, as pessoas que se identificam com essa palavra, uma categoria
identitária, já que, como me narrou a companheira de Vitória da Conquista,
parte do movimento reivindicou-se goby, demonstram muito mais o desejo
de romper as fronteiras das identidades políticas centradas no desejo e na
prática sexual – a identidade lésbica, que apenas deflagra a emergência de
um novo movimento ou uma nova composição na sigla LGBT. As goby,
como tenho observado em conversas com amigas que se identificam como
lésbicas, e também a partir de pesquisa em fóruns de discussão na internet,
têm revelado que a categoria goby tem uma potência política muito
interessante, e talvez mais agregadora, pois chama para si não apenas as
mulheres lésbicas masculinas, mas também aquelas que, declaradamente
heterossexuais, rejeitam a feminilidade enquanto intrínseca a seus “corpos
biológicos”. Isso demonstra, portanto, que o gênero pode ser experienciado
apesar do desejo e da prática sexual.
e no caso da homossexualidade masculina o que es-
tá em xeque, enquanto violação da normatividade sexual, é mais uma

116
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

questão de feminilidade, isto é, “pode até ser viado mas que seja homem!”,
no que se refere às goby, o que se destaca é a masculinidade poder ser
vivenciada para além da lesbianidade, o que desnaturaliza o “corpo biológico”
da mulher da obrigação de ser feminina. É uma potência política fantástica
essa a da goby! E aí provoco: poderiam os meninos gueis afeminados serem
goby? Poderiam eles gozar da prerrogativa de, quando desejável, performar
a masculinidade, ou é a feminilidade uma obrigatoriedade em seus corpos?
Boas reflexões e um beijo bem masculino em todxs xs goby do Brasil!

117
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

ENCOXADORES DE HOMENS50
CARLOS HENRIQUE LUCAS LIMA

Os recentes casos de violência sexual cometidos contra mulheres nas


linhas do metrô de São Paulo, amplamente noticiados pelos veículos de
comunicação de massa, têm revelado de modo muito explícito que vivemos
ainda em uma sociedade que alimenta em seus homens a ideia de que eles
são superiores a outros corpos, podendo deles fazer uso quando e onde
desejarem. Como não se chocar, portanto, com essa sociedade que autoriza
seus homens a se sentirem superiores e, dessa maneira, donos dos corpos de
negrxs, crianças, nordestinos, mulheres, homossexuais e outras “minorias”?
As diversas notícias sobre os abusos nas linhas do metrô de São Paulo,
bem como na Companhia de Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM),
quase sempre destacam a audácia dos abusadores que, como que possuidores
de uma carta de crédito, um título de propriedade, estendem a mão e fazem
uso de suas mercadorias, nesse caso os corpos de mulheres. Esses episódios
me lembraram das figuras e imagens que circulam no imaginário da cultura
de massa sobre o período da escravidão no Brasil: um senhor branco, muito
vigoroso e austero, quase sempre com chicote às mãos e camisa meio aberta,
que se aproxima de uma de suas muitas pretas escravas desejando-lhe o
corpo. É como se de uma reatualização dessa imagem se tratasse. Uma
reatualização de práticas coloniais que queremos enterrar no fundo das
mofadas folhas dos livros de história. E aí nos deparamos com os episódios
dos abusos no metrô, que talvez fiquem conhecidos como “os encoxadores”,
que nos empurram para a frente de um passado que retorna como outra
coisa mais sofisticada e cruel.
Mas eu nomeei este pequeno texto de “os encoxadores de homens”, em
uma tentativa de inverter a lógica – sensacionalista, diga-se de passagem
– das notícias sobre os abusos no metrô de São Paulo e chamar a atenção
para o fato de o corpo do homem, diferente do corpo da mulher (e de
outras “minorias”), não estar no rol daqueles passíveis de serem molestados,
violados, reclamados como posse e, por isso, coisificados.

50 Publicado em 23 de março de 2014.

118
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

O corpo do homem representa o local do privilégio do exercício


da masculinidade, uma máquina desejante que pode ter e tomar o que
quiser. Segundo o que tenho acompanhado das investigações da polícia
até o momento, os encoxadores se reúnem em páginas do Facebook e no
Whattsapp para trocar técnicas de “encoxamento” e dicas dos melhores
locais e horários para as ações. As mulheres, sobretudo aquelas que mais
se afastam da branquitude, se constituiriam nos alvos prediletos dos
encoxadores.
Mas, e se os encoxadores não fossem de mulheres, mas sim de
homens? O que ocorreria? Como reagiriam os meios de comunicação,
como receberíamos tal notícia? Em notícia publicada em 20 de março de
2014, na página online do “Estadão”, lê-se o seguinte título para tentar dar
conta de um encoxamento “diferente”: “Até homem e mulher mais velha
são vítimas de abuso sexual no metrô” (a marcação é minha). Note-se que
o espanto é tamanho, que foi preciso apontar a excepcionalidade do abuso
com o emprego do advérbio “até”, dando a ideia de uma inclusão chocante
na lista de alvos de abuso dos encoxadores.
Chocante exatamente porque se o corpo do homem passa a ser objeto
de violação, é como se os direitos de propriedade inerentes à masculinidade
(e à branquitude) fossem suspensos, desautorizados. E isso, em uma
sociedade que ainda vive à luz, sim, à luz e não “à sombra”, de práticas
coloniais, representa algo que choca a opinião “pública”, este super cidadão
fabricado pelos próprios veículos de comunicação.
Esse caso, e até agora é apenas um dentre os noticiados, de encoxamento
de homem, nos provoca a questionar os privilégios que o corpo do homem
ainda exerce em nossa sociedade; nos leva a problematizar o exercício de
poder do homem sobre as mulheres e sobretudo aquilo que é percebido
ou se apresenta como feminino: como os corpos dos homossexuais, por
exemplo.
Não é o caso aqui de comemorar o encoxamento de alguém, nem de
incentivar a violência sexual contra corpos de homens, mas sim de provocar,
cotidianamente, em nossa vida em sociedade, pequenos encoxamentos
políticos no interior dos privilégios e do poderio da masculinidade e da
branquitude. Encoxar o homem significa desautorizar o seu poder.

119
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

QUEM TEM MEDO DO MENINO


AFEMINADO? – UMA FÁBULA DE
HORROR E MEDO51
FÁBIO FERNANDES

Mexendo em arquivos e fotos antigas, caixas e velharias de infância,


recheadas de memórias, acessei algumas dessas lembranças que fazem
desse passado de muitos uma crônica tortuosa, dolorosa e passível de
ser apagada, totalmente esquecida. As vivências, os enfrentamentos e as
violências sofridas por meninos afeminados e a guerra declarada contra
esse ser inocente(?) – e aqui faço uma referência direta a um artigo do
sociólogo peruano Giancarlo Cornejo, A guerra declarada contra o menino
afeminado.52
Decidi abordar esse tema não somente por ser professor do ensino
básico, mas também por ter vivido na pele a experiência de ser o estranho no
ninho, o menino afeminado que estava fora dos padrões de masculinidade
exigidos, cobrados e constantemente vigiados. E quando eu percebi isso?
Bom, vou então contar a vocês a história desse “monstrinho” e mais alguns
segredos desta floresta mal-assombrada que nos rodeia…
Era uma vez um menino afeminado (nesse caso, também uma futura
bicha) que exibia um certo “jeitinho de ser”… ele era tão diferente (?) que
começou a causar medo e terror em muitas pessoas. Ao completar nove
anos, precisou mudar de escola; seu novo percurso era uma jornada que
custava a saída de seu reino, a zona de conforto na qual sentia-se protegido
por família e amigos, e foi a partir dessa entrada em um território muito
hostil que ele se deparou com um mundo mais perigoso do que o imaginado
e contado em contos de fadas.
Ele precisava ir de um bairro a outro para chegar ao mundo encantado
do conhecimento, mas nunca desanimou, pois força de vontade e alegria
(e como era alegre essa futura bicha!) sempre a acompanharam em seu

51 Publicado em 2 de janeiro de 2013.


52 Íntegra do texto pode ser lida em http://www.ufscar.br/cis/2011/04/a-guerra-declarada-
contra-omenino-afeminado/

120
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

caminho e ele estava muito excitado em desbravar novos territórios. Mas


não, não sem passar por perrengues de causar inveja a muita heroína de
conto de fadas.
O menino afeminado nunca imaginou que pudessem descarregar tanta
raiva e ódio em alguém, ainda mais ele, sempre tão gentil e acarinhado
por todos ao seu redor. Era notório o seu desejo de se destacar, sua alma
de artista que o fazia participar de tudo na escola: gincanas, festivais,
coreografias, peças de teatro, quadrilhas de São João etc. É aí que começa a
tormenta de nosso monstroherói: certa vez, um outro menino, maior e mais
forte, decidiu mostrar a ele que “se comportar feito uma menina” era errado
e proibido. Viadinho! Viadinho! Viadinho! Aquela palavra soou como um
golpe e, num crescendo de violência, vieram dias mais sombrios. Eventuais
empurrões, tapas e socos na entrada, no caminho e nos corredores da
escola… e o medo. Medo de ir à escola, medo de ser xingado, violentado,
diminuído. E por quê? O monstro do menino afeminado ousou enfrentar
o príncipe da masculinidade hegemônica, numa batalha não menos que
épica. E traumática.
Os meninos afeminados desafiam o poder da masculinidade hegemônica
– conceito elaborado pela cientista social Raewyn Connell – denunciando
sua opressão e o seu caráter de mentira, pois inventada, disfarçada de
verdade absoluta e irrefutável. Começo afirmando que as masculinidades
são múltiplas, assim como as feminilidades e outras identidades de gênero
para além dessa divisão binária.
Dentro do universo múltiplo das masculinidades há um projeto de
poder, uma corrida para alcançar o topo do ideal de dominação, o que
envolve outros marcadores além da oposição homem/macho opressor e
mu-
lher/fêmea subordinada (e também a bicha afeminada, é claro).
Não basta ser homem, viril e másculo. Uma intersecção entre classe
social, cor da pele, geração, religião e nacionalidade, juntamente com as
não menos problemáticas categorias gênero e sexo, produzirão hierarquias
e essa equação vai determinar qual carne tem mais (ou menos) valor no
mercado.
Essa hierarquização social foi eficientemente estabelecida pelos
discursos religiosos, legais, médicos e biológicos que se esforçaram para
consolidar a noção de que pessoas negras e mulheres eram naturalmente
incapazes, inferiores e dependentes (as bichas, as sapatas e as identidades

121
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

trans, situadas fora da heteronorma, são a bola da vez nesses discursos). A


produção econômica, cultural, científica e política sempre foi o palco de
homens brancos, másculos, heterossexuais, cristãos, aba$tados e residentes,
de preferência, em países considerados de primeiro mundo.
Esses seres “iluminados” têm os seus privilégios de poder garantidos
pelas bênçãos do Estado, das religiões e também pela máquina de produção
e consumo capitalista (braço da sociedade que está presente em todas as
etapas de nossa existência).
Alguém consegue efetivamente corresponder a esse padrão de
masculinidade dominante? Essa eterna exigência para desempenhar o
papel do Super-Homem
(re)produz violência no outro e ao mesmo tempo violenta e pesa
sobre si mesmo. Violenta porque oprime esses mesmos homens que a (re)
produzem, sejam eles heterossexuais ou não, forçando a construção, sob
um esforço hercúleo, do papel de um sujeito impossível, o macho alfa
eternamente vigiado e imediatamente punido diante de qualquer “deslize”,
seja uma cruzada de pernas mais extravagante, uma desmunhecada, uma
demonstração de carinho por outro homem etc.
A constante autovigilância produz policiais da masculinidade, alertas,
legitimados e embrutecidos por essa mesma lei opressora: “se eu devo ser
macho, você também DEVE ser! Honre as bolas e o pau que você carrega
entre as pernas!”. Essa ficção, que se impõe como natural, é a de um ideal de
gênero que implica em consequências bem dolorosas (e até mesmo fatais
para muitos). E se eu estou afirmando que essa violenta masculinidade
hegemônica é uma ficção de gênero, uma mentira, é também porque ela
pode, e deve, ser problematizada, questionada e desconstruída.
Mas devemos nos perguntar, a quem interessa a manutenção do macho
Super-Homem e todo esse poder atribuído a ele?
A jornada do nosso pequeno menino-monstro contra o príncipe da
masculinidade hegemônica se revela apenas mais um capítulo de tantas
histórias que se repetem por aí… e nem sempre com finais felizes. Depois
de inúmeras batalhas, o menino afeminado cresceu, não sem sentir a
crueldade dos outros seres da floresta. Apesar de tanta angústia, sofrimento,
lágrimas e o constante medo de apanhar ou ser xingado e humilhado, a
superação veio no formato da melhor das cicatrizes: o fortalecimento.
Ser forte e resiliente eram as únicas formas de sobreviver sendo caçado o
tempo todo, mas isso não significou um aprendizado em artes marciais ou

122
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

um crescimento e enrijecimento dos músculos: sua força era mesmo a sua


autor-resistência, até porque há tempos desistiu de ser o macho que todos
esperavam que fosse.
O menino afeminado (que ainda não havia chegado à etapa de ver-se
como uma bicha, apesar da pressa do mundo em rotulá-lo assim) achou
que mais uma mudança de escola, por conta do ingresso no ensino médio,
resolveria seus problemas e até mesmo pudesse passar despercebido. Ledo
engano. Apesar de sofrer menos com a violência física de outrora, a polícia
da masculinidade estava lá em toda a parte, dos olhares de reprovação e
risos perversos à injúria, os xingamentos que ainda ecoavam forte em sua
cabeça.
Começava a surgir nele a compreensão de que não havia algo de errado
em si, que o monstro pintado pelo mundo podia tentar ser feliz sendo/
estando/performando como o “patinho feio”. E foram muitas as mudanças
diante dessas novas autodescobertas…
Mudanças, descobertas, enfrentamentos. Perceberse “monstro” é na
verdade valorizar a diferença que marca cada ser humano. Caminhando
por essa via, por que não pensar na existência de múltiplas representações,
formas de existências e diversas combinações para além de paus e bucetas
associados respectivamente a uma masculinidade e uma feminilidade
“puras”? Seria possível viver masculinidades em corpos considerados
femininos e feminilidades em corpos considerados masculinos sem as
sanções de uma lei inflexível? Seria possível até mesmo ultrapassar esses
rígidos limites binários?
Quais as possibilidades de sermos humanos plurais de fato, existindo
sem o medo, a angústia, a violência e a segregação que mata “silenciosamente”
aquilo que temos de melhor, ou seja, a capacidade de criar, recriar, reinventar-
se, livres de amarras opressivas e limitações.
A corrida pelo poder e os seus privilégios gera dores e carências, minhas
queridas/os. Aproximar-se dessa impossível masculinidade hegemônica
impõe custos, sofrimentos e cria também outras masculinidades: periféricas,
marginais, distantes do ideal porque falham na consecução de um ou mais
pré-requisitos (cor da pele, poder aquisitivo ou orientação sexual, por
exemplo).
Mesmo uma voz considerada mais fina pode ser a razão para um
sujeito ser massacrado; gostar de brinquedos e elementos que foram
determinados a ser do mundo feminino também pode gerar agressões

123
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

diversas. A percepção da coexistência entre paradoxos de dor e prazer,


oprimir e ser oprimido pode produzir ferramentas de enfrentamento a essa
masculinidade dominante e criar possibilidades de mudanças sociais.
Aí voltamos à guerra declarada contra o menino afeminado. Ele causa
medo, apreensão e consegue ser ao mesmo tempo um inocente, mas poderoso
golpe contra a noção naturalizada de que corpos com pênis devam ser/
se comportar de acordo com o “gênero puro” relacionado à masculinidade
hegemônica. Por outro lado, esse menino deve ser curado, pois é uma
mancha, um vírus, o monstro corruptor que denuncia a artificialidade das
categorias de sexo e gênero. Quem ele pensa que é para revelar segredos tão
sagrados? Esse monstro precisa ser capturado, domesticado e moldado para
ser macho. Quantos nunca ouviram um “anda como homem, menino!”,
“fala como homem, menino!”, “SEJA HOMEM, MENINO!”. A fera
precisa virar um príncipe.
Atualmente, pode-se até ser gay, mas que SEJA HOMEM! O corpo
do menino afeminado é, portanto, patologizado e culpado pela violência
que sofre! Ah, mas se você não requebrasse, se sua voz não afinasse, se você
não rebolasse, se você não fosse desse jeito… mas você é José! Você é um
viadinho, José!
Angústia, solidão, sensação de inadequação, dor, sofrimento. A
solução dada por muitos pais, psicólogos e professores é o apagamento
das características que tornam essa criança um “menino diferente”. Ser
diferente tem um preço, e para alguns o aplacamento dessa dor virá até
mesmo com o suicídio, como no caso de Rolliver de Jesus, 12 anos, que
se enforcou com o cinto da mãe, em 2012, na cidade de Vitória, Espírito
Santo, por não suportar a pressão diante da imensa violência homofóbica
que sofria.
É importante destacar que esse menino afeminado – que não
necessariamente se identificará como homossexual ou uma pessoa trans/
travesti – é forçado a confessar uma “verdade interna”, uma verdade sexual
e de gênero sobre si, mas essa é uma verdade que não lhe pertence. Essa
verdade é o “fato” de uma cultura que força uma confissão não somente para
perdoar ou condenar, mas para dizer quem manda nesse jogo (e quem você
deve SER para vencer nele).
Não faltam culpados para o afeminamento desse menino, seja o
pai ausente, a mãe superprotetora ou o diagnóstico de “transtorno de
identidade de gênero na infância”. O sociólogo peruano Giancarlo Cornejo
anuncia que o berço de um menino viadinho é a lápide de um menino

124
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

heterossexual. E os violentos sistemas normativos de gênero e sexualidade


vigiam, caçam, prendem e punem esse assassino, muitas vezes com a
pena de morte. No entanto, tais monstrinhos nem sempre são mortos,
invisibilizados ou “readequados” para serem homens de verdade. Esses seres
denunciam o monstro maior que oprime e quase nunca é problematizado
ou questionado: o da lei opressora da masculinidade hegemônica. Ah, e
sobre o menino afeminado da fábula, ele continua sendo uma fera, mas não
dispensa um príncipe (ou mais de um) caso apareça.

125
POLÍTICAS E
MOVIMENTOS SOCIAIS
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

AO COMBATER A “CURA GAY”, SEU


ARGUMENTO DIFERE DO USADO
PELOS FUNDAMENTALISTAS?53
LEANDRO COLLING

Como podemos aproveitar a aprovação do tal projeto de “cura gay”, na


Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados,
para colocar em pauta uma discussão mais ampla sobre o campo das
sexualidades, que ainda está ultra marcado por um determinado discurso
hegemônico oriundo da área da saúde?
E como podemos qualificar o debate e nos diferenciar dos argumentos
dos fundamentalistas religiosos? Ao criticarmos o projeto, estamos
necessariamente apresentando à sociedade outra forma de pensar sobre
as sexualidades? Ou reforçamos velhos argumentos que historicamente
oprimiram e ainda oprimem as pessoas LGBT e heterossexuais que não
vivem dentro de um restrito padrão? Pensar um pouco sobre essas questões
é o propósito deste texto.
Como vocês sabem, no último dia 18 de junho de 2013, os
fundamentalistas religiosos, que comandam a Comissão de Direitos
Humanos, conseguiram aprovar o tal projeto de lei da “cura gay”, que
pretende permitir, de forma flagrantemente inconstitucional, legislar sobre
uma profissão e permitir que psicólogos do Brasil façam terapias para
tornar as pessoas homossexuais em heterossexuais.
O projeto de decreto legislativo, do deputado João Campos (PSDB-
GO), suspende dois trechos de resolução instituída em 1999 pelo CFP
(Conselho Federal de Psicologia). O primeiro trecho que o projeto pretende
retirar afirma que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que
proponham tratamento e cura das homossexualidades”. O texto aprovado
da Comissão também quer anular o artigo que determina que “os psicólogos
não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos
meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais

53 Publicado em 23 de junho de 2013.

129
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

existentes em relação aos homossexuais”.


Como todos sabem, a Organização Mundial de Saúde, em 17 de
maio de 1990, retirou o “homossexualismo” da lista de doenças. Desde
1985, o Conselho Federal de Psicologia não considera a orientação sexual
homossexual como doença. Mas por que a homossexualidade não é uma
doença? Como responder a essa questão sem se filiar ao modo como os
próprios fundamentalistas explicam as sexualidades? A resposta para essas
questões parece simples, mas nem sempre o é. A homossexualidade é uma
forma de vivenciar a sexualidade tão legítima quanto a heterossexualidade
ou a bissexualidade, para ficarmos apenas nas três orientações sexuais
mais conhecidas. Se a homossexualidade deve ser curada, portanto, a
heterossexualidade também poderia ser curada.
No entanto, para combater o discurso de que a homossexualidade é
doença, não podemos cair no erro de dizer que ela é tão normal quanto
a heterossexualidade. As orientações sexuais e as identidades de gênero
não são normais ou naturais. O que queremos dizer com isso? Que somos
todos doentes? Não. Queremos evidenciar que todas as orientações sexuais
e identidades de gênero sofrem interferências de normas de conduta,
regulamentações, leis e códigos que foram construídos e reconstruídos
pelos homens ao longo do tempo.
A tentativa de voltar a considerar a homossexualidade como uma
doença é só mais uma prova de como os outros, em geral determinados
heterossexuais, se articulam para determinar o que é saudável ou não. Ou
seja, doença também é um construto cultural e esse projeto aprovado na
Comissão evidencia que o que marca a sexualidade não é a liberdade e a
dita normalidade, mas a regulação, a disciplina, o controle de uns sobre os
outros. Na minha percepção, esse debate ainda é pouco realizado por quem
combate o projeto de “cura gay” e pelas demais pessoas interessadas na
temática das sexualidades em geral. E por que isso ocorre? Poderia elencar
várias razões, mas escolhi apenas uma para desenvolver hoje.
Na minha leitura, resistimos a ampliar o debate sobre normalização,
normatização, naturalização etc sobre o campo das sexualidades porque
ainda estamos, a rigor, reféns de discursos de determinadas áreas do campo
da saúde e dos religiosos. Sobre os discursos religiosos nem vou falar agora,
pois pretendo me ater ao modo como, subjetivamente, não conseguimos
escapar dessas armadilhas do saber hegemônico do campo da saúde.
Reparem, por exemplo, na quantidade de notícias que nós
consumimos, todos os dias, de profissionais do campo da saúde falando

130
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

sobre as sexualidades, quase sempre ligando isso às questões das doenças


sexualmente transmissíveis, campanhas de combate ao HIV etc e tal. E se
ampliarmos as notícias sobre outros temas dos nossos comportamentos e
da nossa vida em geral, sempre está lá alguém do campo da saúde dizendo
o que é doença ou não e, via de regra, mandando você ir a um médico que
vai, quase sempre, receitar um remedinho para você tomar e alimentar a
imensa indústria farmacêutica.
Ou seja, nós vivemos sob e hegemonia de um discurso patologizante
e medicalizante sobre as nossas vidas em geral e sobre a sexualidade em
particular. E isso faz inclusive com que, para combater o projeto de “cura
gay”, reforcemos a ideia de que o que é doença é a homofobia, ou que quem
está doente são os fundamentalistas, como defendem muitas mensagens
nas redes sociais.
Ora, ao fazer isso não estamos apresentando uma outra forma de pensar
a sexualidade, pelo contrário, estamos reforçando um discurso patologizante
sobre o nosso campo. O próprio conceito de homofobia colabora nesse
sentido, pois as fobias são consideradas como transtornos cujo tratamento
recomendado, em muitos casos, é a psicoterapia.
E observem quem os jornalistas entrevistam prioritariamente para
falar sobre esse tal projeto de “cura gay”. Quase sempre são profissionais
do campo da saúde, que servem como peritos com verdades sobre as
nossas sexualidades. Todo o imenso saber acumulado pelo campo das
humanidades em relação às nossas sexualidades raramente é acionado pelos
jornalistas e pela sociedade em geral para pensar os temas das orientações
sexuais e das identidades de gênero. Todo esse conhecimento do campo das
humanidades parece apenas ser puro blá-blá-blá, não é ciência, é coisa de
viados e sapatonas que não têm o que fazer na vida.
E boa parte desse campo da saúde resiste com unhas e dentes para
não perder o poder e a verdade sobre as nossas sexualidades. É claro que
existem exceções dentro do campo da saúde, e o próprio CFP é uma delas,
mas uma mostra contundente disso é que a Organização Mundial da Saúde
retirou a homossexualidade do roll de doenças, porém ainda considera a
transexualidade como uma patologia. Ou seja, uma forma de vivenciar a
sexualidade e os gêneros ainda é considerada doença por segmentos desse
mesmo saber do campo da saúde que agora se posiciona contra o tal projeto
de “cura gay”. Contraditório não é?
Moral da história: se quisermos combater o projeto de “cura gay” com
argumentos que realmente se diferenciam dos fundamentalistas em todos

131
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

os aspectos, é fundamental acionar outros saberes, outras reflexões e modos


de pensar as sexualidades. E eles estão aí disponíveis em livros, artigos,
filmes, entrevistas, reportagens e blogs.
Chega de explicar as sexualidades apenas pelo campo da saúde. Esse
campo não para de inventar novas doenças. Nas redes sociais, por exemplo,
leio que uma geneticista (de novo) defende a possibilidade de considerar
como doença as próprias crenças dos fundamentalistas religiosos. Preciso
dizer mais alguma coisa?
E, além disso, precisamos lutar para que as pessoas transexuais
também deixem de ser consideradas doentes. O CFP também está nessa
luta. Enquanto isso permanecer, as pessoas não-heterossexuais e trans
continuarão marcadas como as anormais em contraposição aos normais
e saudáveis cis e heterossexuais. É essa contraposição que precisa ser
problematizada e combatida, nem que seja com protestos e vinagre nas
mãos, pois as bombas, pimenta e balas de borracha já estão sendo jogadas
há séculos.

132
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

DESCONSTRUINDO AS IDEIAS
DO LIVRO DE CABECEIRA DOS
FUNDAMENTALISTAS RELIGIOSOS54
LEANDRO COLLING

Meu texto irá tratar sobre o livro A estratégia – o plano dos homossexuais
para transformar a sociedade, recentemente publicado no Brasil pela editora
Central Gospel Ltda, de autoria do reverendo norte-americano Louis P.
Sheldon. O livro revela porque estamos vendo hoje no Brasil uma grande
articulação de determinados fundamentalistas religiosos para tentar barrar
o avanço de direitos e cidadania plena para a população LGBT. Você verá
aqui como esse livro tem servido para fomentar o ódio, a discriminação, a
intolerância para com qualquer pessoa que não viva dentro de um conjunto
bem rígido de normas.
O reverendo Sheldon tem o explícito objetivo de convocar os religiosos
do mundo para lutar contra os direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais ou qualquer outra pessoa que não viva dentro de um modelo
muito restrito de heterossexualidade, que pressupõe, por exemplo, o sexo
apenas depois do casamento. Para tentar atingir o seu objetivo, recorre
a algumas controversas ideias religiosas, distorce uma série de dados
e, principalmente, mente sobre outra série de evidências históricas,
amplamente estudadas e conhecidas pela sociedade. Tudo isso é feito para
atingir o seu grande objetivo, explícito já na página 6. Diz ele: “(…) não são
apenas os terroristas estrangeiros que devemos temer hoje. Os radicais mais
perigosos que ameaçam nosso estilo de vida são aqueles que vivem entre
nós (…) e você pode ter certeza de que eles nos destruirão se não tomarmos
medidas para derrotar o movimento radical deles agora”.
Sheldon, em vários momentos, defende que a homossexualidade não é
“natural e normal”. Cita, inclusive, alguns estudos acadêmicos que tentaram
descobrir o “gene gay”. Para Sheldon, uma vez que ainda não se descobriu
uma causa genética para a homossexualidade, os LGBTs não são normais e,
por isso, devem ser curados e não devem ter direitos. Ele defende, inclusive,

54 Publicado em 30 de agosto de 2012

133
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

na página 28, que a homossexualidade volte a ser considerada uma doença.


Na página 251 defende que a homossexualidade seja tratada e na página
114 revela que ele próprio já realizou “terapias recuperadoras” em sua igreja
nos Estados Unidos.
Como todos sabem, no dia 17 de maio de 1990, a Organização Mundial
de Saúde (OMS) retirou o “homossexualismo” da lista internacional de
doenças. No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia emitiu a resolução
01/1999, que proíbe qualquer psicólogo realizar algum tratamento para
reverter a homossexualidade de algum paciente55.
Realmente, os estudiosos da sexualidade ainda não chegaram a um
consenso sobre se existe ou não algum componente genético que interfira
ou gere a orientação sexual homossexual. Mas isso jamais pode ser uma
razão para defender a patologização, a violência e o ódio para com as pessoas
LGBTs. Os/as estudiosos/as não possuem respostas “genéticas” para a
homossexualidade, mas oferecem muitas outras respostas sobre como as
pessoas, ao longo de suas vidas, passam a ter determinada orientação sexual
e determinada identidade de gênero.
Diversos estudos56 apontam que existem diversas orientações
sexuais e identidades de gênero com as quais uma pessoa pode vir a se
identificar. Nesse processo de identificação não existe apenas um fator ou
ator social que influencia as pessoas. Trata-se de um complexo processo
de identificação. Portanto, qualquer orientação ou identidade é legítima.
A heterossexualidade é tão legítima quanto a homossexualidade, a
bissexualidade ou a travestilidade. Todas são formas de vivenciar as
múltiplas sexualidades e os gêneros.
Por isso, se a pergunta é qual a causa da homossexualidade,
deveríamos também nos perguntar, como já fazia Freud, quais as causas
da heterossexualidade. Assim como não existe consenso sobre a existência
de um “gene gay”, também não existe um “gene heterossexual” e nem por
isso os heterossexuais devem deixar de ser respeitados. Ou seja, o que
efetivamente sabemos, e o livro de Sheldon é mais uma prova empírica
disso, é que determinados setores da sociedade exigem que todas as pessoas
devem ser heterossexuais. Por isso, a heterossexualidade é que se torna uma

55 Ver em http://pol.org.br/legislacao/pdf/resolucao1999_1.pdf
56 Ver, por exemplo: BUTLER, Judith. Problemas de gênero – feminismo e subversão da
identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; LOURO, Guacira
Lopes. (org.). O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2010.

134
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

norma que todos devem seguir, que todos são obrigados a seguir.
Para Sheldon, LGBTs são um risco à sociedade porque desejam
“destruir a família”. Ao acionar o ideal de família nuclear burguesa (pai, mãe,
filhos), ele novamente distorce evidências históricas amplamente estudadas
por pesquisadores/as do mundo inteiro57. O que dizem esses estudos?
1. A família, tal qual concebe Sheldon, é também fruto de um longo
processo histórico. Nem sempre existiu essa configuração familiar defendida
por Sheldon. Basta lembrar da existência dos clãs, que são anteriores às
famílias de hoje, e dos casamentos arranjados, nos quais as noivas eram
escolhidas pelos pais do noivo;
2. As pessoas pobres, em especial as brasileiras, sabem muito bem que
esse ideal de família defendido por Sheldon é tipicamente burguês. Nossas
famílias são construídas em uma ampla diversidade de combinações, com
filhos/as sendo criados/as por avós, tios, vizinhos, amigos, ou com apenas
a presença da mãe. Ou seja, ao defender apenas um tipo de constituição
familiar, Sheldon, na verdade, atenta contra boa parte das constituições
familiares que existem em nossa sociedade, disseminando o seu ódio para
além da população LGBT58;
3. Sheldon diz: “desde a época de Adão e Eva, as sociedades civilizadas
entendem que a família consiste em uma mãe, um pai e os filhos”. Ora, além
de exigir que todos acreditem na existência de Adão e Eva, ignora que nem
sempre o homem viveu em chamadas “sociedades civilizadas” tais como
as conhecemos hoje. Trata-se de um pensamento tipicamente criacionista,
que mente sobre dados e evidências históricas amplamente estudadas por
pesquisadores do mundo, que demonstram que, ao longo da sua história,
a humanidade passou por momentos de “barbárie” e com vários tipos de
arranjos familiares;
4. Muitos gays e muitas lésbicas, ao contrário do que diz Sheldon,
gostam tanto dessa constituição familiar que desejam constituir uma, mas
dentro de uma perspectiva ampliada, um pouco diferente. Tanto isso é
verdade que o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em 5 de maio 2011, a
união estável entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. O STF entendeu que
57 Ver, por exemplo, os clássicos ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade
privada e do estado. 15ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, e LEVI-STRAUSS, CLAUDE. As
estruturas elementares do parentesco. Rio de Janeiro: Vozes.
58 Ver dados do IBGE em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_
visualiza.p hp?id_noticia=774

135
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

o artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal, veda qualquer discriminação


em virtude de sexo, raça, cor e que ninguém pode ser diminuído ou
discriminado em função de sua orientação sexual.
Ou seja, ao contrário do que apregoa Sheldon, a civilização nunca
teve como base apenas um tipo de configuração familiar, mas uma ampla
variedade de configurações familiares e de conjugalidades. Novamente fica
explícito o quanto o pensamento de Sheldon se configura em um atentado
à diversidade da sociedade como um todo, e não apenas contra a população
LGBT.
Para provocar o ódio para com a população LGBT, Sheldon defende
que os homossexuais disseminam o que ele chama de uma “cultura de
morte” ou “estilo de morte” e não “estilo de vida”. Para ele, as doenças
sexualmente transmissíveis, a depressão e até o número de suicídios de jovens
homossexuais comprovariam a sua “tese”. Para isso, ele usa de uma série de
dados estatísticos que informam que o vírus HIV e os suicídios atingem
mais os LGBT do que os heterossexuais, em especial os monogâmicos.
Para Sheldon, os homossexuais é que são culpados por serem vítimas
da Aids e por cometerem suicídios.
Trata-se de mais uma leitura absurdamente equivocada,
intencionalmente distorcida para pregar o ódio. O que os movimentos
sociais e os estudos mais respeitados informam é que a Aids vitimou e
ainda vitima mais a população LGBT porque, entre várias outras razões,
governos conservadores como o de Ronald Reagan, que Sheldon tanto
elogia, não realizaram rapidamente ações de combate à disseminação do
vírus HIV porque, inicialmente, ele estava atingindo mais os homossexuais.
Esse dado histórico, motivado pela homofobia institucional de um
governo, é solenemente ignorado por Sheldon. Foi por causa disso que um
movimento social como o ACTUP, que Sheldon desonestamente critica,
precisou realizar ações de desobediência civil para chamar a atenção da
sociedade americana sobre o que estava acontecendo naquele momento nos
EUA59. Até os cientistas políticos mais liberais defendem a legitimidade
da desobediência civil em determinados momentos dentro de uma
democracia60. Além disso, em nenhum momento Sheldon considera que os

59 Sobre esse tema, ler MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma
analítica da normalização. Sociologias. 2009, n.21, pp.150-182. Disponível em http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
60 Ler, por exemplo, RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo:
Editora Ática, 2000.

136
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

suicídios de LGBT são motivados pelo fato dos heterossexuais radicais não
aceitarem a diversidade sexual e de gênero existente em nossa sociedade.
Ou seja, dentro da perspectiva de Sheldon, LGBT se contaminam e se
matam porque querem.
Em determinado momento, ele inclusive cita que alguns gays transam
sem o uso do preservativo, o que seria prova de que os homossexuais
desejam se contaminar. Ainda que existam alguns gays que resistem ao
uso de preservativos, o que falta dizer é que não são apenas determinados
LGBT que não usam preservativos, mas também milhares de heterossexuais
fazem o mesmo e não são considerados, por causa disso, disseminadores de
uma “cultura de morte”. Além disso, Sheldon liga sempre a pedofilia com a
homossexualidade, como se essa prática, considerada criminosa, não fosse
encontrada entre a população heterossexual.
Outra ideia recorrente no livro ataca toda e qualquer ação nas escolas e
universidades que vise o respeito à diversidade sexual e de gênero. Sheldon
diz que essas ações teriam o objetivo de ensinar os estudantes a serem
homossexuais (página 12) e de promover a homossexualidade. Diz que as
universidades “estão tomadas por uma epidemia da diversidade” (página
176). Trata-se de mais uma leitura equivocada, com a evidente intenção de
disseminar o ódio homofóbico. O que os movimentos sociais e educadores
defendem é que a escola seja um local que ensine o respeito à diversidade61.
Os estudos acadêmicos, já desenvolvidos em vários lugares do mundo e
que, nos últimos anos, têm crescido muito nas universidades brasileiras,
mesmo com perspectivas metodológicas e teóricas distintas, são enfáticos ao
defender que todas as orientações sexuais e todos os gêneros são legítimos e
construídos também culturalmente.
Muitos desses estudos62 desmentem outra ideia de Sheldon, a de
que o comportamento homossexual foi proibido em toda a história da
humanidade (página 251). Há dezenas de reconhecidos estudos, todos
solenemente ignorados por Sheldon, que relatam que o sexo entre pessoas
do mesmo sexo nem sempre foi considerado algo problemático em outros
períodos históricos e sociedades. O que esses estudos apontam é que a
partir do século 19 é que a homossexualidade passa a ser patologizada e
criminalizada, através de uma impressionante sintonia entre igreja, Estado
61 Ler, por exemplo, LOURO, Guacira Lopes et al. (orgs). Corpo, gênero e sexualidade: um
debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003
62 Ver, por exemplo, FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I:
a vontade de saber. São Paulo: Graal, 2005

137
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

e cientistas.
O simples fato de promover estudos como esses e incentivar o debate
para o respeito à diversidade é entendido por Sheldon como proselitismo
gay. Historicamente, o que ocorreu e ainda ocorre é que as famílias, as escolas
e a sociedade em geral ensinam, de forma coercitiva e autoritária, que todos
sejam heterossexuais. Se existe alguma promoção em curso, há séculos, é
em relação à heterossexualidade e não em relação à homossexualidade.
Em vários trechos, Sheldon ataca o Estado Laico. Na página 89,
defende explicitamente um Estado com religião. Diz que “a separação entre
Igreja e Estado é uma mentira”, mas defende que o Estado não interfira na
religião e que os professores deveriam ter liberdade de ensinar religião aos
seus estudantes.
No final do livro, ele conclama as pessoas a se unir contra o Estado
Laico (página 222). Trata-se, portanto, de uma ideia que atenta para
um princípio base do sistema democrático. A separação entre a religião
e o Estado permitiu que a diversidade religiosa fosse respeitada, o que
possibilitou o fim de muitos e sangrentos conflitos. Portanto, a ideia de
Sheldon representa um atentado ao Estado Democrático de Direito e
violenta todas as denominações religiosas que não compactuam com as
suas leituras fundamentalistas.
Portanto, suas ideias, como podemos ver, tentam acabar com outras
expressões da diversidade existentes em nossa sociedade. Sheldon, por
exemplo, além de atacar todas as pessoas que vivem em famílias diferentes
da nuclear burguesa, vincula a decadência da sociedade com as conquistas
das mulheres (página 39), ataca os adeptos do “amor livre” (página 69) e,
ao tratar de promiscuidade, diz que as jovens usam roupas muito curtas e
estimulam os homens (página 190). Por fim, ainda critica duramente os
negros “de esquerda” (página 224) que defendem os direitos de LGBTs.
Em vários momentos Sheldon diz que o livro que mais inspira os
homossexuais é Minha luta, de Hitler. Como é de conhecimento público,
um dos principais objetivos dos nazistas era o de aniquilar todas as
pessoas diferentes, que não fossem brancas, tidas como saudáveis, fortes
e heterossexuais. Centenas de homossexuais foram assassinados pelos
nazistas. Ou seja, como poderiam as pessoas LGBTs ter como fonte de
inspiração um livro de Hitler? Por sinal, um livro proibido de circular por
incitar o ódio antissemita. É exatamente a produção do ódio o que Sheldon
faz em relação aos milhares de LGBTs existentes no mundo.

138
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

QUEM TEM “IDEOLOGIA DE


GÊNERO”?63
LEANDRO COLLING

Nos últimos anos, diversos fundamentalistas religiosos, de variadas


religiões cristãs, para combater as políticas públicas pelo respeito à
diversidade sexual e de gênero, defendem que nós temos uma tal “ideologia
de gênero” e que a queremos impor em toda a sociedade. Inicialmente
pensávamos que essas oposições estavam mais presentes nas chamadas
denominações evangélicas, em especial as neopetencostais, mas eis que, no
dia 14 de setembro de 2014, em artigo publicado em sua coluna dominical
no jornal A Tarde, Dom Murilo Krieger, arcebispo primaz do Brasil,
escreveu um texto no qual tenta desautorizar o que chama de “teoria do
gênero”64. Demonstrarei que assim ele se filiou aos demais fundamentalistas
do Brasil e do mundo, a exemplo do reverendo Louis P. Sheldon, sobre o
qual tratei no texto anterior.
Para criticar o que ele chama de “teoria de gênero”, Dom Murilo recorre
à velha e refutada ideia de que o que vale é a anatomia dos nossos corpos, ou
seja, a “biologia”, e assim defende que nascemos meninos e meninas e que
precisamos de pais e mães para construir nossa personalidade. Considera
que a “teoria de gênero” não passa de uma hipótese e no fim arremata com
uma frase misógina presente na Bíblia, em trecho que coloca os homens em
primeiro plano e que as mulheres teriam sido criadas apenas para que os
machos não ficassem sós. O texto está recheado de contradições e inclusive
erros em relação aos Estudos de Gênero, que cada vez mais se desenvolvem
no Brasil. Escolhi apenas cinco das ideias apresentadas que considero
especialmente equivocadas e preconceituosas.
Primeiro: não existe apenas uma teoria de gênero, mas uma diversidade
63 Uma versão ampliada deste texto, com colaborações de Felipe Fernandes e Silvia de
Aquino, foi publicada, no blog Cultura e Sexualidade, em 19 de setembro de 2014.
64 Leia a íntegra do texto em http://atarde.uol.com.br/opiniao/noticias/a-teoria-do-
genero-1623793. Para termos uma ideia da importância política do artigo, parlamentares da
Assembléia Legislativa da Bahia, em 2016, o citavam para justificar a retirada dos temas da
diversidade sexual e de gênero do Plano estadual de Educação.

139
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

cada vez maior de teorias, conceitos, reflexões e perspectivas sobre os Estudos


de Gênero. Nenhuma delas pode ser considerada apenas uma hipótese,
pois estão alicerçadas em pesquisas sérias e reconhecidas mundialmente e
que refletem como as vidas das pessoas realmente são (e não como a Igreja
Católica ou a Bíblia gostaria que todos nós fôssemos).
Segundo: os Estudos de Gênero não substituíram a ideia de
discriminação de sexo por discriminação de gênero. O que os estudos têm
feito é demonstrar como esses dois grandes tipos de discriminações estão
relacionados. Ou seja, as pessoas não são apenas discriminadas por terem
vagina ou pênis, mas porque a sua anatomia corporal é considerada pela
sociedade como algo que confere à pessoa características mais positivas
(como força, racionalidade para homens) ou negativa (como fragilidade,
irracionalidade para mulheres). Além disso, as pessoas que possuem um
gênero – masculino ou feminino – que é considerado como equivocado
para o seu sexo não são discriminadas apenas pelo seu sexo anatômico ou
por sua prática sexual, mas pela forma como desejam se colocar socialmente
– comportamentos, vestuário, formas de relacionamento etc.
Portanto, Dom Murilo, os Estudos de Gênero não propõem a
substituição de uma discriminação por outra, nem são motivados por
estratégias políticas nefastas. Há intenção e estratégia, sim, mas no sentido
de fazer ciência, de produzir conhecimento para superação de ideias como
as expostas em seu texto que, historicamente, vêm provocando múltiplas
violências, crimes, assassinatos e suicídios como vemos diariamente
estampados nos jornais.
Terceiro: os Estudos de Gênero mais recentes sequer trabalham com
essa dicotomia entre sexo e gênero, pois nossas pesquisas mostram que a
própria anatomia dos corpos não escapa das normas da sociedade. Nossas
pesquisas demonstram, ainda, que a cultura indica como dizer se um corpo
é masculino ou feminino. E o processo não termina nessa identificação.
Normas sociais entram em cena de forma a exigir o que seriam os
comportamentos adequados a cada caso – que aquela pessoa se comporte
como um homem ou mulher “de verdade”. Além disso, não existem apenas
corpos anatomicamente de meninos ou meninas, pois a própria “natureza”
também, por vezes, nos apresenta corpos com ambiguidades sexuais.
Tratam-se das pessoas que hoje chamamos de intersexuais, que o senhor
parece desconhecer. E essas pessoas têm sido impedidas de viver como
nasceram, pois imediatamente agimos para enquadrá-los/as como meninos
ou meninas. Resultado: os corpos são mais diversos que o senhor imagina

140
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

e sobre todos eles incidem as normas de gênero e sexualidade. O senhor


está absolutamente errado ao dizer que “biologicamente todo ser humano
é homem ou mulher”.
Quarto, e mais importante: o senhor até chega a reconhecer que
o gênero é uma construção, pois entende que as pessoas passam por
processos que as formarão como homens ou mulheres. No entanto, logo
depois diz que “é natural que o comportamento social (o gênero) esteja
em harmonia com o sexo biológico”. Outro erro crasso, vide os próprios
registros históricos a respeito da intolerância da Igreja Católica para com as
pessoas que ousaram defender princípios e argumentos diferentes daqueles
proclamados por essa instituição. As fogueiras da Inquisição podem não
mais existir nos moldes medievais, no entanto, não faltam testemunhos
sobre o perverso enquadramento social imposto a mulheres e homens para
que sejam de determinada forma e se relacionem de determinada maneira,
sempre tendo como base um único modelo de família e de relacionamento
afetivo e sexual. Trata-se da família patriarcal, heterossexual, que de natural
não tem nada. Muito menos de harmoniosa, como evidenciam os trabalhos
sobre violência doméstica e familiar. Lamentamos informar, mas milhares
de pessoas, inclusive dentro de sua Igreja, respeitam os heterossexuais mas
não desejam viver como eles, desejam viver suas identidades sexuais e de
gênero de formas distintas e querem ser consideradas pessoas dignas de
direitos.
Para finalizar, um quinto aspecto: o senhor defendeu que uma criança
necessita de um pai e uma mãe para constituir a sua personalidade. Outro
imenso equívoco que a própria psicanálise e psicologia, que o senhor
aciona sem conhecer, já elucidou há décadas. O que os estudos mostram
é que precisamos de referências tidas metaforicamente como masculinas
ou femininas, mas que esses papéis não precisam ser desempenhados por
quem tem vagina ou pênis, mas sim por qualquer pessoa, independente do
seu sexo, orientação sexual ou gênero. Ou o senhor imagina que todas as
pessoas criadas apenas por uma mãe, índice altíssimo em nossa Bahia, são
doentes?
Dito isso, pergunto: quem é mesmo que tem uma ideologia de gênero
imposta há séculos sobre todos nós?

141
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

NEM PASTOR, NEM GENETICISTA: É A


CULTURA CARALHO!65
LEANDRO COLLING

Depois de ser provocado por colegas, resolvi entrar na discussão


sobre o “embate” entre o pastor Silas Malafaia e o biólogo e geneticista
Eli Vieira. Tudo teve início por causa de uma entrevista de Malafaia à
Marília Gabriela, na qual ele defendeu que não existe um componente
genético para determinar a homossexualidade e que, por isso, a orientação
sexual homossexual seria um comportamento e, como tal, pode e deve ser
modificado e/ou curado.
Em resposta, o geneticista produziu um vídeo bem intencionado66 no
qual apresenta alguns estudos que comprovariam a tese de que “existe sim
uma contribuição dos genes na orientação sexual homossexual”. Vejam que
ele fala em “contribuição” e não em determinação, lembra que o ambiente e
a cultura também devem ser levados em consideração, mas ainda assim tem
o objetivo de defender a genética como uma área com “a verdade” sobre as
nossas sexualidades. Sabemos muito bem que isso não vem de hoje, não é?
Ou será que é preciso lembrar o que a dita ciência já produziu de “verdades”
sobre os homossexuais, negros, judeus e tantos outros “diferentes”?
Imediatamente, dezenas de militantes e pesquisadores (pasmem,
inclusive antropólogos!!!) passaram a distribuir o vídeo de Eli Vieira nas
redes sociais, a grande maioria deles para elogiar e dizer que o estudioso teria
conseguido destruir todos os argumentos de Malafaia. Pois vou defender
posições que diferem tanto do geneticista quanto de Malafaia. Sobre os
“argumentos” do último já escrevi outros textos. Leiam, por exemplo,
Desconstruindo o livro de cabeceira dos fundamentalistas religiosos. Inclusive
terei que retomar alguns trechos desse texto porque, especialmente depois do
lançamento do livro A estratégia, o discurso e as ações dos fundamentalistas
se repetem de forma muito bem organizada. Ou seja, estamos vendo se
articular e proliferar uma política anti-homossexuais no Brasil, com a

65 Publicado em 5 de fevereiro de 2013.


66 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3wx3fdnOEos

142
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

complacência de nossas autoridades.


Mas aqui a proposta é discutir: afinal, existe um componente genético
que determina a orientação sexual homossexual? Para o geneticista, ainda
que ele, às vezes, relativize um pouco o seu argumento, algumas pesquisas
já poderiam apontar que sim, que questões genéticas podem explicar o que
leva alguém a ter uma orientação sexual homossexual. Pois eu chamo a
atenção para as relativizações que estão na fala do próprio geneticista e, em
especial, nos textos sobre as pesquisas que ele mesmo cita.
Um dos textos citados pelo geneticista é Genetic and environmental
influences on sexual orientation67, que faz uma síntese de dezenas de estudos
que tentaram encontrar componentes genéticos para explicar a orientação
sexual das pessoas. Segundo os autores, o método mais utilizado foi o de
estudo com gêmeos. Sobre essas pesquisas, os próprios autores apontam
que é necessário pesquisar mais porque, por exemplo, muitas vezes foram
escolhidos apenas gêmeos que viveram juntos ao longo das suas vidas
(e os que têm a mesma carga genética e viveram em espaços culturais
diferentes?), além das amostras ainda serem discutíveis. Ao final do texto,
eles dizem: “Durante as últimas duas décadas, acumulou-se um crescente
corpo de evidências sugerindo que os fatores genéticos e familiares afetam
tanto a orientação sexual masculina e feminina. A evidência genética é
substancialmente mais forte para o sexo masculino do que para orientação
sexual feminina”. Ou seja, além de apenas “sugerir” e não concluir de forma
determinante, existe aí mais um problema de pesquisa: por que a genética
poderia explicar a orientação sexual homossexual dos homens e não a das
mulheres?
Ainda sobre as pesquisas com gêmeos, elas apontariam que, quanto
mais similaridade genética existir entre eles, se um deles for gay existe
maior probabilidade de que o outro também o será. Mas isso não ocorre
em 100% dos casos pesquisados e, além disso, qual foi o número de pessoas
pesquisadas? Isso permite concluir sobre a orientação sexual tanto dos
gêmeos do mundo todo quanto dos não-gêmeos? Uma notícia sobre a
pesquisa com gêmeos, que encontrei na internet, também alerta: “Mas a
pesquisa não é definitiva, já que outros cientistas observaram que o número
de homossexuais participantes no estudo foi baixo, e que os resultados
relacionados à orientação sexual estariam distorcidos”.68
67 Disponível em http://genepi.qimr.edu.au/contents/p/staff/NGMHandbookBehGen_Ch
apter19.pdf.
68 Leiam em http://hypescience.com/novo-estudo-sugere-que-aspessoas-ja-nascem-gays/

143
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

Outra pesquisa que o geneticista cita foi publicada no texto PET and
MRI show differences in cerebral asymmetry and functional connectivity between
homo and heterosexual subjects69. Os pesquisadores teriam encontrado muita
similaridade entre o cérebro de mulheres heterossexuais e de homens
homossexuais. Mas sabem quantas pessoas participaram dessa pesquisa?
Noventa pessoas, 25 homens heterossexuais, 25 mulheres heterossexuais, 20
homens homossexuais e 20 mulheres homossexuais. Por causa do pequeno
universo pesquisado, o próprio texto dos autores do estudo diz: “Essas
observações nos motivam a realizar pesquisas mais amplas com grupos
de estudo maiores e a buscar uma melhor compreensão da neurobiologia
à homossexualidade.” Ou seja, os próprios autores do estudo não usam
os seus dados para dizer que a genética determina a orientação sexual
homossexual, mas que mais estudos precisam ser realizados. Além disso,
muitos outros questionamentos podem ser feitos sobre essa tal pesquisa,
mas o que eu aponto aqui já basta para o propósito deste texto.
Outra pesquisa, citada apenas vagamente pelo geneticista, apontaria
que os homens homossexuais teriam maior capacidade de identificar o
cheiro de outros homens. Ora, esse “estudo” chega a ser tolo, risível. Qual
é o homem gay adulto que não consegue identificar qual é o cheiro de
um homem? Isso se aprende rapidinho! Outra tolice é querer comparar a
prática sexual dos animais com a dos humanos. Por favor, sexualidade existe
apenas em humanos, que vivem em cultura! Os animais são dominados, de
forma hegemônica, por instintos! Mesmo os animais mais domesticados,
ainda que externem sentimentos, não são influenciados por todas as normas
de gênero e sexualidade que incidem sobre os humanos.
Enfim, sou obrigado a repetir o que já escrevi no outro texto:

Os estudiosos da sexualidade ainda não chegaram a


um consenso sobre se existe ou não algum componente
genético que interfira ou gere a orientação sexual
homossexual. Mas isso jamais pode ser uma razão para
defender a patologização, a violência e o ódio para com
os LGBTs. Os/as estudiosos/as não possuem respostas
“genéticas” para a homossexualidade, mas oferecem
muitas outras respostas sobre como as pessoas, ao longo
de suas vidas, passam a ter determinada orientação

69 Disponível em site http://www.pnas.org/content/105/27/9403.full

144
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

sexual e determinada identidade de gênero.


Centenas de estudos, via de regra ignorados pela
mídia, apontam que existem diversas orientações
sexuais e identidades de gênero com as quais uma
pessoa pode vir a se identificar. Nesse processo de
identificação não existe apenas um fator ou ator social
que influencia as pessoas. Trata-se de um complexo
processo de identificação. Portanto, qualquer orientação
ou identidade é legítima. A heterossexualidade é tão
legítima quanto a homossexualidade, a bissexualidade
ou a travestilidade. Todas são formas de vivenciar as
múltiplas sexualidades e os gêneros.
Por isso, se a pergunta é qual a causa da homossexualidade,
deveríamos nos perguntar também, como já fazia Freud,
quais as causas da heterossexualidade. Assim como não
existe consenso sobre a existência de um “gene gay”,
também não existe um “gene heterossexual” e nem por
isso os heterossexuais devem deixar de ser respeitados.

Teria muitas outras coisas para comentar, mas não posso deixar de
destacar algumas. A entrevista do Malafaia com Marília Gabriela e o
vídeo do geneticista encobrem uma outra questão fundamental: por que
a sociedade e os ditos cientistas querem tanto saber sobre a origem da
homossexualidade e não querem saber da origem da heterossexualidade?
Qual são os objetivos dessas pesquisas que tentam encontrar um gene gay?
Para curar a homossexualidade? Se, por acaso, a ciência chegar a encontrar
os componentes genéticos que geram a orientação sexual homossexual, com
esse movimento fundamentalista que avança no Brasil e no mundo, vocês
têm dúvida de que eles não financiariam a possibilidade de que homossexuais
não pudessem mais ser gerados? Então, alô militantes LGBT, vejam que
grande tiro no pé, hipoteticamente, vocês podem estar cometendo ao se
filiar a esses argumentos!
O que nós precisamos é de argumentos que se diferenciam dos
fundamentalistas e não que eles nos pautem em suas falas que apenas
produzem ódio. No fundo, tanto Malafaia quanto o geneticista querem
defender que existe um padrão de “normalidade” sobre as orientações
sexuais. Malafaia diz que a heterossexualidade é normal e o geneticista
diz que a homossexualidade também é normal, uma vez possui algum

145
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

componente genético. Enquanto isso, nós temos evidências suficientes para


mostrar o quanto a sociedade em geral, e os fundamentalistas em particular,
defendem com unhas e dentes uma “pedagogia da heterossexualidade”,
como diz a nossa querida Guacira Lopes Louro em seus textos. Escrevi
sobre isso em Por que a heterossexualidade não é natural?
Além disso, esse “debate” joga novamente para o escanteio toda a
discussão sobre a produção das identidades. Até quando vamos reduzir a
sexualidade, seja ela a homossexualidade ou a heterossexualidade, à prática
sexual entre as pessoas e/ou à “biologia”? Nós sabemos muito bem que
a prática sexual é uma questão importante (para os fundamentalistas
apenas se for para a reprodução), mas que as nossas sexualidades e nossos
gêneros são compostos por diversos outros fatores. A imensidão e riqueza
desses outros fatores ficam obscurecidos nesses debates que envolvem
as chamadas “ciências duras”, como a genética e a neurociência. O que
precisamos é discutir Direitos Humanos, porque determinadas pessoas
têm mais direitos e outras não. Por que determinadas pessoas são mais
respeitadas, podem continuar vivendo, e outras podem continuar sendo
assassinadas aos milhares a cada ano por causa das suas orientações sexuais
e identidades de gênero dissidentes?
Para finalizar: não tenho dúvidas de que os estudos da cultura e das
humanidades (em sentido bem amplo, incluindo as subjetividades, a
sociologia, a antropologia etc) são muito mais ricos em nos oferecer respostas
sobre as nossas sexualidades, sejam elas dissidentes ou não, e de como
devemos trabalhar para que todos e todas sejam respeitados e respeitadas.
E mais: a procura de uma resposta sobre a origem dos nossos desejos não
pode jamais impedir o que mais importa, que todos possamos desejar de
formas múltiplas, diversas, com o respeito que merecemos. Como disse
o nosso querido Edward MacRae, no texto Os respeitáveis militantes e as
bichas loucas, que republicamos no livro que organizei pela Editora Federal
da Bahia, chamado Stonewall 40 + o que no Brasil?, fazendo referência a
Oscar Wilde: “A naturalidade é uma pose tão difícil de se manter”.
Um close para Malafaia, sem perdão.

146
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

MANIFESTO CONTRA A DITADURA


GAY NO BRASIL: OS PRIVILÉGIOS DE
UMA “MINORIA”70
FÁBIO FERNANDES

A sociedade está cansada desse assunto. Aborrecida e temerosa com


esses pecadores, amorais e anormais que querem transformar o mundo
num “viadeiro”. A intenção é a de destruir a família nuclear, natural e
tradicional: e a procriação? E a Bíblia? E as nossas crianças? Essas pessoas
querem impor um estilo de vida, querem mais privilégios que todos, uma
maioria que está sofrendo com esse ódio gayzista. Somos obrigados a ver
dois homens de mãos dadas e se beijando? Já basta a dificuldade de saber
que essa gente existe.
Aposto que essa gayzada é a favor de cotas para negros e índios: o
que eu tenho a ver com uma escravatura de não sei quantos séculos atrás
ou do fato deles serem pretos, pobres ou terem estudado em uma escola
pública de merda? Ah, faça-me o favor! Essa gente deve apoiar também
essa lei ridícula que enche de regalias as empregadas domésticas! E nós
temos culpa por sermos privilegiados, agora vamos ser explorados até por
isso, já não basta o imposto de renda exorbitante que pagamos?
Deve ser a mesma gente que acha incrível essas mulheres ousadas (pra
não chamar de putas) que saem a qualquer hora por aí usando roupas curtas,
com conduta de vadia e reclamando quando são assediadas e estupradas.
Esse Brasil, ah Brasil! Mulheres, negros, pobres e viados agora me chegam
com essa história de opressão, machismo, homofobia e racismo pra lá e pra
cá. Essas coisas NÃO EXISTEM. As coisas são como são, como Deus
fez, ou seja, cada um com o que merece… quer dizer, eu estou falando do
lugar das mulheres, a linda missão de ser mãe e colaborar para constituir a
família e o lar, para que todos fiquem unidos; falo dos negros, gente para
quem eu oro todos os dias, pois carregam uma maldição por serem pretos e
muitos seguem uma religião diferente da cristã (a diabólica macumba), mas
nada que uma conversão sincera não resolva (pelo menos em parte); e dos

70 Publicado em 18 de abril de 2013

147
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

pobres, que reclamam demais, pois não bastam os altos impostos que nos
cobram pra manter bolsas-família, hospitais e escolas públicas!
Ah, quem se esforça nessa vida se torna gente! Esse papo de menos
favorecido socialmente é desculpa pra quem quer tudo fácil. Quanto à
gayzada, esses sim eu condeno, não somos obrigados a aceitar esse tipo de
comportamento, essa opção pela imoralidade que está se transformando
numa ditadura! Sou contra os privilégios que querem dar a essas “pessoas”.
Esse meu desabafo surgiu quando eu li o texto de um tal de Leonardo
Sakamoto, blogueiro do UOL, defendendo essa ditadura gay. Por sorte, na
parte dos comentários, encontrei uma resposta à altura, incrível, um alívio
diante de tanta mentira, deturpação e baboseira. O leitor defende a criação
de um “Movimento Mundial contra a discriminação dos homens adultos,
brancos heterossexuais, com escolaridade superior e empresários com boa
renda”. Pessoas, isso é genial! Somos nós que sofremos com tanta opressão,
fazemos esse país funcionar (e também financiamos os benefícios que essa
outra gente que citei acima suga às nossas custas). Leiam e observem se não
é dos argumentos mais lógicos, naturais e verdadeiros já ajuizados:

Duvido que a UOL ou o Sakamoto autorizem publicar


esse meu comentário, mas quem sofre discriminação
somos nós: homens adultos, entre 30 e 50 anos,
heterosexuais, sadios, brancos, com nível de escolaridade
superior, empresários, e com uma renda compatível
com nosso trabalho. Nós que não temos quotas para
nada, ou leis especiais que nos protejam, ou direitos
exclusivos em detrimento do conjunto da sociedade.
Nós é que estamos sendo discriminados todos os dias,
e sofrendo essa campanha permanente de perseguição
e difamação dos meios de imprensa, da mídia e dos
políticos, judiciário e governos. Os negros, pobres, gays,
os doentes, os loucos, os velhos, os jovens, as crianças,
os estudantes, os desempregados, os trabalhadores
assalariados, os nordestinos, os mexicanos, os cubanos,
os haitianos, os imigrantes ilegais, os deficientes, os
analfabetos, as mulhe-
res, enfim TODOS TEM LEIS PARA LHES
PROTEGEREM E DAREM PRIVILÉGIOS,
somente nós, não temos, e somos discriminados para

148
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

tudo. Nem a ONU se preocupa com nossos direitos


humanos. Sofremos discriminação e perseguição dia e
noite e NADA é feito por nós. Não vão me convencer a
virar gay, e não vão fazer com que eu fique na praia por
3 meses consecutivos para que pensem que descendo de
ancestrais africanos. Continuarei sendo branco, homem,
heterosexual, adulto, com boa escolaridade e com boa
renda, pagador de impostos (ALTÍSSIMOS) mas não
recebedor de serviços públicos à altura dos impostos
que pago. Creio que vou lançar um
MOVIMENTO MUNDIAL CONTRA A
DISCRIMINAÇÃO DOS HOMENS
ADULTOS BRANCOS HETEROSEXUAIS COM
ESCOLARIDADE SUPERIOR E EMPRESÁRIOS
COM BOA RENDA.
Talvez seja a maneira de conseguir ter algum direito
nesse planeta onde TODOS OS OUTROS GRUPOS
só me dão o dever de TRABALHAR PARA sustentá-
los, sem direito algum em troca.

Entenderam? Nós, homens brancos, adultos, heterossexuais, com


escolaridade superior e empresários com boa renda trabalhamos para
sustentar toda essa corja e não temos nenhuma regalia, nenhum direito.
Este é o nosso Brasil.
Tenham muita calma, leitoras e leitores. Essa personagem que
introduz meu texto é ficcional, mas livremente inspirado no comentário
sobre o tal movimento hétero e branco, esse sim eu li e fiquei… abismado,
chocado. Estamos vivendo em uma fase na qual pessoas historicamente
oprimidas estão saindo da invisibilidade, exigindo direitos e escancarando
a necessidade de enxergamos e convivermos com as diferenças. Os muitos
discursos por direitos iguais, baseados no raciocínio de que todos somos
humanos e por isso não precisamos de “tratamentos diferenciados”, ignoram
opressões históricas que violentam mulheres, negros, não heterossexuais,
pessoas pertencentes a classes sociais mais baixas e também a religiões fora
do círculo do cristianismo.
Durante séculos, mulheres não puderam votar, estudar, gozar, possuir
um emprego para além dos afazeres domésticos e sempre foram criadas
para serem mães, donas de casa e darem prazer sexual aos homens. O século

149
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

XX foi marcado pelo surgimento das políticas feministas de libertação


da mulher, do corpo feminino aprisionado, agredido, estigmatizado e até
hoje oprimido (alguém aqui se lembra do tratamento dado às mulheres
divorciadas?). Muitos desses movimentos falharam em incluir, nas suas
pautas, mulheres negras, pobres e moradoras de periferia, ou seja, estavam
mergulhados em racismo e classismo. A discussão contemporânea segue no
intuito de minimizar essas exclusões, realizar diálogos.
Negras e negros foram “libertos” e jogados das senzalas paras as ruas,
sem direito a trabalho digno, estudo e moradia. Não tiveram acesso a uma
mínima cidadania. Mais de um século depois e ainda somos descendentes
de um país que chutou a população negra para as margens das cidades,
impedindo-os de ter acesso a direitos básicos. As favelas, periferias, o povo
preto que vive nas ruas, a cor negra predominante nas cadeias e presídios é
produto de uma história que finge cordialidade, esconde um racismo que
nem sempre é pronunciado, mas se faz presente na estrutura básica de uma
sociedade que vive o medo da violência nas cidades e discute maioridade
penal. A exclusão e discriminação racial é ignorada enquanto uma raiz
fundamental para muitos de nossos problemas.
A explícita desaprovação de uma parte da sociedade pela lei que
garante direitos trabalhistas às empregadas domésticas é sintoma dessa
mesma sociedade que tem fetiche em “escravizar” e explorar os mais pobres,
pois a eles resta uma alternativa: aceitar a sua “condição”. Como também
ignorar que o preconceito às religiões de matriz africana, rotuladas como
“seitas”, ainda existe? O Candomblé e a Umbanda, por exemplo, foram
demonizadas, estigmatizadas, violentadas, deturpadas e proibidas também
porque sua origem as condenou “naturalmente”. O mundo precisa mesmo
se resumir às referências cristãs e tudo que estiver fora dessa visão teológica
deve ser condenado?
Agora sim eu posso falar dos que estão querendo impor uma “ditadura
gay”. Desde a ascensão da burguesia no século XIX, com o surgimento das
noções de heterossexualidade e homossexualidade, as sexualidades foram
reprimidas, silenciadas e caladas em torno do ideal burguês da família e
do casal legítimo, cuja função primordial seria a de reproduzir. A família
nuclear e tradicional se torna mais uma peça da engrenagem de produção
capitalista. O sexo, as práticas sexuais, em séculos anteriores, era realizado
com menos pudores, vergonhas e proibições. Isso não quer dizer que tudo
era permitido e nenhuma norma existia, mas, segundo o filósofo Michel
Foucault, nessa época “os corpos pavoneavam”.

150
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

Com o estabelecimento de uma sociedade capitalista e industrial, o


sexo estaria incompatível com os meios de produção e a força do trabalho
não poderia ser dissipada com o excesso dessas práticas. Todo o esforço
humano (e do homem) deveria estar focado no trabalho intensivo, na
produção incessante e lucrativa das indústrias e cidades que cresciam
imensamente. As práticas sexuais deveriam estar atreladas à reprodução,
não ao gozo, ou seja, somente ao nascimento de mais mão-de-obra.
Pessoas não heterossexuais obviamente estariam fora dessa lógica (re)
produtiva, seriam um obstáculo à meta capitalista de uma família burguesa
escrava desse sistema. As sexualidades “ilegítimas” e “ilícitas” seriam agora
analisadas, dissecadas como uma rã na mesa de um cientista, por juristas,
médicos, religiosos, biólogos, políticos e moralistas que agora poderiam
regular o sexo segundo leis bem rígidas. Não ser heterossexual é estar
inserido no buraco do proibido, imoral, pecaminoso, abominável, anormal,
perverso, ilegal, doentio e principalmente improdutivo. Esses seres devem
buscar o seu lugar nas sombras da invisibilidade; ou aceitam esses rótulos,
estigmas, marcas e desaparecem (de várias formas, incluindo a morte) ou se
adequam à “normalidade heterossexual”.
Séculos de apagamento, violência e exclusão explodiram em mulheres,
negros e pessoas não heterossexuais o rasgamento do silêncio que gritava um
NÃO bem sonoro aos seus corpos, vivências e suas muitas possibilidades.
Esses corpos estariam fora do que foi delimitado pelo Estado, medicina,
direito, religião e pelo capitalismo: historicamente violentados, proibidos,
colonizados, impedidos de existir. São esses discursos que se transformam
em violência e matam diariamente os diferentes: não heterossexuais,
mulheres, negros e pobres. Mas, gostem ou não, essas pessoas existem e não
querem impor estilos de vida, não almejam “gaycizar” o mundo, querem
apenas coexistir com o valor, respeito, dignidade e direitos sendo quem
são… e sem o medo que oprime e mata.
Apesar da ênfase dada à ditadura gay, inclusive no título deste texto,
quero reforçar e refletir aqui que são inúmeras as opressões e normatividades
impactando sobre essas pessoas, pesando muitas vezes simultaneamente
sobre um mesmo corpo (uma mulher negra, lésbica, empregada doméstica,
moradora de uma periferia e de classe baixa, por exemplo). A invenção
da falaciosa ditadura gay ocorre quando se produz uma subalternização
e quem a gera se sente uma vítima: essa é uma das estratégias utilizadas
por aqueles que se deparam com relações de poder e hegemonia sendo
problematizadas, questionadas e criticadas. Pense nisso e REVEJA os seus

151
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

privilégios, façamos o exercício de olhar para o outro com mais sensibilidade.


E você ainda vai reproduzir esse papinho, o opressivo mimimi de que
gays, lésbicas, travestis, transexuais etc. querem impor o seu “comportamento
subversivo” à toda sociedade? Vai acreditar que essas pessoas são o mal que
vai acabar com a família feliz que você faz parte (sem ao menos ponderar
que o conceito de família vai além de apenas um único modelo)? Vai
engolir essa mentira chamada DITADURA GAY? Uma mentira bem
contada pode bem se disfarçar de verdade, mas olhares, ideias e diálogos
mais críticos podem revelar essa e muitas outras farsas perigosas.

152
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

EM DEFESA DA FECHAÇÃO71
LEANDRO COLLING

Há vários anos vou ao cortejo do Dois de Julho, em Salvador, com


amigos e amigas e sempre ficamos na Avenida Sete, na altura da Igreja
do Rosário, local que muitos conhecem como Beco do Lugar Comum,
em referência a um bar que existe naquela região. É ali que, apenas nessa
data, ocorre uma grande concentração de gays, lésbicas e trans. O objetivo
é assistir às performances das balizas e, em especial, provocar e participar
da fechação que ocorre quando o público identifica uma baliza como gay.
Nesses momentos, o público começa a gritar “fecha, fecha, fecha!”, pedindo
para que a baliza faça uma performance bem fechativa. Quase sempre
as pessoas são atendidas e aí começa um grande e coletivo espetáculo
momentâneo que, a cada ano, atrai mais gente.
Para quem não sabe, balizas é a forma como são chamadas as pessoas
que ficam na frente das bandas de fanfarra. Muitas vezes o cargo de baliza
é ocupado por meninos que dançam e possuem traços delicados e bem
femininos. Muitas pessoas desqualificam a fechação de LGBTs no Dois
de Julho. Com a melhor das intenções, acreditam que aquela algazarra só
contribuiu para estigmatizar ainda mais a população LGBT. Em geral,
são essas mesmas pessoas que criticam as paradas gays, que teriam se
transformado apenas em carnaval fora de época. Eu penso no sentido
contrário. Por que?
A fechação (palavra que nem existe no dicionário oficial e alguns grafam
com X) consiste em uma performance que é caracterizada pelo exagero, pela
propositada artificialidade e, nesse caso, por um conjunto de ações, gestos
e posturas que intencionalmente não compactuam com o que a sociedade
em geral espera de uma pessoa do sexo masculino. Ou seja, o menino deve,
para seguir a norma hegemônica, se comportar como um macho e não ser
delicado e flertar com uma performance que é esperada apenas para quem
possui o sexo e gênero feminino. E por que isso é importante?
Vou apontar apenas duas razões: 1) ao fazer isso, as balizas (não estou

71 Publicado em 4 de julho de 2012.

153
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

dizendo que elas sejam necessariamente gays, isso pouco importa aqui)
revelam a própria artificialidade de todas as performatividades de gênero,
sejam elas de homens ou mulheres, heterossexuais ou não. Isso porque
os meninos das balizas mostram que a performance dos outros homens
poderia ser diferente, caso eles assim quisessem ou tivessem coragem
de fazer algo diferente; 2) em um momento em que cresce a violência
contra LGBTs em nosso Estado, dias após um garoto heterossexual ter
sido assassinado em Camaçari porque estava tendo um comportamento
considerado como gay, as balizas e as dezenas de LGBTs, naquele ponto
da Avenida Sete, naquele momento, dizem, através daqueles gestos, gritos
e ações: “eu não vou me adaptar às normas de gênero, eu vou permanecer
fazendo a minha fechação, explicitando quem eu sou e quero ter o direito
de fazer isso quando eu quiser. Não vou me comportar como a maioria
deseja, quero ser aceito e respeitado como sou”.
Por essas razões, considero aqueles efêmeros encontros entre LGBTs e
as balizas um evento político e quem as desqualifica, no fundo, está tendo
um comportamento homofóbico e misógino ao mesmo tempo. Mas, é
claro, não é uma ação política no sentido tradicional. Muito possivelmente,
a maioria nem entenda aquilo como uma ação política, mas eles e elas
são os/as protagonistas dela. Não é o caso da Marcha das Vadias, um dos
mais interessantes movimentos que surgiram nos últimos tempos, na qual
a fechação tem sido uma estratégia empregada de forma intencional por
alguns/mas participantes.
Outro aspecto interessante é que, em 2009, o presidente da Associação
das Fanfarras e Bandas da Bahia, Edimilson Castro72, tentou criar uma
norma que impediria a fechação das balizas nas fanfarras. Mas o próprio
Castro, sempre para com sua fanfarra no Beco do Lugar Comum e toca
algumas músicas muito admiradas pelo público LGBT, a exemplo de I will
survive, hino LGBT no mundo. A Bahia é mesmo cheia de contradições
e paradoxos.
Para finalizar, não posso deixar de fazer mais um rápido comentário:
duvido que alguém encontre no Brasil alguma festa cívica/militar como
o Dois de Julho, com direito à fechação. Para me despedir, faço uma pose
bem fechativa e mando um beijo, com a ponta dos dedos. Kiu!

72 Ver documentário feito por alunos do curso de Jornalismo da UFRB em http://www.


youtube.com/watch?v=hme_t03KojY&feature=player_em bedded

154
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

CASAMENTO GAY: COMO USAR UMA


CONQUISTA SEM TRANSFORMÁ-LA EM
UMA CILADA73
LEANDRO COLLING

No início de outubro de 2012, o Tribunal de Justiça da Bahia ganhou


destaque na imprensa do Brasil porque o Diário Oficial publicou um
documento, com o horrendo nome de “Provimento Conjunto 12/2012”,
que determina que todos os cartórios do Estado, quando procurados,
deverão realizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Em função da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, de 2011,
até então, os cartórios faziam, com mais facilidade em alguns deles, apenas
o contrato de união estável. Juridicamente existem várias diferenças entre
casamento e união estável, mas não quero abordar esses aspectos. Em suma,
o casamento é, digamos assim, um contrato que garante mais direitos e
garantias ao casal. No quesito herança, por exemplo, na eventualidade de
morte de um, o outro cônjuge tem mais garantias de ficar como herdeiro
da maior parte do patrimônio.
Precisamos comemorar essa conquista e elogiar o Tribunal de Justiça da
Bahia que, na verdade, fez uma óbvia interpretação da decisão do STF. Se
qualquer pessoa pode registrar uma união estável com alguém, ela poderá
comprovar essa união e transformá-la em casamento após algum tempo.
Então, se os cartórios podem fazer o contrato de união estável, por que não
podem o de casamento? Por que lotar o Judiciário com mais processos?
Não é mais simples elaborar uma instrução para orientar que todos podem
realizar os casamentos de uma vez?
Mas quais seriam as ciladas do casamento entre pessoas do mesmo
sexo sugeridas pelo título do meu texto? Vou chegar lá, mas antes disso só
quero dizer mais uma coisa. Pelo visto, se confirma cada vez mais a ideia de
que no Brasil só iremos avançar nos marcos legais para as pessoas LGBT
através do Judiciário brasileiro. Enquanto isso, o Legislativo continua

73 Publicado em 23 de outubro de 2012.

155
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

barrando projetos de lei que ampliam a cidadania de pessoas LGBT ou


fazendo coisas bem piores, ou seja, elaborando projetos que retrocedem em
conquistas históricas, a exemplo de propostas que pretendem determinar
que a homossexualidade volte a ser considerada uma doença.
Um rumo muito parecido é seguido pelo poder Executivo federal. As
poucas ações públicas para pessoas LGBT, do governo Dilma, hoje estão
absolutamente paralisadas, quando não extintas. E sequer temos um prazo
para a conclusão do novo plano que deveria ser um fruto da II Conferência
Nacional LGBT, realizada em dezembro de 2011.74
E quais seriam as ciladas do casamento gay? Ou melhor, como podemos
ser inteligentes o suficiente para não transformar uma grande e histórica
conquista em uma cilada? Para responder essas perguntas eu precisaria de
várias páginas e tempo para pensar, mas vou arriscar aqui apenas algumas
ideias. Penso que devemos levar em consideração que o casamento jamais
deve ser:
1º) Uma nova norma social que hierarquize as pessoas LGBT. Ou
seja, quem casar e ter filhos será mais respeitado socialmente do que
aquelas pessoas que desejam ficar solteiras, tendo parceiros ocasionais ou
mesmo relações estáveis que não adotam os moldes tradicionais de um
casamento heterossexual? Se o casamento entre pessoas do mesmo sexo
simplesmente significar que todas as pessoas devam seguir as normas que,
é importante lembrar, muitos heterossexuais também não querem para si,
transformaremos uma grande conquista em uma grande cilada. Ao dizer
isso, não estou defendendo que as pessoas são infelizes dentro de um
modelo tradicional de casamento. Apenas estou lembrando que algumas
pessoas podem querer não adotar esse modelo, que é bem burguês, diga-se
de passagem, e vai inicialmente despertar muito mais interesse em gays e
lésbicas de alto poder aquisitivo, preocupados com seus bens e heranças;
2º) Uma conquista que irá diminuir consideravelmente a homofobia.
Ainda que o direito de casar esteja assegurado, os seus impactos sobre a
homofobia serão muito limitados. Por que? A homofobia não vai acabar por
decretos, leis, provimentos ou casamentos. Para acabar com a homofobia,
junto com os marcos legais, como a criminalização da homofobia e a
autorização para os casamentos, precisamos de um amplo programa que
combata diretamente a homofobia onde ela germina, cresce e se fortalece.
Estou chamando esse local de “campo da cultura”, uma ideia precária mas

74 O quadro continua o mesmo no governo de Michel Temer.

156
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

que é produtiva para lembrar que a cultura não muda só por decretos, a
cultura muda mais rapidamente por outras dinâmicas, em especial pela
educação e pelo resultado de produtos culturais que atuem para sensibilizar
as pessoas. Discursos “racionais”, como os realizados em textos como
este, por exemplo, atingem e convencem um número limitado de pessoas.
Duvido que uma pessoa fortemente homofóbica leia um texto, meu ou de
qualquer outra pessoa acadêmica, e mude suas opiniões e ações.
Por isso, precisamos de políticas públicas em todas as esferas, ministérios
e secretarias, que promovam o respeito à diversidade sexual e de gênero
em toda a sociedade, em especial através do que chamei de “campo da
cultura”. Isso não quer dizer que devamos pensar essas políticas apenas
nos ministérios e secretarias de cultura, mas pensá-las de forma transversal
em todos os setores. Mas, ainda assim, é claro que alguns ministérios são
vitais nesse processo e, certamente, entre eles está o de Educação e o de
Comunicação.
E qual é o quadro hoje no governo federal nestes dois ministérios?
Trevas, trevas. O programa Escola sem homofobia, após a pressão dos
fundamentalistas religiosos, está paralisado. E o Ministério da Comunicação
não tem nenhuma ação significativa de combate à homofobia no Brasil.
Qualquer pessoa minimamente informada sabe da centralidade da mídia
na sociedade contemporânea. Enquanto isso, através de concessões de rádio
e televisão, que são públicas, proliferam os discursos de ódio às pessoas
LGBT. E assim continuaremos a registrar muitas mortes, como a de Daiane
Almeida dos Santos, de 22 anos, ocorrida na semana passada em Salvador.
Mas quem era ela mesmo? Alguém lembra? Que mortes nós choramos?
Tenho mais coisas para falar sobre os casamentos, mas vou ficando por
aqui. Em suma, defendo que podemos apoiar e festejar o direito de casar e,
ao mesmo tempo, apontar os seus limites. Apoiar a lei e questionar a norma.
Antes de terminar, quero enfatizar que os textos publicados aqui não são
reportagens. Publicamos textos opinativos baseados em reflexões de estudos
sobre a sexualidade e gênero da atualidade. Ou seja, não construímos as
nossas opiniões com base em “achômetros”. Para quem deseja conhecer os
estudos que mais nos influenciam, sugiro a leitura de dois ótimos livros que
acabaram de ser publicados no Brasil. Um deles é de Sara Salih, chamado
Judith Butler e a teoria queer. Outro é de Richard Miskolci, com o título
Teoria queer, um aprendizado pelas diferenças. O livro de Salih apresenta o
pensamento de Butler, que cada vez mais passa a ser estudada no Brasil. Já
Richard faz uma boa introdução ao pensamento da corrente teórica que

157
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

tem Butler como uma de suas principais expoentes.


Butler acaba de receber o importante prêmio Adorno. “A distinção
que traz o nome do filósofo e teórico alemão Theodor W. Adorno premia
desempenhos extraordinários nos campos da música, literatura, filosofia e
cinema”, informa a DW, conhecida rede de comunicação da Alemanha. O
que escrevi acima sobre o casamento, por exemplo, é baseado nas reflexões
de Butler.

158
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

AINDA SOBRE O CASAMENTO ENTRE


PESSOAS DO MESMO SEXO75
LEANDRO COLLING

Resolvi continuar as reflexões sobre o casamento entre pessoas do


mesmo sexo em função de três coisas: cometi um equívoco, desejo melhorar
um argumento que iniciei e quero apresentar mais outra ideia sobre o tema.
O equívoco: Eduardo Gomes me corrigiu lembrando que os cartórios não
realizam casamentos. Quem realiza é o juiz. Os cartórios apenas habilitam
o casal para que o casamento seja ou não realizado pelo juiz. No final das
contas, é o juiz quem decide realizar ou não o casamento.
Sobre o argumento a melhorar tenho duas colocações a fazer:
1) Apressadamente, escrevi que o casamento entre pessoas do mesmo
sexo “vai inicialmente despertar muito mais interesse em gays e lésbicas de
alto poder aquisitivo, preocupados com seus bens e heranças”. Com isso eu
quis dizer que gays e lésbicas pobres não irão procurar os cartórios para casar?
Não. Eu quis apenas enfatizar que, materialmente, o casamento interessa
muito mais quem tem muitos bens. Mas é claro que um casamento, seja ele
qual for, agrega muitas questões simbólicas importantes e será realizado em
todas as classes;
2) No texto anterior, eu falava sobre o risco de cair em uma cilada, em
criar uma nova norma de respeitabilidade para pessoas LGBT. Quem casar,
ter filhos, viver uma vida monogâmica, será respeitado e quem não desejar
esse pacote vai continuar sendo alvo de um maior número de violências.
Na verdade, não se trata apenas de um risco, algo que poderá acontecer no
futuro, mas de algo que já é perceptível de ser visto hoje na comunidade
LGBT e na forma como as pessoas heterossexuais interpretam a vida de
LGBTs. Tenho lido, nos últimos anos, dezenas de pesquisas que apontam,
com muitos dados empíricos, como a sociedade em geral, incluindo aqui
LGBTs, e a mídia em particular, tenta enquadrar as pessoas LGBT em um
restrito padrão, que inclui: casamento, vida monogâmica, filhos, apagamento
de qualquer vestígio do que é considerado como coisas de homossexuais,

75 Publicado em 17 de julho de 2013.

159
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

lésbicas ou trans em seus modos de vestir, gestualidades, modos de falar etc


e etc.
Se compararmos essa realidade atual com outros períodos históricos
muito recentes é fácil perceber o quanto ficamos mais caretas em relação ao
campo das sexualidades. Tivemos, é claro, muitos avanços, mas quase sempre
isso ocorre ao custo de uma assimilação a um padrão de normalidade. Um
bom papo com pessoas que viveram a década de 60, ainda que descontados
o saudosismo e a idealização de suas falas, irá apontar também para esse
sentido.
Além disso, não comentei sobre um aspecto histórico importante
que não podemos esquecer quando falamos da instituição casamento. O
casamento foi e continua sendo um importante “dispositivo” de regulação
e controle da sexualidade em nossa sociedade e serviu muito para o
combate às práticas homossexuais e lésbicas. O casamento foi um dos
tantos dispositivos que permitiram a definição do que é um casal que será
considerado normal, sadio, desejável para a sociedade e, também, é claro,
para o próprio capitalismo. Qualquer estudo sério sobre o tema traz muitas
evidências disso. Quem não quiser recorrer às pesquisas, basta falar com
pessoas mais velhas. Facilmente você verá que os casamentos não eram
realizados da mesma forma como hoje, em sua maioria, o são. Muitas
pessoas heterossexuais (e também homossexuais) foram e continuam sendo
obrigadas a casar para estar no chamado “no caminho certo”.
Ou seja, o casamento foi, e muitas vezes ainda o é, compulsório, uma
obrigação, com objetivos de regulação e normatização das sexualidades,
através da qual as pessoas homossexuais só foram prejudicadas. Se isso
é verdade, como vamos aderir a essa instituição sem questionamentos?
Somos pessoas que desejam mudar a ordem das coisas ou apenas nos
adaptar ao que está posto? Vou repetir o que eu disse no texto anterior:
não me coloco contra o direito de qualquer pessoa casar com quem quiser.
Talvez algum dia eu mesmo faça isso, mas não podemos esquecer do que
a instituição casamento já fez com as pessoas LGBT, não podemos impor
um modelo restrito e heteronormativo de casamento para todos/as, não
podemos acreditar que esse direito conquistado vá causar grandes impactos
no combate à homofobia. As evidências nos mostram isso.
Para finalizar, vou apresentar uma ideia que eu sequer citei no texto
anterior. Devo esse insight ao professor Edward MacRae. Em uma banca
na UFBA, ele saiu com essa pérola: “Uma vez que o casamento gay esteja
legalizado, todos os gays que já possuem namorados há vários anos, ou que

160
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

moram com eles, em tese estarão automaticamente casados pelo Estado.


O Estado vai casar todos”. Eu nunca tinha pensado sobre isso. Edward
tem razão. A partir do momento em que o casamento entre pessoas do
mesmo sexo esteja completamente assegurado, uma das partes do casal
poderá recorrer à lei do concubinato e reivindicar que aquela relação seja
reconhecida como casamento e, com isso, inclusive, ela terá direitos sobre
os bens da outra parte. Ou seja, se você não casa, o Estado poderá te casar.

161
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

O QUE TEMEM OS
FUNDAMENTALISTAS?76
LEANDRO COLLING

Informações sobre as múltiplas violências contra pessoas LGBTs


(lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), publicadas pela grande
imprensa ou não, são diárias para quem milita em prol do respeito à
diversidade sexual e de gênero no Brasil. E as pessoas militantes, entre
as quais me incluo, têm dados suficientes para comprovar uma sensação
generalizada: as violências contra essa população, que historicamente
nunca foram poucas, têm aumentado nos últimos anos. Além dos atentados
contra a vida, uma série de outras violências, algumas delas mais sutis e
difíceis de perceber, mas nem por isso de menor poder ofensivo, proliferam
rapidamente em vários espaços.
Ao mesmo tempo, assistimos ao recrudescimento do conservadorismo
e a proliferação dos discursos de ódio, veiculados inclusive em várias
emissoras de rádio e televisão, que são concessões públicas (frisa-se),
contra qualquer pessoa que não seja heterossexual, branca, monogâmica,
cristã, “saudável”, produtiva e cisgênera (aquela que possui uma identidade
de gênero tida como compatível e plenamente correta em relação à sua
presumível genitália). E esses discursos de ódio se transformam em ações
concretas de governos e também em projetos de lei que pretendem, por
exemplo, proibir discussões sobre sexualidade e gênero nas escolas, definir
que família só pode ser formada por um homem e uma mulher “de verdade”,
seja lá o que isso for.
Qualquer pessoa minimamente progressista se depara com esse rápido
e incompleto diagnóstico e pergunta: mas o que está acontecendo no Brasil?
Estamos voltando à Idade Média? Não parecia que estávamos andando
exatamente na contramão dessa onda conservadora? E o que tem sido feito
para reverter esse quadro? Eis algumas perguntas que gostaria de enfrentar
a partir de agora.
76 Texto publicado originalmente na revista CULT, número 217, outubro de 2016.
Agradecemos à editora Daysi Bregantini por ceder o artigo para ser publicado neste livro.

162
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

Em relação à primeira pergunta começo com um paradoxo. O Brasil,


ao mesmo tempo em que possui uma boa parcela da população que vive ou
parece viver a sua sexualidade de forma mais liberada em relação a outros
países, nunca foi um paraíso para as pessoas LGBT. Temos um histórico,
relativamente já bem documentado, de suplícios e perseguições, ao mesmo
tempo em que temos, igualmente estudadas e até festejadas, características
que apontam para as diversas formas como os brasileiros e as brasileiras
experimentam as suas sexualidades e os seus gêneros.
Mas, ao que parece, o maior problema não está em experimentar
as diversas sexualidades e os gêneros. Os grandes problemas começam
a surgir quando essas experiências se tornam mais visíveis, quando elas
saem dos quartos, dos guetos, dos armários, e as pessoas passam a exigir
direitos e, principalmente, quando começam a questionar e a desconstruir
os padrões de naturalidade e normalidade tão caros para a manutenção da
heterossexualidade compulsória e para a heteronorma. Evidenciar como
diversos padrões foram e continuam sendo construídos e sedimentados na
base de muita violência é vital para respeitarmos quem cria e recria suas
vidas através de perspectivas diferentes.
E, nesse sentido, identifico o reconhecimento das uniões entre pessoas
do mesmo sexo, pelo Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011, como um
marco também paradoxal: ao mesmo tempo em que concedeu um direito
legítimo para determinadas pessoas, despertou a ira dos conservadores,
notadamente dos religiosos fundamentalistas, que passaram, a partir daí,
a se articular de forma mais intensa para impedir qualquer avanço nos
direitos das pessoas LGBT.
Reitero: os fundamentalistas nunca deixaram de nos perseguir, vide
os processos da Inquisição, mas voltaram a nos eleger como inimigos
número 1. Basta lembrar, por exemplo, que em determinado momento
os fundamentalistas evangélicos elegeram os católicos como inimigos.
Como chutar a santa católica não pegou bem, resolveram se unir com os
fundamentalistas católicos (muito bem representados em vários bispos
que agora escrevem absurdos sobre uma tal “ideologia de gênero” que nós
teríamos). Ou seja, decidiram chutar um alvo mais fácil e, se for para quebrar
uma imagem, que seja a de qualquer representação de alguma divindade
das religiões de matriz afro-brasileira.
E essa articulação fundamentalista não é apenas nacional, mas
também internacional, como atesta a publicação do livro A estratégia – o
plano dos homossexuais para transformar a sociedade, de autoria do reverendo

163
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

norteamericano Loius P. Sheldon, traduzido e editado no Brasil por uma


editora ligada a Silas Malafaia (Central Gospel) logo depois da histórica
decisão do STF. Esse livro é a verdadeira bíblia dos fundamentalistas, repleto
de inverdades, estratégias para combater os direitos das pessoas LGBT e
discursos de ódio, razões pelas quais, em 2012, o movimento LGBT tentou
proibir a sua venda no Brasil, via ação na Justiça. Nada aconteceu e o livro
continua à venda.
Mas não parecia que estávamos andando exatamente na contramão
dessa onda conservadora? Outra resposta que não pode ser reduzida a
um sim ou a um não. Novamente, mais um paradoxo. Ao mesmo tempo
em que as pessoas LGBT passaram a ter mais visibilidade nas ruas e nas
telas e conquistaram algumas migalhas em termos de direitos e políticas
públicas (essas últimas em nível federal já debilitadas no governo Dilma e
completamente extintas pelo governo golpista de Temer), a chamada onda
conservadora nunca deixou de exercer o seu poder, notadamente nas esferas
das sexualidades e dos gêneros, inclusive com fortes ressonâncias dentro
do próprio movimento e população LGBT e também em vários grupos e
pessoas heterossexuais pretensamente mais progressistas, até em políticos
de um espectro à esquerda. A sensação de maior liberdade e respeito não
passa de uma ilusão capaz de ser desmascarada na menor transgressão
promovida por experiências mais dissidentes em relação às sexualidades
e os gêneros. Gays masculinizados, tidos como bem vestidos, cheirosos,
musculosos, metropolitanos, classe média-alta e que querem casar e ter
filhos, até podem ter desfrutado de uma igualmente ilusória sensação de
inclusão social momentânea. Agora recebem lâmpadas na cara em plena
Avenida Paulista.
E o que tem sido feito para reverter esse quadro? Minha impressão
é de que, no plano institucional, governamental ou não governamental,
muito pouco ou quase nada. O governo federal golpista jamais entenderá
que as pessoas LGBT necessitam de alguma coisa. Até a política de
prevenção e combate ao HIV-Aids foi desmantelada, mesmo que até as
pedras do Pelourinho saibam que o vírus não escolhe orientação sexual
das pessoas. Governos estaduais ou municipais (talvez uma exceção tenha
sido a gestão de Fernando Haddad na cidade de São Paulo) tidos como
mais progressistas sofrem ou com a oposição dos fundamentalistas ou os
próprios fundamentalistas formam a base de sustentação desses governos
nas assembleias legislativas (como é o caso da Bahia) e câmaras municipais.
Ou seja, se repete o que ocorria no Congresso Nacional durante boa parte

164
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

dos governos Lula e Dilma.


No plano do movimento social LGBT mais institucionalizado,
existem honrosas tentativas de reversão do quadro, mas, no geral, temos um
movimento que, assim como os demais, sofre com o esvaziamento, o cansaço
e a descrença de muitas pessoas, frutos de uma série de razões que incluem
a excessiva partidarização de nossas bandeiras. Essa partidarização gerou
bons frutos, mas também gerou dependência do Estado, brigas imensas
por ocupação de poucos cargos e uma certa leniência com o quadro que se
desenhava pelo menos desde 2012, em nome de uma tal governabilidade
ou do projeto maior do partido, que igualmente naufraga em denúncias,
processos, prisões e caixa dois.
Então está tudo perdido? Não, felizmente. A resistência existe, está
crescendo e tem se revelado muito potente. Mas ela não está onde a maioria
pensa que deveria estar. A resistência à onda conservadora está em um novo
ou novíssimo movimento, que não é e nem quer ser, ao menos por enquanto,
institucionalizado. Está numa multidão de diferentes que encontramos em
escolas, universidades, ruas, locais ocupados, redes sociais, teatros, bares,
prédios públicos diversos, algumas igrejas e terreiros, produzindo potentes
contradiscursos.
E essa multidão não para de crescer, especialmente quando suas
práticas políticas encontram as práticas artísticas e culturais. É o que
algumas pessoas estão nomeando, ainda que precariamente, de artivismo
que, no tocante ao tema deste texto, poderia ser chamado de artivismo
das dissidências sexuais e de gênero. Uso a expressão “dissidências” em
contraposição à ideia de “diversidade sexual e de gênero”, já bastante
normalizada, excessivamente descritiva e muito próximo do discurso da
tolerância, ligada a uma perspectiva multicultural festiva e neoliberal que
não explica como funcionam e se produzem as hierarquias existentes na tal
“diversidade”.
A emergência desses artistas e coletivos artivistas pode ser explicada por
várias razões. Eis algumas: o espantoso crescimento dos estudos de gênero
e sexualidade no Brasil, em especial os situados nas dissidências sexuais
e de gênero; a ampliação do acesso às novas tecnologias e a massificação
das redes sociais; a ampliação da temática LGBT na mídia em geral, em
especial em telenovelas, filmes e programas de televisão; a emergência de
diversas identidades trans e pessoas que se identificam como nãobinárias
em nosso país, além da valorização da fexação, da não adequação às
normas (corporais e comportamentais) de meninos afeminados, mulheres

165
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

lésbicas masculinizadas e outras várias expressões identitárias flexíveis


que provocaram a abertura do fluxo antes mais rigidamente identitário.
Mas talvez a mais importante das razões esteja exatamente na própria
necessidade, consciente ou não, de reagir frente ao quadro terrível no qual
estamos inseridos.
Essas pessoas artivistas trabalham de formas diferenciadas, mas alguns
aspectos as unem: 1) priorizam as estratégias políticas através de produtos
culturais, pois entendem que os preconceitos nascem na cultura e que a
estratégia da sensibilização via manifestações culturais é mais eficaz para
produzir outros processos de subjetivação; 2) criticam a aposta exclusiva
nas propostas dos marcos legais, em especial quando elas reforçam normas
ou instituições consideradas disciplinadoras das sexualidades e dos gêneros;
3) explicam as sexualidades e os gêneros para além dos binarismos, com
duras críticas às perspectivas biologizantes, genéticas e naturalizantes; 4)
entendem que as identidades são fluidas e que novas identidades são e
podem ser criadas, recriadas e subvertidas permanentemente; 5) rejeitam a
ideia de que, para ser respeitado ou ter direitos, as pessoas devam abdicar
de suas singularidades em nome de uma “imagem respeitável” perante a
sociedade; 6) parecem mais conscientes da necessidade de interseccionar as
suas lutas com vários outros marcadores sociais das diferenças, a exemplo
de questões étnicas, de classes, gerações, níveis de escolaridade, capacidades
corporais etc.
Alguns exemplos? Temos centenas, pois essas experiências procriam
rizomaticamente em vários cantos, mas não vou me negar de citar apenas
alguns. Na música, aparentemente, temos nomes que rapidamente se
tornaram bem conhecidos nacionalmente, como Johnny Hooker, Liniker,
Jaloo, Caio Prado, Rico Dalasam, MC Xuxu, As Bahias e a Cozinha
Mineira, MC Linn da Quebrada. Na cena teatral temos o Teatro Kunyn
(São Paulo), As Travestidas (Fortaleza), Atelier Voador e Teatro A Queda
(Salvador). Fora isso, uma profusão de coletivos diversos, com ênfase em
performances, como O que você queer? (Belo Horizonte), Cena Queer
(Salvador), Anarcofunk (Rio de Janeiro), Revolta da Lâmpada (São Paulo),
Selvática Ações Artísticas (Curitiba), Cabaret Drag King (Salvador),
Coletivo Coiote (nômade), Seus putos (Rio de Janeiro). A lista poderia ser
longa, para o horror dos conservadores.
Como sabemos, a produção artística brasileira que problematiza as
normas sexuais e de gênero não é absolutamente nova. Estudos desenvolvidos
no interior do próprio grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS),

166
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

da Universidade Federal da Bahia, trataram, por exemplo, do papel do


grupo Dzi Croquettes ou do cinema de Jomard Muniz de Britto. Outros
vários exemplos poderiam ser citados, como é o caso do Teatro Oficina
(São Paulo). No entanto, o que temos percebido com mais intensidade nos
últimos anos é a emergência de outros coletivos e artistas que trabalham
dentro de uma perspectiva das dissidências sexuais e de gênero e que, ao
mesmo tempo, explicitam suas intenções políticas, ou melhor, que criam e
entendem as suas manifestações artísticas como formas distintas de fazer
política, em especial quando contrapostas às formas mais “tradicionais”
usadas pelo movimento LGBT mainstream.
Ao analisar o trabalho de algumas artivistas, a pesquisadora Patrícia
Lessa apontou para algumas características dessas produções. Uso intenso
das novas tecnologias e redes sociais, produções não voltadas para espaços
fechados ou museus, mas para as ruas, festas e outros espaços públicos
de sociabilidade facilmente acessados, horizontalidade das produções e,
fundamentalmente: “as artivistas, por meio dessas práticas, questionam
o corpo, o sexo, e o modelo dessexualizado do contrato de casamento,
propondo novas formas mais criativas de estar no mundo e de sentir a
multiplicidade e o valor da liberdade para a vida” (Lessa, 2015, 222).77
É isso o que temem os conservadores, sejam eles fundamentalistas
religiosos ou não. É isso o que teme o Papa Francisco, ao dizer: “Hoje, as
escolas ensinam para as crianças - para as crianças! - que qualquer um pode
escolher seu gênero”.78 Os conservadores podem até manter os diferentes
na marginalização, mas não impedirão que uma multidão, cotidianamente,
se levante contra as normas. Resistiremos, sempre!

77 LESSA, Patrícia. Visibilidades y ocupaciones artísticas en territorios físicos y digitales.


PADRÓS, Núria; COLLELLDEMONT, Eulàlia; SOLER, Joan. Actas del XVIII Coloquio de Historia
de la educación: arte, literatura y educación. v.1, Vic: Espanha: Editora da UniVic, 2015, p.211-224.
78 http://oglobo.globo.com/sociedade/religiao/papa-horrivel-que-ascriancas-aprendam-
que-podem-escolher-seu-genero-19837125

167
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

QUAIS OS LIMITES DOS MOVIMENTOS


LGBT’S E QUEER INSTITUCIONAIS?79
VIVIANE V.

Ultimamente tenho pensado sobre os limites críticos que diferentes


instituições possam ter, no sentido de elas estarem (ou não) dispostas a
responder a questionamentos e efetivar ações em apoio a processos de
autonomização e promoção da dignidade de vivências marginalizadas. Entre
essas vivências podemos pensar nas existências trans* (travestis, transexuais,
etc, ou simplesmente ‘não cis’), não brancas, não heterossexuais, não rycas,
não cristãs, etc. Esses pensamentos surgem a partir de vários diálogos entre
minhas experiências pessoais (particularmente, no meio acadêmico e de
militância) e de leituras sobre as dinâmicas sociais ‘gerais’.
Tenho pensado, por exemplo, em como estamos prestes a testemunhar
uma copa do mundo que se financia através de remoções criminosas de
pessoas e famílias, leis de exceção e intere$$es/empreitadas diversas sob
aplausos de supostas esquerdas…… – no geral, esquerdas institucionalizadas
que promovem a copa da brutalidade e do capital sem vergonha, sem
vergonha inclusive de usar a polícia militarizada para ‘pacificar’ áreas.
A partir de um governo federal que se vangloria em promover alguma
diversidade lançando algumas migalhas de cidadania – como a ‘aceitação’
do nome social de pessoas trans* para realizar o Enem (depois de gastar
horas ao telefone, enfatize-se) – e pouquíssima vontade política de trazer
‘diversidade’ de fato às escolas, ou de discutir o fim das polícias militares, ou
de pensar criticamente o caráter colonialista dos genocídios indígenas que
seguem acontecendo. Para mais informações sobre essa copa criminosa, ver
o documentário A caminho da Copa.
Também tenho pensado, a partir de linhas de raciocínio similares,
sobre os limites de movimentos lgbt’s e queer institucionalizados pelo país.
Como analisar a economia política de um Núcleo de Políticas Públicas de
Cidadania e Direitos LGBT estruturalmente associado a um governo de
uma direita carlista que gasta milhões no caos da Barra e deixa subúrbios a
ver e nadar em rios de lixo mal administrado? Ou a economia política de um

79 Publicado em 26 de maio de 2014.

168
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

Centro de Promoção e Defesa dos Direitos LGBT atrelado a um projeto


político de país omisso e cúmplice em relação ao genocídio de pessoas
indígenas – perpetrado a pretexto de desenvolvimentismos e ruralismos –,
que não faz “propaganda de opção sexual” (sic) e que promove uma copa de
exceções e exclusões? Como pensar a economia política de pensamentos,
movimentos e estudos queer dentro do cistema acadêmico historicamente
cissexista, heterossexista, racista e eurocristãocêntrico?
As respostas, me parece evidente, são muito mais céticas do que os
discursos de netinhos-de-malvadeza, romários, dilmas e academias por
“diversidade”, “dignidade humana” e contra a “homofobia” (e somente
homofobia, no geral), com tanta retórica e supostas interesse e vontade
política, podem fazer crer. Nesse sentido, analisar essas economias políticas
em detalhe – os compromi$$os, intere$$es, alian$$as e redes de poder
envolvidos, os projetos de sociedade sendo (dis)pensados, etc. – são, em
minha opinião, uma importante ferramenta de (auto)análise crítica de
todos os jogos que vêm sendo disputados e das possibilidades efetivas de
mudança social. Nesse processo, acredito que escolher um time para torcer
não seja necessariamente a saída mais crítica, tampouco: é preciso refletir
sobre a (in)efetividade das propostas e projetos, suas priorizações e recursos,
seus impactos sobre a vida de todas as pessoas, e nossos diálogos e ações
críticas com tudo isso.
Ou seja: é preciso tentar ver para além dos discursos. Em todas as
esferas. De outra forma, uma análise crítica pode se tornar ingênua, pode
chegar e receber um rotundo ‘sabe de nada, inocente’ na cara.
Com este texto não se pretende dizer, enfatize-se, que nenhuma
dessas iniciativas poderá produzir resultados interessantes e importantes
para as sociedades. Que a copa, por exemplo, traga uma indignação
contundente contra os elitismos, racismos, cisheterossexismos históricos
de nossa sociedade. E que as pessoas envolvidas nesses núcleos, centros
e universidades possam, ainda que a partir de suas restrições políticas e
institucionais, promover mudanças significativas nas perspectivas sociais
dominantes sobre gêneros e sexualidades – e, aqui, o acompanhamento
crítico dos trabalhos desenvolvidos será fundamental.
A questão, enfim, é que venho notando, cada vez mais, como os
caminhos institucionais têm sido ineficientes, e frequentemente (por
incompetência ou desintere$$e ou outras po$$ibilidades) pouco efetivos
no enfrentamento de discriminações, marginalizações e brutalizações
cistêmicas. ‘Perceber os avanços’, nos últimos tempos, tem se parecido cada

169
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

vez mais com o exercício de encontrar exceções à regra, com o objetivo de


minimizar a nitidez da regra de violências e marginalizações – tentando
fazer crer que ‘as coisas estão melhorando dentro do possível’ –, do que
com uma análise crítica de nossas (im)possibilidades de luta.
Nossas demandas políticas (as trans*, por exemplo) seguem no marasmo
do desinteresse dentro de movimentos autoidentificados lgbt’s comandados
por homens cis gays – historicamente centrados nas prioridades desses
homens –, e escondidas em um mar de exotificação e colonização acadêmica.
Quando escolhemos nossas lutas e temas de pesquisa também deixamos
de escolher algo: precisamos sempre nos lembrar disto. Essas demandas
seguem, também, na limitante dependência de recursos de hiv/aids quase
que inevitavelmente condicionados às pseudociências médicas de gênero,
e produzindo (mais) lucro e mercado para a indústria farmacêutica e
profi$$ionais médicos e cientistas (de todos tipos). Creio ser importante
pensarmos formas de autonomização em relação a esses biopoderes, ao
movimento gay e ao cistema médico-científico-acadêmico.
Nesse sentido, enfim, acredito fortemente na necessidade de
pensarmos juntas em possibilidades não institucionais/independentes de
lutas por descolonizações de gênero. Para além – e não em substituição
– às possibilidades institucionais de mudança. Falo isso como acadêmica
consciente das tentativas de cooptação cistêmica presentes em universidades
e na educação como um todo – buscando ser crítica em relação à minha
implicação nesse cistema –, e como pessoa trans* e mulher indignada com
a marginalização de nossas demandas políticas por tempo demais.
Autodeterminação, autorrespeito, autodefesa, para além dos marcos
cistêmicos que nos constrangem.

170
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

COMO OS HOMOSSEXUAIS PODEM


LIDAR COM A SOLIDÃO E O
ABANDONO NA VELHICE?80
GILMARO NOGUEIRA

Textos jornalísticos e acadêmicos têm ressaltado a dupla estigmatização


que atinge sujeitos homossexuais e idosos. Além de inúmeras situações de
abandono, várias dessas pessoas estão retornando ao armário. Essa realidade
ainda precisa ser melhor explorada por pesquisas, para que possamos refletir
como essas condições podem ser alteradas e que prioridade ela pode ocupar
na agenda política do movimento LGBT. Mas, ao mesmo tempo em que
essas pesquisas se fazem necessárias, produzem também um certo pânico e
medo desta fase da vida. A terceira idade não é apenas uma fase difícil na
vida dos homossexuais, mas um fantasma que assombra diversos sujeitos
que ainda estão distante de chegar em tal situação.
Alguns, toxicômanos de um corpo marcado pela juventude, reduzem
tais questões a (des)erotização ou (des)sexualização, mas outros recebem
essas notícias e estudos como “prova” de uma impossível existência
homossexual saudável. Assim, em lugar de se problematizar as relações
familiares e políticas que relegam os sujeitos idosos ao abandono, questiona-
se a homossexualidade e reforça-se o preconceito contra as relações entre
pessoas do mesmo sexo.
A condição da homossexualidade na terceira idade é também uma
punição social aos sujeitos – punição a um modo de vida/existência não
condizente com o esperado; uma forma violenta de dizer que, no final das
contas, uma escolha foi equivocada e que o indivíduo “optou” por um fim
trágico. Um modo de anunciar aos jovens o que pode lhes esperar no futuro,
caso não sejam heterossexuais.
Esse anúncio produz medo, receio e estigma. Alguns sujeitos passam
a acreditar que o modo de ter cuidados na velhice é através do casamento
e dos filhos, biológicos ou adotivos. Mas o abandono de muitos sujeitos
heterossexuais na velhice têm demonstrado que o casamento e os filhos

80 Publicado em 6 de maio de 2013.

171
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

não asseguram o cuidado, embora, no caso desses, pesam apenas o estigma


da velhice, uma vez que a heterossexualidade não é socialmente condenada.
Além do abandono, os sujeitos que estão nessa fase da vida, mesmo
gozando de saúde e autonomia, são vistos, inclusive entre muitos
homossexuais, como inaptos sexuais, alvo de piadas e aversão.
Lembro da expressão de espanto e aversão de algumas pessoas que
assistiam ao filme Shortbus, numa cena em que um homem idoso beija um
jovem. Essa situação também encurrala os homossexuais em uma busca
eterna de uma juventude, menos estigmatizada que a velhice. Obviamente
que esse não é o único motivo para essa supervalorização da juventude.
Mas retornando a questão da velhice e abandono, como resolver tal
situação? Foi uma das questões que analisamos num encontro de discussão
de filmes, com um grupo chamado Cineclube Sexualidades. No final do
encontro parecíamos pouco acreditar no casamento como modo de resolver
tal questão e apostamos na amizade.
O filósofo Michel Foucault também apostou na amizade. Para ele, a
homossexualidade poderia ser uma forma de escapar da normatização social
através de novos estilos de vida, novas relações e, entre essas, a amizade.
Amizade como uma relação de cuidado e afeto, tal como em épocas
passadas. Foucault chegou a dizer em uma entrevista que, após o estudo
da História da sexualidade, seria preciso pensar a história da amizade e
ressaltou a importância de novos modos de relações afetivas, sexuais, éticas
e políticas.
Amizade como política. Assim, é importante pensarmos na atuação
dos sujeitos na busca por direitos negados, mas nossa concepção de política
não pode se limitar a buscar ter o que os heterossexuais têm. É preciso
apostar em uma nova ética – em relações que formulem novos conceitos de
família e afeto, para além da instituição do casamento. Modos de cuidados
não limitados ao vínculo biológico e/ou institucionalizado.
É preciso pensar numa existência que passe pelo encontro de pessoas
que aprendem a se amar e se cuidar. E que, como em toda e qualquer
família, há também brigas, desencontros e reencontros. Foi essa a sensação
ao final do nosso cine debate – de que o futuro é sombrio, incerto, mas
que não precisamos enfrentar isso sozinhos e que ninguém poderá cuidar
de nós tão bem quanto nós mesmos. É por isso que, no momento, o que
melhor podemos fazer é valorizar mais as nossas amizades do que, por
exemplo, as marcas de nossas roupas.

172
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

DIANTE DA OLIMPÍADA DE
OPRESSÃO, OU PRODUZIREMOS
UM PARENTESCO SUBALTERNO
OU JAMAIS CONSEGUIREMOS TER
EFETIVAMENTE UM MOVIMENTO
LGBT81
GILMARO NOGUEIRA

Milhares de povos originários das Américas, tribos e línguas foram


dizimados/as pelos colonizadores, que souberam utilizar, além de estratégias
militares e violentas, as desavenças entre as diversas identidades do que hoje
chamamos de indígenas. Mas qual a relação desses fatos com a questão
LGBT? É que a política conservadora avança, a passos largos, nas diversas
instâncias dentro e fora de governos. Se os conservadores não incentivam ou
utilizam nossos estranhamentos cotidianos como estratégias, tais querelas
favorecem o retrocesso da garantia de direitos de diversos sujeitxs e grupos.
Os indígenas utilizaram a nomeação imposta a eles – índixs, para criar
uma relação de parentesco, que promovesse uma união e estratégia de
coletividade, mas que também conservasse suas diferenças culturais. Nós
LGBTs, ao contrário, não temos um termo que possa promover tal relação
de conjunção política, como o conceito de sororidade, por exemplo, para
indicar uma aliança ou pacto entre as mulheres. Também não temos uma
estratégia política que nos agrupe respeitando as nossas diferenças.
Nesse sentido, não há uma comunidade LGBT, pois cada um de nós
têm uma estratégia diferente (o que não é um problema), mas, por vezes,
parecemos ter também objetivos diferentes. É um caminho tão perigoso,
o qual trilhamos, que conceitos e críticas que nos libertam e promovem
potências também destroem nossas possibilidades de luta conjunta.
O exemplo dos indígenas nos mostra que não precisamos ser iguais,
nem ter as mesmas identidades, para produzir um parentesco do subalterno.
A divisão de diversos grupos em subgrupos e a pluralização das identidades

81 Publicado em 8 de agosto de 2016.

173
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

não são empecilhos para uma luta conjunta ou, no mínimo, parcerias
estratégicas, mas nem isso está acontecendo. Bom lembrar que mesmo a
relação de parentesco artificialmente produzida pelxs índixs não impediu/
impede que seus direitos sejam desrespeitados e que sejam violetadxs
rotineiramente, mas seria catastrófico não ter um pacto/aliança entre eles.
Obviamente nossas opressões não são iguais, nem mesmo dentro
de um grupo identitário as pessoas sofrem do mesmo jeito. Não quero
deslegitimar que temos privilégios. Eu, homem, negro, tenho privilégios
que viso reconhecer cotidianamente, principalmente quando analiso a vida
das pessoas trans – cotidianamente violentadas. Reconhecer os privilégios
é uma forma de reconhecer a opressão dos outros e lutar contra essas
opressões, ou contra nossa cumplicidade.
Certa vez, uma pesquisadora disse que sua branquitude não chegava
ao Estados Unidos. A minha branquitude não se sustenta nem no “meu”
bairro. Meus privilégios, embora sejam privilégios, se comparados a outras
existências, são precários, e não os problematizo para buscar um lugar de
vítima, mas de parentesco. Como privilegiado precário, eu transito entro
o status de vítima e agressor facilmente. Nos hierarquizamos facilmente
ou, como disse uma autora que não lembro o nome: “numa sociedade
dividida, as consciências são divididas!” Nós, sujeitos subalternizadxs, nos
violentamos constantemente porque nossas consciências, sem exceção, são
divididas.
Reconhecer meus privilégios não significa que eu, sujeito precário,
possa me dar ao luxo de não encampar lutas, comprar brigas para que não
somente eu, mas xs outrxs, possam ter mais legitimidade. Não é porque eu
sou caridoso, mas porque considero impossível ser um cidadão de primeira
classe, ou de classe intermediária, sozinho ou apenas no grupo que me
designam. Minha luta depende da luta de outrxs subalternxs. Outrxs
sujeitxs, mais ou menos privilegiados, não podem se eximir das lutas ou
serem cúmplices.
Mas a luta do lado de cá dxs oprimidxs é complexa. Se eu me proponho
a gritar com algum grupo com o qual me designam, sou acusado de excluir
os outros. Se quero gritar junto, sou acusado de invisibilizar xs outrxs. Se eu
não grito, eu sou cúmplice. Enquanto privilegiado precário eu sei que meu
grito só ecoa junto com outros grupos. Juntos, não é meu grito, nem nosso
grito, mas um outro grito, uma nova sonoridade.
O meu sentimento, e não apenas meu, mas de muitas pessoas, é que o
grito de quem luta contra nós, embora não possa ser justo, é mais solidário,

174
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

pois atravessa suas diferenças com o objetivo de manter as hierarquias e


as tradições que há décadas subalternizaram todxs que não participam do
status de branquitude heterossexual burguesa.

175
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

É PRECISO TRANS-FORMAR O
MOVIMENTO LGBT82
GILMARO NOGUEIRA

Ainda hoje encontro pessoas que não sabem o significado de cada


letra do movimento lGbt (G em caixa alta, de Gay Governista). Isso
porque, desde da década de 80, essa “sopa de letrinhas” tem passado por
mudanças, de GLS, GLBT, LGBT e, por último, LGBTI, incluindo os
sujeitos Intersex. Por vezes já inclui os sujeitos que se denominam Queers,
Assexuais, entre outros, e não vejo problemas em colocar o alfabeto na sigla
e evidenciar o quanto cada sujeito é singular.
Nos últimos anos, ao menos nos últimos dois, parte do movimento
T tem criticado o movimento social por ser GGGG (Gay, Gay, Gay,
Gay) e, inclusive, dito que transexuais e travestis deveriam se separar do
movimento. E essas pessoas têm motivos para tal. Não concordo com essa
separação, mas é preciso rever nossas formas de organização e está mais
do que na hora de evidenciar o T em nossas letrinhas, ou seja, transformar
o movimento em TLGBI ou qualquer outra ordem que comece com o T.
Mas colocar a letra T em evidência não significará nada se o movimento
continuar com os caciques Gays à sua frente, dizendo que falam em nome
de todxs e, por vezes, com posturas machistas, misóginas e transfóbicas.
Diferente do deputado federal Jean Wyllys, que acredita que o
casamento civil igualitário fará uma transformação na sociedade (o que
ainda não aconteceu em nenhum país onde ele passou a ser permitido, vide o
livro Que os outros sejam o normal, de Leandro Colling), penso que as pessoas
trans tem mais a contribuir que as cerimônias, os ritos de monogamia e o
pleno acesso à divisão de bens, pois elas deslocam as concepções de sexo,
gênero, desejo e práticas sexuais.
Não quero dizer que os sujeitos trans estão fora da norma, mas
evidenciam que ter um pênis ou uma vagina não estabelece uma verdade
sobre o corpo ou gênero. Também não vejo como diminuir o preconceito
contra as outras letras/sujeitos sem problematizar essas concepções ineares

82 Publicado em 23 de novembro de 2015.

176
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

e naturalistas sobre as sexualidades e gêneros.


Mas sem leis que protejam os sujeitos trans, seja na saúde, educação ou
em outros setores da vida, nada disso será possível. Com o momento das
conferências estaduais lGbt é hora de colocar em evidência o movimento
T. Escolher mais delegados transexuais e travestis ou ao menos garantir
que ocorra uma divisão igualitária. O que não irá acontecer se repetirem o
que ocorreu na conferência passada, quando líderes do governo entregaram
papeis com os nomes de quem deveria ser votado. Para ter um lugar ao
sol na Rede LGBT Governamental, as pessoas seguiram as indicações,
pensando em um governo e não nos sujeitos.
É hora de transexualizar o movimento, de pensar nossas representações
midiáticas e leis que tomam os gays como prioridade, embora esses tenham
mais conquistas. Vamos de T, de transformação, porque todxs temos a
ganhar.

177
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

E AÍ, NESTE DIA DA CONSCIÊNCIA


NEGRA, VAI UM NEGÃO? 83
CARLOS HENRIQUE LUCAS LIMA

O dia 20 de novembro marca o Dia da Consciência Negra, momento


em que negras/os de todo o país celebram e afirmam a sua negritude.
Contudo, depois de tantos séculos de escravidão e racismo institucional,
amparado juridicamente pelo Estado Brasileiro, não podemos afirmar que
o racismo, e quem sabe talvez sequer a escravidão, tenham chegado ao fim.
São constantes, e amplamente noticiados, os casos de discriminação
por raça/etnia. Também são numerosas reportagens sobre trabalho escravo
em pleno século XXI. Todas essas notícias nos chocam, mas, ao mesmo
tempo, chamam a atenção para o fato de que discursos e práticas racistas não
cessam por meio da simples dança da caneta presidencial que firma uma lei.
Tais discursos e práticas são poderosos/as, pois representam a perpetuação
de uma metodologia de coisificação/abjetificação do outro – nesse caso do
negro – inaugurada com o colonialismo europeu do século XVI.
Por exemplo, muito embora muitas pessoas compreendam que somos-
todos-iguais-e-que-ninguém-deveser-discriminado, máxima que é repetida
quase que como um mantra, os sistemas de representação e a própria
linguagem que utilizamos para nos referir aos/às negros/as, mantêm, e o
que é mais grave e crucial para o argumento deste texto, ajudam a perpetuar
um entendimento que termina por essencializar os corpos/subjetividades
de negros e negras. E é sobre isso especificamente que quero falar neste
texto.
Flanando pela internet, me deparei com esta notícia: “No dia da
consciência negra, festa de sexo com homens bem dotados agita São Paulo”.
O título da matéria já toma como premissa a ideia de que homens negros
têm pau grande; em segundo lugar, vale também dizer que a notícia, ao
supostamente apenas informar um conjunto de festas para celebrar o Dia
da Consciência Negra, parece que tem como público leitor os homossexuais
brancos e, no mínimo, de classe média, clientela que mais se interessaria

83 Publicado em 20 de novembro de 2013.

178
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

pelas “peças” negras.


Mas qual é o grande problema de tudo isso? Haveria alguma coisa de
ruim ao apenas noticiar uma festa cujo mote é a comemoração do Dia da
Consciência Negra em um clube de sexo para homens gays? Seria esse texto
mais um exemplo do chamado politicamente correto norte-americano?
Para responder a essas e a outras questões, quero invocar algumas ideias da
crítica cultural contemporânea, mais especificamente aquela de orientação
pósestruturalista.
Em primeiro lugar, a identidade e a diferença são produções culturais
mediadas por relações de poder. Nunca dados apriorísticos da “realidade”.
Quando afirmo isso, o que quero dizer é que não há uma essência na
negritude que informe sua predileção pelo sexo desenfreado e a presença
de uma virilidade sem-fim. Sustentar isso é reeditar o racismo científico
que alimentou as proposições de sujeitos como Nina Rodrigues e Euclides
da Cunha, para os quais raça e meio eram cruciais para a definição da
identidade.
A negritude, como todo construto cultural, é exatamente um construto,
resultado de intrincadas operações, cuja origem se encontra nos sistemas de
diferenciação, ou seja, o negro é a minha diferença, ele é aquilo que eu não
sou. E não é preciso marcar quem é o referente de afirmações como essas.
Em segundo lugar, se já combinamos que a negritude, ou apenas a
identidade negra, assim como toda e qualquer identidade, é resultado de
operações linguísticas de diferenciação, sempre mediadas por relações de
poder, ao repetirmos ideias prontas sobre negros e negras indefinidamente,
em um movimento linguístico que o filósofo argelino Jacques Derrida
chamou citacionalidade, ao contrário de tão só indicarmos uma “realidade”,
um “fato” da vida, acabamos por produzir a mesma realidade que pensávamos
apenas estar descrevendo. Retiramos a sentença/ideia “negros são pauzudos”
de um repertório cultural já cristalizado e, portanto, naturalizado pela
repetição e o inserimos em um novo contexto que imaginamos ser fruto de
nossa plena vontade, de nossa ideia original sobre os corpos negros.
Em terceiro e último lugar, venho pincelando que a instituição da
identidade e da diferença é mediada por relações de poder. Dizer isso é
constatar que não é qualquer pessoa e/ou grupo social que pode, ao seu
belprazer, produzir identidades e diferenças. São aqueles grupos em
posições privilegiadas de poder que dispõem das condições materiais
e simbólicas capazes de produzir, de modo mais eficiente, identidades
e diferenças. Assim, não são os negros, no exemplo de nosso texto, que

179
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

produzem suas identidades, que formulam a ideia “somos pauzudos e viris”,


mas sim discursos racistas e, às vezes, disfarçados de “fetichistas” – mas que
não deixam de ser menos racistas, como é o caso da matéria que “noticia”
a festa com homens negros pauzudos –, os quais terminam por retomar e
reforçar estruturas racistas conhecidas por nós de longa data.
Na mesma página dessa notícia, há uma chamada para um link externo
em que são anunciados vídeos de “homens negros metendo a vara sem dó”,
em que um dos primeiros vídeos a estampar a home do site tem a seguinte
frase por título: “Uma gangue de negros favelados metendo sem parar”.
Parece que começamos a enxergar, assim, como que a linguagem, longe
de supostamente apenas relatar/descrever uma “realidade” da vida, uma
“verdade” do mundo, qual seja, “os negros são pauzudos, comedores e são
todos favelados”, ao fim institui a própria realidade, reforçando estereótipos
racistas e, no caso em questão, também classistas.
Mas é possível subverter os estereótipos. A despeito de sermos
subjetivados, quer dizer, produzidos como sujeitos pela linguagem,
devemos ter presente que essa mesma linguagem nem sempre é firme e
constante. Ela escapa. Desliza constantemente. Como assim? Se nossas
identidades são resultado de processos de diferenciação, de constantes
repetições linguísticas que terminam por se naturalizar, elas podem, de igual
forma, serem construídas de outras e renovadas maneiras, subvertendo e
complicando as representações que se querem “originais” e “verdadeiras”.
Por exemplo, homossexuais negros também podem ser passivos!
Homossexuais negros não necessariamente têm picas grossas e enormes;
não necessariamente fazem sexo a todo o momento, só se assim o desejarem!
É preciso que tiremos as lentes racistas, ranço e espectro da colonização,
e invistamos em renovadas e variadas formas de viver nossas sexualidades
e desejos. Mas esse não é um movimento descomplicado: os sistemas de
representação são fundamentais nessa questão toda. Esses sistemas, como a
TV, os jornais, as revistas, os sites etc., da mesma forma que anteriormente
afirmei, antes de supostamente apenas representarem a “realidade” em suas
linguagens, ao cabo terminam por instituir verdades e realidades sobre os
corpos de negros e negras. De homossexuais e também de heterossexuais.
Neste Dia da Consciência Negra, comece por desconstruir os
estereótipos sobre a negritude e sua(s) sexualidade(s). Talvez esteja aí uma
ideia bacana para compreender a noção de “consciência”.
Beijos afrogueis!

180
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

COTAS RACIAIS: O QUE OS ESTUDOS


QUEER TÊM A DIZER SOBRE ISSO?84
CARLOS HENRIQUE LUCAS LIMA

Este texto nasce como uma resposta ao crescente e acalorado debate


em torno do projeto de lei 6.738/13, recentemente encaminhado pelo
Executivo a diversas comissões para apreciação, cujo propósito é a reserva
de 20% das vagas dos concursos públicos de entes vinculados a essa esfera
da República para negros e negras.
Muitos/as leitores/as, em face dessa problemática, talvez se questionem:
qual a relação do tema das cotas raciais com os estudos sobre (homo)
sexualidades? E mais: o que os estudos queer teriam a dizer sobre isso?
(essa última questão seria possível apenas na medida em que o/a leitor/a
aceitasse a premissa de que eles têm algo a dizer sobre o tema). Minha
opinião é a de que sim, têm os estudos queer algo a dizer sobre as cotas
raciais, e será sobre isso que conversarei com vocês ao longo deste breve
texto.
Venho já discutindo, em outras oportunidades, sobre como a
colonialidade, quer dizer, o regime político e epistemológico (do âmbito
do conhecimento) inaugurado no Brasil a partir de 1500, exerce, ainda em
nossos dias, uma nefasta influência sobre as maneiras como compreendemos
corpos, sexualidades, gêneros, raças/etnias, posições sociais, religiões etc.
Pra ficar menos nebuloso: quando enxergamos o sexo como uma forma
dual de viver a sexualidade – heterossexualidade ou homossexualidade,
estamos falando, por assim dizer, a “língua” da colonialidade, que restringe
nosso olhar, reduzindo-o ao binarismo (as coisas apenas podem ser se
forem duais e opositivas). É como se uma força invisível, mas não menos
poderosa, impedisse que outras possibilidades de experiência sexual fossem
elaboradas para além do binarismo.
E isso não ocorre apenas no campo da sexualidade. A maneira
como encaramos a raça/etnia (e é preciso ainda dizer raça, uma vez que
enquanto categoria cultural ela segue vigente, pois distribui privilégios a

84 Publicado em 9 de dezembro de 2013.

181
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

uns e os nega a outros), como lidamos com as relações raciais no Brasil,


é profundamente perturbada pelo ideário colonial que segue vivo como
espectro, como fantasma. A discriminação racial segue aí para comprovar
isso. As leis 7.716/89 e 10.639/03 que, respectivamente, tratam de punir
atos de racismo e da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-
brasileira na educação básica, também são o reconhecimento, por parte do
Estado, de que o ideário colonial segue ainda vigente.
No texto E aí, neste Dia da Consciência Negra, vai um negão?, chamei
atenção para o fato de que a instituição da identidade e da diferença, isto é,
a demarcação de papeis sociais, não é um movimento nem descomplicado
nem livre da ação do poder, ou melhor, das relações de poder. Ou seja,
segundo esse entendimento, não são os grupos minoritários – a diferença,
como negros, homossexuais, mulheres, estrangeiros etc. que definiriam,
livremente, suas identidades, mas desde a perspectiva da identidade
hegemônica que as outras identidades seriam formuladas. E aqui está a
chave de minha argumentação. Aqui me detenho, portanto.
Os estudos queer, como parte de um conjunto maior de estudos que
na Universidade chamamos “teorias das subalternidades”, compartilham da
compreensão que mais acima citei, apontando não só o papel de paradigma,
de régua de comparação que o homem branco burguês e heterossexual
exerce na instituição das subjetividades, mas ainda a característica
impositiva, e sempre violenta, da própria heterossexualidade, que se insinua
como modelo até mesmo sobre as subjetividades de pessoas LGBTs.
Tudo isso nos diz que, mesmo aquelas identidades supostamente mais
subversivas, quer dizer, que mais se distanciam da norma, do que mais
acima chamei “régua de comparação”, são não só alcançadas como também
definidas e instituídas a partir da identidade hegemônica heterossexual.
Assim, a capacidade de agência, ou seja, a possibilidade de escape da zona
de influência do ideário sexual heterossexual – e da própria colonialidade –
estaria sensivelmente limitada. E é nesse ponto que as cotas raciais aportam,
pela lente dos estudos queer, uma esperança.
Seja o projeto de lei que reserva 20% das vagas no serviço público
vinculado ao Executivo, seja aquela que reserva vagas nas universidades
públicas federais, a metodologia da autodeclaração, espinha dorsal dessas
legislações, concede ao sujeito declarante potentes ferramentas capazes de
produzir, no âmbito jurídico e no âmbito da etnicidade, sua identidade,
enfraquecendo a hegemonia da branquitude.
Se nossas sexualidades, nossos gêneros, nossas etnias etc. são

182
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

enquadrados/as pelo que chamei de colonialidade (o ideário colonial),


a autodeclaração promove a oportunidade não só de se autodefinir, de
produzir ativamente a identidade étnica, como ainda de positivar, de
desconstruir aqueles atributos que, devedores da colonialidade, depreciam
as identidades minoritárias.
Não será a experiência da injúria que guiará a instituição da identidade,
mas a autodeclaração, esperança da palavra de onde nascerá a igualdade.

183
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

SERIA POSSÍVEL UM “ROLEZINHO”


GUEI?85
CARLOS HENRIQUE LUCAS LIMA

Nos últimos dias, os meios de comunicação têm dado bastante


atenção a um fenômeno apelidado de “rolezinho”. Mas o que seriam os
tais “rolezinhos”? Antes de prosseguir e tentar construir uma resposta,
vale dizer que não há, no interior da linguagem, um lugar neutro em que
o sentido das coisas repousa seguro: quando dizemos o que uma coisa é,
antes de apenas colocarmos em evidência sua verdade, o que fazemos é,
ao contrário, construir a própria coisa em si. Assim, em relação ao que
vem sendo denominado “rolezinho”, o que direi neste texto vai filtrado pela
lente ideológica que utilizo, já amplamente conhecida pelxs leitorxs.
Mas este texto não trata tanto dos “rolezinhos”, mas questiona se seria
possível pensar em um “rolezinho” guei. Para isso, quero recorrer à uma ideia
muito particular de gueto guei na tentativa de relacioná-la ao fenômeno
dos rolezinhos que, a partir de agora, vão sem aspas.
Longe da ideia canônica de gueto, ligada à opressão e à exclusão ou
reclusão de minorias, na atualidade o gueto guei pode ser compreendido
como um lugar de solidariedade cultural no qual esses sujeitos partilhariam
valores existenciais e construiriam uma identidade comunitária. Para além
de uma compreensão que reduz os guetos a meros espaços regulados pelo
capital, cobram relevância esses lugares, especialmente se levarmos em
consideração o crescimento das formas de fobias contra as comunidades
LGBT. O espaço do gueto guei se constituiria, assim, em um espaço não
só de criação de laços comunitários, como ainda um ambiente de proteção
e partilha.
O rolezinho guei, nessa perspectiva, seria a ampliação do gueto, espaço
reduzido e geralmente insalubre, para espaços outros em que a palavra
mestra seria visibilidade. Em Porto Alegre, minha cidade natal, os e as
LGBTs ocupam, há muitos anos, o Parque da Redenção (para os mais
íntimos, “Rebeca” ou “Redereca”) e áreas próximas todos os domingos,
momento em que se reúnem para fexar, buscar um boy ou simplesmente

85 Publicado em 16 de janeiro de 2014.

184
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

tricotar sobre o babado da noite anterior.


É o espaço público, um parque municipal, sendo massivamente ocupado
pelo gueto: é a disseminação dos diferentes para locais de visibilidade e
manifestação pública de afeto. Já comentei em outro texto sobre os lugares
de pegação, maneira menos visível, mas não menos poderosa, de ocupação
do espaço público.
Em Porto Alegre, também é possível testemunhar o deslocamento,
como em uma grande marcha, que os e as LGBTs, sobretudo as beeshas,
fazem da Rebeca a um pequeno shopping próximo ao parque. Vão em
bandos e acompanhadas de muita fexação e, como se diz na Bahia, muita
churria. Em diversos momentos, esse fenômeno foi ativamente combatido
pelo poder público municipal, que enviava policiais militares montados a
cavalo para frear a “pouca vergonha” das beeshas loucas. Desconheço como
anda o movimento atualmente, mas certo é que nem cavalos ou cassetetes
podem impedir a proliferação da diferença: ela se reinventará e continuará
a expandir o gueto.
Em Salvador, poucos são os espaços públicos ocupados pelas pessoas
LGBT. Algumas praças de alimentação de shoppings, como o Center Lapa,
mas que, conforme me contam alguns amigos, ultimamente vem sendo cada
vez mais menos frequentado por nós. À exceção de poucos locais públicos
de pegação, que aqui não cai bem revelar, já que o olho da repressão nunca
se fecha, Salvador não dispõe, e nem se incomoda com isso, de grandes
espaços públicos de sociabilidade e encontros comunitários, como praças
e parques. O Campo Grande, espécie de parque urbano encravado no
coração da cidade, desde o começo de 2013, com o brutal extermínio de
Itamar Ferreira Souza, já não mais se apresenta como local de encontros
comunitários. Só se o reinventarmos.
Há, no entanto, o Porto da Barra, bastante frequentado pelas beeshas
sobretudo nas sextas, sábados e domingos à tarde. Há quem diga que
grande parte desse público é composto pelos “órfãos” da antiga Barraca
Aruba, já finada. Talvez Salvador seja uma cidade em que, ao contrário de
Porto Alegre ou de São Paulo, não sejam os parques e praças os cenários
privilegiados do rolezinho guei, mas sim as praias e orlas.
Se tomarmos, portanto, o rolezinho guei como um movimento que
amplia a transformação do espaço público em gueto, de visibilização da
diferença e de provocação de incômodo no interior das normalidades – o
espaço burguês por excelência, o rolezinho guei não só é possível, como
também é desejável.
E aí, beesha, quer dar um rolé por aí?

185
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

POR QUAIS MORTES NÓS CHORAMOS?


UMA REFLEXÃO SOBRE OS CORPOS
QUE IMPORTAM86
CARLOS HENRIQUE LUCAS LIMA

Você é quem você pensa que é? Essa pergunta pode parecer, para
algumas pessoas, descabida ou até mesmo delirante. Ora, você pode dizer,
recorrendo a uma explicação religiosa: “o que eu sou é aquilo que ‘deus’ quis
que eu fosse, a sua imagem e semelhança”, ou recorrendo a uma explicação
que suprime a ideia de um ‘deus’: “eu sou o que meu corpo diz que eu sou:
sou um homem/mulher, de tal o qual raça/etnia” etc. As explicações são
muitas, basta perguntar por aí que as mais variadas origens surgirão. No
entanto, e se você não fosse aquilo que crê que é, ou melhor, e se você fosse
outra coisa, e mais além, e se você se tornasse outra coisa após o próximo
minuto, após a leitura deste texto?
Antes de analisar alguns exemplos, tais como a tragédia na boate Kiss
e os assassinatos de homossexuais, farei primeiro uma reflexão conceitual
mais abstrata. Convido você a me acompanhar até chegar ao objetivo final
do texto.
Em um de meus textos, afirmei que somos, desde pequenos, informados
sobre qual é nosso sexo e qual é nosso gênero. É-nos dito como devemos
nos portar, de quais maneiras podemos falar, em quais ambientes é ou não
possível um gesto, uma ação, uma palavra; é-nos ensinado, ainda, como usar
os nossos corpos, quais os usos de cada parte, quais os limites entre o dentro
e o fora, entre o eu e o não eu. Todo esse falatório sobre o eu, na verdade,
configura-se enquanto discurso de poder que visa instituir verdades sobre
nossos corpos e sobre nossos gêneros. Como assim?
Em uma das hipóteses iniciais em relação à questão sobre o que eu sou,
sugeri ‘deus’ ou apenas, se você preferir, a divindade como a origem doadora
da identidade. Nessa hipótese, recorre-se a uma explicação sobrenatural e
espiritual para justificar uma série de interdições e regulações sobre nossos

86 Publicado em 28 de julho de 2013.

186
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

corpos. Somos, nos dizem, o que ‘deus’ quis que fôssemos: sua imagem
e semelhança. É um discurso de verdade que busca em ‘deus’ o modelo
de comportamento e de estar no mundo. Já na segunda hipótese, aquela
que recorre a uma explicação ontológica, quer dizer, que lê o corpo como
possuidor de uma verdade interior, de um eu interno que nos diz o que
somos, de igual forma, vale-se de uma construção da interioridade, de
um relato, que acaba por construir – por criar, a própria interioridade que
pretende explicar o que somos. A “origem” nada mais é do que o próprio
efeito do discurso que tenta dar conta da mesma “origem”.
Ser homem ou ser mulher, e o ou já coloca o tema da dualidade do
ser em questão, é uma forma de explicar, de ler a materialidade do corpo
à luz de uma chave binomial restritiva e perversamente excludente. Não
representa, em si, uma verdade do corpo, de sua matéria, mas sim a própria
produção das categorias – homem/mulher – que entende como explicações
do corpo. Assim, pergunto: é o corpo que nos informa sua verdade ou são
os discursos sobre ele que terminam por construir a verdade sobre esse
próprio corpo?
Judith Butler, autora já citada por mim e demais textos do livro, nomeia
essa cadeia de discursos que fundam verdades, seguindo uma tradição de
estudos na área da linguística, de atos performativos. De maneira mais
específica, esses atos seriam aquelas práticas discursivas que realizam ou
que produzem aquilo que nomeiam. O gênero – masculino/feminino –
segundo a autora, apresentase como um ato performativo que se estabiliza
por meio de sua constante repetição, por intermédio do que ela chamou de
cadeia de citações. Serão essas cadeias de citações que darão estabilidade
aos gêneros e os revestirão de uma aparência de naturalidade.
Essas cadeias de citações, inseridas em uma lógica coercitiva e
regulatória, a serviço da matriz de inteligibilidade heterossexual, sobre
a qual também já falamos, dizem o que é um corpo viável, o que é um
gênero aceitável e, por fim, terminam por determinar o que é e o que não
é humano ou, nos termos de Butler, “que estilos de vida são considerados
‘vida’, quais vidas vale a pena proteger, quais vidas vale a pena salvar, quais
vidas merecem que se chore a sua perda?”87
Nesse ponto, tanto as discussões em torno do sexo/gênero são postas
em cena quanto aquelas relacionadas à raça/etnia: quais corpos devem ser
87 BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del
“sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2002, p. 39.

187
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

considerados dignos do estatuto de humanidade e de valorização? Você deve


estar se questionando: o que significa dizer que a definição da humanidade
passa por marcadores sexuais e de gênero e étnico-raciais? Para que uma
possível resposta apareça, basta que historicizemos o “ser humano” e nos
daremos conta de que “humanidade” nem sempre significou o que hoje
entendemos como tal. Houve períodos na história, você deve se lembrar,
que negros e negras e indígenas não eram considerados pessoas; recuando
um pouquinho mais na história, veremos, também, que a categoria “mulher”
não sempre gozou do estatus de “gente”.
Esses exemplos dão conta de mostrar que as categorias “homem”,
“mulher”, “pessoa” não passam de contingências, de solidificações
temporárias de discursos de poder que encontram sua força na repetição.
Quem garante, por exemplo, que você é um “homem”? O que é ser homem?
É reafirmar, de maneira linear, a linha da matriz de inteligibilidade sexual,
na qual homem é aquele que performa (que atua) o gênero masculino,
que deseja mulheres e que as penetra? Afora isso, o que teríamos? O que
preencheríamos no documento de identidade? O que diríamos de nós
quando fôssemos preencher um cadastro de emprego: “sou homem, mas não
penetro mulheres”?! Ou quem sabe pensaríamos, sem colocar no cadastro é
claro!, que seríamos homens apesar de não penetrarmos mulheres? Ou de
as penetrarmos, mas não as desejarmos?
Mas não quero seguir nessas divagações, já exploradas em outros
textos. Quero seguir pensando em quais são os corpos que contam como
corpos, que são considerados dignos de serem nomeados como “pessoa”.
Se a construção de verdades sobre os corpos, sobre os sexos, sobre os
gêneros não passa de uma cadeia de citações, seria justo e lógico pensar
que, então, haveria um sujeito no interior dessa cadeia a ditar e a enunciar
tais expressões realizatórias. No entanto, seguindo ainda as explicações de
Butler, o que ocorre, de fato, ao contrário de um sujeito intencional que
enuncia ao seu bel prazer, é a força derivativa da cadeia de citações, como
quando um juiz – ou juíza – celebra um casamento ou decreta uma sanção
não com base em sua vontade pessoal, mas sim pela força da lei, por meio
do próprio poder das citações.
Portanto, não é voluntariamente que assumimos um sexo e um gênero,
mas, ao contrário, é a própria força da matriz de inteligibilidade sexual,
a despeito de nossa vontade pessoal, que nos funda sujeitos por meio de
uma designação de heterossexualidade compulsória. Em outras palavras,
nosso corpo cobra sentido – inteligibilidade – na medida em que se ajusta

188
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

às normas regulatórias da sexualidade; será por e na adequação aos ditames


de tais normas que nossos corpos ganharão sentido e poderão ser lidos pela
cultura.
Mas o que acontece com aqueles corpos que não se enquadram
nos apertados padrões de regulação sexual? Esses corpos passam a ser
consideramos corpos abjetos, a própria excrescência – a merda – que precisa
ser expelida do corpo social.
O exemplo da tragédia da boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria,
ilustra, de maneira muito evidente, o argumento que venho desenvolvendo
até aqui. Muito se falou sobre as cerca de 242 pessoas tragicamente mortas
no incidente. Meios de comunicação internacionais se deslocaram para a
então quase desconhecida cidade para noticiar o aterrador episódio. Até a
presidenta Dilma, por ocasião de um pronunciamento sobre o caso, chorou.
“A nação chorou”, dizia-se à época. Mas o que me inquietou durante todo
o período em que se falou sobre o caso foi a seguinte questão: quais corpos
merecem ser chorados, quais vidas merecem ter sua extinção lamentada,
pranteada nacionalmente?
Não se trata aqui de diminuir a tragédia. O que desejo que minhas
palavras suscitem é uma reflexão em relação a por que algumas vidas
valem mais do que outras, ou por que algumas mortes comovem mais
do que outras mortes? A cada 26 horas, segundo o Grupo Gay da Bahia
(GGB)88, um homossexual é assassinado no Brasil. Dentre essas mortes,
a maioria delas é de homens homossexuais e travestis, como o foi o caso
do jovem Itamar Ferreira Souza, de 25 anos, encontrado morto na manhã
do dia 13 de abril de 2013, na Praça do Campo Grande, em Salvador.
A Faculdade de Comunicação da UFBA, onde Itamar estudava Produção
Cultural, foi, antes da polícia, a primeira fonte a levantar a suspeita de
motivação homofóbica89. Segundo algumas outras fontes90, o estudante foi
encontrado com a bermuda abaixada até os joelhos, o que indica a intenção
dos assassinos de, até mesmo na morte, marcar no corpo o estigma da
homofobia, na tentativa de justificar o extermínio de Itamar.
Assim, me pergunto: que valor têm esses corpos em nossas sociedades
ocidentais, ditas civilizadas e democráticas? Por que razão o governo
88 http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimasnoticias/2013/01/10/brasil-e-pais-com-
maior-numero-de-assassinatosde-homossexuais-uma-morte-a-cada-26-horas-diz-estudo.htm. 9
89 http://g1.globo.com/bahia/noticia/2013/04/corpo-de-estudante-defederal-da-ba-e-
achado-na-praca-do-campo-grande.html
90 http://homofobiamata.wordpress.com/2013/04/13/8014/

189
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

brasileiro, a despeito do clamor da quase totalidade do movimento social


LGBTTTQI brasileiro, não retoma o Projeto Escola Sem Homofobia?
Quais são os corpos que realmente importam?
Os estudos queer nos ensinam, entre outras questões, que aqueles/as
considerados/as abjetos possuem potências capazes de repetir as normas
regulatórias de sexualidade de maneira a desestabilizar a presumida
naturalidade dessas normas. A repetição com diferença, ou apenas subversão,
abre possibilidades de desviar a cadeia de citações que estabilizam as
normas regulatórias até o ponto de expandir a própria significação do que
no mundo se considera um corpo com valor.
Quem é você? A imagem de um ‘deus’? A materialização de um eu
profundo e escondido no interior da alma, no centro da ontologia? Mais
importante do que saber o que somos – uma impossibilidade epistemológica,
o que vale é apostar no que podemos nos tornar, é ampliar a categoria de
humanidade até o ponto em que não mais precisemos definir quem ou o que
é digno de valor, em que a própria categorização perca sua funcionalidade
de exclusão e sejamos pura potência de vida, puro devir.

190
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

QUANTAS ORELHAS AINDA TEREMOS


DE ARRANCAR? A VIOLÊNCIA COMO
POLÍTICA LEGÍTIMA DE RE(EX)
SISTÊNCIA91
CARLOS HENRIQUE LUCAS LIMA

“Nós pessoas trans além de sermos todxs Verônica somos os


dentes dela que se revoltou por ela e por nós.”
Indianara Alves Siqueira, extraído do Facebook

Ultimamente tenho refletido sobre a legitimidade da violência nos


casos em que ela é empregada por sujeitos pertencentes a minorias sexuais
e étnicas. Haveria casos em que a violência se justificaria? Seria possível
pensar em uma legitimação da violência? Defender ações violentas como
um gesto político não seria incentivar a vingança no lugar de confiar na
justiça?
Pensei nesse tema sobretudo após assistir ao filme Django livre,
de Tarantino, e depois de ler notícias sobre o espancamento brutal e a
humilhação pública da travesti Veronica Bolina por parte da polícia de
São Paulo. A imagem publicizada pelos meios de comunicação a mostram
jogada no asfalto com os seios expostos e com o rosto completamente
desfigurado. Segundo o que se depreende da leitura de algumas dessas
notícias, as agressões sofridas por Bolina seriam a resposta policial a uma
mordida na orelha que ela teria dado em um agente carcerário, as quais,
ainda segundo as fontes, implicaram a decepação de parte do órgão. A
imagem de Bolina divulgada pelos
meios de comunicação revela um corpo no qual não habita uma pessoa:
trata-se de uma incompreensível carne ferida e animalizada.
No filme de Tarantino, a personagem Django, escravo negro que tem

91 Publicado em 18 de abril de 2015.

191
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

sua liberdade comprada pelo caçador de recompensas alemão conhecido por


“Dr. Schultz”, parte na companhia deste em uma jornada cujo propósito é a
libertação de sua amada, uma negra que pertence a um cruel “sinhozinho”
organizador de lutas entre negros (uma espécie de arena da morte da
qual só se sai vivo ou morto). Acompanhadas por uma espetacular trilha
sonora, como não poderia deixar de ser em se tratando de uma película
de Tarantino, as cenas de violência põem em primeiro plano um Django
livre, que exerce o papel ao mesmo tempo de juiz e executor de pessoas
que a narrativa fílmica faz questão de representar como seres desprezíveis e
passíveis de serem mortos.
Django Livre e o espancamento brutal da travesti Veronica Bolina
têm em comum a marcação de raça/etnia dos sujeitos que protagonizam
as narrativas: são, ambos, negrxs que ocupam posições de extrema
vulnerabilidade nas sociedades nas quais aparecem. A personagem de
Django não só se rebela em relação aos estereótipos sobre as pessoas
negras (em uma cena do filme, a personagem do sinhozinho, representada
pelo ator Leonardo DiCaprio, disserta sobre a “inferioridade” dos negros,
ilustrando sua fala a partir de argumentos da frenologia), como também
decide, ela mesma, punir com a morte os responsáveis pela deplorável e
desumana situação em que se encontram as pessoas negras. Bolina, de igual
forma, rebela-se contra a desumanização que de si – e de todas as minorias
– fazem não apenas a polícia, ao expô-la como homem com roupas de
mulher, e isso se pode verificar pela raspagem de seu cabelo, como, ainda,
todo o aparato estatal que, teoricamente, deveria preservar a integridade de
seu corpo e instaurar a justiça.
Mas Veronica Bolina transcende os marcadores da negritude e
duplamente é marginaliza ao ser lida como travesti negra, um corpo que
desafia a suposta fixidez dos gêneros – masculino/feminino –, embaralhando-
os e problematizando o olhar de quem entende a vida como um binômio em
que as partes não se tocariam. Um mundo de gente simplória, medíocre e, a
cada dia que passa, perigosamente mais ameaçadora: para esses sujeitos as
pessoas trans permaneceriam nas brumas da noite e/ou nas seções policiais
dos jornais, de preferência mortas com requintes de crueldade; um mundo
em que as pessoas negras se contentam com pouco, que para os simplórios
seria o bastante, e permanecem servindo as mesas de sujeitos que mais
parecem sinhozinhos do passado com roupas do presente.
Essas duas narrativas, a do filme de Tarantino e a da coisificação-
animalização de Bolina, levaram-me a refletir acerca, como disse, da

192
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

legitimidade da violência produzida pelos sujeitos pertencentes a minorias


sexuais e étnicas, uma violência que é menos origem e mais reação a situações de
opressão: trata-se de uma violência que é resposta do sujeito minoritário às
sucessivas investidas tanto da branquitude quanto da heteronormatividade,
esses dois regimes políticos cujo principal propósito é a sujeição/
assujeitamento do corpo e das pessoas não brancas e não heterossexuais.
Defendo que a violência, quer dizer, nesse caso a decepação da orelha
do agente policial por parte de Bolina, deve ser lida como uma reação
minoritária. Se não se constitui enquanto a forma mais desejável de
enfrentamento a uma opressão, é uma das poucas, talvez a única, possibilidade
de re(ex)sistência operada pelas pessoas igualmente violentadas. Assim,
tanto Django, personagem de uma ficção que pensamos distante, quanto
Veronica Bolina, personagem protagonista de uma cena infelizmente cada
vez mais comum, legitimamente lançam mão da violência, a violência
enquanto reação, resposta do oprimido ao discurso e às práticas do opressor.
Muitas pessoas que conheço, mesmo as próximas, dizem que das
travestis querem distância: nelas não se pode confiar; dizem, ainda, que são
elas perigosas e dadas a “confusão”. Dia desses escutei a seguinte máxima:
“em casa de travesti as facas não têm ponta”, ou seja, outra maneira de
corroborar o que mais acima apontei. O que esses “críticos” ignoram é que
a violência é a linguagem da qual o corpo se utiliza para enfrentar, no caso
em análise, a transfobia. E é por isso que o pajubá, o repertório vocabular e
performativo do qual algumas pessoas de gêneros e sexualidades dissidentes
lançam mão, orbita, sobretudo, em torno de temas como a violência policial,
os perigos da noite, o uso de drogas lícitas e ilícitas. Se o aparato do Estado,
que deveria proteger e promover a justiça assim não age, resta aos sujeitos
injuriados, isto é, pessoas cujas identidades se fundam na injúria de variada
ordem, recorrer à violência como ação legítima de enfraquecimento, e o que
é melhor, de exposição das estruturas que as mantêm em uma condição de
subumanidade.
Houve uma época em que a metodologia de protesto do Dr. Martin
Luther King Jr. muito me agradava: vejo em minha mente as lindas e
emocionantes imagens em duas cores reprisadas pela TV em que sujeitos
negros passivamente apanham de brancos. É algo bonito. Cristão. E a cena
de Rosa Parks, inamovível no assento reservado a brancos nos coletivos nos
EUA, é disso emblemática. Essas ações formam os chamados “protestos
pacíficos” por direitos civis. Mesmo que todo protesto seja um ato de
violência, conforme sustentei em outro momento, percebo agora que aquelas

193
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

violências que vão além do âmbito do simbólico, e me refiro às violências


materiais – que ferem o corpo, às vezes de maneira irreparável, não devem
ser deslegitimadas porquanto supostamente perigosas à manutenção da
ordem: é exatamente a ordem das coisas tal como está que permite que
alguns valham – literalmente – mais do que outros; que algumas mortes
sejam choradas, outras não; que algumas tirem doces fotografias com o
braço armado do Estado – a polícia, e outras tenham seus seios publicamente
expostos e recebam, no lugar de solidariedade, desprezo, ódio e porrada. É
a brutalidade do golpe, da “lampadada”, da facada e do tiro que retorna,
envernizada pelo Estado, como ação policial amplamente corroborada
pelos cidadãos do mundo da normalidade.
Há, sim, portanto, violências legítimas. Duros gestos que se configuram
como reações aos discursos e práticas materiais de subumanização de
algumas pessoas. A violência mobilizada pelo sujeito minoritário tem uma
potência singular: ao mesmo tempo em que expõe os sistemas de regulação
dos corpos e das subjetividades, deixando patente sua materialidade,
sua ação direta no campo da vida, nos convoca a elaborar estratégias de
enfrentamento a essas mesmas estruturas que vão além da reação e se
concentram em seu desmonte ou, pelo menos, em seu enfraquecimento.
Creio que é chegado o momento de sermos menos reativos. De qualquer
forma, há ainda muitas orelhas para arrancarmos.

194
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

O CANTO DOS MALDITOS* A ALA


DAS BICHAS, SAPATAS, BISSEXUAIS,
TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E DEJETOS
DA SOCIEDADE92
FÁBIO FERNANDES

Em meados de 2013, uma discussão ganhou a pauta do dia nos grandes


veículos jornalísticos: a criação de alas LGBT nos presídios brasileiros, com
o intuito de inibir a violência contra essa população. A medida ganhou
repercussão, os debates foram acalorados e ficou realmente difícil, quase
intragável, ler os comentários em grandes portais da internet. Homo-
lesbo-transfobia, racismo e classismo são disseminados como verdades
absolutas, venenos que alimentam e perpetuam a violência contra pessoas
não heterossexuais e também pessoas trans. Isso só nos mostra o quanto
ainda temos que caminhar para uma sociedade que respeite o básico dos
direitos humanos. Neste texto, focarei principalmente na notícia da criação
de alas para LGBTs em presídios de todo o Brasil.
As denúncias de maus tratos, abusos sexuais e todo tipo de violência
e a necessidade urgente de proporcionar um tratamento apropriado a essa
população fez com que quatro estados (Minas Gerais, Rio Grande do Sul,
Paraíba e Mato Grosso) criassem há algum tempo espaços separados em
presídios.
Um tratamento humanizado a essa população é necessário e urgente,
haja vista os inúmeros relatos de violência e o descaso com essas pessoas.
A realidade prisional no Brasil é um caos, não há um projeto político,
um sistema e uma efetiva atuação no intuito de reintegrar socialmente as
pessoas que cometeram crimes. A lógica parece ser a mesma de destinação
das fezes, ao utilizarmos o recurso mecânico de dar descarga em nossos
sanitários, ou seja, eliminá-las em um fosso bem distante de uma sociedade
que precisa ser constantemente limpa, higienizada
Há a construção de uma identidade relacionada ao crime, em um

92 Publicado em 5 de outubro de 2013

195
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

projeto de naturalização que impõe uma eterna marca a esses corpos, mesmo
quando já cumpriram a pena e “pagaram sua dívida com a sociedade”. A
população carcerária LGBT recebe um estigma ainda maior: há ainda o peso
de mais uma marginalização, pois ela estaria aquém de uma normalidade
de sexo e gênero. Ex-detento e viado, ex-detenta e travesti. Não: viado e
travesti criminosos, bandidos, gentalha. Para sempre. Empregos? Muito
difícil. Família? Muitos são rejeitados. Reinserção social? Um mito. Ressoa
a ferida de um país que não sabe lidar com essas pessoas, preferindo sempre
a solução da punição, a criação de novos presídios e o afastamento do
convívio social. São abjetos, menos humanos e parecem não merecer uma
segunda chance.
Voltando ao tema da criação de alas LGBT em presídios brasileiros,
reitero que minha crítica não é à proposta de separação dessas pessoas, que
evidentemente estão sendo violentadas de variadas formas. Não ataco a
criação dessas alas. Acho que é fundamental preservar a integridade física e
psicológica dessas pessoas. É imperativo, ou seja, se for necessário separar,
que seja… imediatamente inclusive!
Meu ponto de crítica é: quais políticas de enfrentamento à violência,
quais projetos alicerçados no respeito à diversidade sexual e de gênero
estão sendo pensados e realizados para além da criação de alas separadas?
Não consigo perceber minimamente essa preocupação dos governos
e autoridades de um modo geral. Sinto que, para o Estado, essa grande
benfeitoria vai “mudar o mundo”. Eu esperava ao menos uma declaração
com intenções de avanço nessa questão, mas parece irrelevante pensar
em políticas de enfrentamento à violência e à estigmatização, ou seja, a
construção de políticas públicas para o respeito à diversidade.
O investimento em educação parece ser ainda um sonho distante de
nossa sociedade, afinal, se nossos governantes são contra o aumento salarial
dos professores, aliando-se para barrar qualquer proposta nesse sentido, se
esses mesmos professores são alvos de violência da força militar por lutar
por seus direitos, o que dizer da humanização da população carcerária ou de
políticas de enfrentamento à violência contra LGBTs, com ações concretas
nos campos da educação e da cultura? Basta que alas LGBTs em presídios
sejam criadas para sanar esse grave e vergonhoso problema? E o passo à
frente, quando será dado?
Projetos de enfrentamento estão sendo ao menos ponderados ou
vamos estacionar na criação de mais um “canto dos malditos”, outra “vala
para marginais”? Se pensarmos numa sociedade que prefere jogar lixo pra

196
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

debaixo do tapete como prática e resposta para praticamente tudo, políticas


públicas e soluções não apenas não estão sendo projetadas, mas parece que
são indesejáveis. Como eu não vejo somente caos e desumanização para
o amanhã de nossa sociedade, creio que devemos insistir e lutar por uma
educação e uma cultura de e para todos.
E não, não: educação e cultura não como discursos vazios, mas como
práticas efetivas, ações que se materializem em mudanças sociais. Projetos
como o Escola sem Homofobia, o da lei de identidade de gênero, ações
de investimento em projetos culturais que respeitem à diversidade sexual
e de gênero, os de geração de empregos, como o exemplo do formato de
cotas para egressos de penitenciárias, além de um investimento maciço
em educação e trabalho para essas pessoas, mesmo em detenção. Me
contentaria também com um mínimo respeito ao professor e à educação
básica, apenas para começar. Esses são somente alguns exemplos que, se
postos em prática, veríamos concretas interferências e mudanças em nossa
sociedade.
* O título Canto dos Malditos é uma referência direta à obra homônima
de Austregésilo Carrano Bueno, integrante do movimento antimanicomial.
Esse livro inspirou o filme Bicho de sete cabeças, que narra a experiência de
Bueno em hospitais psiquiátricos, com todos os abusos e violências sofridos
por lá, e da explícita desumanização à transformação dos internos em seres
abjetos.

197
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

MONSTROS PELAS SALAS E


CORREDORES: A ESCOLA E O DEBATE
SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE
FÁBIO FERNANDES

Há sujeitos que ousam, mesmo inocentemente, se rebelar contra


sistemas socioculturais e políticos que foram naturalizados, como o da
hetero e da cisnormatividade, que estabelece e define, por exemplo, que
corpos com pênis devam necessariamente se tornar homens, a partir de
todo um manual rígido de masculinidade, além de obrigatoriamente
vivenciar sua sexualidade sob rígidos moldes heterossexuais. A hetero e a
cisnormatividade caminham de braços dados com o machismo, pois esses
sistemas articulados oprimem, inferiorizam e pressupõem que mulheres
sejam reduzidas a um “segundo sexo”, seres de segunda categoria.
Nesse cenário há a possibilidade de ser homem, o de ser uma
mulher subjugada e o de eliminar os monstros que não se enquadram
nessas categorias. Meninos e homens afeminados, meninas e mulheres
masculinizadas, travestis, transexuais e transgêneros são rebeldes porque
desafiam esses sistemas apenas existindo. Reexistindo. Resistindo. Meninos
afeminados são agredidos em casa e na família, simbólica, psicológica,
fisicamente. Até serem mortos. Constantemente. Travestis, transexuais
e pessoas transgêneras são expulsas de casa, da escola, da sociedade, são
relegadas às margens. Monstras, palhaças, bandidas, mentiras. Prostitutas.
A escritora trans Amara Moira, autora do livro E se eu fosse puta (São Paulo:
Hoo Editora, 2016), reflete sobre essa marginalização:

Só quem é travesti ou mulher trans prostituta pra


entender a razão de chamarmos cafetinas de “mãe”
ou “avó”: demoniza-se a cafetina, mas não a família
que nos expulsa de casa adolescentes, a escola que
não se compromete com nosso acesso e permanência,
o mercado formal de trabalho que fecha suas portas
para nós, os hospitais que estão se cagando pras nossas
demandas. A ideia de família que temos em mente não

198
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

é, nem nunca foi, a dos comerciais Doriana.93

O estigma travesti impede uma outra existência que não a prostituição,


pois os próprios conceitos sagrados de família e escola literalmente
violentam, expulsam e vetam o acesso dessas pessoas ao afeto e à proteção e
também ao letramento como caminho de agenciamento. Os conservadores
argumentam sobre a destruição da família, sobre os perigos que essas pessoas
trarão ao acessarem escola, trabalho, universidade, espaços midiáticos e
artísticos. Transfóbicos julgam como uma verdadeira afronta legal e moral
o pertencimento de travestis em escolas e famílias.
Qual a família e a escola que efetivamente queremos? Essa que debocha,
exclui e mata pessoas? A representação que produzimos dessas pessoas
apenas reforça a exclusão, o estigma e a impossibilidade de humanidade.
Os guetos, as casas de prostituição, as ruas, muitas vezes, possibilitam que
os corpos dissidentes, estigmatizados, as pessoas de gênero inconforme
resistam à violência da impossibilidade existencial, da desumanização
constante e da tristeza/impacto que é sentir-se um pedaço de merda num
mundo que tá sempre querendo esfregar em sua cara que você não poderia,
não deveria sequer ser considerado humano. Importante (re)pensarmos o
lugar do gueto não como o ambiente da segregação, mas o da agregação
via proteção, talvez o único possível para essas pessoas. Lá elas resistem e
existem. Mas também é o momento de irmos para além dos guetos, pondo
em prática políticas públicas de proteção a essas pessoas, tornando possível
a sua presença na escola, em outros campos de trabalho, para que possam
circular pela sociedade sem o medo do estigma e da violência.
Começa a temporada de narrativas sobre caça às bruxas, monstros,
sujeitos que não são sujeitos, pois a eles é negado o status de humano.
Como se posicionar argumentando favoravelmente à permanência das
questões de gênero e também de orientação sexual nos propósitos do plano
nacional, dos planos municipais e estaduais de ensino? Primeiramente,
afirmo que até então não existia a tão propagada “ideologia de gênero”,
conforme reproduzida incessante, cega e estupidamente por aí, já que não
se deseja, enquanto projeto de escola, nem de educação que valorize as
diferenças, impor pensamentos, “conscientizar” as pessoas ou muito menos
normatizar ou uniformizar os estudantes, já que prezamos pelo respeito às
diversidades.
Pretende-se, com as discussões sobre gênero na escola, reconhecer

93 http://www.eseeufosseputa.com.br/2015/04/travestis-eregulamentacao-da.html?m=1

199
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)

a existência de uma história brasileira marcada pela marginalização e


desigualdade de gênero, em especial, em relação às mulheres que, mesmo
com suas conquistas, ainda têm sido desvalorizadas, sobretudo quanto à
remuneração salarial, ocupação profissional ou participação na representação
política e inferiorizadas por meio dos feminicídios, fazendo do Brasil o
quinto país do mundo com as maiores taxas de violência contra as mulheres,
conforme dados disponíveis no site da Organização das Nações Unidas
(ONU); inclusive, só em 2012, foram registrados 50.000 estupros no
Brasil. O estudo Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres, que utiliza
dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), mostra que 50,3% das
mortes violentas de mulheres no Brasil são cometidas por familiares. Desse
total, 33,2% são parceiros ou ex-parceiros. 90% das travestis e transexuais
brasileiras estão na prostituição, segundo a Antra (Associação Nacional
de Travestis e Transexuais). Foram registradas, em 2016, 343 mortes de
pessoas LGBT, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), o
que, de acordo com a pesquisa, resulta em um assassinato a cada 25 horas.94
Com isso, reitero que as discussões em torno do campo de gênero e
diversidade nos planos de educação não almejam desconstruir a família,
a maternidade ou o matrimônio, como divulgado por muitos meios de
comunicação. Ao contrário, defendo que todas as pessoas, indistintamente,
tenham o direito de escolher o caminho que desejam para suas vidas,
inclusive o de construir famílias, serem mães ou pais e se casarem. Da
mesma forma, entendo que devem ser considerados e respeitados os
“outros” arranjos familiares que vêm se produzindo há algum tempo, pois
assim estaremos, de fato, construindo uma sociedade justa, livre e solidária
como já defendido pela Constituição de 1988.
Reitero que o papel primordial da escola defendida por um projeto
de defesa da diversidade humana, das diferenças de grupos e sujeitos, do
respeito ao próximo, do afeto, da aprendizagem significativa, é o de contribuir
potencialmente para a formação de crianças, adolescentes, jovens e adultos
que reconheçam a importância do respeito às pluralidades, sejam elas de
origem social, cultural, étnico-racial, gênero, orientação sexual, religiosa,
geracional, socioemocional, sensorial, de nacionalidade, condição física etc.
Ressalto aqui que as relações de gênero também se constroem com
homens, assim como as étnicorraciais se constroem também com pessoas
não brancas. Então, homens precisam conhecer e debater sobre gênero,
feminismo e respeito às diferenças. Precisamos repensar as bolhas que

94 http://g1.globo.com/bahia/noticia/2017/01/ba-ocupa-2-lugar-emcrimes-contra-lgbts-
aponta-relatorio-do-grupo-gay.html

200
Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero

criamos e a consequência disso é que grupos fascistas estão cada vez mais
articulados enquanto as propostas de enfrentamento... Há muito que
produzimos falas e espaços em que a gente só dialoga pra gente mesmo,
que já conhece e sabe tintim por tintim o que será dito pra ser aplaudido.
Chegou a hora de repensarmos na base a maneira como estamos
construindo nossos ativismos. Nenhuma pauta política concreta no campo
da igualdade de gênero e sexualidade se dará sem de fato pensarmos na
participação de homens, pessoas cisgêneras e heterossexuais. Enquanto essas
pessoas, com base em um essencialismo simplista, forem automaticamente
consideradas inimigas, só teremos retrocesso e avanço do conservadorismo
e do fascismo que nos mata diariamente.
Como afirma Judith Butler, “ainda que tenhamos que lutar por
liberdades individuais, temos que pensar o lugar de corpos atuantes e de
corpos movendo-se livremente dentro de uma democracia”.95 Com isso
poderemos colaborar na construção de uma sociedade mais justa, menos
violenta, que ressignifique sua noção de humanidade, respeitando as
diferenças, se alicerçando em valores como o afeto e na prática do diálogo,
para que até mesmo, como na poesia da ativista e artista argentina Susy
Shock, seja possível a reinvindicação do direito de ser um monstro, de
existir como tal, ou nas palavras da própria, o respeito à “vontade do meu
direito de explorarme, de reinventar-me, fazer de minha mutação o meu
nobre exercício, veranear-me, outonar-me, invernar-me, os hormônios, as
idéias, os punhos, e toda a alma!
Amém!”.96

95 http://revistacult.uol.com.br/home/2015/09/temos-que-pensar-olugar-de-corpos-
movendo-se-livremente-dentro-de-uma-democraciadiz-judith-butler/
96 http://susyshock.blogspot.com.br/2008/03/yo-monstruo-mio.html

201
View publication stats

Você também pode gostar