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Leandro Colling
Universidade Federal da Bahia
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Corpo dissidente e desaprendizagem: do Teat(r)o Oficina aos a(r)tivismos queer View project
All content following this page was uploaded by Leandro Colling on 02 August 2020.
CUS
CULTURA, SEXO E GÊNERO
LEANDRO COLLING
GILMARO NOGUEIRA
CRÔNICAS DO
CUS
CULTURA, SEXO E GÊNERO
2017, Leandro Colling e Gilmaro Nogueira
Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.
Editor | Gilmaro Nogueira
Capa | André Silva
Diagramação | Daniel Rebouças
Editora Devires
Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA
www.editoradevivres.com.br
Apresentação
1 As datas em que os textos foram publicados no blog estão informadas em notas de rodapé.
Quando o texto não foi publicado no blog, consta também a informação onde ele foi publicado
originalmente. Os textos sem essas notas são inéditos.
os gêneros e como é possível agir politicamente dentro de outros referenciais
e com outras compreensões sobre este campo do conhecimento que trata e
incide sobre coisas tão importantes para as nossas vidas.
Alguns textos foram agrupados, revisados, editados e reformulados para
corrigir eventuais informações incorretas, deixar mais nítido os argumentos
defendidos e para retirar links e termos mais usuais apenas nos textos
postados em blogs. No entanto, fizemos questão de manter a linguagem
acessível e didática, o mais distante possível dos formalismos acadêmicos,
embora às vezes isso tenha se tornado quase impossível. Enfim, esperamos
ter encontrado uma forma de escrever textos de forma acessível para temas
profundamente complexos e polêmicos.
Tenham uma boa leitura. E que ela acione outras ideias e formas de
intervir neste momento tão grave pelo qual passa o Brasil.
HETEROSSEXUALIDADES EHETERONORMATIVIDADES
POR QUE A HETEROSSEXUALIDADE NÃO É NATURAL? 11
A DIVERSIDADE DA HETEROSSEXUALIDADE 14
PARA CONTINUAR O DEBATE DA DESNATURALIZAÇÃO DAS SEXUALIDADES 16
HOMEM QUE REBOLA É HETEROSSEXUAL? 19
HÉTERO-PASSIVO É TENDÊNCIA! 23
UM HOMEM HETEROSSEXUAL PODE SENTIR DESEJO ERÓTICO POR OUTRO HOMEM? 27
QUAL A ORIENTAÇÃO SEXUAL DE UMA MULHER QUE PENETRA HOMENS?
BONITA E SEDUTORA, TALVEZ! 30
AQUI NINGUÉM É HETERO! 38
G0YS, HÉTEROS-PASSIVOSFLEXÍVEIS E O FIM DA HETEROSSEXUALIDADE 42
NINGUÉM NASCE HETEROSSEXUAL OU O QUÊ MATOU ALEX 45
PROGRAMADAS PARA SÓ DIZEM SIM (E MUITO OOH YES, FUCK ME, SIR!) 49
MATERNIDADE NO JOGO PERVERSO DA VIDA 54
ESTUPRO, O PRODUTO FINAL DE UM CULTURA POTENTE 58
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Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)
digo que ser heterossexual é ser “anormal”. Eles sempre pensam que os
“diferentes”, LGBTs, é que são anormais e de que eles, heterossexuais, são
normais.
Mas por que, afinal, a heterossexualidade não é “normal”, nesses termos
que esbocei acima. Não é “natural e normal” porque a sociedade obriga
que todos sejamos heterossexuais e, para isso, desenvolve o que alguns/
mas pesquisadores/as, como Guacira Lopes Louro, chama de “pedagogia
da sexualidade”. O que é isso? Mesmo antes de nascermos, a nossa
heterossexualidade já é imposta sobre nós. Vários instrumentos são usados
nesse processo, em especial as normas relativas aos gêneros (nas minhas
reflexões eu nunca desvinculo as orientações sexuais das identidades de
gênero). A escolha do nome e das roupas de bebês, por exemplo, precisam
atender aquilo que a sociedade determinou como nomes e coisas de menino
ou de menina.
Na medida em que crescemos, começamos a ser criados/educados
e violentados para nos comportar como meninos ou como meninas “de
verdade”. Caso não sigamos as normas, começamos a sofrer violências
verbais e/ou físicas. Ou seja, a violência sofrida por aqueles que não seguem
as normas comprova que a norma não é natural e normal. Se assim o fosse, a
violência não seria necessária, pois todos e todas nasceriam heterossexuais!
A violência é o modus operandi com o qual a heterossexualidade sobrevive
inabalável. Temos esse modelo hegemônico de heterossexualidade a custa
de muito sangue e dor.
Quando falo dessas questões em palestras, os heterossexuais ficam
nervosos, às vezes levantam e vão embora. Alguns recorrerem à reprodução
da espécie e aos hormônios para explicar a atração entre pessoas de sexos
diferentes. Os mais afoitos dizem que se todos fossem homossexuais a vida
humana na terra estaria ameaçada. Tudo isso revela o poder do discurso
naturalizante sobre as nossas sexualidades. Primeiro: faz muito tempo que
os homens perderam a capacidade de identificar quando uma mulher está no
cio. Ao ingressar em uma nova etapa do processo histórico da humanidade,
que Freud, por exemplo, chama de “civilização” ou de “cultura”, os homens
e mulheres domaram os seus instintos e, no mínimo, os transformaram em
“pulsões”.
O conceito de pulsão é complexo, é “aquilo que está entre o mental e o
somático” e aqui pode ser traduzido entre aquilo que diz o corpo (“biologia”/
instinto “natural”) e a mente. Ou seja, a nossa sexualidade não pode mais
ser explicada como um dado exclusivo de nossos instintos, hormônios etc
desde, pelo menos, Freud, lá pelos idos de 1900. É evidente que temos
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Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero
cargas hormonais diferentes entre homens e mulheres, mas não são elas
que acionam o nosso gozo e não são elas que comandam o nosso processo
de identificação em relação às orientações sexuais e identidades de gênero.
O nosso gozo e identificações são acionados por um sem número de outras
coisas, a exemplo de imagens, experiências anteriores, associações que
fazemos de forma consciente ou não.
Isso não quer dizer que a ação de alguma pessoa seja determinante
para a sexualidade de alguém. Os processos de identificação, todos eles,
desde porque gostamos de determinada cor e não outra, sofrem milhares de
influências externas que são decodificadas de formas igualmente diversas
pelos sujeitos. Isso também explica porque, mesmo educados para serem
heterossexuais, muitas pessoas não decodificam a mensagem como deseja a
maioria e orientam o seu desejo para outros “objetos”.
Essas explicações são as mais aceitas entre a comunidade científica
do mundo, mas existem várias pesquisas que já tentaram comprovar se
existe algum gene ou causa “biológica”/genética para a homossexualidade.
Nenhuma delas é reconhecida como válida por pessoas que estudam
sexualidades e gêneros nas ciências humanas. Eu sempre pergunto por que
os pesquisadores das áreas médica e da genética não fazem investigações
para explicar porque as pessoas se tornam heterossexuais. O que a norma
heterossexual (que nós chamamos nos estudos de heteronormatividade)
deseja é controlar e dar apenas uma resposta para isso. Para a lógica do
pensamento heterossexual, todos devem ser héteros de uma forma só.
E sobre a perpetuação da espécie humana? Ora, eis mais um argumento
que, no fundo, é homofóbico e profundamente vinculado a uma perspectiva
naturalizante. Primeiro: ao dizer que a heterossexualidade não é natural,
não estamos dizendo que todos devam ser homossexuais (aliás, que pânico
é esse, não é amigas?). Segundo: hoje existem tecnologias suficientes para
a produção de gestações sem o famoso sexo papai-mamãe. Os primeiros a
usar esses métodos, aliás, foram os heterossexuais, é bom lembrar.
Enfim, toda essa discussão não é feita, pelo menos no meu caso, para
que todas as pessoas sejam homossexuais. Nada disso. O maravilhoso da
humanidade é a sua diversidade. Problematizar a heterossexualidade tem
a vantagem de: 1) denunciar a violência com a qual ela se mantém no
centro; 2) revelar o seu caráter histórico e construído; 3) evidenciar que
ela produz homofobia; 4) possibilitar que outras heterossexualidades sejam
respeitadas e construídas.
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Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)
A DIVERSIDADE DA
HETEROSSEXUALIDADE3
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Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero
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Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero
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Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero
demoram mais para gozar, outros gozam mais rápido, uns preferem fazer no
escuro, outros na claridade, uns se satisfazem com relações monogâmicas,
outros são poligâmicos, uns preferem a dois, outros a quatro, uns homens
preferem a vagina das mulheres, outros curtem sexo anal com suas parceiras.
Enfim, existe uma imensa variedade de posições, práticas, configurações e
cenários para a prática heterossexual e, apesar disso, nós ainda a pensamos
apenas pela lógica da reprodução?
Para finalizar, vou dar um exemplo que fez sucesso em uma palestra que
ministrei para estudantes do Colégio Modelo Luís Eduardo Magalhães, da
Avenida San Martin, em Salvador. Ao falar sobre a diversidade existente na
heterossexualidade e dos papéis que a sociedade determina como desejáveis
para um homem e para uma mulher, lembrei das minhas primeiras impressões
ao chegar em Salvador, em 1998. Eu ficava surpreso como aqui os homens
pintam o cabelo, fazem e pintam as unhas, desenham as sobrancelhas e, em
especial, rebolam ao dançar pagode e outras músicas. Naquele ano, Xanddy,
da banda Harmonia do Samba, estava no topo das paradas e rebolava como
ninguém (nos últimos anos, ele quase não rebola mais, e várias pessoas
associam a mudança com a sua conversão à uma denominação evangélica).
Lembrei disso tudo e disse algo assim lá no Colégio: “Na cidade onde
eu nasci, no interior do Rio Grande do Sul (ironicamente chamada pelo
mesmo nome do endereço da escola – São Martinho), vocês meninos
certamente teriam a sua heterossexualidade questionada se dançassem da
forma como dançam aqui. Muito provavelmente vocês seriam chamados
de viados porque um legítimo gaúcho não rebola, isso é coisa de mulher.
O quadril do homem gaúcho é um dos mais regulados que eu conheço no
Brasil. E traço feminino em corpo masculino é coisa de viado.”
Moral da história: ser considerado como heterossexual pressupõe uma
série de comportamentos que vão além do que a pessoa faz na cama e isso
muda a depender do contexto cultural em que a pessoa vive. Ser hétero
em Salvador é uma coisa, ser hétero no interior do Rio Grande do Sul é
outra. E estamos na mesma época e país! E aí, vão continuar pensando
as heterossexualidades apenas pela via da reprodução da espécie e da
naturalização?
Despeço-me aproveitando para mandar um abraço com beijos (outra
coisa de viado, não é?) para os/as estudantes do Colégio. O ótimo debate
que lá fizemos, com perguntas muito interessantes, me mostrou, mais uma
vez, que existe uma luz no fim do túnel e que é fundamental a concretização
de um projeto como o Escola sem homofobia, paralisado pela presidenta
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Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero
Sente prazer com o “sexo heterossexual”, mas não consegue evitar o desejo
de ser penetrado.
Um caso explorado midiaticamente é do ex-pastor evangélico da
Igreja Universal, Alexandre Senna, que tornou-se ator pornô passivo, após
o pedido da esposa, que não aceita que ele penetre mulheres, mas também
porque seu pênis não está no padrão da indústria pornô. As pessoas que
comentam as notícias nos sites e blogs sempre dizem que o mesmo é um
homossexual enrustido, pois não concebem um heterossexual fazendo sexo
anal passivo.
O que podemos dizer sobre esses sujeitos? O mais comum e pouco
reflexivo, mas que tem lá sua verdade, é pensarmos no modo com as
representações sociais negativas da homossexualidade podem fazer com
que um grande número de sujeitos recuse tal identidade. Acho, contudo,
que isso não responde completamente a questão.
É mais produtivo invertermos a pergunta: o que esses sujeitos dizem
a nós? Essa questão faz muita diferença, pois se tomarmos os sistemas
classificatórios para explicar os sujeitos, aniquilamos as diferenças,
enquadrando-os em poucas possibilidades. Ao contrário, se utilizarmos
as experiências e questionarmos os sistemas classificatórios, podemos
problematizar o quanto a divisão heterossexual, homossexual e bissexual é
limitante e não dá conta de explicar a sexualidade humana, que é complexa
e atravessada por diferenças e singularidades.
Vale ressaltar que, mesmo recusando a homossexualidade, esses sujeitos
assumem uma outra identidade problematizada, considerada anormal até
por aqueles que aceitam a homossexualidade. Constroem, também, uma
identidade considerada desviante.
É bem certo que a heterossexualidade confere um status de privilégio,
no entanto, a passividade marca negativamente o homem. Poderíamos
pensar numa tentativa de limpar a passividade de um status negativo e
histórico? Talvez a masculinidade se transforme em um padrão cultural tão
fortemente exigida que mesmo na passividade seja preciso estar dentro de
tais padrões.
Podemos dizer que essa identidade hétero-passivo é uma invenção?
Sim, toda identidade o é! A divisão hétero versus homo, ampliando para
bissexualidade, é também uma invenção da ciência oitocentista, uma ficção.
Uma criação que, apoiada no positivismo, acredita que poucas palavras
conseguem dar conta da paisagem sexual. Uma limitação e higienização da
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nossa singularidade.
Nós estamos, no entanto, tão impregnados dessa construção binária
que se um homem se envolve com outro nós questionamos o sujeito e
nunca a divisão binária. Por que não questionamos essa ideia de que os
heterossexuais não sentem prazer anal? Será que é possível mesmo que
exista um grupo tão hegemônico em termos quantitativos que ignore
determinada área do corpo?
Não estou desconsiderando (digo mais uma vez) o modo como o
preconceito dificulta uma assunção à homossexualidade, mas considerando
que, além de se proibir uma identidade, se interdita também o corpo, isto é,
há uma castração anal, um interdito sobre o ânus. Os heterossexuais têm o
ânus castrado, diz Paul B. Preciado.
Bem, enquanto a gente fica tentando responder essas questões, e por
mais que alguns queiram simplificar tudo, achando que o mundo se divide
em duas ou três possibilidades, os sujeitos vão vivendo suas fantasias, cada
um com uma história singular, que problematiza nossas concepções e
classificações.
Por essas e outras, hétero-passivo é tendência e está na moda!
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outros lhe atribuirão rótulos mesmo quando você não se identifica com tal
identidade.
Há também uma outra alternativa, de Jack Halberstam18, teórico queer,
que faz política através das identidades vernáculas ou populares. E isso
justifica a identidade
do heterossexual-passivo, do bolo-doido, total-flex, hétero-que-abre-
excessão e outros termos utilizados em Salvador, pelos sujeitos, para
descrever suas sexualidades. Essas identidades questionam a essencialização
e, de certo modo, contaminam o binarismo.
Não estou aderindo a ideia de um novo sujeito natural, mas pensando
que é tão viável o hetero-passivo quanto o heterossexual, uma vez que
ambos são invenções, ficções. Ressalto que não desejo tornar, com isso,
ninguém homossexual, ao contrário, o que menos queremos, e digo isso
no plural, é designar ou imputar uma identidade ao outro, mas respeitar as
identidades que os sujeitos escolhem. A poesia não está no heterossexual
nem no homossexual, mas nas diferenças, em nossas singularidades e, por
isso, cada um de nós temos uma orientação sexual diferente, haja vista que
não somos iguais.
E o que isso tem a ver com nossa mulher sedutora? Tudo! Ela é
mais uma dessas pessoas que questionam essa divisão. Sem nenhuma
teoria acadêmica, ela recusa esses rótulos e não separa os homens como
heterossexuais ou homossexuais e, por isso, já “ficou” com vários amigos
gays.
E para aqueles que acham que nossas concepções de sexualidade são
um desserviço eu questiono: como as suas concepções de sexualidade
natural têm produzido menos hierarquia? Que lugar há para os sujeitos
que não se enquadram nas posições dicotômicas? Que propostas políticas
suas concepções científicas têm para oferecer aos sujeitos que, através das
ideias preconceituosas, são considerados anormais? Não afirmo que não há
alguma vantagem em outras concepções de sexualidade, mas é importante
pensarmos os limites dessas concepções.
Ao ler um artigo meu sobre o questionamento das identidades, ND
respondeu por email:
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Antes de tudo, gostaria de dizer que a ideia do título desse texto veio
da fala de um aluno, situação parecida que também inspirou o livro Aqui
ninguém é branco, de Liv Sovik. Embora o título venha dessa referência, esse
texto é uma tentativa de responder uma pergunta que recebi por e-mail:
“A psicologia explica a possibilidade de um indivíduo heterossexual virar
homossexual, mas é possível um indivíduo homossexual tornar-se hetero?”
A questão supõe que existe um indivíduo heterossexual ou homossexual
que, em algum momento da vida, possa se movimentar de um lado a outro.
Considerei interessante o fato de o autor da pergunta pensar os dois
movimentos mas, neste texto, vou questionar apenas a heterossexualidade,
por ser incomum. Mas que elementos existem para sustentar a ideia de
que não existe uma identidade sexual heterossexual tal como é pensada em
nossa cultura?
1 - A divisão social dos sujeitos em heterossexuais e homossexuais,
como duas categorias opostas, data-se de 1869. Até então, não havia a
concepção de que a sexualidade é dividida nesses dois polos. A palavra
heterossexualidade nasce com um sentido de depravação para então depois
migrar para um ideal sexual. Após essa data, a ciência se empenhou em
construir o paradigma de que existe uma pessoa que nasce com uma
substância mental heterossexual e que isso é o padrão da sexualidade
humana. Embora eu já tenha dito isso outras vezes, gostaria de afirmar que
não estou fazendo suposições, mas discutindo uma análise histórica. Quem
desejar ler mais sobre esse tema, leia o livro A invenção da heterossexualidade,
de Jonathan Ned Katz.
2 - A ideia de que existe um sujeito com uma essência inata que
determine o comportamento e a subjetividade foi sendo abandonada pelas
ciências humanas e sociais. Alguns cientistas cooperaram para a destituição
da concepção de um sujeito natural, entre eles Karl Marx, que afirmava que
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E O FIM DA HETEROSSEXUALIDADE20
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Após ler as chocantes notícias do pai que matou o seu próprio filho
Alex22 porque ele não se comportava como um homem, tive vontade de
retomar um tema. Esse e outros casos mostram o quanto ainda é necessário
evidenciar como a heterossexualidade é obrigatória sobre todos nós e, caso
não nos comportemos como prevê a norma, corremos o risco de sermos
assassinados, inclusive por nossos pais, aqueles que figuram na imagem da
sagrada família que nos protege.
Quando realizo alguma palestra ou oficina sobre sexualidade, começo
refletindo sobre questões de identidade posicionando-a como uma
construção humana. Rapidamente as pessoas entendem que, a partir de
algumas características corporais, a cultura constrói identidades, separa
grupos e produz hierarquias.
Embora nossa pele tenha diferentes cores, formatos, etc, a cultura
inventou a ideia de raças, que separa e hierarquiza os homens e confere à
branquitude uma série de privilégios. Se cada um tem uma pele diferente, na
cultura os sujeitos são enquadrados como negros ou brancos. O mesmo com
a questão do gênero, isto é, embora cada um de nós combine masculinidades
e feminilidades de uma forma diferente, a cultura nos enquadra num único
gênero entendido como oposto ao outro e puro em si mesmo.
Após essas explicações: como a cultura toma a diversidade e pluralidade
e transforma-nos em uma única categoria em oposição a outra – as pessoas
entendem que toda identidade/categoria é uma produção cultural que
separa e hierarquiza. Mas ao afirmar que a identidade é construída questiono
se a heterossexualidade é também construída ou se as pessoas nasceram
heterossexuais. Os sujeitos entram em um momento de conflito de ideias,
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possível não casar. Não é possível não ter filho. Casar e ter filho são a base
para o restante do jogo. Se você é homem, usa bonequinho azul, se você é
mulher, usa bonequinho rosa. Lógico!
O jogo também determina se seu filho será menino ou menina e aí,
de acordo com isso, você encaixa o bonequinho rosa e azul. A partir daí
se conquista e se gasta muito dinheiro. E adivinha? Vence o jogo quem é
‘melhor sucedido’ e chega ao ponto de chegada, sendo uma pessoa rica.
Fiz uma intervenção, numa partida entre minha filha e amigos dela,
na minha casa, e subverti e casei com outra menina. Isso foi suficiente para
o alvoroço ficar armado. Foi tenso perceber o quão parecia sem sentido,
para aquelas crianças, aquilo seguir adiante. As crianças que disputavam a
partida tinham por volta de oito anos de idade e todas concordaram que,
se eu casasse com uma menina, o jogo não poderia continuar porque eu
não poderia ter um filho. Permaneci desobediente e casada com minha
bonequinha rosa e o desconforto foi notório.
O jogo não é uma inocente brincadeira. Pelo contrário, é mais um
aparelho pedagógico de domesticação da sexualidade, das categorias de
gênero enquanto fixas e de perpetuação de valores e normas heterossexuais
compulsórias que geram violência e exclusão. Mas me parece que a educação
enquanto instituição está bem pouco preocupada com isso, para não dizer
que ela silencia e corrobora com essas estratégias. O não posicionamento é
posicionar-se.
Seguindo esse roteiro, na vida para além do tabuleiro…
Estudamos e trabalhamos para ter uma família. Foi por isso que muita
gente me olhava, na adolescência, e dizia que se eu não ‘desse um jeito na
minha vida’ acabaria sem marido e sem filhos. Claro que sim! Faz sentido,
esse é jogo da vida! Essa é a família que será mantida a QUALQUER
CUSTO. Sabemos bem quem sai violentada nisso. Sabe-se quem precisa
entender que ser mulher é ceder, porque os homens são imaturos e nós
mulheres sagradas precisamos nos manter santificadas e sucumbir pelo
bem da família, já que essa é a estrutura familiar tida como fundante para
a formação de um sujeito emocionalmente saudável. Quem carrega isso é
a mulher.
Os desdobramentos disso eu vejo todos os dias. Enquanto mãe eu sinto
na pele, nos olhares inquisidores, na deslegitimação de minhas escolhas
contra-hegemônicas, no tomar as rédeas da minha vida. Muitas vezes sou
acusada de ser uma mãe relapsa. Outras tantas de doutrinar meus filhos
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contra a pedagogia opressora. O que eu sei é que dando ‘tudo certo’ ou não,
os ‘erros’ dxs filhxs será mérito meu.
Enquanto professora, sinto no impacto das relações entre meninos e
meninas na sala de aula, entre o esforço para se manter as coisas nos seus
devidos lugares, enquanto ainda se é possível. Pois a infância ainda é o lugar
de controle e autorização para o exercício de normas perversas.
Vejo muitas mães se preocuparem em manter relações de amizade de
menina com menina, porque ‘assim fica mais fácil na adolescência’. Aí a
menina experimenta o corpo da coleguinha e é catequisada pela mesma
mãe a obedecer a heteronorma. É preciso reproduzir, é preciso ser mãe, é
preciso dar netos. Isso é enlouquecedor! Mas… Essa mãe certamente já
experimentou carregar o fardo de ter que acertar o destino da filha.
O resultado dessa infância saudável é responsabilidade da mãe. Ainda
que muitos (maus) comportamentos infantis sejam justificados pela
ausência paterna, a culpa muitas vezes recairá sobre a mãe, que depois de
não ter sido mulher suficiente para ‘segurar esse homem’, quase sempre não
terá sido macho suficiente para suprir a falta dele na vida dessa criança.
A culpa é uma forte aliada nesse processo. O mito da maternidade
enquanto sagrada se encarrega de enlouquecer corações maternos e
desestabilizar a autoestima de qualquer mulher. A culpa pela ausência,
culpa pelo excesso de presença, culpa pela falta de afetividade, culpa pelo
excesso, culpa, culpa, culpa, o equilíbrio parece ser algo inatingível para nós.
Até aqui eu descrevo situações corriqueiras de mulheres cis, mas
podemos sim fazer um recorte de classe e etnia, já que sabemos que as
demandas de mulheres negras e de classes tidas como menos favorecidas,
no que diz respeito à violência do discurso de maternidade, serão outras,
muito mais específicas. Muitas crianças dessas mães não terão acesso ao
jogo da vida, mas a viverão em seus dias e noites através de violência e até
ludicidade e resistência.
Mas as opressões da maternidade não só respigam nessas outras
mulheres. Sabemos que, por exemplo, esse é um discurso muito acionado,
inclusive por mulheres cis, para deslegitimar o gênero de mulheres trans.
Se não tem útero, não pode reproduzir, se não pode reproduzir, não pode
ser mulher. Ora, ora… logo mulheres ativistas pelo direito ao uso do corpo,
logo mulheres que precisam ir pra rua para dizer que não terão filhos porque
simplesmente não querem ter se articulam no intuito de fazer esforços para
utilizar justamente de argumentos que lhe desqualificam para se achar no
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não sejam bem limpos, também serão órgãos bem sujos e proliferadores
de doenças. Então, por que considerar que apenas um órgão é sujo? O que
opera por trás desse discurso?
Certamente, trata-se de uma leitura que é influenciada pela norma
hegemônica que estamos sempre problematizando em nossos textos.
Michel Foucault estudou muito bem isso e devemos muitas dessas reflexões
a ele. Em suma, a norma tenta determinar tudo sobre a nossa sexualidade.
Obriga que todos sejamos heterossexuais e de que façamos sexo apenas
de uma determinada maneira e também especifica muito detalhadamente
quais partes dos nossos corpos são erógenas e que podem ser consideradas
como órgãos sexuais.
Outros poderão alegar que o sexo anal deve ser combatido porque essa
prática seria anti-natural, uma vez que não gera a reprodução da espécie
humana. Mais um argumento que não fica em pé porque, se concordarmos
com ele, toda e qualquer prática sexual só poderia ser feita se tivesse como
objetivo a reprodução.
Mas, como eu disse no início, não quero tratar apenas do ânus. Uso o cu
apenas como um exemplo bem provocativo e polêmico para ilustrar como
nossos corpos sofrem as influências de saberes que regulam, historicamente,
os nossos corpos, nossas sexualidades e nossos gêneros. Eu poderia falar
de outras partes do corpo que são usadas, por algumas pessoas, como
legítimos órgãos sexuais. Entre elas, certamente, estão as mãos. Para muitas
lésbicas, por exemplo, as mãos são verdadeiros órgãos sexuais, elas podem
se transformar em instrumentos fundamentais.
Para os/as praticantes de fist-fucking ocorre o mesmo. Para quem não
sabe, praticantes de fist-fucking introduzem as mãos e até os punhos no
ânus de parceiros/as sexuais. O pênis e até mesmo a ereção, em geral, não
possuem importância alguma nessas relações sexuais. Como nos alertam
alguns pesquisadores, talvez essa seja única prática sexual que foi inventada
no século 20. Vejam como nossa criatividade em relação às práticas sexuais
ficou bloqueada a ponto de que em 100 anos apenas uma nova forma de
praticar sexo foi criada. Enquanto isso, quase sempre fazemos sexo mais ou
menos da mesma forma, muitas vezes seguindo um roteiro que obedece
inclusive os padrões de uma indústria do entretenimento, notadamente a
indústria pornô hegemônica.
Para finalizar, quero lembrar de Deleuze e Guattari. Pelo menos desde
o livro O anti-édipo, de 1972, eles nos permitem entender o corpo inteiro
como um corpo sexual. Ou seja, nós não transamos apenas com pênis, vaginas
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Penso que as políticas anais podem ser muito úteis politicamente, como
eu mesmo apontei em meus textos anteriores, mas elas também apresentam
os seus limites, como sugerem Sáez e Carrascosa. E quais são eles? Vou
tentar responder com o apontamento de duas evidências. No Brasil, talvez
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com alguma intensidade maior que outros lugares, o cu tem gênero sim.
Aquela pessoa que é tida como a passiva no ato sexual anal é vista como
a “mulherzinha” da relação. Se a pessoa passiva for do sexo masculino, ela
automaticamente é considerada como homossexual, gay, viado ou qualquer
outra expressão que a defina como alguém que traiu a sua masculinidade.
Já o homem, considerado ativo, mesmo praticando o ato sexual com
outro homem, desde que não permita ser penetrado, muitas vezes não é
considerado como uma pessoa homossexual e nem está automaticamente
traindo a sua masculinidade. Isso já está fartamente documentado em várias
etnografias muito conhecidas realizadas no Brasil (além do Perlongher, ler,
por exemplo, o livro Para inglês ver, de Peter Fry).
Aqui no Brasil o homem que penetra outro homem não tem
necessariamente a sua sexualidade heterossexual colocada em questão. E
eu não estou reivindicando que tenhamos que considerar esses homens
como homossexuais, apenas aponto que, ao “comer o cu” de um homem, ele
continua seguindo o script esperado de um cara considerado socialmente
como “macho”. O mesmo não ocorre com o homem penetrado, pois ele é
associado automaticamente e pejorativamente com a feminilidade, traiu
muito masculinidade hegemônica dos considerados “machos de verdade”.
Talvez o que diferencie mais os brasileiros dos homens de outros países
seja o fato (real e/ou apregoado) de que por aqui a maioria deles gosta de
bunda. Mas, paradoxalmente, isso também não torna os brasileiros menos
homofóbicos, misóginos, falocêntricos e heteronormativos. Sim, eu sei
que bunda e cu são coisas diferentes, mas também não são indissociáveis.
Quando um homem admira a bunda de uma mulher (e nas ruas de muitas
cidades é sinal de masculinidade o homem parar, virar as costas, olhar para
a bunda das mulheres e fazer alguma exclamação do tipo “gossstoooosa!!!”)
obviamente não é só a bunda que o homem está admirando. Ele também
está pensando, pelo menos em termos gerais, no que poderia vir a fazer com
aquela área do corpo da mulher.
Quer dizer, é o homem quem continua determinando qual é o objeto de
seu desejo, mesmo que seja para uma área do corpo que não é considerada
como um órgão sexual pelo discurso médico e pelo próprio senso comum.
Obviamente, algumas mulheres também admiram e até penetram os cus
dos seus parceiros, mas essas práticas são bem menos recorrentes.
Ou seja, no Brasil as bundas e cus têm gênero. Por aqui, o cu não “escapa
da retórica da diferença sexual”, como pensa Preciado. Pelo contrário, o cu
foi apropriado pela retórica da diferença sexual. Ter o ânus aberto, ou não
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água no canal do ânus e depois ela é expelida em uma operação repetida até
que tudo esteja bem limpo. Algumas pessoas utilizam mangueiras, outras
garrafinhas de água e já há até produtos tecnológicos específicos para a
realização da chuca (não necessariamente o enema das farmácias, utilizado
para lavagens em contextos médicos, mas sim equipamentos pensados para
a prática sexual anal).
Ouso dizer que o ritual que envolve a chuca está inserido em uma
cultura erótica, um conhecimento até transmitido de geração a geração. As
gueis mais experientes ensinam às mais novas como se deve fazer a chuca
e o quanto ela é indispensável para realizar o sexo anal. Há vários textos
na internet tratando dessa prática. Muitas mulheres também consultam as
gueis ou outra pessoa capacitada para aprender sobre a chuca e fazer bonito
durante o sexo anal.
Já ouvi de amigos a seguinte frase: “não vou nem à padaria sem estar
chucada, vai que algo aconteça no caminho? Precisamos estar sempre
preparadas!”. Mas aí eu lanço minha provocação: até que ponto a prática
da chuca serve apenas para garantir uma certa comodidade durante o ato
sexual e, para além disso, também não incide sobre os corpos numa espécie
de prisão, limitação e esforço para atender a um modelo higienizante de
desejo e prazer? (um modelo único, aliás).
Minha intenção aqui não é demonizar ou estigmatizar uma prática,
não é gritar “LIBERTE-SE DA CHUCA!”, mas cogitar sobre imposições,
normas e noções rígidas de higienização/pureza que podem estar
atreladas à chuca. A consequência-mor do descumprimento dela estaria
na possibilidade de passar cheque, ou seja, que fezes possam “sujar” o ato
sexual. Aliás, porque somente o cu é considerado o lugar da sujeira? Outras
partes do corpo, se não forem limpas, também podem transmitir doenças
e estarão… sujas. Penso que atravessa por aí um discurso opressor sobre o
cu, produzindo nele o lugar por excelência da abjeção, nojento e condenado
por discursos médicos sanitaristas, religiosos e moralistas.
O medo de passar cheque inclui muitas vezes uma rígida (e insana)
vigilância até sobre a dieta alimentar: “se eu for dar hoje, eu não posso me
acabar de comer, tem que ser algo leve e que não me deixe cheio, pesado”.
Alimentos específicos e laxantes não são incomuns nesse quase esquema
tático de guerra. E se, por acaso, independente do motivo, não ocorra o ato
sexual, fica em alguns a terrível sensação de chuca perdida (“ah, bicha! E
quem nunca perdeu uma chuca?”).
Perpassaria pela chuca a absorção desses mesmos discursos que
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Essa foi a frase que chamou minha atenção na virada de ano 2016/17.
Foi dita por um homem gay de uns 25 anos, mas endossada por um grupo
de uns 5 ou 6, de mais idade. Pude compreender melhor as trajetórias
desses homens e como se relacionam com outros. Homens que desde cedo
sofreram as agruras da homofobia. Segundo a mãe de um deles, seu esposo
disse, ao constatar que o filho, ainda criança, era afeminado: “ou ele ou eu!”.
A mãe escolheu o filho e, desde então, tem sido muito próxima dele. O fato,
no entanto, revela uma trajetória de violências, muitas das quais, pelo que
pude perceber, os sujeitos sequer têm noção.
Nessas narrativas há muitas histórias de desilusões amorosas, algumas
relembradas com risos ou piadas, isto é, uma forma de dar um novo sentido
a tais sofrimentos. Histórias que evidenciam que ser gay, há tempos
atrás, era muito mais difícil, muito embora a predileção por homens
heterossexualizados não seja uma exclusividade de homens mais maduros.
Essas vivências dividem as pessoas em: homens (heterossexualizados);
viados (os gays) as sapatonas (lésbicas) e as mulheres (heterossexuais).
Nessa concepção, os homens são disputados por mulheres e viados, talvez
um dos motivos pelos quais há sempre falas misóginas e lesbofóbicas. Os
homens heterossexuais formam o grupo mais valorizado.
Esses homens não se colocam como vítimas, ao contrário, há um
certo gozo nas relações que estabelecem com esses ditos “muleques”29, que
relevam um outro marcador, a predileção por garotos mais jovens e, de
certo modo, estereotipados como marginais30, pois são jovens que, gostando
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(2.5) Finalmente, para além das tentativas de dizer que a mulher trans*
é, na verdade, um homem, e que o homem trans* é, na verdade, uma mulher,
existe uma promoção dos estereótipos de gênero que é baseada no que essas
pessoas seriam ‘de verdade’ – ‘homem’ e ‘mulher’, respectivamente. É assim
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revoluções.
Talvez os amores impossíveis, impensáveis?, sejam tudo do nada que
temos.”
‘standing low challenge the king for the throne’ (Smile – Groundation42)
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bissexuais, assexuais, pansexuais, etc, etc e etc. O gênero de cada pessoa não
determina a prática sexual desta pessoa.
Sempre tivemos quem prefira o livre transitar entre os gêneros. Vide
o exemplo de nossa heroína Maria Quitéria. Algumas vezes essas pessoas
também foram chamadas de andróginas, em especial nas décadas de 60
e 70 no Brasil. Para ficarmos entre os baianos, basta lembrar de como a
androginia era um elemento forte para os tropicalistas, em especial Gilberto
Gil e Caetano Veloso. Sobre o mesmo período, quem ainda não viu, corra
e veja o documentário sobre os Dzi Croquettes.
Repito: não estou dizendo que Quitéria, Caetano, Gil ou os Dzi são ou
foram pessoas trans. Eu estou falando de como os seus comportamentos,
vestimentas, adereços e gestuais embaralhavam as rígidas categorias de
gênero. Mais recentemente, apareceu outro nome para designar alguns
meninos andróginos sensíveis. Falo dos emos, que também foram
imediatamente associados como gays. Enfim, em cada época e lugar (em
outros países existem outros nomes para designar pessoas que transitam
entre os gêneros) são criados novos termos, categorias e identidades para
nomear, e muitas vezes insultar, quem transgride as normas de gênero. Mas,
apesar de tudo isso, o movimento social LGBT brasileiro, quando explica o
T de sua sigla, não inclui as pessoas transgêneras.
Teria muito mais a dizer sobre algumas características que diferenciam
as pessoas travestis, transexuais, transgêneras, transformistas e drags.
Por exemplo, alguém poderia dizer que transformistas e drags não são
identidades, tais como são os/as demais TTs. Essa é uma leitura muito
comum, mas eu tenho minhas dúvidas. Realmente, por um lado, elas não
se constituem em identidades mas, pelo contato que tenho com várias
dessas pessoas, percebo que as “personagens” das transformistas e drags não
desaparecem por completo depois dos espetáculos. Mesmo desmontadas,
muitas transformistas continuam sendo chamadas, por exemplo, pelos
seus nomes artísticos. Muitas vezes inclusive passam a adotar mais os seus
nomes artísticos do que os que constam em seus documentos. Isso não é
uma evidência de que existe ali uma outra discussão sobre identidades? Mas
agora, para finalizar, vou cumprir a promessa e responder a questão: afinal, o
que o universo trans nos ensina, em especial em relação à heterossexualidade
e à heteronorma?
Todas as pessoas trans, em algum grau, evidenciam que o dito “sexo
biológico” não necessariamente determina o gênero do sujeito. Ou seja, se
eu nasci com um pênis não sou obrigado a ter um gênero masculino e se
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nasci com uma vagina não sou obrigado a ter uma identidade feminina. As
pessoas trans nos mostram que a “biologia”, a materialidade do corpo, não
é um destino.
As pessoas trans são, por sua simples presença no mundo,
transgressoras. Isso não quer dizer que elas tenham, obrigatoriamente, um
discurso racional transgressor verbalizado em suas falas. Algumas delas,
inclusive, quando falam de sexualidade e gênero, são muito conservadoras
e defendem normas rígidas. Já li um texto nas redes sociais de uma famosa
transformista baiana ofendendo duramente os gays afeminados ao passo
em que elogiava os masculinizados. Apesar disso, a presença das pessoas
trans nos espaços públicos desloca e problematiza as normas hegemônicas
sobre as sexualidades e os gêneros. Não tenho dúvida de que este é um
dos grandes motivos da violência sofrida pelas pessoas trans. Travestis,
por exemplo, não são assassinadas com tanta frequência no Brasil apenas
porque moram ou trabalham em locais inseguros. Travestis são assassinadas,
muitas vezes com requintes de crueldade, porque transgridem as normas.
Subjetivamente, os assassinos mandam um recado para toda a sociedade:
“ou você se comporta como homem, ou veja o que nós fazemos com vocês”.
As pessoas trans, pela sua presença nos espaços públicos, mandam
outros dois recados para todas as demais pessoas, sejam elas homo ou
heterossexuais. O primeiro: “Se eu me montei desse jeito, se eu construí
meu gênero desta forma, qualquer um pode fazer o mesmo”. O segundo:
“Eu me montei com esta identidade de gênero que lhe apresento, você se
montou com a sua identidade. Assim como eu me monto, você também
se monta todos os dias antes de sair de casa”. Ou seja, para que tanto
preconceito e violência só para com a minha montagem?
As pessoas trans, além de colaborar para ampliar significativamente
as categorias homem e mulher, também ampliam a noção do que é ser
heterossexual. Conheço várias pessoas trans que são heterossexuais. Até
então, eu praticamente não falei da orientação sexual das pessoas trans,
pois preferi focar na questão de gênero. Por que? Porque as pessoas, ao
irem para a cama com alguém, não consideram apenas o “sexo biológico”
da outra pessoa. Conta muito a performatividade de gênero da pessoa. Sim,
transamos mais com gêneros do que com sexos. Por isso, tantos gays não
suportam a ideia de transar com gays afeminados ou travestis, mesmo que
eles e elas possuam um pênis e desempenhem o papel de “ativos” na relação
sexual. Se isso é verdade, por que quase sempre consideramos como sexo
homossexual aquele praticado por uma pessoa trans que possui pênis, e se
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MASCULINIDADES FEMININAS:
NÃO SOMOS LÉSBICAS, SOMOS
GOBY!48
CARLOS HENRIQUE LUCAS LIMA
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questão de feminilidade, isto é, “pode até ser viado mas que seja homem!”,
no que se refere às goby, o que se destaca é a masculinidade poder ser
vivenciada para além da lesbianidade, o que desnaturaliza o “corpo biológico”
da mulher da obrigação de ser feminina. É uma potência política fantástica
essa a da goby! E aí provoco: poderiam os meninos gueis afeminados serem
goby? Poderiam eles gozar da prerrogativa de, quando desejável, performar
a masculinidade, ou é a feminilidade uma obrigatoriedade em seus corpos?
Boas reflexões e um beijo bem masculino em todxs xs goby do Brasil!
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ENCOXADORES DE HOMENS50
CARLOS HENRIQUE LUCAS LIMA
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MOVIMENTOS SOCIAIS
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DESCONSTRUINDO AS IDEIAS
DO LIVRO DE CABECEIRA DOS
FUNDAMENTALISTAS RELIGIOSOS54
LEANDRO COLLING
Meu texto irá tratar sobre o livro A estratégia – o plano dos homossexuais
para transformar a sociedade, recentemente publicado no Brasil pela editora
Central Gospel Ltda, de autoria do reverendo norte-americano Louis P.
Sheldon. O livro revela porque estamos vendo hoje no Brasil uma grande
articulação de determinados fundamentalistas religiosos para tentar barrar
o avanço de direitos e cidadania plena para a população LGBT. Você verá
aqui como esse livro tem servido para fomentar o ódio, a discriminação, a
intolerância para com qualquer pessoa que não viva dentro de um conjunto
bem rígido de normas.
O reverendo Sheldon tem o explícito objetivo de convocar os religiosos
do mundo para lutar contra os direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais ou qualquer outra pessoa que não viva dentro de um modelo
muito restrito de heterossexualidade, que pressupõe, por exemplo, o sexo
apenas depois do casamento. Para tentar atingir o seu objetivo, recorre
a algumas controversas ideias religiosas, distorce uma série de dados
e, principalmente, mente sobre outra série de evidências históricas,
amplamente estudadas e conhecidas pela sociedade. Tudo isso é feito para
atingir o seu grande objetivo, explícito já na página 6. Diz ele: “(…) não são
apenas os terroristas estrangeiros que devemos temer hoje. Os radicais mais
perigosos que ameaçam nosso estilo de vida são aqueles que vivem entre
nós (…) e você pode ter certeza de que eles nos destruirão se não tomarmos
medidas para derrotar o movimento radical deles agora”.
Sheldon, em vários momentos, defende que a homossexualidade não é
“natural e normal”. Cita, inclusive, alguns estudos acadêmicos que tentaram
descobrir o “gene gay”. Para Sheldon, uma vez que ainda não se descobriu
uma causa genética para a homossexualidade, os LGBTs não são normais e,
por isso, devem ser curados e não devem ter direitos. Ele defende, inclusive,
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Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)
55 Ver em http://pol.org.br/legislacao/pdf/resolucao1999_1.pdf
56 Ver, por exemplo: BUTLER, Judith. Problemas de gênero – feminismo e subversão da
identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; LOURO, Guacira
Lopes. (org.). O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2010.
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norma que todos devem seguir, que todos são obrigados a seguir.
Para Sheldon, LGBTs são um risco à sociedade porque desejam
“destruir a família”. Ao acionar o ideal de família nuclear burguesa (pai, mãe,
filhos), ele novamente distorce evidências históricas amplamente estudadas
por pesquisadores/as do mundo inteiro57. O que dizem esses estudos?
1. A família, tal qual concebe Sheldon, é também fruto de um longo
processo histórico. Nem sempre existiu essa configuração familiar defendida
por Sheldon. Basta lembrar da existência dos clãs, que são anteriores às
famílias de hoje, e dos casamentos arranjados, nos quais as noivas eram
escolhidas pelos pais do noivo;
2. As pessoas pobres, em especial as brasileiras, sabem muito bem que
esse ideal de família defendido por Sheldon é tipicamente burguês. Nossas
famílias são construídas em uma ampla diversidade de combinações, com
filhos/as sendo criados/as por avós, tios, vizinhos, amigos, ou com apenas
a presença da mãe. Ou seja, ao defender apenas um tipo de constituição
familiar, Sheldon, na verdade, atenta contra boa parte das constituições
familiares que existem em nossa sociedade, disseminando o seu ódio para
além da população LGBT58;
3. Sheldon diz: “desde a época de Adão e Eva, as sociedades civilizadas
entendem que a família consiste em uma mãe, um pai e os filhos”. Ora, além
de exigir que todos acreditem na existência de Adão e Eva, ignora que nem
sempre o homem viveu em chamadas “sociedades civilizadas” tais como
as conhecemos hoje. Trata-se de um pensamento tipicamente criacionista,
que mente sobre dados e evidências históricas amplamente estudadas por
pesquisadores do mundo, que demonstram que, ao longo da sua história,
a humanidade passou por momentos de “barbárie” e com vários tipos de
arranjos familiares;
4. Muitos gays e muitas lésbicas, ao contrário do que diz Sheldon,
gostam tanto dessa constituição familiar que desejam constituir uma, mas
dentro de uma perspectiva ampliada, um pouco diferente. Tanto isso é
verdade que o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em 5 de maio 2011, a
união estável entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. O STF entendeu que
57 Ver, por exemplo, os clássicos ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade
privada e do estado. 15ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, e LEVI-STRAUSS, CLAUDE. As
estruturas elementares do parentesco. Rio de Janeiro: Vozes.
58 Ver dados do IBGE em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_
visualiza.p hp?id_noticia=774
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Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)
59 Sobre esse tema, ler MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma
analítica da normalização. Sociologias. 2009, n.21, pp.150-182. Disponível em http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
60 Ler, por exemplo, RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo:
Editora Ática, 2000.
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Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero
suicídios de LGBT são motivados pelo fato dos heterossexuais radicais não
aceitarem a diversidade sexual e de gênero existente em nossa sociedade.
Ou seja, dentro da perspectiva de Sheldon, LGBT se contaminam e se
matam porque querem.
Em determinado momento, ele inclusive cita que alguns gays transam
sem o uso do preservativo, o que seria prova de que os homossexuais
desejam se contaminar. Ainda que existam alguns gays que resistem ao
uso de preservativos, o que falta dizer é que não são apenas determinados
LGBT que não usam preservativos, mas também milhares de heterossexuais
fazem o mesmo e não são considerados, por causa disso, disseminadores de
uma “cultura de morte”. Além disso, Sheldon liga sempre a pedofilia com a
homossexualidade, como se essa prática, considerada criminosa, não fosse
encontrada entre a população heterossexual.
Outra ideia recorrente no livro ataca toda e qualquer ação nas escolas e
universidades que vise o respeito à diversidade sexual e de gênero. Sheldon
diz que essas ações teriam o objetivo de ensinar os estudantes a serem
homossexuais (página 12) e de promover a homossexualidade. Diz que as
universidades “estão tomadas por uma epidemia da diversidade” (página
176). Trata-se de mais uma leitura equivocada, com a evidente intenção de
disseminar o ódio homofóbico. O que os movimentos sociais e educadores
defendem é que a escola seja um local que ensine o respeito à diversidade61.
Os estudos acadêmicos, já desenvolvidos em vários lugares do mundo e
que, nos últimos anos, têm crescido muito nas universidades brasileiras,
mesmo com perspectivas metodológicas e teóricas distintas, são enfáticos ao
defender que todas as orientações sexuais e todos os gêneros são legítimos e
construídos também culturalmente.
Muitos desses estudos62 desmentem outra ideia de Sheldon, a de
que o comportamento homossexual foi proibido em toda a história da
humanidade (página 251). Há dezenas de reconhecidos estudos, todos
solenemente ignorados por Sheldon, que relatam que o sexo entre pessoas
do mesmo sexo nem sempre foi considerado algo problemático em outros
períodos históricos e sociedades. O que esses estudos apontam é que a
partir do século 19 é que a homossexualidade passa a ser patologizada e
criminalizada, através de uma impressionante sintonia entre igreja, Estado
61 Ler, por exemplo, LOURO, Guacira Lopes et al. (orgs). Corpo, gênero e sexualidade: um
debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003
62 Ver, por exemplo, FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I:
a vontade de saber. São Paulo: Graal, 2005
137
Leandro Colling e Gilmaro Nogueira (Orgs.)
e cientistas.
O simples fato de promover estudos como esses e incentivar o debate
para o respeito à diversidade é entendido por Sheldon como proselitismo
gay. Historicamente, o que ocorreu e ainda ocorre é que as famílias, as escolas
e a sociedade em geral ensinam, de forma coercitiva e autoritária, que todos
sejam heterossexuais. Se existe alguma promoção em curso, há séculos, é
em relação à heterossexualidade e não em relação à homossexualidade.
Em vários trechos, Sheldon ataca o Estado Laico. Na página 89,
defende explicitamente um Estado com religião. Diz que “a separação entre
Igreja e Estado é uma mentira”, mas defende que o Estado não interfira na
religião e que os professores deveriam ter liberdade de ensinar religião aos
seus estudantes.
No final do livro, ele conclama as pessoas a se unir contra o Estado
Laico (página 222). Trata-se, portanto, de uma ideia que atenta para
um princípio base do sistema democrático. A separação entre a religião
e o Estado permitiu que a diversidade religiosa fosse respeitada, o que
possibilitou o fim de muitos e sangrentos conflitos. Portanto, a ideia de
Sheldon representa um atentado ao Estado Democrático de Direito e
violenta todas as denominações religiosas que não compactuam com as
suas leituras fundamentalistas.
Portanto, suas ideias, como podemos ver, tentam acabar com outras
expressões da diversidade existentes em nossa sociedade. Sheldon, por
exemplo, além de atacar todas as pessoas que vivem em famílias diferentes
da nuclear burguesa, vincula a decadência da sociedade com as conquistas
das mulheres (página 39), ataca os adeptos do “amor livre” (página 69) e,
ao tratar de promiscuidade, diz que as jovens usam roupas muito curtas e
estimulam os homens (página 190). Por fim, ainda critica duramente os
negros “de esquerda” (página 224) que defendem os direitos de LGBTs.
Em vários momentos Sheldon diz que o livro que mais inspira os
homossexuais é Minha luta, de Hitler. Como é de conhecimento público,
um dos principais objetivos dos nazistas era o de aniquilar todas as
pessoas diferentes, que não fossem brancas, tidas como saudáveis, fortes
e heterossexuais. Centenas de homossexuais foram assassinados pelos
nazistas. Ou seja, como poderiam as pessoas LGBTs ter como fonte de
inspiração um livro de Hitler? Por sinal, um livro proibido de circular por
incitar o ódio antissemita. É exatamente a produção do ódio o que Sheldon
faz em relação aos milhares de LGBTs existentes no mundo.
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Outra pesquisa que o geneticista cita foi publicada no texto PET and
MRI show differences in cerebral asymmetry and functional connectivity between
homo and heterosexual subjects69. Os pesquisadores teriam encontrado muita
similaridade entre o cérebro de mulheres heterossexuais e de homens
homossexuais. Mas sabem quantas pessoas participaram dessa pesquisa?
Noventa pessoas, 25 homens heterossexuais, 25 mulheres heterossexuais, 20
homens homossexuais e 20 mulheres homossexuais. Por causa do pequeno
universo pesquisado, o próprio texto dos autores do estudo diz: “Essas
observações nos motivam a realizar pesquisas mais amplas com grupos
de estudo maiores e a buscar uma melhor compreensão da neurobiologia
à homossexualidade.” Ou seja, os próprios autores do estudo não usam
os seus dados para dizer que a genética determina a orientação sexual
homossexual, mas que mais estudos precisam ser realizados. Além disso,
muitos outros questionamentos podem ser feitos sobre essa tal pesquisa,
mas o que eu aponto aqui já basta para o propósito deste texto.
Outra pesquisa, citada apenas vagamente pelo geneticista, apontaria
que os homens homossexuais teriam maior capacidade de identificar o
cheiro de outros homens. Ora, esse “estudo” chega a ser tolo, risível. Qual
é o homem gay adulto que não consegue identificar qual é o cheiro de
um homem? Isso se aprende rapidinho! Outra tolice é querer comparar a
prática sexual dos animais com a dos humanos. Por favor, sexualidade existe
apenas em humanos, que vivem em cultura! Os animais são dominados, de
forma hegemônica, por instintos! Mesmo os animais mais domesticados,
ainda que externem sentimentos, não são influenciados por todas as normas
de gênero e sexualidade que incidem sobre os humanos.
Enfim, sou obrigado a repetir o que já escrevi no outro texto:
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Crônicas do CUS: cultura, sexo e gênero
Teria muitas outras coisas para comentar, mas não posso deixar de
destacar algumas. A entrevista do Malafaia com Marília Gabriela e o
vídeo do geneticista encobrem uma outra questão fundamental: por que
a sociedade e os ditos cientistas querem tanto saber sobre a origem da
homossexualidade e não querem saber da origem da heterossexualidade?
Qual são os objetivos dessas pesquisas que tentam encontrar um gene gay?
Para curar a homossexualidade? Se, por acaso, a ciência chegar a encontrar
os componentes genéticos que geram a orientação sexual homossexual, com
esse movimento fundamentalista que avança no Brasil e no mundo, vocês
têm dúvida de que eles não financiariam a possibilidade de que homossexuais
não pudessem mais ser gerados? Então, alô militantes LGBT, vejam que
grande tiro no pé, hipoteticamente, vocês podem estar cometendo ao se
filiar a esses argumentos!
O que nós precisamos é de argumentos que se diferenciam dos
fundamentalistas e não que eles nos pautem em suas falas que apenas
produzem ódio. No fundo, tanto Malafaia quanto o geneticista querem
defender que existe um padrão de “normalidade” sobre as orientações
sexuais. Malafaia diz que a heterossexualidade é normal e o geneticista
diz que a homossexualidade também é normal, uma vez possui algum
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pobres, que reclamam demais, pois não bastam os altos impostos que nos
cobram pra manter bolsas-família, hospitais e escolas públicas!
Ah, quem se esforça nessa vida se torna gente! Esse papo de menos
favorecido socialmente é desculpa pra quem quer tudo fácil. Quanto à
gayzada, esses sim eu condeno, não somos obrigados a aceitar esse tipo de
comportamento, essa opção pela imoralidade que está se transformando
numa ditadura! Sou contra os privilégios que querem dar a essas “pessoas”.
Esse meu desabafo surgiu quando eu li o texto de um tal de Leonardo
Sakamoto, blogueiro do UOL, defendendo essa ditadura gay. Por sorte, na
parte dos comentários, encontrei uma resposta à altura, incrível, um alívio
diante de tanta mentira, deturpação e baboseira. O leitor defende a criação
de um “Movimento Mundial contra a discriminação dos homens adultos,
brancos heterossexuais, com escolaridade superior e empresários com boa
renda”. Pessoas, isso é genial! Somos nós que sofremos com tanta opressão,
fazemos esse país funcionar (e também financiamos os benefícios que essa
outra gente que citei acima suga às nossas custas). Leiam e observem se não
é dos argumentos mais lógicos, naturais e verdadeiros já ajuizados:
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EM DEFESA DA FECHAÇÃO71
LEANDRO COLLING
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dizendo que elas sejam necessariamente gays, isso pouco importa aqui)
revelam a própria artificialidade de todas as performatividades de gênero,
sejam elas de homens ou mulheres, heterossexuais ou não. Isso porque
os meninos das balizas mostram que a performance dos outros homens
poderia ser diferente, caso eles assim quisessem ou tivessem coragem
de fazer algo diferente; 2) em um momento em que cresce a violência
contra LGBTs em nosso Estado, dias após um garoto heterossexual ter
sido assassinado em Camaçari porque estava tendo um comportamento
considerado como gay, as balizas e as dezenas de LGBTs, naquele ponto
da Avenida Sete, naquele momento, dizem, através daqueles gestos, gritos
e ações: “eu não vou me adaptar às normas de gênero, eu vou permanecer
fazendo a minha fechação, explicitando quem eu sou e quero ter o direito
de fazer isso quando eu quiser. Não vou me comportar como a maioria
deseja, quero ser aceito e respeitado como sou”.
Por essas razões, considero aqueles efêmeros encontros entre LGBTs e
as balizas um evento político e quem as desqualifica, no fundo, está tendo
um comportamento homofóbico e misógino ao mesmo tempo. Mas, é
claro, não é uma ação política no sentido tradicional. Muito possivelmente,
a maioria nem entenda aquilo como uma ação política, mas eles e elas
são os/as protagonistas dela. Não é o caso da Marcha das Vadias, um dos
mais interessantes movimentos que surgiram nos últimos tempos, na qual
a fechação tem sido uma estratégia empregada de forma intencional por
alguns/mas participantes.
Outro aspecto interessante é que, em 2009, o presidente da Associação
das Fanfarras e Bandas da Bahia, Edimilson Castro72, tentou criar uma
norma que impediria a fechação das balizas nas fanfarras. Mas o próprio
Castro, sempre para com sua fanfarra no Beco do Lugar Comum e toca
algumas músicas muito admiradas pelo público LGBT, a exemplo de I will
survive, hino LGBT no mundo. A Bahia é mesmo cheia de contradições
e paradoxos.
Para finalizar, não posso deixar de fazer mais um rápido comentário:
duvido que alguém encontre no Brasil alguma festa cívica/militar como
o Dois de Julho, com direito à fechação. Para me despedir, faço uma pose
bem fechativa e mando um beijo, com a ponta dos dedos. Kiu!
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que é produtiva para lembrar que a cultura não muda só por decretos, a
cultura muda mais rapidamente por outras dinâmicas, em especial pela
educação e pelo resultado de produtos culturais que atuem para sensibilizar
as pessoas. Discursos “racionais”, como os realizados em textos como
este, por exemplo, atingem e convencem um número limitado de pessoas.
Duvido que uma pessoa fortemente homofóbica leia um texto, meu ou de
qualquer outra pessoa acadêmica, e mude suas opiniões e ações.
Por isso, precisamos de políticas públicas em todas as esferas, ministérios
e secretarias, que promovam o respeito à diversidade sexual e de gênero
em toda a sociedade, em especial através do que chamei de “campo da
cultura”. Isso não quer dizer que devamos pensar essas políticas apenas
nos ministérios e secretarias de cultura, mas pensá-las de forma transversal
em todos os setores. Mas, ainda assim, é claro que alguns ministérios são
vitais nesse processo e, certamente, entre eles está o de Educação e o de
Comunicação.
E qual é o quadro hoje no governo federal nestes dois ministérios?
Trevas, trevas. O programa Escola sem homofobia, após a pressão dos
fundamentalistas religiosos, está paralisado. E o Ministério da Comunicação
não tem nenhuma ação significativa de combate à homofobia no Brasil.
Qualquer pessoa minimamente informada sabe da centralidade da mídia
na sociedade contemporânea. Enquanto isso, através de concessões de rádio
e televisão, que são públicas, proliferam os discursos de ódio às pessoas
LGBT. E assim continuaremos a registrar muitas mortes, como a de Daiane
Almeida dos Santos, de 22 anos, ocorrida na semana passada em Salvador.
Mas quem era ela mesmo? Alguém lembra? Que mortes nós choramos?
Tenho mais coisas para falar sobre os casamentos, mas vou ficando por
aqui. Em suma, defendo que podemos apoiar e festejar o direito de casar e,
ao mesmo tempo, apontar os seus limites. Apoiar a lei e questionar a norma.
Antes de terminar, quero enfatizar que os textos publicados aqui não são
reportagens. Publicamos textos opinativos baseados em reflexões de estudos
sobre a sexualidade e gênero da atualidade. Ou seja, não construímos as
nossas opiniões com base em “achômetros”. Para quem deseja conhecer os
estudos que mais nos influenciam, sugiro a leitura de dois ótimos livros que
acabaram de ser publicados no Brasil. Um deles é de Sara Salih, chamado
Judith Butler e a teoria queer. Outro é de Richard Miskolci, com o título
Teoria queer, um aprendizado pelas diferenças. O livro de Salih apresenta o
pensamento de Butler, que cada vez mais passa a ser estudada no Brasil. Já
Richard faz uma boa introdução ao pensamento da corrente teórica que
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O QUE TEMEM OS
FUNDAMENTALISTAS?76
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DIANTE DA OLIMPÍADA DE
OPRESSÃO, OU PRODUZIREMOS
UM PARENTESCO SUBALTERNO
OU JAMAIS CONSEGUIREMOS TER
EFETIVAMENTE UM MOVIMENTO
LGBT81
GILMARO NOGUEIRA
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não são empecilhos para uma luta conjunta ou, no mínimo, parcerias
estratégicas, mas nem isso está acontecendo. Bom lembrar que mesmo a
relação de parentesco artificialmente produzida pelxs índixs não impediu/
impede que seus direitos sejam desrespeitados e que sejam violetadxs
rotineiramente, mas seria catastrófico não ter um pacto/aliança entre eles.
Obviamente nossas opressões não são iguais, nem mesmo dentro
de um grupo identitário as pessoas sofrem do mesmo jeito. Não quero
deslegitimar que temos privilégios. Eu, homem, negro, tenho privilégios
que viso reconhecer cotidianamente, principalmente quando analiso a vida
das pessoas trans – cotidianamente violentadas. Reconhecer os privilégios
é uma forma de reconhecer a opressão dos outros e lutar contra essas
opressões, ou contra nossa cumplicidade.
Certa vez, uma pesquisadora disse que sua branquitude não chegava
ao Estados Unidos. A minha branquitude não se sustenta nem no “meu”
bairro. Meus privilégios, embora sejam privilégios, se comparados a outras
existências, são precários, e não os problematizo para buscar um lugar de
vítima, mas de parentesco. Como privilegiado precário, eu transito entro
o status de vítima e agressor facilmente. Nos hierarquizamos facilmente
ou, como disse uma autora que não lembro o nome: “numa sociedade
dividida, as consciências são divididas!” Nós, sujeitos subalternizadxs, nos
violentamos constantemente porque nossas consciências, sem exceção, são
divididas.
Reconhecer meus privilégios não significa que eu, sujeito precário,
possa me dar ao luxo de não encampar lutas, comprar brigas para que não
somente eu, mas xs outrxs, possam ter mais legitimidade. Não é porque eu
sou caridoso, mas porque considero impossível ser um cidadão de primeira
classe, ou de classe intermediária, sozinho ou apenas no grupo que me
designam. Minha luta depende da luta de outrxs subalternxs. Outrxs
sujeitxs, mais ou menos privilegiados, não podem se eximir das lutas ou
serem cúmplices.
Mas a luta do lado de cá dxs oprimidxs é complexa. Se eu me proponho
a gritar com algum grupo com o qual me designam, sou acusado de excluir
os outros. Se quero gritar junto, sou acusado de invisibilizar xs outrxs. Se eu
não grito, eu sou cúmplice. Enquanto privilegiado precário eu sei que meu
grito só ecoa junto com outros grupos. Juntos, não é meu grito, nem nosso
grito, mas um outro grito, uma nova sonoridade.
O meu sentimento, e não apenas meu, mas de muitas pessoas, é que o
grito de quem luta contra nós, embora não possa ser justo, é mais solidário,
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É PRECISO TRANS-FORMAR O
MOVIMENTO LGBT82
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Você é quem você pensa que é? Essa pergunta pode parecer, para
algumas pessoas, descabida ou até mesmo delirante. Ora, você pode dizer,
recorrendo a uma explicação religiosa: “o que eu sou é aquilo que ‘deus’ quis
que eu fosse, a sua imagem e semelhança”, ou recorrendo a uma explicação
que suprime a ideia de um ‘deus’: “eu sou o que meu corpo diz que eu sou:
sou um homem/mulher, de tal o qual raça/etnia” etc. As explicações são
muitas, basta perguntar por aí que as mais variadas origens surgirão. No
entanto, e se você não fosse aquilo que crê que é, ou melhor, e se você fosse
outra coisa, e mais além, e se você se tornasse outra coisa após o próximo
minuto, após a leitura deste texto?
Antes de analisar alguns exemplos, tais como a tragédia na boate Kiss
e os assassinatos de homossexuais, farei primeiro uma reflexão conceitual
mais abstrata. Convido você a me acompanhar até chegar ao objetivo final
do texto.
Em um de meus textos, afirmei que somos, desde pequenos, informados
sobre qual é nosso sexo e qual é nosso gênero. É-nos dito como devemos
nos portar, de quais maneiras podemos falar, em quais ambientes é ou não
possível um gesto, uma ação, uma palavra; é-nos ensinado, ainda, como usar
os nossos corpos, quais os usos de cada parte, quais os limites entre o dentro
e o fora, entre o eu e o não eu. Todo esse falatório sobre o eu, na verdade,
configura-se enquanto discurso de poder que visa instituir verdades sobre
nossos corpos e sobre nossos gêneros. Como assim?
Em uma das hipóteses iniciais em relação à questão sobre o que eu sou,
sugeri ‘deus’ ou apenas, se você preferir, a divindade como a origem doadora
da identidade. Nessa hipótese, recorre-se a uma explicação sobrenatural e
espiritual para justificar uma série de interdições e regulações sobre nossos
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corpos. Somos, nos dizem, o que ‘deus’ quis que fôssemos: sua imagem
e semelhança. É um discurso de verdade que busca em ‘deus’ o modelo
de comportamento e de estar no mundo. Já na segunda hipótese, aquela
que recorre a uma explicação ontológica, quer dizer, que lê o corpo como
possuidor de uma verdade interior, de um eu interno que nos diz o que
somos, de igual forma, vale-se de uma construção da interioridade, de
um relato, que acaba por construir – por criar, a própria interioridade que
pretende explicar o que somos. A “origem” nada mais é do que o próprio
efeito do discurso que tenta dar conta da mesma “origem”.
Ser homem ou ser mulher, e o ou já coloca o tema da dualidade do
ser em questão, é uma forma de explicar, de ler a materialidade do corpo
à luz de uma chave binomial restritiva e perversamente excludente. Não
representa, em si, uma verdade do corpo, de sua matéria, mas sim a própria
produção das categorias – homem/mulher – que entende como explicações
do corpo. Assim, pergunto: é o corpo que nos informa sua verdade ou são
os discursos sobre ele que terminam por construir a verdade sobre esse
próprio corpo?
Judith Butler, autora já citada por mim e demais textos do livro, nomeia
essa cadeia de discursos que fundam verdades, seguindo uma tradição de
estudos na área da linguística, de atos performativos. De maneira mais
específica, esses atos seriam aquelas práticas discursivas que realizam ou
que produzem aquilo que nomeiam. O gênero – masculino/feminino –
segundo a autora, apresentase como um ato performativo que se estabiliza
por meio de sua constante repetição, por intermédio do que ela chamou de
cadeia de citações. Serão essas cadeias de citações que darão estabilidade
aos gêneros e os revestirão de uma aparência de naturalidade.
Essas cadeias de citações, inseridas em uma lógica coercitiva e
regulatória, a serviço da matriz de inteligibilidade heterossexual, sobre
a qual também já falamos, dizem o que é um corpo viável, o que é um
gênero aceitável e, por fim, terminam por determinar o que é e o que não
é humano ou, nos termos de Butler, “que estilos de vida são considerados
‘vida’, quais vidas vale a pena proteger, quais vidas vale a pena salvar, quais
vidas merecem que se chore a sua perda?”87
Nesse ponto, tanto as discussões em torno do sexo/gênero são postas
em cena quanto aquelas relacionadas à raça/etnia: quais corpos devem ser
87 BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del
“sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2002, p. 39.
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projeto de naturalização que impõe uma eterna marca a esses corpos, mesmo
quando já cumpriram a pena e “pagaram sua dívida com a sociedade”. A
população carcerária LGBT recebe um estigma ainda maior: há ainda o peso
de mais uma marginalização, pois ela estaria aquém de uma normalidade
de sexo e gênero. Ex-detento e viado, ex-detenta e travesti. Não: viado e
travesti criminosos, bandidos, gentalha. Para sempre. Empregos? Muito
difícil. Família? Muitos são rejeitados. Reinserção social? Um mito. Ressoa
a ferida de um país que não sabe lidar com essas pessoas, preferindo sempre
a solução da punição, a criação de novos presídios e o afastamento do
convívio social. São abjetos, menos humanos e parecem não merecer uma
segunda chance.
Voltando ao tema da criação de alas LGBT em presídios brasileiros,
reitero que minha crítica não é à proposta de separação dessas pessoas, que
evidentemente estão sendo violentadas de variadas formas. Não ataco a
criação dessas alas. Acho que é fundamental preservar a integridade física e
psicológica dessas pessoas. É imperativo, ou seja, se for necessário separar,
que seja… imediatamente inclusive!
Meu ponto de crítica é: quais políticas de enfrentamento à violência,
quais projetos alicerçados no respeito à diversidade sexual e de gênero
estão sendo pensados e realizados para além da criação de alas separadas?
Não consigo perceber minimamente essa preocupação dos governos
e autoridades de um modo geral. Sinto que, para o Estado, essa grande
benfeitoria vai “mudar o mundo”. Eu esperava ao menos uma declaração
com intenções de avanço nessa questão, mas parece irrelevante pensar
em políticas de enfrentamento à violência e à estigmatização, ou seja, a
construção de políticas públicas para o respeito à diversidade.
O investimento em educação parece ser ainda um sonho distante de
nossa sociedade, afinal, se nossos governantes são contra o aumento salarial
dos professores, aliando-se para barrar qualquer proposta nesse sentido, se
esses mesmos professores são alvos de violência da força militar por lutar
por seus direitos, o que dizer da humanização da população carcerária ou de
políticas de enfrentamento à violência contra LGBTs, com ações concretas
nos campos da educação e da cultura? Basta que alas LGBTs em presídios
sejam criadas para sanar esse grave e vergonhoso problema? E o passo à
frente, quando será dado?
Projetos de enfrentamento estão sendo ao menos ponderados ou
vamos estacionar na criação de mais um “canto dos malditos”, outra “vala
para marginais”? Se pensarmos numa sociedade que prefere jogar lixo pra
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93 http://www.eseeufosseputa.com.br/2015/04/travestis-eregulamentacao-da.html?m=1
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94 http://g1.globo.com/bahia/noticia/2017/01/ba-ocupa-2-lugar-emcrimes-contra-lgbts-
aponta-relatorio-do-grupo-gay.html
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criamos e a consequência disso é que grupos fascistas estão cada vez mais
articulados enquanto as propostas de enfrentamento... Há muito que
produzimos falas e espaços em que a gente só dialoga pra gente mesmo,
que já conhece e sabe tintim por tintim o que será dito pra ser aplaudido.
Chegou a hora de repensarmos na base a maneira como estamos
construindo nossos ativismos. Nenhuma pauta política concreta no campo
da igualdade de gênero e sexualidade se dará sem de fato pensarmos na
participação de homens, pessoas cisgêneras e heterossexuais. Enquanto essas
pessoas, com base em um essencialismo simplista, forem automaticamente
consideradas inimigas, só teremos retrocesso e avanço do conservadorismo
e do fascismo que nos mata diariamente.
Como afirma Judith Butler, “ainda que tenhamos que lutar por
liberdades individuais, temos que pensar o lugar de corpos atuantes e de
corpos movendo-se livremente dentro de uma democracia”.95 Com isso
poderemos colaborar na construção de uma sociedade mais justa, menos
violenta, que ressignifique sua noção de humanidade, respeitando as
diferenças, se alicerçando em valores como o afeto e na prática do diálogo,
para que até mesmo, como na poesia da ativista e artista argentina Susy
Shock, seja possível a reinvindicação do direito de ser um monstro, de
existir como tal, ou nas palavras da própria, o respeito à “vontade do meu
direito de explorarme, de reinventar-me, fazer de minha mutação o meu
nobre exercício, veranear-me, outonar-me, invernar-me, os hormônios, as
idéias, os punhos, e toda a alma!
Amém!”.96
95 http://revistacult.uol.com.br/home/2015/09/temos-que-pensar-olugar-de-corpos-
movendo-se-livremente-dentro-de-uma-democraciadiz-judith-butler/
96 http://susyshock.blogspot.com.br/2008/03/yo-monstruo-mio.html
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