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VICTOR CORREIA

A HOMOSSEXUALIDADE DE
FERNANDO PESSOA

Editora
INTRODUÇÃO :

O silêncio de vários estudiosos de Fernando Pessoa, as suas omissões ou os seus


rodeios, têm sido a tónica dominante sobre o tema da sexualidade em Fernando Pessoa.
No que diz respeito à homossexualidade de Fernando Pessoa, existe explicitamente nuns
e implicitamente noutros a negação da mesma, que por vezes tem subjacente
preconceitos homofóbicos, que se manifestam de modo indireto, subtil e sinuoso. Por
seu turno, entre o grande público existe uma grande falta de conhecimento sobre
Fernando Pessoa, pois a obra deste é imensa, e alguns dos que já ouviram falar da
homossexualidade de Fernando Pessoa consideram-na um mero boato. Muitos padecem
de uma espécie de cegueira intelectual, voluntária ou involuntária, vivendo como os
prisioneiros da alegoria da caverna de Platão, virados para o interior da caverna, como
se não houvesse mais nada para além das sombras que veem projetadas dentro de
caverna, e ignorando que há um mundo para lá do que é suposto, um mundo para lá da
aparência da obra pessoana e das coisas básicas sobre Fernando Pessoa que lhes
ensinaram durante os seus tempos de estudantes no Ensino Secundário, onde essas
coisas não eram faladas. Assim como os prisioneiros da caverna de Platão, muitos
persistem nessa cegueira intelectual, que os impede de serem capazes de verem e de
compreenderem a homossexualidade de Fernando Pessoa. Em resultado disso, no
panorama editorial, tanto a nível nacional como internacional, não existe nenhuma obra
específica sobre a homossexualidade de Fernando Pessoa, e portanto este é o primeiro
livro que se dedica exclusivamente a este tema em Fernando Pessoa.
O conteúdo deste livro não é uma análise literária da obra de Fernando Pessoa,
não é uma análise filosófica, não é uma análise psicanalítica, não é um ensaio, etc.,
embora consideremos importantes essas formas de abordagem. Esta investigação não
tem como objetivo utilizar Fernando Pessoa como pano de fundo de uma determinada
teoria sobre a homossexualidade, nem consiste numa análise conceptual. Embora se
trate de uma obra sobre o tema da homossexualidade, não é uma obra de estudo
psicanalítico, onde geralmente o tema da homossexualidade é estudado. Embora se trate
de uma obra sobre um escritor, não é uma análise literária. O objetivo deste livro não é
analisar a homossexualidade de Fernando Pessoa à luz de uma teoria, de um autor, ou
dos chamados estudos queer, mas sim ir às próprias fontes, isto é, partir dos próprios
textos de Fernando Pessoa, o qual defendia que não se pode separar de um autor os seus
textos, como por exemplo quando Fernando Pessoa diz sobre Shakespeare que não
podemos separar a sua obra da sua inversão sexual.
O objetivo deste livro é mostrar as formas variadas como a homossexualidade
aparece tratada, implícita e explicitamente, na vasta obra de Fernando Pessoa, e
defender a partir da sua obra, de alguns factos da sua vida, de alguns textos de amigos
mais próximos, e de alguns textos de investigadores, que Fernando Pessoa era
homossexual. Citamos muitos desses textos, tecemos considerações sobre os mesmos e
comentamo-los numa linguagem clara, que se pretende acessível a todos, não sendo
portanto um livro apenas para os especialistas, mas sim para todo o público que se
interessa por Fernando Pessoa. Alguns dos comentários e análises são mais
pormenorizados, outros mais sucintos, pois consideramos que alguns temas merecem
uma análise mais pormenorizada, e outros menos pormenorizada, para melhor se
compreender o tema. Alguns temas deste livro poderiam ou deveriam se mais
desenvolvidos, há mais coisas poderia ser ditas, mas isso aumentaria muito o já elevado
número de páginas deste livro.
Sobre o tema da homossexualidade de Fernando Pessoa é difícil dizer tudo, pôr
tudo, e conseguir apresentar tudo. Certamente que há mais coisas que poderiam ser ditas
ou analisadas, mas é impossível falar aqui de tudo, devido à vastidão da obra de
Fernando Pessoa, e ao facto de não pretendermos escrever um livro demasiado extenso.
Embora procuremos que seja um estudo tão completo quanto possível, o nosso objetivo
é fornecer uma panorâmica significativa sobre a homossexualidade de Fernando Pessoa,
e sobre a forma como ele abordou esse tema, baseando-nos nos textos que sobre isso, ou
relacionados com isso, ele escreveu, e sobre o que outros autores que o conheceram
pessoalmente, disseram sobre ele, e juntando tudo isso como as peças de um puzzle,
concluirmos que Fernando Pessoa era homossexual. Muitos textos de Fernando não são
lineares, claros e evidentes, pois a leitura de um texto não pressupõe uma análise pré-
definida do mesmo, mas implica antes uma interpretação por parte do leitor. Daí o
conceito de obra aberta, de que fala Umberto Eco no seu livro do mesmo nome,
segundo o qual a produção literária não se encontra plenamente definida, enquanto
estrutura finita, mas pelo contrário possibilita diversas interpretações. Com a noção de
obra aberta estamos na presença de uma grande possibilidade de interpretações, de um
campo inesgotável de significados, sobretudo num autor como Fernando Pessoa, cuja
obra remete para uma imensidão de significados e de ambiguidades, que cabe ao leitor
interpretar, e essa liberdade interpretativa contribui para a escrita deste livro. No
entanto, não se deve reduzir a homossexualidade de Fernando Pessoa a uma simples
questão de interpretação, pois mergulhar a fundo na sua obra, conhecê-la em pormenor,
conhecer factos da sua vida, conhecer textos de amigos e conhecidos, conhecer outros
textos que indiretamente lhe dizem respeito, juntar os elementos recolhidos, relacioná-
los entre si, relacioná-los com outros escritores homossexuais, etc., permitem a uma
pessoa despida de preconceitos chegar a essa conclusão.
A faculdade do pensamento crítico consiste na aptidão para analisar e avaliar
informações, incluindo a interrogação das fontes, a identificação de viés, a avaliação da
validade dos argumentos e a busca de ideias para sustentar uma tese a ser defendida.
Isso é fundamental para tomar decisões informadas e formar opiniões fundamentadas,
que é o que fazemos, tanto quanto possível, com este livro. No entanto, defender que
Fernando Pessoa era homossexual não é semelhante a defender por exemplo que Deus
existe ou não existe, e buscar argumentos para isso. Em Fernando Pessoa, embora
ninguém o tenha visto a ter um relacionamento sexual com nenhum homem, temos
outras formas de concluir que ele era homossexual. É preciso mergulhar a fundo nos
seus textos, pensá-los, relacioná-los, juntar as peças do “puzzle” e tirar ilações. Em
alguns casos tem de se fazer um esforço, mas em muitos outros casos só não vê quem
não quer. O facto de Fernando Pessoa ter tido um “namoro” com Ofélia Queiroz impede
alguns leitores de compreenderem que Fernando Pessoa era homossexual, indivíduos
esses que não sabem ou não querem saber que muitos homossexuais ao longo da
História, e ainda hoje, tiveram também experiências com mulheres, que as namoraram
numa determinada fase da sua vida, e que até casaram (fora de Portugal, por exemplo
Óscar Wilde, e em Portugal, por exemplo António Botto).
Este livro sobre a homossexualidade de Fernando Pessoa tem uma variedade de
capítulos, que não obedecem a uma sequência em que um capítulo seja necessário para
se compreender o capítulo seguinte, como sucede por exemplo num romance. Os
capítulos podem ser lidos e compreendidos independentemente uns dos outros, embora
estejam interligados e se complementem. Este livro tem muitas citações dos textos de
Fernando Pessoa, e em alguns casos as citações repetem-se noutros capítulos, devido ao
facto de num mesmo texto Fernando Pessoa falar de coisas diferentes, por isso quando
tratamos de um assunto diferente noutro capítulo, temos de voltar a citar esse texto.
Apesar deste ser o primeiro livro especificamente sobre este tema, isso não
significa que o autor deste livro seja o único a defender que Fernando Pessoa era
homossexual, pois algumas conversas com alguns estudiosos de Fernando Pessoa, e a
leitura de uns poucos artigos de outros autores, permitiram ao autor deste livro constatar
que há mais estudiosos que defendem que Fernando Pessoa era homossexual, ou que
tendem a defender essa ideia. No entanto, geralmente preferem guardar para si essa
ideia, receando as ilações que se possam tirar do facto de defenderem isso
publicamente. Defender que Fernando Pessoa era homossexual pode dar azo a diversas
interpretações, e alguns investigadores, reputados académicos, acham melhor não se
comprometerem na defesa de que Fernando Pessoa era homossexual. Alguns deles
receiam que se pense que são homossexuais ao defenderem que Fernando Pessoa era
homossexual, e há mesmo estudiosos de Fernando Pessoa, que são homossexuais que
preferem não falar nisso, ou que falam nisso com muitos rodeios e apenas afloram o
tema, não o encarando de frente. O objetivo deste livro é encarar este tema de frente,
assumi-lo, defender que ele não é um mero tema em Fernando Pessoa, e que esse tema
em Fernando Pessoa não é apenas literatura. Por isso, há que estabelecer uma diferença
entre a “homossexualidade em” e a “homossexualidade de”. Muitos estudiosos de
Fernando Pessoa sabem que este tema está presente em Fernando Pessoa, mas não
passam disso. Ora, o objetivo deste estudo não consiste apenas na homossexualidade na
obra de Fernando Pessoa, mas também – e sobretudo - na homossexualidade de
Fernando Pessoa, defendendo portanto que a homossexualidade não era algo que lhe
fosse exterior, mas que fazia parte da sua própria personalidade.
Não pretendemos defender que Fernando Pessoa tenha mais valor por ser
homossexual, pois não consideramos que a homossexualidade de alguém, seja de quem
for, é uma razão para desvalorizar essa pessoa. Também não pretendemos defender que
Fernando Pessoa tem mais valor, ou que passa a ser mais importante, por ser
homossexual. A sua homossexualidade não diminui nem aumenta o seu génio. No
entanto, há que assumir esse tema e não o contornar, e fazer dele um assunto merecedor
de ser realmente analisado, como qualquer outro em Fernando Pessoa. Para alguns
leitores, a homossexualidade de Fernando Pessoa é uma mera suposição, e para outros,
apesar de admitirem essa hipótese, ou de aceitarem esse facto em Fernando Pessoa, isso
é algo absolutamente secundário. Ora, este livro considera que a homossexualidade de
Fernando Pessoa não é uma mera hipótese, e que não é algo secundário mas sim
fundamental, pois permite compreender melhor Fernando Pessoa.
A SEXUALIDADE ENQUANTO TEMA EM FERNANDO PESSOA

O INTERESSE DE FERNANDO PESSOA PELA SEXUALIDADE

A sexualidade, nas suas mais diversas componentes, seja direta ou


indiretamente, envolve a totalidade do nosso ser, e em torno dela gravita a condição
humana. Richard von Krafft- Ebing, no seu livro do ano 1886, Psychopathia Sexualis,
defendia que poucas pessoas alguma vez reconheceram completamente a influência
poderosa que a sexualidade exerce sobre os sentimentos, o pensamento e o
comportamento, e defendia que a importância desse assunto exigia que o mesmo fosse
analisado seriamente. Muita gente aceitou este desafio, e nos finais do século XIX e
princípios do seculo XX apareceram muitos livros sobre sexualidade, na Alemanha, em
França e Inglaterra, e alguns desse livros também chegaram até Lisboa, que Fernando
Pessoa também conheceu, nomeadamente Kraft-Ebing, diretamente ou através de outros
autores, como Nordau e Lombroso.
Um dos principais contributos dessa época para o estudo da sexualidade, foi o da
Psicanálise, que desenvolveu também, depois de Sigmund Freud, e de Jacques Lacan, as
suas próprias análises sobre a paixão e o desejo sexual. Segundo a Psicanálise, uma das
componentes mais importantes da identidade do ser humano é a sexualidade, a qual
desde a infância define toda a sua personalidade. O próprio Fernando Pessoa, numa
carta a João Gaspar Simões, chama a atenção para a importância de Freud e da
Psicanálise, dizendo o seguinte : “É utilíssimo porque chamou a atenção dos psicólogos
para três elementos importantíssimos na vida da alma, e portanto na interpretação dela:
1º.) - o subconsciente e a nossa consequente qualidade de animais irracionais; 2-º) - a
sexualidade, cuja importância havia sido, por diversos motivos, diminuída ou
desconhecida anteriormente; 3.º) - o que poderei chamar, em linguagem minha, a
translação, ou seja a conversão de certos elementos psíquicos (não só sexuais) em
outros, por estorvo ou desvio dos originais, e a possibilidade de se determinar a
existência de certas qualidades ou defeitos por meio de efeitos aparentemente
irrelacionados com elas ou eles”.1
O investigador João Gaspar Simões, a quem Fernando Pessoa escreveu esta
carta, haveria mais tarde de escrever uma biografia sobre ele, analisando também a sua
sexualidade, que segundo Gaspar Simões, está muito presente em Fernando Pessoa : “à
sexualidade – irresolvida (apenas subconscientemente lhe dava solução de cada vez que
se exprimia como poeta), a essa, nada a fazer : essa, sub-reptícia, traiçoeira, insinuava-
se em todos os seus actos”.2
Um investigador mais recente, Angel Crespo, diz também o seguinte : “Que o
sexo foi um motivo de preocupação e perplexidade para Pessoa ao longo da sua vida, é
algo que se observa, não só em várias das suas notas íntimas, como também em
bastantes dos seus poemas ortónimos e na escrita do Livro do Desassossego. 3
De facto, desde muito cedo que Fernando Pessoa se interessou por sexo.
Sabemos por exemplo, através de uma carta real de um dos seus colegas no colégio para
rapazes na África do Sul, onde Fernando Pessoa viveu e estudou, o colega C.E. Geerdst,
escrita por este anos mais tarde, que Fernando Pessoa “tinha em seu poder algumas
bandas desenhadas francesas e portuguesas indecentes”. 4 Fernando Pessoa, já adulto,
tinha também na sua biblioteca pessoal alguns livros sobre sexo, como por exemplo o
Kama Sutra 5, e o Decâmeron, 6
que ainda hoje se conservam, guardadas na sua
biblioteca pessoal, na Casa Fernando Pessoa em Lisboa, e tinha também alguns livros
de Psicanálise, de entre os quais Freud, 7 que revelam portanto o seu interesse pela
sexualidade.
Fernando Pessoa revela a sua tendência para analisar do ponto de vista sexual as
pessoas, não apenas as pessoas fictícias da sua obra literária, mas também as pessoas
reais com quem se cruzou. Por exemplo, numa passagem do seu diário datado de 20 de
Março de 1906, afirma : “Fui apresentado casualmente, pelo Dr. Ferraz, ao Padre Sena
Freitas, outrora um grande polemista. Observei-lhe o semblante. Nariz curvo e

1
Correspondência, 1923-1935, org. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1999 (carta de
4-10-1929).
2
João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa , p. 541
3
Angel Crespo, A vida plural de Fernando Pessoa, p. 239.
4
Pessoa por conhecer, p. 35.
5
Vatsyayna, Le Kama Soutra, Paris, traduzido e editado por E. Lamairesse (s/d.).
6
Giovanni Boccaccio, Le Décaméron, Paris, Ernst Flammarion (s/d.), dois volumes. Esta obra ainda hoje
se conserva na biblioteca de Fernando Pessoa, em Lisboa, na Casa Fernando Pessoa.
7
Sigmund Freud, Un souvenir d’enfance de Leonardo da Vinci (“Uma recordação de infância de Leonardo
da Vinci”), Paris, Ed. Librairie Gallimard, 1927.
combativo, largo na ponta; lábios finos, queixo quadrado. Propenso à sordidez e à
obscenidade, como pude perceber nos cinco minutos que durou a conversa”.8
Em 1909 Fernando Pessoa escreveu uma peça de teatro em Inglês, em que
trabalhou ao longo de alguns anos, e que ficou inacabada, uma peça em cinco actos, em
que o sexo e a abstinência sexual eram temas principais, a peça : The Duke of Parma –
a tragedy , que tratam das obsessões sexuais de um duque, que mais parecem ser as do
próprio Fernando Pessoa.9 Em 1917 Fernando Pessoa começou também a escrever uma
peça de teatro de um acto, em verso, o Auto das Bacantes, sobre as adoradores dos
prazeres do deus romano Baco, o deus do vinho e do sexo. No início da década de 1920
abandonou esse projeto literário, mas que revela também o seu grande interesse pela
sexualidade.
Num dos seus textos de sociologia e política, numa carta aberta aos American
Millionnaires (Milionários Americanos), Fernando Pessoa acusa os milionários de
acumularem muito dinheiro inutilmente, pois não tiravam o devido partido da sua
riqueza, e pergunta-lhes : “Quantos de vós têm um harém, um verdadeiro harém ?” Para
Fernando Pessoa, e conforme as suas próprias palavras, essa “seria uma aplicação
interessante do dinheiro”. 10
Este não é um texto escrito por um heterónimo de
Fernando Pessoa, mas sim pelo próprio Fernando Pessoa ortónimo.
Alguns dos heterónimos de Fernando Pessoa são também reveladores da
importância que Fernando Pessoa atribuía à sexualidade, pois é esse o tema principal
dos seus textos, nomeadamente em Charles Anon, Marcos Alves, Pero Botelho, Jean
Seul, Frei Maurice, e no Barão de Teive. Os protagonistas destes heterónimos,
nomeadamente os protagonistas principais, que são os próprios heterónimos, estão
obcecados por pensamentos sexuais, em relação a si mesmos e a outros indivíduos. Por
exemplo, o heterónimo Pero Botelho afirma: Sexuality in all, sexual elements in genius)
(“Sexualidade em tudo, elemento sexual no génio”).11 Os textos do heterónimo Jean
Seul são um tratado sobre sexualidade (o amor livre, o exibicionismo, o voyeurismo, a
impotência sexual, a poligamia, o poliamor, a homossexualidade, etc.). Através de uma
personagem fictícia (Jean Seul), Fernando Pessoa encarna o papel de um observador
crítico sobre os costumes do seu tempo, reproduzindo ironicamente as críticas que se

8
“Prosa íntima e de autoconhecimento”, Obra essencial de Fernando Pessoa, vol. V, p. 34.
9
Podem ver-se fragmentos dessa peça de teatro, no espólio de Fernando Pessoa : 11 /D551 v; 11 D/16
v; 11 D/80 v; 11 D/42, 38; 11/D/95; 11/D/83; 11 D/71.
10
Espólio de Fernando Pessoa, 138/22-26; 138A /7-9.
11
138 A/66. Jerónimo Pizarro, Fernando Pessoa entre génio e loucura, p. 165.
faziam à sexualidade, cujos costumes avançados Fernando Pessoa retrata, tendo como
auge os anos 50 (errou por uma década, pois a chamada libertação sexual surgiu nos
anos 60). Também no heterónimo Marcos Alves, conforme Fernando Pessoa afirma, a
sexualidade “enchia todo o cérebro” e “coloria tudo com a sua intenção”. O
“destrambelhamento sexual” de Marcos Alves, afirma Fernando Pessoa, dava-lhe uma
“acuidade estranha para analisar”, orientada sempre para as “bases sexuais dos atos dos
indivíduos”, incluindo dos atos dele próprio,12 e que parece ser um autorretrato de
Fernando Pessoa. Há vários textos ao longo da obra de Fernando Pessoa, que revelam a
sua tendência para analisar as coisas sob o ponto de vista sexual, ou para falar de
sexualidade, direta ou indiretamente, e isso desde muito jovem, como revela o seu
heterónimo Alexander Search, onde se vê a sua preocupação de ter que se controlar,
fazendo propósitos de vida, nomeadamente no seu Pacto para a vida de Alexander
Search , um pacto de intenções, em que diz que devia “nunca escrever coisas sensuais,
ou de outro modo perversas, que possam lesar e prejudicar quem as ler”. 13
Fernando Pessoa diz mesmo que a sexualidade é a base de toda a vida, e
sobretudo de uma vida anormal como é a artística, para a qual é preciso uma vida sexual
também anormal, conforme se pode ler seu texto Elogio dos castos, dos pederastas e
dos masturbadores: “A vida sexual é a base de toda a vida, por isso, para uma vida
anormal, como é a vida artística ou literária ou científica, é preciso uma anormalidade
basilar, sexual portanto”.14
Em alguns dos seus contos, Fernando Pessoa é bem explícito, como por
exemplo quando diz o seguinte : “No homem feito, e em idade plenamente viril, a
ausência de relações sexuais, e, mais a presunção de nunca as ter tido, tornam-no, aos
nossos olhos sociais, estranho e ridículo”.15
Existe em Fernando Pessoa um vasto vocabulário ligado à sexualidade (orgia,
masturbação, etc.), que ele emprega mesmo quando fala de outros assuntos. Existe
também nele a tendência para analisar sexualmente as personagens, e por exemplo
quando fala do corpo de um homem, Fernando Pessoa revela a importância que dá ao
órgão sexual masculino, como se pode ver no texto Jacob Dermot : “Dermot. O seu
corpo era fálico. Sim, o seu corpo era um falo enorme, e cada confim, cada fosso
12
Fernando Pessoa, Escritos sobre génio e loucura, Lisboa, t. II, p. 523.
13
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, p.75.
14
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 133 G-88.
15
Conto : “A morte do Dr. Cerdeira” , in A estrada do esquecimento e outros contos , p. 224. Neste livro
o tema da sexualidade existe também nos seguintes contos : Manuel Fontoura ; Gastrónomo ; O crime
do Dr. Cerdeira ; O elogio histórico de D. Miguel Roupinho.
imensamente visual e trémulo uma vulva evidente. Os próprios cabelos da cabeça
pareciam ser do púbis. As mãos possantes, ignóbeis, masturbavam o incerto” (BNP, E3,
138-66). Mesmo quando trata de outros assuntos, conforme já referimos, Fernando
Pessoa fala também em sexualidade, e especialmente em homossexualidade, como por
exemplo nos seus textos sobre arte e literatura : Correntes literárias e decadentismo;
Degenerescência e literatura; O poema Antínoo; Prefácio para uma edição de poemas; A
imoralidade das biografias; A verdade acerca de homens como Shaw; William
Shakespeare; William Blake; Percy Shelley; Giacomo Leopardi; Charles Dickens;
Óscar Wilde; Vitoriano Braga, etc.16
A sua poesia contém também muitas referências, implícitas e explícitas, à
afetividade homossexual (é aliás através da poesia que mais se exprimem os afetos
homossexuais em Fernando Pessoa). Ao contrário do que sucedeu com alguns dos seus
heterónimos, que duraram apenas uma determinada fase da sua vida literária, ou que
forma mesmo criados num só dia, para depois os abandonar, nomeadamente os seus
heterónimos pouco conhecidos, Fernando Pessoa revelou-se essencialmente através do
seu ortónimo, sendo portanto do ortónimo a maior parte daquilo que ele escreveu :
poesia, textos filosóficos, ensaios políticos, contos e outros textos de ficção, textos
autobiográficos, textos mediúnicos, textos astrológicos, correspondência, textos sobre
arte e literatura, textos sobre as mulheres, textos sobre António Botto e Raúl Leal, textos
e fragmentos genéricos, listas de projetos, poemas traduzidos e recriados, etc.
Ora, por um lado, há a destacar o facto de o tema do homoerotismo e da
homossexualidade estarem presentes nos mais variados textos de Fernando Pessoa, e
portanto de não se encontrar apenas na sua poesia, e por outro lado há a destacar o facto
desse tema ter sido uma constante ao longo dos poemas que Fernando Pessoa foi
escrevendo ao longo da sua vida. Ao contrário de outras personagens que criou mas
abandonou, ou de outros heterónimos, ou de outros temas que também abandonou,
Fernando Pessoa começou a escrever textos homoeróticos ou relacionados com o
homoerotismo, desde muito jovem, e foi-os escrevendo ao longo da sua carreira
literária, nomeadamente poesia. Portanto, não se pode dizer que isso foi uma
determinada fase da sua vida, não se pode dizer que foi apenas numa determinada época
que Fernando Pessoa escreveu poesia homoerótica, ou que isso correspondeu a uma fase
passageira, pois o interesse de Fernando Pessoa pelo homoerotismo esteve presente até

16
Ver na antologia de Victor Correia : Homossexualidade e Homoerotismo em Fernando Pessoa.
quase ao final da sua vida, conforme se pode confirmar vendo as datas em que escreveu
os seus textos. 17
Em suma, o homoerotismo e a homossexualidade não foi um interesse passageiro, mas
sim algo que nele existiu sempre.

ATITUDES DOS ESTUDIOSOS, SOBRE A SEXUALIDADE EM


FERNANDO PESSOA

Apesar da existência de textos mais ou menos eróticos, e de outros textos a


propósito de sexualidade, na obra de Fernando Pessoa, existem preconceitos que têm
determinado a atitudes de uma grande parte dos estudiosos, no que diz respeito à
sexualidade na obra de Fernando Pessoa e na sua própria personalidade. Poucas têm
sido as abordagens sobre este tema em Fernando Pessoa, nomeadamente sobre a
homossexualidade, e as que têm havido geralmente têm-na abordado de passagem, ou
através de eufemismos e de rodeios, pois contornam esse tema, procuram desculpá-lo,
ou tendem a abordar o assunto da homossexualidade em Fernando Pessoa como sendo
um tema apenas acessório, como sendo uma mera figura de retórica, um assunto
secundário, ou um tema meramente literário. Embora alguns estudiosos pessoanos
tenham notado a importância da sexualidade na obra de Fernando Pessoa, só nos
últimos anos é que a sexualidade em Fernando Pessoa passou para um plano mais
visível e não secundário,18 e alguns livros sobre os homossexuais famosos ao longo da
História, passaram a incluir também Fernando Pessoa.19
Nos colóquios e nos congressos sobre Fernando Pessoa têm-se discutido e
continuam-se a discutir muitos temas (as questões literárias, a heteronímia, a arte, o
esoterismo, a religião, a sociologia, a política, a identidade nacional, o sebastianismo e o
Quinto Império etc.), mas quase nunca a sexualidade, e muito menos a
homossexualidade. Por exemplo, por vezes fala-se na polémica causada pela Geração

17
Pode-se confirmar, consultado a antologia organizada por Victor Correia : Homossexualidade e
Homoerotismo em Fernando Pessoa, Lisboa, Ed. Colibri, 2018.
18
Ver por exemplo Anna M. Klobucka, e Mark Sabine, (org.), O corpo em Pessoa – corporalidade,
género, sexualidade , Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2010.
19
Ver, por exemplo, o artigo sobre Fernando Pessoa, de Robert Howes, na obra coletiva dirigida por
Robert Aldrich, e Garry Wotherspoon, Who’s who in gay and lesbian History : from Antiquity to World
War II, (“Quem foi quem na História gay e lésbica : da Antiguidade até à Segunda Guerra Mundial”),
London and New York, Ed. Routledge, vol. I, pp. 141-143.
de Orpheu. Ora, essa polémica seria apenas devido ao facto de na poesia dessa revista o
verso ser livre em vez de ter métrica e rima ? seria apenas devido ao facto de Álvaro de
Campos fazer das máquinas e dos motores um tema poético? Isso não é suficiente para
que tivesse havido tanta polémica. O próprio Fernando Pessoa fala das críticas que se
faziam aos “malucos de Orpheu”, e essas críticas, conforme ele afirma num texto,
tinham também a ver com sexualidade, melhor dizendo, com homossexualidade
(confirmar isso no presente livro, no capítulo Orpheu : uma revista de invertidos ).
Essas críticas deviam-se não apenas ao homoerotismo existente em alguns textos da
revista Orpheu (de forma explícita ou implícita), mas também devido ao facto de
alguns dos autores que escreveram nessa revista (mesmo não escrevendo sobre esse
tema) terem amigos homossexuais.
Existem muitas obras sobre Fernando Pessoa, que têm diversos capítulos em que
se fala de vários temas, mas que não têm nenhum capítulo sobre o amor e a sexualidade.
Falam sobre as questões literárias, e sobre outros temas, mas não têm um único capítulo
sobre o amor e a sexualidade. É o caso, por exemplo, da obra de Fernando Cabral
Martins, Introdução ao estudo de Fernando Pessoa (Ed. Assírio & Alvim, 2014). A
apresentação desta obra, feita na contracapa, afirma que esta obra percorre “as
essenciais linhas temáticas” em Fernando Pessoa. Ora, dado que esta obra não tem
nenhum capítulo sobre o tema do amor e do erotismo, deduz-se que, segundo o autor,
este tema não faz parte daquilo que ele considera serem as “essenciais linhas temáticas”
em Fernando Pessoa.
Há livros que dedicam um capítulo ao relacionamento de Fernando Pessoa com
Ofélia Queiroz, fazendo consistir praticamente nisso o amor e a sexualidade em
Fernando Pessoa. É esse o caso, por exemplo, da obra de Robert Bréchon, Estranho
estrangeiro – uma biografia de Fernando Pessoa (Ed. Quetzal, 1996). Até mesmo
determinados livros que pretendem ser um estudo exaustivo e pormenorizado sobre
Fernando Pessoa, que pretendem ser uma espécie de enciclopédia sobre ele, falam de
muitos e variados temas, mas excluem o tema do amor e da sexualidade. É esse o caso,
por exemplo, da obra de José Blanco Pessoana (Ed. Assírio & Alvim, 2008). Esta obra
está dividida em vinte e cinco temas, e com muitas referências bibliográficas. No
entanto, nenhum desses temas específicos é sobre o amor e a sexualidade em Fernando
Pessoa.
Por outro lado, têm sido publicadas algumas obras que falam sobre o amor e a
sexualidade em Fernando Pessoa, mas que não falam sobre a homossexualidade., apesar
deste ser um tema recorrente em Fernando Pessoa, e até mesmo determinadas obras
onde seria de esperar que se falasse sobre esse tema, como por exemplo obras de
Psicanálise. É esse o caso, por exemplo, da obra de José Martinho, Fernando Pessoa e
a Psicanálise (Ed. Almedina, 2002), pois não tem um único capítulo sobre esse tema, e
nos outros capítulos também não fala nisso, exceto duas vezes, mas de passagem.
Também a obra da estudiosa de Psicanálise, Carolina Gomes, Fernando (em) Pessoa –
a incapacidade de amar do poeta (Ed. Flybooks, 2017), é omissa em relação à
homossexualidade, o que é tanto mais surpreendente tratando-se de uma obra de
reflexão sobre a incapacidade de amar em Fernando Pessoa (que esta autora atribui a
outros fatores, como por exemplo traumas de infância).
Muitas das omissões vindas da opinião pública, ao ignorarem esse tema,
incluindo as omissões dos estudiosos de Fernando Pessoa, têm subjacente, de uma
maneira geral, o preconceito sobre a homossexualidade, ou no caso dos não
preconceituosos, um certo receio de a abordar publicamente. Até mesmo sobre o
problema da ambiguidade da identidade de género, que em Fernando Pessoa aparece
geralmente associada à homossexualidade, existem juízos negativos, como por exemplo
o de Jerónimo Pizarro, referindo-se a um pequeno texto que reproduzimos no capítulo
sobre Alberto Caeiro, em que Jerónimo Pizarro diz que há sobre Alberto Caeiro “uma
nota desnecessária que sugere a existência de um Caeiro travestido em rapariga”. 20 Essa
nota é desnecessária porquê ? Fernando Pessoa escreveu mesmo uma nota sobre Alberto
Caeiro em que o põe a fazer de rapariga.
Alguns indivíduos, incluindo estudiosos de Fernando Pessoa, consideram até
ofensivo dizer que Fernando Pessoa era homossexual, o que têm como origem a sua
visão negativa sobre a homossexualidade e o seu preconceito homofóbico. A
homofobia e a discriminação funcionam também através da invisibilização e do
silenciamento, de que é exemplo a omissão e a indiferença de alguns dos estudiosos
pessoanos para com esse tema em Fernando Pessoa. Nos congressos sobre Fernando
Pessoa este tema é praticamente omitido, é um assunto tabu, sobre o qual não se fala,
não faz parte do programa dos congressos sobre Fernando Pessoa, a não ser quando se
fala em António Botto.
Provavelmente para alguns falar e assumir este tema em Fernando Pessoa é
como se fosse uma espécie de campanha a favor da homossexualidade, e portanto não
se querem comprometer. Por vezes fala-se no tema, mas de passagem, e com
20
Obra completa de Álvaro de Campos, p. 717.
dificuldade. Por vezes parece que há investigadores que estão à espera da palavra de
outros investigadores, para eles então falarem também sobre esse tema. Há também
estudiosos de Fernando Pessoa que são homossexuais, mas geralmente nem sequer eles
falam nesse tema em Fernando Pessoa, ou falam dele muito ao de leve, subtilmente e
indiretamente.
Entre os estudiosos que não são homossexuais, a omissão e a indiferença de
alguns para com esse tema não é apenas o preconceito homofóbico, mas também a falta
de argúcia e até mesmo, por vezes, de suficiente inteligência para compreenderem a
homossexualidade de Fernando Pessoa. Há em alguns deles uma certa cegueira
intelectual, ao não perceberem isso em Fernando Pessoa, cegueira essa que surpreende,
por serem académicos e estudiosos reputados, de quem seria de esperar uma maior
capacidade de compreensão. Alguns estão tão obstinados na negação da
homossexualidade de Fernando Pessoa, que nem se quer se dão ao trabalho de
pesquisarem melhor e mais a fundo a vasta obra de Fernando Pessoa, não levam muito
a sério os textos homoeróticos de Fernando Pessoa, e outros textos em que se pode
compreender nas entrelinhas a homossexualidade de Fernando Pessoa.
É difícil para alguns indivíduos, entre o grande público e entre alguns estudiosos
de Fernando Pessoa, aceitarem que existe homossexualidade na personalidade de um
dos maiores génios da Humanidade, num poeta que tanto admiram e em alguns casos
que muito idolatram, como é o caso de Fernando Pessoa. Que um autor considerado um
herói nacional, um ídolo, o maior símbolo da cultura portuguesa depois de Camões,
esteja ligado à homossexualidade, que tenha escrito sobre isso ou a propósito disso, e
que seja homossexual, é algo que é difícil encarar pela generalidade da opinião pública
e por alguns dos especialistas em Fernando Pessoa. Muitos indivíduos procuram em
Fernando Pessoa um conselheiro espiritual, consideram-no como uma espécie de
Mestre, alguns consideram-no mesmo como uma espécie de sábio, e por isso têm
dificuldade em admitir que Fernando Pessoa fosse homossexual, ignorando ou
esquecendo que ao longo da História houve muitos escritores, poetas, artistas, e
filósofos (alguns deles considerados génios) que também foram homossexuais. O
preconceito, o tabu, o complexo e a recusa em encarar e aceitar a homossexualidade em
Fernando Pessoa faz lembrar a afirmação de Robert Browning sobre Shakespeare,
citada pelo próprio Fernando Pessoa numa carta a João Gaspar Simões, datada de 4-10-
1929, quando Robert Browning ficou a saber que Shakespeare era homossexual :
“Então ele é menos Shakespeare ! ”. Com o objetivo de que Fernando Pessoa não seja
menos Fernando Pessoa, para aqueles que consideram que isso o diminui, é-lhes
preferível esquecer, ignorar, negar, ou não abordar esse tema, como se ele não existisse.
Há também investigadores que estão conscientes da homossexualidade em
Fernando Pessoa, e concordam que ela é o elemento importante da sua personalidade, a
causa da sua angústia e do seu desassossego, e que concordam que Fernando Pessoa era
homossexual, mas que raramente abordam esse tema, ou que evitam falar nisso, não por
preconceito contra esse tema, mas porque, dado que são figuras conhecidas, e alguns
deles são reputados académicos, receiam que ao porem a ênfase nesse tema em
Fernando Pessoa, ao acentuarem-no como elemento importante da obra e da
personalidade de Fernando Pessoa, e ao dedicarem-se a esse tema, se possa pensar que
estão a defender a homossexualidade ou que se pense que esses investigadores são
homossexuais. No entanto, uma coisa não significa necessariamente a outra. Um
investigador pode fazer investigação sobre determinadas coisas nos escritores, artistas,
políticos, etc., apesar de não se identificar com elas, não as sentir, não as partilhar, não
acreditar nelas, não serem a sua forma de vida. Por exemplo, um investigador pode
muito bem fazer uma investigação sobre o comunismo e não ser comunista. Um
investigador pode muito bem escrever a biografia de um líder comunista, e não ser
comunista.21 Um investigador tem que ser isento, manter neutralidade do ponto de vista
científico e académico, e falar das coisas com naturalidade, como por exemplo Sigmund
Freud, que teve uma vida amorosa e sexual convencional, muito diferente das
sexualidades problemáticas que estudou. Fazer uma investigação sobre o paganismo em
Fernando Pessoa não significa que esse investigador seja pagão, assim como fazer uma
investigação sobre a homossexualidade em Fernando Pessoa não significa que esse
investigador seja homossexual.
No entanto, é surpreendente a forma como por vezes alguns investigadores de
Fernando Pessoa ignoram, omitem, se desinteressam, ou contornam a homossexualidade
em Fernando Pessoa, mesmo quando estão perante textos homoeróticos. Ou não
percebem, ou fingem que não percebem, ou não querem dar a entender que percebem,
dando a entender que percebem outra coisa. Veja-se por exemplo o texto de Fernando
Pessoa , As cousas, um pequeno texto que diz apenas o seguinte :
“Os homens são os meus prisioneiros. Os corpos deles são os braços com que os
prendemos… A beleza é a cadeia de ouro da nossa tirania.

21
Veja-se por exemplo José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal – uma biografia política, Lisboa, Ed. Temas e
Debates, 2013.
Os homens mexem-se. Não são reais. Eles mesmos provam que o movimento
não existe”.22
Trata-se de um texto em que Fernando Pessoa elogia o corpo e a beleza dos
homens. Ora, Filipa de Freitas, e Patrício Ferrari, os organizadores e comentadores do
livro Teatro estático, onde incluíram este texto, nada dizem sobre isso, e em vez disso,
para eles o tema deste texto é simplesmente o problema do movimento :
“Na peça As cousas, o aparente movimento dos homens surge como oposição ao
caráter estático dos objetos. (…) o movimento pode ser uma ilusão do sujeito”.23
No teatro estático existe também o texto Os emigrantes. Trata-se de um pequeno
texto, em forma de diálogo, entre dois homens, que expressam sentimentos de amor um
para com o outros. Veja-se a seguinte citação como exemplo :
“(…) Amo-te como te estou vendo, na minha pátria, onde nunca estiveste, e
onde tens gestos de arvoredo com o balançar dos ramos dos meus sonhos e a tua voz
suave – quando sinto que te amo – de modo a confundir-se com o sussurro dos regatos
que amei, e com o conjunto vago dos cantos das aves cuja música fez ninho e lar na
atenção da minha infância”. 24
Filipa de Freitas, e Patrício Ferrari, os organizadores e comentadores da obra
onde colocaram este texto, também nada dizem sobre os sentimentos amorosos desses
homens um para com o outro, e interpretam o texto assim : “Os Emigrantes, que
incidiria sobre o desejo de ser outro, e a capacidade de fingir ser outro, muito frequente
nas crianças, é, curiosamente, a peça que mais se aproximaria da eventual natureza de
Pessoa : toda a sua obra gira à volta do conceito de fingimento e do surgimento de
figuras fictícias. (…) Também não parece despiciendo considerar o facto de Pessoa ter
sido , ainda muito novo, um emigrante”. (…)25
Estes e outros estudiosos e comentadores de Fernando Pessoa, apresentam outros
comentários aos textos, comentários transcendentes, metafísicos, idealistas, etc. Essas
omissões em relação ao amor, ao erotismo e à sexualidade em Fernando Pessoa, tendem
a privilegiar os “temas filosóficos”, e mesmo algumas interpretações quando estão
perante textos homoeróticos, conduzem esses textos para outras interpretações,
geralmente interpretações “filosóficas”. Alguns estudiosos ignoram ou omitem a

22
Teatro estático, p. 111

23
Idem, p. 378.
24
“Os emigrantes”, Teatro estático, p. 122.
25
Idem, p. 381.
homossexualidade, mesmo quando ela está presente, como nos dois exemplos acima
citados, e em vez disso, na sua preocupação de apresentarem “explicações filosóficas”,
esquecem ou ignoram que o amor, o erotismo e a sexualidade, também são temas
filosóficos, como se pode ver em alguns autores, todos eles filósofos, que sobre isso se
interessaram e refletiram : Lucrécio, Platão, Montaigne, Schopenhauer, Feuerbach,
Jean-Jacques Rousseau, Kierkegaard, Nietzsche, Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre,
Roland Barthes, Georges Bataille, Michel Foucault, Michel Onfray, etc.
Pode-se dividir em três tipos principais a atitude dos estudiosos sobre a
homossexualidade de Fernando Pessoa : os que a negam, os que suspeitam dela, e os
que a defendem. Não vamos apresentar aqui todos os autores que têm falado no amor e
na sexualidade em Fernando Pessoa, mas dar apenas alguns exemplos, que
consideramos representativos das três atitudes referidas.
Entre os negacionistas, veja-se a seguinte afirmação de Paulo Cavalcanti, que
por seu turno fala de Teresa Rita Lopes : “uma compreensão madura da sua vida
rejeitará, veemente, qualquer traço de prática homossexual. Também assim parece a
Teresa Rita Lopes, em longa conversa que tivemos sobre o tema”. 26 Teresa Rita Lopes
têm afirmado em entrevistas e congressos que Fernando Pessoa não era homossexual,
pois se ele o fosse teria dito que o era. Ora, isto não é uma justificação lógica, pois se
nos tempos de hoje muitos homossexuais apesar de o serem não o dizem, muito mais na
época de Fernando Pessoa era difícil um homossexual assumir-se. Além disso,
Fernando Pessoa era um indivíduo muito reservado e tímido, para andar a dizer :”Eu
sou homossexual”, coisa que não faria, do ponto de vista social, pois só a ele lhe dizia
respeito. Vários dos seus textos defendem a necessidade de preservação da privacidade,
tanto a nível geral como da sua própria privacidade (ver excertos desses textos no
subcapítulo O direito à privacidade, no capítulo do presente livro : Justificações da
homossexualidade e o seu enquadramento em Fernando Pessoa.). Não tem sentido
dizer que Fernando Pessoa se fosse homossexual teria dito que o era, ao contrário do
que defende Teresa Rita Lopes. O facto de não ser assumido, não significa que não
fosse homossexual, assim como muitos homossexuais no passado e nos tempos de hoje,
que embora não sejam assumidos, são homossexuais. Mais do que não assumido,
Fernando Pessoa era extremamente tímido e reservado sobre a sua vida íntima. Os seus
contemporâneos são unânimes em falar da sua extrema reserva de falar dos seus
sentimentos íntimos. Ofélia Queiroz declara sobre isso o seguinte : “O Fernando era
26
José Paulo Cavalcanti, Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, p. 126.
extremamente reservado. Falava muito pouco da sua vida íntima” 27 Carlos Queiroz, que
o conhecia pessoalmente, também refere “a impossibilidade de abrir à curiosidade dos
seus mais assíduos companheiros uma fresta por onde pudessem espreitar a sua vida
sentimental”. 28
António Cobeira, que também o conhecia pessoalmente, diz que
Fernando Pessoa “era por fora um tímido sem remédio, um inibido sem cara, um
impotente na vida real”. 29
No entanto, apesar de ser um indivíduo muito reservado, Fernando Pessoa
acabou por se expor na sua obra literária, discretamente e indiretamente, conforme se
pode ver ao longo do presente livro, principalmente no capítulo : Revelações do próprio
Fernando Pessoa. Por outro lado, uma análise profunda dos seus escritos pessoais leva
a essa conclusão. A sua poesia homoerótica foi a melhor forma de se revelar.
Provavelmente devido ao facto de haver textos em que fala direta e indiretamente das
suas tendências homossexuais, Fernando Pessoa não os publicou.
José Paulo Cavalcanti, na sua afirmação atrás citada, diz que Fernando Pessoa
não praticou a homossexualidade. Ora, se ele a praticou ou não, isso é uma coisa que
não sabemos, mas mesmo que a não tivesse praticado, isso não significa que ele não
fosse homossexual. Ou a praticou alguma vez (coisa que é impossível saber), ou não a
praticou e reprimiu-se. Apesar de na sua obra José Paulo Cavalcanti ter falado no tema
da homossexualidade em Fernando Pessoa, este autor é um dos que defendem que
Fernando Pessoa não era homossexual, como aliás tive oportunidade de confirmar em
conversa pessoal com este autor.
Outro autor que nega que Fernando Pessoa fosse homossexual, em contacto por
e-mail que tive com esse autor, apresentando-me uma posição que aliás defende
publicamente, é José Barreto. Este autor afirma o seguinte : “quando muito, eu
admitiria, como mera hipótese, que Pessoa tivesse sido potencialmente bissexual, isto é,
que sentisse atração física tanto por homens como por mulheres, mas possivelmente
nunca consumada nem num caso nem noutro” (e-mail de 21 de Agosto de 2017). José
Barreto admite isso como mera hipótese, e apenas a bissexualidade, e que possivelmente
nunca consumou. Não nos parece ser uma mera hipótese, conforme se pode
compreender da análise que fazemos sobre Fernando Pessoa ao longo deste livro, e

27
Cartas de amor (contém um relato de Ofélia Queiroz, recolhido e organizado por Maria da Graça
Queiroz), p. 39
28
Carlos Queiroz, “Carta à memória de Fernando Pessoa, Homenagem a Fernando Pessoa, pp. 31-32
29
António Cobeira, “Fernando Pessoa, vulgo o Pessoa e a sua ironia transcendente”, Comércio do Porto,
11-8-1953
mesmo sendo ele bissexual, uma hipótese que não excluímos de todo, num bissexual
existe também a atração e a prática sexual com homens. No que diz respeito ao ter
consumado ou não, isso é impossível de provar, para que se possa declarar com certeza
que Fernando Pessoa morreu virgem, conforme alguns afirmam. Mas mesmo que
Fernando Pessoa não tivesse consumado relações homossexuais, como também já
afirmámos em relação à afirmação de Paulo Cavalcanti, isso não significa que ele não
fosse homossexual (leia-se o capítulo do presente livro : As dificuldade de Fernando
Pessoa em desenvolver a sua homossexualidade, onde explicamos isso melhor).
Outro estudioso de Fernando Pessoa, Ricardo Belo de Morais, tece as seguintes
considerações :
“Fernando Pessoa era homossexual?
Não estivemos com ele no quarto, da mesma forma que não estiveram os
primeiros que levantaram o boato e todos os outros que o reforçaram. Não há qualquer
prova – ou sequer testemunho dos contemporâneos do escritor – que o documente. (…)
Fernando Pessoa foi ao longo da sua vida campeão da defesa da liberdade de expressão
e dos direitos das minorias. Tão somente”.30
Ora, será que para se saber que um indivíduo é homossexual tem de se ter estado
com ele no quarto ? Ricardo Belo de Morais diz que não há qualquer prova. Que prova
pretende ? será que para se saber que um indivíduo é homossexual tem que se ter
encontrado esse indivíduo a ter relações sexuais com outros indivíduos do mesmo
sexo ? Sobre o facto de um indivíduo ser homossexual, há muitas outras formas de o
saber, o compreender, o intuir, o induzir, o concluir. Quase todos os indivíduos que se
sabe que eram e que são homossexuais, não se sabe que o eram ou que o são devido ao
facto de se ter testemunhado a sua homossexualidade, e muitos indivíduos que não
falaram nem falam disso, sabe-se na mesma que são homossexuais, pois há outras
formas de o saber. Ricardo Belo de Morais diz que a homossexualidade de Fernando
Pessoa é um “boato”. Um boato é uma declaração sem fundamento, uma afirmação
infundada. Ora, a afirmação de que Fernando Pessoa era homossexual não é uma
afirmação sem fundamento nem infundada, conforme se pode compreender ao longo
presente livro. Ricardo Belo de Morais também diz que não existe nenhum testemunho
dos contemporâneos do escritor, mas isso não é verdade, pois alguns falaram disso, uns
de forma discreta, outros de forma indireta, e outros fizeram alusões à sua
homossexualidade, conforme se pode ver no capítulo deste livro : Revelações de amigos
30
Ricardo Belo de Morais, Fernando Pessoa para todas as pessoas, p. 166.
e conhecidos. Finalmente, e contrariamente ao que afirma este estudioso, o tema da
homossexualidade em Fernando Pessoa não existe apenas porque ele era um defensor da
liberdade de expressão e dos direitos das minorias, pois é algo muito mais do que isso,
conforme se pode ver também ao longo do presente livro.
Vejamos agora alguns autores que se enquadram na suspeita sobre a
homossexualidade de Fernando Pessoa. João Gaspar Simões, apesar de falar do enigma
de eros em Fernando Pessoa, não diz propriamente que Fernando Pessoa era
homossexual, e prefere designar Fernando Pessoa como tendo uma “sexualidade
frustrada”.31 No entanto, João Gaspar surpreende-se pelo facto de Fernando Pessoa
considerar o seu poema heteroerótico Epitalâmio uma obscenidade, e de considerar o
amor físico entre homens como uma bela e serena abstração. João Gaspar Simões diz
que não pode declarar que Fernando Pessoa era homossexual, mas afirma o seguinte
“O que nele se manifestava, por certo era uma sexualidade anormal. A
amoralidade da sua vida sexual denuncia-se, claramente, na espécie de repulsa física
que lhe merece o amor físico entre homem e mulher – entre o homem que ele era e a
mulher em quem, possivelmente, entrevia o ser que neste mundo lhe despertara o mais
intenso e imperecível amor”. 32
João Gaspar Simões refere-se à mãe de Fernando Pessoa, como sendo o único
amor da sua vida, com quem não conseguia igualar nenhuma mulher. Sobre as mulheres
em Fernando Pessoa, João Gaspar Simões diz o seguinte :
“(…) sem ter conhecido qualquer intimidade amorosa com o belo sexo em época
alguma da sua vida, quando, por acaso, se vê constrangido a tratar com senhoras, fecha-
se mais no seu natural mutismo, respondendo ao que lhe perguntam por frases curtas,
entre embaraçado e sorridente, falho de à-vontade”. 33
No seu livro, João Gaspar Simões diz também que Fernando Pessoa cedeu ao
seu desejo homossexual apenas de forma platónica, e que sobre a sua homossexualidade
real não havia provas. No entanto, mesmo de forma platónica, essa identidade existia
nele, e a sua homossexualidade platónica foi uma forma de sublimar e de compensar o
que não conseguia realizar na sua vida concreta. Seja como for, embora João Gaspar
Simões não defenda exatamente que Fernando Pessoa era homossexual, reconhece que

31
João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa, pp. 509-518.
32
Idem, p. 516.
33
Idem, p. 487.
havia nele um problema que tinha a ver com a homossexualidade, e que não podia
definir, precisar, e provar, preferindo considerá-la sob o ponto de vista platónico.
António Quadros também apresenta a sua suspeita de que Fernando Pessoa era
homossexual. Este estudioso afirma que por um lado não há quaisquer provas, rumores,
boatos,34 mas por outro lado diz que Pessoa nunca terá podido ou sabido conciliar
inteiramente, de forma para ele próprio clara, inequívoca e decisiva, a sua dialéctica
psíquica dos princípios masculino e feminino”. 35
António Quadros diz também o
seguinte sobre Fernando Pessoa : “há talvez um corte homossexual detectável, como
apontámos”, 36 e diz ainda o seguinte : “Teria sido pois num poema em inglês, Antinous
(um quase heterónimo, pelo encobrimento que a escrita nessa língua expressa perante o
público português), e ainda na poesia de um verdadeiro heterónimo (de uma “ficção em
gente”), Álvaro de Campos, que Fernando Pessoa teria deixado passar uma secreta
pulsão homossexual”.37 António Quadros defende que Fernando Pessoa terá falecido
virgem, tanto em relação a mulheres como em relação a homens, e diz o seguinte :
Imaginativamente, que não activamente, Fernando Pessoa terá sido um bissexual. 38 No
entanto, embora não tivesse tido relações sexuais com ninguém, conforme António
Quadros defende, e mesmo que fosse bissexual, as tendências homossexuais existiam
nele, pois por um lado o facto de não praticar não significa que não fosse homossexual,
e por outro lado o facto de ser bissexual implica que ele também gostava de homens do
ponto de vista sexual.
Em Fernando Pessoa havia uma homossexualidade reprimida, conforme defende
Jorge de Sena. Sobre Fernando Pessoa este investigador fala em “suspeitas de reprimida
homossexualidade”, e diz que Fernando Pessoa era “um homossexual latente que
sublimara em si mesmo todos os impulsos sexuais até ao ponto de extinguir, tanto
quanto sabemos, qualquer actividade sexual ou qualquer intimidade.” 39
Também Eduardo Lourenço afirma o seguinte :
“Na verdade, toda a poesia de Fernando Pessoa é uma contínua e dilacerante
variação, nos limites do insuportável, sobre a incapacidade de amar. De amar a

34
António Quadros, Vida, personalidade e génio, p. 147,
35
Idem, p. 152.
36
Idem, p. 180.
37
Idem, p. 149.
38
Idem, p. 146.
39
Jorge de Sena, Fernando Pessoa e Cª. Heteronímia, p. 359.
mulheres, em todo o caso, pois o amor homossexual encontrou nele um tratamento
poético mais incarnado e convincente que o reservado ao amor com rosto feminino”.40
Mais à frente Eduardo Lourenço afirma também o seguinte :
“Como o fará mais tarde nos seus poemas em Inglês, Pessoa “liberta” através de
Álvaro de Campos não somente as suas pulsões sadomasoquistas mas a sua tendência
virtual para a homossexualidade”. 41
No que diz respeito a autores que defendem que Fernando Pessoa era
homossexual, temos por exemplo a psicanalista Celeste Malpique, 42
e outros autores,
como por exemplo Yvette Centeno, ao falarem do difícil relacionamento de Fernando
Pessoa com mulheres, associam esse problema à homossexualidade. 43 É impossível ler
tudo o que se tem escrito sobre Fernando Pessoa, e sobre o amor e a sexualidade, e
embora esse tema seja em alguns estudiosos de Fernando Pessoa um assunto tabú,
certamente mais estudiosos o defendem, e até mesmo que não tenham escrito nada sobre
isso. Nos autores onde vemos a defesa da homossexualidade de Fernando Pessoa, o
melhor exemplo é o de Richard Zenith, que várias vezes fala nisso, de diversas formas e
em diversos contextos, ao longo da sua vasta obra Pessoa, uma biografia. Richard
Zenith fala diversas vezes no desconforto e na inibição de Fernando Pessoa em relação
às mulheres.44 Citamos o seguinte excerto : “Sentindo desconforto perante as mulheres,
aterrorizado com a ideia de se envolver sexualmente com elas, Pessoa disfarçou a
aversão sexual que tinha, usando teorias capciosas sobre a sua inferioridade, a sua
inadequação para serem almas gémeas intelectuais, a impotência criativas delas, e por aí
adiante”.45
Richard Zenith diz também que Fernando Pessoa vivia “social e sexualmente
perseguido pela consciência de que não era suficientemente normal”, 46 que vivia
“preocupado com as suas inibições sexuais” , 47 que havia nele uma “insegurança quanto
à sua orientação sexual”,48 e um “desconforto sexual”.49 Richard Zenith não dedica
nenhum capítulo específico à sexualidade de Fernando Pessoa, mas ao longo da sua
40
Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, rei da nossa Baviera, p. 66.
41
Idem, p. 75.
42
Celeste Malpique, Fernando em Pessoa, ensaios de reflexão psicanalítica, Lisboa, Ed. Fenda, 2007.
43
Yvette K. Centeno, “Fernando Pessoa : Ophélia – bebezinho ou o horror do sexo, in Colóquio Letras,
Lisboa, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Maio de 1979, pp. 11-19.
44
Richard Zenith, Fernando Pessoa – uma biografia , pp. 219; 338, 369, 426, 590
45
420.
46
243
47
299; 369
48
161
49
413.
obra, várias vezes, vai falando sobre isso, ou vai fazendo alusões nesse sentido. Eis
alguns exemplos : “uma confissão da sua própria preferência por conviver com
homens”.50 “(…) o pronunciado desconforto em relação às mulheres”. “Pessoa admirava
fisicamente atléticos (…) o amado a quem os seus poemas homoeróticos são dirigidos,
em português, pode ter sido um dos muitos homens encantadores com quem Pessoa se
misturava nos cafés”;51 “nesses poemas Fernando Pessoa disse não à proibição do amor
por pessoas do mesmo sexo. (…) Embora continuasse a ter receios, o narrador poético
ultrapassou, pelo menos momentaneamente, as restrições morais que paralisavam
Marcos Alves e o Duque de Parma e não só em atos mas também em pensamentos” 52
“Pessoa não estava imune à influência literária perniciosa do Visconde de Vila-Moura,
mas não precisou que o Visconde lhe mostrasse como se podia escrever com
naturalidade sobre diferentes tipos de amor e sexualidade”53; “apesar de não ser um
homossexual praticante como Kaváfis, Pessoa reconhecia em si uma inversão sexual
fruste”; 54
“em Pessoa a inversão sexual assumiu a forma de uma vasta auto-expansão
representada com dezenas de alter egos masculinos que criou”; 55 “a dita intuição e a dita
inversão eram inseparáveis na personalidade de Fernando Pessoa”.56 “o amado de
Pessoa, ou o putativo desejo de um amado – está também perdido, num tempo passado
indefinido, ou num reino fora do tempo”;57 “a preocupação de Pessoa com a atividade
homossexual de Wilde pode sugerir-nos que namorava a ideia de agir consoante o
desejo que ele próprio sentia por homens, mas temia as possíveis consequências
desagradáveis disso”;58 “talvez Pessoa se sentisse encantado com Octávio de Vitoriano
Braga, por causa da audácia de Octávio – porque também ele, como o protagonista da
peça, desejava outros homens”;59 “a atração que Pessoa sentia por homens impedia-o
claramente de procurar mais energicamente a excelente rapariga no hotel”;60 “o espírito
disse a Pessoa que ele (Pessoa) não podia mover-se entre homens (cuja companhia
preferia) a não ser que fosse um homem como eles”; 61 “o desespero de um escritor

50
150
51
391
52
392
53
397
54
436
55
438.
56
438
57
541
58
609
59
572
60
574
61
590
moderno atraído por outros homens era duplo”;62 “Pessoa escreveu que o facto de a
pederastia ser considerada imoral entre nós talvez seja o fenómeno mais típico da nossa
civilização decadente”.63
Há mais parágrafos em que Richard Zenith fala da homossexualidade de
Fernando Pessoa, estes são apenas alguns exemplos. Richard Zenith também defende
que Fernando Pessoa “nunca se sentia confortável com a ideia de praticar sexo”, 64, que
na prática “não poderia ter aceite para si próprio a ideia de uma relacionamento sexual
com outro homem” 65, defende que Fernando Pessoa “preferia a castidade”, 66
e que
“quase de certeza morreu virgem”.67 No entanto, conforme também afirma Richard
Zenith, “a castidade de Pessoa não era uma condição serena, livre de turbulência”. 68 Não
se pode dizer categoricamente que Fernando Pessoa morreu virgem, isso é uma coisa
que não se sabe, mas ainda que tivesse morrido virgem, isso não significa que não fosse
homossexual, como aliás Richard Zenith defende em Fernando Pessoa. Se morreu
virgem, isso deve-se não tanto ao seu amor pela castidade como uma virtude (pois como
afirma Zenith, a sua castidade não era para ele uma condição serena), mas deve-se sim
ao facto de Fernando Pessoa se ter reprimido, deve-se à sua inibição, ao seu pouco à
vontade, como aliás muitos homossexuais ao longo da Historia, e ainda hoje, que apesar
de serem homossexuais não conseguem aceitar isso em si próprios, e vivem por isso em
grande sofrimento psicológico.

PERCURSOS BIOGRÁFICOS MARCANTES EM FERNANDO


PESSOA

A INFÂNCIA

62
609
63
662
64
161
65
1007
66
326
67
31
68
1007
Há um conto de Fernando Pessoa em que o personagem principal (Czaresko)
fala da sua infância, que como muitos outros textos literários de Fernando Pessoa, pode
ser interpretado no sentido autobiográfico. Nesse conto Czaresko diz o seguinte :
“Eu era um criança, mas, no entanto, tinha absoluta certeza que em mim havia
uma grande maldade, que, no fundo de mim, havia pouco ou nenhum bem. Ficava
confuso ao sentir isto e temia, tanto quanto uma criança pode temer, de um modo vago e
inexplicável, o meu sair para o mundo; pois compreendi com grande dor que o mal
estava latente em mim, mas que podia ser facilmente estimulado, tal como uma pedra
mal equilibrada no topo de uma colina íngreme que o mais pequeno impulso fará
rolar”.69
Há certas coisas que na infância de Fernando Pessoa certamente o influenciaram
e marcaram, como por exemplo o facto de por vezes o vestirem com roupa de menina,
nomeadamente uma saia, conforme se pode ver numa fotografia em que Fernando
Pessoa está rodeado de cinco mulheres (apenas mulheres), a posarem para o fotógrafo,
e no meio de todas essas mulheres de saias, e estando Fernando Pessoa também vestido
de saia, ele parece ser entre elas um mulher em ponto pequeno. 70
Segundo Freud e muitos outros psicanalistas e psicólogos, a infância influencia
muito a sexualidade dos seres humanos. A teoria psicanalítica sublinha e defende a
emergência do encontro amoroso vivido na infância como condição para o emergir do
amor e da sexualidade no estado adulto, o que sucedeu também em Fernando Pessoa.
Segundo Freud, os impulsos e desejos infantis quando reprimidos persistirão no
inconsciente, e dá o exemplo do artista homossexual Leonardo da Vinci, na sua obra
Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci. Segundo Freud, dado que o amor
de Leonardo da Vinci pela sua mãe fora reprimido, “essa porção assumiu uma postura
homossexual, manifestando-se num amor ideal por rapazes”. Fernando Pessoa comprou
e leu este livro de Freud, que tinha na sua biblioteca, e sublinhou algumas frases desse
livro, tais como a afirmação de que Leonardo da Vinci tinha “uma delicadeza emocional
feminina”, e no parágrafo seguinte sublinhou que Leonardo da Vinci “representava o
repúdio frio da sexualidade”, afirmações estas que se aplicam também ao próprio
Fernando Pessoa.
A análise de Freud sobre Leonardo da Vinci é semelhante à que João Gaspar
Simões fez sobre Fernando Pessoa, no seu artigo “Fernando Pessoa e as vozes da
69
“Czaresko”, A porta e outras ficções, p. 149.
70
Fotografia na posse da sua sobrinha Manuela Nogueira. Pode ver-se a reprodução dessa fotografia na
terceira página do primeiro caderno de fotografias do livro de Richard Zenith, Pessoa – uma biografia.
inocência”, publicado no número de Dezembro de 1930 da revista Presença, em que
João Gaspar Simões afirma que “talvez se pudesse encontrar matéria para uma
aplicação científica das doutrinas freudianas”, pois segundo João Gaspar Simões, a
poesia de Fernando Pessoa deixava transparecer “remotas perturbações infantis”.
Segundo João Gaspar Simões, a poesia de Fernando Pessoa revelava “uma fixação
infantil”. Nesse mesmo artigo João Gaspar faz também uma alusão à homossexualidade
em Fernando Pessoa, ao dizer que “sabe-se também como Fernando Pessoa admira a
civilização helénica” (para melhor compreensão desta sua admiração e da sua ligação à
homossexualidade, ver o capítulo do presente livro : A paixão de Fernando Pessoa pela
Antiguidade Clássica).
Além de João Gaspar Simões, outros estudos têm analisado psicanaliticamente o
caso de Fernando Pessoa, como por exemplo Celeste Malpique. 71
Não vamos aqui
apresentar pormenorizadamente a análise psicanalítica sobre Fernando Pessoa, que o
leitor poderá encontrar em obras dos especialistas em Psicanálise, mas apenas salientar
alguns aspectos que consideramos serem importantes e determinantes na sua
personalidade e sexualidade.
Aos cinco anos de idade a dor provocada pela perda do pai, devido à sua morte,
e da mãe devido à depressão, a presença da avó Dionísia que sofria de doença mental
grave, tornaram-se insuportáveis. A perda do pai deixara um vazio na sua vida, e a mãe
então deprimida e distante, levaram Fernando Pessoa a negar a realidade frustrante e a
procurar um retraimento narcísico. Freud empregou pela primeira vez o termo
narcisismo em 1910, na sua obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, para
explicar o comportamento homossexual, em que os indivíduos se tornam a si próprios
como objetos sexuais, e procuram objetos semelhantes a si, para os amar como a sua
mãe os amou. O narcisismo ocorre e desenvolve-se quando o desejo primordial e
“natural” , inibido de seguir o seu objetivo, se direciona para o próprio indivíduo. Freud
utilizou também o termo narcisismo para definir uma fase do desenvolvimento
psicossexual que se segue ao autoerotismo e antecede a fase do amor por um objeto
exterior, em que há um investimento da libido sobre o próprio ego, e em que o sujeito
toma o próprio corpo como fonte e objeto de prazer, como sucede na masturbação, que
Fernando Pessoa praticava, conforme se pode ver no sub capítulo deste capítulo,
intitulado : A juventude.

71
Celeste Malpique, Fernando em Pessoa – ensaios de reflexão psicanalítica , Lisboa, Ed. Fenda Edições,
2007.
Segundo a psicanalista Carolina Gomes, “a mãe deprimida, após a morte do
marido e de um filho, deixou de estar tão disponível para o pequeno Fernando, e dois
anos após a sua viuvez casou com o comandante João Miguel Rosa, partindo
posteriormente para a África do Sul. Às perdas já vividas podemos somar a perda da
mãe edipiana, pois não houve espaço para a fantasia de ser detentor exclusivo do amor
da sua mãe. O complexo de Édipo era na perspetiva de Freud uma tarefa de
desenvolvimento necessária a ser ultrapassada ou resolvida pelo rapaz por identificação
ao pai temido que lhe oferece a promessa de verdadeiro poder no futuro. Como poderia
o pequeno Fernando realizar este processo de identificação perante a morte de seu pai ?
o sentimento era de perda e de abandono.”72
A impossibilidade de Fernando Pessoa realizar o complexo de Édipo, em que o
rapaz ama a mãe e rivaliza com o pai (que é algo que, segundo Freud, desenvolve no ser
humano o amor por indivíduos do sexo oposto), o facto de fechar-se num mundo
próprio, ensimesmado, sem a capacidade de relacionamento com os outros, leva a um
narcisismo erótico, que segundo Freud, está ligado à homossexualidade, pois o
indivíduo sente-se tanto atraído por si que acaba por se sentir atraído sexualmente
apenas pelas pessoas do seu sexo, ou procura apenas as pessoas do seu sexo devido ao
seu narcisismo erótico, fazendo jus ao mito de Narciso, em que Narciso se apaixonou
pela sua própria imagem. Fernando Pessoa isolou-se da família e dos outros rapazes, a
leitura e a escrita passaram a ser um abrigo, passou a criar desde muito criança figuras
imaginárias, nos heterónimos que criou, como por exemplo Le chevalier de Pas, o seu
primeiro heterónimo, ainda em criança, sobre o qual fala numa carta a Adolfo Casais
Monteiro :
“Lembro, assim, o que parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou antes, o
meu primeiro conhecido inexistente - um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos,
por quem eu escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga,
ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade”.73
Ter afeição e saudades de um cavaleiro a quem escrevia cartas e a quem
Fernando Pessoa fazia ficticiamente escrever cartas ao próprio Fernando Pessoa, como
se brincasse com o cavaleiro em criança, marcou o seu imaginário, e que terá também
influenciado a sua paixão por cavaleiros, que são uma das figuras do seu imaginário

72
Carolina Gomes, Fernando (em) Pessoa – a incapacidade de amar do poeta , p. 58.
73
Correspondência 1923-1935, carta a Adolfo Casais Monteiro, 13-1-1935.
homoerótico, de que falamos em pormenor no capítulo do presente livro : Figuras do
imaginário homoerótico em Fernando Pessoa.
Mas viver num mundo fictício, virtual, é viver num mundo fora da realidade,
levando por vezes ao delírio, e embora seja uma forma de compensação, pode também
tornar-se problemático do ponto de vista psicológico, levando progressivamente a
neuroses como as da neurastenia. “Recordando o seu comportamento infantil,
caprichoso, quando tinha dezanove anos Pessoa diagnosticar-se-ia retrospectivamente
como um rapaz de sete anos com uma predisposição para a neurastenia, uma designação
em voga ma altura para um distúrbio mal definido cujos sintomas iam de ansiedade e
exaustão nervosa a depressão e apatia. Era um estranho diagnóstico para uma criança.
(…) Embora o adolescente de dezanove anos não estivesse preparado para lhe dar o
nome certo, dá a entender que a ansiedade da infância derivava de uma consciência
indistinta mas desconfortável do sexo e da sexualidade”. 74 Esse desconforto iria
perdurar ao longo da sua vida adulta, tendo profundas raízes também na sua
adolescência, sobre a qual falaremos seguidamente.

A ADOLESCÊNCIA

Fernando Pessoa, durante a sua adolescência, estudou e viveu em regime de


internato, num colégio só de rapazes, na cidade de Durban, na África do Sul. Num texto
autobiográfico Fernando Pessoa refere-se à Escola para onde o enviaram para estudar.
Embora não diga o nome da Escola, só pode ser o colégio de Durban, pois foi para aí
que a sua família o enviou :
“(…) Foi muito bom para mim e para a minha família o facto de eu ter sempre
ficado em casa e conservado sem esforço o meu antigo modo de ser calmo até aos
quinze anos. Nessa altura, porém, mandaram-me para uma Escola longe da minha casa,
onde o ser latente em mim que tanto temia despertou e começou a agir e a insinuar-se
na vida humana.
Quando digo que sentia haver muito mal dentro de mim, não quero dizer que
estivesse desde sempre condenado a uma vida de infâmia ou de vício. Quero dizer,
porém isto – que havia em mim uma forte atração por todas as coisas censuráveis que
assediam o homem : podia controlar ou podia satisfazer esta atração, mas uma vez
74
Richard Zenith, Pessoa – uma biografia , pp. 113-114.
satisfeita, mesmo só um pouco, era provável que eu nunca mais me pudesse controlar.
Resolvi satisfazer essa atração, e a partir desse momento, dava-me um prazer enorme
explorar sempre novas espécies de mal. 75
Neste texto Fernando Pessoa diz : “o ser latente em mim que tanto temia
despertou e começou a agir e a insinuar-se na vida humana”. Pessoa revela que nessa
altura despontou e desenvolveu-se nele uma propensão para o “mal”, para “coisas
censuráveis”, e para o “vício”, embora não signifique, como ele próprio afirma, que
estivesse desde sempre condenado a isso. Note-se que a palavra “vício“ é muitas vezes
empregue em Fernando Pessoa como sinónimo de “homossexualidade” (confirmar isso
no capítulo deste livro: Metáforas homoeróticas).
No conto de Fernando Pessoa citado no capítulo anterior, Czaresko, o
personagem central do conto, ao falar sobre si, parece Fernando Pessoa a falar também
sobre si próprio, pois é muito semelhante ao texto autobiográfico anteriormente citado :
“(…) com um mundo onde o vício era o impulso tão temido e, no entanto, tinha
necessariamente de dar o passo que me levaria até lá. O passo foi dado pela minha mãe
quando me enviou, aos doze anos, para um colégio interno, uma importante e famosa
instituição. Oh, que nunca tivesse ido. E, no entanto, se não tivesse ido, ter-me-ia
transformado de outra forma, o vício e a grosseria estavam dentro de mim à espera do
impulso. 76
Aos quinze anos de idade, Fernando Pessoa escreveu um conto que parece ser
também autobiográfico, o conto : Os rapazes de Barrow, pois é sobre um colégio inglês,
e é também um colégio interno para rapazes. Nesse conto Fernando Pessoa descreve o
caráter e o aspecto físico de três alunos do colégio, os rapazes considerados valentões
do colégio, e elogia os seus traços físicos, mostrando que já sabe apreciar rapazes. Sobre
o primeiro rapaz diz :“a frescura e a vermelhidão sadia do rosto”, sobre o segundo
rapaz Fernando Pessoa diz que ele tinha uma cara bonita : “A sua cara era mais bonita e
fina que geralmente são as fisionomias dos filhos do Império Oriental”, e sobre o
terceiro rapaz diz que ele “ tinha cabelo louro quase castanho e a sua fisionomia
exprimia mais travessura”.77 Depois Fernando Pessoa descreve uma luta corpo a corpo
desses rapazes com rapazes recém chegados ao colégio (com “caloiros”). Esta situação

75
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, pp. 75-77
76
“Czaresko”, A porta e outras ficções, pp. 149-150.
77
Ficção e Teatro, p. 18.
é geralmente descrita em romances cujo enredo se passa em colégios internos, em que
os rapazes tímidos e ingénuos são considerados como sendo do “sexo da fraqueza”, e
são dominados e alvo de chacota por outros rapazes, sendo vistos como sendo meninas.
Existem certos “ritos de passagem” dos caloiros em escolas, colégios,
Universidades, etc. Os seus protagonistas fazem uso de um jogo, ou qualquer outro
artifício em que a força seja a representação mais desejável, através da violência verbal,
chamando nomes mais ou menos insultuosos aos caloiros, através da violência física, na
luta entre rapazes, nomeadamente para com os recém-chegados a colégios. Alguns dos
rapazes dos colégios, os chamados “mariquinhas”, têm alcunhas, como sucede nas
alcunhas dos rapazes do conto de Fernando Pessoa Os rapazes de Barrow. Devido ao
facto de serem rapazes mais delicados e sensíveis em comparação com os outros
rapazes, em alguns colégios e Escolas são por vezes denominados gays.
É sabido o prazer que muitos rapazes tiram da luta corpo a corpo uns com os
outros, mesmo que nenhum deles tenha feito algum mal para que haja luta física entre
eles, a qual é feita apenas pelo prazer de lutar e para afirmar a virilidade. A Psicanálise
vê aí traços de uma sexualidade em desenvolvimento, um certo prazer sadomasoquista e
um erotismo evanescente, que fazem lembrar, por exemplo, um episódio do romance do
escritor homossexual Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, romance onde este
escritor fala da iniciação sexual com Gilberte, em que uma prematura e não premeditada
ejaculação ocorre durante um jogo de luta corpo a corpo.
Fernando Pessoa, através de um nome fictício (Dr. Faustino Antunes), escreveu
uma carta a um antigo condiscípulo no colégio em Durban, onde estudou na sua
adolescência. Esse antigo condiscípulo era Clifford Geerdst, e escreveu-lhe essa carta
como se fosse psiquiatra, informando-o de que Fernando Pessoa se tinha suicidado. Esta
mentira do seu suicídio tinha como objetivo solicitar-lhe informações sobre o caráter e o
comportamento de Fernando Pessoa, nos seus tempos de estudante no colégio em
Durban, sem que o destinatário soubesse que era o próprio Fernando Pessoa que lhe
escrevia. Fernando Pessoa recebeu uma carta de Geerdst, onde este relatou o seguinte
sobre Fernando Pessoa : “(…) tinha em seu poder algumas bandas desenhadas
francesas e portuguesas indecentes. Digo-lhe isto, sem mais, talvez sirva para fornecer
alguma indicação quanto à questão de ele ter ou não praticado imoralidades desse
género”.78 Nessa carta Geerdst também lhe disse que não tinha indício de que Fernando

78
Hubert Jennings, Fernando Pessoa em Durban, p. 20. Teresa Rita Lopes, Pessoa por conhecer, vol. II, p.
35.
Pessoa “se tivesse envolvido em excessos sexuais”. Mas porque razão Geerdst sugeriu
isso ? porque haveria Fernando Pessoa de se envolver em excessos sexuais ? e a que
tipo de “excessos sexuais” estaria ele a referir-se ? O colégio era um internato para
rapazes, com pouco contacto com o mundo exterior, e muito menos com mulheres, por
isso o seu antigo condiscípulo podia estar a referir-se à masturbação ou à prática de sexo
entre rapazes do colégio.
O heterónimo Faustino Antunes fala também de influências corruptoras em
Fernando Pessoa durante essa época. Depois de ter caracterizado a psicologia de
Fernando Pessoa, atribuindo-lhe traços como a degenerescência e a histeria (metáforas
que ao longo da obra de Fernando Pessoa aparecem associadas à homossexualidade), e
depois de ter falado sobre a precocidade intelectual e emocional de Fernando Pessoa,
afirma o seguinte sobre este período da sua vida : “é pois inevitável que tenha sofrido,
por pouco que fosse, a influência da sensualidade urbana e corruptora, 79 que pode ser
uma referência às suas vindas a Lisboa nas suas estadias em férias, durante o seu tempo
de estudante no colégio de Durban. Na cidade de Lisboa poderá ter adquirido as
“revistas indecentes de banda desenhada”, que eram vendidas em certas livrarias, que
mostrou ao colega Geerdts depois do seu regresso a Durban,
O ambiente fechado de um colégio interno para rapazes, como aquele em que
Fernando Pessoa viveu, era propício ao sexo entre eles. Muitos psicólogos,
historiadores, biógrafos, etc., têm mostrado e analisado essa realidade em alguns
colégios, através de diversas obras que têm sido publicadas sobre isso.80 A
homossexualidade em colégios internos para rapazes, é uma prática que tem sido
também abordada em obras literárias, como por exemplo no romance português O
Barão de Lavos, de Abel Botelho. Nesse romance é descrito como o barão se
relacionava com outros rapazes, enquanto era rapaz, no colégio do qual saiu aos 16
anos “para a vida exterior com as propensões viciosas pioradas”, 81 romance esse que
Fernando Pessoa declarou que era uma “obra prima”.82
79
Escritos autobiográficos, automáticos, e de reflexão pessoal, p. 69.
80
Ver por exemplo : Christine Hudon, e Louise Bienvenue, “Entre franches camaraderies et amours
socratiques – l’espace trouble et ténue des amités masculines dans les collèges classiques, 1870-1960
(Entre francas camaradagens e amores socráticos – o espaço perturbado e ténue das amizades
masculinas dentro dos colégios clássicos, 1870-1960), ´´Erudit – revue d’histoire de l’Amérique française,
Montreal, Ed. Institut d’histoire de l’Amérique française, vol. 57, nº. 4, 2004, pp. 481-507. Gabrielle
Houbre, “Prémices d’une éducation sentimentale : l’intimité masculine dans les collèges” (Inícios de uma
educação sentimental : a intimidade masculina dentro dos colégios), Romantisme – revue du dix
neuvième siècle, Paris, Ed. CDU-SEDES, 1990, pp. 9-22.
81
Abel Botelho, O Barão de Lavos, p. 31
82
Encontro Magick. Fernando Pessoa/Aleister Crowley, p. 95.
Na poesia de Fernando Pessoa existem também poemas que falam dos seus
sentimentos amorosos para com rapazes seus colegas, poemas sobre uma paixoneta
escolar, ou sobre um amor platónico no seu tempo de adolescente. Apresentamos aqui
dois poemas. O primeiro é provavelmente sobre um condiscípulo que deixou o colégio
em Durban, e que Fernando Pessoa escreveu quando ainda aí era aluno. Note-se que
Fernando Pessoa faz às referências neste poema à sua Escola (que era uma instituição
unicamente para rapazes). Numa dessas referências diz : “Desde que primeiro eu vi a
tua divina forma/Da Escola vindo em prazer”. O poema é o seguinte :

“Separado de ti, tesouro do meu coração,


Pela terra desprezado, alheio a todo o querer,
Ainda que os ventos trilem e os corações vacilem,
Jamais eu te hei-de esquecer.

Doce parece o suave canto da juventude


A quem se deixou prender,
Mas inda que os ventos trilem e os corações vacilem,
Eu jamais te hei-de esquecer.

Numa esfumada visão, acenando da Escola,


Criança me posso ver,
E já os ventos trilaram e os corações vacilaram,
Mas não te pude esquecer.

Desde que primeiro eu vi a tua divina forma


Da Escola vindo em prazer,
Os ventos têm trilado e os corações vacilado,
Nunca te pude esquecer.

Desde que simples, em mim, essa paixão infantil


Por ti eu deixei crescer,
Tenham os ventos trilado e os corações vacilado,
Eu não te pude esquecer.
Estrelas brilham intensas, a lua reflete amor,
Sobre o mar luar a arder,
Ventos trilaram, trilaram, os corações vacilaram,
E tu me foste esquecer.

Eu separado de ti, tesouro do meu coração,


Pela terra desprezado, alheio a todo o querer,
Os ventos podem trilar e os corações vacilar,
Mas jamais te hei de esquecer.” 83

O segundo poema Fernando Pessoa escreveu-o anos mais tarde, quando tinha
vinte e oito anos de idade. Neste poema também lamenta a perda de um rapaz a quem
amou, quando Fernando Pessoa também era rapaz, mas não sabemos se o destinatário é
o mesmo rapaz do poema anterior. No final do poema note-se a referência a esta paixão
como sendo uma “doença antiga/ Que só os gregos, porque eram belos,/tornaram bela
(referência à homossexualidade, conforme explicamos no capítulo deste livro, A paixão
pela Antiguidade Clássica). O poema é o seguinte :

“Escrevo à tua memória, amor, sem teres morrido,


E à memória desse amor, em nós nunca sabido.

Éramos rapazes, tu eras mais novo e eu o maior.


Tivéssemos sabido amar e ter-nos-íamos amado.
Tivéssemos descoberto o caminho do amor e teríamos achado
Seus prazeres, mas, jovens então, era de irmãos nosso amor.

Contudo, se te encontrasse hoje, talvez tudo fosse igual.


Tenho vergonha agora de ser o que não sabia outrora.
Talvez fosse melhor tal como foi — pois a chama virginal
Do amor não levou nossos sentidos ao fogo pleno e pior.

Lembro-te muito e a alma suspira tristemente em mim.


83
Poesia Inglesa II, p. 11-13.
Recordas-me também algumas vezes e sentes algo assim?

Hoje sei que teria sido melhor termo-nos amado,


Hoje sei isso, mas não quero pensar demasiado.

Eras atraente e belo; eu não: apenas amava.

Cava-se mais em mim a marca desta doença antiga


Que só os gregos, porque eram belos, tornaram bela”.84

A JUVENTUDE

No seu regresso definitivo a Lisboa, aos dezoito anos de idade, conforme refere
no seu diário de 16 de Março de 1906, Fernando Pessoa lia Alfred Tennyson (1809-
1892), que foi um poeta inglês, homossexual, conhecido sobretudo pela sua obra In
Memoriam, dedicada ao seu grande amor de juventude, o seu antigo colega universitário
e também poeta, Arthur Hallam, cuja morte quando ainda era jovem deixou Tennyson
bastante abalado psicologicamente. Fernando Pessoa fala com admiração de Tennyson
em alguns dos seus textos de crítica literária, e tinha na sua biblioteca a obra completa
deste autor (composta por 924 páginas) : The Works of Alfred Tennyson , London, Ed.
Macmill and Co., 1902. Fernando Pessoa sublinhou várias passagens da obra de
Tennyson, de entre as quais a obra In Memoriam, o que revela uma leitura atenta e
interessada. O caso de Tennyson faz lembrar o caso descrito no capítulo anterior,
através dos poemas de amor citados, sobre seu (s) colega (s) que perdera ou que
deixaram o colégio de Durban, e que Fernando Pessoa recorda com imensa mágoa e
saudade.
Mas o ambiente de Lisboa não é o mesmo de Durban, pois conforme afirma o
escritor português Raúl Brandão, “Lisboa foi sempre, como Nápoles, uma cidade de
pederastas”, 85
e Fernando Pessoa veio encontrar maior liberdade no ambiente pré-
revolucionário da implantação da República em Portugal, que teve em Lisboa o seu
palco principal, e que proporcionou um ambiente de maior abertura também para a
84
Poesia Inglesa II, p. 441.
85
Raul Brandão, Memórias, vol. II, Edição “Jornal do Fôro”, pág. 361.
sexualidade. Além disso, Fernando Pessoa iria também encontrar em Lisboa o novo
modo de vida dos chamados “loucos anos vinte”, que corresponde a um período de
efervescência cultural nas principais cidades da Europa, que se estendeu também à
cidade de Lisboa, anos esses que influenciaram também a juventude de Fernando
Pessoa e lhe abriram novos horizontes.
Foi durante a sua juventude que Fernando Pessoa escreveu a maior parte dos
seus poemas homoeróticos.86 Os poemas homoeróticos da sua juventude aconteceram
em maior número por volta dos vinte e dois anos de idade. Em alguns desses poemas
tem de se estar com mais atenção, para se perceber que o poema de amor se refere a um
homem, pois só num verso ou dois se consegue perceber, como por exemplo no poema
Ad voluptatem (expressão latina que significa : “Para o prazer”), em que Fernando
Pessoa pergunta num verso : “Porque foste tão quedo e formoso ?” 87 Em mais poemas a
chave do conteúdo homoerótico também existe só num verso, como por exemplo num
poema escrito em Francês, o poema Os lagos, em que num verso Fernando Pessoa
exclama : “Ó camarada de jogos/ Que sorriso despontou nos teus belos olhos de
apaixonado ?”88 No entanto, mesmo que isso só seja visível num ou em dois versos, é a
chave para se perceber que os sentimentos do poema são homoeróticos, pois não são
homoeróticos apenas os poemas em que Fernando Pessoa expressa ao longo do poema,
explicitamente, a paixão por alguém do sexo masculino.
Esses poemas, escritos principalmente na sua juventude, não são uma simples
brincadeira, não são um divertimento literário, como alguns leitores querem fazer
entender. Esses poemas não brotaram do nada, não são meros jogos de palavras, não são
simples histórias, mas são algo profundamente sentido, conforme se pode ver no
conteúdo e na forma desses poemas, e pelo seu caráter tão expressivo e tão sofrido.
Esses poemas provavelmente expressam um amor que Fernando sentiu e que
provavelmente viveu e praticou, isto é, são um resultado do facto de ter estado
profundamente apaixonado por um indivíduo do mesmo sexo. Noutros poemas, mesmo
que o que diz neles não tivesse praticado, profundamente desejou, conforme se pode ver
pelo seu conteúdo e pelo seu estilo. Um desses poemas é um extenso poema
homoerótico que Fernando Pessoa escreveu aos trinta e um anos de idade, de que
transcrevemos o seguinte excerto :

86
Ver na antologia de Victor Correia, Homossexualidade e homoerotismo em Fernando Pessoa.
87
Poesia 1902-1917, pp. 92-93.
88
Poèmes français, p. 220.
“Sei que desprezarias, não somente 
A mim, mas ainda mais o meu amor, 
Se eu ousasse, numa hora 
Dizer-te quem tu és p’ra a minha dor.
(…)
Sei que não és quem quero que tu sejas. 
Sei que és como outros. 
Vulgares bocas de mulheres beijas 
E eu só o sonho vão da tua boca.
(…)”89

Conforme afirma Richard Zenith sobre este poema de juventude escrito em


1919, “tão vividos são os pormenores e poderosos os sentimentos no poema de Julho de
1919, que se nos afigura tratar-se de uma história verídica, uma confissão que Fernando
Pessoa se viu forçado a fazer no papel, poeticamente, visto não ousar dá-la a conhecer
ao homem de quem gostava e não poder continuar a reprimi-la”. 90
Os textos mediúnicos escritos por Fernando Pessoa dizem que ele se entregava à
luxúria durante a sua juventude. A palavra luxúria significa forte desejo sexual e
comportamento sexual intenso. Tem como sinónimas as seguintes palavras :
lascívia, devassidão, libertinagem, libidinagem, sensualidade, concupiscência, voluptuos
idade, volúpia. Que luxúria era essa de que falam os textos mediúnicos ? era a luxúria
homossexual, pois o “espírito” ou “alma do outro mundo” que fala com Fernando
Pessoa, depois de falar da sua aversão pelas mulheres, critica-o por ele se dedicar à
luxúria, recomenda-lhe que procure um rapariga, e diz-lhe para não ter sexo com
homens :
“As luxúrias nunca semeiam aspirações sãs. Deves experimentar o sexo
associando-te a uma rapariga amorosa. Neste Verão conhecerás muitas. A mais amorosa
será a mesma em (…).91
Nunca experimentes sexo em homem.”92

89
Poesia 1918-1930, pp. 58-62 (poema datado de 5 de Julho de 1919).
90
Richard Zenith, Fernando Pessoa – uma biografia, p. 663.
91
Espaço deixado em branco pelo autor.
92
Escritos autobiográficos, automáticos, e de reflexão pessoal, p. 309.
Estas afirmações indicam que Fernando Pessoa não terá falecido virgem, pois o
espírito afirma indiretamente que ele se entregava à luxúria, espírito esse que é afinal
Fernando Pessoa a falar sobre si próprio. Os textos mediúnicos falam da virgindade de
Fernando Pessoa com mulheres, e não da virgindade com homens (antes pelo contrário).
Na sua juventude Fernando Pessoa, embora recatado e discreto, praticou certamente a
homossexualidade, na cidade de Lisboa (cidade onde então vivia e onde escreveu estes
textos). O ambiente de abertura em matéria de costumes, que se vivia nos anos seguintes
à implantação da República em Portugal, na década de dez, e os loucos anos vinte, em
Lisboa, que trouxeram à capital um ambiente de luxúria, proporcionaram a Fernando
Pessoa essa possibilidade.
Foi precisamente na sua juventude que Fernando Pessoa produziu a maior parte
dos seus poemas homoeróticos, conforme já referimos, e foi também na sua juventude
que Fernando Pessoa recebeu as comunicações mediúnicos, de supostas “almas do outro
mundo”, a dizerem-lhe para não ter sexo com homens, conforme se pode ver no capítulo
Revelações sobre a homossexualidade de Fernando Pessoa – Revelações do próprio
Fernando Pessoa.
A homossexualidade em Fernando Pessoa não esteva presente apenas na sua
juventude, pois em 1931, no quadragésimo terceiro aniversário de Fernando Pessoa, os
“espíritos” voltaram a comunicar com ele e a dizerem-lhe para não ter sexo com
homens.93 No entanto, essa experiência ou tendência foi mais intensa na sua juventude,
por isso lhe consagramos este capítulo.
Há quem defenda que Fernando Pessoa foi um assexuado. Ora, conforme
defende António Quadros, “não há dúvida de que Fernando Pessoa não foi um
assexuado. Pelo contrário, sentiu ânsias, desejos; há talvez um corte homossexual
detectável, como apontámos”.94 Também há quem defenda que Fernando Pessoa
provavelmente morreu virgem. Assim, por exemplo Richard Zenith, embora ponha em
relevo a homossexualidade de Fernando Pessoa, admite ele terá morrido virgem. 95 Ora,
não nos parece que assim seja. Uma coisa é reprimir-se sexualmente (o que acontecia
em Fernando Pessoa), outra coisa é morrer virgem, pois o facto de um indivíduo se
reprimir muito não significa que durante a sua vida nunca tivesse praticado sexo,
mesmo que o tivesse praticado pouco. O seu grande interesse pela sexualidade, e as
metáforas e os entreditos eróticos, e certos escritos, como os autobiográficos, revelam
93
Espólio de Fernando Pessoa, 133 D/17-20.
94
António Quadros, Fernando Pessoa, vida, personalidade e génio, p. 180.
95
Richard Zenith, Pessoa – uma biografia, p.31
que Fernando Pessoa entendia bem desse assunto, e esse entendimento não devia
resultar apenas da leitura de livros, mas provavelmente também de alguma prática.

DECLARAÇÕES SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE DE FERNANDO


PESSOA

DECLARAÇÕES DO PRÓPRIO FERNANDO PESSOA

A palavra declarações não é aqui aplicada no sentido categórico, mas como uma
palavra referente a uma atitude em Fernando Pessoa que brota espontaneamente no
meio de diversas declarações que ele fez nos seus escritos. Fernando Pessoa não disse
explicitamente : “eu sou homossexual”, mas existem nos seus escritos várias maneiras
em que implicitamente o disse, e outras em que o declarou mais ou menos
explicitamente, como o texto autobiográfico em que ele diz que há em si uma inversão
sexual fruste. Quem conhecer bem a poesia de Fernando Pessoa, sabe que ele escreveu
vários poemas em que expressa sentimentos de afeto e amor para com homens. Há
poemas que são menos explícitos, mas basta terem num verso uma frase em que o
destinatário é do sexo masculino, para percebermos que é um poema dirigido a homens,
e os poemas homoeróticos de Fernando Pessoa, muito sofridos e sentidos, são uma
forma de Fernando Pessoa se revelar.96
No entanto, em Fernando Pessoa também há textos autobiográficos e de reflexão
pessoal, e são esses que mostraremos aqui, pois embora os textos literários também
digam muito sobre o seu autor, para alguns leitores isso não é suficiente. Assim, para
além do facto de nos seus poemas homoeróticos existir diretamente ou indiretamente o
elogio da beleza masculina, também existem textos em prosa onde Fernando Pessoa
elogia a beleza masculina, textos esses não apenas os de ensaio, como por exemplo os
que escreveu em defesa de António Botto e Raul Leal, mas também textos
autobiográficos e de reflexão pessoal, ou seja, textos em que Fernando Pessoa aprecia
homens do ponto de vista da sua beleza física, como por exemplo num texto em
Fernando Pessoa defende que o artista tem de ser belo, “pois quem adora a beleza não

96
Ver esses poemas na antologia : Homossexualidade e homoerotismo em Fernando Pessoa.
deve ser, ele próprio, destituído dela”. Neste texto diz o seguinte : “Quem, olhando para
os retratos de Shelley, Keats, Byron, Milton e Poe, pode admirar-se por serem poetas ?
Todos eles eram belos.”97 Certamente que basta ter talento para se ser artista, mas
Fernando Pessoa deseja que eles sejam também belos fisicamente, e dá exemplo de
vários homens artistas que ele considera que eram homens belos. Neste texto vemos
portanto Fernando Pessoa a apreciar homens (neste caso não o seu talento literário, mas
a sua beleza física).
O exemplo atrás citado está num dos seus textos autobiográficos e de reflexão
pessoal, em que ele fala de outros indivíduos. Todavia, passemos a textos
autobiográficos e de reflexão pessoal em que ele fala diretamente sobre si próprio.
Conforme se pode ver pormenorizadamente no capítulo deste livro sobre as designações
dadas por Fernando Pessoa à homossexualidade, Fernando Pessoa emprega a expressão
“inversão sexual” significando homossexualidade. Num texto que escreveu em 1913,
Fernando Pessoa declarou que “nem podemos separar na personalidade de Shakespeare
a intuição dramática e, por exemplo, a inversão sexual”98 Dado que Fernando Pessoa se
compara constantemente a Shakespeare, retratando-o à sua própria imagem, essa
intuição e a inversão sexual eram também inseparáveis na personalidade de Fernando
Pessoa. “Inversão sexual” é exatamente a designação que Fernando Pessoa aplica
também à sua própria personalidade, num texto autobiográfico, texto esse em que ele
diz o seguinte:
“Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com
uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela
procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As
minhas faculdades de relação — a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do
impulso — são de homem.
Quanto à sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de
amar, tenho dito tudo. Magoava-me sempre o ser obrigado, por um dever de vulgar
reciprocidade — uma lealdade do espírito — a corresponder. Agradava-me a
passividade. De atividade, só me aprazia o bastante para estimular, para não deixar
esquecer-me, a atividade em amar daquele que me amava.
Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno. É uma inversão sexual fruste.
Pára no espírito. Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou,

97
“Escritos autobiográficos”, Prosa íntima e de autoconhecimento, p. 31.
98
Escritos sobre génio e loucura, vol. VII, tomo II, pp. 441-442
não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento
não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade
correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar. Somos vários
desta espécie, pela história abaixo — pela história artística sobretudo. Shakespeare e
Rousseau são dos exemplos, ou exemplares, mais ilustres. E o meu receio da descida ao
corpo dessa inversão do espírito — radica-mo a contemplação de como nesses dois
desceu—completamente no primeiro, e em pederastia; incertamente no segundo, num
vago masoquismo”.99
Neste texto Fernando Pessoa diz que tem um temperamento feminino. Ora,
várias vezes nos seus textos Fernando Pessoa aplicou a ideia de feminilidade do homem,
em termos físicos ou comportamentais, como sinónimo de homossexualidade. Neste
texto Fernando Pessoa diz também o seguinte : “De atividade, só me aprazia o bastante
para estimular, para não deixar esquecer-me, a atividade em amar daquele que me
amava”. Repare-se que Fernando Pessoa não se está a referir a alguém do sexo
feminino, mas do sexo masculino, pois ele diz : “aquele”. Há também a salientar deste
texto que Fernando Pessoa aplica ao seu caso a designação de “inversão sexual”,
embora fruste, isto é, uma inversão sexual frustrada, certamente por não a conseguir
desenvolver (ver o capítulo deste livro : Dificuldades de Fernando Pessoa desenvolver
a sua homossexualidade).
Fernando Pessoa escreveu também textos para um conto inacabado, Marcos
Alves, que falam do “destrambelhamento100 sexual” deste, da sua dificuldade em lidar
com as mulheres, e da sua “degenerescência”. 101 No topo de um dos seus manuscritos
sobre Marcos Alves (27 E-37), existe a seguinte anotação feita por Fernando Pessoa : O
disfarce Kraft Ebbing (my prefered case). Note-se esta observação de Fernando Pessoa
sobre si próprio, cuja tradução é a seguinte : “o meu caso preferido”. 102 Richard von
Kraft Ebbing (1840-1902) foi um psicólogo austro-alemão, cuja obra principal,
Psychopathia Sexualis estuda a então chamada “perversão sexual”. Esta obra trata de
temas como a homossexualidade, o fetichismo, o sadomasoquismo, e o exibicionismo.

99
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, pp. 186-187.
100
Palavra pouco empregue na Língua Portuguesa, cujo significado é o seguinte : procedimento
desordenado, desarranjo, desregramento, fora das normas, referindo-se aqui, como o próprio texto
afirma, a algo desordenado do ponto de vista sexual. A palavra destrambelhamento é também
empregue na novela homoerótica de Mário Sá Carneiro, A confissão de Lúcio, quando uma das
personagens, Ricardo, exprime o seu medo do corpo feminino (A Confissão de Lúcio, Mem Martins,
Publicações Europa-América, 1989, p. 80).
101
A porta e outras ficções, pp. 220, 223-224, 226-227.
102
Confirmar no livro anteriormente referido, na página 284.
Conforme vimos no capítulo sobre as metáforas homoeróticas, Fernando Pessoa
empregava também várias vezes a palavra histeria como metáfora, ou eufemismo, para
a homossexualidade. Numa carta a João Gaspar Simões, escrita em 1931, em que lhe
fala, entre outras coisas, da Psicanálise, Fernando Pessoa confessa-lhe o seguinte :
“Do ponto de vista humano — em que ao crítico não compete tocar, pois de
nada lhe serve que toque — sou um histero-neurasténico com a predominância do
elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na
vontade”.103
Noutra carta, essa escrita a Adolfo Casais Monteiro, em 13 de Janeiro de 1935,
Fernando Pessoa diz o seguinte : “Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus
heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim”. 104
Noutro texto Pessoa diz também o seguinte : “Sou, psiquiatricamente
considerado, o que se chama um histero-neurasténico. A histero-neurastenia é,
vulgarmente, a sobreposição de um estado geral neurasténico a um estado substancial
histérico. Em muitos casos o estado neurasténico é adquirido ou sobrevindo. No meu
caso, que é o da autêntica histero-neurastenia - a temperamental - os dois fenómenos
coexistem de nascença, formam bloco e ao mesmo tempo o não formam, visto que são
distintos, pois são distinguíveis.
Como, naturalmente se sabe, a histeria (cuja existência como espécie nosológica
é contestada por alguns, sem que isso importe para o caso presente) dá, tipicamente,
uma oscilação extraordinária da sensibilidade, uma capacidade intensa de sensação e
sentimento rápidos, profundos enquanto duram, porém incapazes de se prolongar, a
tendência para o devaneio.”105
A histeroneurastenia é um conceito formado por duas palavras : histeria, e
neurastenia. É uma espécie de metáfora, como as palavras degenerescência , e
decadência A histeria masculina era tradicionalmente associada à homossexualidade,
e conforme referimos no capítulo Metáforas homoeróticas, em alguns dos seus textos
Fernando Pessoa aplica-a como metáfora da homossexualidade. Por seu turno, a
neurastenia é um esgotamento mental causado por diferentes fatores, de entre os quais a
repressão dos sentimentos. Fernando Pessoa dá um exemplo de uma pessoa que ele
considera ser um histeroneurasténico: Shakespeare (que é também várias vezes referido

103
Textos de Crítica e de Intervenção, p. 175.
104
Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas, p. 199.
105
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa , p. 343.
a propósito da homossexualidade, conforme se pode ver no capítulo deste livro, sobre
Shakespeare). 106
De acordo com a análise de Fernando Pessoa sobre o seu próprio caso, a
despersonalização que deu origem aos seus heterónimos, assim como às diferentes
personagens típicas criadas pelo homossexual Shakespeare, era uma consequência e um
desvio dos impulsos femininos que ele considerava existirem em si, como em
Shakespeare, e a passividade neurasténica um fator que contribuía para a dispersão
literária que existia nele e em Shakespeare.
Fernando Pessoa compara também o seu caso com o de Óscar Wilde. Numa
carta astrológica que escreveu em 1916, sobre Óscar Wilde, Fernando Pessoa fez uma
lista de acontecimentos que considerava importantes na vida este escritor, entre os quais
se destacam os seguintes :
“(…) Inicia práticas de pederastia como um experimento – 1886.
A pederastia passa a ser habitual – 1889.
Sentenciado a 2 anos de prisão – 25 Maio 1895”.107
Do outro lado dessa página, Fernando Pessoa escreveu a seguinte frase em
Inglês : “O meu caso”, seguida de várias notas astrológicas que comparavam a sua
situação à de Óscar Wilde antes e depois do seu julgamento e da sua condenação por
homossexualidade. Embora Fernando Pessoa não tivesse sido julgado nem condenado
por práticas de homossexualidade, note-se que ele compara o seu caso com o de Óscar
Wilde, e ao falar de Óscar Wilde está-se a referir à homossexualidade. Trata-se de uma
pequena nota pessoal, como por vezes fazia na margem de parágrafos de outros textos,
notas essas que Fernando Pessoa não tencionava publicar, mas que ficaram registadas.
São pequenos extratextos geralmente considerados pouco importantes, a que alguns
investigadores que se debruçam a fundo nos pormenores da obra de Fernando Pessoa
dão destaque. 108
Além de Fernando Pessoa se considerar a si próprio como Óscar Wilde, também
se considera como Walt Whitman, que conforme se pode ver no capítulo deste livro
sobre este autor, era profundamente admirado por Fernando Pessoa, com o qual muito
se identificava, através do seu heterónimo Álvaro de Campos, que é por seu turno o
heterónimo considerado mais próximo do próprio Fernando Pessoa ortónimo,
106
A referência de Fernando Pessoa à histeroneurastenia de Shakespeare está em Páginas de estética,
teoria e crítica literária, p. 302.
107
Cartas Astrológicas, p. 155
108
Confirmar no livro de Richard Zenith, Pessoa – uma biografia, p. 543.
realizando literariamente aquilo que Fernando Pessoa desejaria ter realizado na sua
própria vida enquanto indivíduo. Na sua Saudação a Walt Whitman Álvaro de Campos
diz que tanto ele como Whitman são decadentes. Conforme se pode ver num dos
capítulos deste livro, o capítulo Metáforas homoeróticas, Fernando Pessoa emprega
frequentemente as palavras ”decadência” e “decadentismo” em alusão à
homossexualidade. Ora, há mesmo textos em que Fernando Pessoa se declara como
poeta decadente : “eu, poeta decadente”; 109 “Eu, poeta decadente.110
Álvaro de Campos, na sua Saudação a Walt Whitman fala na personalidade de
Whitman, dos seus gostos, da sua sensibilidade, da sua maneira de ser (emprega mesmo
a palavra “paneleiro”), fala da inspiração do poeta Whitman “com musas masculinas
por destaque”, e da sua “sensualidade carimbo, projetor, marca, cheque”, identifica-se
com ele enquanto poeta e com a sua maneira de ser, e ao longo da Saudação a Walt
Whitman considera-se não só seu irmão mas também seu igual em sentimentos, e chega
a dizer duas vezes : “eu como tu” :

“(…) Decadentes, meu velho, decadentes é que nós somos...


No fundo de cada um de nós há uma Bizâncio a arder,
E nem sinto as chamas e nem sinto Bizâncio
Mas o Império finda nas nossas veias aguadas
E a Poesia foi a da nossa incompetência para agir...
Tu, cantador de profissões enérgicas, Tu o Poeta do Extremo,
Tu, músculo da inspiração, com musas masculinas por destaque,
Tu, afinal, inocente em viva histeria,
Afinal apenas “acariciador da vida”,
Mole ocioso, paneleiro pelo menos na intenção,
— Bem... isso era contigo — mas onde é que aí está a Vida?

Eu, engenheiro como profissão, farto de tudo e de todos,


Eu, exageradamente supérfluo, guerreando as coisas
Eu, inútil, gasto, improfícuo, pretensioso e amoral,
Bóia das minhas sensações desgarradas pelo temporal,

109
Páginas Íntimas e de Autointerpretação, p. 176
110
Ibéria, Lisboa, Ed. Ática, (s./d.), p. 83.
Âncora do meu navio já quebrada pr'ó fundo
Eu feito cantor da Vida e da Força — acreditas?
Eu, como tu, enérgico, salutar, —
E afinal sincero como tu, ardendo em ter toda a Europa no cérebro,
No cérebro explosivo e sem diques,
Na inteligência mestra e dinâmica,
Na sensualidade carimbo, projetor, marca, cheque
(…)”111

Um texto de um heterónimo não identificado, ou de um personagem não


identificado, diz que Fernando Pessoa acompanhava todos os uranistas. Esta última
palavra é derivada da palavra Uranismo, que significa homossexualidade. A palavra
uranismo foi criada pelo alemão Karl Heinrich Ulrich, em 1864, na sua obra
Investigações sobre o mistério do amor entre varões. Trata-se de um texto de ficção, em
que Fernando Pessoa põe alguém a exprimir o que se dizia e pensava sobre ele, e que é
uma maneira indireta de Fernando Pessoa falar sobre si mesmo :
“O monárquico Fernando Pessoa, sinistra figura de degenerado que tem
acompanhado como uma sombra negra todos os uranistas 112 doentios dos atuais tempos,
também escreveu um artigo repugnante em elogio do livro do Sr. Botto”. 113
Nos seus Textos mediúnicos Fernando Pessoa fala também da sua
homossexualidade. Textos mediúnicos são textos resultantes de supostas comunicações
entre seres humanos e espíritos, através de um médium, também designado por
espírita, que segundo os crentes nisso recebe a comunicação das almas de pessoas que
já faleceram. Há várias formas de comunicações mediúnicas, sendo as principais a
comunicação oral (psicofonia), e a comunicação através da escrita (psicografia), que é
uma comunicação automática e espontânea. Fernando Pessoa afirmava ter também o
dom da mediunidade (conforme relata numa carta à sua tia Anica, de 24 de Junho de
1916), e tinha esse alegado dom através da escrita. Mas Fernando Pessoa também falava
daquilo que ele considerava ser a base histérica e neurasténica da sua mediunidade, e
que ele descreve como sendo uma nevrose.114 O próprio Fernando Pessoa afirma que
111
Obra Completa de Álvaro de Campos, pp. 116-117
112
Palavra derivada da palavra Uranismo, que significa homossexualidade. É uma palavra criada pelo
alemão Karl Heinrich Ulrich, em 1864, na sua obra Investigações sobre o mistério do amor entre varões.
113
Espólio de Fernando Pessoa,E3, 48H-9
114
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, pp. 292-296.
“nada até hoje prova a presença de espíritos comunicantes”. 115 Os Textos mediúnicos de
Fernando Pessoa são afinal uma forma de diálogo de Fernando Pessoa consigo próprio,
através de um suposto espírito que com ele comunica, são declarações indiretas de
Fernando Pessoa sobre si mesmo. Numa das suas cartas a Adolfo Casais Monteiro,
define-se como médium de si mesmo, e portanto as comunicações mediúnicas são uma
forma de Fernando Pessoa comunicar consigo mesmo e de falar sobre si mesmo. Por
outro lado, a frequência dos textos mediúnicos que foram rasurados sugere que eles não
foram propriamente automáticos, ao contrário do que seria de esperar de comunicações
mediúnicas. O tema central destas comunicações mediúnicas é a sexualidade, que
segundo o suposto espírito que comunica com Fernando Pessoa, este não praticava da
forma como seria de esperar pela sociedade. Num destes Textos mediúnicos, Fernando
Pessoa manifesta o seu desejo de conhecer dois namorados de Óscar Wilde (Lord
Alfred Douglas, e Robert Ross). Noutro destes textos, o “espírito” recomenda a
Fernando Pessoa que se encontre com mulheres para se satisfazer sexualmente, e diz-
lhe mesmo que não tenha sexo com homens. Esta recomendação não foi feita apenas em
1917, pois em 1931 os “espíritos” voltaram a dizer-lhe para não ter sexo com homens,
conforme se pode ver na última das declarações que citamos seguidamente. Estas
declarações de Fernando Pessoa a falar de si próprio, são declarações do próprio
Fernando Pessoas sobre as suas tendências homossexuais (exceto para quem acredite na
existência de “almas do outro mundo” que vêm à Terra falar com seres humanos). Por
outro lado, essas declarações exprimem também sentimentos de culpa e de autocensura,
pois o “espírito” ou a “alma do outro mundo” chama nomes a Fernando Pessoa, critica-
o, e diz-lhe como deve proceder sexualmente :
“ Masturbador ! Masoquista ! Homem sem virilidade ! (…) Homem sem pénis
de homem ! Homem com clitóris em vez de pénis ! Homem com moralidade de mulher
em relação ao casamento”.116
“Nunca experimentes sexo em homem. Homem é apenas um homem – a
masturbação não é nada”.117
“Um homem informará outro da tua aversão pelas mulheres”.118
“Nunca procures sexo com homens. 119

115
Idem, p. 337
116
Idem, pp. 255-257
117
Idem, p. 309
118
Idem, p. 311
119
Espólio de Fernando Pessoa , 133D/17-20.
Finalmente, há também que referir os textos autobiográficos de Fernando
Pessoa, em que ele lamenta não encontrar um amigo íntimo :
“Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada. Aos
meu amigos não posso incomodar com estas coisas… Não tenho amigos
verdadeiramente íntimos, e mesmo que houvesse um amigo íntimo, como o mundo o
entende, ainda assim não seria íntimo no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou
tímido e não gosto de dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo íntimo é um dos
meus ideais, um dos meus sonhos, mas um amigo íntimo é algo que nunca terei…
Nenhum temperamento se adapta ao meu; não há um carácter neste mundo que dê o
mais leve indício de se aproximar do que eu sonho num amigo íntimo. Basta, não
falemos mais nisto”. 120
Como é sabido, por exemplo através das suas cartas e dos seus diários, Fernando
Pessoa tinha amigos, mas neste texto autobiográfico faz uma distinção entre amigos e
amigo íntimo. No início do texto diz que não pode incomodar os seus amigos com
“estas coisas” (não sabemos a que coisas se refere), e depois fala no desejo de ter um
amigo diferente, a que chama “amigo íntimo”. Existe também um poema em que
Fernando Pessoa sonha com um “impossível amigo”, conforme a designação que ele
próprio emprega, o poema cujo primeiro verso é : Converso às vezes comigo.121 O
poema que começa com este verso : Fito-me frente a frente, nesta hora, diz também o
seguinte “(…) Vejo-me escravo do eterno engano/De ter acreditado que alguém era/ O
amigo (…)122 por quem meu ser espera/Desde sombras de mim na infância”.123
Há poemas em que Fernando Pessoa é mais explícito, e associa a palavra
“amigo” à palavra “amor”, reforçando essa ideia em alguns dos seus poemas
homoeróticos, como por exemplo no poema Antínoo, em que num verso diz : “O amor
de amigo eu enche o vazio” ,124 assim como num verso do poema Como um poeta do
amor antigo, quando diz : “Meu amor, minha amante, meu amigo”. 125
O poema : Da
tarde morna estagna o morto voo diz também : “Ah, quantos, como eu, fixos no

120
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, pp. 71-73.
121
Poesia 1918-1930, p. 217
122
Espaço deixado em branco pelo autor.
123
Poesia 1902-1917, pp. 274-276
124
Poesia Inglesa I, pp. 111-135
125
Poesia 1902-1917, pp. 174-177
destino/Da falência fatal e necessária/ Um amor, um amigo, um (…)” 126. O poema : Sei
que desprezarias, não somente, em que diz ao amado : “a tua surpresa amiga”, e :
“quando falo contigo amigavelmente”.127
Nestes versos, a junção entre um amor e um amigo pode ver-se como a procura
de um amor através de um amigo, ou a procura de um amigo através de um amor. Em
alguns destes versos a palavra “amigo” sublinha a ideia de “amor”, e a palavra “amor”
sublinha a ideia de “amigo”. Ora, no texto autobiográfico atrás citado, Fernando Pessoa
ainda é mais explícito : por um lado diz que lhe falta não simplesmente um amigo, mas
sim um amigo íntimo (mas porquê “íntimo” ?...), e por outro lado não fala em amigos
íntimos (no plural), mas sim num, apenas num, um amigo especial (mas porquê apenas
um ?...)

DECLARAÇÕES DE AMIGOS E CONHECIDOS

Conforme já vimos no capítulo sobre a adolescência de Fernando Pessoa e o seu


tempo passado num colégio interno de rapazes, na África do Sul, Fernando Pessoa, sob
o nome falso de Faustino Antunes, enviou a um condiscípulo seu nesse colégio,
Clifford E. Geerdts, a informação falsa de que Fernando Pessoa se tinha suicidado, e
pediu-lhe que o informasse sobre como era o comportamento de Fernando Pessoa nos
seus tempos nesse colégio. Na carta em que respondeu a “Faustino Antunes”, Cliffford
Geerdts diz, entre outras coisas, que “ele tinha em seu poder jornais cómicos franceses e
portugueses indecentes”, e fala também na “natureza de espírito tolerante e liberal” de
Pessoa. 128 Esta carta é suscetível de várias interpretações, e à luz do que dissemos sobre
a sua permanência num colégio interno para rapazes, e o poema homoerótico que
Fernando Pessoa escreveu sobre um condiscípulo desse colégio, é um testemunho da
sexualidade em Fernando Pessoa, e pode também ser interpretada como uma
informação indireta sobre a sua homossexualidade.
126
Poesia 1902-1917, p. 417 (espaço deixado em branco pelo autor).
127
Poesia 1918-1930, pp.58-60.

128
Carta de Clifford E. Geerdts a Faustino Antunes, Hubert Jennings, Fernando Pessoa em Durban, p. 20.
Teresa Rita Lopes, Pessoa por conhecer, vol. II, p. 35.
Para além destas informações indiretas, houve sempre uma certa suspeita sobre a
homossexualidade de Fernando Pessoa, uma coisa que sempre foi falada, embora de
forma discreta, e a que alguns investigadores de Fernando Pessoa também se referiram,
e se têm referido, conforme se pode ver no capítulo deste livro : Atitudes dos
estudiosos, sobre a sexualidade em Fernando Pessoa
No entanto, existem mais do que simples informações ou referências dos
estudiosos de Fernando Pessoa, pois existem também algumas declarações sobre a
homossexualidade de Fernando Pessoa, de forma direta ou indireta, assim como
algumas alusões e suspeitas, de alguns amigos e seus conhecidos. Não nos referimos a
declarações feitas em consequência de, por exemplo, terem encontrado Fernando Pessoa
na cama com homens, pois uma coisa são provas, outra coisa são declarações. Essas
declarações são provenientes não de pessoas que o tivessem encontrado sexualmente
com outros homens, pois não é preciso que encontremos pessoalmente um indivíduo a
ter relacionamento amoroso e sexual com outro do mesmo sexo, para sabermos que ele
é homossexual, ou que ele tem tendências homossexuais. No caso de Fernando Pessoa,
naturalmente que as declarações não são muitas, pois a sexualidade dos indivíduos era e
é uma coisa privada, e tratando-se de homossexualidade, ainda mais privada é. Mesmo
assim, existem algumas declarações, umas diretas e outras indiretas, sobre a
homossexualidade de Fernando Pessoa, declarações essas de indivíduos que com ele
conviveram de perto, que conheceram bem a sua personalidade e os seus sentimentos.
São declarações implícitas, mas que mesmo assim não deixam de ser importantes, e
outras que são explícitas, que passamos a apresentar seguidamente.
António Botto, que como sabemos era um amigo muito próximo de Fernando
Pessoa, que muito se interessou pela sua obra e que o defendeu, num poema que
escreveu sobre Fernando Pessoa diz que ele não se interessava por prostitutas nem por
nenhuma mulher : “Embrulhado no tédio sobre o amor/Nunca pôde ir de noite a uma
rameira/129Nem com outra venceu esse pudor”. António Botto declara que, em vez
disso, Fernando Pessoa interessava-se por jovens do sexo masculino : “Se passava um
rapaz que era bonito/ chamava-lhe a atenção. Silencioso,/sentia-o caminhar pelo
infinito”. 130
Num texto em prosa que escreveu sobre Fernando Pessoa, António Botto
fala também do seu desinteresse por prostitutas, devido à sua feminilidade, que António

129
Mulher que exerce a prostituição.
130
Dos inéditos do espólio de António Botto, citado pela investigadora Anna Klobucka, in O mundo gay
de António Botto, Lisboa, Ed. Sistema Solar (Documenta), 2018, p. 207.
Botto designa como : “feminino no seu pudor”. 131
O seu desinteresse por prostitutas, a
sua feminilidade, e o seu desinteresse por rapazes, referidos por António Botto,
constituem três revelações importantes.
Mas António Botto declarou mais coisas. O investigador pessoano Jorge de
Sena, que foi seu contemporâneo, e que sobre Fernando Pessoa fala naquilo a que
chama “suspeitas de reprimida homossexualidade,” declara o seguinte : “Ao que se
conta, Botto teria, com meias palavras, e alguma vez, referido duas coisas acerca do
Pessoa sexual : que ele olhava, notem, de certa maneira para os rapazinhos; e que o seu
membro viril, muito pequenino, explicava a abstinência envergonhada dele”. 132
Outra declaração importante é a de Raul Leal, que foi também amigo muito
próximo de Fernando Pessoa. Numa carta que escreveu a Alberto de Serpa, Raul Leal
refere-se ao facto de Fernando Pessoa se reprimir, “como se a sua alma fosse um vulcão
imenso em que todo o furor íntimo estivesse sempre terrivelmente comprimido sem
nunca se libertar na vertigem dos sentidos, no delírio da carne”, 133 e numa carta que
escreveu a João Gaspar Simões, Raul Leal é mais explícito sobre a repressão sexual de
Fernando Pessoa. Raul Leal diz que Fernando Pessoa não punha em prática a sua
homossexualidade, mas mesmo não a pondo em prática, Raul Leal diz que ela fazia
parte da sua personalidade : “não posso aceitar que a homossexualidade platónica ou
erótica, enfim, teórica do Fernando, mas verídica, a meu ver seja o motivo que
subconscientemente o levou a criar – metapsiquicamente e não carnalmente – em si
próprio várias personalidades distintas da que lhe era fundamental, ainda que sendo
personalização – então, na verdade, metapsíquica – ou antes personificação de certos
aspetos que ele possuía no seu contraditório psiquismo íntimo”. ,
134

Mário de Sá Carneiro, outro amigo muito próximo de Fernando Pessoa, numa


das cartas que lhe escreveu disse-lhe que andava a escrever o conto O homem dos
sonhos, e diz-lhe o seguinte : “O homem dos sonhos está em meio. Mas ultimamente
não tenho mexido nele. Há lá uma frase nova. Diga-me o que pensa dela :
“Decididamente na vida anda tudo aos pares, como os sexos. Diga-me: conhece
alguma coisa mais desoladora do que isto de só haver dois sexos ? Depois o homem

131
António Botto, “O verdadeiro Fernando Pessoa”, in Maria José de Lancastre, “Pessoa e Botto : análise
de uma mitografia”, E vós Tágides Minhas – Miscellanea in Onore di Luciana Stegagno Picchio, Viareggio,
Ed. M. Baroni, 1999, pp. 393-404.
132
Jorge de Sena, Fernando Pessoa e Cª. Heteronímia, p. 360.
133
Raul Leal, Carta a Alberto de Serpa, datada de 1 de Dezembro de 1949, citada na revista Pessoa
Plural, (revista online), nº. 13, p. 211.
134
“Uma carta de Raul Leal a João Gaspar Simões”, in Arnaldo Saraiva, Os órfãos do Orpheu, p. 193.
descreverá a voluptuosidade dum país em que haverá um número infinito de sexos,
podendo possuir “ao mesmo tempo” os vários corpos. Por todo este mês terminá-lo-ei.
Rogo-lhe porém que me diga se devo incluir esta nova ideia da diversidade dos sexos
ou não.135 Foi precisamente a Fernando Pessoa que Sá Carneiro dedicou este conto.
Como é sabido, a quase totalidade das cartas de Fernando Pessoa a Sá Carneiro
perderam-se, mas numa carta de Sá Carneiro a Luís de Montalvor, Sá Carneiro revela
qual foi a resposta de Fernando Pessoa : “O Fernando Pessoa, segundo me escreveu,
acha muito bela esta ideia”136 Por outro lado, Fernando Pessoa não só achou muito bela
esta ideia, como pediu para que publicassem esse conto na revista Águia, dizendo ao
dirigente da revista que O homem dos sonhos era “um magnífico conto”.137
Almada Negreiros, apesar de reservado nas referências a Fernando Pessoa, e
cujos escritos têm referências muito escassas sobre ele, num texto que escreveu sobre
Fernando Pessoa, diz o seguinte: “ele era exatamente o poeta dos seus versos. A esta
cedência do homem ao poeta, chamem-lhe renúncia, convento, morfina, clausura, um
segredo de resistir, chamem-lhe o que quiserem, mas Fernando Pessoa fê-lo bem. (…)
Ficou só o poeta, o único poeta que não viu as suas próprias aventurais naturais de
homem”.138 Nestas afirmações Almada Negreiros fala sobre o poeta reprimido, e insinua
as suas tendências “contra natura”.
Outra declaração importante é a de António Ferro, que conhecia bem Fernando
Pessoa e os cafés que ele frequentava. Óscar Wilde tornou-se um ícone gay, mas já no
tempo de Fernando Pessoa a referência aos wildes era uma referência aos
homossexuais. A Carta do Martinho, escrita por António Ferro, contemporâneo de
Fernando Pessoa, refere-se aos wildes do café Martinho da Arcada, em Lisboa :
“Os poetas do Martinho ! Aquele disfarçou-se em Óscar Wilde : orquídea ao
peito, um paradoxo nos lábios, mas, coitado, esqueceu-se de meter para dentro a
presilha das botas… Aquele outro, para se mascarar de Wilde, usou outro processo :
pintou a boca, vestiu umas saias, saracoteia-se todo… O pobre ! De Óscar Wilde apenas
tem o Óscar, o Óscar de Lord Douglas…” 139 Ora, ao associar os frequentadores do café
Martinho da Arcada a Óscar Wilde, e sendo a referência a Óscar Wilde uma referência
indireta à homossexualidade, Fernando Pessoa cai também sob a alçada desta
135
Idem, p. 27.
136
Cartas de Mário de Sá Carneiro a Luís de Montalvor, p. 51.
137
Carta a Álvaro Pinto, de 4 de Dezembro de 1912, citada em Maria José de Lancastre, Fernando Pessoa
– uma fotobiografia, p. 137.
138
Almada Negreiros, “Fernando Pessoa – o poeta português”, Diário de Lisboa, 6-12-1935.
139
António Ferro, “Carta do Martinho”, Obras I – Intervenção Modernista, pp. 10-11.
declaração, pois ele também era um frequentador assíduo do café Martinho da Arcada.
Fernando Pessoa não se vestia como os que António Ferro descreve nesta sua caricatura,
mas o café Martinho da Arcada era frequentado por homossexuais, conforme refere
António Ferro, e Fernando Pessoa frequentava assiduamente esse café.
Embora Fernando Pessoa não trajasse como os que António Ferro descreve,
havia nele traços de feminilidade, como o próprio Fernando Pessoa reconhece no seu
texto autobiográfico citado no capítulo anterior, em que diz :”Sou um temperamento
feminino”. Mario Sa, que conhecia pessoalmente Fernando Pessoa, diz também o
seguinte sobre ele : “Fernando Pessoa, nós o víamos em recorte feminino e trémulo,
aconchegando a luneta, meditando e atuando”. 140
Mario Sa, num texto maior em que
fala do gosto de Fernando Pessoa para se arranjar muito bem, do ponto de vista do seu
vestuário e das suas maneiras, fala da sua feminilidade, que pode também ser associado
à sua homossexualidade.
As declarações, alusões e insinuações sobre a homossexualidade de Fernando
Pessoa, apresentadas neste capítulo, são provenientes dos seus amigos. No capítulo que
se segue falamos deles mais em pormenor e do seu relacionamento com Fernando
Pessoa, nomeadamente os seus amigos predilectos.

OS AMIGOS PREDILECTOS DE FERNANDO PESSOA

O AMIGO HOMOSSEXUAL ANTÓNIO BOTTO

Conforme diz o provérbio português, “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem
és”. Ora, conforme o testemunho de Moitinho de Almeida, filho de um dos patrões de
Fernando Pessoa, e que conhecia bem Fernando Pessoa e António Botto, “António
Botto, seguido de Raul Leal, vinha logo a seguir na hierarquia da privança com
Fernando Pessoa”.141 Moitinho de Almeida relata que Fernando Pessoa e António Botto
eram muito amigos, e que António Botto se encontrava frequentemente com Fernando
Pessoa, nos cafés de Lisboa. Existe, por exemplo, uma fotografia antiga, tirada em

140
Mario Saa, “A invasão dos judeus”, Lisboa, 1924. Citado por Teresa Rita Lopes, Pessoa por conhecer,
vol. I, p. 69.
141
L. P. Moitinho de Almeida, “António Botto, Fernando Pessoa, outros e eu”, in Zetho Cunha Gonçalves
(org.), Notícia do maior escândalo erótico-social do século XX em Portugal, p. 201.
1928, no café Martinho da Arcada, em Lisboa, em que estão juntos numa mesa, em
confraternização, Fernando Pessoa, António Botto, e Raul Leal (foto de arquivo do
jornal Diário de Notícias).
Essa relação entre eles não era apenas intelectual, até porque Botto não poderia
acompanhar intelectualmente Fernando Pessoa, devido à profundidade das ideias deste.
Essa relação era de uma grande e cúmplice amizade, devido às obras homoeróticas de
António Botto, e de Fernando Pessoa se interessar tanto por elas, e devido aos pontos de
vista que eles tinham em comum. Conforme sublinha António Quadros, um dos maiores
estudiosos de Fernando Pessoa, “quanto aos seus escritos polémicos, em defesa de
António Botto ou de Raul Leal, é certo que manifestam uma simpatia, um pouco para
além da simples camaradagem literária ou do apreço meramente intelectual”.142
Fernando Pessoa interessou-se muito por António Botto, de diversas maneiras :
foi seu editor, foi seu comentador e crítico literário, foi seu tradutor, fez horóscopos
sobre ele, e foi defensor do seu ideal estético (que era também o dele). Como editor, no
Outono de 1921 Fernando Pessoa escreveu à máquina uma lista com mais de cinquenta
potenciais livros a publicar na sua editora Olissipo : poesia, ficção, e não ficção. Em
primeiro lugar, definida como obra prioritária, encontrava-se o livro de poemas
homoeróticos de António Botto, Canções. Fernando Pessoa acabou por publicar esta
obra, e a obra homoerótica de Raul Leal, Sodoma divinizada. Para outras obras não
tinha tempo ou dinheiro, mas para estas obras Fernando Pessoa arranjou tempo e
dinheiro. Assim, foi o próprio Fernando Pessoa que propôs a António Botto publicar a
sua obra homoerótica Canções, e propôs-lhe uma edição ampliada. António Botto
concordou, e em 1922 a sua editora Olissipo publicou a segunda edição ampliada dessa
obra, que abria com um retrato de António Botto, de meio corpo, desnudado, mostrando
aquilo que Botto denominou “os meus ombros florentinos”, que Botto cantava na
Canção XII dessa obra, canção essa Botto dedicou “enternecidamente a Fernando
Pessoa”. Foi a partir da edição da segunda edição das Canções que Fernando Pessoa e
António Botto se tornaram grandes amigos, e passaram a ver-se e a conviverem
frequentemente.
Nas décadas seguintes António Botto publicou diversos géneros de livros, com
regularidade. Alguns desses livros continham apreciações literárias elogiosas de
Fernando Pessoa sobre António Botto, que estava sempre disposto a promover a carreira
literária de António Botto, elogiando a sua obra e defendendo-o a ele próprio, até ao
142
António Quadros, Fernando Pessoa, vida, personalidade e génio, p. 149.
final da sua vida, e Fernando Pessoa pretendia mesmo escrever um ensaio em que se
propunha comparar Óscar Wilde com António Botto.143 Não chegou a escrever esse
ensaio, mas escreveu outros textos sobre António Botto. Fernando Pessoa escreveu
sobre muitos autores, mas António Botto foi o autor sobre quem mais escreveu, e por
vezes de forma exagerada, dando demasiado valor a António Botto, considerando-o
como um génio , ao dizer que ele era “autor de uma dezena de obras interessantíssimas,
poeta genial e escritor de altíssimo talento. 144 António Botto não era nenhum génio, e
não era assim tão grande poeta como Fernando Pessoa dizia. Nos estudos e
considerações sobre o modernismo português, António Botto é geralmente considerado
um “poeta menor” (“menor” do ponto de vista literário), e se Fernando Pessoa não
tivesse existido, certamente o seu nome não faria parte da História da Literatura
Portuguesa. Fernando Pessoa criou elevadas justificações estéticas e filosóficas do
homoerotismo dos textos de António Botto, mas conforme pergunta João Gaspar
Simões, “o que tem a ver a associação do ideal estético de António Botto com a
inversão sexual ? E a que vem a justificação desse ideal de forma tão
surpreendentemente abstracta ? É o livro Canções um livro tão helénico quanto
Fernando Pessoa o visiona ? É ou foi, de facto, António Botto, o único esteta português
da espécie definida pelo autor de Antinous ?”145 Foram um exagero os elogios que
Fernando Pessoa teceu sobre António Botto, situando-o no ideal estético-filosófico da
Grécia antiga, coisa em que António Botto não pensou nem pretendeu ao escrever a sua
poesia. A sua poesia homoerótica não é resultado de ideais abstratos, como os
apresentados por Fernando Pessoa, mas sim de sexualidade pura e concreta, praticada
por António Botto na sua própria vida. Em Fernando Pessoa a forma de o defender,
através de divagações filosóficas, era uma forma de o elevar à categoria de grande
poeta, e de contornar a parte propriamente sexual. Fernando Pessoa elaborou toda uma
justificação de António Botto, à luz dos ideais estéticos gregos, mas os poemas de
António Botto não tinham realmente a ver com os ideias da Grécia antiga, cuja poesia e
filosofia, ele, homem pouco culto, nem sequer conhecia. No fundo, a razão de ser das
justificações que Fernando Pessoa fez de António Botto não eram a Grécia antiga, mas
sim a homossexualidade.
Fernando Pessoa preocupou-se também com a divulgação internacional das
Canções de António Botto. Além de as ter traduzido para Inglês, para posterior
143
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, p. 309.
144
Idem, p. 55.
145
João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa, p. 521.
publicação internacional, há também a salientar que Fernando Pessoa, numa carta ao seu
amigo espanhol Adriano del Valle, mostrou interesse na sua divulgação também em
Espanha, dizendo-lhe o seguinte :
“O António Botto ainda não recebeu uma única resposta dos 21 críticos a quem
enviou as Canções. Todas foram registadas, e tendo o endereço da editora no envelope,
podendo portanto os destinatários responder por ali. Gostava de saber se se haveriam
perdido os volumes. Tem maneira de saber se pelo menos um ou dois daqueles seus
amigos receberiam o livro ? Receio – para dizer a verdade – que apreendessem os
volumes no correio”.146
No entanto, o interesse de Fernando Pessoa por António Botto foi muito para
além da obra homoerótica Canções. Mesmo depois da publicação do livro Canções, e
apesar da polémica surgida com a publicação deste livro, Fernando Pessoa prefaciou
outro livro de António Botto, de conteúdo homoerótico, Motivos de beleza (1923), foi
co-autor com António Botto de uma Antologia de poemas portugueses modernos
(1929), fez estudos críticos para o livro Cartas que me foram devolvidas ( 1932), e para
a novela António (1933). Esta novela era sobre dois homens apaixonados um pelo
outro, e tinha um prefácio e um posfácio de Fernando Pessoa, que aliás chegou a
escrever dois posfácios elogiosos sobre essa obra homoerótica. Em 1933 Fernando
Pessoa também se tornou tradutor da poesia de António Botto, traduzindo para Inglês a
quinta edição das Canções. A capacidade de Fernando Pessoa ser António Botto em
Inglês foi notável, entregando-se a essa tarefa de alma e coração, como se tivesse sido
ele próprio o autor das Canções. Em 1935 Fernando Pessoa escreveu e publicou no
jornal Diário de Lisboa o artigo “Como Fernando Pessoa vê António Botto – o seu
lirismo e a sua paixão”. Trata-se de um artigo elogioso de outra obra de poesia
homoerótica de António Botto, entretanto publicada : Ciúme. Nesse ano traduziu
também para Francês três poemas do livro de António Botto, Ciúme. Também nesse
ano, Fernando Pessoa planeava publicar uma colectânea de quase tudo o que tinha
escrito sobre António Botto, e planeava também traduzir para Inglês outros dois livros
de António Botto : o livro de poemas Ciúme, e a novela homoerótica António. 147
Fernando Pessoa, além de ter publicado as Canções de António Botto na sua
editora Olisipo, e além de as ter traduzido para Inglês, na sua biblioteca pessoal tinha
todos os exemplares das edições dessa obra. Bastaria ter um exemplar, pois eram todos
146
Correspondência, 1923-1935 , pp. 19-20 (carta de 31-08-1923).
147
Confirmar no espólio de Fernando Pessoa, 48/25; 63/31.
a mesma obra, mas Fernando Pessoa deu-se ao trabalho de colecionar todas as edições,
o que revela que a obra homoerótica Canções de António Botto eram algo muito
importante para Fernando Pessoa.
António Botto também escreveu sobre Fernando Pessoa. Em 1938 escreveu o
poema “À memória de Fernando Pessoa” (ou Poema de cinza) , que é uma homenagem
a Fernando Pessoa, publicada no jornal Diário de Notícias no terceiro aniversário da
morte de Fernando Pessoa. Num ensaio inacabado sobre Fernando Pessoa, de 24 de
Fevereiro de 1959, António Botto escreveu que ele e Fernando Pessoa eram “mais do
que amigos ou irmãos que se adorassem”. 148 Na Antologia de poemas portugueses , de
autoria de Pessoa e Botto, que foi publicada só depois da morte de Pessoa, Botto refere-
se a ele de forma calorosa : “ele, o amigo e o camarada tão inteiro e tão vivo dentro do
meu coração”. 149
No espólio de António Botto, entre os inéditos de António Botto,
existem quarenta e quatro sonetos (alguns incompletos) que António Botto dedicou a
Fernando Pessoa, alguns falando dele de forma afetuosa, referindo-se a Fernando
Pessoa por exemplo nestes termos : “ele, o grande e querido amigo e companheiro”; “e
eu atormentava a minha simpatia/Sobre aquela ternura de o amar” (soneto 29); “que eu
tenha que o beijar lá onde eu vença” (soneto 32). Não se devem levar à letra estes
versos de Botto sobre Pessoa, pois cremos que é apenas um amor de profunda amizade.
No entanto, foi uma amizade muito cúmplice, amizade essa em que Fernando Pessoa se
mostrou interessado não apenas sobre a sua obra literária, mas também sobre outras
coisas da vida de António Botto.
Assim, por exemplo, em 1924 veio viver para Lisboa o príncipe espanhol Luís
Fernando de Orleans Y Borbón, após ter vivido cerca de quinze anos em Paris, onde
levou uma vida de sexo com homens. António Botto conheceu-o em Lisboa, e
certamente que Fernando Pessoa também o conheceu, apresentado por António Botto. O
interesse de Fernando Pessoa por ele revela-se indiretamente em duas cartas que
escreveu a António Botto, quando este se encontrava em Itália com o príncipe Orleans
Y Borbón. 150
António Botto enviou-lhe postais ilustrados da sua viagem com o
príncipe, pois Fernando Pessoa solicitara-lhe especificamente, na primeira carta que lhe
escreveu para Itália, “notícias particularmente suas, incluindo as suas impressões (ou
148
António Botto, “O verdadeiro Fernando Pessoa” (ensaio inacabado), Espólio de António Botto,
Biblioteca Nacional de Portugal, E12/198.
149
“Duas palavras talvez indispensáveis”, Antologia de poemas portugueses, Fernando Pessoa e António
Botto, Lisboa, Ed. Ática, 2011, p. 147.
150
Estas cartas, datadas de 8 e 25 de Março de 1927, encontram-se na coleção pessoal de Manuela
Nogueira, sobrinha do poeta.
sensações) dos divertidos aspectos da paisagem…”,151 deixando implícito que se estava
a referir à “paisagem” da relação de António Botto com o príncipe, e por outro lado “as
notícias particularmente suas” não eram sobre monumentos visitados, mas sobre o
próprio Botto, que nessa ocasião se encontrava numa aventura sexual com o príncipe.
Os postais ilustrados que António Botto escreveu a Fernando Pessoa perderam-se, mas
dado o facto de serem postais ilustrados certamente não permitiam revelar muita coisa
sobre a aventura com o homem com quem se encontrava em viagem em Itália, ou
revelavam muito em poucas palavras, mais ou menos explícito, que poderão ter levado
a que alguém as retirasse do espólio de Fernando Pessoa…
Na sua obra literária António Botto revela o seu interesse pelo corpo masculino,
e Fernando Pessoa fê-lo também através de António Botto, dado que este escrevia o que
Fernando Pessoa não podia ou não queria, pelo menos tão explicitamente como António
Botto. Fernando Pessoa dedicou-se muito aos livro de António Botto, e falou sempre
sobre estes de forma elogiosa, certamente por ele ter uma coragem que Fernando Pessoa
gostaria de ter e não tinha, e por António Botto expressar sentimentos que também eram
os seus. Fernando Pessoa estava “no armário”, como hoje se diz sobre os homossexuais
não assumidos, mas procurou outras maneiras de se expressar do ponto de vista da
homossexualidade.
Jorge de Sena, que foi um dos primeiros e melhores estudiosos de Fernando
Pessoa, ao falar sobre as relações entre Fernando Pessoa e António Botto, diz que
Fernando Pessoa era : “(…) um homossexual latente que sublimara em si mesmo todos
os impulsos sexuais até ao ponto de extinguir, tanto quanto sabemos, qualquer atividade
sexual ou qualquer intimidade distante que envolvesse mais do que isso mesmo, e
assim eu pude dizer uma vez como, sendo ele tão amigo de António Botto, defendendo-
o quando atacado, ou escrevendo sobre ele com uma extensão, uma frequência e uma
profundidade, que jamais terá dado igualmente a outrem, tudo isto fazia de Botto ainda
um outro heterónimo que ele reprimira na sua vida. (…) De qualquer modo, não é só
“metáfora” dizer-se que Botto foi, de algum modo, um heterónimo do autor da
Mensagem, sem que isto implique que Botto não escreveu ele mesmo a sua poesia, mas
sim que existiu para Pessoa como um outro alter ego mais, que o dispensava de viver
alguma porção importante da sua própria vida”.152

151
Carta publicada no apêndice às Canções de António Botto, numa edição organizada por Jerónimo
Pizarro, publicada pela Guimarães Editora, p. 156
152
Jorge de Sena, Fernando Pessoa e Cª. Heteronímia, pp. 274 e 359.
Jorge de Sena sublinha que Fernando Pessoa tratou como se fossem suas as
obras de António Botto, e vai mais longe ao declarar que António Botto proporcionou a
Fernando Pessoa uma oportunidade de viver e de expressar a sua própria
homossexualidade, que de outra maneira não teria acontecido. Jorge de Sena defende
que António Botto foi uma espécie de heterónimo, ou alter ego de Fernando Pessoa, ao
pretender exprimir sentimentos como o amor e o desejo homossexuais.
A investigadora Anna Klobucka emprega também a designação de alter ego para
se referir ao que António Botto significava para Fernando Pessoa, afirmando que “a
persona de Botto se encaixaria perfeitamente na coterie heteronímica de alter-egos de
Pessoa”. 153
Outro investigador pessoano, José Luis García Martín, defende também que
Fernando Pessoa transformou António Botto numa criação literária, semi-heteronímica :
“António Botto acabou por se converter em pouco mais do que um apêndice da quase
infinita obra pessoana”.154
Também o investigador Richard Zenith diz sobre Fernando Pessoa que António
Botto “representava uma espécie de amor isento de libido que servia para explicar ou
mascarar a sua própria sexualidade, com a qual nunca se sentiu completamente à
vontade”.155 Richard Zenith diz mesmo que Fernando Pessoa, “se fosse menos
reprimido, socialmente menos hábil e menos inseguro quanto ao seu sex appeal”,
poderia “ter sido iniciado por António Botto nas atividades homossexuais, tal como
Óscar Wilde o fora por Robbie Ross”.156

O AMIGO HOMOSSEXUAL RAUL LEAL

Raúl Leal considerava-se o maior amigo de Fernando Pessoa, depois de Sá


Carneiro.157 Raul Leal encontrava-se frequentemente com Fernando Pessoa em alguns
cafés de Lisboa, para conversarem, como por exemplo no café Martinho da Arcada, e
também lhe escrevia quando se encontrava ausente. Numa carta de Raul Leal a
Fernando Pessoa, Raul Leal, que entretanto tinha ido passear e estar uns tempos em

153
Anna M. Klobucka, “António Botto’s Impossible Queerness of Being”, p. 113.
154
José Luis García Martín, “El semi-heterónimo António Botto”, p. 381.
155
Richard Zenith, Pessoa – uma biografia , p. 908.
156
Idem, Ibidem, p. 722.
157
Carta a Alberto de Serpa, de 1 de Dezembro de 1949, publicada na revista Pessoa Plural, Ed. Brown
University (EUA), nº. 13, p. 211.
Paris, revela-lhe como chegou a Paris, tendo esbanjado sexualmente com homens todo o
dinheiro que tinha, “sedento de luxúria perturbante e espiritual, errando pelas mais
sinistras vielas do Paris desconhecido, qual duque de Fréneuse 158 opiado e delirante”. Aí
permaneceu Raul Leal desde o Outono de 1913 até Dezembro de 1914, onde o “luxo
louco e as requintadas aventuras de amor e vício” o arruinaram, regressando então a
Lisboa, conforme diz a Fernando Pessoa, “na esperança de satisfazer os meus caprichos
de príncipe decadente e luxurioso”.159 Em 1914 Raul Leal voltou de novo a Paris, onde
viveu mais algum tempo, assistindo a óperas e uma vez mais encontrando-se
sexualmente com homens, conforme revela na mesma carta.
Após esse período Raul Leal regressou de novo a Lisboa. Na correspondência
enviada por Raul Leal a Mário de Sá Carneiro e que este reencaminhou a Fernando
Pessoa, Raul Leal confessa claramente ter um comportamento sexual escandaloso e que
Raul Leal denominava “pavoroso” e feito de “perversões”. 160 Segundo afirma o
investigador Ricardo de Vasconcelos, “é de supor que Raul Leal se referisse
especificamente a passagens da carta em que Raul Leal revela ter “a atração estupenda
dos urinóis públicos !” e em que confessa procurar desconhecidos para com eles manter
relações sexuais, em passagens nas quais demonstra uma pulsão sexual e um desejo
relacionado com o falo”. 161 Raul Leal referia-se aos urinóis de Lisboa, que eram um dos
locais de “engate” homossexual, assim como jardins e parques, pois naquele tempo
ainda não existiam saunas, bares e discotecas gay, nem encontros combinados através
da Internet.
Por volta de 1917 Raul Leal escreveu a Marinetti, que foi um escritor e poeta
italiano, editor, jornalista, ativista político, e fundador do movimento futurista. Marinetti
conheceu-o pessoalmente durante uma sua estadia em Paris em 1914, conforme Raul
Leal afirma numa carta a Alberto de Sampaio, e Raul Leal passou a escrever cartas a
Marinetti.162 Fernando Pessoa terá conhecido Marinetti pessoalmente numa vinda dele

158
Personagem do romance de Jean-Lorrain, escritor homossexual, romance esse cujo que trata da
homossexualidade do duque.
159
Texto muito pouco conhecido escrito por Raul Leal a Fernando Pessoa, texto assinado e encontrado
há poucos anos.. Pode confirmar-se em ; “Raul Leal pede atenção”, revista Machina , ano I, nº. 1, Lisboa,
Ed. João Macdonald, 2020. Pode consultar-se através da Internet, escrevendo : “Raul Leal pede
atenção”, Machina.
160
“Leal a Sá Carneiro” (27/01/1916). Carta publicada por Mário Cesariny de Vasconcelos, em O Virgem
Negra : Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais e estrangeiras, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim,
1989, pp. 99-100.
161
Ricardo de Vasconcelos, “Quando Raul Leal foi detido em Espanha”, Pessoa Plural . a jornal of
Fernando Pessoa Studies, 2021, Brown, Ed. Brown University, nº. 20, p. 133.
162
Ricardo Vasconcelos, “Raul Leal preso em Espanha”, Pessoa Plural , nº. 20, Outono de 2021, p.142.
a Lisboa, provavelmente apresentado por Raul Leal.163 Numa carta que escreveu a
Marinneti, Raul Leal revela-lhe o seguinte :
“Meu caro Marinetti :
Não lhe escrevi mais cedo porque a política, que agora pus de parte quase por
completo, e também a luxúria, quase não me deixaram tempo para dar cumprimento a
outros deveres e disfrutar outros gozos. Seja como for, porém, aqui estou”. 164
Fernando Pessoa tinha conhecimento das aventuras sexuais de Raul Leal, pois
recebeu ambas as cartas em que Raul Leal fala das suas aventuras sexuais com homens.
No entanto, não o incomodava o facto de Raul Leal levar essa vida, continuando a
manter com ele uma grande amizade, e continuando a gostar de se encontrar com ele
como amigo, até à sua morte. No seu diário de 29 de Novembro de 1915, ao descrever
as coisas importantes que lhe aconteceram nesse dia, Fernando Pessoa diz o seguinte :
“Encontrei-me com o Leal, e fiquei contente”. Note-se que esta passagem do diário de
Fernando Pessoa afirma claramente que o facto de se ter encontrado com Raul Leal fez
com que Fernando Pessoa ficasse contente. Pelo contrário, no mesmo dia, conforme
escreve no mesmo diário, Fernando Pessoa trocou olhares com uma rapariga que
segundo Pessoa, pareceu gostar dele, mas que, conforme ele próprio afirma no diário
dos dias seguintes, lhe causou “uma depressão muito forte”. 165 Fernando Pessoa revela
aqui uma vez mais o seu desconforto e desagrado perante as mulheres, em particular
naquele momento em que teria de representar o papel de heterossexual perante a
rapariga, mas que não conseguiu.
Em vez disso, Fernando Pessoa preferia o convívio de amizade com Raul Leal, e
em algumas das suas cartas mostra por ele uma grande estima, e foi a ele que dedicou o
seu poema Ode Marcial. Não podemos avaliar o grau de amizade e compará-lo com a
amizade entre Fernando Pessoa e António Botto, de modo a podermos dizer de qual
deles Fernando Pessoa era mais amigo, pois é uma avaliação subjetiva, mas é certo que
Fernando Pessoa tinha um forte relacionamento de amizade com ambos, e também à sua
grande amizade com o homossexual Raul Leal se pode aplicar o provérbio português :
“Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”.

163
Ricardo Vasconcelos, “Futuristas, anarquistas e onanistas : Raul Leal apresenta os portugueses a F. T.
Marinetti e ao futurismo internacional”, Futurismo Futurismos, pp. 497-515.
164
Páginas de estética e de teoria e crítica literárias, p. 169 (este texto está atribuído erradamente a
Fernando Pessoa).
165
Escritos autobiográficos, automáticos, e de reflexão pessoal, pp. 169-171 (diário de 1915).
A astrologia dá uma grande importância ao casamento, ao namoro, e à
sexualidade,166 e Fernando Pessoa fez sobre Raúl Leal um horóscopo, acompanhado de
um texto. Desse texto salientamos as frases seguintes, escritas por Fernando Pessoa,
relacionadas ou relacionáveis com a homossexualidade de Raúl Leal : no segundo
parágrafo, ”conceções originais e estranhas, em todo o caso, afastadas das normais e
vulgares”; no terceiro parágrafo, “acontecimentos estranhos, e se quebram e se formam
repentinamente estranhos laços de amizade” ; no quarto parágrafo, “tendência para toda
a espécie de excessos”; no quinto parágrafo, “peripécias envolvendo descrédito e
rebaixamento social”; no sexto parágrafo, “viagens, amizades e empresas que darão
grandes desgostos e desilusões”; no sétimo parágrafo, “uma guerra feita ao indivíduo”;
no oitavo parágrafo, “perturbação e depressão sexual”.167
Em 1915 Fernando Pessoa convidou Raul Leal a colaborar no segundo número
da revista Orpheu, onde publicou o conto homoerótico : Atelier. Em 1916 Raul Leal
publicou na revista Centauro o conto "A Aventura dum Sátiro ou a Morte de Adónis”,
em que fala da ambiguidade e da transformação sexuais de Adónis (que na mitologia
grega é o símbolo da beleza masculina). Raul Leal escreveu também textos filosóficos e
místicos que ainda hoje se conservam inéditos. É de destacar o facto de ter escrito
também poesia, que é uma faceta pouco conhecida de Raul Leal, provavelmente devido
ao facto de ter escrito o seus poemas quase todos em Francês, e que também ainda hoje
permanecem quase todos inéditos. Em alguns dos seus poemas o homoerotismo está
patente, mas noutros poemas há uma atmosfera de homoerotismo místico, em que Raul
Leal defende a “carne divinizada”, como faz no seu livro Sodoma divinizada. Assim
como Fernando Pessoa justificou e desculpou o seu amigo António Botto através de
argumentos “esteticistas” e interpretou António Botto à luz da Grécia antiga, Raul Leal
recorreu a argumentos “transcendentes” e “místicos” para justificar a
homossexualidade, uma ideia com a qual Fernando Pessoa concordou totalmente, ele
que habitualmente sublimava através da literatura os seus próprios desejos
homossexuais.
Com a publicação do seu livro Sodoma Divinizada, em 1923, editado pelo
próprio Fernando Pessoa na sua editora Olisipo, Raul Leal entrou no escândalo
166
Fernando Pessoa tinha na sua biblioteca os seguintes livros sobre isso : Sepharial, Astrology and
marriage : the influence of planetary action in courtship and married life (“Astrologia e casamento : a
influência da ação planetária no namoro e na vida matrimonial”), London, Ed. W. Foulsham (s/d.) ;
Bailey, E.H., Astrology and birth control (“Astrologia e controle dos nascimentos”), London, Ed. W.
Foulsham (s/d.).
167
Cartas Astrológicas, pp. 209-211. Texto de 1916.
conhecido por literatura de Sodoma, que ocorrera no ano anterior, com a publicação da
segunda edição do livro de poemas homoeróticos de António Botto, Canções. Raul Leal
apoiava totalmente António Botto e a sua poesia, e escreveu a sua resposta a um artigo
de Álvaro da Maia, em que este criticava António Botto. Essa resposta foi o texto
Sodoma Divinizda, que José Pacheco se recusou a publicar na revista Contemporânea, e
que Fernando Pessoa publicou em livro na sua editora Olissipo, uma editora que parecia
aliás destinada a publicar apenas livros de conteúdo homossexual (embora tivesse
outros títulos previstos), pois só publicou esse livro, as Canções de Botto, e o extenso
poema homoerótico Antínoo.
Raul Leal, reagindo à apreensão do seu livro Sodoma divinizada em
consequência da forte contestação da Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, publicou
o manifesto : Uma lição de moral aos estudantes de Lisboa e o descaramento da igreja
católica. Os estudantes responderam-lhe com um texto em que pretendiam demonstrar
que o seu caso não passava de um caso de loucura, e faziam-lhe várias acusações. Ora,
Fernando Pessoa entrou em cena, escrevendo e publicando o texto Sobre um manifesto
de estudantes, em defesa de Raúl Leal, e em contestação ao manifesto do grupo de
estudantes universitários de Lisboa em 1923. Fernando Pessoa analisou e contestou
pormenorizadamente os argumentos dos estudantes, criticou fortemente aquilo que ele
considerava ser má fé dos estudantes, e demonstrou como estes o tinham deturpado e
citado mal.168 Esse texto de Fernando Pessoa, escrito em apoio a Raul Leal, foi impresso
e distribuído em folha volante, na cidade de Lisboa, e nessa distribuição empenhou-se o
próprio Fernando Pessoa (para mais pormenores, ver o capítulo do presente livro : O
empenho em defesa da literatura de Sodoma). Nesse texto, além de analisar e de
desmontar os argumentos dos estudantes, Fernando Pessoa manifesta também uma
grande solidariedade para com Raul Leal, e termina assim :
“Aos estudantes de Lisboa não desejo mais – porque não posso desejar melhor –
de que um dia possam ter uma vida tão digna, uma alma tão alta e nobre como as do
homem que tão nesciamente insultaram. A Raul Leal, não podendo prestar-lhe, nesta
hora da plebe, melhor homenagem, presto-lhe esta, simples e clara, não só da minha
amizade, que não tem limites, mas também da minha admiração pelo seu alto génio
especulativo e metafísico, lustre, que será, da nossa grande raça. Nem creio que em
minha vida, como quer que decorra, maior honra me possa caber que a presente, que é a

168
Prosa publicada em vida, pp. 336-341.
de tê-lo por companheiro nesta aventura cultural em que coincidimos, diferentes e
sozinhos, sob o chasco e o insulto da canalha.” 169
Fernando Pessoa faleceu antes de Raul Leal, que foi um dos poucos que
estiveram presentes no funeral de Fernando Pessoa, e Raul Leal chorou e lamentou
amargamente a morte de Fernando Pessoa. Nos seus últimos anos de vida Raul Leal
vivia em Lisboa com um antigo pugilista e treinador que tinha sido seu amante, e
passava muito do seu tempo nos cafés de Lisboa, chegando a integrar a tertúlia
surrealista do café Gelo, e a conviver com poetas como Mário Cesariny, que também
haveria de escrever sobre Fernando Pessoa e a publicar a referida carta de Raul Leal a
Sá Carneiro.

O AMIGO HOMOSSEXUAL SÁ CARNEIRO

António Botto e Raul Leal eram homossexuais assumidos. Sá Carneiro era um


homossexual não assumido, mas basta mergulhar a fundo nos seus escritos, nas suas
atitudes, nos problemas que teve em Lisboa com a Polícia, e na sua amizade íntima com
Fernando Pessoa, para compreender isso. Alguns estudiosos negam-na, devido ao facto
de por exemplo num poema Sá Carneiro falar numa aventura com uma prostituta, mas
isso pode ser apenas um tema poético, um fingimento, ou tema de ficção dos seus
poemas, ou pode mesmo ter estado com uma prostituta, sem que isso invalide o facto de
ser homossexual (assim como um heterossexual pelo facto de ter uma experiência
homossexual não significa que passe a ser homossexual, do ponto de vista da sua
identidade).
O reputado estudioso de Fernando Pessoa, João Gaspar Simões, reconhece em
Sá Carneiro um problema de origem homossexual , ao comentar uma frase de Sá
Carneiro :
“O caso é outro e o movimento mental tem outra origem, que é, suponho, inútil que
especifique. Reforça-se do primeiro tipo de introversão, mas não procede intimamente
dele”.170 Quer dizer, é de origem homossexual.171 Entre os investigadores
contemporâneos, Richard Zenith é um dos que também sabem ver em Mário de Sá

169
Prosa publicada em vida, pp. 336-341.
170
Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões, p.105.
171
João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa, p. 520.
Carneiro o problema da homossexualidade, e embora diga que “é quase impossível
conceber Pessoa e Sá Carneiro como amantes físicos”, ao dizer isso, Richard Zenith
parte do pressuposto da homossexualidade de Sá Carneiro.172 Noutra passagem Zenith
afirma : “Embora os sonetos do “outro amor” 173 fossem dedicados a um outro retórico,
imaginário, certamente que não a Sá Carneiro, o laço afectivo que unia os dois amigos
tinha-se tornado tão forte que pode ter levado Pessoa a considerar até onde a relação
poderia ir, ou o que um amor consumado - ou um amor fisicamente não consumado –
entre dois homens poderia ser”.174
Ainda assim, dado que para alguns leitores e estudiosos a homossexualidade de
Sá Carneiro não é facilmente compreensível, detenhamo-nos um pouco mais
pormenorizadamente sobre este grande amigo de Fernando Pessoa, de modo a que se
compreenda melhor que ele também era homossexual, e que se vejam os laços que o
uniam com Fernando Pessoa (não laços de amantes ou de namorados, mas de amigos
íntimos e cúmplices).
O problema da identidade de género (a sua dualidade, a sua multiplicidade, a sua
ambiguidade), existe também na obra de Mário de Sá Carneiro. A imagem estereotipada
da feminilidade está presente na caracterização de muitas das figuras masculinas criadas
por Sá Carneiro na sua obra literária, dotando-as de traços efeminados. Em alguns dos
seus poemas o próprio Sá Carneiro expressa também o seu desejo de encarnar a
feminilidade, como por exemplo no seu poema Feminina, em que Sá Carneiro afirma :
“(…) Eu queria ser mulher para ter muitos amantes/ E enganá-los a todos – mesmo ao
predileto/ Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto/ (…)”. 175

Esta aspiração é tributária do imaginário decadente, sobretudo da feminização dandy,


com a sua estetização da aparência física, visível tanto nas obras literárias decadentistas,
de que Óscar Wilde foi um dos melhores exemplos, como na forma como os respetivos
autores se apresentavam, isto é, exuberantes e pedantes, e que aliás era uma das
características dos homossexuais. Numa das cartas a Fernando Pessoa, Sá Carneiro
explicita a encarnação da feminilidade em certas personagens literárias que cria, e que
Sá Carneiro associa à sua própria personalidade :
“Passei na vida literária, creio, uma rapariga estrangeira, esguia, pintada, viciosa,
com muito gosto para se vestir bizarramente – pelo menos – e para dispor orquídeas em

172
Richard Zenith, Pessoa – uma biografia, p. 393.
173
Sonetos de conteúdo homossexual, escritos por Fernando Pessoa.
174
Richard Zenit, Pessoa – uma biografia, p. 418.
175
Mário de Sá Carneiro, “Feminina”, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, pp. 268-269.
jarras misteriosas, em esquisitas talhas do Japão – gulosa de morangos e champanhe,
fumando ópios, debochada – ardendo loucamente. E se assim é, se não me engano: eu
fui o que quis: a minha obra representa zebradamente entre luas amarelas aquilo que eu
quisera ser fisicamente: essa rapariga estrangeira, de unhas polidas, doida e milionária
…”176
Esta identificação com a feminilidade, de que resulta a ambiguidade da
identidade de alguém do sexo masculino, e portanto a diversidade dos sexos, está
também expressa numa outra carta para Fernando Pessoa, em que Sá Carneiro lhe
revela que andava a escrever o conto O homem dos sonhos, carta essa onde lhe diz :
“O homem dos sonhos está em meio. Mas ultimamente não tenho mexido nele.
Há lá uma frase nova. Diga-me o que pensa dela : Decididamente na vida anda tudo aos
pares, como os sexos. Diga-me: conhece alguma coisa mais desoladora do que isto de só
haver dois sexos ? Depois o homem descreverá a voluptuosidade dum país em que
haverá um número infinito de sexos, podendo possuir “ao mesmo tempo” os vários
corpos. Por todo este mês terminá-lo-ei. Rogo-lhe porém que me diga se devo incluir
esta nova ideia da diversidade dos sexos ou não”.177
Como é sabido, a quase totalidade das cartas de Fernando Pessoa a Sá Carneiro
perdeu-se, mas numa carta de Sá Carneiro a Luís de Montalvor, Sá Carneiro revela qual
foi a resposta de Fernando Pessoa sobre este conto da diversidade sexual: “O Fernando
Pessoa, segundo me escreveu, acha muito bela esta ideia”. 178 Por outro lado, Fernando
Pessoa não só achou muito bela esta ideia, como foi exatamente a ele que Sá Carneiro
dedicou esse mesmo conto.
Ao todo, conhecem-se 217 cartas e postais de Mário de Sá-Carneiro para
Fernando Pessoa. As cartas de Fernando Pessoa a Sá-Carneiro perderam-se quase todas,
com exceção de três delas. Em algumas das cartas enviadas por Sá Carneiro a Fernando
Pessoa, nota-se que havia uma grande intimidade entre eles dois. Nessas cartas existem
mesmo várias expressões afetuosas de Sá Carneiro dirigidas a Fernando Pessoa, como
por exemplo : “confesso-lhe de todo o meu coração”, “o seu muito seu” ; “o seu seu”;
“um abraço d’alma e ouro”, “gosto muito de si”, “esperá-lo-ei em ânsia dourada”, etc., o
que revela um grande grau de sentimentos entre ambos. Embora quase todas as cartas

176
Cartas de Mário de Sá Carneiro a Fernando Pessoa, p. 101. Ver o artigo de Matheus Nogueira
Schawartzmann: “Polindo as unhas: a feminilidade como forma de vida nas cartas de Sá Carneiro pp.
143-164.
177
Idem, p. 27.
178
Cartas de Mário de Sá Carneiro a Luís de Montalvor, Porto, Ed. Limiar, 1977, p. 51.
de Fernando Pessoa para Sá Carneiro se tivessem perdido, algumas cartas são
suficientes para se perceber o grau de intimidade entre Fernando Pessoa e Sá Carneiro,
em que confessam um ao outro os seus sentimentos mais profundos. Veja-se o seguinte
excerto duma das cartas de Sá Carneiro a Fernando Pessoa, que é muito significativo :
“(…) Isto não são declarações de amor, mas tudo isto, toda esta sumptuosidade,
e depois a grande alma que você é, fazem-me ser tão seu amigo como eu posso ser de
alguém : encher-me de ternuras, gostar de si como ao meu pai, encostar a minha cabeça
ao seu braço, e de o ter aqui ao seu braço, como eu gostaria de ter o meu pai, a minha
ama, ou qualquer objeto, qualquer bicho querido da minha infância”.179
Nesta carta Sá Carneiro começa por se desculpar, negando que seja uma
declaração de amor, mas acaba por entrar numa declaração de intimidade, muito
semelhante a uma declaração de amor, em que o mais significativo é o desejo de Sá
Carneiro reclinar a sua cabeça nos braços de Fernando Pessoa. Mesmo chamando-se a
isso amizade, não é uma amizade como qualquer outra, mas sim aquilo que alguns
autores chamam “amizade de caráter homossexual”. Isso não significa que fossem
namorados, mas que era uma amizade de grande cumplicidade e intimidade, em que
partilhavam os mesmos sentimentos.
As cartas entre Sá Carneiro e Fernando Pessoa revelam entre eles essa
cumplicidade e intimidade. Durante mais de quatro anos consecutivos esses dois jovens
do sexo masculino escreveram cartas um ao outro, durante todas as semanas. Nas suas
cartas Mário de Sá Carneiro revela que conversava com muita gente em Paris. Sendo
assim, porquê esta tão grande necessidade de ter um indivíduo, do mesmo sexo, e jovem
como ele, com quem falar com tanta frequência, e através de cartas tão sentimentais ?
não se tratou de uma relação epistolar meramente intelectual ou literária, mas sim de
uma relação muito forte em que confessavam um ao outro os seus sentimentos mais
pessoais. Não é a qualquer indivíduo que se confessam determinadas coisas, não é a
qualquer indivíduo que se dizem coisas tão íntimas, mas sim a alguém que aquele que as
confessa sente que é capaz de também as compreender e sentir, como por exemplo
quando Sá Carneiro confessa a Fernando Pessoa numa carta escrita em 6 de Agosto de
1914 :
“Eu sinto-me em verdade a amante pequenina dum rapaz loiro de vinte anos que
partiu para a guerra e não voltou… Doutra forma não posso explicar porque a esta hora

179
Cartas de Mário de Sá Carneiro a Fernando Pessoa, pp. 127-128.
sinto uma tristeza de beijos que nunca dei… uma saudade de mãos que não enlaçaram
as minhas”.180
Ao longo dessas cartas Sá Carneiro revela a Fernando Pessoa determinadas
coisas, que são significativas em relação à sua personalidade, aos seus afetos, e aos
problemas com isso ligados, umas implícitas, e outras explícitas. Por exemplo, numa
dessas cartas queixa-se das ironias de Santa-Rita Pintor, que também se encontrava a
viver em Paris, tal como Sá Carneiro, ironias essas em relação a si, no que diz respeito à
homossexualidade, afirmando :
“Tenho continuado a andar com ele, mas vou procurar afastar-me, porque se vai
tornando cada vez mais intolerável em pequeninas coisas que só de boca se podem
esmiuçar. (…) Apresenta-me uma polaca horrivelmente feia e diz-lhe que eu sou
homossexualista. A polaca replica que simpatiza muito com os degenerados !“181
Mário de Sá Carneiro tinha sido estudante em Coimbra, no curso de Direito.
Porque razão foi viver para Paris ? Não foi para trabalhar, pois Sá Carneiro era de
famílias abastadas economicamente, e o pai sempre o sustentou. Foi viver em Paris
para estudar Direito ? mas era isso o que ele já se encontrava a fazer em Portugal, numa
das mais prestigiadas Universidades europeias, e num dos cursos mais bem reputados,
como o de Direito, na centenária Universidade de Coimbra, que teve sempre os
melhores professores de Direito. As pessoas costumam ir estudar para o estrangeiro,
quando não têm uma Universidade ou um determinado curso que pretendem, no seu
país, ou quando vão em busca de uma melhor Universidade, para terem melhores
professores, e eventualmente seguirem a carreira académica. Será que Sá Carneiro
estava preocupado em prosseguir uma carreira académica, em ter um melhor curso de
Direito, e melhores professores em Paris? Não, pois em Paris Sá Carneiro faltava muito
às aulas, não fazia as disciplinas do curso, não fazia os exames, e não concluiu nenhum
ano académico. Também não se pode dizer que Sá Carneiro tivesse ido para Paris em
busca da vida boémia, pois vida boémia tinha-a em Coimbra, que desde sempre, na
Europa, foi uma das cidades onde houve mais boémia estudantil, e com uma forte vida
académica. Ir estudar foi apenas um pretexto para o pai de Sá Carneiro lhe dar dinheiro,
e poder partir. Mas se Sá Carneiro não foi viver para Paris para trabalhar, nem para
seguir a carreira académica, nem por causa da vida boémia estudantil, então porque
razão foi viver para Paris ?

180
Cartas de Mário de Sá Carneiro a Fernando Pessoa, o.c., p. 24.
181
Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, o.c., p. 17.
Era para Berlim, Londres, e Paris, que partiam muitos homossexuais, onde já
haviam cafés, bares, e associações culturais para homossexuais, que assim podiam
manifestar mais livremente a sexualidade, conforme se pode confirmar em documentos
sobre a época e na investigação dos historiadores. 182 Mário de Sá Carneiro não sabia
falar Alemão nem Inglês, mas sabia falar Francês, por isso escolheu Paris. Esta cidade
era o alvo de Sá Carneiro, que esperava preencher uma falta, a da realização das suas
necessidades afetivas, nessa cidade que era o símbolo da liberdade sexual, e para se
sentir mais à vontade num ambiente de abertura, ao contrário da Lisboa muito fechada e
conservadora do seu tempo. Poucos anos antes de Sá Carneiro ter ido viver para Paris,
tinha sido fundada nesta cidade a primeira revista literária, em todo o mundo, para
homossexuais (a revista Akademos), que foi fundada por um casal de homossexuais.
Nesta cidade a homossexualidade não era reprimida, e era frequentada por muitos
homossexuais, como uma das cidades mais tolerantes da Europa em relação à
homossexualidade. A França foi pioneira na abertura para com a homossexualidade (o
sexo entre homens era legal à luz do código napoleónico). Segundo os historiadores,
Paris era mesmo a cidade mais procurada pelos homossexuais em todo o mundo, 183
cidade essa que estava no seu auge em relação à homossexualidade, precisamente na
época em que Mário de Sá Carneiro foi para lá viver. 184 Fernando Pessoa retrata bem a
liberdade sexual de França, e de Paris, através do seu heterónimo Jean Seul, o texto A
França em 1950, no qual Fernando Pessoa afirma o seguinte: “Aqui não há pessoas
normais, o que há são pessoas duas vezes anormais, sexuais duas vezes invertidos, que
estão de volta à normalidade.”185
Em Paris, Mário de Sá Carneiro frequentava muito o Café de la Paix (“Café da
Paz”), conforme ele próprio refere nas suas cartas a Fernando Pessoa. 186 Atualmente
existe mesmo uma placa na parede desse edifício, em memória do facto de Mário de
Sá-Carneiro ter sido frequentador desse café. Justino de Montalvão, um português que
viveu em Paris nessa época, refere-se a esse café como “o pedantíssimo Café de la

182
Confirmar em Florence Tamagne, Histoire de l’homosexualité en Europe. Berlin, Londres, Paris, 1909-
1939, (“História da homossexualidade na Europa. Berlim, Londres, Paris”), Paris, Ed. Seuil, 2000.
183
François Buot, Gay Paris : une histoire du Paris interpole entre 1900 et 1940 (“Paris Gay : uma história
de Paris entre 1900 e 1940”), Paris, Ed. Fayard, 2013.
184
Régis Revenin, Homosexualité et prostituition masculines à Paris, 1870-1918 (“Homossexualidade e
prostituição masculinas em Paris, 1870-1918”), Paris, Ed. L’Harmattan, 2005.
185
Pessoa por conhecer. Textos para um novo mapa., vol. II, pp. 206-207, p. 155 a. Texto escrito e
publicado em Francês. Tradução de Victor Correia.
186
Cartas de Mário de Sá Carneiro a Fernando Pessoa, o. c., carta de 8 de Novembro de 1915, p. 236.
Paix”,187 apresentando a palavra “pedantíssimo” cheia de subentendidos. Esse café era
conhecido como café frequentado por homossexuais, e foi frequentado por escritores
homossexuais famosos, tais como Marcel Proust, e Óscar Wilde. Com o passar do
tempo os homossexuais passaram a ter nesse café um espaço próprio, mais discreto,
retirado do salão principal : um terraço virado para a Ópera de Paris, de tal modo que
esse terraço passou a ser chamado “o terraço das damas”. Esse café frequentado por
Mário de Sá Carneiro, era chamado Café da Guerra pelos homossexuais, ironizando
com o verdadeiro nome do café (Café da Paz). No romance homoerótico Les
Fellatores (“Os Feladores”), de Paul Delvaux (1888),188 e sobretudo no seu romance
homoerótico Côté des dames (“O espaço das damas”), de 1887 , esse café é mencionado
pelo autor, que fala naquilo a que designa as rainhas de Paris, dizendo o seguinte :
“A clientela do Café da Guerra compõe-se em grande parte de clientes habituais,
que nessa qualidade têm as suas horas fixas e os seus lugares consagrados. (…) O lado
da segunda fachada do edifício recebeu dos clientes habituais a designação de espaço
das damas, porque é aí que existe em permanência o mercado das rainhas,189 a maior
parte aí volta frequentemente, e outros abandonam-no”. 190
Ao longo dos anos, esse espaço em Paris foi sendo frequentado por
homossexuais. No entanto, Sá Carneiro não foi bem sucedido em Paris, pois davam-lhe
pouca ou nenhuma atenção. Os homossexuais dão muita importância à beleza física, e
Sá Carneiro, como ele próprio afirma sobre si, era gordo e feio. No poema Feminina,
em que ele diz que queria ser mulher para ter muitos amantes, afirma a esse propósito :
“eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto/ com um rapaz gordo e feio
de modos extravagantes”. Num outro poema, intitulado Aqueloutro, Sá Carneiro refere-
se a si como sendo uma “esfinge gorda”, e nesse poema refere-se também a si através da
expressão “um lacaio invertido” (repare-se na palavra “invertido”). Os estudiosos de
Mário de Sá Carneiro costumam salientar a expressão “o esfinge gorda”, e o poema
onde vem inserida, como um auto retrato de Mário de Sá Carneiro, mas ignoram ou não
dão importância à designação de “invertido” que Sá Carneiro dá a si mesmo. A palavra
“invertido” foi desde sempre uma conotação de “homossexual”, e o próprio Sá
Carneiro, tão pessimista nesse seu poema, também a aplica. Ainda hoje a palavra
187
Justino de Montalvão, Poeira de Paris, (1908), Paris. Ed. Garnier, 1928, p. 47.
188
Paul Devaux, Les fellatores – moeurs de la décadence, (“Os feladores – costumes da decadência"),
seguido de Côté des dames (“O espaço das damas”), Paris, Ed. Gaykitschamp, 2011.
189
Termo calão, que significa homossexual, que tem como origem a palavra inglesa queen, de que se
originaram outras designações atuais internacionalizadas, como por exemplo drag queen.
190
Paul Devaux, o.c., p. 115
“invertido”, referindo-se a um indivíduo, significa “homossexual”, e o próprio Fernando
Pessoa aplica também essa palavra com esse significado em alguns dos seus textos.
Há quem considere que Sá Carneiro se suicidou devido a problemas
económicos. Sá Carneiro acabou por ter problemas económicos devido ao facto de ser
muito esbanjador de dinheiro em bares e cafés de Paris, e provavelmente em sexo
ocasional, mas numa carta a Fernando Pessoa, pouco tempo antes de suicidar, Sá
Carneiro escreveu-lhe o seguinte : “A minha doença moral é terrível, diversa e
novamente complicada a cada instante. O dinheiro não é tudo. Hoje, por exemplo, tenho
dinheiro”,191 Portanto, apesar de ter dinheiro, Sá Carneiro suicidou-se. Nesta carta Sá
Carneiro fala naquilo a que ele chama a sua “doença moral”, certamente empregando a
palavra “moral” como um eufemismo para se referir à homossexualidade. Depois de
transcrever as quadras de um poema incompleto, em que faz o retrato de uma mulher de
passado sombrio e duvidoso, Sá Carneiro afirma: “pois bem : previram misteriosamente
a personagem real da minha vida de hoje estes versos”, 192 identificando-se com essa
mulher de passado sombrio e duvidoso.
Numa outra das suas cartas a Fernando Pessoa, falando de uma ida sua a Lisboa,
onde permaneceu durante algum tempo, e onde nunca mais regressou, Sá Carneiro
refere-se a algo que aconteceu consigo em Lisboa, que o perturbou, mas sem entrar em
pormenores. Sá Carneiro partiu precipitadamente de Lisboa a 11 de Julho de 1915, sem
quaisquer explicações, sem se despedir de ninguém, como se quisesse fugir. Apesar de
tencionar permanecer em Lisboa durante mais tempo, regressou de repente a Paris, e
passados alguns dias (no dia 16 do mesmo mês), escreveu a Fernando Pessoa uma carta
dizendo-lhe o seguinte:
“O que se possa ter aí passado com questões da minha vida privada, comunico-
lhe que não quero saber coisa nenhuma, tenha havido o que houver. Suplico-lhe como
um dos maiores obséquios que se porventura sabe alguma coisa a esse respeito, se o
foram mesmo procurar – o que é muito natural – me não diga nada, nem faça de longe
referências. Não quero saber nada, absolutamente nada. E peço-lhe que não se refira
sequer nas suas cartas a estas minhas linhas. Faça como se nenhuma dessas trapalhadas
tivesse existido”. 193
Certamente que Sá Carneiro se referia nesta carta a problemas que teve em
Lisboa com a sua homossexualidade, em que foi encontrado em alguma situação
191
Cartas de Mário de Sá Carneiro a Fernando Pessoa, o. c., carta de 17 de Abril de 1916, p. 284.
192
Idem, Ibidem, p. 286.
193
Idem, ibidem, pp. 172-173.
embaraçosa, ou em que foi denunciado ou interrogado na Polícia, a propósito disso, o
que o fez partir precipitadamente de Lisboa, onde tencionava permanecer durante mais
tempo. Existem duas fotos de Mário de Sá Carneiro no Museu e Arquivo da Polícia
Judiciária de Lisboa. Não são fotos apenas de frente, pois existe também uma foto
tirada de perfil (de lado), como se fazia para os suspeitos e criminosos (a
homossexualidade era considerada crime, no tempo de Mário de Sá Carneiro). Se fosse
uma foto simplesmente para colocar no seu Bilhete de Identidade, no seu passaporte, ou
para oferecer aos amigos, não ia tirá-la à Polícia Judiciária, pois em Lisboa, nesse
tempo, já existiam muitas casas para se tirar fotografias, sobretudo na baixa lisbonense,
e que era muito frequentada por Sá Carneiro. Após a invenção da fotografia, Lisboa foi
uma das cidades europeias que mais cedo aderiu a essa invenção, conforme se pode
verificar no Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico. Sá Carneiro não
trabalhava na Polícia Judiciária. Porque razão teria lá ido se quisesse tirar uma
fotografia ? A Polícia não servia para qualquer um ir lá tirar fotografias, as fotografias
que a Polícia tirava era a indivíduos suspeitos e denunciados. A expressão do rosto de
Sá Carneiro, nessa fotografia, é bastante elucidativa : trata-se de uma expressão nada
descontraída, uma expressão sem qualquer sorriso, ao contrário das outras fotografias
que conhecemos dele. Mesmo que não esboçasse um sorriso conforme faz noutras
fotografias, pelo menos podia não mostrar o contrário, mas em vez disso Sá Carneiro
tem nessa fotografia um ar carregado, uma expressão constrangedora, um rosto de
desagrado e de mau estar, certamente por ter sido tirada na Polícia Judiciária,
relacionado com algo de que era suspeito, questionado, ou importunado. Sá Carneiro
não era ladrão nem assassino, portanto só poderia ter a ver com homossexualidade.
A perseguição aos homossexuais existia nesse tempo e prolongou-se nos anos
seguintes. Almada Negreiros, num dos números da revista Sempre Fixe, publicou uma
ilustração em alusão à homossexualidade, como por exemplo um desenho de dois
jovens do sexo masculino, de mãos dadas. No número de 23 de Setembro de 1926 dessa
revista, Almada Negreiros publicou um outro desenho de sua autoria, em que desenhou
um casal de lésbicas e um casal de homossexuais masculinos, com um agente da Polícia
de Segurança Pública ao lado, a fazer ronda pelas ruas, olhando-os com ar desconfiado.
Trata-se de um desenho de caricatura à perseguição aos homossexuais, e onde Almada
Negreiros colocou a seguinte legenda : “Salvemos os rapazes !”. Esse desenho é
importante devido ao facto de ser de autoria de um dos membros da Geração de
Orpheu, e faz referência à perseguição de que os homossexuais eram vítimas, e de que
Sá Carneiro terá também sofrido as consequências.
Numa das suas cartas a Fernando Pessoa, datada de 6 de Agosto de 1914, diz-lhe
o seguinte : “eu sinto-me em verdade a amante pequena dum rapaz loiro de vinte anos
que partiu para a guerra e não voltou”. 194 Noutra carta, datada de 24 de Agosto de 1915,
Sá Carneiro fala uma vez mais sobre si próprio, referindo-se ao seu ideal de beleza :
“Para mim basta-me a beleza – e mesmo a errada – fundamentalmente a errada. (…) Foi
esta a mira da minha obra”. De facto, na sua obra a atração pela “beleza errada” está
presente, tanto a atração pelos indivíduos do sexo masculino, como o problema da
identidade de género, em alguns dos seus poemas, de forma subentendida, e também na
sua obra em prosa, de forma implícita e explícita (Ressurreição; Asas; O fixador de
instantes; Céu em Fogo; A Confissão de Lúcio). Numa outra carta que escreveu a
Fernando Pessoa, datada de 31 Fevereiro de 1916, Sá Carneiro diz-lhe o seguinte :
“Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei : tive tudo durante eles :
realizada a parte sexual , enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas
zebradas, os mosqueiros roxos da sua ilusão”.195
Mário de Sá Carneiro diz também o seguinte :
“Mas não falemos mais destas “complicações doentias”. (Nos bons tempos de
80, quando Bourget florescia, nos rapazes de vinte anos o que se estudava eram as
complicações sentimentais, quer dizer, amorosas. A nossa geração é mais complicada,
creio, e mais infeliz. A iluminar as suas “complicações” não existe mesmo uma boca de
mulher”.196
Na obra de Sá Carneiro, nomeadamente em alguns dos seus textos de ficção, os
personagens transgridem as fronteiras sexuais e de género. Não cabe aqui fazer um
levantamento exaustivo desse tema na obra de Sá Carneiro, citar todas essas passagens
que surgem ao longo da sua obra, e comentá-las. Chamamos apenas a atenção para uma
obra onde o tema da homossexualidade está presente, apesar dos seus entre ditos, obra
essa em que uma das personagens, Ricardo, vai-se abrindo pouco a pouco ao seu
amigo Lúcio, vai-lhe desvendando a sua intimidade, e revelando-lhe a sua
homossexualidade.197 Trata-se de um triângulo amoroso, em que uma mulher (Marta)
194
Citado por Richard Zenith, Pessoa – uma biografia, p. 487.
195
Idem, ibidem, p. 581.
196
Citado por João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa, p. 565..
197
Ver Frédéric Monneyron, Écrire la passion homosexuelle : A Confissão de Lúcio de Mário de Sá
Carneiro, (“Escrever a paixão homossexual : A Confissão de Lúcio de Mário de Sá Carneiro), in Tíra,
Université Stendhal-Grenoble III, CRELIT, nº. 7, 1995, pp. 115-127.Pode ver-se também a obra de
não é desejada senão pelo amante (Lúcio), ele próprio objeto de desejo do seu marido
(Ricardo), que se casou apenas para entrar na esfera da normalidade social, e em que
Ricardo afirma sobre Marta que “ao possui-la tinha a sensação de possuir também o
corpo masculino desse amante”198, e em que Ricardo diz a Lúcio : “Ai como eu sofri
(…) eu queria vibrar esse teu afeto (…) e era-me impossível ! (…) Só se te beijasse, se
te enlaçasse, se te possuísse (…) mas como possuir uma criatura do nosso sexo ?” 199.
Por seu turno, o outro personagem masculino, Lúcio, ao receber um beijo de Ricardo
para que ele aprendesse a beijar melhor, percebe uma semelhança entre Marta e
Ricardo, dizendo que ambos têm os mesmos gostos, e até o mesmo sabor do beijo: “ O
beijo de Ricardo fora igual, exatamente igual, tivera a mesma cor, a mesma perturbação
que os beijos da minha amante. Eu sentira-o da mesma maneira”.200
Fernando Pessoa, ao comentar esta obra, afirma : “A Confissão de Lúcio é
apenas a Confissão do sr. Mário de Sá Carneiro. Com característica ingenuidade, mal
sabe o autor quanto confessa de si, especialmente para quem, como um psiquiatra batido
em aplicações da sua ciência à literatura, (…)201 Quanto mais sexualmente nos fala, mas
sexual nos revela”.202 Por seu turno, ao estar tão ligado a Sá Carneiro, ao escrever alguns
textos sobre ele, ao dedicar-lhe alguma da sua poesia, ao corresponder-se tão
intimamente com ele, ao receber dele tantas cartas, ao responder-lhe, e ao chorá-lo
aquando da sua morte, deixando-o deprimido, Fernando Pessoa também revela muito
sobre si próprio. No seu poema sobre Sá Carneiro, Fernando Pessoa expressa a sua
amargura pela sua perda, e confessa a sua identificação com ele, dizendo a determinada
altura o seguinte : “Hoje, falho de ti, sou dois a sós./ (…) Como eramos só um,
falando!/ (…) nunca mais /Na paisagem sepulta desta vida/ Encontrarei uma alma tão
querida/ Às coisas que em meu ser são as reais”. 203
Quando Sá Carneiro se suicidou, Raul Leal, que com ele também trocava cartas,
ficou profundamente consternado. Numa carta de Raul Leal a Fernando Pessoa, de 7 de
Maio de 1916, pode ver-se a reação de “horror” de Raul Leal perante o suicídio do seu

Fernando Curopos, L’émergence de l’homosexualité dans la littérature portugaise (“A emergência da


homossexualidade na literatura portuguesa” ), (1875-1915) , Paris, Ed. L’Hartmattan, 2016, o capítulo “O
entre dito de A Confissão de Lúcio,” páginas 207-222, que faz uma exaustiva análise sobre a
homossexualidade nesta obra de Mário de Sá Carneiro.
198
Mário de Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio, p. 118.
199
Idem, p. 137.
200
Idem, capítulo V, p. 110.
201
Espaço deixado em branco pelo autor.
202
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, p. 232.
203
Poesia 1931-1935, pp. 371-372
amigo Sá Carneiro, e nessa carta ao mesmo tempo identificou-se com o seu suicídio,
pois já algumas vezes Raul Leal também tinha pensado suicidar-se. Nessa carta a
Fernando Pessoa, Raul Leal disse-lhe : “foi como se fosse eu o suicidário”. 204 A
cumplicidade e a identificação entre Sá Carneiro e Fernando Pessoa também existia
afinal entre Sá Carneiro e o seu amigo homossexual Raul Leal.
Sá Carneiro foi um dos principais amigos de Fernando Pessoa, que por sua vez
foi muito marcado por Sá Carneiro, sobre quem escreveu, com quem se correspondeu
intensamente, e que foi seu companheiro na direção e realização da revista Orpheu.
Mesmo alguns anos depois da sua morte escreveu um poema sobre ele, intitulado, “Sá
Carneiro”, no qual Fernando Pessoa chora a sua morte, que profundamente o abalou e
que ao longo dos seus anos de vida continuou a lamentar. Em suma, e conforme
sublinha o investigador Fernando Cabral Martins, “Pessoa torna-se quase autor de Sá
Carneiro, e Sá Carneiro torna-se um produto, ou mesmo uma espécie de semi-
heterónimo de Fernando Pessoa”.205

OUTROS AMIGOS

Incluímos aqui um capítulo sobre “outros amigos”, para os distinguirmos dos


amigos homossexuais (os anteriormente referidos), pois Fernando Pessoa teve também
amigos heterossexuais. No entanto, em relação a alguns dos seus amigos heterossexuais,
Fernando Pessoa poderá ter sentido algo mais do que uma mera amizade. Conforme
alguns autores afirmam, existem diversos tipos de amizade, incluindo as suas ligações
com a homossexualidade : a amizade como forma de transfiguração de um desejo não
realizado, e a amizade como forma disfarçada de apresentação da homossexualidade
num contexto social adverso, ou o “amor de amigos”, em que o desejo é sublimado
espiritualmente, e seria uma configuração intermediária entre a mera amizade e a
homossexualidade propriamente dita. Sobre a amizade íntima entre dois homens como
forma inconfessada de amor, e as suas relações com a homossexualidade, e sobre aquilo

204
Ricardo Vasconcelos, “Foi como se fosse eu o suicidário : Raul Leal escreve a Fernando Pessoa na
morte de Mário de Sá-Carneiro”, Pessoa Plural, a jornal of Fernando Pessoa Studies, nº. 12, Outono,
2017, nº. especial : New insights on Portuguese Modernism from the Fernando Távora Collection, pp.
169-193.
205
Fernando Cabral Martins, “Notas sobre o diálogo poético entre Sá Carneiro e Pessoa”, p. 143.
a que alguns autores, conforme já referimos, chamam “amizade de caráter
homossexual”, existem importantes estudos editados. 206
Em muitos casos o amor assemelha-se à amizade, e a amizade assemelha-se ao
amor, ou confundem-se, conforme já lembrava o filósofo da Roma antiga, Séneca, na
sua Carta IX : “Sem dúvida alguma, o amor se assemelha à amizade : poderíamos dizer
que é uma afeição tomada pela loucura”. No “amor de amigos” o desejo é sublimado
espiritualmente, e é uma configuração intermediária entre a mera amizade e a
homossexualidade propriamente dita, e tendem a aproximar-se uma da outra,
misturando-se. O próprio Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Álvaro de
Campos, associa a amizade à homossexualidade, e a homossexualidade à amizade,
dizendo o seguinte : “A amizade é a mesma coisa, por isso os povos que, como o Grego,
tinham o talento da amizade, caíram naturalmente, e sem anormalidade, na pederastia”.
207
Noutro texto Álvaro de Campos diz que Shakespeare foi o representante do tipo de
homem que “não pode gastar tempo na caça ao prazer sexual normal, e por isso o
substitui pelo prazer sexual dado pela amizade com outros homens levada ao requinte”.
208
(repare-se na frase : “prazer sexual dado pela amizade com outros homens”.
Os limites entre a amizade entre dois homens (principalmente a amizade íntima)
e os sentimentos homossexuais, são difíceis de definir, pois por vezes uma coisa
confunde-se com a outra. Edward Carpenter, um filósofo homossexual britânico, que
vem referido nas notas de Fernando Pessoa como um possível destinatário da edição dos
seus Poemas Ingleses na editora Olissipo,209 defendia que “as pessoas começam a
perceber que os sexos formam, num certo sentido, um grupo contínuo, e assim também
começam a perceber que o Amor e a Amizade – com tanta frequência entendidos como
coisas distintas – estão na realidade muito próximos e misturam-se imperceptivelmente
um com o outro”.210

206
Robert Brain Friends and Lovers, (“Amigos e amantes”), Glasgow, Ed. Hart-Davis MacGibbon, 1976;
Anthony Rotundo, Romantic Friendship (“Amizade romântica”), Journal of the History of Sexuality
(“Revista da História da Sexualidade”), Texas, Ed. University of Texas Press, nº. 23, 1985, pp. 1-25.
Jacqueline Kelen, Aimer d’aimitié , (“Amar de amizade”), Paris, Ed. Robert Laffont, 2002; Stuart Miller,
Hommes et amitiés , (“Homens e amizades”) Paris, Ed. Robert Laffont, 1984; Peter M. Nard, Gay Men’s
Friendships, (“Amizades de Homens Gays”), Chicago, Ed. The University of Chicago Press, 1999; Jean-Luc
Henning, De l’extrême amitié, (“Sobre a extrema amizade”), Paris, Ed. Gallimard, 2015.
207
Prosa de Álvaro de Campos, Lisboa, Ed. Ática, 2012, p. 210.
208
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa, Lisboa, Ed. Estampa, 1990, p. 425.
209
Espólio de Fernando Pessoa, 64/99v.
210
Edward Carpenter, The Intermediate Sex – A study of Some Transitional Types of Men and Women,
Londres, Ed. Sonnenschein, 1908, capítulo dois.
Os homossexuais não se apaixonam só por homossexuais, e há até alguns que
rejeitam os homossexuais, preferindo os heterossexuais, pois a grande parte dos
homossexuais são passivos, logo não teriam nada a esperar deles do ponto de vista das
relações sexuais. No entanto, com os heterossexuais as relações sexuais também são
difíceis, pois sendo heterossexuais, não podem corresponder sexualmente aos desejos
dos homossexuais, embora haja muitos heterossexuais que também se relacionam
sexualmente com homossexuais, como ativos ou como mera curiosidade (os chamados
“heterossexuais curiosos”), ou porque alguns são bissexuais.
Sempre houve e há homossexuais que se apaixonaram e apaixonam por amigos,
por colegas de Escola, de Universidade, de trabalho, e embora não esperando nada deles
do ponto de vista sexual, não conseguiam nem conseguem deixar de sentir atração
sexual por eles. Aliás, isto não acontece apenas com os homossexuais, pois entre os
heterossexuais acontece também por vezes haver rapazes estudantes amigos de
raparigas estudantes, ou homens amigos de mulheres, que por vezes sentem algo mais
do que amizade, mas que não evoluem concretamente para algo mais, ou por timidez,
ou porque com o passar do tempo cada um deles vai à sua vida, ou porque o amigo está
comprometido com outra pessoa, ou porque apenas um deles sente algo mais do que
amizade, pois o outro sente e quer apenas amizade, e não havendo portanto sentimentos
recíprocos, é difícil evoluir para algo mais do que amizade.
No caso de Fernando Pessoa, não sabemos da sua experiência neste domínio,
mas não é difícil aceitar que ele sentisse por alguns dos seus amigos algo mais do que
uma simples amizade, e conforme se pode ver em pormenor num dos capítulos deste
livro, no capítulo Declarações sobre a homossexualidade de Fernando Pessoa, no sub
capítulo Declarações do próprio Fernando Pessoa, a palavra amigo foi utilizada
algumas vezes por Fernando Pessoa, nos seus poemas homoeróticos, como sinónimo de
amante. Há outros poemas que não sabemos a quem se destinam, mas que também
falam num “amigo”, como por exemplo o poema do heterónimo Alexander Search, Ao
meu maior amigo.211
Isso não significa que os seus amigos fossem seus amantes, nem que Fernando
Pessoa pretendesse isso deles, não defendemos essa tese nem para os seus amigos
homossexuais nem para os seus amigos heterossexuais, assim como não defendemos
que os seu amigos sentissem algo mais do que amizade para com ele. No entanto, do
lado de Fernando Pessoa as coisas não parecem ser assim tão simples, pois detecta-se
211
Poesia inglesa, p. 131.
em Fernando Pessoa um certo “fraquinho” por determinados amigos heterossexuais, e
embora muito provavelmente não se tenha envolvido com eles sexualmente, sentia por
eles uma especial atração e predileção, que é difícil considerar como sendo uma simples
amizade. É possível detectar uma amizade especial da parte de Fernando Pessoa para
com dois dos seus amigos heterossexuais : Carlos Celestino Corado, e Geraldo Coelho
de Jesus (poderá ter havido mais, mas apresentamos estes como exemplos).
Carlos Corado é um indivíduo algumas vezes referido por Fernando Pessoa nos
seus diários, onde escrevia coisas geralmente muito pessoais, como é próprio de um
Diário. Fernando Pessoa revela por ele preferência e afeição, de que é revelador o facto
de o acompanhar no regresso a casa, a altas horas da noite e de ficarem a conversar. Por
outro lado, Fernando Pessoa dedicou-lhe um conjunto de poemas, nos quais fala da
busca da beleza e onde confessa a sua descrença sobre a possibilidade de concretização
do amor. A um desses poemas deu precisamente o título : Em Busca da Beleza.212
Conforme se pode ver nos vários textos que escreveu sobre António Botto, para
Fernando Pessoa a beleza, o seu supremo ideal, a beleza que valia a pena buscar e que
havia que admirar, era a beleza masculina, por isso não podemos deixar de ver no seu
amigo Carlos Corado, a quem dedicou os poemas Em busca da beleza , um alvo
implícito dessa busca.
Neste poema Fernando Pessoa chama epicurista ao seu destinatário (uma pessoa
imaginária, ou o próprio Carlos Corado). Epicurista é uma palavra grega, que é utilizada
habitualmente com o significado de adepto do prazer, e que se refere também ao
seguidor de Epicuro (341 a. C. – 271 a. C.), filósofo grego nascido em Samos e falecido
em Atenas, onde fundou a sua própria escola filosófica, chamada O Jardim. Epicuro era
solteiro, nunca teve mulheres, a sua escola era frequentada apenas por homens, e o seu
relacionamento com eles não era apenas de carater intelectual, mas também
homossexual, como era próprio da Grécia antiga. A palavra epicurista, ou a expressão
seita de Epicuro, foi empregue por alguns autores conotada com a homossexualidade.
Por exemplo o filósofo Voltaire, nas suas memórias, ao falar sobre o monarca Frederico
II da Prússia, cuja corte Voltaire frequentou, ao referir-se às tendências homossexuais
de Frederico II, emprega essa expressão, ao dizer que em Frederico II por vezes “o
estoico dava lugar à seita de Epicuro”. 213

212
Poesia 1902-1917, pp. 45-46.
213
Voltaire, Mémoires pour servir à la vie de Voltaire, 2015, p. 20.
O outro amigo, Geraldo Coelho de Jesus, é referido pelo investigador pessoano
Richard Zenit, a propósito do extenso poema de Fernando Pessoa que começa assim :
“Sei que desprezarias não somente”, um poema claramente homoerótico. 214
Sobre esse
poema e o seu destinatário, Richard Zenith declara o seguinte :
“Tão vividos são os pormenores e poderosos os sentimentos no poema de Julho
de 1919, que se nos afigura tratar-se de uma história verídica, uma confissão que Pessoa
se viu forçado a fazer no papel, poeticamente, visto não ousar dar a conhecê-la ao
homem de quem gostava e não poder continuar a reprimi-la. E que homem ?
Possivelmente Geraldo Coelho de Jesus, o engenheiro de Minas, que era bem parecido,
ainda solteiro, e tinha beijado muitas “vulgares bocas de mulheres”. Uma predileção
invulgar por Geraldo ajudaria a explicar a devoção igualmente invulgar ao jornal desse
seu amigo, o Acção, a exuberância das cartas que escreveu a Geraldo e ao encarregar-
se da distribuição do terceiro número. Numa dessas cartas, Pessoa fez um pedido : caso
a redação do jornal se transferisse para um espaço mais amplo, “eixe que eu fique em
lugar de você”. Pessoa queria transformar a redação de Geraldo na casa onde ele
dormiria”.215
Em suma, embora seja pouco provável que Fernando Pessoa tenha tido algum
relacionamento íntimo com este amigo assim como com outros amigos, há que salientar
que certas amizades não são de todo inocentes, e que quando alguém é homossexual, é
natural que esse alguém (neste caso, Fernando Pessoa) pudesse sentir por certos amigos
algo mais do que uma simples amizade, como aliás por vezes também acontece entre
amigos heterossexuais.

O ATIVISMO LITERÁRIO DE FERNANDO PESSOA

ORPHEU : UMA “REVISTA DE INVERTIDOS”

 O historiador Rui Ramos, autor do sexto volume da História de Portugal,


dirigida por José Mattoso, relaciona o movimento de Orpheu com a polémica da
"literatura de sodoma" e, portanto, com uma forma específica de vivência da cultura
portuguesa e da sua travessia pela modernidade. Como historiador, Rui

214
Poesia 1918-1930, pp. 58-62. Poema datado de 5 de Julho de 1919.
215
Richard Zenith, Pessoa – uma biografia, pp. 663-664.
Ramos afirma que os "modernistas quiseram alterar as maneiras de viver".216 Rui Ramos
defende que por detrás das questões estéticas da revista Orpheu se encontrava uma
proposta radical que formulava um "pluralismo moral", ou seja, o movimento do
Orpheu propunha uma forma plural de existência que insistia em "provar que havia
outros modos de encarar a vida".217 Para este historiador, a experimentação da
sexualidade em consonância com o clima vanguardista promovido pelo futurismo eram
propícios a que se entrelaçassem vida e arte, biografia e poesia, ética e estética. Segundo
Rui Ramos, a Fernando Pessoa e a Raul Leal " o que interessava era a admissão pública
da homossexualidade como uma forma de vida numa sociedade que, segundo eles, não
devia ter ortodoxia, porque estava em transição, era um puro devir". 218
Em alguns dos textos de Fernando Pessoa, de que damos aqui exemplos
significativos, podemos confirmar as afirmações do historiador Rui Ramos. Através de
um heterónimo ou personagem não identificados, Fernando Pessoa escreveu o seguinte :

“Temos recebido felicitações de alguns dos mais considerados pederastas do


nosso meio artístico. Chegaram a falar-nos em que se devia aproveitar esta súbita onda
de cultura para lançar uma revista Antínoo,219 com o fim de habituar os portugueses aos
grandes movimentos sociais de lá fora. Achamos interessante mas prematuro. Pouco a
pouco, pouco a pouco…” 220

Este texto, escrito em 1914, fala dos movimentos sociais lá de fora,


nomeadamente na Alemanha e em França, desde os finais do século XIX até à Primeira
Guerra Mundial. Em 1896 apareceu em Berlim a primeira revista homossexual em todo
o mundo, a revista Der Eigene. Em 1909 apareceu em Paris outra importante revista
para homossexuais, a revista Akademos, que foi fundada por um casal de homossexuais.
Em 1920, havia na Alemanha mais de 20 jornais e revistas dirigidos ao público
homossexual masculino, além de quatro exclusivamente para lésbicas.

216
Rui Ramos, “Os inadaptados”, História de Portugal, dir. José Mattoso, p. 658.
217
Idem, p. 662.
218
Idem, p. 661.
219
Alusão ao jovem Antínoo (110-130), que o imperador romano Adriano amou, e sobre quem Fernando
Pessoa (ortónimo) escreveu o seu mais longo poema homoerótico, Antínoo. Antínoo faz parte do
imaginário homoerótico, e é hoje considerada um ícone gay.
220
Sensacionismo e outros ismos, p. 427.
Através do texto de Fernando Pessoa atrás citado, o narrador revela a intenção
de fundar e publicar também em Portugal uma revista onde o homoerotismo estivesse
subjacente, mas diz que era ainda cedo para isso, e que lá haveria de chegar, pouco a
pouco, e assim veio a acontecer, não com essa denominação, mas com a denominação
de Orpheu. Essa revista era para se denominar Antínoo, em alusão ao jovem Antínoo
(110-130), que o imperador romano Adriano amou, e sobre quem Fernando Pessoa
escreveu o seu mais longo poema homoerótico, Antínoo.
Antínoo faz parte do imaginário homoerótico, e é hoje considerada um ícone
gay. Assim como Antínoo se tornou um mito homoerótico, Orfeu também, pois Orfeu
foi um dos personagens da mitologia grega que louvava o amor entre homens, e ele
próprio apaixonou-se por jovens do sexo masculino, com quem se relacionou, depois da
sua mulher Eurídice ter falecido. Por outro lado, na mitologia da Grécia antiga, depois
dos deuses, Orfeu foi o primeiro a interessar-se por indivíduos do mesmo sexo, e foi
também ele próprio que procurou convencer os homens da região da Trácia para
começarem a amar os jovens do sexo masculino (conferir nas Metamorfoses de Ovídio,
livro X, em especial os versos 78-87, 148-219, e 708-739).
Orfeu deu origem às palavras com que por vezes também foi designada a
homossexualidade e os homossexuais, nomeadamente nos meios académicos e literatos.
Assim, por exemplo, em 1922 foi publicado em Portugal um livro intitulado : Amor
sáfico e socrático. O seu autor, Camilo Monteiro, depois de ter aceite diversas
designações, já em uso, tais como homossexualidade, homossexualismo, e
homossexual, uranismo, uranista, inversão e invertido, propõe outras designações :
orfeismo e orfeista.221
Orfeu foi também a designação a uma revista literária trimestral, publicada nos
dois primeiros trimestres de 1915, por iniciativa de Fernando Pessoa, que foi também
seu dirigente, tendo tido como colaboradores os homossexuais Raul Leal e Mário de Sá
Carneiro, e outros colaboradores, mas apenas homens. Apesar de haver muitas poetisas
no seu tempo, e algumas delas importantes (Judith Teixeira, Florbela Espanca, etc.),
essa revista excluiu a colaboração de mulheres, e até mesmo a suposta colaboração de
uma poetisa (Violante de Cysneiros), no segundo número da revista, era um
pseudónimo de um homem (Armando Côrtes Rodrigues). Esta atitude de rejeição das
mulheres faz jus à fama do próprio Orfeu enquanto personagem mítica, pois conforme o
relato de Ovídio, Orfeu tinha não só tendências pederásticas mas também misóginas.
221
Arlindo Camilo Monteiro, Amor sáfico e socrático, pp. 231-233.
Conforme refere Anna Klobucka,” importa notar que tanto o próprio Pessoa
como outros comentadores das Canções traçavam uma linha de ligação entre as
ousadias dos autores de Orpheu e a lírica homoerótica de Botto: é claramente este o
sentido da referência de Armando Ferreira222 às “sensibilidades extraordinárias dos
novíssimos poetas que por aí se espremem à procura da nota original que os
imponha”.223
Numa carta a Frank Palmer, Fernando Pessoa diz-lhe o seguinte sobre a revista
Orpheu :
“Envio-lhe neste correio, registado, um número de uma revista, Orpheu, da qual
sou co-editor. É uma revista de todas as espécies de literatura superior, de um quase
futurismo a que nós chamamos aqui interseccionismo.
A nossa revista contém certos poemas e trabalhos em prosa que são
“repreensíveis” de um ponto de vista estritamente moral. No presente número, a parte
central da “Ode Marítima” de Álvaro de Campos está neste caso”.224
Há outro pequeno texto escrito por Fernando Pessoa, que também traça um
retrato da revista Orpheu. Esse pequeno texto pode ser de uma personagem fictícia ou
de um heterónimo não identificado, a criticar também a revista, reproduzindo também
as críticas que se faziam à revista. Mas esse texto também pode ser do próprio
Fernando Pessoa enquanto ortónimo, assumindo que as características apontadas a essa
revista eram um facto, ou descrevendo as suas características, pura e simplesmente,
nomeadamente a “anormalidade de sentimentos” e o seu “histerismo”, expresso aqui
através da palavra “gritos”, e que pode ser também uma conotação de
homossexualidade. O texto é o seguinte :
“Panfleto contra Orpheu
1. Anormalidade dos sentimentos
2. Confusão ideativa
3. A expressão “orfeica”
4. (…)225

222
Autor de um artigo publicado no jornal A Capital, em 18 de Abril de 1922, sobre o livro Canções de
António Botto.
223
Anna Klobucka, O primeiro coming out público em Portugal. As páginas da fonte de recolha deste
artigo não estão numeradas, mas encontra-se na última página, quase no final do artigo.
224
Correspondência, 1905-1922, pp. 191-192.
225
Espaço deixado em branco pelo autor.
Um artista a valer procurava dar toda a impressão desses gritos sem se servir do
expediente grosseiro de pôr os gritos em tipo cada vez maior”.226
A revista Orpheu provocou escândalo, conforme Fernando Pessoa diz numa
carta a Armando Côrtes-Rodrigues : “Somos o assunto do dia em Lisboa; sem exagero
lho digo. O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente — mesmo
extraliterária — fala no Orpheu”.227
Mas porque é que uma simples revista de literatura provocou assim tanto
escândalo, até mesmo entre os não literatos ? O escândalo não era devido apenas ao
modo de fazer poesia, como por exemplo o verso livre, sem rima e sem o mesmo
número de sílabas nas estrofes, pois o verso livre já existia em Portugal, sobretudo no
conhecido poeta Eugénio de Castro, e além disso muitos literatos portugueses já
conheciam essa forma de escrever poesia através de autores estrangeiros. A agitação
não se deveu apenas ao estilo de alguns poemas considerados “loucos”, como os de Sá
Carneiro, por exemplos versos como : “As mesas do café endoideceram feitas ar…/
Caiu-me agora um braço… Olha, lá vai ele a valsar/Vestido de casaca, nos Salões do
Vice-Rei…/ (Subo por mim acima como por uma escada de corda/ E a minha Ansia é
um trapézio escangalhado…).
A agitação causada pela revista Orpheu deveu-se não apenas ao seu estilo mas
também – e sobretudo - aos seus conteúdos, como por exemplo cantar a beleza das
máquinas, a vida boémia nas cidades, e ainda o facto de a revista conter poemas com
versos homoeróticos, como por exemplo o poema Ode Marítima e o poema Ode
Triunfal, do heterónimo Álvaro de Campos; a novela de enredo homoerótico escrita por
Raul Leal: Atelier; o poema de Ângelo de Lima, Cântico Semi-Rami, onde havia
também versos homoeróticos; o poema de um poeta travestido (Violante de Cysneiros);
o poema de Mário de Sá Carneiro, Manucure, em que ele fala com agrado da sensação
de polir e de pintar as suas unhas, e de sentir-se mulher. Foi também publicado na
revista Orpheu um poema de Eduardo Guimarães, em evocação de Stéphane Mallarmé,
(1842-1898), poeta e crítico literário francês, amigo dos poetas homossexuais Rimbaud
e Verlaine. Entre os convidados nas famosas tertúlias literárias na sua casa em Paris,
tinha como convidados assíduos os escritores homossexuais André Gide, e Óscar Wilde.

226
Sensacionismo e outros ismos, p. 62.
227
Correspondência, 1905-1922, p. 161.
Mallarmé teve experiências homossexuais com jovens árabes. 228 Estes pormenores não
escaparam aos literatos, e facilmente se espalharam entre os não literatos.
A revista Orpheu foi muito contestada por literatos, por jornalistas, e pela
opinião pública em geral. Poucos dias depois da sua publicação, foi publicado no jornal
diário A Capital , na edição de 30 de Março de 1941, de um autor anónimo, um artigo
intitulado Literatura de manicómio, dizendo que Álvaro de Campos “canta as coisas
menos delicadas e menos poéticas dos nossos tempos em espantosas expressões verbais,
por vezes pornográficas”, e no dia seguinte esse jornal voltou ao ataque, com mais
críticas à revista Orpheu. Entretanto, foram surgindo outros artigos em jornais, com
várias críticas sobre os “maluquinhos de Rilhafoles”, como eram considerados os
redatores e colaboradores de Orpheu. Fernando Pessoa escreveu um texto, através de
um personagem ou heterónimo não identificados, em que retratou ironicamente as
críticas que eram feitas à revista Orpheu, entre as quais se encontrava a acusação de
serem “invertidos” (designação dada aos homossexuais) :

“Acaba de aparecer p’raí o segundo número duma revista de mulheres chamada


Orpheu, empestando a atmosfera, e até as próprias pedras bradam ao céu por causa
daquilo.
Os sucios,229 trajando de artistas, que andam por aí a fingir de homens por fora
(…)230
Ou não terá essa expulsão relação com a expulsão - cómica ainda – de um certo
rapazito americano ?
E depois chamam-nos maus se lhe chamamos uma revista de mulheres.
Invertidos a querer criar uma literatura social, é a primeira vez que se vê desde
que o mundo é mundo.
O que toda esta cáfila de degenerados pensa fazer com a sua literatura não se
sabe!
É para que o público os conheça. É preciso que saiba quem é que está lendo”.231

228
Stèphene Mallarmé, “Prose pour un dragueur”, in Recherches, trois milliards de pervers : grande
encyclopédie des homosexualités, Fellix Guattari (dir.), 1973.
229
Palavra espanhola, que significa : indecentes, obscenos, imorais.
230
Espaço deixado por preencher pelo autor.
231
Sensacionismo e outros ismos, pp. 61-62.
Apesar do escândalo dos números um e dois da revista Orfeu, Fernando Pessoa
pretendia continuar, e para o número três da revista pretendia publicar mais textos que
continuariam a provocar escândalo. Numa carta a Armando Côrtes Rodrigues, Fernando
Pessoa falou-lhe do plano para o número três da revista Orpheu :

“Vai sair o Orpheu 3. É aí que, no fim do número, publico dois poemas ingleses
meus, muito indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra. Outra colaboração do
número: Versos do Camilo Pessanha232 (a propósito, “não cite isto a ninguém”), versos
inéditos do Sá-Carneiro, A Cena do Ódio do Almada Negreiros que está atualmente
homem de génio em absoluto, uma das grandes sensibilidades da literatura moderna,
prosa do Albino de Menezes233 (não sei se v. conhece) e, talvez, do Carlos Parreira,234 e
uma colaboração variada do meu velho e infeliz amigo Álvaro de Campos. (…)235

Os poemas ingleses a que Fernando Pessoa se refere nesta carta são o poema
homoerótico Antínoo, e o poema Epitalâmio. Estes poemas não foram publicados no
número três da revista Orfeu, pois essa revista não voltou a ser editada, mas sim
separadamente, em Lisboa, em 1918. O poema de Almada Negreiros, Cena do Ódio, de
que também fala esta carta, tem alguns versos de conteúdo homossexual. Outra
colaboração prevista para o número três da revista Orpheu , a de Álvaro de Campos, era
o poema Saudação a Walt Whitman , poeta homossexual que Fernando Pessoa exalta
neste poema, e que contém também alguns versos com conteúdo homossexual. Para o
terceiro número da revista Orpheu existe também um projeto que foi feito por Mário de
Sá Carneiro, a partir de uma carta de Fernando Pessoa, em 31-8-1915, na sua resposta a
essa carta :

232
Camilo Pessanha (1867-1926), jurista e poeta , considerado o maior representante do Simbolismo
português. Vivia em Macau, e por razões de saúde vinha algumas vezes a Lisboa, tendo sido então
apresentado a Fernando Pessoa.
233
Albino de Menezes, (1884-1949), literato madeirense, desde muito cedo colaborou na Imprensa do
seu tempo. Em 1913 teve contactos com a Geração de Orpheu, tendo conhecido Fernando Pessoa, e foi
para o número 3 da revista Orpheu que escreveu o conto Após o rapto.
234
Carlos Frederico Parreira (1890-1955), poeta e escritor. Fernando Pessoa tinha na sua biblioteca os
seguintes livros deste autor : Sonetos : primeiro livro , Lisboa, Ed. Tipográfica Universal, 1905; A
esmeralda de Nero : rezas d’espuma e de sarcasmo , Porto, Ed. Renascença Portuguesa, 1915; Santa
Rita Pintor : in memoriam , Lisboa, Ed. Imprensa de Manuel Lucas Torres, 1919; Bizâncio , Lisboa, Ed.
Bertrand, 1920.
235
Correspondência 1905-1922, pp. 219-221.
“ORPHEU 3
- Fernando Pessoa : Poemas (15 páginas).
- Álvaro de Campos : A Passagem das Horas (15 páginas).
- M. de Sá Carneiro : Para os Indícios de Ouro, II série (10 páginas).
- N’uma de Figueiredo : Pilherias em francês (5 páginas).
- António Bossa : Pederastias (8 páginas).
- Albino de Menezes : Após o rapto (10 páginas).
- Almada Negreiros : Cena do Ódio (10 páginas)”.236

Nesta lista de autores, além do heterónimo Álvaro de Campos, constam nomes


de literatos e amigos de Fernando Pessoa. No que diz respeito aos textos propriamente
ditos, há a destacar : Pederastias, um grupo de poemas em prosa, de autoria de um
amigo de Almada Negreiros, onde ele falaria de diversos tipos de homossexualidade
(pederastias está no plural). O número três da revista Orpheu não chegou a ser editado,
devido ao facto do pai de Mário de Sá Carneiro não continuar a financiar a edição da
revista. Apesar disso, tanto a carta de Fernando Pessoa a Armando Côrtes Rodrigues,
como o texto de Mário de Sá Carneiro para esse número da revista, revelam que a
homossexualidade era um tema para se continuar a abordar, principalmente os poemas
Pederastias. Sá Carneiro, na sua carta de 31 de Agosto de 1915 a Fernando Pessoa,
revela interesse nessa temática para a revista Orpheu, e escreveu o seguinte : “Urge
obtê-la, mesmo por fraca”.

Embora não tenha sido publicado mais nenhum número da revista Orpheu, ao
longo da sua vida Fernando Pessoa continuaria a elogiar esta revista, e a lamentar a sua
perda, mas ao mesmo tempo a dizer que Orpheu não tinha morrido, pois Orpheu não
tinha sido apenas uma revista, mas também um conceito, um estado de espírito e um
modo de vida que permanecia : “Cá estamos sempre. Orpheu acabou. Orpheu continua”.
237

O EMPENHO EM DEFESA DA “LITERATURA DE SODOMA”

236
Sensacionismo e outros ismos, p. 25.
237
Textos de Crítica e de Intervenção . Lisboa: Ática, 1980, p. 227.
Entre 1922 e 1923, ocorreu em Lisboa uma grande polémica, então denominada
depreciativamente “Literatura de Sodoma”. A palavra “Sodoma” é uma referência a um
episódio da Bíblia Sagrada, em que a cidade de Sodoma foi castigada supostamente
devido ao facto de os seus habitantes praticarem a homossexualidade, embora essa
passagem da Bíblia (Gén., 18-19) dê azo a muitas interpretações, e alguns teólogos
contemporâneos tendam a encará-la de outra maneira, afirmando que a origem desse
castigo foi a falta de hospitalidade dos habitantes de Sodoma, e não a
homossexualidade, conforme aliás vem numa outra passagem da Bíblia.238
A polémica da chamada “Literatura de Sodoma” foi desencadeada em 1922,
pela publicação na editora Olissipo, de Fernando Pessoa, do livro de poemas
homoeróticos Canções, de autoria de António Botto, polémica essa que aumentou com a
edição do livro de poemas lésbicos Decadência, de autoria de Judith Teixeira, em 1923,
já com a discussão instalada e inflamada pelo texto Sodoma Divinizada, em defesa da
homossexualidade, de autoria de Raúl Leal, publicada no mesmo ano. Algumas livrarias
de Lisboa expuseram estes três livros, que chamaram a atenção do público, e a sua
publicação também foi notícia nos jornais, de forma negativa. Assim, em 18 de Abril de
1922 foi publicada uma recensão crítica sobre o livro Canções, escrita por Armando
Ferreira, na primeira página do jornal A Capital, que consistia num texto da primeira
página com o cabeçalho “O livro da D. Antónia” e a manchete excitada “‘Canções’… a
ele!”, seguida pelo subtítulo que perguntava, “Ânsia de reclame ou descalabro moral?”
No seu artigo o autor referia-se a António Botto no feminino, chamando-lhe “Dona
Antónia”, e mostrava-se surpreendido pelo facto de as autoridades Governamentais
terem permitido a publicação desse livro.
No entanto, a discussão propriamente dita iniciou-se nas páginas da revista
literária Contemporânea, com artigos de Fernando Pessoa e um artigo do jornalista
católico monárquico Álvaro da Maia : Literatura de Sodoma, o Sr. Fernando Pessoa, e
o ideal estético em Portugal. A polémica prosseguiu em folhetos publicados pelos
próprios e alargou-se para além dos círculos literários, com as posições tomadas pela
Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa no jornal A Época, que era uma Associação
formada principalmente por alunos da Faculdade de Ciências, e que tinha como

238
De acordo com o Livro da Sabedoria, 19:13, o pecado de Sodoma era um "ódio amargo de estranhos"
e "fazer escravos de convidados que eram realmente benfeitores". O livro de Ezequiel, 16:48–49, atesta
que "esta era a culpa de sua irmã Sodoma: ela e suas filhas tinham orgulho, excesso de comida e
próspera facilidade, mas não ajudavam os pobres e necessitados".
dirigente Pedro Theotónio Pereira, presidente da Associação Académica da Faculdade
de Ciências, que viria a ser diplomata e ministro do Estado Novo .
A Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa lançou um manifesto contra a
‘literatura de Sodoma’, intitulado : Aos poderes constituídos e a todos os homens
honrados de Portugal, propondo-se impedir a divulgação desses e de outros livros de
conteúdo homossexual. Theotónio Pereira, em entrevista ao jornal A Época, falou da
necessidade de uma “obra de higiene moral e social”, perante aquilo que ele considerava
ser a passividade das autoridades sobre essas publicações. O ataque não se limitava aos
poetas e às suas obras, pois Theotónio Pereira dizia-se preparado para, com cerca de
trezentos estudantes, “meter na ordem esses equívocos senhores”, com “maneiras
femininas e elegâncias ridiculamente exageradas” que frequentavam as ruas e os cafés
de Lisboa, e garantiu que as livrarias seriam “fiscalizadas” para erradicar aquilo que
Theotónio Pereira considerava ser as obras “dos artistas decadentes , dos poetas de
Sodoma”, e ameaçou que os próprios estudantes se encarregariam de exercer uma
“rigorosa censura nos teatros e cinemas”.239
Theotónio Pereira e a Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa não se ficaram
pelas palavras, pois percorreram a baixa de Lisboa distribuindo panfletos em cafés,
casas de chá e livrarias, exigindo a repressão “implacável” contra “os baixos instintos
humanos”. A seu pedido foram recebidos pelo Governador Civil de Lisboa, que então
ordenou a proibição dos livros, mas os estudantes ainda voltaram à baixa de Lisboa
mais tarde, em protesto, devido à resistência das livrarias em retirarem esses livros da
comercialização. A pressão exercida por esse grupo de estudantes sobre o Governador
Civil de Lisboa levou não apenas à apreensão de Canções, de António Botto, de
Decadência, de Judith Teixeira, e de Sodoma Divinizada, de Raúl Leal, mas a um
posterior busca de outros livros de uma lista “de obras nacionais e estrangeiras que
deviam ser objecto da solicitude da autoridade competente”. Entre os objetivos da Liga
de Ação dos Estudantes de Lisboa, conseguiu-se a proibição da venda dos referidos
livros nas livrarias. Após a proibição, os livros foram de novo vendidos nas livrarias, e
contra isso se insurgiu Marcello Caetano no jornal A Nova Ordem já em 1926 (três anos
depois dos acontecimentos), num artigo intitulado “Arte sem moral nenhuma”, em que
atacou as Canções de António Botto, Sodoma Divinizada, de Raúl Leal, e “um livro de
grande formato intitulado Decadência, duma desavergonhada chamada Judith Teixeira”.

239
Jornal A Época , Lisboa, edição de 22 de Fevereiro de 1923.
Ora, o que é surpreendente em tudo isto é o empenho de Fernando Pessoa, em
defesa da “literatura de Sodoma”. Fernando Pessoa era um homem tímido, muito
recatado, nunca alinhava em manifestações e protestos, e nos jornais publicava apenas
artigos de literatura, que aliás pouco impacto causavam. Fernando Pessoa recusava-se a
identificar-se com qualquer grupo ou movimento, e nunca manifestava publicamente
nenhuma posição. A sua defesa da “literatura de Sodoma” foi a única causa em que se
empenhou, com excepção de um artigo que escreveu num jornal em defesa da
Maçonaria, mas não com tanta dedicação em defesa de uma causa como a da “literatura
de Sodoma”. Nunca na sua vida Fernando Pessoa se empenhou tanto na defesa de uma
causa como a da literatura homossexual, desde logo visível no facto de ter publicado na
sua editora Olissipo a segunda edição (uma edição mais completa), do livro de António
Botto, Canções. A segunda edição das Canções tinha também uma foto de António
Botto, com os ombros nus, que Fernando Pessoa achou bem publicar. Além disso,
Fernando Pessoa imprimiu um folheto na sua editora Olissipo, com um texto em defesa
do livro, e distribuiu esse folheto para promoção do livro, e chamou à fotografia meio
erótica de António Botto, que ocupava uma página inteira do livro, “um elemento
notável de educação estética”. 240
Fernando Pessoa escreveu vários textos em defesa de António Botto, a
propósito da polémica da “literatura de Sodoma, que não chegou a publicar, alguns
deles repetitivos em algumas ideias, onde se nota uma grande preocupação de
aperfeiçoamento constante desses textos.241 No entanto, um desses textos foi publicou-o
na revista Contemporânea (vol. I, nº. 3), em defesa de António Botto, intitulando-o :
António Botto e o ideal estético em Portugal, onde justifica a poesia homoerótica de
António Botto com base nos ideais estéticos da Grécia antiga, e que teve a reação do já
referido artigo de Álvaro da Maia.
Raul Leal escreveu também um manifesto : Uma lição de moral aos estudantes
de Lisboa e o descaramento da Igreja católica, criticando os estudantes que tinham
causado a apreensão do seu livro Sodoma divinizada. Os estudantes responderam com
cerradas críticas a Raul Leal, também sob a forma de um manifesto, provavelmente uma
folha volante. Em resposta aos estudantes, Fernando Pessoa entrou outra vez em ação,
pois escreveu e publicou um panfleto, em folha volante assinada com o seu próprio
nome, a que deu o título Sobre um manifesto de estudantes. Neste panfleto Fernando
240
Espólio de Fernando Pessoa, 135 C/28.
241
Confirmar na antologia organizada por Victor Correia, Homossexualidade e Homoerotismo em
Fernando Pessoa , pp. 295-336.
Pessoa defendeu fervorosamente Raul Leal, acusando os estudantes de má fé e de
deturpação do livro Sodoma divinizada, e considerava ser uma estupidez a atitude dos
estudantes. É importante notar que Fernando Pessoa enviou exemplares desse seu
folheto a mais de duzentos indivíduos : jornalistas, intelectuais, cientistas, artistas,
historiadores, professores universitários, oficiais do exército, advogados, deputados,
políticos, incluindo ao próprio presidente da República e aos bispos de Portugal. 242
Fernando Pessoa chegou mesmo a projetar redigir algo mais desenvolvido, um
Protesto Público 243
e um Protesto extensivo 244
contra a apreensão das Canções de
António Botto, e da Sodoma divinizada de Raul Leal, projetos esses que ficaram por
concretizar, provavelmente devido a dificuldades económicas na sua editora Olissipo, e
devido ao facto de Fernando Pessoa não ter quem os publicasse O espólio de Fernando
Pessoa contém dezenas de páginas de rascunhos para esse projecto, onde fala do papel
da Igreja e dos estudantes, das autoridades e da Imprensa, na polémica em torno da
“literatura de Sodoma”. Nos rascunhos desses projetos para os seus protestos públicos,
Fernando Pessoa pretendia também debater o problema da moralidade ou imoralidade
da homossexualidade, e defender a sua não imoralidade.
Mas o facto de não ter publicado esses manifestos, não significa que Fernando
Pessoa tivesse desistido da sua luta, pois através do seu heterónimo Álvaro de Campos
escreveu também e publicou um texto em defesa da “literatura de Sodoma”, intitulado
Aviso por causa da moral, chegando mesmo a redigir duas versões desse texto, em que
recomendava aos estudantes para se divertirem com mulheres ou com homens, pois
segundo ele, “tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte”. 245 Depois
dos estudantes da Liga de Ação dos estudantes de Lisboa terem acalmado e a “literatura
de Sodoma” ter deixado de ser notícia, Fernando Pessoa voltou a distribuir as Canções
de António Botto e a Sodoma divinizada de Raul Leal, nas livrarias de Lisboa, mas a
Polícia confiscou outra vez os exemplares desses livros que encontrou à venda,
passando a sua venda, nos meses seguintes, a fazer-se clandestinamente.

242
Espólio de Fernando Pessoa, 48D/60-65; 75-71v. Ver José Barreto, “Os destinatários dos panfletos
pessoanos em1923”, Pessoa Plural, Outono de 2016, p. 245.
243
Espólio de Fernando Pessoa, E3, 55 D-11.
244
Espólio de Fernando Pessoa, 55D‐18v.
245
Obra Completa de Álvaro de Campos, p. 429 e 677.
O empenho de Fernando Pessoa em editar essas obras homoeróticas, em
escrever, publicar textos em sua defesa, e em distribuir e enviar panfletos em
contestação ao movimento estudantil, foi uma defesa da orientação sexual de cada
indivíduo (utilizando a literatura como um pretexto). O conteúdo e o tom dos seus
escritos em defesa da “literatura de Sodoma” foi de grande indignação pela proibição
dessa literatura, uma indignação nunca vista em Fernando Pessoa. Com esse seu
ativismo literário, Fernando Pessoa defendeu a publicação e a aceitação de livros de
conteúdo homossexual. Tendo defendido com tanto interesse e empenho essa causa,
defendeu algo que também lhe dizia respeito : a sua própria homossexualidade.

LIVROS QUE FERNANDO PESSOA PRETENDIA ESCREVER

UM LIVRO EM DEFESA DA HOMOSSEXUALIDADE

Fernando Pessoa fez diversas listas com projectos de livros que pretendia
escrever. Alguns projectos tinham apenas título, mas para outros chegou mesmo a
escrever textos que ficaram incompletos, pequenos textos e esboços. Um desses
projetos, para o qual chegou mesmo a escrever pequenos textos, é um livro em defesa
da homossexualidade, textos esses que citamos seguidamente. Parecem ser textos de
introdução ao tema da homossexualidade, cuja defesa pretendia fazer. Fernando Pessoa
elaborou uma sequência de três pequenos textos, diferentes mas parecidos.
Conforme se pode ver na alínea “a” do terceiro texto desta sequência, Fernando
Pessoa pretendia escrever não um artigo, mas sim uma obra sobre o tema da
homossexualidade, o que revela a importância que Fernando Pessoa dava a essa matéria.
No entanto, como sucedeu com muitos outros projetos, não chegou a concretizá-lo. Eis
o que escreveu para esse seu projecto :

Texto I
“Existe na nossa civilização um preconceito e um juízo comum, de que a
homossexualidade é imoral, e de que, portanto, deve ser combatida e extirpada.
Proponho-me demonstrar que esse preconceito é injusto, que a
homossexualidade não é imoral, e que, portanto, não há mister que se combata, ou
que se promova a sua extirpação.
Demonstrarei, por fim, qual a origem deste preconceito falso”.246

Texto II
“Proponho-me demonstrar que a homossexualidade não é imoral. E, como a
expressão imoral designa um ato ou uma função que ou (1) é contrária à natureza, isto é,
ao estádio de evolução orgânica a que pertence quem o pratica ou a exerce, ou (2)
imediatamente prejudicial, embora natural, à sociedade onde se pratica ou onde vive
quem a exerce, ou ainda (3) prejudicial a essa sociedade, não já imediatamente, senão
mediatamente, pela indução de outros atos ou de outras funções que, eles ou elas são já
mais prejudiciais; como a expressão imoral designa estes atos ou outras funções, a
demonstração de que a homossexualidade não é imoral desdobra-se na de que não é
nenhuma destas três manifestações, pelas quais o imoral se define.
São estes, por certo, os únicos critérios científicos da imoralidade, porque o são
da moralidade .† 247
Pode, é certo, haver critérios religiosos ou metafísicos, que se
arroguem direitos de juízo moral. Porém, as formulações 248 desses critérios ou
concordam ou não concordam com aquelas 3 determinações. Se concordam, é inútil que
consideremos a moral religiosa ou metafísica, quando as consideremos implicitamente
na consideração do científico; se discordam, é que são inócuos esses critérios religiosos
ou metafísicos, e inaptos, portanto, para que à luz deles ajuizemos acertadamente.
Demonstraremos, 1.º, que a homossexualidade não é contra a Natureza. Isto é,
demonstraremos que é natural no estádio evolutivo em relação ao qual a consideramos,
isto é, no estádio evolutivo presente da humanidade. Não nos referimos a estádio
evolutivo social, só; reportamo-nos às sociedades civilizadas em geral, e não a umas em
particular, espécie esta de género”.249

Texto III250
a) Razão da obra

246
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 55 D – 21 (texto sem data).
247
Palavras ilegíveis no manuscrito, assim como nos outros espaços destes textos onde colocamos este
sinal.
248
Palavra conjeturada (espaço em branco deixado pelo autor).
249
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 55 D-32 (texto sem data).
250
Texto com algumas palavras difíceis de entender e outras conjecturadas.
[← Proposição] b) Proponho-me demonstrar que a homossexualidade não é
imoral por [↑ à luz de] nenhum conceito que cientificamente se possa fazer da
moralidade. Demonstrando isso, quedará demonstrado que, guardadas certas reservas
que adiante se especificarão, a expressão literária e artística da homossexualidade
também não é imoral. E o corolário natural é que nada há que moralizar, /pois que/ [↑
onde] nada há de imoral.
[← Definição de †] c) Defino, pois, o termo homossexualidade. Definindo-o,
esclarecerei em que espécies se divide, e colocarei o problema em termos que a sua
análise [↑ †] †. <†> [↑ †] Defino, em seguida, para evitar mal-entendidos, os conceitos
de moral e de imoral e os seus conteúdos. <† †> Entro, então, no campo da
demonstração, propriamente tal. [↑ Finda ela,] Concluirei, como em todos os problemas
cuja análise essencial está finda, pela † dos corolários que nascem das conclusões a que
se chegou. Com esse percurso terei chegado ao fim da demonstração”. 251

Porque razão Fernando Pessoa não chegou a concretizar este seu projeto ?
poderá supor-se que terá sido devido ao ambiente salazarista em que se vivia, que o
proibiria, mas este projeto não tem data, por isso poderá ser um projeto feito antes da
subida de Salazar ao poder. Pode ter sido um projeto que tinha pensado e redigido antes,
pois se publicou as Canções de António Botto, e a Sodoma divinizada de Raul Leal,
assim como o seu poema homoerótico Antínoo, também poderia ter publicado esse
livro. Provavelmente este seu projeto surgiu-lhe na sequência da polémica com a
“literatura de Sodoma”, que tinha sido proibida e apreendida pelo Governo Civil de
Lisboa, e Fernando Pessoa não queria aumentar a polémica, por isso acabou por não
escrever este livro em defesa da homossexualidade. Poderá também ser devido ao facto
de não ter dinheiro para o publicar, levando-o a abandonar esse projeto, mas Fernando
Pessoa não precisava de dinheiro para escrever, e mesmo sem a perspetiva de
publicação, escreveu muitos textos, alguns deles extensos, que não sabia se alguma vez
viria a publicar, ou escrevia-os na mesma, pensando publicá-los um dia mais tarde. No
entanto, tendo em conta o que sucedeu com muitos outros projetos, um factor que
devemos ter em conta era a sua dispersão na escrita, pois pensava em muitos projetos,
começava-os mas não os acabava, e outros nem sequer os iniciava, ficando apenas
registados em listas de projetos, ou fazia apenas o seu esboço, ou escrevia apenas
251
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 55 D-36 (texto sem data).
algumas coisas para esse livro, como sucedeu com o livro de que falaremos
seguidamente.

UM LIVRO DE POEMAS HOMOERÓTICOS : LIVRO DO OUTRO AMOR

No espólio de Fernando Pessoa, entre as muitas listas de projetos de artigos e de


livros que pretendia escrever, encontra-se também um projeto de um livro de poemas
homoeróticos, intitulado : Livro do outro amor . Esse projeto está junto de outros
projetos, cuja lista Fernando Pessoa elaborou, e que é a seguinte :

“1.Paues (Poemas intersecionistas).


2.Livro do Outro Amor.
3.Poemas Descida ao Inferno.
4.Poemas sepultos.
5.Três poemas.
6.D. Sebastião”. 252

A designação O outro amor já tinha sido empregue por outros escritores. Assim,
Jacques d’Adelswärd-Fersen , fundador e diretor da revista da revista Akademos, que foi
a primeira revista homossexual publicada em França, fala de “l’Autre Amour” no seu
primeiro número, surgido em 15 de Janeiro de 1909 (p. 68), designação essa que
continuaria a ser empregue por outros escritores, muito depois de Fernando Pessoa ter
falecido. Por exemplo, o escritor Montgomery Hyde, foi autor da obra : O outro amor :
uma pesquisa histórica e contemporânea da homossexualidade na Grã Bretanha, uma
obra editada em 1970, que defendia a despenalização da homossexualidade. Essa
designação aparece não apenas em livros mas também em filmes/documentários, como
por exemplo o famoso documentário O outro amor, transmitido em 1988, na antiga
República Democrática Alemã (RDA), realizado por Helmut Kibling e Axel Otten, no
qual vários homossexuais alemães testemunharam sobre a sua homossexualidade.
O Livro do outro amor era um ambicioso projeto literário de Fernando Pessoa,
no qual ele pretendia incluir um longo poema intitulado : Morte de Antínoo, cujo tema
acabou por escrever, em poesia, mas em Inglês, e publicar mas sem ser para esse livro

252
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 144 D – II
(referimo-nos ao poema Antínoo). No entanto, Fernando Pessoa chegou a escrever
alguns poemas para a obra Livro do outro amor, cujos títulos indicamos pelo primeiro
verso de cada um deles: “Com que fúria ergo a ideia dos meus braços”; 253 “Como um
poeta do amor antigo”;254 “Amem outros a graça feminina”.255 É possível que de outros
poemas homoeróticos que escreveu, alguns se destinassem ao Livro do outro amor, mas
nunca chegou a terminar esse livro e a publicá-lo, tal como não terminou nem publicou
muitos outros projetos literários. Seja como for, o objetivo de escrever e publicar um
livro de poemas especificamente homoeróticos, revela o interesse de Fernando Pessoa
por este tema, a sua identificação com ele, e provavelmente também o seu desejo de
promover uma maior compreensão e simpatia para com o amor entre pessoas do mesmo
sexo.
A título de curiosidade, deixamos aqui um dos poemas que Fernando Pessoa
escreveu para fazerem parte desse seu livro, poema esse que ficou inédito, e que só foi
publicado muitos anos depois dele ter falecido :

“Com que fúria ergo a ideia dos meus braços


Para a ideia de ti! Com que ânsia bebo,
Os olhos pondo em teus sonhados traços,
Todo o fêmea em teu corpo de mancebo!

Teu hálito sonhado até cansaços


Como em meu vivido hálito recebo!
Ó carne que sonho és tantos laços
Para mim! Deus-deus, Vénus-Efebo!

Ó dolorosamente só sonhado!
Soubesse eu o feitio exterior e o jeito
Em gestos e palavras e perfeito

As palavras a dar a este pecado


253
Poesia 1902-1917, p. 170 (poema de 22-04-1913)
254
Poesia 1902-1917, pp. 174-177 (poema de 14 de Maio de 1913)
255
Poesia 1902-1917, p. 66 (poema de 3 -09 -1914)
De só pensar em ti, de ter o peito
Opresso em pensar-te entrelaçado!” 256

OUTROS PROJECTOS SOBRE HOMOSSEXUALIDADE E DE CONTEÚDO


HOMOERÓTICO

Os interesses de um autor também se revelam através das suas listas de projetos,


mesmo que alguns desses projetos não se tivessem chegado a concretizar. Conforme já
referimos, Fernando Pessoa escreveu várias listas de projetos de textos e de livros,
algumas listas muito desenvolvidas. Muitas dessas listas foram escritas numa folha à
parte, separadas de outros textos, em que Fernando Pessoa lhes deu portanto um lugar
de destaque. Algumas dessas listas são projetos para contos, poemas, ou ensaios, sobre a
homossexualidade ou de conteúdo homoerótico. Provavelmente, noutras listas de
projetos seus, há projetos que também eram para livros ou textos sobre a
homossexualidade ou de conteúdo homoerótico. Só sabemos que têm a ver com a
homossexualidade ou com o homoerotismo, através da sua designação nos projetos.
Não sabemos nestes casos se eram para livros ou para textos mais curtos (textos como
artigos de revista). Como sucedeu com muitos outros projetos, não os chegou a
escrever, mas estão registados no seu espólio, nas listas de textos ou livros que pretendia
escrever. Eis alguns desses projetos :

Crónicas anormais : Elogio dos castos, dos pederastas e dos masturbadores.257


Panfletos e opúsculos : Sobre a necessidade de criar lupanares masculinos.258
Teatro estático : As Cousas259
Decadência : A sintomatologia social. (Assim como uma sociedade se pode
distinguir por certos sentimentos, porque não por certas formas anormais desses
sentimentos ?) 260

256
Poesia 1902-1917, p. 170
257
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 48 B –2. Este projeto aparece também numa lista de projetos sem
título, no espólio de Fernando Pessoa, cuja cota é a seguinte : BNP, 48 H – 43
258
Obras de Jean Seul de Méluret , pp. 42-44
259
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 48 I – 1
260
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 48 B – 3
Projetos sem título : Os colhões; enraba-se a si mesmo261
Projetos sem título : Defence of Oscar Wilde (Defesa de Óscar Wilde)262
Revista Orpheu (nº. 3) : António Bossa,263 Pederastias264

Para estes projetos, Fernando Pessoa escreveu pequenos textos com esboços e
tópicos sobre o que pretendia dizer. Para o Elogio dos castos dos pederastas e dos
masturbadores, encontra-se no seu espólio um fragmento que diz o seguinte :
“A vida sexual é a base de toda a vida, por isso, para uma vida anormal, como é
a vida artística ou literária ou científica, é preciso uma anormalidade basilar, sexual
portanto.
Consoante a anormalidade literária ou artística, assim deve ser a basilar
anormalidade sexual”. 265

A palavra “pederastas” era empregue por Fernando Pessoa como designação


para os homossexuais a nível geral, conforme se pode ver no capítulo deste livro,
intitulado : Designações dadas à homossexualidade e a sua utilização por Fernando
Pessoa. Fernando Pessoa associa os pederastas aos artistas, e vice versa, conforme se
pode ver aliás no capítulo deste livro, intitulado : Metáforas homoeróticas .
Existe também no espólio de Fernando Pessoa um pequeno texto intitulado
Sobre a necessidade de criar lupanares masculinos, que era certamente para o projeto
de um texto do mesmo nome, ou sobre essa matéria, projecto esse que atrás citámos.
Esse pequeno texto diz o seguinte :

“Estou certo de que os nossos meios, na sua grande maioria – e é o que


democraticamente importa, se fossem consultados concordariam todos comigo na
necessidade desta instituição sexual”.266

261
Escritos sobre génio e loucura, tomo II, p. 548
262
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, anexo do fragmento 14 E-64, p. 554.
263
Este texto não era para ser escrito por Fernando Pessoa, mas sim por um amigo de Almada Negreiros.
No entanto, era também um projeto desejado por Fernando Pessoa para a sua revista Orpheu, por isso
também o incluímos, por fazer parte dos projetos.
264
Sensacionismo e outros ismos, p. 25
265
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 133 G-88
266
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 55 A – 14
Os lupanares eram os bordéis na Roma antiga, cuja designação tem como
origem o bordel mais famoso que existia na antiga cidade romana de Pompeia, e que
tanto podiam ser para indivíduos de diferentes sexos, como para indivíduos do mesmo
sexo, e que aplicado à homossexualidade eram algo semelhante às saunas de hoje, em
edifícios onde além de se praticar sauna propriamente dita se pratica também sexo (há
saunas mistas, mas as de maior número são as saunas masculinas). Os lupanares
masculinos seriam portanto as saunas de hoje. Os “nossos meios”, de que Fernando
Pessoa fala no texto atrás citado, seriam algo equivalente àquilo que hoje se designa
como “comunidade homossexual” (embora nem todos os indivíduos da chamada
“comunidade homossexual” apreciem ou frequentem saunas).
Em relação ao projeto As Cousas, um projeto para uma peça de teatro com o
mesmo título, que Fernando Pessoa também não chegou a escrever, existe no espólio de
Fernando Pessoa um pequeno texto, com esse título, onde ele diz o seguinte :

“Os homens são os meus prisioneiros. Os corpos deles são os braços com que os
prendemos… A beleza é a cadeia de ouro da nossa tirania.
Os homens mexem-se. Não são reais. Eles mesmos provam que o movimento
não existe”.267

Em relação ao projeto Decadência , Fernando Pessoa não chegou a escrever


nenhum texto ou livro especificamente para ele, mas há vários textos de Fernando
Pessoa que falam do tema da decadência, no sentido homoerótico, conforme se pode ver
no capítulo deste livro : Metáforas homoeróticas. A frase que Fernando Pessoa
acrescentou a este título dos seu projetos, é reveladora da sua ligação à
homossexualidade, e ao seu hábito de associar literariamente e não pejorativamente a
palavra “decadência” à homossexualidade : “Assim como uma sociedade se pode
distinguir por certos sentimentos, porque não por certas formas anormais desses
sentimentos” ?
Em relação ao projeto sobre Óscar Wilde, no seu diário de 18 de Fevereiro de
1913, Fernando Pessoa escreveu : “ Esbocei o folheto sobre Óscar Wilde”. 268
Dado que
neste ano ainda não tinha surgido a polémica com a chamada Literatura de Sodoma,
devido ao livro Canções de António Botto, que só viria a ser publicado em 1922, no seu

267
Teatro estático, p. 111
268
Escritos autobiográficos, automáticos, e de reflexão pessoal, páginas 25-37 (diário de 1906).
diário Fernando Pessoa referia-se certamente a um outro projeto sobre Óscar Wilde :
Concerning Oscar Wilde (“Sobre Óscar Wilde”). Há mais de quinze fragmentos sobre
Óscar Wilde, no espólio de Fernando Pessoa, que eram para este livro, que foram
escritos por Fernando Pessoa ao longo de mais de dez anos. No entanto, num deles
Fernando Pessoa revela o que pretende ao escrever aquilo que seria provavelmente o
livro Defesa de Óscar Wilde, devido à homossexualidade deste escritor, à semelhança
dos vários textos que Fernando Pessoa escreveu em defesa de António Botto e Raul
Leal. O texto diz o seguinte:

“Depois da mesma demonstração com António Botto, mostrar que, devido ao


ambiente que o rodeava, Óscar Wilde reprimiu a sua tendência invertida nas suas obras,
o que fez com que ela surgisse com mais força na sua própria vida, onde essa tendência
talvez não tivesse aparecido se Óscar Wilde não a tivesse reprimido nas suas obras.
(Mas isto requer análise).
Até que ponto a revelação da inversão se deveu ao seu casamento ?” 269

Tal como aconteceu com muitos outros projetos de livros e artigos, Fernando
Pessoa não os desenvolveu nem publicou. No entanto, há que salientar aqui essa sua
intenção, e sobretudo o seu interesse por esses projetos e por esses temas.

O ESPECIAL INTERESSE POR ESCRITORES HOMOSSEXUAIS


E OBRAS DE CONTEÚDO HOMOERÓTICO

WILLIAM SHAKESPEARE

Entre os escritores pelos quais Fernando Pessoa se interessou, alguns deles eram
homossexuais, e é desses que pretendemos agora falar. Fernando Pessoa comprou, leu e
sublinhou as obras dos seguintes escritores homossexuais : Shakespeare, Tennyson,
Leopardi, Shelley, Byron, Whitman, Verlaine, Rimbaud, Wilde, etc. Deu importância a
vários aspetos da sua personalidade, pois como afirma Pessoa, é difícil separar o escritor

269
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, p. 309.
do indivíduo, e o indivíduo do escritor, nomeadamente em certos escritores tais como
Shakespeare, Walt Whitman, e Óscar Wilde, que são os principais autores estrangeiros
admirados por Fernando Pessoa, por isso falaremos apenas destes três. Sobre o
primeiro destes três escritores, e que é válido também para os outros dois escritores
homossexuais, Fernando Pessoa afirma o seguinte :
“Na personalidade tudo se liga, se inter-relaciona. Não podemos separar, salvo
por um processo analítico conscientemente truncador da realidade, na personalidade de
Goethe,270 por exemplo, a modalidade específica da sua ideação literária e a tendência
alucinativa que, como se sabe, obriga a autoscopia externa; nem podemos separar na
personalidade de Shakespeare a intuição dramática de, por exemplo, a inversão
sexual”.271

Shakespeare é o autor mais referido e comentado por Fernando Pessoa ao longo


da sua vasta obra, a propósito de diversos assuntos, e Fernando Pessoa pretendia
traduzir cerca de uma dezena das suas obras. 272 Falou muito sobre Shakespeare nas suas
análises literárias e noutras, e ao falar de Shakespeare deu também importância à
homossexualidade deste poeta, referindo-se a ela indiretamente, por exemplo quando no
seu poema homoerótico Sei que desprezarias, não somente referiu-se àquilo a que
chama “o vício de Shakespeare”273. Mas Fernando Pessoa também falou diretamente da
homossexualidade de Shakespeare: “Do poeta sabe-se alguma coisa. Sabe-se que é
jurisconsulto, sabe-se que é invertido”.274 , ou falou dela mais ou menos diretamente :
270
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), escritor alemão, um das figuras máximas do Romantismo,
cuja obra literária está muito marcada pelo tema da infelicidade no amor. Embora na sua obra literária
exista o amor entre homem e mulher, existe também o amor entre dois homens, como por exemplo
no poema Ganimedes, ou no poema Fausto, e as suas Elegias Romanas têm sido interpretadas como o
velado relato de um caso de amor homossexual. Nos seus diários, em que relata a sua viagem a Itália,
Goethe descreve a cultura homoerótica com interesse e aprovação. Durante a sua estadia em Itália,
Goethe tornou-se amigo de Karl Philipp Morit (1757-1793), escritor homossexual, que Goethe apelidou
de “meu irmão gémeo infeliz”. Johannes von Müller (1752-1809), famoso historiador suíço, após o fim
da sua relação amorosa com o ensaísta suíço Charles Victor de Bonstetten (1745-1832), ficou
psicologicamente destroçado, e Goethe foi um dos amigos que mais o ajudou. Goethe escreveu um
ensaio biográfico sobre Winckelmann, intitulado Winckelmann and his age, em que discretamente se
refere à homossexualidade deste autor. Há mais alusões ao tema da homossexualidade, por exemplo
nas cartas de Goethe. Para um estudo mais pormenorizado sobre as ligações de Goethe ao tema da
homossexualidade, pode ver-se por exemplo o livro de Karl Hugo Pruys, The Tiger’s Tender Touch : The
Erotic Life of Goethe , Berlin, Ed. Q. , 1999, ou o livro de Alice Kuzniar Outing Goethe and his age,
Stanford, Ed. Stanford University Press, 1996.
271
Escritos sobre génio e loucura, vol. VII, tomo II, pp. 441-442
272
“Carta ao Dr. João de Castro”, Pessoa Inédito, p. 94.
273
Poesia 1918-1930, pp. 58-62
274
Escritos sobre génio e loucura, vol. I, p. 349
“O mesmo cidadão que cuspiu duas vezes na cara de Wilde 275 poderia ter (com toda a
coerência) cuspido dez ou doze na cara do autor dos sonetos de Shakespeare”.276
Fernando Pessoa, numa carta a João Gaspar Simões, lamentou o preconceito em
relação à homossexualidade, da parte de Robert Browning, que ficou a ter menos
consideração por Shakespeare quando ficou a saber que Shakespeare era homossexual :
“A Robert Browning,277 não só grande poeta, mas poeta intelectual e subtil,
referiam uma vez o que havia de indiscutível quanto à pederastia de Shakespeare, tão
clara e constantemente afirmada nos Sonetos. Sabe o que Browning respondeu? “Então
ele é menos Shakespeare!” (If so the less Shakespeare he!). Assim é o público, meu
querido Gaspar Simões, ainda quando o público se chame Browning, que nem sequer
era coletivo”.278
Numa carta a Frank Palmer, ao falar do seu longo poema homoerótico Antinous
Fernando Pessoa refere os sonetos de Shakespeare (que são maioritariamente
homoeróticos) :
“O pior que o número inglês da revista teria é um poema meu, escrito em Inglês,
chamado “Antinous”, do qual lhe mando uma cópia (para evitar esclarecimentos longos
e insatisfatórios). Poderia uma revista ser vendida em Inglaterra com um poema como
este ? Fundamentalmente, ele não é, na realidade, tão “inconveniente” como os sonetos
de Shakespeare, mas nunca ninguém vê alguma coisa fundamentalmente”.279
Num texto literário, a Carta Inorgânica do Estado Independente do Bugio,280
que era um Estado fictício onde segundo Fernando Pessoa os homossexuais também
poderiam viver e casar-se, Fernando Pessoa coloca Shakespeare como um dos
administradores desse Estado :
“Como, segundo o direito moderno, os mortos mandam, serão considerados
administradores deste Estado, além de outros de igual categoria que venham a ser

275
Episódio homofóbico acontecido com Óscar Wilde, numa estação de comboios em Paris.
276
Apreciações literárias de Fernando Pessoa, p. 302.
277
Robert Browning (1812-1889), poeta e dramaturgo inglês, autor de uma vasta obra. Fernando Pessoa
critica o preconceito deste autor, que passou a ter menos consideração por Shakespeare, ao saber que
este era homossexual.
278
Correspondência 1923-1935, pp. 250-253.
279
Correspondência, 1905-1922, pp. 191-192
280
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 92 F-52
oportunamente designados, os cidadãos Quinto Horácio Flaco, 281 Dante Alighieri,282
John Milton,283 João Brandão,284 Conselheiro J. W. von Goethe, 285 William Shakespeare,
e Manuel Peres Vigário”.286
Num dos seus textos autobiográficos, ao falar da sua “inversão sexual fruste”,
Fernando Pessoa fala também de Shakespeare :
“Somos vários desta espécie, pela história abaixo — pela história artística
sobretudo. Shakespeare e Rousseau são dos exemplos, ou exemplares, mais ilustres. E o
meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito — radica-mo a contemplação
de como nesses dois desceu—completamente no primeiro, e em pederastia;
incertamente no segundo, num vago masoquismo”.287
Num dos seus textos sobre literatura, Fernando Pessoa diz também o seguinte
sobre Shakespeare :
“Shakespeare era, pois : 1)- por natureza e na juventude e princípio da idade
viril, um histérico; 2) mais tarde, e em plena idade viril, um histeroneurasténico; 3) no
final da vida, um histeroneurasténico em menor grau;”. 288 Lembremos que Fernando
Pessoa também se considerava a si próprio um histeroneurasténico”. 289
Numa apreciação literária sobre Bernard Shaw, Fernando Pessoa lembra uma
vez mais Shakespeare e a sua homossexualidade :

281
Horácio, poeta latino (65-8 a. C.), autor de alguns poemas homoeróticos, e que foi elogiado por
Fernando Pessoa no poema homoerótico que este escreveu intitulado : Sei que desprezarias não
somente.
282
Dante, poeta italiano (1265-1321), autor da Divina Comédia, e a quem Fernando Pessoa se refere nos
seus textos A verdade acerca de homens como Shaw, António Botto e o ideal estético em Portugal, e
António Botto e o ideal estético criador.
283
John Milton, poeta inglês (1608-1674), foi partidário do Republicanismo, e as suas obras refletem a
sua paixão pela liberdade e pela autodeterminação política. A sua obra Areopagítica, escrita em 1644,
foi escrita em condenação da censura, e foi historicamente uma das defesas mais importantes da
liberdade de expressão e da liberdade de Imprensa.
284
João Brandão, de nome completo João Vítor da Silva Brandão, nasceu em Midões, e 1825, e faleceu
em Bié, Angola, em 1880. Ficou conhecido como chefe bandoleiro, da família dos Brandões, que
formaram com ele um bando político revolucionário, e que tiveram um papel muito interventivo na
causa liberal na região das Beiras.
285
Sobre Goethe e as sua ligações à homossexualidade, ver a anotação sobre este escritor, numa outra
nota de rodapé do presente capítulo deste livro.
286
Manuel Peres Vigário foi uma personagem criada por Fernando Pessoa, num dos seus contos,
publicado pela primeira vez no diário SOL, em Lisboa, em 30 de Outubro de 1926, com o título : Um
grande português. Fernando Pessoa ficcionou a lenda anticlerical do conto do vigário, através de uma
figura por si criada, um lavrador ribatejano, que se aproveitou da ganância alheia, para reagir de modo
fraudulento, tendo no final do conto sido absolvido.
287
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, pp. 186-187.
288
Páginas de estética e de teoria e crítica literárias, p. 302.
289
Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões, p. 71 (carta de 11-12-1931).
“Todos os grandes poetas têm pertencido a uma continuação da mesma tradição
diversificada pelo temperamento. Alguns fizeram-no consagrando a sua individualidade
à erudição requintada; é o caso de Virgílio 290 (erudito na sua própria época), Dante291 e
Milton.292 Outros têm-no feito reunindo na sua individualidade a totalidade da
observação e da experiência; é o caso de homens como Shakespeare e Walt Whitman. A
característica moral definida dos primeiros é a sua seriedade, a sua elevada seriedade,
como diria Matthew Arnold.293 A característica moral definida dos segundos é a sua
amoralidade; tanto Shakespeare como Whitman eram indiferentes aos valores morais,
exceto na medida em que estes eram suscetíveis de serem convertidos em valores
estéticos pela emoção temporária. Diga-se de passagem que ambos eram pederastas”.294
Fernando Pessoa escreveu também um pequeno texto para o prefácio de
traduções que projetava fazer da obra de Shakespeare, onde critica as traduções fracas
que existiam em Portugal, onde fala da sua tradução pessoal, e onde uma vez mais faz
referência à homossexualidade de Shakespeare, chamando-lhe o “chefe dos pederastas”.
O parágrafo é o seguinte :
“(…) Não devo àqueles a quem não devo explicações outra explicação que não
seja esta. Falo em Shakespeareano de propósito, e pressinto ao falar que não me
compreendem. (…) O que o leitor vai ler é o exato translado de Shakespeare para
português. Vai o leitor não perceber nada. É que isto é Shakespeare. O resto é o rei D.
290
Virgílio (70 – 19 a. C.) foi um poeta romano, autor de três grandes obras da literatura latina: as
Éclogas (ou Bucólicas), as Geórgicas , e a Eneida. Virgílio, que nunca se casou, teve relacionamentos
amorosos e sexuais com homens, sendo o mais conhecido o seu caso com um antigo escravo romano,
Alexis. Cinco das Éclogas fazem referências ao relacionamento amoroso e sexual entre homens. A mais
famosa é a segunda écloga, o Corydon, onde se retrata o relacionamento desta personagem masculina
(que muitos intérpretes têm visto como a figura do próprio Virgílio), com o seu escravo. Na Eneida de
Virgílio existe também uma história de relacionamento entre dois homens : Nisus, e Euryalus. Em 1924
André Gide publicou quatro diálogos em defesa da homossexualidade, dando-lhes como título o nome
da famosa obra homoerótica de Virgílio : Corydon. Fernando Pessoa tinha na sua biblioteca a seguinte
obra : The Georgics of Vigil (“As Geórgicas de Virgílio”),org. S.E. Winbolt, London, Ed. Blackie & Son,
1902. Grande parte deste livro encontra-se sublinhado e anotado por Fernando Pessoa, revelando a sua
leitura atenta e o seu interesse por este escritor.
291
Dante Alighieri (1265-1321), escritor, poeta, e político italiano, autor de várias obras, sendo a mais
conhecida A Divina Comédia, de que Fernando Pessoa tinha um exemplar na sua biblioteca, uma edição
em francês (La Divine Comédie) publicada em Paris, em 1905, pela Editora Flammarion.
292
John Milton (1608-1674), poeta e político inglês, autor de diversas obras, sendo a mais conhecida o
Paraíso Perdido. Era partidário do Republicanismo, e as suas obras refletem a sua paixão pela liberdade
e pela autodeterminação política. A sua obra Areopagítica, escrita em 1644, foi escrita em condenação
da censura, e foi historicamente uma das defesas mais importantes da liberdade de expressão e da
liberdade de Imprensa.
293
Mattew Arnold (1882-1888), foi um poeta e intelectual britânico . Exigia da obra de arte a “crítica da
vida” e a “alta seriedade”. Vendo na estreiteza do puritanismo aquilo que considerava ser o grande
inimigo da europeização da cultura inglesa, combateu-o no seu livro Culture and Anarchy (“Cultura e
Anarquia”), um ensaio escrito em 1869, sobre crítica e política social.
294
Heróstrato e a busca da imortalidade, pp. 91-92.
Luiz e os outros.295 Prevejo que criticarão esta versão portuguesa do Chefe dos
pederastas”.296
No texto literário que começa assim: Porque é que as mulheres se detestam
tanto umas às outras ?, Fernando Pessoa diz também o seguinte :
“(…) as relações sexuais entre homens são realmente possíveis. Mas isso é um
requinte da inversão sexual normal em determinado tipo de homem, que, por si, não é
anormal. Shakespeare nos seus Sonetos, apaixonando-se por um mancebo qualquer, foi,
como sempre o grande normal que ele era, o representante supremo do tipo máximo
masculino, o do homem cheio de interesses e atenções para tantas coisas da vida, que
não pode gastar tempo na caça ao prazer sexual normal, e por isso o substitui pelo
prazer sexual dado pela amizade com outros homens levada ao requinte, visto que esses
interesses da sua vida o levarão por certo a lidar mais com homens do que com
mulheres”.297
No seu texto Só o homem pode ser casto, Fernando Pessoa fala também da
homossexualidade de Shakespeare :
“(…) Assim, muito naturalmente, as mulheres detestam a castidade. Sobretudo,
detestam-na mais num homem do que nelas próprias. Elas perdoam a homossexualidade
masculina muito mais facilmente do que a castidade. Esse grande pederasta,
Shakespeare, é um autor de mulheres por excelência. O extraordinário fascínio que
muitos pederastas exercem sobre as mulheres explica-se pela soma de sensualidade,
depravação e resistência à mulher (não sendo ela casta)”.298
Noutro texto, Fernando Pessoa diz também o seguinte aludindo à
homossexualidade de Shakespeare :
“(…) O inglês espontaneamente moralista da era vitoriana, que lia, não só sem
revolta, mas com apreço, as maiores escabrosidades de Shakespeare, faria de um

295
Luís I (1838-1889), rei de Portugal, que ficou conhecido como “O Popular”, devido à grande
admiração que por ele tinha o seu povo. Fez traduções de obras de Shakespeare, de fraca qualidade.
296
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, pp. 260-261.
297
Misoginia e antifeminismo em Fernando Pessoa, p.128.
298
Idem, pp. 134-135.
Dickens299 ou de um Thackeray300 um banido literário e social se ele ousasse sequer
aproximar-se delas. E se o autor hipotético assim banido argumentasse, indignado, com
o exemplo de Shakespeare, e com a alegação de que, quanto maior e mais lido o autor,
mais força, destaque e influência têm as escabrosidades que escreva, receberia sem
dúvida a resposta humana e confusa : Mas você não é Shakespeare”. 301
Fernando Pessoa traduziu de Inglês para Português alguns textos de William
Shakespeare, de quem planeava traduzir grande parte da obra literária, mas que não
chegou a concretizar. Além disso, Fernando Pessoa tinha na sua biblioteca muitas obras
de Shakespeare, e outras sobre este autor, de quem fez também um horóscopo. O
número de livros sobre Shakespeare ou acerca dele é um dos mais elevados na sua
biblioteca (mais de vinte), o que mostra que mais nenhum nome lhe mereceu tanta a
atenção e tanto interesse como Shakespeare. Só esse facto seria suficiente para revelar a
sua grande admiração por Shakespeare, admiração essa em todos os sentidos, mas o
próprio Fernando Pessoa declarou essa sua admiração em alguns textos que escreveu
sobre ele. Num desses textos considerava-o, um “deus carnal”, 302 e noutro texto afirmou
que “Shakespeare vale mais que os santos todos”.303 Fernando Pessoa comparou-se
frequentemente a Shakespeare, retratou-o à sua própria imagem, fez dele um alter ego,
reviu-se nele, identificou-se com ele, elogiou-o indireta e diretamente, não apenas por
motivos literários mas também devido à sua homossexualidade. Shakespeare foi um fio
condutor e um suporte que Fernando Pessoa utilizou para expressar e reforçar os seus
próprios sentimentos.

WALT WHITMAN

299
Charles John Huffam Dickens (1812-1870), romancista inglês. Separou-se da sua mulher em 1858, uma
atitude que era considerada altamente reprovável durante a época vitoriana, sobretudo em pessoas
com grande notoriedade, como era o caso deste famoso escritor. Um das frases de Dickens mais citadas
é a do seu livro Grandes Esperanças : “A amizade da mulher para com o homem é um beco sem saída,
para o qual a empurrou o engano no amor”.
300
William Makepeace Thackeray (1811-1863), romancista britânico, autor de uma vasta obra literária,
muito conhecido no seu tempo devido à sua obra, principalmente Vanity Fair, que apresenta uma
descrição da sociedade inglesa de então. Fernando Pessoa tinha na sua biblioteca a seguinte obra deste
autor : The English Humorists : the four Georges , London, Ed. J. M. Dent & Sons, 1914.
301
Prosa publicada em vida, pp. 250-251.
302
Pessoa inédito, p. 240.
303
Escritos sobre génio e loucura, vol. I, p. 75.
Existe também uma grande influência do poeta homossexual Walt Whitman em
Fernando Pessoa, influência essa que tem sido amplamente documentada. 304 Conforme
sublinha Anna Klobucka, “vivendo perifericamente em Portugal, Pessoa era porém tão
“whitmaníaco” como aqueles ingleses contemporâneos dos últimos anos de vida de
Whitman, a primeira geração de homossexuais que o leram (…) pelo seu homo-
eroticismo exuberante, e se sentiram abalar, mas não de horror, ao perceberem o grau
em que a Humanidade poderia florescer, liberta de restrições”.305
Fernando Pessoa refere-se a Walt Whitman em alguns dos seus textos em prosa,
revelando ter uma grande admiração por este autor. Num desses textos compara-o
mesmo aos deuses do Olimpo, aplicando a expressão : “Whitman olímpico”, 306 à
semelhança do que fez com Shakespeare, que considerava que era, conforme vimos no
capítulo anterior, um “deus carnal”.
Fernando Pessoa tinha na sua biblioteca os seguintes livros de Walt Whitman :
Leaves of grass (“Folhas de erva”), London-Toronto-New York, Ed. Cassel and Co.,
1909, e Poems by Walt Whitman (“Poemas de Walt Whitman”), London, Ed. The
Masterpiece Library, “Review of Reviews” office, 1895. Fernando Pessoa tinha também
na sua biblioteca um livro sobre este autor, intitulado : Walt Whitman’s Anomaly, (“A
anomalia de Walt Whitman” ), escrito por W. C. Rivers, publicado em 1913, e cujo
tema é a homossexualidade de Walt Whitman. Fernando Pessoa leu atentamente esta
obra, que sublinhou e anotou, conforme se pode confirmar na sua biblioteca, o que
revela o seu interesse pela homossexualidade deste autor.
Num dos seus textos, que citámos anteriormente a propósito de Shakespeare,
Fernando Pessoa fala na homossexualidade de Walt Whitman, e diz : “Tanto
Shakespeare como Whitman eram indiferentes aos valores morais, exceto na medida em
que estes eram suscetíveis de serem convertidos em valores estéticos pela emoção
temporária. Diga-se de passagem que ambos eram pederastas”. 307
Noutro texto
Fernando Pessoa sublinha que Whitman “cantou coisas que se consideravam pouco
poéticas”.308 Embora ele não tenha pertencido ao movimento estético decadentista,
304
Ver por exemplo : Maria Irene Ramalho, Poetas do Atlântico, Porto, Ed. Afrontamento, 2008,
capítulos 2-4; George Monteiro, Fernando Pessoa and Nineteenth-Century -Anglo-American-Literature,
Lexington, Ed. University Press of Kentucky, 2000, cap. 7; Susan Margaret Brown, “Pessoa and Whitman
: Brothers in the Universe”, The Continuing Presence of Walt Whitman : The Life After the Life, Iowa City,
Ed. University of Iowa Press, 1992, pp. 167-181.
305
Anna Klobucka, O mundo gay de António Botto, pp. 27-28.
306
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa, p. 13.
307
Heróstrato e a busca da imortalidade, p. 92.
308
Poemas Completos de Alberto Caeiro, p. 272.
Fernando Pessoa inclui-o nesse movimento, e várias vezes lhe chama “poeta
decadente”, expressão essa aplicada por Fernando Pessoa em sentido positivo.
Fernando Pessoa não o admirava apenas como leitor devotado da sua obra, mas
também o saudou largamente, através do extenso poema do seu heterónimo Álvaro de
Campos, Saudação a Walt Whitman , nas três versões que escreveu desta saudação, em
que ao longo desses poemas se identifica com ele. Numa dessas versões Álvaro de
Campos diz pertencer ao mundo homoerótico de Walt Whitman :

“De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,


Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
(…)
Espasmo p’ra dentro de todos os objetos de fora
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares, paneleiro de Deus!
(…) Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,
(…) Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade”.309

Numa outra versão da Saudação a Walt Whitman Álvaro Campos refere-se a ele
e compara-o consigo nestes termos : “o caso-nome do “mal de Whitman” que há dentro
de mim!”, 310
e noutro verso dessa saudação diz o seguinte de Whitman : “o meu
condottiere da sensualidade autêntica”. 311
O “mal de Whitman” e a sensualidade autêntica são a sua homossexualidade,
que Fernando Pessoa também invocou, cantou, celebrou no seus versos, através de
Álvaro de Campos. Fernando Pessoa fez sua a sensibilidade, o pensamento, o modo de
estar, de Walt Whitman, de quem se serviu para exprimir também os seus próprios
sentimentos homossexuais.

309
Obra Completa de Álvaro de Campos, pp.106-108.
310
“Saudação a Walt Whitman”, Livro de Versos, p. 24o.
311
Idem, p. 362.
ÓSCAR WILDE

Fernando Pessoa sentia-se fascinado, se não mesmo obcecado, por Óscar Wilde,
de tal maneira que afirmou : “Uma frase é de Wilde, e outra é de um qualquer”. 312
Depois de Shakespeare, é o autor mais citado e comentado por Fernando Pessoa ao
longo da sua obra. Os diários de Fernando Pessoa falam algumas vezes do seu interesse
por este autor (em referências a leituras ou a artigos que pretende escrever sobre ele).
Um dos documentos do espólio de Fernando Pessoa, Oscar Wilde Complet (doc.
66/36v.), revela a sua intenção de traduzir para português as obras completas de Óscar
Wilde, o que não chegou a acontecer, pois Fernando Pessoa traduziu dele apenas alguns
textos, como por exemplo um conto sobre o mito de Narciso.
No espólio de Fernando Pessoa existem cerca de quarenta fragmentos
manuscritos sobre ele, alguns deles com referências à homossexualidade de Óscar
Wilde, umas implícitas e outras explícitas. Fernando Pessoa escreveu também dois
horóscopos sobre Óscar Wilde, acompanhados de uma pequena cronologia biográfica,
onde fala da homossexualidade de Óscar Wilde. Este resumo biográfico, escrito por
Fernando Pessoa, diz respeito ao segundo horóscopo, para o qual Fernando Pessoa se
auxiliou de um livro de Arthur Ransome : Oscar Wilde : a critical study, New York, Ed.
Mitchell Kennerley, edição de 1912, que Fernando Pessoa tinha, e que existe na sua
biblioteca. Conforme dissemos no capítulo Declarações sobre a homossexualidade de
Fernando Pessoa – declarações de Fernando Pessoa, no outro lado dessa página
Fernando Pessoa escreveu em Inglês : “O meu caso”, seguido de várias notas
astrológicas que comparavam a sua situação atual à de Óscar Wilde antes e depois do
seu julgamento e da sua condenação por homossexualidade.
Na biblioteca de Fernando Pessoa existem sete livros que mostram o seu
interesse por Óscar Wilde, uns escritos pelo próprio Óscar Wilde e outros sobre ele,
alguns deles sobre a sua homossexualidade, todos pormenorizadamente anotados por
Fernando Pessoa, mostrando uma leitura atenta e interessada sobre Wilde e esse tema.
Há também alguns textos de Fernando Pessoa que, apesar de não serem sobre Óscar
Wilde, o referem e o citam, como por exemplo os textos sobre Heróstrato, 313 e alguns
deles são um reflexo das teorias estéticas de Óscar Wilde, nomeadamente o esteticismo
312
Páginas de estética e de teoria e crítica literárias, p. 236.
313
Heróstrato e a busca da imortalidade, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2000
e o decadentismo, que conforme explicamos no capítulo Decadentismo, estão ligados à
homossexualidade.
Fernando Pessoa ficou muito impressionado pelo julgamento e pela condenação
de Óscar Wilde devido à sua homossexualidade, como se pode ver num texto em que
em determinada altura diz o seguinte : “Wilde nunca foi tão comprovadamente um
génio como quando o homem da gare de caminho-de-ferro lhe cuspiu no rosto quando
ele foi acorrentado.314 Um grande mal sobreveio a muitos génios : ainda ninguém lhes
cuspiu na cara”.315
Certamente devido à sua condenação, Fernando Pessoa pretendia escrever um
livro, ou um artigo, em defesa de Óscar Wilde : Defence of Oscar Wilde, conforme se
pode ver num dos seus projetos.316 Pretendia comparar o caso de Óscar Wilde com o de
António Botto, e chegou mesmo a escrever um esboço para esse livro ou artigo,
conforme mostramos no capítulo : Livros que Fernando Pessoa pretendia escrever -
outros projetos sobre homossexualidade ou de conteúdo homoerótico.
Num dos seus Textos mediúnicos , em 1916, que começa com a pergunta :
“Algum dia conhecerei ?”, Fernando Pessoa manifestou o seu desejo de conhecer dois
namorados de Óscar Wilde : Robert Gross, que introduziu Wilde no mundo da
homossexualidade em Londres, e foi seu promotor literário; Lord Alfred Dougla, ou
“Bosie”. O “espírito” com quem Fernando Pessoa “fala” nos textos meiúnicos chega a
pô-lo em contacto com Robert Gross. 317
Essa atitude de Fernando Pessoa revela o seu
interesse pela homossexualidade, pois na sua comunicação com os “espíritos”, ao falar-
lhes de Óscar Wilde o que lhe interessava era a ligação amorosa deste com os seus
namorados. Embora alguns dos textos sobre Óscar Wilde tivessem a ver com literatura,
o interesse de Pessoa pela atividade homossexual de Wilde , tanto numa das cartas
astrológicas já referidas, como nos textos mediúnicos, assim como noutros textos,
estava no centro da atenção de Fernando Pessoa por Óscar Wilde. Conforme sublinha
Richard Zenith, “A preocupação de Pessoa com a atividade homossexual de Wilde e a
sua ruína subsequente pode sugerir-nos que namorava a ideia de agir consoante o desejo

314
Atitude homofóbica ocorrida em 13 de Novembro de 1895, na estação de Clapham Junction, em
Londres, quando levavam Óscar Wilde para a prisão, condenado pela prática de homossexualidade.
315
Heróstrato e a busca da imortalidade, p. 73
316
Espólio de Fernando Pessoa, 14E/64. Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, anexo do fragmento
14 E-64, p. 554
317
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, pp. 268.273.
que ele próprio sentia por homens, mas temia as possíveis consequências desagradáveis
disso”.318
Óscar Wilde escreveu diversos contos, peças de teatro, poemas, ensaios, e um
romance. Num dos fragmentos de Fernando Pessoa, Oscar Wilde Complete (doc. 66/36
v.) Pessoa assinalou as três obras de Óscar Wilde que considerava mais importantes : O
Retrato de Dorian Gray, Intenções, e De profundis, que são obras que abordam direta e
indiretamente a homossexualidade. Em suma, Fernando Pessoa sentiu a sua
homossexualidade também através de Óscar Wilde, encontrou também nele um
espelho onde se revia.

OBRAS PORTUGUESAS HOMOERÓTICAS

O Visconde de Vilamoura, autor do romance português Nova Sapho, que é um


romance lésbico, coloca na segunda metade do romance como um dos personagens
principais um conde homossexual, certamente baseado no caso do autor, que também
era homossexual. Segundo o investigador Richard Zenith, Fernando Pessoa sabia da
ligação entre o Visconde de Vilamoura e o seu amante Mário Beirão, e ainda segundo
este investigador, o Visconde de Vilamoura era amigo de Fernando Pessoa, que segundo
Richard Zenith, “prestava muita atenção a tudo o que se passasse com os amigos, como
o elo não exclusivamente literário que ligava Mário Beirão e o Visconde de Vila-
Moura.319 O Visconde enviou um exemplar desse romance homoerótico a Fernando
Pessoa, que lhe agradeceu e que fez sobre ele uma apreciação crítica, numa carta que
no entanto se perdeu. Por um lado o envio deste exemplar revela que o autor sabia do
interesse de Fernando Pessoa por este tipo de obras literárias, e o facto de Fernando
Pessoa lhe ter escrito logo e lhe ter respondido pessoalmente, revela o interesse de
Fernando Pessoa por esse romance homoerótico.
O interesse de Fernando Pessoa em obras portuguesas homoeróticas é mais
visível sobre uma outra obra portuguesa homoerótica, que aliás elogiou : O Barão de
Lavos, de Abel Botelho. Fernando Pessoa recomendou a uma editora inglesa, a editora
Mandrake Press, que publicasse algumas obras portuguesas traduzidas de Português
para Inglês (tradução a ser feita provavelmente por ele), e entre essas obras apresentou

318
Richard Zenith, Pessoa – uma biografia, p. 609.
319
Idem, p. 400.
apenas como exemplos os cancioneiros portugueses medievais, e “traduções de autores
portugueses que, sem novidade literária, propriamente dita, apresentam aspetos, no
entanto e não obstante, atrativos : fantasias estranhas como O Mandarim de Eça de
Queirós, ou escandalosas obras primas como O Barão de Lavos de Abel Botelho, pois
que é o mais complexo e mais brutal estudo sobre a pederastia que, tanto quanto sei,
alguma vez se escreveu”.320
Ora, repare-se em duas coisas que Fernando Pessoa diz nesta carta, sobre a obra
O Barão de Lavos : diz que ela é atrativa, e diz que ela é uma obra prima. Uma obra
prima significa uma obra primorosa, perfeita, notável, de grande qualidade literária.
Mas as obras primas ficam para a História. Ora, alguém hoje conhece ou já ouviu falar
dessa “obra prima” ? entre os meios literatos quase ninguém a conhece, e muito menos
a conhece o grande público. Se O Barão de Lavos fosse realmente uma obra prima,
como sucede com os grandes clássicos da literatura, seria hoje conhecida. No entanto,
Fernando Pessoa diz que ela era uma obra prima, e mais : diz que era atrativa (referia-se
naturalmente ao enredo homossexual, pois o que é atrativo ou não atrativo numa obra é
o seu conteúdo). Fernando Pessoa mostrava-se apreciador dessa obra, e profundo
conhecedor da mesma, pois disse que era o mais complexo estudo sobre a pederastia
que alguma vez se escreveu. Apesar de ser uma obra medíocre do ponto de vista
literário, Fernando Pessoa elogiou-a. Fernando Pessoa escreveu muitas considerações
literárias sobre obras de poetas e escritores, elogiando-as e criticando-as, e era muito
crítico quando encontrava obras de fraca qualidade literária, por isso é estranho que não
tivesse procedido também assim em relação à obra O Barão de Lavos. Não se tratando
de uma grande obra do ponto de vista literário, e não sendo o seu autor um amigo nem
um conhecido de Fernando Pessoa, o elogio só poderia ser devido ao conteúdo
homossexual dessa obra, que Fernando Pessoa disse que era “atrativa” e que era uma
“obra prima”.
Outra obra de conteúdo homossexual elogiada por Fernando Pessoa foi a peça de
teatro Octávio, de autoria do seu contemporâneo Vitoriano Braga (1888-1940.
Vitoriano Braga foi um fotógrafo e um dramaturgo português, que escreveu algumas
peças de teatro, entre as quais Octávio, que Fernando Pessoa analisou e em que
apresenta como um dos elementos nessa análise, os chamados desvios sexuais. A obra
Octávio tem como protagonista principal um homem do mesmo nome, um músico de
uma família aristocrática, que diz a um amigo que não se interessa por mulheres, e
320
Encontro Magick. Fernando Pessoa/Aleister Crowley, pp. 94-95.
admite estar apaixonado por um violinista italiano. Além disso, tem relações sexuais
com outros jovens, a quem paga muito dinheiro pelas relações sexuais que tem com
eles. Octávio enamora-se de uma jovem, devido à pressão social, a quem traz só
infelicidade e infidelidade devido ao facto de se envolver sexualmente com homens.
A representação desta peça de teatro causou polémica na Lisboa do seu tempo,
devido ao facto de abordar a homossexualidade. Octávio, escrito em 1913 e estreado no
Teatro Nacional D. Maria II em 1916, foi alvo de reprovação por parte do público e da
crítica, pela “repugnante escabrosidade do tema”, que fez com que tivesse havido fraca
afluência de espectadores e que tivesse ficado em cena apenas durante seis dias. Numa
época em que a homossexualidade era alvo de preconceito, é de salientar a ousadia de
Vitoriano Braga ao abordar numa peça de teatro a homossexualidade de Octávio.
Ora, Fernando Pessoa elogiou essa obra e queria publicá-la na sua editora,
conforme se pode ver numa lista que redigiu, intitulada Plano Editorial da Olisipo,
incluindo essa obra ao lado de obras de escritores importantes, considerando-a portanto
como sendo também uma obra importante. Fernando Pessoa, na sua análise sobre esta
obra, disse que esta obra tinha “valor capital”, e sobre ela também disse que era
“notável entre a multidão nula das peças modernas, sejam de que nação forem”, e mais
à frente diz o seguinte : “o drama Octávio corresponde, passo a passo, e nos detalhes
como no conjunto, às exigências com que a cultura moderna impõe a ação
dramática”.321 Fernando Pessoa escreveu ainda mais textos em que defende o valor
elevado desta obra no panorama do drama europeu moderno.322
Estes elogios são um exagero de Fernando Pessoa, pois Octávio não é uma
grande obra literária, é uma obra banal, superficial, não ficou para a História, e é
desconhecida não só pelo grande público como também pela generalidade dos literatos.
As qualidades que Fernando Pessoa considerava serem necessárias para um drama ser
bem sucedido do ponto de vista literário, tais como a subtileza psicológica, o instinto
dramático e a capacidade de construir totalidades artísticas (unidade, intensidade e
complexidade), existiam também noutras peças de teatro do seu tempo, mas Fernando
Pessoa desvaloriza-as e elogia a peça de teatro Octávio, pois diz que ela é “notável
entre a multidão nula das peças modernas, sejam de que nação forem”. Além dos
elogios que lhe fez, Fernando Pessoa deu-se ao cuidado de a traduzir para Inglês, com

321
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, p. 63.
322
Espólio de Fernando Pessoa, 14 A/45-53; 18 /62-113.
máquina de escrever e também à mão, embora não tivesse concluído a tradução,
conforme se pode ver no seu espólio.323
Porque razão Fernando Pessoa, que era tão profundo conhecedor da literatura e
habitualmente tão exigente em relação à qualidade literária das obras, e que era ele
próprio um grande escritor, apreciou e elogiou tanto esta obra, dado que ela não tem
valor literário ?
Certamente que foi o tema da homossexualidade, contido nesta obra, que o
cativou. Conforme afirma o investigador Richard Zenith, “talvez Pessoa se sentisse
encantado com Octávio de Vitoriano Braga, por causa da audácia de Octávio – porque
também ele, como o protagonista da peça, desejava outros homens”. 324

JUSTIFICAÇÕES DA HOMOSSEXUALIDADE E O SEU


ENQUADRAMENTO EM FERNANDO PESSOA

A TOLERÂNCIA

A tradição filosófica apresentou ao longo da História diversas justificações para


defender a tolerância em relação às diferenças de opinião, de crença, e de sentimentos, e
para criticar as atitudes de intolerância : a ética da reciprocidade (“não faças ao outro o
que não queres que te façam a ti”), o ceticismo (há que tolerar, pois ninguém é dono da
Verdade), o relativismo cultural (cada país ou cultura tem os seus costumes, por isso
devem ser tolerados e respeitados), a prudência (há que ultrapassar o incómodo sofrido
nas suas convicções, porque é a melhor maneira de evitar conflitos, e de manter um
mínimo de paz e estabilidade social), etc. Estas justificações foram defendidas
principalmente em relação às diferenças e às hostilidades religiosas surgidas no século
XVII, na sequência da Reforma Protestante, que opuseram católicos e protestantes. Daí
decorreu também, sucessivamente, a consciencialização sobre a necessidade de
tolerância para com as diferentes doutrinas, quer religiosas, quer políticas.
Fernando Pessoa, num dos seus textos, falou também da importância da
tolerância como princípio de vida, recomendando-a não em relação a nenhuma matéria
323
Espólio de Fernando Pessoa, 74/75.
324
Richard Zenith, Pessoa – uma biografia, p. 572.
específica, mas recomendando-a no geral, podendo-se incluir portanto diversas
matérias, e indiretamente a atitude a ter também para com a homossexualidade e os
homossexuais :

“1. Não tenhas opiniões firmes, nem creias demasiadamente no valor de tuas
opiniões.
2. Sê tolerante, porque não tens a certeza de nada.
3. Não julgues ninguém, porque não vês os motivos, mas só os actos...
4. Espera o melhor e prepara-te para o pior.
5. Não mates nem estragues, porque, como não sabes o que é a vida, excepto que é
um mistério, não sabes que fazes matando ou estragando, nem que forças desencadeias
sobre ti mesmo se estragares ou matares.
6. Não queiras reformar nada, porque, como não sabes a que leis as coisas
obedecem, não sabes se as leis naturais estão de acordo, ou com a justiça, ou, pelo
menos, com a nossa ideia de justiça”. 325

Nos tempos de hoje a defesa da tolerância alargou o seu campo de referência,


pois as matérias em relação às quais se defende a tolerância têm a ver não apenas com
as divergências religiosas e políticas, mas também morais, isto é, com os costumes
que se manifestam por exemplo nas novas formas de viver as relações familiares, no
concubinato, no poliamor, nas relações abertas, nas relações adúlteras, no nudismo, na
sexualidade, etc. Porém, no que diz respeito à sexualidade, os novos desafios do que se
designa como matéria de tolerância, têm a ver principalmente com a homossexualidade,
no sentido identitário (do indivíduo homossexual), e com as práticas homossexuais
mesmo que o indivíduo envolvido não seja homossexual, com as pessoas não binárias
do ponto de vista da identidade de género, e ainda com as diversas expressões literárias
e artísticas a propósito da homossexualidade, nomeadamente o homoerotismo. A defesa
da tolerância para com a homossexualidade, é baseada em diversas justificações.
Falaremos seguidamente de algumas delas e do seu enquadramento em Fernando
Pessoa.

AS JUSTIFICAÇÕES CLÍNICAS
325
“Mandamentos”, Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa, p. 73.
No século XIX a Ciência, nomeadamente a Medicina, começou a interessar-se
pela então chamada “inversão sexual”, e desempenhou um papel importante na
tolerância em relação à homossexualidade, considerando-a como um fenómeno que
simplesmente representava uma variedade orgânica e biológica, suscetível de um
eventual tratamento, mas todavia digna de tolerância.326 Esta nova forma de abordagem
teve os seus reflexos também em Portugal, com a publicação em 1898 do livro de
Adelino Pereira da Silva, intitulado : A inversão sexual : estudos médico sociais, e do
livro de Arlindo Camilo Monteiro, em 1922, intitulado : Amor sáfico e amor socrático.
Ambos procuraram justificar a homossexualidade à luz da Medicina. As teorias clínicas
sobre aquilo que então se consideravam como degenerescência foram alvo de
abordagem também por Fernando Pessoa, nomeadamente nos seus escritos a propósito
de Nordau, que comentou e criticou em diversas páginas.327 Na sua obra mais célebre,
intitulada Degeneração, publicada em 1892, Nordau critica a chamada arte degenerada,
associando-a a uma personalidade perturbada sob o ponto de vista mental, e
defendendo que, na base da grande criação artística e literária estariam pessoas
degeneradas mentalmente e moralmente, associando portanto o génio à loucura.
A anormalidade mental, a loucura, e a degenerescência, passaram a poder
justificar, de certo modo, a tolerância em relação à chamada poesia maldita, ou
decadentista, na qual se incluía o homoerotismo. Da associação entre genialidade e
loucura, feita por Nordau, resultam duas posições : ou a literatura (enquanto
degenerescência) é justificada pela perspetiva psiquiátrica, e como tal deve ser tolerada,
ou a degenerescência (enquanto literatura) é justificada pela perspetiva estética, e como
tal deve ser tolerada. A perspetiva estética era a posição defendida por Fernando Pessoa,
como veremos, o qual chega mesmo a empregar a expressão “tolerância estética”.
Na sequência das abordagens clínicas, é importante salientar também o
contributo de Sigmund Freud. As posições de Freud sobre a sexualidade foram
fundamentais para que a homossexualidade deixasse, pouco a pouco, de ser considerada
uma doença, e promoverem um questionamento da moral sexual da sua época. Os seus
principais trabalhos sobre a homossexualidade são: Três ensaios sobre a teoria da

326
Ver por exemplo Julien Chevalier, Une maladie de la personnalité : l’inversion sexuelle (“Uma doença
da personalidade : a inversão sexual”), Lyon/Paris, Ed. Storck/Masson, 1897.
327
Escritos sobre génio e loucura, tomo I e II.
sexualidade (1905), O caso Schreber (1911), Uma recordação de infância de Leonardo
da Vinci (1911), e Psicogénese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920).
Destas obras, Fernando Pessoa tinha na sua biblioteca a seguinte : Un souvenir
d'enfance de Leonard de Vinci (“Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci”),
Paris, Ed. Gallimard, 1927. Sobre Freud pode ver-se uma carta de Fernando Pessoa a
João Gaspar Simões, em que por um lado Fernando Pessoa reconhece o contributo deste
autor, e por outro lado o critica, devido às suas interpretações, que considera serem
exageradas.328
Graças ao contributo de autores como Freud, e ao ambiente social e cultural que
se vivia então em alguns países da Europa, apareceram pela primeira vez, no tempo de
Fernando Pessoa, algumas revistas literárias homoeróticas, nomeadamente em França e
na Alemanha, muito vocacionadas para as questões estéticas, mas que incluíam também
uma vocação de intervenção política. No primeiro número da revista literária
homoerótica francesa, a revista Akademos, de Julho de 1909, apareceu um artigo
intitulado O preconceito contra os costumes, onde já aparecem os argumentos que são
defendidos hoje pelos homossexuais. Esse artigo termina com conclusões como : “A
homossexualidade não tem a ver com criminologia, nem mesmo com patologia, mas
com o direito do ser humano ao amor livre”.
Fernando Pessoa interessou-se muito por Nordau e por Freud, que leu e
comentou, mas também os criticou, pois não defende que a homossexualidade é uma
doença psiquiátrica, ao contrário do defenderam e ainda defendem alguns que
pretendem justificar a homossexualidade à luz das teorias clínicas. A suas justificações,
aplicáveis à homossexualidade, vão noutro sentido, conforme veremos nos capítulos
seguintes.

O DIREITO À LIBERDADE

O discurso clínico perdeu pouco a pouco a sua importância como justificação da


tolerância em relação à homossexualidade e às suas expressões literárias e artísticas,
nomeadamente o homoerotismo, e atualmente apresenta-se como justificação a
liberdade de expressão, a Democracia, a neutralidade do Estado em relação às
convicções e aos sentimentos dos indivíduos, e sobretudo os Direitos do Homem, dos
328
Correspondência 1923-1935, carta de 4-10-1929, pp. 250-253.
quais procedem hoje os chamados direitos sexuais. Devido ao facto de os indivíduos
serem hoje reconhecidos como sujeitos de direitos, deixou mesmo de falar-se de
tolerância, passou a criticar-se esta atitude, considerada paternalista, preferindo-se antes
falar de Direitos do Homem, inclusivamente para a homossexualidade, dado que, se os
indivíduos têm direitos, não têm que ser tolerados (pois a tolerância implica poder
tolerar ou não tolerar), mas sim respeitados, devido ao facto de terem direitos.329
Fernando Pessoa tinha também consciência daquilo a que hoje chamamos
direitos, como se pode ver por exemplo no seguinte texto que escreveu :
“Por liberalismo legitimamente se entende aquele critério das relações sociais
pelo qual cada homem é considerado como livre para pensar o que quiser e para
exprimir como quiser, ou pôr em ação como entender, com o único limite de que essa
ação não tolha diretamente os iguais direitos dos outros à mesma liberdade”. 330 Num
outro texto, Fernando Pessoa defende algo semelhante : “O liberalismo é a doutrina que
mantém que o indivíduo tem o direito de pensar o que quiser, de exprimir o que pensa
como quiser, e de pôr em prática o que pensa como quiser, desde que essa expressão ou
essa prática não infrinja diretamente a igual liberdade de qualquer outro indivíduo”.331
Fernando Pessoa apresenta estas ideias, com as quais se identificava. Neste texto
não fala de homossexualidade, assim como não fala de nenhuma outra matéria
específica, mas pode-se enquadrar a homossexualidade à luz desta teoria,
nomeadamente o direito à liberdade de pensamento e de expressão, apesar de a
homossexualidade ser mais do que pensamento e expressão, pois ela é também e
sobretudo sentimentos. Fernando Pessoa defendia o direito à liberdade, tal como muitos
hoje o defendem, e é em função desse direito que justificam hoje a homossexualidade.
Todavia, embora seja importante reconhecer o direito à liberdade, este não se aplica ao
facto de um indivíduo ser homossexual, pois ser homossexual não é fruto da liberdade
do indivíduo, não é uma escolha, não é uma opção.

O DIREITO À PRIVACIDADE

Um dos princípios basilares do liberalismo é a defesa da separação entre o


público e o privado, e da não ingerência do Estado na vida privada das pessoas. No seu

329
Sobre a homossexualidade como um direito humano, ver por exemplo a obra de Ana Cristina Santos,
A Lei do Desejo : Direitos Humanos e Minorias Sexuais em Portugal, Porto, Ed. Afrontamento, 2005.
330
Da República , p. 118.
331
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política , p. 83.
artigo As algemas, publicado na Revista de Comércio e Contabilidade, em 1926,
Fernando Pessoa critica a legislação protecionista do Estado e a sua intromissão na vida
privada dos indivíduos, chamando a atenção para “o que há de deprimente e de ignóbil
na circunstância de se prescrever a um adulto, a um homem, o que há-de beber e o que
não há-de beber; de lhe pôr açaimo, como a um cão, ou um colete de forças, como a um
doido. Nem consideremos que, indo por esse caminho, não há lugar certo onde
logicamente se deva parar: e se o Estado nos indica o que havemos de beber, por que
não decretar o que havemos de comer, de vestir, de fazer? por que não prescrever onde
havemos de morar, com quem havemos de casar ou não casar, com quem havemos de
dar-nos ou não dar-nos? Todas estas coisas têm importância para a nossa saúde física e
moral; e se o Estado se dispõe a ser médico, tutor e ama para uma delas, por que razão
se não disporá a sê-lo para todas?”.332
Esta lista engloba também, indiretamente, a homossexualidade, pois relaciona-
se com um dos Direitos do Homem, um direito que é também invocado para as
questões da sexualidade : o direito à privacidade. Fernando Pessoa falou muito da
necessidade de se guardar e respeitar a privacidade (uma forma indireta de se respeitar a
homossexualidade), mas não o fez sob o ponto de vista político-jurídico, mas
psicológico. Nas suas reflexões pessoais tem várias passagens que revelam essa sua
preocupação, como por exemplo no texto Regra de vida, em que estabelece propósitos
de conduta para a sua vida, afirmando :”Faz o menor número de confidências possível.
É melhor não fazeres nenhuma, mas se fizeres algumas, fá-las falsas ou imprecisas”. 333
Também nas suas reflexões pessoais, escreveu o texto Regras morais, afirmando : “Não
confessar nunca o que intimamente se passa convosco. Quem confessa é um débil”.334
A preocupação com a defesa da privacidade também existe na sua obra literária,
de que damos aqui alguns exemplos. No seu conto O Eremita da Serra Negra, em
alguns parágrafos antes de falar do “amor unissexual”, que é uma das designações
tradicionais para a homossexualidade, Fernando Pessoa afirma : “Nunca fales de ti.
Guarda ao teu ser o seu segredo. Se o abrires nunca o poderás fechar. Não é que alguém
te compreenderá, é que te descompreenderá; porque ninguém compreende os outros.
Sentir-te-ás traído a ti mesmo, de uma traição desproveitosa”. No poema À la manière
de António Botto, incluído no presente livro, afirma : “(…) Devemos ser misteriosos,/
Dizes-me sempre o que sentes…/ Ah, esconde-me qualquer coisa !.../ No amor deve
332
Páginas de Pensamento Político,  p. 145.
333
“Reflexões pessoais”, Prosa íntima e de autoconhecimento, p. 413.
334
Idem, p. 455.
haver segredo”. No poema Conselhos, também incluído no presente livro, afirma :
“Cerca de grande muros quem te sonhas (…) onde és teu, e nunca o vê ninguém”.
Noutro texto, afirma : “As cousas que se amam, os sentimentos que se afagam,
guardam-se com a chave daquilo a que chamamos pudor no cofre do coração. A
eloquência profana-os. A arte, revelando-os, torna-os pequenos e vis. O próprio olhar
não os deve revelar”.335 No Fausto, afirma : “Sinto horror a abrir o ser a alguém,/A
confiar nalguém. Horror eu sinto/ A que perscrute alguém, ou levemente/ ou não,
quaisquer recantos do meu ser”. Também no Livro do Desassossego, no fragmento 61,
afirma : “Benditos os que não confiam avida a ninguém”, e no fragmento 470, Fernando
Pessoa afirma: “Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela boca morrem o
peixe e Óscar Wilde” (alusão à condenação de Óscar Wilde, por homossexualidade,
devido à sua falta de discrição nessa matéria).
Todavia, o recurso à privacidade como solução é também hoje criticado, pois
segundo alguns autores, isso significa defender, indiretamente, que os indivíduos
(nomeadamente os homossexuais) se encerrem num “armário”.336 O posicionamento de
hoje em relação à homossexualidade, vinda de dentro da própria comunidade
homossexual, passou a ser a necessidade de “sair do armário”, considerando-se que por
vezes a privacidade não é tanto um direito, mas sim uma necessidade que indiretamente
é imposta àqueles que a ela recorrem, e uma forma de se esconderem. Assim, mais do
que privacidade (em que as pessoas tenham que recorrer à justificação do direito à
privacidade para serem toleradas ou aceites), reivindica-se hoje o direito ao espaço
público das diferenças sexuais, e mais do que tolerância, reivindica-se
reconhecimento.337 Graças a esta reivindicação, a homossexualidade e o homoerotismo
(este enquanto expressão artística que, como todas as artes, precisa de ter público),
podem efetivamente exprimir-se e apresentarem-se publicamente, em que uma pessoa
possa dizer publicamente que é homossexual, e por outro lado em que a arte e a
literatura homoerótica tenham efetivamente liberdade de expressão.

335
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa , p. 76.
336
Ver por exemplo Eve Kosofsky Sedgwick, A Epistemologia do Armário, Lisboa, Ed. Angelus Novus
(s/d).
337
Ver por exemplo : Michel Seymour, De la tolérance à la reconnaissance (“Da tolerância ao
reconhecimento”), Montréal, Ed. Boreal, 2008; Axel Honnet, La lutte pour la reconnaissance, (“A luta
pelo reconhecimento”), Paris, Ed. Cerf, 2000; Charles Taylor, “La politique de la reconnaissance”, (“A
política do reconhecimento”), em Multiculturalisme, dífférence, et démocratie, (“Multiculturalismo,
diferença, e democracia”), Paris, Ed. Aubier, 1994; Daniel Borrillo, Homosexualité et Droit – de la
tolérance à la reconnaissance juridique, (“Homossexualidade e Direito – da tolerância ao
reconhecimento jurídico”), Paris, Ed. PUF, 1998.
JUSTIFICAÇÃO ARISTOCRÁTICA

Os princípios a que obedecem hoje as justificações a propósito da


homossexualidade, tais como a Democracia, os Direitos Humanos, e a necessidade do
reconhecimento social, não se coadunavam com as conceções de Fernando Pessoa, que
tal como Óscar Wilde, tinha uma conceção aristocrática, elitista, refinada, e idealizada,
sobre a homossexualidade, que segundo Fernando Pessoa não era para todos, não era
para a “plebe”, como ele diria, de acordo com os termos que empregava, isto é, não era
para o povo, mas para as classes altas (como na realidade assim acontecia, pois
historicamente era nas classes altas que a homossexualidade era mais tolerada). Sobre
essa atitude de Fernando Pessoa em relação à homossexualidade pode ver-se, por
exemplo, esta sua sua declaração :

“Mas admite-se lá que um caixeiro seja pederasta ! Que um jornalista tenha


“perversões sexuais” ! Daqui a pouco aos superiores só resta a castidade absoluta como
afirmação sexual da sua superioridade”338

Esta declaração exprime a conceção de Fernando Pessoa sobre a


homossexualidade, encarando-a como algo próprio de pessoas de nível social superior.
Fernando Pessoa empregava a palavra “pederastia” como significado de
homossexualidade masculina, e no seu texto Porque é que as mulheres se detestam
tanto umas às outras339, Fernando Pessoa também considera a homossexualidade como
um “requinte” dos homens de elite, aliando a homossexualidade a uma sensibilidade
refinada, a gente galante, a um grupo social de pessoas snobes e sofisticadas. Esta
conceção de Fernando Pessoa está em consonância com a conceção sobre a
homossexualidade segundo a qual esta era denominada historicamente pela expressão :
vício burguês. Jean Seul, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, afirma que o
burguês “é essencialmente erótico”, que a “hiperexcitabilidade sexual” é uma
característica do burguês, e dá como exemplo disso o poeta homossexual Théophile
Gautier.340 Fernando Pessoa deixou no seu espólio alguns projetos de textos em que

338
Espólio de Fernando Pessoa, BNP-E3, 55C-94 e 94a
339
Misoginia e antifeminismo em Fernando Pessoa, pp. 123-129
340
Obras de Jean Seul de Méluret, Lisboa, Ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2006, p. 82.
tencionava escrever um Elogio do Burguês, e alguns desses projetos estão junto de
projetos de textos sobre a homossexualidade.341

A homossexualidade também era tradicionalmente designada por  vício


aristocrático .342 O visconde de Vilamoura, que era homossexual, e de quem Fernando
Pessoa era amigo, pode ser considerado um exemplo disso, e a sua obra literária Nova
Sapho tem como protagonista uma aristocrata lésbica, que defende publicamente Óscar
Wilde, e que no romance era seu amigo pessoal.

A conceção “elitista” sobre a homossexualidade está também presente em textos


em que Fernando Pessoa fala de Óscar Wilde, e ainda por exemplo no texto As
repugnâncias instintivas, em que Fernando Pessoa diz que “não há manifestação de
progresso de civilização que não cause repugnância ou terror ao instinto conservador
(por vezes justo, por vezes injusto) das populações incultas.” 343 O grande público,
nomeadamente as classes populares, tendem a levar a homossexualidade para a
banalização e a grosseria. Fernando Pessoa considerava o grande público ignorante e
inculto, e por isso incapaz de compreender o significado estético, idealizado e
requintado da homossexualidade :

“Se, porém, o artista se propõe escrever para o grande público, que não é de
artistas, isto é, se o artista se propõe, por esse mesmo propósito, deixar de ser artista,
então a sua obra cai sob outra alçada, e deixa para ela de existir a tolerância estética. A
sua obra é já propaganda, e não arte, por arte que contenha. Ora, as condições sociais da
propaganda são diversas das condições sociais da arte.

O verdadeiro artista não deve inserir elementos perturbadores em obras


destinadas ao grande público, porque o grande público é uma criança, e escrever
obscenidades para o grande público é a mesma coisa que escrevê-las para crianças, o
que só um louco moral se proporá fazer”. 344

JUSTIFICAÇÃO ESTETICISTA

341
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 48 H – 43
342
Para mais pormenores, ver por exemplo o livro de Didier GODARD: Le goût de Monsieur :
l’homosexualité masculine au XVIII .ème siècle, (“O gosto do Senhor : a homossexualidade masculina no
século XVIII”), Paris, Ed. H&O, 2002.
343
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 55 D-23
344
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, p. 355, anexos 1, 2, e 3.
No texto citado no final do capítulo anterior está explícita a defesa da tolerância
estética, uma expressão que o próprio Fernando Pessoa emprega, e que pode ser
encarada de duas maneiras, comparáveis ao conceito de tolerância filosófica : pode
significar tolerar ideias filosóficas polémicas, ou tolerar determinadas atitudes (morais,
políticas, ou religiosas), tendo como base princípios filosóficos justificativos. Por seu
turno, a tolerância estética pode significar tolerar a chamada arte imoral, ou tolerar algo
que seja considerado imoral, como por exemplo a homossexualidade, baseado em
princípios estéticos (a vida como uma obra de arte – tal como defendia Óscar Wilde).
Outra justificação que podemos encontrar e Fernando Pessoa,
independentemente de se referir à arte (que devido ao facto de ser arte deve ser tolerada,
mesmo sendo arte homoerótica), está no facto de, segundo ele, a beleza do corpo
masculino ser superior à do corpo feminino. Num dos textos do seu heterónimo Jean
Seul, o narrador afirma o seguinte : “pensemos no social, por exemplo a pederastia.
Como desculpá-la ? Facilmente : dizendo que o corpo masculino é mais perfeito que o
feminino, ou então análogo”. 345
A superioridade do corpo masculino, do ponto de vista
estético, é aliás também uma justificação dada por Fernando Pessoa para justificar o
homoerotismo das Canções de António Botto.
A reação de Fernando Pessoa perante a incompreensão em relação ao amor
entre dois indivíduos do mesmo sexo, é expressa na sua própria poesia, onde há um
certo apelo à resistência perante as críticas, nomeadamente no seu poema Mignon :
“Deixa-os desprezar-me (…) Deixa-os falar (…) Deixa-os falar”, o que significa que há
que seguir em frente, e não se deixar render perante o falatório homofóbico. O emprego
de palavras tradicionalmente negativas em relação à homossexualidade, obtém um
tratamento literário em Fernando Pessoa, que lhes dá um carater estético, e portanto
homoerótico : “decadência”, “degenerescência”, “inversão”, “perversão”, “vício”,
conforme mostramos no capítulo : Metáforas homoeróticas em Fernando Pessoa. O
tratamento estético por exemplo do conceito de decadência, como forma de a justificar
a homossexualidade e de fazer com que ela fosse aceite, era aliás típico da geração
artística e literária do seu tempo, conforme se pode confirmar em alguns estudos sobre
essa matéria 346 Por conseguinte, Fernando Pessoa diz :
345
Obras de Jean Seul de Mèluret, p. 52.
346
Cf. Romain Courapied, Le traitement esthètique de l’homosexualité dans les oeuvres décadentes face
au système médical et légal : accords et désaccords sur une éthique de la séxualité (“O tratamento
estético da homossexualidade nas obras decadentes face au sistema médico e legal : acordos e
desacordos sobre uma ética da sexualidade”). Tese de doutoramento apresentada à Universidade de
Rennes, França, em 2014. Ver também : Roger Buer, La belle décadence. Histoire d’un paradoxe
“É absolutamente imoral procurar ter opiniões fixas em matéria estética. Isto
parece decadente e é-o. A arte é uma doença. Mas é uma doença em relação à não-
arte, como a não-arte é feia em relação à arte, e doença perante a saúde equivale a feio
perante o belo.
A moral é a doutrina dos valores no campo da atividade social. Como na arte,
como arte, não há atividade social, a sua doutrina de valores é, não moral, mas outra.
(…) Por isso o esteta agudo é em geral invertido sexualmente”.347
Para Fernando Pessoa não existe imoralidade onde existe arte, logo o
homoerotismo fica justificado. No entanto, Fernando Pessoa também se propunha
defender a homossexualidade independentemente de justificações de ordem estética,
como se pode ver no seu projeto : Proponho-me demonstrar que a homossexualidade
não é imoral. É um projeto formado por três pequenos textos que esboçam o seu
objetivo de escrever uma obra sobre a homossexualidade, conforme se pode ver no
capítulo deste livro intitulado : Uma obra em defesa da homossexualidade. Para essa
obra Fernando Pessoa pretendia desenvolver argumentos filosóficos para justificar a
homossexualidade, mas que não chegou a desenvolver, como sucedeu com muitos
outros projetos seus.
Segundo o heterónimo Álvaro de Campos, mesmo que não existam justificações
estéticas para o homoerotismo, e passando então a arte a ser considerada “imoral”,
mesmo assim também deveria ser tolerada e aceite. Na carta de Álvaro de Campos à
revista Contemporânea, diferentemente do que sucede com os textos que escreveu sobre
António Botto em que Fernando Pessoa apresenta o esteticismo como justificação da
literatura homoerótica de António Botto, e que como tal deveria ser compreendida e
aceite, Fernando Pessoa nessa carta, através de Álvaro de Campos, critica a justificação
estética, defendendo que António Botto, mesmo que seja imoral, deve ser compreendido
e aceite:
“(…) A beleza começou por ser uma explicação que a sexualidade deu a si-
própria de preferências provavelmente de origem magnética. Tudo é um jogo de forças,
e na obra da arte não temos que procurar “beleza” ou coisa que possa andar no gozo
desse nome. Em toda a obra humana, ou não humana, procuramos só duas coisas, força

littéraire (“A bela decadência. História de um paradoxo literário”), Paris. Ed. Honoré Champion, 2012;
Jean Pierrot, L’imaginaire decadente (“O imaginário decadente”), Paris, Ed. Presses Universitaires de
France, 1977. Philip Win, Séxualités decadentes chez Jean Lorrain : le héros fin de siècle, (“Sexualidades
decadentes em Jean Lorrain : o herói fim de século”, Leyde, Ed. Brill, 1997.
347
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, p. 379.
e equilíbrio de força — energia e harmonia, se Você quiser. (…) Louvo nas Canções a
força que lhes encontro. Essa força não vejo que tenha que ver com ideais nem com
estéticas. Tem que ver com imoralidade. É a imoralidade absoluta, despida de dúvidas.
Assim há direção absoluta — força portanto; e há harmonia em não admitir condições a
essa imoralidade. O Botto tende com uma energia tenaz para todo o imoral; e tem a
harmonia de não tender para mais coisa alguma”.348
O heterónimo Álvaro de Campos afirma que há imoralidade em António Botto, e
que mesmo que seja imoral deve ser aceite. No entanto, Fernando Pessoa ortónimo, que
escreveu dois posfácios para a novela homoerótica de António Botto, António, no
segundo posfácio defende que a história de amor entre dois homens, nessa novela, era
uma história moral, e dá a entender que a homossexualidade seria mais facilmente aceite
pelas gerações vindouras.
Apesar de tudo, a generalidade das justificações apresentadas por Fernando
Pessoa em defesa do homoerotismo giram em torno da necessidade da separação entre
arte e moral, baseado no princípio de que à luz de justificações estéticas não existe
imoralidade, e por isso o próprio homoerotismo, enquanto arte, deve ser permitido. A
tentativa de justificar a homossexualidade através de ideais estéticos, nomeadamente os
ideais gregos, é a que Fernando Pessoa utiliza para justificar o homoerotismo das
Canções António Botto. Esta justificação de Fernando Pessoa é herdeira de outros
autores, nomeadamente Walter Horatio Pater, e Óscar Wilde, representantes do
decadentismo em Inglaterra, designado por esteticismo. Esses autores defendiam que a
arte tem valor em si mesma, enquanto arte, e como tal o artista deve preocupar-se
apenas com as exigências estéticas, afastando-se de qualquer outro fim, seja moral,
político, ideológico, religioso, etc. No âmbito desta teoria, conhecida como teoria da
arte pela arte, também designada por esteticismo, as propriedades formais são
valorizadas, em detrimento do conteúdo ou da mensagem que as obras de arte
transmitem. A arte existe para exaltação da beleza, e devia elevar-se acima de
preocupações morais e de temas sociais. O homoerotismo é antes de tudo arte, e como
tal deve ser justificado, conforme defendia Óscar Wilde, no prefácio da sua obra O
retrato de Dorian Gray, ao afirmar que “nenhum artista tem simpatias éticas.”
A arte pela arte, e o amor pelo amor. Há uma analogia entre esta conceção de
arte, que não deveria estar submetida às obrigações de uma transmissão de valores
morais, e as relações amorosas, que também não deveriam estar submetidas às lógicas
348
Obra Completa de Álvaro de Campos, pp. 544-545.
do casamento e da procriação. Esta conceção de arte é uma forma implícita de defender
o homoerotismo, e influenciou Fernando Pessoa, que defendeu o homoerotismo,
nomeadamente nos vários textos que escreveu sobre a obra de António Botto, e Raul
Leal, justificando a sua “anormalidade” por princípios estéticos. Apresentar a
“anormalidade artística” como justificação do homoerotismo, é uma forma indireta de
justificação da própria “anormalidade sexual”, e portanto, defender o homoerotismo,
através de justificações estéticas, acaba por ser indiretamente uma forma de defender
também a própria homossexualidade.

A HOMOSSEXUALIDADE E AS SUAS TERMINOLOGIAS

DESIGNAÇÕES DADAS À HOMOSSEXUALIDADE E A SUA


UTILIZAÇÃO POR FERNANDO PESSOA

Há determinadas coisas que sempre existiram ao longo da História, mas para as


quais não havia propriamente uma designação oficial ou socialmente aceite e estipulada,
devido ao pudor ou ao preconceito, como por exemplo no caso da homossexualidade,
palavra esta que só apareceu no século XIX. Excetuando as palavras pejorativas, de
cariz popular, ao longo da História não havia uma designação propriamente dita, para o
amor que não tinha nome e que mesmo tendo-o não ousava dizer o seu nome. Só muito
tarde, através da obra de escritores e intelectuais, passou a empregar-se lentamente
determinadas designações, umas de forma subentendida, outras de forma eufemística ou
metafórica, e ainda outras de forma pejorativa : amor grego, amor socrático,
pederastia, sodomia, unissexualidade, inversão sexual, sensibilidade sexual contrária,
uranismo, terceiro sexo, desvio sexual, comportamento contranatura, vício francês, vício
aristocrático, vício burguês, decadentismo, degenerescência, etc.
Fernando Pessoa emprega também algumas destas designações ao longo dos
seus textos. Fala algumas vezes no amor grego, tanto em poemas como em fragmentos
genéricos e em frases soltas, e no seu conto policial “O caso do professor de Ciências”.
349

349
Histórias de um raciocinador e o ensaio História Policial, pp. 42-45
Fernando Pessoa emprega também a designação de unissexual no seu conto O
eremita da serra negra;350 emprega a palavra invertidos no seu heterónimo Jean Seul;351
emprega algumas vezes as palavras decadentismo e degenerescência como metáforas de
homossexualidade (de que falaremos pormenorizadamente no capítulo Metáforas
homoeróticas). Num dos heterónimos ou personagens não identificados, no texto O
catolicismo imoral, emprega a palavra uranistas.352 Há outras designações que
Fernando Pessoa emprega, como por exemplo esteta, artista, amigo, amigo íntimo, e
impossível amigo, que podem serem interpretados no sentido homoerótico.
No entanto, por vezes a homossexualidade está presente nos textos de Fernando
Pessoa, mesmo que ele não empregue essas denominações, nomeadamente na poesia,
como por exemplo no poema Antínoo. Sabemos que esses poemas são de conteúdo
homoerótico, não porque neles esteja presente algum dos termos ou designações acima
referidos, mas sim porque nesses poemas existem referências (no sentido amoroso ou
erótico) tendo como destinatário um indivíduo do sexo masculino (por exemplo através
da palavra ele). O mesmo acontece com os textos em prosa, em que apesar de não haver
a designação de homossexualidade ou homossexual, assim como outras mais
habitualmente utilizadas para se lhes referir, têm a ver com a homossexualidade, como
por exemplo no pequeno texto dramático Marino, em que este homem diz a outro : “Os
meus prazeres, senhor, são as mulheres” e umas linhas mais à frente, a esse propósito
desmascara a sua ironia, dizendo : “mentir é o que mais prazer me dá”.353
O emprego das designações mais comuns, nomeadamente as de
homossexualidade, e de inversão sexual, só existem nos textos em que Fernando Pessoa
fala diretamente sobre o tema da homossexualidade, ou quando fala desse tema a
propósito de determinados escritores. Quando não se trata de um texto de ensaio ou de
crítica literária, em que por vezes se faça referência à homossexualidade, mas sim de um
texto homoerótico, não existem em Fernando Pessoa designações propriamente ditas,
mas sim expressões ou palavras poéticas de afeto e de exaltação da beleza masculina,
ou do amor entre homens, expressões e palavras essas empregues umas de forma direta,

350
O Mendigo e outros contos, pp. 51-53
351
Pessoa por conhecer. Textos para um novo mapa., vol. II, pp. 206-207
352
Espólio de Fernando Pessoa, BNP/E3, 48H-9. Uranista é uma palavra derivada da palavra Uranismo,
que significa homossexualidade. É uma palavra criada pelo alemão Karl Heinrich Ulrich, em 1864, na sua
obra Investigações sobre o mistério do amor entre varões.
353
“Marino”, Pessoa por conhecer, vol. II, p. 178
e outras de forma indireta ou metafórica, como nos muitos poemas sentimentais que
Fernando Pessoa dirigiu a destinatários do sexo masculino. 354
Historicamente, existia uma palavra próxima do que hoje se entende por
homossexualidade : a palavra sodomia. Esta palavra formou-se a partir de uma história
bíblica (narrada no Génesis, cap. XIX) que fala dos visitantes de Ló, com quem os
homens naturais de Sodoma quereriam ter relações sexuais, e na subsequente
destruição de Sodoma como suposto castigo por esse facto. Este episódio constitui a
base para o uso da palavra sodomia, mas esse episódio bíblico não fala em sexo nem em
homossexualidade. Muitos teólogos cristãos, tanto católicos como protestantes,
defendem hoje que a destruição da cidade de Sodoma não foi devida à
homossexualidade mas sim à falta de hospitalidade e de compaixão pelos pobres.
O emprego da palavra sodomia referia-se tradicionalmente ao comportamento
homossexual, mas era uma designação limitada, pois associava-se a homossexualidade
apenas a um determinado ato físico (o coito anal), que aliás também existe em relações
sexuais entre homens e mulheres. Através da palavra sodomia restringia-se a
homossexualidade a um determinado ato, e não se incluía outras formas de expressar os
sentimentos, o amor, e a sexualidade, nem a identidade desse indivíduo. Fernando
Pessoa não emprega a palavra sodomia para falar de homossexualidade, mas emprega a
palavra sodoma no seu texto Protesto pela apreensão das Canções, quando defende a
obra de Raúl Leal, Sodoma Divinizada (uma designação que não é portanto de Fernando
Pessoa), e noutros textos de carater geral, para criticar a apreensão da então chamada
literatura de sodoma (uma designação que foi empregue pela Imprensa do seu tempo),
apreensão essa feita pelo Governo Civil de Lisboa, nomeadamente em relação às obras
de António Botto, Raúl Leal, e Judith Teixeira.
Também existia e continua a existir a designação de inversão sexual, que é a
designação que foi empregue inicialmente, sobretudo em França e em Itália, desde que
Charcot e Magnan, em 1882, publicaram os seus estudos sobre a homossexualidade em
Archives de Neurologie. Essa designação já tinha sido empregue em Itália por Tamassia
na revista Sperimentale di Freniatria, em 1878. Possivelmente apareceu pela primeira
vez em língua inglesa, pois muito antes do artigo de Charcot e Magnan, num
comentário anónimo ao primeiro artigo de Westphal no Journal of Mental Science de
outubro de 1871, a designação Conträre Sexualempfindung tinha sido traduzida como

354
Conferir na antologia organizada por Victor Correia, Homossexualidade e Homoerotismo em
Fernando Pessoa, Lisboa, Ed. Colibri, 2017.
“inclinação sexual invertida”. A expressão inversão sexual foi empregue, como sendo
mais apropriada, pela primeira vez em inglês por J. A. Symonds, em 1883, no seu
ensaio A Problem in Greek Ethics, numa edição de autor. Mais tarde, em 1897, essa
designação foi adotada numa edição pública em inglês desse mesmo livro, e até aos dias
de hoje continuou a ser empregue (embora atualmente o seja menos) referindo-se à
homossexualidade.  
Fernando Pessoa emprega também algumas vezes a designação inversão sexual,
que se pode encontrar num dos seus textos autobiográficos: Não encontro dificuldade
em definir-me (quando ao falar sobre si próprio afirma : “é uma inversão sexual fruste”),
e que se pode encontrar no capítulo do presente livro : Declarações de Fernando
Pessoa sobre a sua homossexualidade. Emprega também a designação inversão sexual
nos seguintes textos : no texto A imoralidade das biografias (quando fala sobre
Shakespeare) ; no texto : O Ritmismo Estático; no texto O conceito de
homossexualidade; diversas vezes no texto Porque é que as mulheres se detestam tanto
umas às outras ? Fernando Pessoa emprega também a palavra invertido (com a mesma
conotação), nos seguintes textos: A arte e a sensualidade; Coisas pensadas durante a
noite de 2 para 3 de Fevereiro de 1917; António Botto e o ideal estético em Portugal;
António Botto e a forma artística do ideal estético; Sobre a novela António (texto II);
Óscar Wilde; Declaração de diferença; A França em 1950 (do heterónimo Jean Seul);
Contra a revista Orpheu (dos heterónimos e personagens não identificados).355 Sobre
Shakespeare, diz por exemplo o seguinte : “Do poeta sabe-se alguma coisa. Sabe-se que
é jurisconsulto, sabe-se que é invertido”.356
No entanto, para se referir à homossexualidade, a palavra que Fernando Pessoa
mais emprega é a palavra pederastia, e que está presente nos seguintes textos: Não
encontro dificuldade em definir-me; Sobre o horóscopo de Óscar Wilde; Carta a João
Gaspar Simões; Carta à editora de Aleister Crowley; Charles Dickens; A imoralidade
das biografias; A arte é a eliminação de um excesso de sensibilidade; Aviso por causa
da moral; A moderna literatura é uma literatura de masturbadores. Emprega uma
palavra derivada de pederastia, a palavra pederasta, nos seguintes textos : Pobres
diabos sempre com fome; A verdade acerca de homens como Shaw; A pederastia como
requinte; Elogio dos castos, dos pederastas, e dos masturbadores; William
Shakespeare; Só o homem pode ser casto; Ode Triunfal; Saudação a Walt Whitman;
355
Confirmar na antologia de textos organizada por Victor Correia : Homossexualidade e Homoerotismo
em Fernando Pessoa (ver através do índice).
356
Escritos sobre génio e loucura, vol. I, p. 349
Passagem das Horas; Declaração de diferença; Página do Diário (do heterónimo
Vicente Guedes); As nossas perpétuas mentiras, as nossas hipocrisias (do heterónimo
António Mora); Formato género Povo de Aveiro (de heterónimos e personagens não
identificados).357
Historicamente, a palavra pederastia significava o relacionamento amoroso e
sexual entre homens mais velhos e jovens do sexo masculino. No entanto, o
significado da palavra pederastia evoluiu, e no tempo de Fernando Pessoa era
empregue para expressar as relações amorosas e sexuais em geral, e portanto referia-se
a todos os homossexuais. Veja-se por exemplo a generalização da palavra pederastia na
seguinte afirmação de um médico e investigador do século XIX , referindo-se às
relações amorosas entre homens : “(…) Tive a ocasião de ler a correspondência de
pederastas confessos, e encontrei entre eles, sob as formas de linguagem mais
apaixonada, epítetos e imagens saídos dos mais ardentes transportes de verdadeiro
amor”.358 Existem também exemplos de autores portugueses, como o de António
Asdrúbal d’Aguiar, autor do livro Evolução da pederastia e do lesbismo na Europa :
contribuição para o estudo da inversão sexual , que foi um autor contemporâneo de
Fernando Pessoa, que mostra que no tempo de Fernando Pessoa a palavra pederastia era
empregue como é hoje a palavra homossexualidade, empregando-se para os homens a
palavra pederasta, e para as mulheres a palavra lésbica.359
As designações de pederastia, e de pederasta, que Fernando Pessoa também
emprega nos seus textos, como era próprio no seu tempo, emprega-as para se referir à
homossexualidade masculina em geral, como por exemplo na Saudação a Walt
Whitman, em que chama pederasta a este poeta, que não o era no significado grego da
palavra, mas sim no significado de homossexual (Walt Whitman teve como namorado
principal Peter Doyle, um homem que era motorista de autocarros, que conheceu por
volta de 1866, e de quem foi inseparável durante vários anos). Por outro lado, nos seus
poemas Walt Whitman canta a camaradagem homoerótica, tendo como referência
indivíduos do sexo masculino em geral, ou quando nesse poema o próprio Fernando
Pessoa expressa sentimentos de amor homoerótico para com Walt Whitman, a quem
num verso, na sequência de declarações homoeróticas, chama amorosamente : “meu
357
Confirmar também na antologia de Victor Correia, Homossexualidade e Homoerotismo em Fernando
Pessoa.
358
Ambroise Tardieu, Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs (“Estudo médico-legal sobre os
atentados aos costumes”), p. 20.
359
António Asdrúbal d’Aguiar, “Evolução da pederastia e do lesbismo na Europa : contribuição para o
estudo da inversão sexual”.
velho”. Houve mais autores da geração de Orpheu que empregaram a palavra
pederastia em referência à homossexualidade no sentido geral, e portanto em referência
aos homossexuais, como por exemplo Almada Negreiros, no poema que dedicou a
Fernando Pessoa, mais propriamente ao seu heterónimo Álvaro de Campos, o poema
Cena do Ódio, que começa assim: “Ergo-me pederasta apupado d’imbecis” (apesar de
Almada Negreiros não ser homossexual). Também por exemplo Mário de Sá Carneiro
emprega a palavra pederasta em referência à homossexualidade, empregando-a como
adjetivo, no seu poema Manicure : “(…) meu elzevir de curvas pederastas”, ou como
substantivo, na sua narrativa A Confissão de Lúcio: “Sinto tantas afinidades com essas
criaturas… como também as sinto com os pederastas”. Portanto, pederastia é uma
palavra cujo significado evoluiu, e que se emprega como designação para o
relacionamento amoroso ou sexual entre homens, e a palavra pederasta para o indivíduo
que tem esse relacionamento ou orientação sexual.360
No entanto, a palavra que hoje mais se emprega é a palavra homossexualidade.
Esta palavra provém do grego homos (igual) e do latim sexus (sexo), e refere-se à
atração física e emocional por uma pessoa do mesmo sexo, e aos respetivos
comportamentos amorosos e sexuais. A palavra homossexual foi criada em 1868 por um
jornalista austro-húngaro de língua alemã, Karl-Maria Kertbeny (1824-1882), ativista
dos Direitos Humanos, que designou através da palavra heterossexuais os homens que
se sentiam sexualmente atraídos por mulheres. Em 1880 Kertbeny escreveu um capítulo
sobre homossexualidade para o livro Die Entdeckung der Seele (“A Descoberta da
Alma”), de Gustav Jaëger, mas a editora retirou essa palavra, por a considerar polémica.
Todavia, Jaëger veio a empregar no seu livro a palavra criada por Kertbeny. Mais tarde,
no seu livro Psychopathia Sexualis (1886), o sexologista alemão Richard von Krafft-
Ebing (1840-1902) empregou as palavras homossexual e heterossexual a partir do livro
de Jaëger. Este livro foi tão influente que acabou por converter estas palavras em
designações de referência para a diferença da orientação sexual, em detrimento das
designações anteriormente existentes (sodomita, invertido, pederasta, e uraniano).
Antigamente não existia ainda o conceito de homossexual para quem tivesse
relações amorosas e sexuais com um indivíduo do mesmo sexo, nem existia a palavra
correspondente para se fazer referência à identidade de uma pessoa, o que só viria a
surgir no século XIX, com o discurso clínico. No entanto, há que fazer uma distinção

360
Ver por exemplo no conto de Vergílio Ferreira “A palavra mágica”, in Contos, Lisboa, Ed. Quetzal,
2009 (palavra empregue ao longo do conto).
entre ato homossexual e identidade homossexual, identidade entendida portanto não
como algo ocasional, mas sim como algo inerente à própria personalidade de um
indivíduo. Foi apenas na sequência da separação da Medicina do sexo perante a
Medicina geral, tendo como precursora a publicação, em 1846, da obra Psychopatia
Sexualis, de autoria do psicólogo austríaco Heinrich Kaan (1816-1893), que passou a
existir uma área médico-psicológica dedicada à homossexualidade. No entanto, embora
tenha tido inicialmente uma conotação clínica, hoje a palavra homossexualidade usa-se
de um modo geral, sem ter necessariamente essa conotação, que aliás não tinha, quando
essa palavra foi criada por Kertbeny. Homossexualidade, e homossexual, são as
designações mais empregues atualmente, para designar a atração física, o amor, e a
prática de sexo de um homem com outro homem, ou de uma mulher com outra mulher.
Fernando Pessoa também empregou essas designações, embora pouco, as quais podem
ser encontradas nos seguintes textos : O conceito de homossexualidade ; Proponho-me
demonstrar que a homossexualidade não é imoral ; Só o homem pode ser casto; Sobre
a novela António ; A moderna literatura é uma literatura de masturbadores ; numa
outra versão de um dos versos do poema Sei que desprezarias não somente, em que
escreveu : “Que mal há, se é que na alma há homossexual”. 361 No entanto, conforme
dissemos atrás, a designação que Fernando Pessoa mais empregou foi a de pederastia, e
de pederasta.
Atualmente existem outras designações para a homossexualidade, ou com ela
relacionadas, como por exemplo : homoerotismo, homoafetividade,
homossociabilidade, altersexualidade, homossexualismo, homocultura, estética cam,
identidade LGBT, gay, queer, etc. Estas designações pretendem substituir a palavra
homossexualidade, para alargarem o campo de vivências e de possibilidades ligadas à
homossexualidade, que não envolvem necessariamente atos sexuais, de modo a
incluírem também os afetos, o vínculo emocional, o romantismo, o amor, a
personalidade, a identidade de género, a expressão de género, a identidade de grupo,
uma cultura, uma comunidade, e uma estética. Porém, as novas designações por vezes
também são alvo de polémica, mesmo entre os homossexuais, e que alguns recusam,
como por exemplo a palavra homossexualismo, que tem a ver com a chamada ideologia
homossexual, com a qual alguns homossexuais não se identificam, ou que tem a ver
com os indivíduos que militam em movimentos que defendem e reivindicam os direitos

361
Confirmar na antologia organizada por Victor Correia, Homossexualidade e Homoerotismo em
Fernando Pessoa (ver através do índice).
dos homossexuais, indivíduos esses que podem não ser homossexuais. Portanto, nem
todos os homossexuais são homossexualistas, e nem todos os homossexualistas são
homossexuais.
Não cabe aqui analisar o significado e as críticas feitas a cada uma dessas novas
designações. No entanto, há que salientar que essas novas designações surgem
geralmente como recusa da categorização fechada e permanente da orientação sexual e
dos sentimentos ou envolvimentos de um indivíduo com outro do mesmo sexo. Por
outro lado, essas novas designações surgem também como alternativa, para
solucionarem o facto de historicamente existirem preconceitos ligados à palavra
homossexualidade. Esses preconceitos usavam essa palavra como referência negativa
em relação ao que se entendia por homossexualidade. Isso sucedia porque por um lado
associava-se demasiado às relações sexuais aquilo que se entendia por
homossexualidade, e por outro lado porque se conotava clinicamente essa designação.
Segundo as críticas feitas à palavra homossexualidade, esta palavra tem subjacente o
facto da heterossexualidade ser encarada como a forma natural da sexualidade humana
se expressar. Por outro lado, a palavra homossexual significa uma identidade da pessoa,
uma personalidade, por isso o emprego dessa palavra também é criticado por indivíduos
que se relacionam sexualmente com indivíduos do mesmo sexo mas que não se
consideram homossexuais.
Devido às conotações pejorativas associadas historicamente ao conceito de
homossexualidade, o emprego de novas denominações, como por exemplo as acima
referidas, tem também como objetivo tornar a linguagem mais neutra no que diz
respeito à discriminação, de modo a evitar que as designações possam ser ofensivas
para certas pessoas ou grupos sociais, como sucede por exemplo na linguagem racista
ou sexista. As novas designações procuram apagar os preconceitos, dizendo as coisas
de uma outra maneira (negro ou afrodescendente, em vez de preto; desfavorecido
economicamente, em vez de pobre; pessoa portadora de deficiência física, em vez de
aleijado; calvo, em vez de careca; obeso, em vez de gordo, etc.). O mesmo sucede
atualmente com a substituição da palavra homossexual por outras palavras, como por
exemplo a palavra gay, que são empregues para combater as conotações tradicionais
negativas da palavra homossexualidade.
Porém, essas designações substitutas por vezes são também ambíguas, e por
outro lado a objeção contra a palavra homossexualidade acaba também por ser
discutível. Nessa objeção afirma-se que uma pessoa que tem atos homossexuais não
significa necessariamente que essa pessoa seja homossexual (e são geralmente essas
pessoas as que criticam a palavra homossexual), mas mesmo assim os atos não deixam
de ser homossexuais. Uma outra objeção é a de que a palavra homossexualidade não
existia na Grécia antiga, e por isso não deve ser utilizada em relação a essa época. É
certo que essa palavra não existia, mas o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo
já existia, por isso podemos aplicar a palavra que significa esse relacionamento. Uma
outra objeção afirma que a palavra homossexualidade tem uma origem clínica, e que
era empregue nesse sentido, e que por isso não se deve empregar essa palavra. De facto,
era assim, mas hoje não é, pois atualmente emprega-se a palavra homossexualidade
para o amor e a sexualidade entre pessoas do mesmo sexo, sem se atribuir a essa palavra
e a essa conduta um significado clínico. Por outro lado, atualmente o emprego das
palavras homossexualidade e homossexual não se refere apenas às relações sexuais,
como sucedia no século XIX, mas refere-se também ao amor, e à expressão de afetos
em geral.
Não existe em Fernando Pessoa um tratamento ensaístico sobre o tema da
homossexualidade, embora ele tivesse projetado escrever uma obra sobre isso, como se
pode verificar num dos seus projetos, onde emprega a palavra “obra”, o projeto :
Proponho-me demonstrar que a homossexualidade não é imoral, de que falamos no
presente livro, no capítulo Livros que Fernando Pessoa pretendia escrever, obra essa
que Fernando Pessoa não chegou a concretizar. O modo de Fernando Pessoa tratar da
homossexualidade é por um lado escrevendo textos de carater homoerótico,
principalmente poesia, e por outro lado falando sobre o homoerotismo, quer em textos
sobre arte e literatura, quer em textos sobre escritores, principalmente sobre António
Botto e Raul Leal.
A homossexualidade é expressa por Fernando Pessoa, tendo como principal fio
condutor o homoerotismo. Os conceitos de homossexualidade e de homoerotismo têm a
ver um com o outro, mas não são necessariamente idênticos. A homossexualidade e o
homoerotismo têm em comum o prefixo homo, mas enquanto a palavra
homossexualidade põe a ênfase na sexualidade, a palavra homoerotismo põe a ênfase
no erotismo. A palavra homoerotismo foi criada por F. Karsh-Haak em 1911, e
empregue por Sandor Ferenczi no mesmo ano, ao criticar a Psicanálise. Enquanto a
palavra sexual remete para o ato físico, a palavra erótico é mais abrangente, pois
engloba um conjunto de ideias e de sentimentos, e expressa afinidades, desejos e
necessidades afetivas entre pessoas do mesmo sexo, que nem sempre inclui a parte
física, e que tem uma componente de criatividade e de expressão mais refinada, e por
conseguinte a palavra homoerotismo nem sempre diz respeito ao ato sexual
propriamente dito, diferentemente do que sugere, de uma forma geral, a palavra
homossexualidade. Alguns autores preferem falar de homoerotismo, e há também
alguns homossexuais que preferem empregar essa palavra, por um lado devido à carga
tradicionalmente negativa da palavra homossexualidade, e por outro lado por ser uma
palavra que coloca a ênfase numa maior delicadeza, e numa expressão mais rica,
criativa, poética e profunda das expressões amorosas e sexuais.
Todavia, o conceito de homoerotismo apresenta também algumas dificuldades
de compreensão, pois também ele é subjetivo, e pode portanto ser também discutível. A
dificuldade de compreensão desse conceito resulta, antes de mais, do próprio conceito
de erotismo. Este último provém do termo grego eros (“desejo amoroso”), designando
o amor e a sexualidade. Porém, o conceito de erotismo, como é entendido hoje, não
aponta diretamente e apenas para as relações sexuais propriamente ditas, mas para o que
suscita a atração e o desejo sexual através da imaginação (as fantasias, por exemplo). A
cultura e o importante papel que a imaginação desempenhou em todas as épocas na
elaboração de códigos eróticos, conduziram à função especificamente criativa do
erotismo, e ao carater complexo, e de certo modo refinado, da sua expressão enquanto
veículo da sexualidade. Assim como a comunicação verbal transforma e recria a
linguagem em poesia, a comunicação verbal transforma e recria a sexualidade em
erotismo. O erotismo joga com a imaginação e a criatividade, por esse motivo a melhor
forma de fazer erotismo é recorrer à literatura e à arte, e o erotismo tem sido portanto
uma fonte de inspiração constante nestas formas de expressão. O erotismo está
sobretudo presente na literatura e na arte, e no caso da literatura um texto erótico é
aquele que guia o leitor através de palavras criativas, subtis, indiretas, implícitas, e
sugestivas, a propósito da sexualidade, como sucede em muitos dos textos de Fernando
Pessoa, principalmente na sua poesia.
O conceito de erotismo remete para significados diferentes, e geralmente
ambíguos: depende dos grupos sociais, da época, do contexto geográfico, da cultura, da
mentalidade e da sensibilidade do leitor, do próprio contexto dentro da obra literária, da
intenção do autor na obra, e da visão que se tem sobre o autor. O que para um leitor
pode ser considerado como texto erótico, para outro leitor pode não ser : pode não ser
bem erótico mas quase, pode ser erótico, ou pode ser mais do que erótico (pode ser
considerado obsceno). Dado que a moralidade difere segundo a cultura e a época,
determinadas obras literárias outrora consideradas como obscenas, hoje são
consideradas simplesmente como eróticas (por exemplo o poema Epitalâmio, de
Fernando Pessoa).
O erotismo é um conceito muito abrangente, que permite integrar uma gama
muito vasta e rica de emoções, afetos, sensações, ideias e vivências. Tudo o que
contribui para fomentar a imaginação sobre o amor e o desejo sexual, pode ser
considerado como erótico. Através da exploração do imaginário, pode-se descodificar as
erotizações manifestas e latentes. Um certo erotismo pode ser expresso também através
de olhares, gestos, enfim, da linguagem verbal e não verbal, da linguagem corporal e
não corporal. O erotismo é portanto uma forma subtil e criativa da sexualidade, um
determinado nível de abordagem, uma forma mais rica e complexa de a abordar.
Tratando-se da personalidade de uma pessoa que tem atração e sentimentos por
pessoas do mesmo sexo, ou de uma pessoa que pratica atos homossexuais, é mais
apropriado empregar a palavra homossexualidade. Mas tratando-se de literatura, os
textos não são homossexuais, nem praticam atos homossexuais. Por isso, a palavra
homoerotismo é mais apropriada em relação a determinados textos, nomeadamente os
de poesia, que dado o facto de serem textos, e não obstante o facto de tratarem de
homossexualidade (implicitamente ou explicitamente), não são textos homossexuais
mas sim homoeróticos (ou textos sobre o homoerotismo, ou a propósito do
homoerotismo). Por outro lado, a palavra homoerotismo tem mais a ver com uma
forma específica de tratar o tema da homossexualidade, tem mais a ver com uma
estética, com a homossexualidade tratada de forma literária e artística, como sucede nas
metáforas homoeróticas, das quais falaremos no próximo capítulo.

METÁFORAS HOMOERÓTICAS EM FERNANDO PESSOA

DECADENTISMO

A auto repressão de Fernando Pessoa, o seu pudor, e a sua tendência para falar
das coisas de forma literária, ou de lhes dar um tratamento literário, fez com que
recorresse a máscaras, entre as quais algumas metáforas, para falar de
homossexualidade, isto é, o recurso a figuras de linguagem em que se transfere o nome
de uma coisa para outra com a qual é possível estabelecer uma relação de comparação.
Apresentaremos seguidamente os exemplos que consideramos serem os mais
significativos : decadentismo; degenerescência; perversão; vício; histerismo; artista.
No texto Tentativa de um ensaio sobre a decadência, escrito por Luís de
Montalvor, manifesto programático da revista Centauro (1916), o autor define o
conceito de decadente em termos que por um lado remetem claramente para a poética
sensacionista de Álvaro de Campos, e por outro veiculam uma proposta estética e
identitária considerada hoje como queer :
“Ah! ser-se decadente é ser-se lindo de gestos, é ser-se débil e femininamente o
sistema nervoso de todas as sensações, de todas as emoções, de todos os pensamentos,
de todas as inferioridades, de todas as grandezas, de todas as imoralidades, de todos os
ascetismos, da convulsão espasmódica e mediúnica do nosso século! É ser-se, enfim,
andrógino e equívoco de qualquer maneira. É ser-se, enfim, todos sem ser o que todos
são, que é o que é superior ao que são todos…”362
O decadentismo foi uma corrente literária e estética que tinha como uma das
suas características a ligação ao homoerotismo e ao que hoje se designa como cultura
queer. Durante muito tempo, a palavra decadentismo era uma maneira indireta de
referir “o amor que não ousa dizer o seu nome”, expresso através desta célebre
designação feita por um dos maiores representantes do decadentismo: Óscar Wilde. O
decadentismo via no homoerotismo a figura privilegiada do erotismo, da estética, e da
subversão. Por outro lado, os decadentistas eram também designados por “poetas
malditos “, designação esta que teve como autor Alfred de Vigny, citado várias vezes
por Fernando Pessoa na sua obra. Fernando Pessoa escreveu um poema sobre Arthur
Rimbaud,363 onde enaltece a figura deste autor, que foi um dos poetas decadentistas
mais famosos, assim como um poema sobre o seu namorado, também poeta
homossexual, Paul Verlaine,364 autor da obra Os poetas malditos. No tempo de
Fernando Pessoa as palavra decadente, decadência, e decadentismo eram também
muitas vezes uma expressão metafórica em referência à homossexualidade, mas que
Fernando Pessoa não empregava de forma pejorativa. Num dos seus projetos de textos,
intitulado Decadência , Fernando Pessoa define a decadência : “Assim como uma

362
Luiz de Montalvor, Tentativa de um ensaio sobre a decadência, pp. 7-8.
363
Poesia 1902-1917, pp. 141-142
364
Poesia, 1918-1930, pp. 408-409.
sociedade se pode distinguir por certos sentimentos, porque não por certas formas
anormais desses sentimentos ?”365
No tempo de Fernando Pessoa as designações de decadência e decadente eram
também uma maneira de referir obras homoeróticas, não de forma pejorativa, mas
assumida e enaltecida. Por exemplo, em Portugal, Judith Teixeira publicou em 1923
um livro de poesia lésbica, intitulado : Decadência. Houve outros autores homossexuais
portugueses que se destacaram no conceito de decadência, nomeadamente António
Botto, sobre quem Fernando Pessoa escreveu : António Botto e a estética decadente.366
No texto Correntes literárias e decadentismo,367 Fernando Pessoa fala da “revolta
contra as regras”, vinda do decadentismo, e associa o conceito de decadentismo a três
autores homossexuais : Óscar Wilde, Pater, e Walt Whitman. O texto de Ricardo Reis
A moderna literatura é uma literatura de masturbadores emprega também a palavra
decadentes em relação ao amor típico do Renascimento italiano (que era também
chamado vício florentino, como referência à homossexualidade).368 O próprio Fernando
Pessoa também se considerava a si próprio um poeta decadente. Numa das versões da
Saudação a Walt Whitman , onde fala da homossexualidade de Walt Whitman, Álvaro
de Campos, que como sabemos era o heterónimo com o qual Fernando Pessoa mais se
identificava, diz o seguinte : “Decadentes, meu velho, decadentes é que nós somos”. 369
Há mais textos em que Fernando Pessoa se considerava a si próprio um poeta decadente
: eu, poeta decadente”; 370 “Para mim, poeta decadente (…)”.371
Fernando Pessoa emprega também a expressão : o romano decadente. 372No que
diz respeito à chamada decadência romana, temos como exemplo o fragmento escrito
por Fernando Pessoa : Sobre a necessidade de criar lupanares masculinos.373 Os
lupanares eram os bordéis da Roma antiga. Fernando Pessoa escreveu também um
poema a que deu o título Decadência,374 que no manuscrito do seu espólio (42-29),
aparece imediatamente depois do poema : Juliano em Antioquia (um poema com
conteúdo homoerótico, sobre o imperador romano Juliano).

365
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 48 B – 3
366
António Botto, Canções, apêndice com textos de Fernando Pessoa, pp. 171-176.
367
Páginas Íntimas e de Autointerpretação, p. 176.
368
Prosa de Ricardo Reis, p. 225
369
Obra Completa de Álvaro de Campos, pp. 116-117
370
Páginas Íntimas e de Autointerpretação, p. 176
371
Ibéria, p. 83.
372
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 55 A – 40
373
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 55 A – 14
374
Poesia 1918-1930, pp. 89-90
Num texto sobre arte, em que diz que “o esteta agudo é em geral invertido
sexualmente”, Fernando Pessoa emprega também o conceito de decadente, dizendo o
seguinte : “O prazer, para o espírito decadente, serve de encher o vácuo da existência,
de evitar que ela pese, não com dor senão com tédio, o tédio que tanto pode
proceder da alegria que se prolonga como da dor que, sendo pronta, cansa”.375
Fernando Pessoa empregou mais vezes as palavras decadentismo, decadência e
decadente como metáforas de homossexualidade, ou como uma alusão indireta à
homossexualidade. Estes são no entanto alguns dos exemplos que consideramos serem
mais significativos.

DEGENERESCÊNCIA

O conceito de degenerescência (de que resultam palavras como degenerado), é


semelhante ao conceito de decadentismo, que aliás por vezes são empregues como
sinónimos, atribuindo-se ao conceito de degenerescência o significado de desvio. Por
exemplo Max Nordau escreveu em 1892 um famoso livro sobre o movimento
decadente, dando-lhe o nome de Degenerescência, livro esse que Fernando Pessoa
analisa e que também utiliza como sinónimo, 376 As considerações que Nordau faz sobre
o poeta homossexual Paul Verlaine, (impulsividade, concupiscência bestial, mudança
abrupta da euforia para a depressão, etc.), considerando Verlaine um “degenerado
repulsivo”, são um dos melhores exemplos da ligação do conceito de degenerescência à
homossexualidade. Outra das pessoas visadas por Nordau, no seu livro sobre a
degenerescência, é o escritor homossexual Óscar Wilde, não tanto devido à sua
literatura, mas devido à sua personalidade, que Nordau considerava decadente, pois
segundo Nordau, “Wilde fez mais com as suas excentricidades pessoais do que com as
suas obras”. 377
Jean Seul de Méluret, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, afirma que a
degenerescência “não é senão uma sexualização da arte, metendo o instinto sexual em
vez do instinto estético”378. Fernando Pessoa inclui a inversão sexual nas
degenerescências.379

375
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, p. 379
376
Sensacionismo e outros ismos, p. 422. Ver o fragmento 55E-57 do espólio de Fernando Pessoa.
377
Max Nordau, Degeneration, p. 317.
378
Obras de Jean Seul de Méluret , p. 54
379
Escritos sobre génio e loucura, Lisboa, tomo I, p. 320
Noutro texto Fernando Pessoa dá o exemplo do homossexual Walt Whitman
para o conceito de degenerado :
“Um facto curioso nas obras dos degenerados que mais acusam a
degenerescência nos escritos é a antítese às vezes entre a aparente saúde mental do
homem e o delírio de sua obra, outras vezes (como em Whitman) onde não há saúde
mental, em todo o caso entre o caracter do homem e o da sua obra.” 380 Numa das
versões do extenso poema Saudação a Walt Whitman, depois de falar da
homossexualidade deste autor, Fernando Pessoa fala da “degenerescência que nos
engana artistas”.381
Num dos textos sobre as mulheres, o texto que começa : Porque é que as
mulheres se detestam tanto umas às outras, diz sobre as feministas (que associa por
vezes às lésbicas) : “Daí as feministas. São uma degenerescência da feminidade”. 382
Também num texto sobre A Confissão de Lúcio (romance de Mário de Sá
Carneiro, onde o pano de fundo é a homossexualidade de uma das personagens),
Fernando Pessoa diz que “o livro todo é degenerescência” 383 Nesse texto Fernando
Pessoa faz referência à sexualidade das personagens desse romance de Sá Carneiro e à
sexualidade do próprio Mário de Sá Carneiro : “A Confissão de Lúcio é apenas a
Confissão do sr. Mário de Sá Carneiro”. Finalmente há também que referir o emprego
do conceito de degeneração à homossexualidade de Mário de Sá Carneiro, numa carta
de Sá Carneiro a Fernando Pessoa, em que ele afirma sobre Santa-Rita Pintor (que
também se encontrava em Paris como Sá Carneiro) : “(…) apresenta-me uma polaca
horrivelmente feia e diz-lhe que eu sou homossexualista ! A polaca replica que
simpatiza muito com os degenerados!”384
Alguns dos heterónimos ou personagens não identificados, em Fernando Pessoa,
também aplicam o conceito de degenerado em relação à homossexualidade:
“(…) Invertidos a querer criar uma literatura social, é a primeira vez que se vê
desde que o mundo é mundo.
O que toda esta cáfila de degenerados pensa fazer com a sua literatura não se
sabe!385

380
Idem, pp. 136-137
381
Obra Completa de Álvaro de Campos, p. 117
382
Misoginia e antifeminismo em Fernando Pessoa, pp. 123-129.
383
Escritos sobre génio e loucura, p. 442.
384
Cartas de Mário de Sá Carneiro a Fernando Pessoa, p. 17
385
Sensacionismo e outros ismos, pp. 61-62
(…) As “Canções” do degenerado anterior Sr. Botto, livro predileto da nossa
“melhor” sociedade”. 386
Finalmente, há que salientar que esse heterónimo ou personagem não
identificado em Fernando Pessoa aplica o conceito de degenerado ao próprio Fernando
Pessoa, dizendo o seguinte :
“O monárquico Fernando Pessoa, sinistra figura de degenerado que tem
acompanhado como uma sombra negra todos os uranistas 387 doentios dos atuais tempos,
também escreveu um artigo repugnante em elogio do livro do Sr. Botto”. 388

PERVERSÃO

As designações perversão, e perversão sexual, são outras das designações


presentes nos escritos de Fernando Pessoa, e antigamente eram uma das maneiras de
designar a homossexualidade. Lembremos por exemplo a célebre obra de Georges
Saint-Paul (com o pseudónimo : Dr. Laupts) : Perversion et perversité sexuelle,
(“Perversão e perversidade sexual”), que tinha o seguinte subtítulo : Une enquête
médicale sur l’inversion. Le roman d’un inverti né. Le procès Wilde. La guérison et la
prophylaxie de l’inversion (“Uma investigação médica sobre a inversão. O romance de
um invertido inato. O processo Wilde. A cura e a profilaxia da inversão”), obra editada
em Paris, pela editora George Carrel, em 1896. A literatura apropriou-se da expressão
perversão sexual, passando a empregá-la sem ser em sentido clínico. O próprio
Fernando Pessoa emprega as palavras perversão e perversão sexual, dando-lhes um
significado homoerótico, nos seguintes textos : nos contos A perversão do longe389,
Marcos Alves390, e O caso do professor de Ciências 391; nos textos de ensaio António
Botto e a estética decadente392, e O regresso dos deuses393 ; no fragmento : Requinte394 ;

386
Espólio de Fernando Pessoa, BNP/E3, 48H-9
387
Palavra derivada da palavra Uranismo, que significa homossexualidade. É uma palavra criada pelo
alemão Karl Heinrich Ulrich, em 1864, na sua obra Investigações sobre o mistério do amor entre varões.
388
Espólio de Fernando Pessoa, BNP/E3, 48H-9.
389
O Mendigo e outros contos, p. 57
390
A porta e outras ficções, p. 227
391
Histórias de um raciocinador e o ensaio História Policial, p. 42
392
António Botto, Canções, apêndice com textos de Fernando Pessoa, p. 171
393
Prosa de Ricardo Reis, p. 182
394
Espólio de Fernando Pessoa, BNP-E3, 55C-94 e 94a
nos poemas : Ode Triunfal395; Soneto positivo 396, Como um poeta do amor antigo ,e
397

Le Mignon.398. Num prefácio para uma edição dos seus poemas, que não chegou a
publicar, Fernando Pessoa disse o seguinte sobre o seu poema homoerótico Antínoo :
“O primeiro poema, Antinous representa o conceito grego do mundo sexual. Como
todos os conceitos primitivos, é substancialmente perverso”. 399
Nas suas apreciações literárias Fernando Pessoa aplica também o conceito de
perversão para a homossexualidade :
“Blake – um místico poeta – o tipo puro do místico-poeta ou místico-artista.
Presuming of spasmodics.
Claro que é fácil descobrir nele perversões. Sim (cf. Whitman) de normalidade.”400
No entanto, o emprego da palavra “perversão” não signifique que Fernando
Pessoa considerasse que a homossexualidade era uma “perversão”. Esta palavra é
aplicada citando ou descrevendo as referências que se faziam a homossexualidade, e era
empregue não no sentido clínico, mas sim literário, como forma de reforçar a carga
erótica dos seus poemas homoeróticos, como sucede por exemplo no seguinte excerto
de um desses poemas:

“(…) Em beleza p’lo dom com que te exalço...


Ó meu amor, o meu amor-mancebo
Vinho de Perversão que em sonho bebo!
(…)”401

VÍCIO

A palavra vício também era aplicada, tradicionalmente, em alusão à


homossexualidade, como se pode verificar por exemplo na obra publicada no tempo de
Arthur Rimbaud, intitulada Le vice à Paris, de autoria de Pierre Delcourt, editada em
1888, em Paris, na Editora Alphonse Piaget. Por vezes a palavra vício aparecia
395
Obra Completa de Álvaro de Campos, p. 53
396
Poesia, 1902-1917, p. 93
397
Idem, p. 174
398
Poesia Inglesa, II , p. 91
399
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 119-45
400
Apreciações literárias de Fernando Pessoa, p. 18
401
Poesia 1902-1917, p. 174.
associada a outra designação, como a de vício florentino, que historicamente era uma
referência à homossexualidade no Renascimento, nomeadamente em Florença. A partir
do século XVIII surgiu e espalhou-se também a designação de vício italiano, tendo os
viajantes estrangeiros desempenhado um papel fundamental na construção do
estereótipo do sul da Itália como um lugar de homossexuais. 402 Em alguns casos bastava
referir a palavra vício, mas noutros casos reforçava-se com a designação da sua origem
(Paris, Florença, Itália em geral, etc.).
Na literatura homoerótica a palavra vício é também empregue, mas não
pejorativamente. Por exemplo, a célebre obra literária de Jean Bosc, publicada no tempo
de Fernando Pessoa: Le vice marin – confessions d’un matelot (“O vício marítimo –
confissões dum marinheiro”), Paris, Ed. Pierre Douville, 1905, é uma obra de enredo
homossexual.
Raul Leal, poeta homossexual amigo de Fernando Pessoa, ao defender a
homossexualidade no seu livro Sodoma divinizada, emprega também a palavra vício
para se referir à homossexualidade : “Sodoma não foi condenada às chamas por ser
viciosa, mas por não ser misticamente viciosa”.403
Fernando Pessoa emprega algumas vezes a palavra vício, dando-lhe um
tratamento literário, e um significado homoerótico. Isso acontece, por exemplo, no
poema Como um poeta do amor antigo : “O ser o nosso amor, lá entre o mundo/ Um
crime douraria de ócio e vício”; no poema Ó dia pesado, que nasce assim a brilhar :
“Sonhos de estranho vício na terra do coração”; no poema Sei que desprezarias não
somente : “Porque vício da mente hei-de eu vergonha/ Em te cantar ?”; no poema
Soneto Positivo : “Ó Safo, negra sub-rameira, ronha/ Do vício em q’rer achar-se
subtileza”; no conto : Elogio do charlatão : “Um (a) vício oculto”; no texto Sobre o
poema Antínoo : “tem nele o vício e a imoralidade que expressou no poema”; no texto :
Coisas pensadas durante a noite de 2 para 3 de Fevereiro de 1917 : “sendo essa a sua
tendência natural, só por cedência a esse “vício” podia obter felicidade e satisfação”. O
poema de Fernando Pessoa, Sei que desprezarias não somente, aplica também a
palavra “vício” como referência à homossexualidade em Shakespeare. O poema A vida

402
Chiara Beccalossi, “The ‘Italian Vice’: Male Homosexuality and British Tourism in Southern Italy (O
"vício italiano": homossexualidade masculina e turismo britânico no sul da Itália), in: Italian Sexualities
Uncoveread 1789-1914 (Sexualidades italianas descobertas, 1789-1914). pp. 185- 195.
403
Raul Leal, Sodoma divinizada, p. 91.
de Arthur Rimbaud, refere-se também indiretamente à homossexualidade deste poeta,
empregando a palavra “vício”. 404
O conceito de vício é subjetivo, pois o que para uns pode ser um vício, para
outros pode ser apenas um hábito, como qualquer outro hábito. A designação de vício
para a homossexualidade, em alguns textos de Fernando Pessoa, não tinha como
objetivo criticar a homossexualidade, mas sim de a referir através de um designação
tradicional, cujo amor, na célebre expressão de Óscar Wilde, “não ousava dizer o seu
nome”.

HISTERIA

A histeria é outra metáfora homoerótica em Fernando Pessoa. O termo histeria


(do grego ὑστέρα, "útero"), tem origem no termo médico grego hysterikos, que se
referia a uma patologia peculiar a mulheres, conforme defendia o famoso neurologista
francês Jean-Martin Charcot. Já Hipócrates, o pai da medicina, falava sobre a histeria,
entre as doenças das mulheres. Naquela época, esses quadros clínicos eram muito
associados à abstinência sexual das mulheres considerando-se que era devido ao facto
de terem que se manter virgens, e nas quais, comparativamente com os homens, a
abstinência sexual era incentivada socialmente. A histeria é considerada uma neurose
causada pela repressão, pela instabilidade emocional, e por conflitos interiores, o que
pode acontecer em ambos os sexos. Porém, a histeria nos homens era tradicionalmente
associada à homossexualidade. Fernando Pessoa, em alguns dos seus textos, associa a
histeria masculina à homossexualidade, e emprega-a como metáfora (assim como
quando emprega as palavras degenerescência, e decadência). Damos o seguinte
exemplo : na Saudação a Walt Whitman (o texto número três dessa Saudação, incluído
no presente livro), Fernando Pessoa ao falar da homossexualidade deste poeta, a
determinada altura diz a Whitman : “Tu, músculo da inspiração, com musas masculinas
por destaque,/Tu, afinal, inocente em viva histeria”.405
Sobre Álvaro de Campos, o heterónimo Thomas Crosse diz o seguinte :
“A sua emoção vulcânica, a sua violência de sensação, a sua mudança
impressionante da violência para a ternura, duma paixão pelas coisas grandes e

404
Poesia 1902-1917, p.142.
405
Obra Completa de Álvaro de Campos, pp. 116-117.
estrondosas, para um amor pelas coisas humildes e tranquilas, as suas transições ...], 
ninguém ainda o conseguiu igualar neste histerismo”. 406
Fernando Pessoa fala também da sua própria histeria, ao falar sobre o conceito
de histeroneurastenia, que é formado por duas palavras : histeria, e neurastenia. A
neurastenia é um esgotamento mental causado por diferentes fatores, de entre os quais a
repressão dos sentimentos. Fernando Pessoa dá um exemplo de uma pessoa que ele
considera ser um histeroneurasténico: Shakespeare (a cuja homossexualidade Fernando
Pessoa se refere em alguns dos seus textos).407 Numa carta a João Gaspar Simões,
Fernando Pessoa diz-lhe o seguinte :
“Do ponto de vista humano – em que ao crítico não compete tocar, pois de nada
lhe serve que toque – sou um histeroneurasténico com a predominância do elemento
histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na vontade”. 408
Um heterónimo ou personagem não identificado fala também da histeria de
Fernando Pessoa, associando-a à sua tendência para a masturbação, que por seu turno,
conforme se pode ver no capítulo deste livro intitulado A masturbação, aparece algumas
vezes associada à homossexualidade :
“No snr. Fernando Pessoa o que há é, não tanto onanismo psíquico, mas uma
espécie de onanismo físico. A sua histeria é patente no desdobramento da
individualidade de que falámos há pouco”. 409

ARTISTAS

Fernando Pessoa sentia-se seduzido pelo conceito estético de Óscar Wilde e de


Walter Pater, que defendiam “a arte pela arte”, isto é, a ideia de que a beleza não
precisava de qualquer justificação além de si mesma, e portanto ficava fora da alçada da
moralidade e da intervenção social, e ligada ao esteticismo. No entanto, o esteticismo
nestes autores é uma metáfora e um eufemismo para a homossexualidade. O rumores de
homossexualidade, na Universidade de Oxford, onde Pater lecionava, confirmavam o
seu “esteticismo”, pois este grande esteta esteve envolvido em relacionamentos
homossexuais com o pintor Simeon Solomon (1840-1905), e com o poeta Algeron
406
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa, p. 193.
407
Pode-se confirmar por exemplo em : Escritos sobre génio e loucura, pp. 180 e 349.
408
Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões, p. 71 (carta de 11-12-1931).
409
Revista Pessoa Plural – Revista de Estudos Pessoanos, nº. 6, pp. 1-18.
Charles Swinburne (1837-1909), que Fernando Pessoa refere em alguns dos seus textos
e que muito admirava.
Estes autores foram aquilo que se convencionou chamar estetas, ou cultores do
esteticismo ao máximo, e conforme sublinha Fernando Pessoa, “o esteta agudo é em
geral invertido sexualmente”. 410,
Ligada à designação de esteta está a de artista, empregue aliás como sinónima.
A palavra artista, assim como outras semelhantes, como por exemplo dandy,
decadentista, ou decadente, cultivadas por Óscar Wilde, que muito influenciou
Fernando Pessoa, eram tradicionalmente metáforas empregues em referência aos
homossexuais, e Fernando Pessoa também a empregou nesse sentido. No texto do
heterónimo Barão de Teive, Aquele tempo perdido em analisar o que nunca se chegou
a passar, o barão, homem ainda solteiro, é acusado de não apreciar uma mulher, apesar
dessa mulher ser lindíssima. O Barão de Teive responde dizendo que não é homem, mas
sim artista.411 Há também um texto de António Mora - um dos heterónimos de
Fernando Pessoa, que ao falar sobre determinados indivíduos afirma : “a mentalidade
artística deles era uma mentalidade de pederastas”.412 Há também uma das versões da
Saudação a Walt Whitman , que refere : “A degenerescência que nos engana artistas” 413
(lembremos que a palavra degenerescência foi geralmente usada em Fernando Pessoa
como metáfora de homossexualidade).
O texto Elogio dos castos, dos pederastas e dos masturbadores apresenta os
artistas como fazendo parte da “anormalidade sexual” :
“A vida sexual é a base de toda a vida, por isso, para uma vida anormal, como é
a vida artística ou literária ou científica, é preciso uma anormalidade basilar, sexual
portanto.
Consoante a anormalidade literária ou artística, assim deve ser a basilar
anormalidade sexual”.414
O texto Carta inorgânica do estado independente do Bugio refere-se mais
claramente aos artistas como homossexuais (ou aos homossexuais como artistas), ao
falar na permissão de haver casamento entre pessoas do mesmo sexo, num Estado
imaginário, o Estado do Bugio :

410
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, p. 379.
411
A educação do estoico, pp.21-22.
412
Obras de António Mora, vol. VI, p.105
413
Obra Completa de Álvaro de Campos, p.117
414
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 133 G-88
“Designadamente, e para facilitar a imigração de artistas, se exclui, de todas as
leis e registos de propriedade referentes a casamento, a exigência de diferença de sexo
entre os nubentes”.415
No texto de um heterónimo ou personagem não identificado, Fernando Pessoa
associa também os artistas aos homossexuais, e os homossexuais aos artistas, texto esse
em que emprega a denominação de “invertidos sexuais”. Poderá ver-se esse texto
completo num dos capítulos do presente livro, o capítulo : Orpheu – uma revista de
invertidos. Citamos aqui apenas uma pequena passagem, devido ao emprego da palavra
“artistas”
“Acaba de aparecer p’raí o segundo número duma revista de mulheres chamada
Orpheu, empestando a atmosfera, e até as próprias pedras bradam ao céu por causa
daquilo.
Os sucios,416 trajando de artistas”.417
Historicamente o mundo da arte protegeu o facto de se ser homossexual, pois um
artista homossexual não era encarado de forma tão negativa, comparado com uma
pessoa que tivesse outra ocupação ou profissão. Os pintores, os bailarinos, os atores,
etc., eram, geralmente, considerados como pertencentes a uma certa anormalidade
social, por isso os casos de homossexualidade acabavam por se confundir com a sua
atividade profissional, e vice-versa. Os artistas, de um modo geral, eram encarados
como indivíduos que cultivam a exuberância e a excentricidade em nome da arte. Aos
artistas, aos atores, aos bailarinos, aos cantores, e aos poetas, devido à sua originalidade
estética, permitia-se e permite-se mais facilmente determinadas “excentricidades” que
não eram nem são permitidas tão facilmente a outros indivíduos. Por isso, muitos
homossexuais desde sempre se sentiram mais à vontade no mundo da arte, como por
exemplo no teatro, na ópera, no bailado, ou no meio de poetas. Era mais aceite
socialmente o facto de uma pessoa ser homossexual, devido ao facto dessa pessoa ser
artista ou poeta, e portanto muitos atores, cantores, bailarinos, poetas, etc., encontraram
nessa sua ocupação um mundo mais propício do ponto de vista social, por um lado
devido ao facto de sentirem-se identificados com a arte e a literatura, enquanto
indivíduos homossexuais, e por outro lado devido ao facto do mundo artístico e
literário tender a aceitá-los mais facilmente, pois muitos artistas e escritores eram
415
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 92 F-52
416
Palavra espanhola, que significa : indecentes, obscenos, imorais.
417
Sensacionismo e outros ismos, pp. 61-62.
homossexuais. Por conseguinte, a arte e a literatura foram uma forma implícita de
proteger e expressar os afetos homossexuais. No caso da literatura, por exemplo,
algumas das correntes literárias são disso um exemplo. Antes de haver palavras como
gay, ou lésbica, os grandes autores e as grandes obras eram salvos da homossexualidade
através de categorias artísticas e literárias eufemísticas como esteticismo, que tinham
muito a ver com o dandismo, isto é, com a afetação no estilo e nos modos de
comportamento, que faziam parte da maneira de viver a própria vida no dia a dia, e que
estavam presentes na arte, e pelo facto de muitos artistas serem homossexuais, e dos
homossexuais, mesmo não sendo artistas, serem considerados geralmente como tendo
uma “sensibilidade de artista”, e de serem “estetas” na sua forma de vida e na sua forma
de se apresentarem no dia a dias, por exemplo na forma de vestir, nomeadamente os
dândis.
A palavra “artista” não tem portanto o significado estrito (pintor, escultor), mas
amplo, fazendo da própria vida uma obra de arte, por exemplo na forma de estar, de
falar, de comer, de andar, e sobretudo de vestir e de se arranjar, que o próprio Fernando
Pessoa também cultivou na sua própria vida. Fernando Pessoa andava sempre vestido de
fato, de cor preta ou de tons escuros, fatos bem vincados, que mandava fazer em bons
alfaiates de Lisboa, vestia imaculadas camisas brancas, os sapatos andavam sempre bem
engraxados, tinha o cabelo e o bigode sempre muito bem aparados, e por vezes vestia
também gabardine bege. Usava óculos redondos com armação em osso, por vezes um
anel de prata com brasão da família, e quase sempre um laço no pescoço. Há também
que sublinhar o facto de Fernando Pessoa gostar que lhe fizessem manicure. Manuela
Nogueira, sobrinha de Fernando Pessoa, afirma no seu livro de memórias sobre
Fernando Pessoa que depois de lhe fazer a barba lhe arranjava as unhas : “Se o via
disposto a aceitar um arranjo de unhas, iniciava o segundo tratamento. A toalha passava
para o colo e os apetrechos da toilete da minha mãe entravam em função. As peles das
unhas eram amolecidas em água com sabão, repuxadas para baixo, bem limpas, e no fim
usava o polidor de unhas”.418
Esses gostos estéticos refinados de Fernando Pessoa, toda a sua elegância, a sua
preocupação com a toilette, o seu fato impecável, o seu cigarro, o seu chapéu, o seu uso
frequente de laço ao pescoço, os seus óculos redondos de armação em osso, a sua
vaidade no vestir, o seu gosto em arranjar as unhas, etc., fizeram de Fernando Pessoa
um dândi à sua maneira, à semelhança de Óscar Wilde, que o influenciou e que muito
418
Manuela Nogueira, Fernando Pessoa – imagens de uma vida, p. 66.
admirava. Ao cuidar tanto da sua aparência do ponto de vista estético, Fernando Pessoa
fez da sua própria vida uma obra de arte, e portanto foi um artista não apenas como
poeta mas também como indivíduo, tendo em si essa característica que é
tradicionalmente associada aos homossexuais.419

FIGURAS DO IMAGINÁRIO HOMOERÓTICO DE FERNANDO


PESSOA

PRÍNCIPES ENCANTADOS

A figura do príncipe está presente na obra literária Os contos da minha mãe Oye,
de Charles Perrault, publicado em 1697. É apresentado como "o príncipe", e a
qualificação de "encantado" não aparece ainda neste autor. Também nas obras dos
irmãos Grimm, apesar de haver príncipes, não aparece ainda a designação de “príncipe
encantado”.
No século XVIII, a escritora Madame d'Aulnoy deu ao herói da sua história A
bela de cabelos de ouro, o nome de "Avenant" e, em O pássaro azul, a de "Rei
Encantado". No século XIX, Andrew Lang, nas suas adaptações de contos, emprega a
designação de príncipe encantado. Este escritor introduz a designação de "Príncipe
Encantado" na história de Princesa Ninguém ilustrada por Richard Doyle quando a Fada
da Água metamorfoseia o Príncipe Cómico antes de conhecer a sua Princesa Niente. No
bailado A Bela Adormecida de Pyotr Ilyich Tchaikovsky (1890), aparece também o
“príncipe encantado”, cujo nome é "Florimond".
Como personagem típico, no imaginário amoroso e erótico, o príncipe encantado
representa o homem ideal adornado com todas as qualidades e os sonhos de todas as
mulheres. Nos contos populares, o conceito de “príncipe encantado” encarna o ideal
masculino de despertar a heroína para o amor, a idade adulta e a sexualidade, e que foi
imortalizado por alguns escritores, como por exemplo Charles Perrault, em A Bela
Adormecida.
419
Sobre a ligação entre a homossexualidade e a grande elegância no modo de vestir, ver por exemplo o
livro de Thierry Pastorello, L’homosexualité et son apparence vestimentaire : du XIX siècle jusqu’à 1914 :
des représentations transgressives et caricaturales (“A homossexualidade e a sua aparência
vestimentária, do século XIX até 1914 : representações transgressivas e caricaturais). Texto online em :
Academia.edu.
No imaginário coletivo ocidental, o indivíduo fantasiado com quem se imagina
viver um amor sem confrontos intermináveis é comumente designado por príncipe
encantado, o que faz com que muitas meninas e mulheres sonhem com ele desde a sua
infância. O príncipe encantado é portanto uma imagem do homem ideal, com quem se
fantasia e que se deseja.
A imagem do príncipe faz também parte das imagens cultivadas
tradicionalmente pelo imaginário homoerótico (o marinheiro, o príncipe, o guerreiro, o
cavaleiro, o imperador, o pastor, etc.). Sonhar com príncipes, invocá-los, admirá-los, e
desejá-los, é algo que ocorre em alguns textos de Fernando Pessoa, como por exemplo
num poema de que apresentamos o seguinte excerto :

“(…) Meu Príncipe, o teu segredo


De magia e condição,
Ficou lá entre o arvoredo,
Aqui és teu arremedo,
Vives de erguer pó do chão.

Assim meu ser com que amei


Deuses antes de a alma ver
Vive hoje dentro da lei
Que fez de mim quem não sei,
O chão do nada a varrer”.420

Num dos textos dramáticos de Fernando Pessoa, A morte do príncipe, também


há uma idealização e uma atração pela figura do príncipe, que dialoga com um
personagem que tem a designação de “X”, que através de uma frase desse texto ficamos
a saber que é um homem :
“Príncipe : (…) Quem te disse que eu não sou uma roseira brava e este corpo
que pelos vales conheces o meu mero perfume. És cego realmente, e só aprendes o meu
perfume irreal sob a fúria real da visão”. 421 E nesse diálogo com o homem “X”,
Fernando Pessoa diz-lhe : “Amo-te com compaixão, porque te julgas real”.422

420
Poesia 1931-1935, p. 199
421
“A Morte do Príncipe”, in Teatro Estático, o. c., p. 102
422
Idem, p. 100
Por seu turno, o personagem “X”, ao longo do texto, também exprime
sentimentos de dedicação amorosa para com o príncipe com quem fala. Mas o príncipe
dá pouca importância ao facto de ser príncipe, e pede a “X”:
“Tratai-me antes de Senhora… Sou uma princesa de quem se esqueceram
quando buscaram rainha”.423
Noutro diálogo entre dois homens, que também faz parte dos textos dramáticos
de Fernando Pessoa, o texto Os Emigrantes, um desses homens fala com um homem
que o ama, comparando o amor desse homem ao de um príncipe :
“(…) Ah, tudo em ti me trai ! Tudo. Todos os teus pensamentos estão como os
ramos das árvores da tua terra natal. Todo o teu amor tem-no um príncipe qualquer
dessa terra longínqua… Sou para ti apenas o embaixador da tua pátria, no meu valor
estranho ao menos em mim…”424
Numa carta a Sá Carneiro, Fernando Pessoa exprime também a sua tendência
para sonhar com príncipes. Nessa carta Fernando Pessoa fala no não aparecimento do
príncipe, na sua não realização na sua vida, e mostra o seu desalento por esse facto :
“Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é
sincera, e que as cousas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que sinto.
Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou
de chávena — cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas
folhas. Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas
neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar. Pode ser
que se não deitar hoje esta carta no correio, amanhã relendo-a, me demore a copiá-la à
máquina, para inserir frases e esgares dela no Livro do Desassossego”.425
Num texto do Livro do Desassossego, o texto “Às vezes sou costureira
masculina”, aparece também a imagem do príncipe :
“Às vezes sou costureira masculina, e tenho príncipes, que são princesas”, texto
esse em que os príncipes são como princesas para Bernardo Soares, ou para quem as
princesas significam príncipes, isto é, para ele são como se fossem príncipes”. 426
Há outro texto do Livro do Desassossego, em que Bernardo Soares fala em
princesas, e também as associa aos sonhos, mas são as princesas dos sonhos dos outros :

423
Idem, p. 96
424
“Os Emigrantes”, in Teatro Estático, o. c., pp. 121-122
425
Correspondência, 1905-1922, o.c., pp. 208-209
426
Edição do Livro do Desassossego de Teresa Sobral Cunha, p. 374. Edição do Livro do Desassossego de
Jerónimo Pizarro, p. 506.
“tudo era absurdo, como um luto, e as princesas dos sonhos dos outros passeavam sem
claustros indefinidamente” (19-63) (as princesas dos sonhos dos outros indivíduos, e
não dos dele, Bernardo Soares). Existe mais um texto no Livro do Desassossego em que
Bernardo Soares se dirige a um príncipe, em que sonha com ele, e fala dele com
admiração e fascínio, conforme se pode ver no texto que se segue :
“Príncipe, a tua glória é morta, o teu cetro pedrarias perdidas, nem nos montes o
teu manto, em o teu reinado futuro portões entreabertos, construídos assim, para
eternamente serem apenas isso.
Préstitos sugerindo ogivas, atalhos através de roupagens, angélico o teu sorriso
esquecido... Que de reis na tua memória! E às portas da tua imaginação que séquito sem
príncipe te espera? Olor a Roma. Timbales lívidos. Aperfeiçoam-se os brilhos. Estacam
os contornos. Maleáveis os sulcos no teu arco, e a noite, ensopando a paisagem, é uma
conquista no Oriente”.427
Neste último texto Bernardo Soares lamenta que a glória do príncipe esteja
morta, e elogia o seu “sorriso angélico”, e a sua memória faz Bernardo Soares evocar
reis : “que de reis na tua memória”, que se liga com outros textos também do Livro do
Desassossego, em que Bernardo Soares fala em algo associado aos príncipes : os reis,
mais concretamente em “reis de sonho”,428 que também o fascinam.

MARINHEIROS

Os marinheiros são uma das figuras representativas da masculinidade, um


símbolo da virilidade, como os cavaleiro, os guerreiros, os piratas, os príncipes, etc., que
são exaltadas por Fernando Pessoa em alguns dos seus poemas homoeróticos. Os
homens com fardas militares sempre exerceram grande sedução entre os homossexuais,
mas entre todas as fardas, aquela que mais suscita tradicionalmente a atração
homossexual é a dos marinheiros. Os marinheiros exercem um fascínio enorme nos

427
Edição do Livro do Desassossego de Teresa Sobral Cunha, p. 133 . Jerónimo Pizarro também incluiu
este texto na sua edição do Livro do Desassossego (pág. 505), mas com algumas palavras que não são
iguais. Ao confrontarmos as duas edições com o original, pareceu-nos que a de Teresa Sobral Cunha faz
mais sentido, por isso a incluímos aqui.
428
Bernardo Soares, Livro do desassossego, (edição de Richard Zenith), texto 171, p. 189, e texto 403, p.
366. A edição do Livro do Desassossego organizada por Teresa Sobral Cunha inclui também outro texto
(p.133). Ver no livro de Victor Correia, Homossexualidade no Livro do Desassossego de Fernando Pessoa,
o capítulo “Reis de sonho”, pp. 109-114.
homossexuais, pelo seu belo aspeto, pelo uso de um atraente uniforme, pela sua atitude
quase heroica por navegarem em alto mar e serem detentores de uma destemida
coragem e determinação, que caracterizam e reforçam a sua virilidade. A figura do
marinheiro (também designado por marujo), faz parte do imaginário homoerótico, a
nível real e também literário, como se pode ver por exemplo em determinadas obras
literárias homoeróticas. No romance português de Abel Botelho, O Barão de Lavos, que
é de conteúdo homossexual, e que foi a primeira obra de conteúdo homossexual
masculino publicada em Portugal (1891), o barão procurava “tipos de músculo e de
força, marujos, militares”.429
Outro romance de enredo homossexual, surgido em 1895, foi o romance O Bom
Crioulo, de autoria de Adolfo Caminha, um escritor brasileiro, cuja história de amor
passa-se entre dois marinheiros. Um dos primeiros romances de enredo homossexual
aparecidos também em França, o romance de Pierre Loti : Mon frère Yves, publicado
em 1883, tem também como enredo a paixão de um homem por um jovem marinheiro.
Também, por exemplo, a célebre obra de Jean Bosc, publicada no tempo de Fernando
Pessoa: Le vice marin – confessions d’un matelot (“O vício marítimo – confissões dum
marinheiro”), Paris, Ed. Pierre Douville, 1905, é uma obra de enredo homossexual que
tem como protagonista principal um marinheiro. Em 1924 foi publicado também um
romance com conteúdos homossexuais, o romance Billy Bud, marinheiro, que tinha sido
escrito em 1891 pelo escritor norte americano Herman Melville. Também, por exemplo,
a célebre obra de Jean Genet, Querelle de Brest, publicada em 1947, e que é de
conteúdo homossexual, tem como protagonista um marinheiro, e foi adaptada ao cinema
pelo cineasta homossexual Rainer Fassbinder. Também, por exemplo, no romance de
conteúdo homossexual do escritor português Guilherme de Melo, A sombra dos dias,
publicado em 1981, a procura de sexo é geralmente em busca de soldados e
marinheiros.
Em Fernando Pessoa, há poemas que expressam a sua sedução por marinheiros,
alguns de tipo homoerótico, ou com alusões nesse sentido, como por exemplo este :

“Marinheiro-monge
Desse mar profundo
Rema-me para longe
De eu sentir o mundo
429
Abel Botelho, O barão de Lavos, p. 394.
Veja eu debruçares
O teu corpo firme
Para trás e ao remares
Eu voar sentir-me.
(…)
Rema, e que dos teus braços
O angular potente
Que impele o barco apanhe os traços
Do meu sentir doente”.430

Eis outro poema em que Fernando Pessoa refere um marinheiro, que o faz
sonhar, chorar e soluçar :

“Vagamente, sem pranto, quase incerta,


No acaso nocturno de qualquer rua
Uma canção indecisa desperta
Longínqua, e em mim flutua.
Pobre da mágoa que trago comigo,
Que a tivesse aquela voz teria voz,
Mas nunca a tê-la até a dizer consigo
E, errando a vida e a (…), 431 choro a sós.
Vazia, incerta consciência de viver,
Desabam os muros da casa onde nasci…
Sinto-me chorar, sem saber, sem querer,
E há a (…)432 do que sonhei que vi…
Tu, marinheiro, soluço, tão de leve, tanto”.433

Também um dos poemas homoeróticos do heterónimo Álvaro de Campos, a


Saudação a Walt Whitman, fala eroticamente de marinheiros :

430
Poemas de Fernando Pessoa, 1921-1930 (edição da editora Assírio& Alvim), p. 309
431
Espaço deixado em branco pelo autor.
432
Palavras de difícil decifração no manuscrito.
433
Poemas de Fernando Pessoa, 1915-1920 (edição da editora Imprensa Nacional Casa da Moeda), p.
161
“(…)
Os marinheiros levaram-me preso.
As mãos apertaram-me no escuro.
Morri temporariamente de senti-lo.
Seguiu-se a minh’alma a lamber o chão do cárcere-privado”.434

Na Ode Marítima , que é um poema com vários versos homoeróticos, Álvaro de


Campos fala em piratas e em marinheiros, cuja bravura e masculinidade muito o atrai.
Álvaro de Campos fala mais vezes em marinheiros, e há um verso em que fala mesmo
em “marinheiro de sonho”:

“(…)
As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que deviam seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho...”435

O conto homoerótico de Fernando Pessoa, A perversão do longe, tem como


personagem principal um homem com “ar de marinheiro e aventureiro”, segundo as
próprias palavras de Fernando Pessoa, e o narrador pede a esse homem que o leve com
ele.436
Na peça de teatro de Fernando Pessoa, O Marinheiro, em que entram em diálogo
três personagens (três veladoras), uma delas conta que sonhava com um marinheiro que
se houvesse perdido numa ilha longínqua, e fala lacrimosamente do seu desejo de o ter
nos braços. Num texto do Livro do Desassossego, que é uma carta a Mário de Sá
Carneiro, mas que alguns investigadores incluíram também no Livro do Desassossego
devido ao facto de Fernando Pessoa dizer nela que iria colocar frases dessa carta no
Livro do Desassossego, e do estilo ser muito semelhante entre esses dois textos,
Fernando Pessoa refere a obra O Marinheiro. Numa frase dessa carta a Sá Carneiro,
Fernando Pessoa identifica-se com o estado de espírito de uma das veladoras que

434
Idem, p. 115
435
Poesias de Álvaro de Campos, p. 241
436
O Mendigo e outros contos, pp. 57-64
sonhava com o seu marinheiro, e num determinado momento diz o seguinte : “Como à
veladora do Marinheiro ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar”.437
Na poesia do poeta homossexual António Botto existe também a figura do
marinheiro, que muito o atrai, e são várias as vezes que Botto se refere a ele nos seus
poemas, como por exemplo no poema seguinte :

“Olha aquele marinheiro


A dançar embriagado !...
Ele parece uma quilha,
Ele é belo ! Os olhos verdes,
São como duas estrelas,
No oval do rosto queimado.” 438

A figura do marinheiro é também uma presença importante na prosa de


António Botto, como por exemplo no livro Alfama, e até mesmo a capa da sua primeira
edição tem como ilustração um marinheiro, retratado de forma sensual. Num dos
parágrafos desse romance pode ler-se por exemplo sobre o marinheiro esta afirmação:
“Ele é simpático, insinuante, machão… O que é certo é que ele fica muito bem de
marinheiro; Amadeu : Sim, é vistoso… o corpo é bem… A farda não lhe vai mal… Dá-
lhe um outro garbo, um outro interesse…” 439 António Botto tinha atração pelos
marinheiros não apenas na sua obra literária, mas também na sua vida pessoal,
conforme afirma Francisco Bugalho, relatado por Moitinho de Almeida. Francisco
Bugalho disse que viu Botto “num carro elétrico agarrado a um marinheiro” 440 e que ele
frequentava a região das docas marítimas de Alcântara, onde buscava a companhia de
marinheiros, conforme é referido pelo investigador José Paulo Cavalcanti.441
Esta atração de António Botto pelos marinheiros tem muito a ver com o
imaginário homoerótico, pois os marinheiros são jovens, viris, e estão libertos de
compromissos conjugais, gostando de aventuras não só em alto mar, mas também em
terra, que se encontravam em Lisboa, sem compromissos familiares, na flor da idade, e
vestidos de farda, por isso sempre fizeram parte do tipo de indivíduos muito desejados

437
Correspondência, 1905-1922, o. c., pp. 208-209
438
Avida que te Dei, 1938, canção 2.
439
Citado em Anna M. Klobuka, O mundo gay de António Botto, Lisboa, p. 170.
440
Zetho Cunha Gonçalves, Notícia do maior escândalo erótico-social do século XX em Portugal, p. 207.
441
José Paulo Cavalcanti, Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, p. 127.
pelos homossexuais, não só em Portugal como também por exemplo no Brasil, para
onde António Botto foi viver, nomeadamente no Rio de Janeiro, cidade onde, conforme
afirma Anna Klobucka, havia “homossexuais de classe média e alta que gostavam de
homens verdadeiros de classe operária, soldados e marinheiros”.442
Conforme afirma também a historiadora São José Almeida, ao falar sobre a
homossexualidade em Lisboa nas primeiras décadas do século XX (nas quais Fernando
Pessoa viveu), “geralmente eram os boémios, artistas, e literatos, que manifestavam as
suas orientações quando recorriam aos serviços sexuais de marinheiros nos cais” 443 , isto
é, no cais das colunas, onde se passa a cena do conto homoerótico de Fernando Pessoa
A perversão do longe, assim como no Cais do Sodré, e no cais de Alcântara. Ao longo
destes cais, até à zona de Belém, durante a noite, havia marinheiros desembarcados a
passearem (numa zona da cidade então com pouca luz), e no Livro do Desassossego
Bernardo Soares associou a atmosfera de uma cidade diferente em pleno dia (pela qual
sentiu doçura e deslumbramento), aos indivíduos a que ele chama os “marinheiros
desembarcados da esquadra de ontem à noite”.444
Há aqui uma certa mistificação da cidade, referente não apenas à própria cidade
de Lisboa, mas à própria ideia de cidade, onde passavam barcos e marinheiros
desconhecidos, conforme afirma Bernardo Soares noutro fragmento do Livro do
Desassossego : “… barcos que passam na noite e se nem saúdam nem conhecem”.
445
São um mundo de transeuntes vindos de outros lugares, que estão portanto de
passagem, principalmente os marinheiros desembarcados de que Bernardo Soares fala
no Livro do Desassossego, em que a cidade exterior e concreta o faz transportar, por
contraste, a uma cidade desejada, imaginária e idealizada, em que os transeuntes àquela
hora do dia o fizeram lembrar uma outra cidade, um cidade à margem, fora deste
mundo, a dos marinheiros passeando durante a noite, uma cidade outra, anónima e
diferente, marcada pela sedução da virilidade, à beira rio, ao longo do cais.

CAVALEIROS E GUERREIROS

442
Anna M. Klobucka, O mundo gay de António Botto, p.244.
443
São José Almeida, Homossexuais no Estado Novo, p. 37.
444
Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Texto 190, p. 202.
445
Idem, texto 318, p. 303.
O cavaleiro é também uma figura masculina, por excelência, e está
tradicionalmente associado à bravura, à valentia, à virilidade. A importância da
cavalaria vem da Antiguidade clássica, de que se destaca o famoso Batalhão de Tebas,
uma força de elite guerreira muito associada também à homossexualidade, e um dos
cavaleiros mais famosos da Grécia antiga foi Hefestião, que foi namorado do
Imperador Alexandre Magno. A figura do cavaleiro era um ideal muito admirado na
Grécia antiga, descrito por Plutarco ao longo da sua obra Vidas Paralelas, que segundo
este autor era uma tropa de soldados de cento e cinquenta casais homossexuais
masculinos, que formavam a tropa de elite do exército tebano no século IV a. C. 446
Na Roma antiga a cavalaria tinha também uma grande importância, e o mestre
de cavalaria era escolhido pelo próprio Imperador. Mas a cavalaria atinge o seu
máximo esplendor na Idade Média, e segundo o reputado historiador francês, Georges
Duby, a vida cavaleiresca criava laços sólidos que ultrapassavam a simples
camaradagem, empenhando dois cavaleiros até à morte, ligações que se exprimiam em
sentimentos misturados com o vigor militar.447
Também o investigador Laurence Fredette-Lussier estudou as “amizades
particulares” entre os cavaleiros do rei Artur, na Idade Média, fazendo notar uma
ambiguidade sexual e um homoerotismo, se não afirmados, pelo menos latentes. Neste
seu estudo sobre a figura clássica do cavaleiro, Fredette-Lussier destaca as amizades
viris ambivalentes entre os cavaleiros, e as afrontas físicas como uma tendência da
aproximação carnal.448
A figura do cavaleiro é também uma das componentes do imaginário
homoerótico em Fernando Pessoa, de que existem alguns exemplos nos seus textos. O
seu primeiro heterónimo foi aliás o Chevalier de Pas, que segundo Fernando Pessoa o
acompanharam como figuras do seu sonho, desde muito novo, alimentado aquilo que

446
Plutarco, Vidas paralelas, Coimbra, Ed. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.
447
Cf. Georges Duby, Guillaume le Maréchal , ou le meilleur chevalier du monde (“Guilherme, o
Marechal, ou o melhor cavaleiro do mundo”), Paris, Ed. Fayard, 1984, e Dames du XII.ème siècle,
(“Mulheres do século XII”), Paris, Ed. Gallimard, 1995. Também o reputado historiador francês Jacques
Le Goff analisa esse fenómeno no seu estudo intitulado: “Chevalerie et Sodomie” (“Cavalaria e
Sodomia”), na obra La quête du sens (“A busca do sentido”), Céline Guillot (org.), Paris, Ed. ENS, 2005.
Pode ver-se também sobre o mesmo assunto, o livro do historiador francês Didier Godard, Deux
hommes sur um cheval : l’homosexualité masculine au Moyen Âge (“Dois homens sobre um cavalo : a
homossexualidade masculina na Idade Média”). Paris, Ed. H&O, 2003.
448
Laurence Fredette-Lussier, Les amitiés particulières. Étude de l’homoérotisme latent dans quelques
romans arthuriens en vers des XII et XIII siècles et leurs manuscrits (“As amizades particulares. Estudo do
homoerotismo latente em alguns romances arturianos nos séculos XII e XIII e seus manuscritos”), tese
de doutoramento em língua e literatura francesa, apresentada à Universidade McGill, em Montrél,
Canadá, em Abril de 2012.
ele refere como sendo a “necessidade de aumentar o mundo com personalidades
fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados”.449
Fernando Pessoa escreveu um poema deveras sentimental, em que fala de um
cavaleiro, poema esse escrito na mesma ocasião em que andava a escrever o seu célebre
e extenso poema homoerótico Antínoo, e que é um poema que pertence à fase mais
produtiva da sua poesia homoerótica. O poema é o seguinte :

“Dentro em meu coração faz dor.


Não sei donde essa dor me vem.
Auréola de ópio de torpor
Em torno ao meu falso desdém,
E laivos híbridos de horror
Como estrelas que o céu não tem.

Dentro em mim cai silêncio em flocos,


Pois parou o cavaleiro à porta,
E o frio, e o gelo em brancos blocos,
Mancha de hirto e a noite morta...
Meus tédios desiguais, sufoco-os,
A minha alma jaz ela e absorta

Dentro em meu pensamento é mágoa...


Corre por mim um arrepio
Que é como o afluxo à tona de água
De se saber que há sob o rio
O que... Brilha na noite a frágua
Onde o tédio bate o ócio a frio”.450

Nos seus Poemas Franceses, Fernando Pessoa escreveu também um poema a


um cavaleiro, poema esse em que lhe diz o seguinte :

449
De um prefácio inacabado para uma publicação não realizada de obras dos heterónimos de Pessoa.
Foi erradamente publicado como um rascunho da carta que dirigiu a Adolfo Casais Monteiro em
13/1/1935 (Richard Zenith, Pessoa – uma biografia , p. 1080.
450
Poesia 1902-1917, o. c., pp. 230-231.
“(…)
É o amor o que te faz mover ?
Onde vais tu ?
Cavaleiro sem (__)451 e que não paras.
É o amor o que te faz mover ,
A neve cai, o dia é breve,
E os pássaros calaram-se.” 452

O imaginário homoerótico, no seu poder de criar imagens simbólicas e códigos


de conduta, encontra também na figura do guerreiro, que aliás está por vezes associada à
do cavaleiro, um dos seus melhores exemplos. O guerreiro é a representação da bravura,
da virilidade, da masculinidade levada ao seu mais alto grau. A altivez de uma
masculinidade moldada na função bélica era um elemento fundamental de afirmação da
virilidade, desde a Grécia antiga, e que aí estava associada à condição de herói, como
modelo da mais alta virtude, associada à homossexualidade. Nas qualidades esperadas
das pessoas do sexo masculino, encontram-se determinados valores ancestrais, criados a
partir da observação, por exemplo, dos guerreiros na antiga Grécia, cuja bravura e
coragem, aliados à ideia de domínio sexual, os elevava à condição da virilidade perfeita.
A partir desses ideais se moldavam os lutadores guerreiros, escolhidos muito
especialmente pela sua bravura física, e cujo bom desempenho enquanto guerreiros
contribuía (e ainda hoje contribui) para aumentar o fascínio da virilidade.
A figura do guerreiro exerce também fascínio em Fernando Pessoa, através do
seu heterónimo Bernardo Soares, ao falar em guerreiros amorosos, como se pode ver no
texto do Livro do Desassossego que diz o seguinte :

“(…) Porque — bom é que os ignorantes o saibam — as sociedades existem


dentro das cores, dos sons, das frases, e há regimes e revoluções, reinados, políticas e
(…)453 - há-os em absoluto e sem metáfora no conjunto instrumental das sinfonias, no
Todo organizado das novelas, nos metros quadrados dum quadro complexo, onde

451
Espaço deixado em branco pelo autor.
452
Poèmes français (“Poemas franceses”), p.145.

453
Espaço deixado em branco pelo autor.
gozam, sofrem, se misturam as atitudes coloridas de guerreiros, amorosos ou
simbólicos”.454

Associada à figura do guerreiro está também a figura dos soldados, que são
várias vezes referidos por Bernardo Soares, pois também o atraem e o fazem sonhar.455
O fascínio de Fernando Pessoa pela figura do guerreiro existe também em alguns
dos seus poemas, como por exemplo no poema seguinte :

“Têm sono em mim...


Não sou eu, e existo…
Sempre que me atristo
É sem causa ou fim.

Levam o guerreiro
Morto entre alas de aço…
Fumo pelo espaço,
Se de mim me abeiro…

As portas abertas
Não ‘esperam ninguém…”456

Este e outros poemas de Fernando Pessoa revelam a sua atração por essas
figuras masculinas, que são nele figuras de devaneio, de idealização e de desejo.
Guerreiros, soldados, imperadores, cavaleiros, piratas, são símbolos de bravura e de
virilidade, e com todos eles Fernando Pessoa sonha e fantasia, necessitando deles no seu
mundo imaginário, para compensar a sua carência de masculinidade no mundo real.

PASTORES

O pastor é uma figura masculina tradicional, e é também uma figura literária


homoerótica, conforme acontece na tradição poética pastoral, que contém vários
454
Livro do Desassossego, texto 416, pp. 376-377.
455
Livro do Desassossego, texto 319, p. 305; texto 400, p. 364; texto Cascata, p. 427; texto Viagem
nunca feita, p. 486.
456
Poesia 1902-1917, p. 236.
exemplos de poesia homoerótica. Dáfnis (o amado do deus Hermes) era um pastor, ao
qual se atribui a invenção da poesia pastoral. Ganimedes (o amado do deus Júpiter),
também era um pastor. Na mitologia grega, Pã é o deus dos pastores, dos bosques, e da
Natureza, e é celebrado pelos seus amores com homens pastores. Fernando Pessoa
traduziu e recriou o Hino a Pã, escrito por Aleister Crowley, que tem conteúdos
homoeróticos, e em que exalta a virilidade de Pã.
Passando de figuras mitológicas a escritores, eis alguns exemplos de obras
pastorais e homoeróticas : Idílios, de Teócrito; Corydon, de Virgílio; O pastor amoroso,
de Richard Barnfield; Calamus, de Walt Whitman; Aventuras de Huckleberry Finn, de
Mark Twain; Um rapaz de Shropshire, de Housman; Canto do vadio, de Richard
Amory. André Gide, em 1924, deu o nome Corydon (o pastor da écloga homoerótica
de Virgílio) aos seus textos sobre homossexualidade.
Os Idílios, conforme referimos, são o nome de uma obra pastoral homoerótica,
de autoria de Teócrito de Siracusa, que foi um poeta grego nascido em 310 e falecido
em 260 a.C., e que é considerado o fundador da poesia pastoral. Na sua obra Teócrito dá
destaque a Corídon, que era um lendário pastor grego que compôs poemas pastorais e
fábulas, conforme consta no Idílio 4 de Teócrito. Também na segunda Écloga de
Virgílio, poeta romano nascido no ano de 70 a. C., e falecido no ano 19 a. C., Corídon é
celebrado ao lado de Alexis, por quem o pastor Corídon se apaixonou. André Gide, um
conhecido escritor homossexual francês do século XX, escreveu um ensaio dialogado
sobre a homossexualidade, a que deu o nome de Corídon. Fernando Pessoa também
escreveu um poema ao pastor Corídon, um extenso poema, de que citamos o final :
(…)
“Tu, o marido da esposa457 , com o brilho da fama esperando…
Os soluços me quebram a voz e meus olhos parecem arder,
E meu espírito se gasta em suspiros e o peito neles se desfaz…
Ah, adeus, que partiste agora para essa terra obscura, de temer,
Onde os perversos acham o repouso e os cansados nunca têm paz”.458

Num dos textos do Livro do Desassossego Bernardo Soares fala em idílios, que
são tradicionalmente uma história de amor em contexto pastoril, mas Bernardo Soares
diz que são “idílios longínquos” :
457
Fernando Pessoa escreveu esta frase em itálico, ou seja, em sentido figurado, pois Coridon não foi
casado, nem teve mulheres.
458
Poesia inglesa, p. 195.
“O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da
minha angústia. As flautas dos pastores impossíveis não são mais suaves que o não
haver aqui flautas e isso lembrar-mas. Os idílios longínquos, ao pé de riachos, doem-me
esta hora análoga por dentro”.459 
Este pequeno texto do Livro do Desassossego fala de “idílios longínquos”. A
palavra idílio tem dois significados : um breve poema de amor em contexto pastoril
(género literário originário da Grécia antiga), ou em sentido figurado um amor, um
devaneio amoroso. O idílio amoroso tanto pode ser em relação a mulheres como em
relação a homens, mas neste texto Bernardo Soares fala em homens, isto é, em
pastores.
Noutro texto também do Livro do Desassossego, Bernardo Soares diz o
seguinte: “Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo” e
460

assim como os idílios são longínquos, o amor também é longínquo. A palavra


longínquo significa muito distante, e significa portanto algo muito difícil de alcançar,
impossível. Nesse texto Bernardo Soares associa aos “idílios longínquos” os “pastores
impossíveis”. A palavra “idílios” está para a palavra “pastores”, assim como a palavra
“longínquos” está para a palavra “impossíveis”. São idílios impossíveis, e pastores
impossíveis, semelhantes à figura do “amigo impossível”, de que Fernando Pessoa fala
num dos seus poemas461 e Bernardo Soares num dos seus textos : “A amizade que eu
concebera fora um erro dos meus sonhos” .462 A ideia de um indivíduo desejado mas
impossível está também nesse texto do Livro do Desassossego, através da figura de um
pastor, também ele impossível, e que é portanto um pastor idealizado e sonhado.

A PAIXÃO DE FERNANDO PESSOA PELA ANTIGUIDADE


CLÁSSICA

A GRÉCIA ANTIGA

459
Bernardo Soares, Livro do Desassossego, texto 107, pp. 136-137.
460
Idem, texto 92, p. 126.
461
Poesia 1918-1930, p. 217
462
Bernardo Soares, Livro do Desassossego, texto 319, p. 305.
Muitos historiadores têm mostrado a predominância da homossexualidade na
cultura da Grécia antiga. Por exemplo em 1978 Kenneth Dover publicou a sua
conceituada obra Greek Homosexuality , que coloca a homossexualidade no centro da
cultura grega. 463 Segundo Dover, as relações pedagógicas e eróticas entre indivíduos do
sexo masculino foram a pedra angular da cultura na Grécia antiga, conforme se pode
ver na sua Filosofia, na sua Arte de na sua Literatura. A existência desse facto não foi
propriamente uma novidade, mas Dover conseguiu evidenciar como a
homossexualidade era importante e generalizada na Grécia antiga.
Alguns dos primeiros teóricos da sexualidade, no século XIX, como por
exemplo Karl Heinrich Ulrichs, e John Addington Symonds, utilizavam analogias
clássicas para conceptualizarem o “sentimento sexual contrário”. Ulrich recorreu a
ideias platónicas, e Symonds invocava o amor masculino entre camaradas na Grécia
antiga. Syomnds defendia que a Grécia antiga demonstrava que a “inversão” era
efetivamente um produto do ambiente cultural, em contraste com a orientação
determinista dominante na sexologia. 464
A Grécia antiga foi também, entre escritores e poetas, sinónimo de
homossexualidade. Por exemplo, numa carta de Óscar Wilde ao seu namorado Alfred
Douglas, Óscar Wilde escreveu :
“O seu soneto pareceu-me bastante agradável, e é maravilhoso que esses lábios
de rosa desabrochada possam ser tão bem talhados para a música das palavras quanto
para as loucuras de beijar. A sua alma de cintura delgada passeia entre a paixão e a
poesia. Sei que Jacinto, a quem Apolo tanto amou, foi você naqueles dias da Grécia
antiga.(…)”465
Nas universidades europeias o culto do helenismo promoveu a admiração pela
Grécia antiga e o culto da homossexualidade. Em Oxford e Cambridge, apareceram
“sociedades uranianas” (designação que se dava à homossexualidade) que promoveram
o amor masculino e a camaradagem segundo o modelo da Grécia antiga.
Fernando Pessoa também tinha uma grande paixão pela Grécia antiga,
principalmente pelo seu ideal de beleza, a sua referência aos “gostos estéticos gregos”,

463
K. J. Dover, Greek Homosexuality, London, Ed. Duckworth, 1978.
464
John Bristow, “Symond’s History, Ellis’s Heredity : Sexual Inversion”, em Lucy Bland e Laura Doan
(org.), Sexology in culture : Labelling Bodies and Desires, Chicago, Ed. University of Chicago Press, 1998,
pp. 79-99.
465
Elizabeth Orsini (org.), Cartas do Coração. Uma antologia do amor, Carta de Óscar Wilde, p. 18.
e a sua apetência pela “civilização helénica”, são uma alusão àquilo que considerava
ser a “superioridade da beleza masculina” e à homossexualidade :
“Não há beleza senão como a Grécia a criou. Reconhecemos isto — muitos de
nós — obscuramente. Na realidade, a nossa alma anda tão longe disso que todos os dias
traímos a uma linguagem mãe, a (...) Grécia Antiga.”466
“A beleza é grega – Dr. Gama Nobre”. 467
“Tem valia social o ideal estético só quando, como na Hélade, é geral e
distintivo de um povo, porque assim alguma cousa cria: cria uma atmosfera
social de preocupação da beleza, em que os criadores não só haurirão o
estimulo para criar, mas receberão também, desde a mesma infância, aquela
educação estética de que nenhum pode prescindir”.468
Essa paixão de Fernando Pessoa pela Grécia antiga está ligada ao seu
ideal de beleza, que na Grécia antiga era o da beleza masculina, e é baseando-se
nos ideais estéticos da Grécia antiga que Fernando Pessoa procurou justificar a
poesia homoerótica do seu amigo António Botto. Conforme se pode ver nos
seus ensaios em defesa de António Botto, o “ideal estético” deste seu amigo
homossexual correspondia a um ideal grego, pois considerava que os gregos,
que buscavam a perfeição no mundo material em vez de buscarem uma
realidade espiritual alternativa, tinha sido os expoentes máximos do culto da
beleza.
Através de alguns dos seus textos, Fernando Pessoa associa explicitamente a
Grécia antiga à homossexualidade. Assim, por exemplo, Álvaro de Campos ao falar
sobre a amizade e a homossexualidade na Grécia antiga, louva a civilização grega, e
considera o seu povo civilizado, dizendo o seguinte :
“Os povos que, como o grego, tinham o talento da amizade, caíram
naturalmente, e sem anormalidade, na pederastia; 469 e eis aqui a solução do enigma
sociológico de como é que um povo que se entregava habitual, tradicional e
constantemente, a práticas que são contra a natureza, não sofreu nem sofria

466
Poemas Completos de Alberto Caeiro, p. 247.
467
Escritos sobre génio e loucura, tomo II, p. 519.
468
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, anexos 4 a 7, p. 334.
469
Eis alguns exemplos de amizade entre dois homens, que ficaram célebres na Grécia antiga, e que
tiveram também um forte carater homossexual : Harmodio e Aristogiton; Orestes e Pílades; Damon e
Pítias; Aquiles e Pátroclo; Agamenon e Argino; Coridon e Alexis; Diocles e Filolau.
manifestação alguma de anormalidade psíquica, antes era, enfim, o mais natural,
simples e mentalmente hígido dos grandes povos civilizados”.470
Num prefácio para uma edição dos seus poemas, que não chegou a publicar,
Fernando Pessoa disse o seguinte sobre o seu poema homoerótico Antínoo : O primeiro
poema, Antinous representa o conceito grego do mundo sexual. 471
Num texto de ensaio sobre Charles Dickens, diz o seguinte : “Na alegria e no sal
da vida não há lugar para a mulher, e os antigos gregos, que criaram a pederastia como
instituição de prazer social, sabiam disso até às suas últimas consequências.472
No seu conto policial O caso do professor de Ciências, diz o seguinte:
“Porque faculdade podemos então compreender bem o temperamento, grosseiro
ou refinado, de um indivíduo ? Sabemos de imediato que é pela amatividade. O modo
como um homem ama é um bom indicador da sua natureza; vamos classificar este
modo.
(…) analisemos o homem do tipo grego. O tipo grego é a união da mais vasta
perceção do belo e do grandioso com um sentido moral deteriorado; chamo-lhe tipo
grego porque os gregos mais tardios distinguiam-se pelo seu sentido do belo e do
grandioso e pelas repugnantes perversões no seu uso. Aqui aplico a expressão no seu
sentido mais lato, pois considero um homem deste tipo alguém que se tornou não-moral
no amor”.473
Tendo em conta o modo como cada indivíduo ama, Fernando Pessoa faz neste
texto uma aplicação a diversos tipos, entre os quais o tipo grego, conforme se pode
verificar nos parágrafos seguintes. A amatividade do tipo grego (o amor grego) é uma
referência à homossexualidade masculina, existente em várias personalidades da Grécia
antiga, assim como numa grande parte dos deuses da mitologia grega, e que
historicamente teve como maior representante o relacionamento amoroso e sexual entre
o imperador Alexandre Magno e o comandante do seu exército, Heféstião. A
denominação amor grego alargou-se, passando a ser uma das formas de denominar a
homossexualidade ao longo das diferentes épocas.474

470
Prosa de Álvaro de Campos, p. 210
471
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 119-45
472
Misoginia e antifeminismo em Fernando Pessoa, pp. 80-81
473
Histórias de um raciocinador e o ensaio História Policial, pp. 42-45
474
Ver como exemplo disso o livro de Louis Crompton: Byron and Greek Love, (“Byron e o amor grego”),
London, Ed. GMP, 1998.
O juízo que é feito neste excerto de um conto de Fernando Pessoa, isto é, a
expressão “não moral no amor” (a imoralidade da homossexualidade), é de autoria de
uma personagem deste conto. Ao contrário desta personagem, Fernando Pessoa
defendia que a homossexualidade não é imoral, como se pode ver por exemplo no seu
texto Proponho-me demonstrar que a homossexualidade não é imoral, incluído no
capítulo deste livro Livros que Fernando Pessoa pretendia escrever, e nos textos que
escreveu em defesa de António Botto e de Raul Leal, de que falamos no capítulo deste
livro : O empenho em defesa da literatura de Sodoma.
A referência à Grécia antiga existe também em alguns dos poemas homoeróticos
escritos por Fernando Pessoa, como por exemplo num poema de que citamos os
seguintes versos :

“O que fizeram da tua beleza,


Batilo,475 amor, que foram fazer
Do teu poder nu de roubar corações
À moral, postos na tarefa de só ver
De teu corpo branco o pleno sentido
E os beijos que ao sol foste prometer?

Que fizeram contigo? Onde está a Grécia


Que o teu encanto soube criar?
(…)”476

Outro poema homoerótico de Fernando Pessoa, o poema que começa com o


verso : Escrevo à tua memória amor, termina com uma referência à Grécia antiga :

“(…) Eras atraente e belo; eu não: apenas amava.

Cava-se mais em mim a marca desta doença antiga


Que só os gregos, porque eram belos, tornaram bela”.477

475
Batilo foi um jovem da ilha de Samos, na antiga Grécia, célebre pela sua grande beleza. Foi namorado
de Polícrates (570 – 522 a.C.) , governador desta ilha grega, e que lhe erigiu uma estátua.
476
Poesia inglesa II, p. 73
477
Poesia Inglesa II, p. 441
Há também que referir o poema que começa com o verso : Como um poeta do
amor antigo. O “amor antigo” de que Fernando Pessoa fala neste poema, é o amor
típico da Antiguidade Clássica : o amor entre homens. Nesse poema o narrador expressa
o seu amor para com o seu amado :

“Como um poeta do amor antigo


Que vem de risos vãos engrinaldar
A fronte da sua amada, eu quero dar
À alma do meu canto p’ra contigo.
(…)”478

A paixão de Fernando Pessoa pela cultura grega, pelos seus ideais de beleza, e
implicitamente pelo seu homoerotismo, levaram-no a editar a revista Athena, que
pretendia ser um órgão da literatura clássica, e onde procurava revitalizar a
sensibilidade pagã. Nessa revista, que foi de curta duração, Fernando Pessoa publicou
uma recolha de epigramas e epitáfios da Antologia Grega (antologia antiga, onde havia
muitos poemas eróticos, entre os quais um vasto conjunto de poemas homoeróticos),
publicou vinte Odes do heterónimo Ricardo Reis, que no entanto têm mais a ver com a
Roma antiga, de que falaremos seguidamente.

A ROMA ANTIGA

Conforme demonstra o historiador Jennifer Ingleheart, figuras como gladiadores


romanos, escravos e legionários, ou o imperador Adriano e o seu amado Antínoo,
ajudaram a formar identidades queer modernas e ainda ocupam um lugar no imaginário
gay de hoje. Segundo este autor, a Roma antiga tem sido central para os desejos e
experiências homossexuais e as considerações em torno desses desejos, desde as
primeiras respostas cristãs à incontinência sexual dos imperadores, os comentários
renascentistas sobre Marcial e Juvenal, o uso de Roma pelos primeiros sexólogos, até
aos filmes eróticos modernos, que exaltam os corpos viris de gladiadores e escravos.
Jennifer Ingleheart mostra quanto os desejos homossexuais se relacionam com a Roma
antiga, e mostra também a recepção da literatura homoerótica da Roma antiga na

478
Poesia 1902-1917, pp. 174.
literatura contemporânea.479 A literatura homoerótica da Roma antiga, principalmente a
sua poesia, mostra bem a presença da homossexualidade nessa época. 480
Fernando Pessoa é um dos melhores exemplos da receção da poesia
homoerótica da Roma antiga na literatura contemporânea, pois está presenta em alguns
dos seus poemas, e escreveu muitos textos em que fala da Roma antiga, a propósito de
política, religião, etc. No entanto, em Fernando Pessoa as referências à Roma antiga
estão também presentes sob o ponto de vista amoroso e sexual, de que daremos
seguidamente alguns exemplos.
Do ponto de vista homoerótico, a Roma antiga está subjacente por exemplo
num poema em que Fernando Pessoa fala de amores e desamores referindo-se a Catulo,
que foi um poeta da Roma antiga que escreveu poesia homoerótica :

“Minha vida tem sido, em suma,


Reles e obscura,
Sem ventura nem desventura,
Sombras de trapos na bruma.

Como um caixeiro tenho ficado


A um balcão nulo,
Não acontece isto ao amante Catulo
Nem a poeta, conselheiro de Estado.
(…)”481

Há certos textos de Fernando Pessoa em que aparece explicitamente a Roma


antiga como símbolo de homossexualidade, como por exemplo o texto : Sobre a
necessidade de criar lupanares masculinos482 (os lupanares eram bordéis na Roma
antiga), que citamos e comentamos no capítulo deste livro : Outros projectos sobre
homossexualidade ou de conteúdo homoerótico.

479
Jennifer Ingleheart, Ancient Rome & the construction of modern homossexual identities, Oxford, Ed.
Oxford University Press, 2015
480
Ver a antologia organizada por Victor Correia, Poemas eróticos da Antiguidade Clássica : Grécia e
Roma antigas, Lisboa, Ed. Guerra e Paz, 2022.
481
Poesia 1931-1935, pp. 54-55.
482
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 55 A – 14
Num texto sobre o poema Antinoo, numa carta a João Gaspar Simões, Fernando
Pessoa afirma que este poema homoerótico “representa o conceito grego do mundo
sexual”. É “grego quanto ao sentimento”, mas “romano quanto à colocação histórica”.483
Noutro texto afirma também o seguinte : “O fenómeno essencial da nossa
civilização é composto entre o ideal grego e o ideal romano – o romano decadente, é
claro”.484
No ideal romano, Fernando Pessoa sentia uma atração e uma idealização pela
figura do imperador, conforme se pode ver em alguns poemas homoeróticos que
escreveu, como por exemplo o poema ao imperador Juliano, intitulado Juliano em
Antioquia.485 Flávio Cláudio Juliano (331-363 d.C.), foi um imperador romano que
reinou de 361 até à sua morte, dois anos depois. Suetónio, nas Vidas dos Doze Césares,
inclui-o como um dos Imperadores que tiveram relacionamentos amorosos e sexuais
com homens. De entre os homens que foram mais próximos do imperador Juliano, é de
destacar o seu companheiro Salústio. O famoso escritor homossexual norte americano
Gore Vidal, escreveu e publicou um romance histórico, em 1964, sobre a vida deste
imperador, intitulado : Juliano.
A figura do imperador romano está também presente no poema Antínoo. É o
poema homoerótico mais extenso e mais conhecido dos poemas homoeróticos de
Fernando Pessoa, poema esse que trata do relacionamento amoroso entre Antínoo e o
Imperador romano Adriano, que por ser muito extenso não citamos, mas que é
conhecido.486
Também Bernardo Soares ao longo do Livro do Desassossego fala diversas
vezes da figura do imperador (105-135; 143-163; 171-189; 274-272; 446-397; 449-401;
Educação sentimental-440; Marcha fúnebre para o rei Luís II da Baviera – 452/453).487
O imperador era uma figura por quem Fernando Pessoa sentia admiração e
atração, não apenas do ponto de vista histórico (simbolizando a Grécia e a Roma antigas
que Fernando Pessoa muito admirava), mas também pelo que ele significavam do ponto
de vista amoroso e sexual. Dos doze primeiros Imperadores romanos, somente o
imperador Cláudio se interessava exclusivamente por mulheres. Todos os outros

483
Correspondência 1923-1935, pp. 219-220
484
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 55 A – 40
485
Poesia 1918-1930, pp. 55-57
486
Poesia Inglesa I, pp. 111-135
487
Textos da edição de Richard Zenit do Livro do Desassossego.
Imperadores romanos tiveram casos amorosos e sexuais com homens ao longo da sua
vida (apesar de alguns deles terem tido uma esposa).
A referência à Roma antiga aparece no Livro do Desassossego também num
texto em que a imagem do príncipe desperta em Bernardo Soares aquilo a que ele
denomina “olor a Roma”, isto é, odor a Roma (uma atmosfera romana), de que citamos
o respectivo excerto :
“Préstitos sugerindo ogivas, atalhos através de roupagens, angélico o teu sorriso
esquecido... Que de reis na tua memória! E às portas da tua imaginação que séquito sem
príncipe te espera? Olor a Roma. Timbales lívidos. Aperfeiçoam-se os brilhos. Estacam
os contornos. Maleáveis os sulcos no teu arco, e a noite, ensopando a paisagem, é uma
conquista no Oriente”.488
Há um texto de Álvaro de Campos sobre a homossexualidade em Ricardo Reis,
em que ele emprega a palavra “romanidades”, dizendo o seguinte :
“As figuras de amadas, que aliás não existem, como figuras, nos versos de
Ricardo Reis são abstrações às avessas,489 ou vistas do avesso. Não são abstrações no
sentido de terem apenas a realidade necessária para serem consideradas como existindo.
São Cloes, Lídias, e outras romanidades assim”. 490
As “romanidades” são uma referência à Roma antiga e aos poetas romanos que
exprimiram a homossexualidade na sua poesia, apesar de alguns deles terem escrito
poesia também dirigida a mulheres, e onde por vezes jogam com as suas personagens, e
empregam metáforas em relação ao género, e outros são explícitos em relação à
homossexualidade. Eis alguns nomes desses poetas romanos : Catulo, Horácio, Virgílio,
Ovídio, Petrónio, Marcial.
As Odes de Ricardo Reis são inspiradas num desses poetas romanos : Horácio.
Ora, Ricardo Reis, que segundo Álvaro de Campos gostava sexualmente de homens,
escreveu também alguns poemas homoeróticos, e é um dos melhores exemplos da
paixão de Fernando Pessoa pela Roma antiga. Sobre Ricardo Reis falaremos

488
Livro do Desassossego edição de Teresa Sobral Cunha, p. 133. Jerónimo Pizarro também incluiu este
texto na sua edição do Livro do Desassossego (pág. 505), mas com algumas palavras que não são iguais.
Ao confrontarmos as duas edições com o original, pareceu-nos que a de Teresa Sobral Cunha faz mais
sentido, por isso a incluímos aqui.
489
A expressão às avessas diz respeito à expressão inversão sexual, que era utilizada na época de
Fernando Pessoa para qualificar a homossexualidade. Por exemplo, na novela homoerótica de Mário de
Sá Carneiro, A Confissão de Lúcio, Ricardo fala da sua vida, afirmando que é “uma vida bizarra – mas de
uma bizarria às avessas”.
490
Obra Completa de Álvaro de Campos, p. 498.
pormenorizadamete no capítulo : A homossexualidade nos principais heterónimos de
Fernando Pessoa.
Uma das figuras do imaginário homoerótico da Roma antiga é também a de
Orfeu, descrito nas Metamorfoses do poeta romano Ovídio, que por pertencer à
mitologia abordaremos no capítulo seguinte.

A HOMOSSEXUALIDADE DIVINIZADA

MITOLOGIA E HOMOSSEXUALIDADE

APOLO

As narrativas mitológicas da Grécia antiga consideram a homossexualidade, a


bissexualidade e a transgeneridade, como símbolos de experiências sagradas, e como
uma forma de restabelecer a unidade perdida. Assim, por exemplo O Banquete, de
Platão, é um das obras em que este filósofo fala sobre a homossexualidade, e em que
fala do mito dos andróginos, que eram seres completos que continham em si o
masculino e o feminino. Terrivelmente fortes, ousaram desafiar a própria Divindade,
escalando os céus. Zeus, para puni-los, dividiu-os em dois, separando assim o masculino
do feminino, gerando incompletude e carência.
Nos amores dos deuses na Antiguidade Clássica existem vários relacionamentos
homossexuais : Zeus e Ganimedes; Neptuno e Pélope; Apolo e Jacinto; Apolo e
Ciparisso; Dionísio e Âmpelo; Dionísio e Prosimno; Pã e Dafnis; Laïos e Crisipo,
Hermes e Crocus, Hermes e Perseu, etc. Também os heróis famosos da mitologia grega
tiveram relacionamentos amorosos e sexuais entre si : Aquiles e Pátroclo; Agamenon e
Argino; Coridon e Alexis; Diocles e Filolau; Hércules e Filas, Hércules e Abderos;
Hércules e Iolau, etc. 491
Na sua Saudação a Walt Whitman, Fernando Pessoa escreveu dois poemas
homoeróticos em que louva o amor entre Zeus e Ganimedes : o poema Antínoo, e o

491
Para mais pormenores, ver as seguintes obras : Bernard Sergent, L’homosexualité dans la mythologie
grecque (“A homossexualidade na mitologia grega”), Paris, Ed. Payot, 1984; Andrew Callimach,
Lovers' Legends: The Gay Greek Myths (“Lendas dos Amantes: Os Mitos Gregos Gays”), Nova Rochelle,
Ed. Haiduk Press. 2002
poema: Sei que desprezarias não somente, e em outros poemas há referências aos
deuses da Grécia antiga. O heterónimo Ricardo Reis afirma o seguinte sobre os deuses
gregos : “Os amores dos deuses, a sua humanidade afastada não me dói nem me
repugna.”492 O ambiente poético das primeiras Odes de Ricardo Reis incluem
frequentemente os deuses pagãos da Antiguidade Clássica : Apolo, Júpiter, Saturno,
Ceres, etc. O paganismo helénico de Ricardo Reis tem muito a ver com a Homoteose
(da palavra grega homotheosis), que significa “Homo-Divinização”, que é também
conhecido atualmente como “paganismo queer”, que relaciona os temas do sagrado e do
homoerotismo. Entre os vários deuses pagãos, Ricardo Reis invoca Apolo, como por
exemplo no poema Neste dia em que os campos são de Apolo.493
Não se deve confundir Apolo com Adónis, que também pertence à mitologia
grega, e apesar de Adónis também ser celebrado por Ricardo Reis, como por exemplo
no poema As rosas amo no jardim de Adónis .494 Na mitologia da Grécia antiga, Adónis
era uma divindade que era o símbolo máximo da beleza masculina, como Narciso e
Apolo. Foi representado inúmeras vezes desde a Antiguidade até ao presente, como um
homem jovem, nu e imberbe, no auge de seu vigor masculino. A palavra Adónis é
frequentemente empregue como sinónimo de jovem muito belo. Fernando Pessoa
emprega algumas vezes a figura de Adónis na sua poesia homoerótica, como por
exemplo no poema Amem outros a graça feminina, chamando ao seu amado : “Flor
adónica de ópios e de enleios”. 495 No seu extenso poema homoerótico Antínoo,
Fernando Pessoa refere-se também a Adónis. 496
No entanto, a figura mais dominante em Fernando Pessoa, no que diz respeito à
mitologia, é a do deus Apolo, que foi um deus que se apaixonou pelo jovem Jacinto, e
que desceu à Terra para viver com ele. Apolo amou mais indivíduos do sexo masculino
: Ciparisso, Árion, Himeneu, e Admeto. Onde Apolo era adorado sob o epíteto de
Carneio, os atos de homossexualidade faziam parte do ritual religioso de iniciação
masculina. Existem relatos sobre a invocação a Apolo antes da realização do ato
homossexual, em que o erastes (homem maduro) suplica a Apolo que a sua virtude seja

492
Prosa de Ricardo Reis, p. 187.
493
Poesia de Ricardo Reis, p. 74
494
Poesia de Ricardo Reis, p. 18
495
Poesia 1902-1917 , p. 66
496
Poesia Inglesa I, pp. 111-135
transferida para o eromenos (o jovem). Entre os atributos de Apolo, estava o de ser o
erastes perfeito. A Apolo era também atribuído o carater de deus da beleza física, e da
masculinidade no seu mais alto grau de perfeição. Ainda hoje a expressão Apolo de
corpo é empregue como referência ao homem que tem um corpo muito belo e bem
formado. A figura de Apolo faz parte do imaginário homoerótico, e os estudos
académicos também a utilizam em referência à homossexualidade, como por exemplo o
livro: Amantes de Apolo – a homossexualidade na cultura. 497
Fernando Pessoa admira Apolo, apresenta-o como modelo de homem perfeito e
como símbolo da beleza, como por exemplo num verso em que diz :” P’ra Apolo falta-
me a beleza”.498, e na Saudação a Walt Whitman o seu heterónimo Álvaro de Campos
exclama : “Ave, salve viva, ó grande bastardo de Apolo,/Amante impotente e fogoso
das nove musas e das graças,/ Funicular do Olimpo até nós e de nós ao Olimpo“.499
Fernando Pessoa escreveu alguns poemas homoeróticos onde exalta a figura de
Apolo, ou onde exalta as personagens desses poemas tendo como modelo Apolo, ou
onde exalta a beleza masculina tendo também como modelo Apolo, não apenas em
alguns dos poemas homoeróticos de Ricardo Reis, ou de Álvaro de Campos, mas
também noutros poemas do seu ortónimo, como por exemplo no poema Antínoo,500 no
poema Oração (Súplica) aos novos deuses,501 no poema Amem outros a graça feminina,
502
e no Livro do Desassossego.503 Alguns dos textos de Fernando Pessoa em defesa de
António Botto também se referem a Apolo como modelo da beleza perfeita e do amor
homoerótico. 504

Outro fascínio de Fernando Pessoa é pelo deus Pã. Na mitologia grega Pã é o


deus dos bosques, dos campos, dos rebanhos, e dos pastores. Note-se que a tradição
poética pastoral é também homoerótica, como se pode ver na poesia de Teócrito, e em
figuras mitológicas como Dáfnis e Ganimedes. Pã é conhecido pela sua representação
497
Dominique Fernandez, Amants d’Apollon – l’homosexualité dans la culture, Paris, Ed. Grasset, 2015.
498
Álvaro de Campos, Livro de versos, org. Teresa Rita Lopes, p. 224.
499
Obra completa de Álvaro de Campos, p. 113.
500
Poesia Inglesa I, pp. 111-135
501
Uma biblioteca em expansão: sobrecapas de livros de Fernando Pessoa , org. Jerónimo Pizarro, e
Patrício Ferrari, pp. 58-96
502
Poesia 1902-1917, p. 66.
503
Texto 358, p. 331.
504
Prosa publicada em vida, pp. 233-245
viril, e embora se tivesse enamorado de ninfas, teve também relacionamentos sexuais
com indivíduos do sexo masculino, sendo de destacar Dafnis, que era um pastor
siciliano filho do deus Hermes e de uma ninfa, e que ficou conhecido pela sua grande
beleza. A  atividade sexual de Pã era intensa, estando sempre insatisfeito, e assediava
tanto ninfas como jovens rapazes.
Muitos detalhes e referência sobre o mito de Pã foram conservados em
pequenas passagens de numerosos poetas e escritores gregos e romanos, como por
exemplo em Teócrito : “(…) Caro Pã, que te não fustigue nos flancos/ e nos ombros
os rapazes da Arcádia com cabelos albarrãs,/ naquelas alturas em que a carne
escasseia” (Teócrito, Idílio I). Na literatura moderna Pã inspirou algumas obras de
escritores importantes, como por exemplo os poemas de Percy Shelley (que Fernando
Pessoa muito admirava, e sobre quem escreveu, referindo-se às diversas formas de
amar).505
Fernando Pessoa traduziu o Hino a Pã, escrito por Aleister Crowley, que é um
poema com conteúdo homoerótico, pois o narrador deste poema convoca o deus Pã para
o vir possuir sexualmente, e no final no poema o narrador tornou-se num só, fundindo-
se com esse deus libertino. Numa carta a João Gaspar Simões, Fernando Pessoa revela o
seu pudor em mostrar o Hino a Pã : “Este poema não é para se publicar, mas só para
você ler. Também lhe peço que não o mostre a muita gente”. 506
No entanto, Fernando
Pessoa enquanto tradutor deste poema apropriou-se dele de tal maneira, que fez com
que João Gaspar Simões lhe tivesse perguntado se Master Therion (o nome com que o
seu autor, Aleister Crowley assina o Hino a Pã) não seria mais um dos heterónimos de
Fernando Pessoa. 507
O Hino a Pã refere-se algumas vezes aos sátiros, que eram semelhantes
fisicamente a Pã. O sátiro era também uma criatura da mitologia grega, um ser do sexo
masculino, com o corpo metade homem e metade bode. Equivalia ao fauno da mitologia
romana. Na mitologia grega, os sátiros acompanhavam o deus Pã vagando pelas
montanhas e bosques da Grécia. Os sátiros eram caracterizados por uma energia sexual
exuberante e inesgotável, e nas pinturas e esculturas eram representados com o pénis em
ereção, e de grande tamanho. Os sátiros formavam o cortejo que acompanhava o deus
grego Dioniso (que teve um sátiro como um dos seus amantes). 508
Encontra-se no
espólio de Fernando Pessoa um pequeno texto em que um personagem pergunta a outro
505
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, p. 264
506
Correspondência 1923-1935, pp. 222-223.
507
Idem, p. 417.
se ele sabe o que é um sátiro. Trata-se de um texto enigmático, mas interpretável à luz
do homoerotismo :

“Sabes, Tomás, o que é um sátiro.


Não ?
E, possivelmente, para avançarmos para o antegozo tens ciúmes.
Poesia mais moral do que parece…”509

Também no fragmento para um conto seu inacabado (Jacob Dermot), Fernando


Pessoa apresenta o sátiro como símbolo da masculinidade, e como referência para a
estupefação do personagem perante o corpo fálico de Dermot :

“O seu corpo era fálico. Sim, o seu corpo era um falo enorme, e cada confim,
cada fosso imensamente instintivo e tremendo – uma vulva evidente. Os próprios
cabelos da cabeça pareciam ser do púbis. As mãos possantes, ignóbeis, masturbavam o
incerto.
E, por onde quer que ele passou, desejos bestiais, carnais até à (…) 510 ferviam
pelas (…)511
A Caçada (a Dermot)
E não foi encontrado nunca. Morreu ? Desapareceu ? O sátiro tremendo que em
si construiu – o que foi dele ?” 512

ORFEU

Ainda no âmbito das ligações entre a mitologia e a homossexualidade, temos


Orfeu, que deu nome à revista literária fundada e dirigida por Fernando Pessoa. Orfeu
era filho de uma musa (provavelmente Calíope, patrona da poesia épica), e Oeagrus (um
rei da Trácia), mas outras versões do mito dizem que ele era filho de Apolo, que deu a
508
Ver o artigo de François Lissarrague, “De la sexualité des satyres“ (Sobre a sexualidade dos sátiros), na
revista Mèdis – antropologia dos mundos gregos, Paris, 1987, vol. 2, nº. 1, pp. 63-90.
509
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 56-51
510
Duas palavras de difícil decifração.
511
Espaço em branco deixado pelo autor.
512
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, E3, 138-66
Orfeu a sua primeira lira. Orfeu louvava o amor entre homens, e ele próprio apaixonou-
se por jovens do sexo masculino, depois da sua mulher Eurídice ter falecido. Na
mitologia grega, depois dos deuses, Orfeu foi o primeiro ser humano a interessar-se por
indivíduo do mesmo sexo, e foi também ele próprio que procurou convencer os homens
da região da Trácia que começassem a amar os jovens do sexo masculino
(Metamorfoses, de Ovídio, livro X, em especial os versos 78-87, 148-219, e 708-739).
Orfeu foi morto por mulheres trácias, ciumentas enquanto ele vagava pelo
campo pensando no seu amado Calais. Sentindo-se desprezadas por Orfeu por ter
levado consigo amantes do sexo masculino consigo, as mulheres da Trácia, seguidoras
do deus Dionísio, atiraram-lhe pedras, porque Orfeu preferia a adoração ao deus rival
homoerótico Apolo. Numa gravura antiga de Albert Dürer, feita em 1494, sobre a morte
de Orfeu, baseada num original, agora perdido, de Andrea Mantegna, o artista retratou
essa cena, e colocou junto de Orfeu uma árvore com uma fita em forma retangular ao
alto, na qual escreveu : Orfeus der erst puseran (“Orfeu, o primeiro pederasta”).
Conforme referimos no capítulo sobre a revista Orpheu, esta revista foi a
concretização de um projeto mais antigo, referido por um heterónimo ou personagem
não identificado em Fernando Pessoa, que diz que alguns homossexuais de Lisboa lhe
sugeriram que se criasse uma revista que se deveria chamar Antínoo. 513
Embora Orfeu
tenha mais a ver com a relação entre mitologia e homossexualidade, há também uma
relação, sob o ponto de vista mitológico, entre o próprio Antínoo, o amado do
imperador Adriano, e a homossexualidade. O imperador Adriano ergueu um grande
número de estátuas em sua memória, instituíram-se jogos e prémios diversos em sua
honra, fundou-se uma cidade grega a este do Nilo, chamada Antinoupolis, e o imperador
Adriano chegou mesmo a decretar que Antínoo devia ser adorado como um deus.
Fernando Pessoa também põe Antínoo a fazer parte dos deuses do Olimpo, escrevendo
o seguinte :

“(…) Amor, amor, ó meu amor! Já és um deus.


A ideia que por voto vou tomar
Voto não é, mas visão dada dos céus
Por deuses que amor amam, para doar
Aos corações mortais, em forma de desejo –

513
Sensacionismo e outros ismos, p. 427
Cujo alcance não sabemos do desejo –
Uma visão das reais coisas de além
Da nossa vida em si presa, em preso senso.
Oh, o que quero que sejas, tu já és.
Já no solo do Olimpo514 andam teus pé
E és perfeito e, como tu, imenso
Pois não precisas exceder-te em condição
De ser perfeito, tu mesmo a perfeição”.515

MISTICISMO E HOMOSSEXUALIDADE

Existem relações entre o misticismo e a sexualidade, conforme tem sido


mostrado e analisado por alguns autores.516 Existem também relações entre o misticismo
e a homossexualidade, que têm sido também mostradas e analisadas por alguns
autores.517
Para Raul Leal também existem ligações entre o misticismo e a sexualidade,
principalmente na homossexualidade. Na sua obra Sodoma Divinizada, que Fernando
Pessoa admirava e que defendeu, a homossexualidade é a forma de restabelecer a união
entre o masculino e o feminino, contra a divisão entre os dois sexos. Outros textos de
Raul Leal, mesmo quando falam sobre outros temas, como por exemplo o esoterismo ou
o misticismo, utilizam figuras homoeróticas, fazendo uma ligação entre
homossexualidade e espiritualidade, e espiritualidade e homossexualidade. Em alguns
dos poemas de Raul Leal existe também a ligação entre a sexualidade (que para ele
tinha como modelo a homossexualidade) e o misticismo, como por exemplo o seu
poema Morte e Vertigem.518 No entanto, Sodoma Divinizada é o principal texto de Raul
514
O lugar onde viviam os deuses da mitologia da Antiguidade Clássica.
515
Poesia Inglesa I, p. 130.
516
Ver por exemplo : Benjamin Walker, O sexo e o sobrenatural , Lisboa, Ed. Edilivro, 1980; Clifford
Bishop, Sexo e espírito, Lisboa, Ed. Temas e Debates, 1997; Walter Schubart, Eros & Religião, Lisboa, Ed.
Centro do livro brasileiro, 1975.
517
Ver por exemplo : Randy Conner, Blossom of Bone – reclaiming the connections between
Homoeroticicm and the Sacred, New York, Ed. HarperCollins, 1993; Randy Conner, Cassel’s Encyclopedia
of Queer Myth, Symbol and Spirit : Gay, Lesbian, Bisexual and Transgender Love, New York, Ed. Cassell,
1998; Mark Thompson, Gay Spirit : Myth and Meaning, London, Ed. Martin’s Griffin, 1988; Andrew
Harvey, The Essential Gay Mystics, London, Ed. Book Sales, 1998.
518
Poema original manuscrito, datado de Julho de 1953, conservado na Biblioteca Pública Municipal do
Porto, espólio de Alberto de Serpa (cota M-SER-589), publicado pela primeira vez em : O tamanho do
Leal a estabelecer a ligação entre homossexualidade e fusão mística. Citamos o seguinte
excerto dessa obra elogiada e editada pelo próprio Fernando Pessoa :

“Se queremos atingir a nossa essência divina, puramente una, temos de


restabelecer antes de mais nada a unidade da Vida em nós, fundindo os sexos num só. É
a pederastia, ainda melhor do que o safismo, que nos conduz a essa unificação
teometafísica da Vida. (…) É o pederasta que pode sentir Deus na sua Unidade
essencial e pois na sua Omnipotência, que dividindo-se enfraquece. A simples ligação
amorosa entre os sexos não estabelece uma unidade pura, absoluta mas apenas
episodicamente artificial, fictícia e toda de superfície, toda empírica; enfim, não
estabelece metafisicamente a fusão de dois seres num só, por muito convulsiva e
extásica que seja a luxúria desenvolvida. A unidade pura e essencial, própria do Infinito,
própria de Deus, só a pederastia poderá estabelecer. Só então se dará a divina fusão dos
dois seres num só.” 519
Fernando Pessoa escreveu um texto sobre a doutrina rosacruz em que afirma
algo semelhante ao que diz Raul Leal. Desse extenso texto citamos o seguinte :

“A doutrina rosacruciana afirma uma dualidade activa de Deus - a sua emissão ou


emanação, que é a Força, e a sua retirada (retrait) ou imanação, que é a Matéria. A
primeira parte do acto divino, a acção, está neste nosso mundo final representada pelo
Homem; a segunda, ou desacção, pela Mulher. Os próprios órgãos sexuais de um e de
outro indicam, por assim dizer, graficamente, esse íntimo sentido. Primitivamente,
Homem e Mulher eram um só, na perfeita imagem e semelhança de Deus que, ainda in
posse como criador, continha em si as duas naturezas, pois, se as não contivesse, as não
poderia desenvolver in acto. «Retirada» a mulher do homem, à imagem e semelhança da
«retirada» de Deus do mundo, seguiu-se este mundo que temos, à imagem e semelhança
da dualidade activa de Deus.
Para que o adepto possa realizar em si, pois tal é o seu mister, a dualidade activa de
Deus, é preciso, primeiro, que seja homem, pois a emissão é a primeira condição activa
de Deus. É preciso, porém, que em seguida se torne mulher, o que só pode fazer
«retirando-se» de ser homem, tornando passivo o que nele se destinara a ser activo.520

nosso sonho é difícil de descrever – antologia do homoerotismo na poesia portuguesa , org. Victor
Correia, Lisboa, Ed. Avesso, 2022, pp. 229-231.
519
Raul Leal, Sodoma divinizada, pp. 89-90
520
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa, p. 40.
Fernando Pessoa não separa sexo e espiritualidade, e reconhece a ligação do
masculino e do feminino que há em cada ser humano, tal como algumas das tradições
esotéricas e ocultistas, que muito lhe interessaram, além dos rosacruzes. Até mesmo na
comunicação com o “além”, através de médiuns, em que Fernando Pessoa “falou” com
as almas de indivíduos que já tinham falecido, o tema principal foi a sexualidade de
Fernando Pessoa, e foi também através de “espíritos do além” que Fernando Pessoa
pretendeu comunicar e travar conhecimento com os namorados de Óscar Wilde
(comunicações mediúnicas de 1916, “Algum dia conhecerei ?”).
Em alguns dos seus escritos Fernando Pessoa fala direta e indiretamente das
relações entre misticismo e sexualidade, e misticismo e homossexualidade, de que
daremos seguidamente alguns exemplos.
Fernando Pessoa relaciona o misticismo com a sexualidade, ao afirmar que a
teoria de Freud, ao fazer uma interpretação sexual dos fenómenos psíquicos, “possui
uma semelhança psíquica próxima, ou relaciona-se, com aquele curioso ocultismo que
se preocupa muito com os símbolos fálicos e o misticismo sexual”.521
Num texto a propósito de literatura, Fernando Pessoa diz o seguinte :
“O misticismo é apenas a forma mais complexa de ser efeminado e decadente. 522
O único lado inútil da inutilidade. (…) A complexidade mental, a morbidez e a
efeminação têm que procurar uma filosofia ou um credo que lhes permita exprimirem-
se”.523
Na Ode Marítima, Álvaro de Campos emprega a palavra misticismo como
designação da sua submissão erótica e masoquista aos piratas :

“(…) Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós!


Cinzelai a sangue a minh’alma
Cortai, riscai!
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
Esfoladores amados da minha carnal submissão!” 524

521
BNP/E3, 15 B1-67r.
522
Sobre a aplicação da palavra decadente como alusão à homossexualidade, ver o capítulo deste livro,
Metáforas homoeróticas.
523
Teoria da Heteronímia, p. 197.
524
Obra Completa de Álvaro de Campos, pp.88-93
A propósito do misticismo de William Blake, Fernando Pessoa afirma o
seguinte:
“Blake – um místico poeta – o tipo puro do místico-poeta ou místico-artista.
Presuming of spasmodics.
Claro que é fácil descobrir nele perversões. Sim (cf. Whitman) de
normalidade”.525
William Blake (1757-1827), foi um poeta e pintor inglês, nascido e falecido em
Londres. Apesar de se ter casado (por razões sociais), era homossexual. Escreveu
poemas e diversas cartas ao seu amante Thomas Butts. 526 Sobre a homossexualidade em
William Blake, existem aliás algumas obras publicadas. 527

O poeta homossexual Arthur Rimbaud foi outro místico, que associou a


homossexualidade ao misticismo. Rimbaud era um aventureiro libertino e na sua obra
As cartas visionárias escreveu sobre o método para atingir a transcendência poética.
Nesse livro diz o seguinte :
“Eu digo que é preciso ser visionário, fazer-se visionário. O Poeta faz-se
visionário por um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos, através
de todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura”.528
Fernando Pessoa sentia-se entusiasmado pelas ideias de Rimbaud na obra O
poeta visionário, e pela sua vida de errante em busca de novas experiências, e escreveu
um poema sobre Rimbaud, a quem elogia, dizendo nos primeiros versos o seguinte :

“Invejo a tua vida arremessada,


Atirada p’ra longe, p’ra perder-se…
Vida que abre as velas, e ei-las a encher-se
De si sem pensar em ter uma chegada,
E de estar longe sem pensar em ver-se.
(…)”529

525
Apreciações literárias de Fernando Pessoa, p. 18
526
William Blacke, Letters from William Blake to Thomas Butts, (“Cartas de William Blacke para Thomas
Butts”), Londres, Ed. Norwood, 1975
527
Ver por exemplo a obra de Cristopher Hobson, Blake and homosexuality, (“Blake e a
Homossexualidade”), Londres, Ed. Palgrave Macmillan, 2001.
528
Arthur Rimbaud, “Cartas visionárias”, p. 10.
529
Poesia 1902-1917, pp. 141-142.
Ainda no âmbito das ligações entre misticismo e homoerotismo, num dos textos
que escreveu em defesa de António Botto, Fernando Pessoa declara o seguinte :
“Ao primeiro ideal, porque é da embriaguez da vida, chamaremos dionisíaco; ao
segundo, porque é da transcendência dela, chamaremos cristão.
Os dois ideais, que nascem destes dois conceitos, são em substância o mesmo
ideal: são produtos do mesmo critério, efeito da mesma causa. Um é quantitativo, o
outro qualitativo; mas qualidade e quantidade, na mesma matéria, são somente dois
aspetos dela, como os aspetos côncavo e convexo da mesma superfície curva. Quando a
água passa, em temperatura, de 99 para 100 graus, centígrados, converte-se em vapor:
mudou de quantidade em temperatura, mudou de qualidade em estado, o fenómeno foi
só um. Mas estes dois ideais são idênticos, não só pela igual origem, senão também pelo
modo igual em que se diferençam do ideal apolíneo. Aquele é harmónico e natural;
estes desarmónicos e místicos. Aquele assenta na aceitação da vida; estes, de um modo
e de outro, na comum negação dela. Baco e Cristo são, aliás, em certo grau do
entendimento oculto, duas formas do mesmo deus. “Cristo-Báquico”, diz a inscrição por
baixo da figura crucificada na joia antiga do Museu de Berlim”. 530
Outra ligação entre misticismo e sexualidade está presente em Aleister Crowley
(1875-1947), com quem Fernando Pessoa se correspondia, que foi um famoso ocultista
e místico inglês, e que foi também um libertário, pois organizava orgias pagãs, defendia
e praticava o amor livre, incluindo a homossexualidade. Crowley foi considerado pela
Imprensa do seu tempo como “o homem mais perverso do mundo”.531 Crowley
escreveu também alguns poemas homoeróticos, entre os quais o Hino a Pã , que
Fernando Pessoa traduziu afincadamente. Fernando Pessoa fez também o horóscopo de
Crowley, e leu o seu livro Confissões, onde entre outros temas Crowley fala das suas
experiências amorosas e “místico-sexuais”. Fernando Pessoa trocou algumas cartas
com Crowley e com a sua editora (a Mandrake Press), pois Fernando Pessoa desejava
traduzir e publicar em Portugal as Confissões de Crowley. No final das suas cartas para
Fernando Pessoa, Crowley costumava escrever a sua divisa, o seu lema de vida, que
fazia parte do seu The book of the law (“O livro da lei”), e que era o seguinte : Love is
the law; love under will (“O amor é a lei; ama conforme a vontade”), isto é : o

530
“António Botto e o ideal estético criador”, Prosa publicada em vida, pp. 233-245
531
Pode-se confirmar nos seguintes livros : Geoff Powter, Strange and dangerous dreams, London, Ed.
The Mountaineers Books, 2006, p. 131; Alex Owen, The place of enchantment, Chicago, Ed. University of
Chicago Press, 2004, p. 186; Lewis Spence, Encyclopedia of Occultism and parapsychology, London, Ed.
Kessinger Publishing, 2007, p. 203.
importante é amar; ama como tiveres vontade de amar. 532 Fernando Pessoa tinha por ele
grande estima, e quando Crowley chegou a Lisboa, no dia 2 de Setembro de 1930,
Fernando Pessoa foi esperá-lo pessoalmente ao cais de desembarque de barcos.
Crowley chegou no paquete Alcântara , e durante a sua estadia em Lisboa, Fernando
Pessoa encontrou-se algumas vezes com ele. No seu Registo Mágico, que era um diário
da sua vinda a Lisboa, Crowley revela que tinha sexo com mulheres como os homens
têm sexo com homens, pois praticou sexo anal com a rapariga de 20 anos que trouxe
consigo a Lisboa. Num registo desse diário da sua vinda a Lisboa, datado de 11 de
Setembro de 1930, depois de escrever que a tinha penetrado analmente, no mínimo duas
vezes, no seu quarto no Hotel Paris do Estoril, Crowley escreveu : “Ela aprenderá esta
Arte”.533 Depois de Aleister Crowley se ter ido embora de Portugal, Fernando Pessoa e
ele continuaram a escrever cartas um ao outro, continuando Fernando Pessoa a mostrar
o seu interesse pelo “misticismo sexual” (ou pela “sexualidade mística”) de Aleister
Crowley.

A HOMOSSEXUALIDADE NOS HETERÓNIMOS PRINCIPAIS


DE FERNANDO PESSOA

ÁLVARO DE CAMPOS

João Gaspar Simões, um dos mais prestigiados estudiosos de Fernando Pessoa, a


propósito da sua criação de heterónimos, questiona-se : “não terá seja o que for de
homossexualismo a maternidade mental que lhe permitiu criar a família heterónima ?
Pessoa, dando vida a Álvaro de Campos, a Ricardo Reis e a Alberto Caeiro, não falando
nos demais heterónimos, denuncia, talvez, uma fecundidade mental muito mais parecida
com a da mãe que gera filhos no seu ventre de carne do que com a do escritor que
concebe personagens no seu ventre de substância cinzenta”.534

532
Para mais pormenores sobre Fernando Pessoa e Aleister Crowley, ver o seguinte livro : Encontro
Magick Fernando Pessoa/Aleister Crowley, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2010.
533
Citado por Richard Zenith, Pessoa – uma biografia, p. 861
534
João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa , p. 518.
Começamos por ver Álvaro de Campos, que segundo Fernando Pessoa, “define-
se excelentemente como sendo um Walt Whitman com um poeta grego lá dentro”.535
Walt Whitman era um poeta homossexual (ver o capítulo deste livro, O especial
interesse por autores homossexuais e obras de conteúdo homoerótico – Walt
Whitman),e a referência ao poeta grego é também uma alusão ao homoerotismo nos
poetas gregos (ver o capítulo deste livro, A paixão pela Antiguidade Clássica – Grécia
antiga).
Os poemas mais conhecidos de Álvaro de Campos, Ode Marítima, Ode Triunfal
e Saudação a Walt Whitman, têm conteúdos homoeróticos. A Saudação a Walt
Whitman é uma saudação a este poeta americano mas também, em alguns versos, uma
saudação à própria homossexualidade do poeta, como por exemplo no seguinte excerto :

“De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,


Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas”. 536

Na Ode Marítima, Álvaro de Campos deseja ser possuído pelos piratas, dizendo
por exemplo o seguinte :

“Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres


Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles !
E sentir tudo isso — todas estas coisas duma só vez — pela espinha!”537

Na Ode Triunfal, Álvaro de Campos diz por exemplo o seguinte :

“A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;


E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra

535
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, p.148.
536
Idem, p. 106.
537
Obra Completa de Álvaro de Campos, p.89.
E afinal tem alma lá dentro!
(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)”538

Percorrendo a obra de Álvaro de Campos, encontramos outros poemas com


referências à homossexualidade, de que citaremos de seguida alguns versos como
exemplo, com a indicação de cada um dos poemas onde estão esses versos:
“Fui todos os pederastas – absolutamente todos (não faltou nenhum)/ (Freddie,
eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te”. 539
“Eu, que tenho
sentido o piscar de olhos dos moços de fretes”. 540 “Chegará a vez de eu partir e ir vê-
los,/ De reunir a família e os amantes”.541 “Quantos amei ou conheci,/Tenho visto não
saber mais nada deles de tantos que foram.”542 “Contar àquele pobre rapazito/Que me
deu horas tão felizes/ (Embora não o saibas) que morri. / Mesmo ele, a quem eu tanto
julguei amar/Nada se importará”. 543
Há também que salientar os poemas em que Álvaro de Campos é irónico para
com as mulheres, e cético em relação à possibilidade de as amar :
“Escuso de me achar feio, porque os feios também são amados/ E às vezes por
mulheres !”544 “Mulher, amor, alcova?— sois tercetos!..”545 “Loura débil, figura de
inglesa absolutamente portuguesa,/Cada vez que te encontro lembro-me de versos que
esqueci./É claro que não me importo nada contigo/Nem me lembro de te ter esquecido
senão quando te vejo,”546. “Meu pobre amor que não amo caricatural e bonita !/Que
texto para um sermão o que não és!/Que poemas não faria um poeta verdadeiro sem
pensar em ti!”547 “Mas, Margarida,/Se este dar-te a minha vida/Não fosse senão
poesia ?/- Então, filho, nada feito./Fica tudo sem efeito./Nesta casa não se fia.” 548
“Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter./Cruza
as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio”. 549 “Passo adiante, nada se me figura :

538
Idem, p. 50
539
A passagem das horas”, Obra completa de Álvaro de Campos, p. 137.
540
“Poema em linha recta”, idem, p. 120.
541
“Meu amor perdido”, Idem, p. 172.
542
“Penso em ti no silêncio da noite”, Idem, p. 286.
543
“Soneto já antigo”, Idem, p. 36.
544
“A rapariga inglesa”, Idem, p. 252. (tercetos são versos, ou seja, as mulheres não passam de poesia,
elas são apenas um tema literário).
545
“Somos meninos de uma primavera”, Idem, p. 278.
546
“Loura débil”, Idem, p. 222-223.
547
“Episódios”, Idem, p. 196.
548
“Ai, Margarida”, Idem, p. 194.
549
“Dois Excertos de Odes (Fins de duas odes, naturalmente)”, Poesias de Álvaro de Campos, p. 60.
sou estrangeiro./As mulheres que chegam às portas depressa/Viram apenas que eu
passei”.550
No texto em prosa de Álvaro de Campo, Resposta a um inquérito do jornal A
Informação, existe o seguinte diálogo :
“(…) - Deve às suas obras alguma aventura amorosa ?
- (…) Aproximou-se de mim uma rapariga, por assim dizer – aluno, segundo
depois soube, do liceu local -, e entrou em conversa comigo. (…) Foi isto uma aventura
amorosa ? Não chegarei a dizer-lhe”. 551
É Álvaro de Campos quem revela que em Ricardo Reis as figuras de amadas são
abstrações às avessas, pois nos seus poemas os nomes de Cloe, Lídia, Neera, são
disfarces dirigidos a rapazes,552 e é também Álvaro de Campos quem revela a identidade
de género ambígua de Ricardo Reis, dizendo que ele deixou de ser mulher para ser
homem, ou deixou de ser homem para ser mulher”.553
É também Álvaro de Campos quem algumas vezes aparecia a Ofélia Queiroz
(conforme dizia Fernando Pessoa ortónimo), estorvando o “namoro” entre ela e
Fernando Pessoa, e que a criticava. Álvaro de Campos é, entre os heterónimos de
Fernando Pessoa, aquele que melhor apresenta a preferência sexual por homens, por
isso ele aparece em Fernando Pessoa como a força de bloqueio, e a impossibilidade de
Fernando Pessoa dar resposta ao amor que Ofélia Queiroz sentia por ele.
Além da reação de Fernando Pessoa contra a campanha moralizadora da Liga de
Acção dos estudantes de Lisboa contra a chamada literatura de Sodoma, o heterónimo
Álvaro de Campos também entra em cena, com o manifesto : Aviso por causa da moral.
Através deste heterónimo Fernando Pessoa, insurgindo-se contra a apreensão das obras
homoeróticas de António Botto e Raul Leal distribuiu um folheto condenatório do
moralismo dos estudantes. A sua reação contra o moralismo nessa polémica aparece
também numa carta que escreveu à revista Contemporânea, em que Álvaro de Campos
critica as justificações esteticistas e helénicas de Fernando Pessoa sobre a poesia de
António Botto, dizendo Álvaro de Campos que o valor das Canções de Botto não tinha

550
“Passo adiante, nada se me figura”, Idem, ‘. 151.
551
“Prosa de Álvaro de Campos”, p. 53.
552
“As figuras de amadas”, Obra completa de Álvaro de Campos, p. 498.
553
“Notas para a recordação do meu Mestre Caeiro”, Obra completa de Álvaro de Campos, p. 498.
a ver com ideais nem com estéticas, mas sim com imoralidade, e que mesmo sendo
imorais deviam ser aceites.554
O investigador Eduardo Lourenço defende que Fernando Pessoa empregou
Álvaro de Campos como uma forma de libertação sexual, pois “por demais sabe Pessoa
que um tal exemplo de liberdade e auto libertação lhe é inacessível e adequado, que
jamais o assumiria na sua própria pessoa.”555 Para Eduardo Lourenço, o papel de Álvaro
de Campos dentro da heteronímia é o da expressão de um impulso, e segundo ele, “esse
impulso é de ordem erótica e suficientemente avassalador para dominar o inteiro
sintagma imagístico dos poemas em que leva a cabo a sua libertação irreal, quer dizer,
Campos”. 556
Álvaro de Campos não só é o alter ego mais forte e intenso de Fernando Pessoa,
como é o próprio Fernando Pessoa sem máscaras, e o seu génio mais profundo e
autêntico. As diferenças entre ambos eram apenas de forma poética e de estilo, e por
Álvaro de Campos ser mais ousado, pois Fernando Pessoa serviu-se dele para mostrar o
seu próprio desinteresse por Ofélia, para defender que se deve aceitar a “imoralidade”
de António Botto, para defender que se deve criticar os estudantes moralistas de Lisboa,
e para defender a homossexualidade, que Álvaro de Campos celebrou efusivamente na
Ode Marítima, na Ode Triunfal, e na Saudação a Walt Whitman.

RICARDO REIS

Ricardo Reis era latinista por formação clássica e semi-helenista por


autodidactismo. Enquanto latinista, foi muito influenciado por Horário, no conteúdo e
na forma da sua poesia, e na sua personalidade. Quinto Horácio Flaco, nasceu em
Venúsia em 65 a. C., faleceu em Roma, no ano 8 a. C., e foi um poeta lírico, que
através de alguns dos seus poemas cultivou o homoerotismo. A sua obra prima são os
seus três livros de poemas líricos, as Odes. Fernando Pessoa pôs o heterónimo Ricardo
Reis a escrever também Odes, e fez adaptações de estrofes ditas alcaicas e sáficas ,
assim denominadas devido aos poetas gregos Alceu e Safo, que eram ambos naturais da
ilha de Lesbos, e que também escreveram poesia homoerótica.
554
“Álvaro de Campos escreve à revista Contemporânea”, Obra completa de Álvaro de Campos, pp.544-
545.
555
Eduardo Lourenço, Pessoa revisitado, p. 89.
556
Idem, ibidem.
Fernando Pessoa refere-se explicitamente a Horácio no seu poema homoerótico
Sei que desprezarias não somente, onde diz o seguinte diz o seguinte : “Põe amor,
sobre a fronte aquelas rosas/ Que Catulo ou Horácio cantariam” 557
(Catulo foi outro
poeta da Antiguidade romana, que também escreveu poesia homoerótica).
Ricardo Reis escreveu poemas de amor dirigidos a indivíduos com nomes
femininos, mas conforme afirma Fernando Pessoa através do seu heterónimo Álvaro de
Campos, esses nomes são um mero artificio literário, são disfarces, pois o seu
verdadeiro destinatário são rapazes :

“As figuras de amadas, que aliás não existem, como figuras, nos versos de
Ricardo Reis são abstrações às avessas, ou vistas do avesso. Não são abstrações no
sentido de terem apenas a realidade necessária para serem consideradas como existindo.
São Cloes, Lídias, e outras romanidades assim, não porque não existam, mas porque
para o caso tanto vale ser Cloe como Maria Augusta, e, ao passo que esta última faz
supor uma costureira, ou coisa parecida, com a agravante de o poder ser deveras, a gente
sente-se realmente pagão com a Lídia.
No que Reis tem sorte é em escrever tão compridos que é quase impossível
seguir com a precisa atenção - supondo que ela é precisa - o sentido completo e exato de
todos os seus dizeres. É isso que faz com que aquela ode que começa: “A flor que és,
não a que dás, eu quero” (pasmem, aliás, do “eu” antes do “quero”, contra toda a índole
linguística portuguesa do Ricardo Reis!) disfarce que é dirigida a um rapaz, pois poucos
há (perdidos como vão na escuridão sintática do poeta) que reparem no pequeno “o” que
define a coisa.
“Se te colher avarO
A mão da infausta esfinge,” etc.
É a primeira vez que a sintaxe aparece como véu de pudor - delgado sendal, ou
lá o que quer que seja, que cobre as partes do discurso”.558

Neste texto a expressão “às avessas” é uma alusão à inversão sexual, expressão
figurativa utilizada na época de Fernando Pessoa e por vezes ainda hoje, como
referência à homossexualidade. Por exemplo, na novela homoerótica de Mário de Sá

557
Poesia 1918-1930, pp. 58-62
558
Obra Completa de Álvaro de Campos, p. 498.
Carneiro, A Confissão de Lúcio, Ricardo fala da sua vida, afirmando que é “uma vida
bizarra – mas de uma bizarria às avessas”.
Ainda no texto atrás citado, a palavra romanidades, conforme referimos no
capítulo sobre a paixão de Fernando Pessoa pela Antiguidade Clássica, é uma referência
à Roma antiga, nomeadamente a poetas romanos que expressaram homoerotismo
(Catulo, Horácio, Virgílio, Ovídio, Petrónio, Marcial, Juvenal, Plínio, o jovem, etc.). Os
versos citados neste texto por Álvaro de Campos são os da seguinte Ode de Ricardo
Reis :

“A flor que és, não a que dás, eu quero.


Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perene
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.”559

Há outro texto em que Álvaro de Campos menciona também o facto de as Odes


de Ricardo Reis se dirigirem a rapazes. É um texto em prosa em que Álvaro de Campos
fala da forma como Ricardo Reis escreve poesia :

“(…) Não concebo, porém, que as emoções, nem mesmo as do Reis, sejam
universalmente obrigadas a odes sáficas560 ou alcaicas,561 e que o Reis, quer diga a um
rapaz que lhe não fuja, quer diga que tem pena de ter que morrer, o tenha forçosamente
que fazer em frases súbditas que por duas vezes são mais compridas e por duas vezes
mais curtas, e em ritmos escravos que não podem acompanhar as frases súbditas senão

559
Poesia de Ricardo Reis, p. 28. Para mais pormenores sobre a relação deste poema com o
homoerotismo, ver o artigo de António Feijó, “Políticas do sexo”, em Uma admiração pastoril pelo diabo
– Pessoa e Pascoaes, Lisboa, Ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2015.
560
Referência a um tipo de ode criada por Safo, poetisa lésbica da Grécia antiga (séc. VII a. C.), cujas
estrofes se compõem de três versos de onze sílabas, e de um verso de cinco sílabas.
561
Referência a um tipo de ode criada por ALCEU, poeta lírico da Grécia antiga, natural de Lésbia,
contemporâneo de Safo, cujas estrofes se compõem de dois versos de dez sílabas, e dois versos de seis
sílabas.
em dez sílabas para as duas primeiras, e em seis sílabas as duas segundas, num graduar
de passo desconcertante para a emoção”.562

Há também um texto em que Álvaro de Campos diz que Ricardo Reis se tornou
mulher quando tomou contacto com o heterónimo Alberto Caeiro :

“Antes de conhecer Caeiro, Ricardo Reis não escrevera um único verso, e


quando conheceu Caeiro tinha já vinte e cinco anos. Desde que conheceu Caeiro, e lhe
ouviu o Guardador de Rebanhos, Ricardo Reis começou a saber que era organicamente
poeta. Dizem alguns fisiologistas que é possível a mudança de sexo. Não sei se é
verdade, porque não sei se alguma coisa é “verdade”. Mas o certo é que Ricardo Reis
deixou de ser mulher para ser homem, ou deixou de ser homem para ser mulher - como
se preferir - quando teve esse contacto com Caeiro”.563

Ao dizer que Ricardo Reis deixou de ser mulher para ser homem, ou que deixou
de ser homem para ser mulher, poderá estar a referir-se a bissexualidade. Ricardo Reis
tem as duas identidades de género (feminina e masculina) e tem as duas orientações
sexuais (heterossexual e homossexual). Interpretando este texto, pode-se dizer que
Ricardo Reis tem as duas identidades de género, podendo alternar, assim como
sexualmente gosta das duas coisas (mulheres e homens), podendo também alternar.
Num dos seus poemas Ricardo Reis é explícito sobre a sua bissexualidade :

“Eu nunca fui dos que a um sexo o outro


No amor ou na amizade preferiram.
Por igual amo, como a ave pousa
     Onde pode pousar.

Pousa a ave, olhando apenas a quem pousa


Pondo querer pousar antes do ramo;
Corre o rio onde encontra o seu retiro
     E não onde é preciso.

562
Obra Completa de Álvaro de Campos, p. 510.
563
Idem, p. 460
Assim das diferenças me separo
E onde amo, porque o amo ou nenhum amo,
Nem a inocência inata de quem ama
Julgo postergada nisto.

Não no objeto, mas no modo está o amor,


Logo que a ame, a qualquer coisa amo.
Meu amor nela não reside, mas
     Em meu amor.

Os deuses que nos deram este rumo


Do amor a que chamamos a beleza
Não na mulher só a puseram; nem
     No fruto apenas”.564

Há dois tipos de bissexuais : os homo-bi, isto é, os que preferem sexualmente


homens mas por vezes se envolvem também sexualmente com mulheres, e os hetero bi,
isto é, os que preferem sexualmente mulheres, mas que por vezes se envolvem também
sexualmente com homens. Ricardo Reis, sendo bissexual conforme mostra no poema
atrás citado, é homo-bi, pois há nele uma clara preferência pelo sexo masculino. Além
do facto de, segundo Álvaro de Campos, as várias vezes em que fala de Cloe, Lídia, ou
Neera, estar a falar de rapazes, há também alguns poemas em que se dirige apenas a
eles, ou a indivíduos do sexo masculino em geral, como por exemplo quando emprega a
palavra “mancebo”. Um desses poemas é o poema que começa com o verso Não para
mim mas para ti teço as grinaldas, onde Ricardo Reis diz :

“(…)
Um para o outro, mancebo, realizemos
A beleza improfícua mas bastante
De agradar um ao outro
Plo prazer dado aos olhos
(…)”565

564
Poesia de Ricardo Reis, p. 235.
565
Idem, p. 295
Por outro lado, sabendo nós que os nomes femininos em Ricardo Reis são
disfarces dirigidos a rapazes, não há nenhuma Ode de Ricardo Reis em que ele se refira
a mulheres, ou em que fale em mulheres. Há ainda a referir o facto de nas Odes de
Ricardo Reis haver também poemas dedicados a Apolo, que é o deus da beleza
masculina (sobre o interesse de Fernando Pessoa por Apolo, ver o capítulo deste livro :
Mitologia e homoerotismo). Se tivermos também em conta a forma como Fernando
Pessoa define Ricardo Reis, em primeiro lugar definindo-o como mulher, dizendo que
ele deixou de ser mulher para ser homem, e em segundo lugar definindo-o no sentido
inverso, e o facto de em alguns dos poemas homoeróticos de Fernando Pessoa a
ambiguidade de género equivaler à homossexualidade, essa definição pode ser
considerada uma alusão às suas tendências homossexuais. A tónica posta na
feminilidade de Ricardo Reis, expressa nas duas maneiras (deixando de ser mulher para
ser homem e deixando se ser homem para ser mulher), pode ter esse significado,
reforçado aliás pelo facto de os seus poemas serem dirigidos a indivíduos do sexo
masculino.

ALBERTO CAEIRO

Comecemos com duas comparações, que não são inocentes. Álvaro de Campos
descreve fisicamente Alberto Caeiro e diz que ele tinha um “estranho ar grego.” 566
O
conceito de “ar grego”, tendo em conta a descrição de um indivíduo (o seu ar), leva-nos
ao ideal de corpo da Grécia antiga, que era o homoerótico, e à Grécia como modelo da
homossexualidade e como influenciadora dos ideais, entre os quais os estéticos, que
mesmo nas obras de arte tinham como modelo a beleza do corpo masculino. Fernando
Pessoa diz também que o indivíduo com quem Alberto Caeiro mais se parece é Walt
Whitman,567 no seu estilo, mas não podemos deixar de nos lembrar que Whitman não se
distinguia apenas pelo seu estilo de poesia mas também pelo facto de ser homossexual e
de exaltar o amor entre homens na sua poesia, e que portanto as duas coisas estão inter
ligadas na sua poesia (o estilo e o conteúdo). A Grécia antiga e Walt Whitman, sendo
as duas coisas com que Caeiro se assemelha (conforme diz Fernando Pessoa),
conduzem-nos por sua vez à comparação que Fernando Pessoa faz também para Álvaro
566
Álvaro de Campos, Notas para a recordação do meu mestre Caeiro, p. 453.
567
Páginas íntimas e de autointerpretação, p. 343.
de Campos, que segundo Fernando Pessoa, “define-se excelentemente como sendo um
Walt Whitman com um poeta grego lá dentro”, 568 e poderemos também definir Alberto
Caeiro como sendo um Walt Whitman com um poeta grego lá dentro, implicando
diversos significados, incluindo o homoerótico. Ainda no âmbito das comparações, o
heterónimo Thomas Crosse diz que “Cairo não tem ética, a não ser a simplicidade.
Ricardo Reis tem uma ética pagã que confere à sua poesia uma elevação que o próprio
Caeiro, não obstante, e maestria à parte, não consegue atingir (…)”. 569 A falta de ética
de Alberto Caeiro deve-se ou à sua falta de sinceridade, ou à origem dessa falta de
sinceridade : as suas tendências homossexuais disfarçadas.
Na verdade, até mesmo em Alberto Caeiro, um heterónimo aparentemente
heterossexual por ter escrito poemas de “amor” a uma mulher, se o analisarmos
pormenorizadamente, descobrimos que, no fundo, o seu relacionamento com uma
mulher foi um falso amor, como se pode compreender por exemplo através dos
seguintes versos em que uma mulher (simbolizada na Virgem Maria) veio substituir um
homem (simbolizado em Cristo) :“Quando eu não te tinha/Amava a Natureza como um
monge calmo a Cristo…/ Agora amo a Natureza como um monge calmo à Virgem
Maria” (…) Alberto Caeiro sente-se confuso, ao dizer: “Eu gosto tanto dela que não sei
como a desejar” (…) “A minha voz fala dela como se ela é que falasse” (…) “Passei
toda a noite sem saber dormir/ Vendo sem espaço a figura dela/ E vendo-a sempre de
maneiras diferentes do que ela é quando me fala” (…) , e no poema IV do Pastor
amoroso, a confusão entra na mente de Caeiro, que mexe com a sua identidade. O
pastor perdeu o seu cajado (uma metáfora fálica), e viu que ninguém o tinha amado
afinal. Alberto Caeiro acordou da falsa verdade desse “amor” que o invadia, viu-se livre
do papel que andava a representar, e finalmente, conforme Fernando Pessoa afirma,
“sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito”, depois desse
“amor” ter acabado.
No texto de Álvaro de Campos “Não sei quem foi a mulher que teve o
descaramento”570 existe uma rivalidade de Álvaro de Campos em relação à suposta
mulher que teria sido a amada de Alberto Caeiro, semelhante à rivalidade de Álvaro de
Campos em relação a Ofélia Queiroz, mesmo que a mulher de Caeiro, conforme Álvaro
de Campo afirma nesse texto, “fingisse” ser amada. É uma mulher anónima, que Álvaro
568
Idem, p.148.
569
Thomas Crosse, Prosa íntima e de autoconhecimento, p. 165.
570
Obra Completa de Álvaro de Campos, p. 467.
de Campos deseja que fique anónima até para si mesma, e conforme veremos mais
adiante, impessoal.
Existe em Alberto Caeiro um disfarce para os seus desejos mais profundos, que
são afinal homossexuais. Alberto Caeiro escreveu um conjunto de poemas de amor
sobre um pastor. A tradição poética amorosa sobre pastores é muito homoerótica,
havendo disso vários casos na História da Literatura. Eis apenas alguns exemplos :
Idílios, de Teócrito; Corydon, de Virgílio; Calamus, de Walt Whitman; Aventuras de
Huckleberry Finn, de Mark Twain; Um rapaz de Shropshire, de Housman; Canto do
vadio, de Richard Amory. André Gide, em 1924, deu o nome Corydon (o pastor da
écloga homoerótica de Virgílio) aos seus textos sobre homossexualidade. O pastor
amoroso encontra-se até no nome da obra homoerótica O pastor amoroso, do poeta
homossexual Richard Barnfield, publicada em 1594 (edição atual : London, Ed.
Kessinger Publishing, 2010). Dir-se-ia que Fernando Pessoa foi buscar ao livro de
poemas homoeróticos de Richard Barnfield, O pastor amoroso, o nome, o mote e a
inspiração, para o seu livro a que também deu a designação de O pastor amoroso.
N’O pastor amoroso de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro saiu do seu
personagem de pastor solitário, que é apresentado noutros poemas de Alberto Caeiro, e
transformou-se no personagem de um pastor “apaixonado” por uma mulher anónima.
Nos poemas de O Pastor Amoroso Alberto Caeiro profere algumas afirmações irónicas
e em que mostra que anda confuso, como por exemplo : “Eu gosto tanto dela que não
sei como a desejar”, e “Passei toda a noite sem dormir/Vendo sem espaço a figura
dela/E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que é quando me fala”. Ricardo Reis
declara num dos seus textos em prosa que o que deu origem aos oito poemas de O
Pastor Amoroso foi afinal “um esquecimento”. 571
A passividade amorosa de Alberto
Caeiro é evidente, pois ele foi como que apanhado numa rede, isto é, foi escolhido para
“amar”, conforme ele próprio diz no seguinte poema :

“Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim


Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma
Por tu me escolheres para te ter e te amar
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente”. 572

571
Prosa de Ricardo Reis, p. 46.
572
Alberto Caeiro, “Quando eu não te tinha”, O Pastor Amoroso”, p. 87.  
Ricardo Reis escreveu um poema a que deu o título : À la manière de A. Caeiro
(“À maneira de Alberto Caeiro”), em que diz : “Não tenho quem ame, ou vida que
queira, ou morte que roube”,573 e num texto em prosa sobre ele, diz o seguinte :
“O temperamento metafísico de Caeiro menos apto estava a receber as emoções
amorosas, que, sobre serem já de si perturbadoras, mais o eram para um temperamento
em que eram estranhas. Daí a momentânea abdicação dos seus princípios nos dois
poemas de O pastor amoroso. A viciação mental produzida por esse episódio amoroso,
que sobre ter sido estéril, foi perturbador, e cujos detalhes desconheço e não desejo
conhecer, prosseguiu no espírito do poeta”. 574
O relacionamento “amoroso” de Alberto Caeiro, em vez de lhe trazer serenidade,
paz e felicidade, trouxe-lhe desorientação, perturbação, pois abdicou dos seus
princípios, conforme Ricardo Reis afirma, e estava a representar e a viver uma
identidade que não era a sua. Este equívoco em Alberto Caeiro faz lembrar um texto do
Livro do Desassossego, em que Bernardo Soares diz o seguinte :
“Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e
satisfez por erro, o que amámos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-
lo perdido, que o não havíamos amado”. 575
O fingimento de Alberto Caeiro é sublinhado por ele próprio, num poema em
que exprime sobre si a seguinte necessidade :
“Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro. 576
Alberto Caeiro diz que a sua ocupação de guardador de rebanhos é um
fingimento:
“Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.”577
Também o mesmo se pode dizer dos poemas “de amor” de Alberto Caeiro para
com uma mulher : “eu nunca amei uma mulher, mas é como se a amasse”. O fingimento
amoroso de Fernando Pessoa através de Alberto Caeiro está expresso numa passagem
dos Textos mediúnicos de Fernando Pessoa, em que Wardour diz a Fernando Pessoa :
“Luis de Montalvor quer fazer-te mal tornando público que és muitas vezes outro, para

573
Poemas de Ricardo Reis, p. 89.
574
Obra completa de Ricardo Reis, p. 250.
575
Bernardo Soares, Livro do Desassossego, texto 95, p. 129.
576
“O Guardador de Rebanhos”, Poemas de Alberto Caeiro, p. 68.
577
Idem, p. 21.
que não possas ter sucesso com Caeiro” (pois Caeiro dizia ter uma “amada”), e portanto
ele andava a fingir. Esta afirmação sobre Alberto Caeiro deve ser compreendida no
contexto temático desses textos, pois são textos em que se fala da sexualidade de
Fernando Pessoa, e da sua aversão pelas mulheres.578
Alguns investigadores também têm chamado a atenção para o fingimento
amoroso de Alberto Caeiro. João Gaspar Simões diz que a poesia amorosa de Alberto
Caeiro “não é poesia sincera, no sentido humano total da expressão, uma vez que se não
traduziu nela, mesmo elevado ou purificado, fosse o que fosse dos problemas
propriamente humanos do profeta do super Camões (…), o certo é que um problema se
exprimiu nessa série de poemas e, por conseguinte, na inspiração de A. Caeiro, não de
todo alheio à problemática do mesmo Fernando Pessoa : o problema da própria
descoberta de um conteúdo para a poesia que este vinha realizando desde a composição
de Pauis, em Março de 1913, sem conteúdo algum : insinceridade pura, pura
mistificação, “cousas feitas para fazer pasmar”.579
Eduardo Lourenço diz também o seguinte sobre Alberto Caeiro : “Estamos pois
no reino da écloga e é natural esperar pastores e pastoras, disfarçados em pensamentos
ou vice-versa. Mas a felicidade do novo Virgílio é feita precisamente da ausência de
relações humanas. A Natureza é natureza sem gente. A pura contemplação ou sensação
da Natureza basta para ser feliz. Alberto Caeiro é Adão no Paraíso antes da criação da
mulher. Contudo, e a dada altura Pessoa imagina o seu Mestre amoroso, mas no fim de
contas a mulher também faz parte da Natureza. (...) Mas se nós olharmos melhor,
descobrimos o mesmo angelismo sexual que já notáramos em Pessoa-ele-mesmo”.580
Isabel Allegro de Magalhães diz também o seguinte sobre Alberto Caeiro : “Em
O Guardador de rebanhos , estamos diante duma Natureza sem amor. Mais ainda:
perante uma Natureza sem gente. Daí que ganhe especial significado a referência , no
poema VII, à ausência de amor na Virgem, mãe do Menino Jesus : “(…) a sua mãe não
tinha amado antes de o ter. (…) Não era mulher : era uma mala/ Em que ele tinha vindo
do céu”. Os poemas d’O Pastor Amoroso – considerados por Pessoa, e com razão,
pérolas da poesia amorosa universal – põem-nos perante uma muito vaga presença
feminina. (…) a mulher-personagem é quase sempre indiretamente mencionada :
unicamente pelos pronomes que a designam : ela, dela, nela, a, la (a figura dela, vejo-a,

578
Prosa Íntima e de autoconhecimento, p. 288.
579
João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa, pp. 283-284.
580
Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa – rei da nossa Baviera, p. 71.
encontrá-la, etc.). É alguém que se materializa sobretudo pelos efeitos que provoca no
eu masculino, numa sua alargada e mais intensa percepção da Natureza. (…) O amor
intensifica pois a experiência, não da mulher, mas da Natureza”. 581
Há uma folha do espólio de Fernando Pessoa, com um projeto para um texto,
acompanhada do título Notas, em que contracenariam algumas personagens, sendo
Alberto Caeiro a rapariga. Este projeto, que consta de um fragmento, é o seguinte :
“Ricardo Reis, Gertrudes, Cloe, a rapariga (Caeiro)”. 582
Conforme referimos num dos
capítulos deste livro, intitulado O problema da identidade de género na obra de
Fernando Pessoa e a sua relação com a homossexualidade, e nos muitos exemplos
dados, a feminização do homem aparece muitas vezes em Fernando Pessoa associada à
homossexualidade. Há também que lembrar o texto de Álvaro de Campos sobre Ricardo
Reis, que diz assim : “Dizem alguns fisiologistas que é possível a mudança de sexo.
Não sei se é verdade, porque não sei se alguma coisa é “verdade”. Mas o certo é que
Ricardo Reis deixou de ser mulher para ser homem, ou deixou de ser homem para ser
mulher - como se preferir - quando teve contacto com Caeiro”. 583 O contacto com o
mestre Alberto Caeiro, a aprendizagem com ele, fez o seu discípulo Ricardo Reis
tornar-se mulher, como também, no fundo, ele próprio era.
No espólio de Fernando Pessoa existe um conjunto de três versos manuscritos,
no mesmo documento de um dos poemas do Pastor Amoroso, onde se pode ler o
seguinte :

“Quem ama é diferente de quem é


É a mesma pessoa sem amigo ninguém
Não tenho paciência para grandes campos abstractos”.584

No manuscrito deste poema a palavra “amigo” aparece riscada, tal como aqui
mostramos. Fernando Pessoa escreveu várias vezes nos seus poemas homoeróticos a
palavra “amigo”, tendo portanto esta palavra um significado homossexual. Sendo um
poema de amor (pois Alberto Caeiro fala aqui em “quem ama”), e falando depois em

581
Isabel Allegro de Magalhães, “O gesto e não as mãos – a figuração do feminino na obra de Fernando
Pessoa : uma gramática da mulher evanescente”, Colóquio Letras, pp.22-23.
582
Pessoa por conhecer – Textos para um novo mapa, vol. II, p. 481.
583
Obra Completa de Álvaro de Campos, p. 460.
584
Os editores publicam o poema sem esses versos (publicam apenas os versos dactilografados),
remetendo-os para as notas finais. A cota do espólio é BNP/E3 67-67r. 
“amigo”, Alberto Caeiro fala em amigo no sentido amoroso. Mas por outro lado Alberto
Caeiro não queria ter escrito isso, e censurou-o, riscando essa palavra, substituindo-a
pela palavra “ninguém”.
Encontra-se nesta atitude aquilo que a Psicologia e a Psicanálise designam por
lapsos de linguagem. Um definição para lapso de linguagem encontra-se descrita por
Hotopf: «Um lapso de linguagem, de acordo com o Shorter Oxford Dictionary, é um
desvio, ou erro não intencional, na escrita, na fala, etc.».585 Uma outra definição afirma:
«Um lapso de linguagem (…) é um desvio involuntário no desempenho do falante a
partir de uma intenção fonológica, gramatical ou lexical que esteja em andamento». 586 É
de salientar que ambas as definições apresentam as ideias de não intencional e de
voluntário.

Entre os precursores das pesquisas sobre os lapsos de linguagem estão o filólogo


Rudolf Meringer e o psiquiatra Karl Meyer, que publicaram juntos, em 1895, a obra
intitulada Erros na Fala e na Leitura: um estudo psicológico, na qual destacam cerca de
8800 erros verbais de escrita e leitura. Mas quem estudou os lapsos de linguagem com
mais profundidade foi Sigmund Freud, na sua obra Psicopatologia da Vida Quotidiana,
escrita em 1901. Freud estuda diversos tipos de lapsos que acontecem diariamente nas
nossas vidas, que são consequências do nosso psiquismo, e que fogem ao nosso
controlo, como esquecer nomes próprios ou substituir palavras por outras, que surgem
por influência de algo que perturba o nosso inconsciente. Segundo Freud, essa
autoexposição seria a confissão involuntária de um conflito interior, escondido da nossa
consciência e escondido dos outros indivíduos. Para Freud, é a dimensão involuntária
que dá valor particular ao lapso: «No procedimento psicoterapêutico que utilizo para
resolver e eliminar os sintomas neuróticos, apresenta-se com frequência a tarefa de
encontrar um conteúdo mental nos discursos e nas ideias aparentemente casuais do
paciente. Esse conteúdo tenta ocultar-se, mas não consegue evitar trair-se
inadvertidamente de diversas maneiras. É para isso que, frequentemente, servem os
lapsos. Por exemplo, falando da tia, um paciente insiste em chamá-la: minha mãe sem
perceber o seu erro, ou ainda, uma senhora que fala do marido como se fosse o irmão.

585
, W. H. N. Hotopf, «Semantic similarity as a factor in whole-word slip of the tongue», in V. Fromkin,
(Ed.), Errors in Linguistic Performance: Slips of the Tongue, Ear, Pen, and Hand, p. 104.
586
Boomer & Laver, «Slips of the Tongue», in FROMKIN V., (Ed.), Speech Errors as Linguistic Evidence, p.
123.
Para esses pacientes, tia e mãe, marido e irmão são, portanto, identificados, ligados por
uma associação pela qual se evocam mutuamente».587

No fundo, o que Alberto Caeiro tem no seu inconsciente é a imagem de “um


amigo”, e os poemas endereçados a uma “ela”, de que Alberto Caeiro não diz o nome,
são disfarces, que afloram neste poema em que ele fala de um “amigo”, assim como são
disfarces os poemas de Ricardo Reis cujos destinatários amorosos seriam supostamente
mulheres, mas que, segundo revelou Álvaro de Campos, eram homens.

BERNARDO SOARES

Bernardo Soares é o autor do Livro do desassossego, um livro que teve como


primeiro autor Vicente Guedes, um heterónimo que terá surgido em 1909, como
contista e tradutor dos poetas bissexuais Lord Byron, e Percy Shelley (sobre os quais
Fernando Pessoa também escreveu), e tradutor do romance de Robert Louis Stevenson,
The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, que é um romance de conteúdo
homossexual.588 Além da faceta literária de Vicente Guedes, a própria personalidade de
Vicente Guedes tinha ligações à homossexualidade, através da sua ligação à
coquetterie, que era uma das características da sua personalidade, conforme se pode ver
no texto do Livro do Desassossego (131-154). Mas falemos de Bernardo Soares, que é o
principal autor do Livro do Desassossego , que conforme têm sublinhado alguns
especialistas, não é senão um substituto literário do próprio Fernando Pessoa.589

Bernardo Soares diz que as mulheres são o sexo sujo :


“A Coroada de Rosas :
Como as estátuas, sem fissura de sexo. Os seios são beleza, mas a caverna
inferior é só porcaria. (Por a terem, as mulheres são o sexo sujo)”.590

A designação tradicional sobre a mulher, do ponto de vista estético, é a de o


belo sexo, uma expressão que é utilizada para designar o sexo formoso, ou seja, o sexo

587
Sigmund Freud, Psicopatologia da Vida Quotidiana, p. 38
588
Ver Carolyn Laubender, “The Baser Urge: Homosexual Desire In The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr.
Hyde”, in Lehigh Review, vol. 7, 2009.
589
Richard Zenith, Pessoa – uma biografia, p. 912.
590
Apêndice 18, p. 503.
feminino (as mulheres). No entanto, Bernardo Soares designa a mulher com a expressão
o sexo sujo, que é uma designação de desapreço bastante negativa, e até mesmo
chocante. A palavra sexo pode ser entendida como referência ao sexo feminino, ou seja,
à mulher enquanto pessoa, ou como referência aos seus órgãos sexuais. Neste texto do
Livro do Desassossego há uma referência à mulher mas também, e sobretudo, aos seus
órgãos sexuais. Bernardo Soares diz que os seios são belos, mas mesmo assim,
conforme Fernando Pessoa diz num dos seus poemas, “não é cantando seios de
donzelas que se é o futuro”.591
A sua vagina, que Bernardo Soares neste texto denomina negativamente como a
sua “caverna inferior”, segundo ele, “é só porcaria”. As mulheres não são o “sexo sujo”
por serem mulheres, não se trata aqui simplesmente de criticar as mulheres do ponto de
vista do seu papel social, ou de outros atributos geralmente utilizados para criticar as
mulheres (pouca força física, pouca inteligência, etc.), mas sim de as criticar devido aos
seus órgãos sexuais, pelos quais Bernardo Soares sente repulsa. As mulheres têm aquilo
a que Bernardo Soares denomina como “sexo sujo”. Ora, uma coisa é ter um sexo que é
sujo, outra coisa é elas serem um sexo sujo. No entanto, o facto de terem uma parte
“suja”, e sendo essa parte o seu sexo, é bastante para Bernardo Soares dizer que elas são
sujas do ponto de vista sexual. As mulheres não têm apenas um sexo que é sujo, pois
elas têm um sexo que é sujo, e são sujas pelo facto de terem um sexo que é sujo. Há
aqui um extremar de posição sobre a mulher, tomando o todo pela parte, e encarando-a
no seu todo negativamente.
Ora, se as mulheres são “o” sexo sujo, implicitamente isso significa que há,
segundo Bernardo Soares, um sexo que não é sujo, ou seja, o do homem, cuja beleza
aliás Fernando Pessoa admira em alguns poemas que escreveu, e também em alguns
textos de ensaio, principalmente os textos que escreveu sobre António Botto, ao
considerar o sexo masculino superior ao da mulher do ponto de vista estético, como
quando diz por exemplo o seguinte : “Como se guia, pois, só pela beleza, o esteta canta
de preferência o corpo masculino, por ser o corpo humano que mais elementos de
beleza, dos poucos que há, pode acumular.”592
Dado que as mulheres são e têm um sexo que é sujo, e pelo qual Bernardo
Soares não sente beleza e não se sente atraído, e que não deseja possuir, então deseja
que elas sejam como as estátuas, isto é, que o sexo delas tenha apenas um desenho
591
Poesia 1902-1917, p. 75.
592
“António Botto e o ideal estético em Portugal”, Prosa publicada em vida, pp. 219-228.
exterior, como as estátuas, que não tenha fissura, abertura, fenda, que as mulheres sejam
como os anjos (que não têm sexo), e que portanto não sejam um ser carnal. Mas mesmo
sendo um ser divino e não um ser carnal, Bernardo Soares lamenta ter de lhes rezar
como a uma mulher, e não lhes poder querer como a um homem, conforme ele diz no
texto seguinte :

“Que pena eu ter de te rezar como a uma mulher, e não te querer como a um
homem, e não te poder erguer aos olhos do meu sonho como Aurora-ao-contrário do
sexo irreal dos anjos que nunca entraram no céu! “593

Há mais afirmações ao longo do Livro do Desassossego, em que Bernardo


Soares exprime o seu desdém para com as mulheres, o seu desinteresse amoroso e
sexual para com elas. Eis alguns exemplos :

“Que nenhum beijo de mulher, nem mesmo em sonhos, seja uma sensação
nossa”. 594

“Se dentre as mulheres da terra eu vier um dia a colher uma esposa, que a tua
prece por mim seja esta — que de qualquer modo ela seja estéril. Mas pede também, se
por mim rezares, que eu não venha nunca a obter essa esposa suposta”. 595

“Possuí-la ? Eu não sei como isso se faz. E mesmo que tivesse sobre mim a
mancha humana de sabê-lo, que infame eu não seria para mim próprio, que insultador
agente da minha própria grandeza, ao pensar sequer em nivelar-me com o seu
marido !”596

“Eu não te quereria para nada senão para te não querer. Queria que, sonhando eu
e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando – nem te vendo talvez”. 597

593
Nossa Senhora do Silêncio, pp. 464-467.
594
Texto 284, p.279.
595
Texto 344, p. 322
596
Uma carta, pág. 483
597
Os Grandes Trechos - Carta, p. 426.
A mulher para Bernardo Soares é apenas uma figura literária, uma imagem
poética, conforme o próprio Fernando Pessoa diz em alguns dos seus poemas a
mulheres (ver o capítulo deste livro : Os textos literários sobre mulheres ). A mulher é
um ser idealizado, é pura literatura, Bernardo Soares não a quer como a um ser carnal,
não é um ser para ele amar, em vez disso ela é um ser angélico : “tu és toda alada, toda”
(310-298), um ser onírico : “tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das
figuras” (Nossa Senhora do Silêncio – 465). A mulher é apenas uma imagem, um ser
pensado e encarado oniricamente, é uma espécie de ser celestial. Bernardo Soares não
sente fascínio pela mulher do ponto de vista sexual, conforme aliás ele diz noutra frase
deste texto : “nenhum fascínio de sexo se subentende no meu sonhar-te” (Nossa
Senhora do Silêncio – 465). Nem os seios da mulher Bernardo Soares quer beijar : “os
teus seios não são dos que se pudesse pensar em beijar-se” (Nossa Senhora do Silêncio
– 465). Bernardo Soares quer uma mulher sem sexo, uma mulher espiritual. O ideal de
mulher que Bernardo Soares é o da mulher assexuada, e rejeita as mulheres reais, as
mulheres sexuadas.
Conforme declara Eduardo Lourenço, “raramente se terá expresso, com tanta
nitidez, o que se poderá chamar de angelismo erótico essa relação “afetiva” com outrem
que abstrai, voluntariamente, da sua realidade carnal e psíquica. Fernando Pessoa-
Bernardo Soares, assumindo-se como “o objetivista dos sonhos, amante visual das
formas e dos aspetos da Natureza, apesenta este angelismo (ele próprio se vê “amando”
com a objetividade de um deus) como indiferente ao suporte sexual do seu fascínio.598
Em paralelo ao seu desinteresse erótico pelas mulheres, há vários textos em que
Bernardo Soares exprime a sua atração por figuras masculinas : príncipes encantados,
reis de sonho, o patrão Vasques, um tirano amado, guerreiros amorosos, cavaleiros,
marinheiros desembarcados, pastores, um homem que passa num barco, um Apolo de
corpo, o homem do restaurante, os rapazes, os moços de fretes, o moço do escritório,
etc.599 Em alguns dos seus textos fala em pederastia, e num deles faz o seu louvor :
“Aqueles de entre nós que não são pederastas desejariam ter a coragem de o ser.
Toda a inapetência para a ação inevitavelmente feminiza. Falhámos a nossa verdadeira
profissão de donas de casa e de castelãs sem que fazer por um transvio de sexo na
encarnação presente”. 600
598
Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, rei da nossa Baviera, p.66.
599
Ver a antologia de Victor Correia : Homossexualidade no Livro do Desassossego de Fernando Pessoa,
pp. 95-152.
600
Declaração de diferença, pág. 433
Há textos do Livro do Desassossego (de que o excerto anteriormente citado é
um dos melhores exemplos), que falam explicitamente de homossexualidade, por
exemplo empregando a palavra pederastia, mas há outros que são indiretos, pois não
ousam pronunciar o nome do que em alguns dos seus poemas Fernando Pessoa
denomina como “o outro amor”. Há no Livro do Desassossego textos mais ou menos
velados do afeto homoerótico, por vezes escondido, ou nas entrelinhas, com meias
palavras, alusões, efeitos, ambientes e estilos, que nos conduzem ao tema da
homossexualidade, como sucede por exemplo quando fala Bernardo Soares em : “A
deslocação dos instintos naturais”, “As conveniências sociais e os impulsos dos
instintos”, etc.
Existem outras afirmações no Livro do Desassossego que podem ser
interpretadas no sentido homossexual, afirmações essas misturadas com outras
afirmações, como por exemplo quando Bernardo Soares fala de um homem e diz o que
sente por ele : “sofro uma ternura como se um deus visse (70-106); quando se refere aos
“amores de duas dimensões” (368-337); quando fala em “a mulher que a nossa intuição
disse que olharia para trás, e que nunca chegou a existir” (290-284,285); quando fala em
“a doçura de não ter família” (209, 199), etc. Bernardo Soares fez do amor um sonho,
algo desejado mas não possível, e portanto só possível em sonho : “fazer o amor
resumir-se apenas a uma sombra de um sonho de amor” (428-385), pois conforme
afirma noutro parágrafo, “se um dia amasse não seria amado” (429-386), isto é, não
poderia ser correspondido, não poderia ser amado pela pessoa que ele amasse. Existem
ainda outras afirmações nos vários textos do Livro do Desassossego, que podem
também ser interpretadas à luz da homossexualidade.601

AS MULHERES E A FEMINILIDADE SEGUNDO FERNANDO


PESSOA

A REJEIÇÃO DE FERNANDO PESSOA PARA COM AS MULHERES

601
Não cabe aqui mostrar e analisar todos esses casos. Sobre todo esse mundo, veja-se a antologia já
referida, de autoria de Victor Correia, Homossexualidade no Livro do Desassossego, onde o autor mostra
e explica pormenorizadamente a presença da homossexualidade em Bernardo Soares.
Melhor de que a palavra “rejeição” seria a palavra “aversão”. A designação de
“aversão” é do próprio Fernando Pessoa, pois foi empregue por ele nos seus Textos
mediúnicos, através de um espírito que com ele fala, (“Um homem informará outro da
tua aversão pelas mulheres”.602), ou seja, de Fernando Pessoa falando consigo mesmo, e
sobre si mesmo, através de uma outra personagem, exceto para os que acreditem em
comunicações com “almas do outro mundo”, e portanto que acreditem que era mesmo o
espírito de um morto falando com Fernando Pessoa. Mas mesmo que essa “alma do
outro mundo” existisse, isso reforçaria a ideia da aversão de Fernando Pessoa pelas
mulheres, pois não seria ele próprio a dizer-nos isso sobre si, mas sim um ser do “além”,
um ser que agora vive no outro mundo, que tem uma identidade sobrenatural, que tudo
vê e tudo sabe. Porém, o que importa aqui salientar é a palavra aversão, pois esse
“espírito”, numa dessas comunicações, ao falar com Fernando Pessoa diz-lhe
exatamente isso: “um homem informará outro da tua aversão pelas mulheres”.
A aversão pelas mulheres não é necessariamente sinónimo de
homossexualidade, mas no caso de Fernando Pessoa sim, conforme se pode verificar em
pormenor nos excertos dos seus Textos mediúnicos, que estão num dos capítulos do
presente livro, capítulo esse intitulado : Revelações de Fernando Pessoa sobre a sua
homossexualidade Esses textos relatam as sessões de espiritismo de Fernando Pessoa,
que ele próprio registou por escrito : por um lado os “espíritos” falam exatamente da
aversão de Fernando Pessoa pelas mulheres e por outro lado falam de
homossexualidade, dizendo-lhe para ele não ter sexo com homens.. A forma de sentir e
de viver a homossexualidade masculina é, em relação às mulheres, a atitude de
desinteresse sob o ponto de vista afetivo e sexual, e em alguns casos significa não ver
nelas mais do que uma função biológica, como se pode constatar em algumas das
afirmações de Fernando Pessoa sobre as mulheres, como por exemplo quando um dos
seus heterónimos (António Mora) diz que a mulher é “necessária à Humanidade para o
facto essencial mas biológico apenas da sua continuação”603 (sublinhamos a palavra :
apenas). Bernardo Soares, conforme vimos no capítulo sobre este heterónimo, diz
também que a mulher é “o sexo sujo”, o que implica que há um sexo que não é sujo (o
dos homens).
Como se poderá verificar ao longo do presente livro, existem mais afirmações
em que Fernando Pessoa exprime o seu desinteresse pelas mulheres do ponto de vista

602
Escritos autobiográficos, automáticos, e de reflexão pessoal, p. 311
603
Obras de António Mora, p. 148.
afetivo, e isso tanto se encontra nos seus textos autobiográficos, como nos poemas e
textos em prosa. Nos seus textos autobiográficos, no seu diário de 27 de Fevereiro de
1914, queixa-se do desconforto que lhe causava uma presença feminina, e é mais
explícito nas passagens do seu diário de 1915, em que foi a um hotel em Lisboa,
encontrar-se com a sua tia Lisbela, e por acaso encontrou lá uma rapariga que gostou
dele (“pareceu gostar de mim. Senti que lhe era agradável”), situação essa que o deixou
inquieto e sem saber o que fazer. Segundo conta, acabou por procurar ser agradável,
fazendo-lhe “olhinhos”, representando portanto o papel de homem, mas conforme
Fernando Pessoa refere no mesmo diário, o encontro com essa rapariga causou-lhe uma
“agitação angustiante”, e uma “depressão muito forte”.604
É também revelador do desinteresse de Fernando pelas mulheres o facto de
nunca lhes ter dado atenção como poetisas, mesmo que fossem boas poetisas. Uma das
ausências mais marcantes é a de Judith Teixeira, contemporânea de Fernando Pessoa,
que foi grande poetisa, e que também foi a origem da perseguição e da condenação, em
1923, à chamada “literatura de Sodoma”, mas que foi totalmente ignorada por Fernando
Pessoa, pois ao condenar a censura à “literatura de Sodoma” apenas defendeu António
Botto e Raul Leal. Na biblioteca pessoal de Fernando Pessoa nem sequer existe um
exemplar da famosa obra de Judith Teixeira, Decadência. Apesar de ser um defensor
acérrimo de António Botto e de Raul Leal, não existe em Fernando Pessoa qualquer
manifesto ou palavras de solidariedade com essa poetisa, também ela envolvida no
escândalo da Literatura de Sodoma.
Em 1917 foi publicado em Portugal o livro : Poetisas portuguesas, uma
antologia que reunia cento e seis poetisas portuguesas, contemporâneas de Fernando
Pessoa, e que nos anos seguintes, os anos em que Fernando Pessoa ainda era vivo,
continuaram a escrever e a publicar poesia. Essa antologia, que foi publicada no tempo
de Fernando Pessoa, mostra bem que no seu tempo havia muitas mulheres que
escreviam poesia. Uma das mulheres que escreviam e publicavam poesia no tempo de
Fernando Pessoa, era Florbela Espanca. Outras poetisas importantes do seu tempo
foram Maria da Cunha, Alice Moderno, e Virgínia Vitorino. No entanto, apesar de
Fernando Pessoa ter escrito crítica literária em que fez apreciações sobre mais de cem

604
Escritos autobiográficos, automáticos, e de reflexão pessoal, página 37 (diário de 1915).
autores, e alguns deles sem qualidade literária, desinteressou-se completamente pelos
autores que eram mulheres, e interessou-se apenas pelos homens. 605
A homossexualidade masculina está associada não apenas ao desinteresse pelas
mulheres sob o ponto de vista afetivo, mas também, por vezes, à aversão por elas
(aversão essa que se designa pela palavra misoginia), e por outro lado a aversão pelas
mulheres está também associada, frequentemente, à homossexualidade. Para Fernando
Pessoa a mulher, a ser por ele aceite, tem que ser uma mulher de uma forma diferente, e
sendo mulher, pode-o interessar mas não pelo sexo. Fernando Pessoa idealiza a mulher
assexuada, e não a mulher com quem pudesse ter sexo, por isso afirma no Livro do
Desassossego, em “Nossa Senhora do Silêncio” : “O meu horror às mulheres reais que
têm sexo é a estrada por onde eu fui ao teu encontro”. Repare-se na palavra empregue
por Fernando Pessoa : horror. Segundo Freud, uma das características do homossexual
é o horror da mulher como parceira sexual. Freud explicita essa horror ao sexo
feminino, existente no homossexual, da seguinte maneira : “A mulher real, tal como
será conhecida mais tarde, permanece para ele impossível como objeto sexual, pois lhe
falta o excitante sexual essencial e, até mesmo, em relação com outra impressão da
infância, pode tornar-se para ele objeto de aversão. (…) Quando mais tarde as partes
genitais da mulher são percebidas e concebidas como inúteis, evocam essa ameaça (de
castração) e, por esta razão, provocam no homossexual horror em lugar de prazer.”606
Além de Freud, mais autores têm sublinhado a relação que existe entre a aversão pelas
mulheres e a homossexualidade.607
O decadentismo fim de século, muito ligado à homossexualidade, defendia a
possibilidade do indivíduo ter também as caraterísticas consideradas do outro sexo, mas
defendia-o apenas para os indivíduos do sexo masculino, significando isso que ter uma
personalidade feminina era algo bem vindo para uma pessoa do sexo masculino, mas
não a personalidade masculina para indivíduos do sexo feminino, ou seja, só os homens
tinham direito à androginia, ou à transsexualidade, o que implicava portanto a
discriminação das mulheres e a misoginia. No decadentismo, corrente estética muito
associada também às questões da identidade de género, a união masculino/feminino,
em que o mesmo indivíduo reúne em si próprio estas duas caraterísticas, como era o
605
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, Lisboa, Ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2013.
606
Sigmund Freud, La vie sexuelle (“A vida sexual”), p. 20.
607
Ver por exemplo o desenvolvido estudo (com muitos casos exemplificativos), de autoria de Philippe
Arino, “Destruction des femmes – Mysogynie homosexuelle” (Destruição das mulheres – Misoginia
homossexual), no seu Dictionnaire des codes homosexuels (Dicionários dos códigos homossexuais),
Paris, Ed. L’Hartmattan, 2008.
caso dos dandys, era aceite para os homens, mas não para as mulheres.608 Fernando
Pessoa é um exemplo significativo desta atitude, pois aceita a feminização nos homens,
mas critica a masculinização nas mulheres. As mulheres não podem ser nem
transsexuais, nem masculinas, e muito menos homossexuais. Sobre esta matéria pode
ver-se os textos de Fernando Pessoa sobre as mulheres, ou poemas seus (do ortónimo),
como por exemplo o poema dedicado a Safo, em que Fernando Pessoa critica o
lesbianismo. 609
O desprezo pelas mulheres é algo que existe em alguns escritores homossexuais
famosos, como por exemplo Hans Christian Andersen, Óscar Wilde, Henry de
Montherland, Yukio Mishima, André Gide, Jean Cocteau, Somerset Maugham, Julien
Greeen, etc. Um dos casos mais significativos, por se tratar de um dos autores que
Fernando Pessoa mais admirava, é o de Óscar Wilde, que por exemplo no seu livro
Uma mulher sem importância tem várias passagens em que exprime o seu desprezo
pelas mulheres, assim como no Retrato de Dorian Gray. Por outro lado, alguns dos
personagens dos romances destes escritores homossexuais, são misóginos, como sucede
por exemplo no romance de Yukio Mishima, Cores Proibidas, que tem como
personagem principal Shunsuke, que era um escritor homossexual misógino. 610
Estes escritores homossexuais misóginos são o exemplo daquilo que acontece
com alguns homossexuais, que do ponto de vista psicológico e afetivo antipatizam com
as mulheres, pois estas significariam para eles um martírio, as mulheres levá-los-iam a
representar perante elas e a sociedade um papel, provocando por isso, em alguns casos,
uma aversão e uma revolta interior, que constitui um mecanismo instintivo de
resistência. Esta aversão pelas mulheres tem consigo uma angústia pela diferença dos
sexos, e o facto do indivíduo implicado não saber comportar-se perante essa diferença.
A aversão pelas mulheres é uma atitude que existe em alguns homossexuais, nuns mais
e noutros menos, e com diversos significados : a repulsa pelo corpo feminino; o facto de
sentirem no corpo feminino o oposto e a negação daquilo de que eles gostam e que
desejam; o facto das mulheres lhes “roubarem” os homens, sendo portanto encaradas

608
Para mais pormenores, ver o estudo sobre este tema, de autoria de Frédéric Monneyron, De
l'androgyne au misogyne : l'infernale dialectique des decadentes, Paris, Les Cahiers du GRIF,
“Misogynies”, nº. 47, 1993, pp. 75-86.
609
Podem ler-se na antologia de textos de Fernando Pessoa, organizada por Victor Correia, intitulada :
Homossexualidade e Homoerotismo em Fernando Pessoa.
610
Sobre a relação entre misoginia e homossexualidade em poetas e escritores, ver por exemplo o
seguinte estudo: James S. CAMPBELL, “For You May Touch Them Not": Misogyny, Homosexuality, and
the Ethics of Passivity in First World War Poetry, Baltimore, Maryland, Ed. The Johns Hopkins University
Press, ELH, vol. 64, Nº. 3, 1997, pp. 823-842.
como uma espécie de rivais; o facto da presença física da mulher “obrigar” os
homossexuais a terem perante elas um comportamento e um desempenho que não são
capazes de ter, e portanto não conseguirem corresponder à expectativa das mulheres em
relação a eles, como por exemplo quando Fernando Pessoa diz no Livro do
Desassossego: “Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e não
reconhecem quando as encontram” (texto 107, p. 136).
Fernando Pessoa também era misógino, conforme se pode verificar em alguns
dos seus textos, e através de alguns estudos importantes sobre isso também
publicados.611 Em Fernando Pessoa a misoginia também está relacionada com a sua
homossexualidade, nomeadamente com uma certa forma de encarar a
homossexualidade, conforme se pode constatar por exemplo numa carta de Raul Leal a
João Gaspar Simões. Raul Leal, depois de, entre outras coisas, se ter referido, de
passagem, à homossexualidade em Fernando Pessoa, diz o seguinte : “(…) a teoria de
que acabo de dar uma breve indicação, é minha e não de outros homossexuais
superiores, mas todos eles sentem a inferioridade ingénita – que Platão já reconhecia –
do sexo feminino”.612
A misoginia em Fernando Pessoa existe em alguns dos seus textos associada à
homossexualidade, como se pode ver por exemplo nos já referidos Textos mediúnicos,
em que um espírito por um lado faz uma critica a Fernando Pessoa devido à sua aversão
pelas mulheres, chamando-lhe misógino,613 e por outro lado repreende-o, dizendo-lhe
para não ter sexo com homens. Além da admiração e do afecto de Fernando Pessoa
pelo sexo masculino, conforme se pode ver em vários dos poemas que escreveu, 614 o seu
desprezo pelo sexo feminino também está expresso claramente em alguns desses
poemas, como por exemplo no poema Amem outros a graça feminina, no poema
Oração (Súplica) aos novos deuses, no poema Conselhos, etc.
A mulher aparece com frequência como alguém que Fernando Pessoa critica,
também na sua obra em prosa, como em Quaresma Decifrador onde diz que “as
mulheres detestam os homens absolutamente fortes, os homens que elas sentem que as
podem dispensar sentimentalmente”.615 Para outro dos seus heterónimos, António Mora,

611
Sobre isso, veja-se por exemplo o livro de José Barreto, Misoginia e antifeminismo em Fernando
Pessoa, Lisboa, Ed. Ática, 2011.
612
“Uma carta de Raul Leal a João Gaspar Simões”, in Arnaldo Saraiva, Os órfãos do Orpheu, p. 194.
613
Escritos autobiográficos, automáticos, e de reflexão pessoal, p.225.
614
Confirmar na antologia organizada por Victor Correia, Homossexualidade e Homoerotismo em
Fernando Pessoa.
615
Quaresma decifrador, p. 56
“as três classes mais profundamente viciadas na sua missão social, pelo influxo das
ideias modernas, são as mulheres, o povo, e os políticos. A mulher, na nossa época,
supõe-se com direito a ter uma personalidade, o que pode parecer justo e lógico, e
outras coisas parecidas; mas que infelizmente foi de outro modo disposto pela Natureza;
(..) a abusiva libertação do espírito naturalmente servo da mulher e do plebeu dá sempre
resultados desastrosos para a moral e para a ordem social”.616
Também “nas biografias imaginárias que Pessoa atribui aos seus personagens, o
elemento feminino rareia ou está ausente. Desde Alberto Caeiro, que teria vivido no
campo com uma tia velha (embora tenha amado uma mulher anónima que, segundo
Campos, “teve o descaramento de ser amada por ele”), até Vicente Guedes, e Bernardo
Soares, passando por Alexander Search, Álvaro de Campos, António Mora, Ricardo
Reis, o Barão de Teive, e outros, deparamo-nos sempre com homens solteiros (o
heterónimo francófono Jean Seul exibe essa condição até no nome), sempre arredios da
convivência feminina, alguns deles sugeridos como homossexuais, até mesmo quando
escreviam Odes pagãs a uma Lydia ou Chloe.”617, nomes estes que, conforme Álvaro de
Campos afirma, são disfarces dirigidos a indivíduos do sexo masculino.618
Ter uma aversão sexual pelas mulheres, e criticá-las de forma direta ou indireta,
e até mesmo quando se buscam outras justificações sem serem as afetivas, está ligado à
homossexualidade em Fernando Pessoa, conforme se pode verificar também em alguns
dos textos do Livro do Desassossego, onde Bernardo Soares, que é considerado pelos
estudiosos um alter ego de Fernando Pessoa, afirma explicitamente que a mulher é o
“sexo sujo”, e onde existem textos relacionados com a homossexualidade, e por outro
lado onde existem textos em que Bernardo Soares rejeita as mulheres sob o ponto de
vista sexual. Isso acontece não apenas no Livro do Desassossego, mas também na
poesia de Fernando Pessoa, conforme já referimos, como por exemplo no pequeno
poema Conselhos, em que Fernando Pessoa aconselha a que se rejeite as mulheres : “Sê
generoso e puro./Não é cantando seios de donzelas/ Que se é o futuro,” 619 ou em alguns
dos poemas que escreve a mulheres, como por exemplo quando diz : “(…) Onde ia eu ?/
Já me esquecia. /Sim, o meu coração foi teu/Naquele dia ou noutro dia…/Nem se
houvesse outra terra ou outro céu/ Qualquer coisa aconteceria”. 620 A rejeição para com

616
Obras de António Mora, pp. 206-207
617
José Barreto, Misoginia e antifeminismo em Fernando Pessoa, p. 33.
618
“As figuras de amadas”, Obra completa de Álvaro de Campos, p. 498.
619
Poesia 1902-1917, p. 75.
620
Poemas de Fernando Pessoa, 1934-1935 (edição da Imprensa Nacional Casa da Moeda), p. 217.
as mulheres encontra-se ao longo da vasta obra de Fernando Pessoa : na poesia, nos
diários, nos textos em prosa sobre as mulheres, nos textos sobre arte e literatura, nos
textos e fragmentos genéricos, nos textos mediúnicos, no Livro do Desassossego, e
surge junto com textos em que Fernando Pessoa exalta a beleza masculina e exprime
sentimentos homossexuais. Se já por si a rejeição da mulher leva a pensar na
homossexualidade, o facto de existirem muitos textos em Fernando Pessoa que
exprimem sentimentos homossexuais, contribui também para se compreender melhor
essa rejeição.
Por conseguinte, a rejeição das mulheres, e mais do que rejeição, aversão,
conforme se pode ver em alguns textos de Fernando Pessoa, de que citámos acima
alguns exemplos, é uma das características da homossexualidade em Fernando Pessoa
(o que não significa que todos os homossexuais tenham aversão pelas mulheres). Assim
como não existe apenas um tipo de sexualidade mas vários tipos de sexualidade,
também não existe apenas um tipo de homossexualidade, mas vários tipos de
homossexualidade. Em Fernando Pessoa existe misoginia, assim como diversas formas
de sentir e de viver a homossexualidade. Uma das diversas formas de sentir e de viver a
homossexualidade, uma das suas consequências, é a crítica ao casamento, que também
existe na obra de Fernando Pessoa, conforme veremos no capítulo seguinte.

A CRÍTICA AO CASAMENTO

Nos tempos de hoje, em vários países, existe o casamento entre indivíduos do


mesmo sexo, mas no tempo de Fernando Pessoa o casamento significava a ligação entre
indivíduos de sexo diferente, e portanto a ligação a uma mulher. Ora, desde sempre
Fernando Pessoa recusou o casamento, fez-lhe críticas e apreciações depreciativas,
desprezando-o nos mais variados sentidos.
Ao longo da sua obra literária existem vários textos em que Fernando Pessoa
revela o seu desinteresse pelo casamento, e não apenas pelo casamento, como também o
seu desinteresse em constituir família e em ter filhos, e essa atitude aparece desde muito
cedo nos textos de Fernando Pessoa. Aos dezoito anos de idade, numa passagem do seu
diário de 1906, de 13 a 17 de Abril, Fernando Pessoa afirma : “planeei panfleto contra o
casamento – a instituição toda, tanto civil como religiosa.” 621 Fernando Pessoa deixou
dois esboços desse projeto (On the institution of marriage (“Contra a instituição do
621
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, p. 37.
casamento”), fragmento 23/13 v., do seu espólio, e Dissertation against Marriage
(“Dissertação contra o Casamento”), fragmento 134 B/28 v. também do seu espólio.
No ano seguinte, com dezanove anos de idade, através do seu heterónimo
Alexander Search, Fernando Pessoa escreveu o poema Na rua, em que mostra também
o seu desinteresse em ter um lar, mulher, e filhos, afirmando por exemplo : “Um lar,
repouso, filhos e mulher – /Nenhuma destas coisas é pra quem/Algo para além desta
vida quer/Numa constante luta no seu ser/ sabendo já que vitória não tem./ Ai de mim !
E saber que ninguém entende/ este desejo que tudo transcende/. 622
Em mais poemas
Fernando Pessoa recusa ter um lar e contrair família, como por exemplo quando afirma :
“No lar que nunca terei/ ‘Stá a paz de todo o mundo./ Ali o carinho é rei,/ O amor é bom
e profundo/ Sem que seja (…)623 / Eu só o encontrarei/ No lar que nunca terei”. 624
Ao longo da sua obra há recusas mais fortes, e algumas delas aparecem
associadas à sua crítica e ao seu desinteresse pelas mulheres, conforme se pode
confirmar nos textos que escreveu sobre as mulheres.625 Essas críticas às mulheres falam
também sobre homossexualidade, textos esses em que Fernando Pessoa defende a
homossexualidade nos homens, aos quais reconhece o direito de buscar o prazer sexual,
mas critica-a nas mulheres. Para Fernando Pessoa, as mulheres devem ter como objetivo
não dispersarem-se na busca do prazer sexual, mas sim concentrarem-se na sua missão
de mulheres, ficando em casa a cuidar dos filhos. Segundo Fernando Pessoa, conforme
ele afirma no texto Porque é que as mulheres se detestam tanto umas às outras, “o que
não existe na mulher normal é o que existe no homem normal - a divisão de interesses, a
dispersão de interesses por várias coisas que têm, é verdade, um centro comum, mas
esse não é a mulher, como seria de esperar se as atividades mentais dos dois sexos
fossem correlativas - não é a mulher mas o próprio homem, ele próprio, através do
prazer que dá a si próprio ou da busca do meio (como o dinheiro ou a posição social)
que lhe pode dar esse prazer”, 626pelo que a ligação a uma mulher, através do casamento,
tem um objetivo social, e não sexual.
Os textos em que Fernando Pessoa mais associa à homossexualidade o seu
desprezo pelas mulheres e pelo casamento são os Textos mediúnicos, em que o espírito

622
Poesia Inglesa, Ed. Assírio & Alvim, p. 99.
623
Espaço deixado em branco pelo autor.
624
Poesia 1918-1930, o. c., p. 280.
625
Victor Correia, antologia de textos intitulada Homossexualidade e Homoerotismo em Fernando
Pessoa, pp. 283-290.
626
José Barreto, Misoginia e antifeminismo em Fernando Pessoa, p.125.
(ou uma personagem, conforme a interpretação desses textos), critica Fernando Pessoa e
repreendendo-o por ele não se casar, e procura encontrar-lhe uma rapariga. Essa crítica
a Fernando Pessoa (uma crítica a si próprio, através de uma personagem que ele
encarna, isto é, um “espírito”), é feita devido a razões sexuais, pois o tema desses textos
gira em torno da sexualidade, em que o espírito critica Fernando Pessoa, dizendo-lhe
mesmo para não ter sexo com homens. Os textos mediúnicos, além de criticarem o
desinteresse de Fernando Pessoa pelo casamento, são casamenteiros, isto é, revelam
uma preocupação do espírito que fala com Fernando Pessoa, em encontrar uma mulher
para ele se relacionar e casar. Uma das mais ferozes críticas desses textos dirigidas a
Fernando Pessoa (isto é, de Fernando Pessoa a si próprio, autocensurando-se), devido
ao facto de não ter mulheres nem se casar, diz o seguinte :
“Masturbador ! Masoquista ! Homem sem virilidade ! (…) Homem sem pénis de
homem! Homem com clitóris em vez de pénis ! Homem com moralidade de mulher em
relação ao casamento. Verme ! Besta ! Verme brilhante”.627
Existem mais textos em que Fernando Pessoa revela o seu desprezo pelo
casamento (que não citamos para não tornarmos este capítulo muito extenso). Até
mesmo no seu extenso poema Epitalâmio (que é um cântico tradicional sobre as
núpcias), não existe o elogio do casamento, não há nenhuma admiração pelo casal
comprometido, e nenhum preceito moralizador. Pelo contrário, o que encontramos nesse
poema sobre as núpcias entre um homem e uma mulher, é a sexualidade. A instituição
do matrimónio, nesse longo poema, não se apresenta como um sacramento sagrado, mas
sim como uma falsidade. O objetivo do poema Epitalâmio é mostrar a hipocrisia social
do casamento, hipocrisia essa que se revela na diferença entre os valores defendidos
publicamente, e as atitudes privadas, que pouco têm que ver com a castidade. Nesse
poema de Fernando Pessoa a noiva não é propriedade exclusiva do seu esposo, e a sua
desfloração converte-se num ato público através da fantasia coletiva. O amor do
casamento é considerado uma falsidade, e portanto acentua-se nesse poema a condição
natural dos instintos sexuais, contraposta à condição social e artificial do casamento.
Existe também em alguns contos de Fernando Pessoa a crítica ao casamento e à
família, como por exemplo no seu conto Manuel Fontoura, que é uma crítica à relação
entre marido e mulher, conto esse que conclui afirmando que a família é defendida
“para a ordem social, por duas grandes virtudes sociais que a Humanidade em geral

627
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, p. 257.
possui : a ausência de imaginação, e o medo da polícia verbal”. 628
Existe também uma
entrevista concedida pelo heterónimo Álvaro de Campos, em que este defende que se
deve “desintegrar a família no seu sentimento tradicional". 629 A crítica ao casamento foi
também feita num texto de 1905 (BNP/E3, 15-19 – inédito), em que Fernando Pessoa
defende o amor livre. Existe também um fragmento do seu espólio, em que Fernando
Pessoa afirma: “O casamento é uma instituição social e não sexual”. 630 A crítica ao
casamento considerando-o como uma mera instituição social e não natural, está também
presente no conto de Fernando Pessoa O banqueiro anarquista, quando o narrador se
descreve a si próprio dizendo-se ser : “quem não crê na vida eterna, quem não admite
lei senão a Natureza, quem se opõe ao Estado porque ele não é natural, ao casamento
porque ele não é natural, ao dinheiro porque ele não é natural, a todas as ficções sociais
porque elas não são naturais”.631
Num outro texto de ficção, um texto do heterónimo Barão de Teive, também este
critica o casamento, dizendo sobre si próprio o seguinte : “Tive um dia a ocasião de
casar, porventura de ser feliz, com uma rapariga muito simples, mas entre mim e ela
ergueram-se-me na indecisão da alma catorze gerações de barões, a visão da vila
sorridente do meu casamento, o sarcasmo dos amigos nunca íntimos, um vasto
desconforto feito de mesquinhezas, mas de tantas mesquinhezas que me pesava como a
comissão de um crime”.632
O poema Lisbon revisited , do heterónimo homossexual Álvaro de Campos, é
também um dos exemplos em que Fernando Pessoa critica e despreza o casamento,
afirmando por exemplo : Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? /Queriam-
me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? /Se eu fosse outra pessoa, fazia-
lhes, a todos, a vontade./ Assim, como sou, tenham paciência! / Vão para o diabo sem
mim, / Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! /Para que havemos de ir juntos?”.633
Isto parece ser também uma crítica a Ofélia Queiroz, que o mesmo Álvaro de
Campos ridiculariza num dos seus textos e contra a qual Álvaro de Campos se insurgia
algumas vezes (pois ela insistia com Fernando Pessoa para ele se casar com ela),
levando Ofélia Queiroz, numa das suas cartas, a manifestar o seu desagrado em relação
a Álvaro de Campos, que se intrometia naquilo que ela queria que fosse uma namoro, e
628
A estrada do esquecimento e outros contos, p. 112
629
Páginas Íntimas e de autointerpretação, p. 415 e seguintes.
630
Escritos sobre génio e loucura, tomo II, p. 643.
631
O banqueiro anarquista, p. 14.
632
Ficção e Teatro, p. 47.
633
Obra Completa de Álvaro de Campos, pp.175-176.
um futuro casamento. Numa carta a Ofélia Queiroz, em que termina o seu
relacionamento com ela, recusando as suas pretensões casamenteiras, Fernando Pessoa
diz-lhe :
“Resta saber se o casamento, o lar, (ou o que lhe queiram chamar), são coisas
que se coadunam com o meu pensamento. Duvido. Por agora, e em breve, quero
organizar essa vida de pensamento e trabalho meu. Se a não conseguir organizar, claro
está que nunca sequer pensarei em pensar em casar. (…) É preciso que todos os que
lidam comigo se convençam de que sou assim, e que exigir-me os sentimentos (…) de
um homem vulgar e banal, é como exigir-me que tenha os olhos azuis e cabelo louro. E
estar a tratar-me como se eu fosse outra pessoa não é a melhor maneira de manter a
minha afeição”.634.

OS TEXTOS LITERÁRIOS SOBRE MULHERES

A obra de Fernando Pessoa está carregada de sentimentos de angústia e tristeza.


Porquê ? Isso tem sido interpretado de várias maneiras, e alguns estudiosos afirmam
por exemplo que é devido a saudades da sua infância. Mas se assim é, porque razão
Fernando Pessoa tinha saudades da sua infância ? isso sucedia porque agora, na idade
adulta, não era amado, nem podia amar. Fernando Pessoa ao longo da sua obra mostra
o seu ceticismo em relação ao amor, como no Fausto, em que afirma “O amor causa-me
horror”. Num dos seus poemas explicita aquilo que diz em muitos outros: “Meu coração
esteve sempre sozinho”.635, e no Livro do Desassossego citada no presente livro (108-
218), Fernando Pessoa diz: “Nunca amei ninguém”. Conforme afirma João Gaspar
Simões, a mãe de Fernando Pessoa foi o “único amor” da sua vida. 636 Alguns poemas
dirigidos a uma ela, como por exemplo o poema Adeus, são dirigidos à sua mãe, e o
poema Quando ela passa, foi dedicado à sua irmã. É certo que existem alguns poemas
dirigidos a mulheres, sem ser apenas a pessoas da sua família, mas são encenações da
heterossexualidade. Alguns investigadores insistem em levar à letra esses poemas, como
por exemplo o poema a uma rapariga loura, que é um poema com ironia, onde afirma
sobre essa rapariga o seguinte : “Sim, os feios também amados, e às vezes por

634
Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, p. 445 (carta de 29 de Setembro de 1929).
635
Poesia-1918-1930, p. 301.
636
João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa, pp. 489, 491, 497, e 507.
mulheres” (o que revela portanto o conteúdo homossexual que está por trás desta
afirmação).
Fernando Pessoa também escreveu poemas ao ópio, e no entanto não se drogava.
Fernando Pessoa também escreveu poemas a Cristo, e no entanto não era cristão. A
presença feminina nos seus poemas é apenas uma figura poética, conforme o próprio
Fernando Pessoa declara num dos seus poemas, ao dizer que a mulher para ele são
tercetos, isto é, versos : “Mulher, amor, (alcova ?) – sois tercetos !..../ Só vós ó mar e
céu nos libertais”. 637
Num dos poemas a mulheres, Fernando Pessoa pergunta : “E se
este dar-te a minha vida não fosse senão poesia ?”638, e noutro dos seus poemas dirigidos
a mulheres Fernando Pessoa diz o seguinte : “Os meus poemas – este/ E outros que
tenho-/São só a brincar.”639 Há muitos mais poemas a mulheres e sobre mulheres, em
que Fernando Pessoa se lhes dirige de forma irónica e cética, e em que, apesar de serem
dirigidos a mulheres, ele lamenta não as poder amar, mas para que este capítulo não
fique demasiado extenso, não os citamos. 640
A personagem feminina nos seus poemas é apenas uma presença decorativa,
como nos poemas de Omar Khayyam : Rubaiyat, que conforme Fernando Pessoa
afirma, “apenas serve vinho” : “(…) nem amor até – por aquela mesma Saki que aqui e
ali aparecem nos rúbayat não é como mulher que aparece, senão, e somente, como moça
que serve o vinho, e canta para dizer-nos que nada tem que nos dizer. Quem é ela ? Uma
mulher ? Não : é só a moça que serve o vinho”.641
Fernando Pessoa escreveu muitos poemas, alguns deles falam de uma “amada”,
que entra como personagem, mas Fernando Pessoa também escreveu poemas
homoeróticos, e outros que podem ser interpretados como tal. A maioria deles
expressam um homoerotismo muito sentido e emotivo, muitos deles com grande
profundidade psicológica, exprimindo sentimentos de dor, e foi-os escrevendo ao longo
de toda a sua vida, e não apenas numa determinada fase. Por outro lado, há poemas de
amor em Fernando Pessoa que não se sabe se são dirigidos a um homem ou a uma
mulher, pois não referem o género (masculino ou feminino) do destinatário. Dado que
existem vários textos homoeróticos em Fernando Pessoa, porque razão interpretar como
sendo dirigidos a uma mulher os poemas de amor que não têm referência no que diz
637
Álvaro de Campos, Livro de versos, p. 162.
638
Idem, p. 194.
639
Poesia 1918-1930, o.c., p. 395.
640
Pode-se ver esses poemas na seguinte investigação de Victor Correia : As mulheres em Fernando
Pessoa, Academia.edu (textos online).
641
Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, p. 160.
respeito ao género masculino e feminino ? Existe um preconceito interpretativo, neste
como noutros casos. Por exemplo, há poemas afetuosos dirigidos ao sexo masculino,
que são interpretados como sendo apenas de amizade (apesar de alguns falarem por
vezes de amor), enquanto os poemas dirigidos ao sexo feminino são imediatamente
interpretados como sendo de amor.
Há também alguns poemas de Fernando Pessoa cuja letra, no manuscrito, é
difícil de decifrar. Por exemplo na língua inglesa a palavra he refere-se a uma pessoa do
sexo masculino, e a palavra she refere-se a uma pessoa do sexo feminino, e portanto a
diferença entre essas palavras é clara. Também na língua francesa as palavras são
graficamente diferentes : a palavra il refere-se a uma pessoa do sexo masculino,
enquanto a palavra elle refere-se a uma pessoa do sexo feminino. Ora, na língua
portuguesa, por vezes não se percebe bem se a palavra é “ele”, ou “ela”, pois são
palavras muito parecidas, e entre um “e” e um “a”, escrito à mão, e muitas vezes em
letra corrida, o desenho da letra é parecido, e em papéis amarelecidos pelo tempo, e com
a tinta gasta, por vezes ainda se torna mais difícil decifrar. A maior parte dos poemas
de Fernando Pessoa foram escritos à mão, muitas vezes em letra corrida, pouco legível,
e não foram passados a limpo. Ora, perante algumas dificuldades de se perceber bem se
a palavra é ele ou ela, os decifradores da poesia de Fernando Pessoa atualmente editada,
optaram por pôr a palavra ela.
Numa edição dos poemas de Fernando Pessoa, existe um poema de 9 de
Novembro de 1924, cujo conteúdo é o seguinte : “Sim, poderia ser…/Mas era preciso
ver…/Eu preciso ver…/Poderei ? Talvez…/Tu és aquele que és…/Eu sou isso por quem
vês…”642 Numa outra edição, cujos poemas foram decifrados por outro intérprete, e
publicados por outra editora, existe também esse poema, mas com um conteúdo um
pouco diferente : “Sim, poderia ser…/Mas era preciso ver…/Eu poderia
ver…/Poderei ? Talvez…/Tu és aquela que és…/Eu sou isso por quem vês…”643 No
terceiro verso, na primeira versão foi escrito por quem decifrou : “eu preciso ver”,
enquanto na segunda versão o decifrador escreveu : “eu poderia ver”. Mas para o tema
que aqui nos interessa, o que há a salientar nas duas decifrações é sobretudo a mudança
do género masculino para o feminino, no que diz respeito ao destinatário deste poema.
Numa edição desse poema, o investigador decifrou e escreveu assim : “Tu és aquele
que és”, enquanto numa outra edição, feita por outro investigador, ele decifrou e

642
Poesia 1918-1930, p.214.
643
Poemas de Fernando Pessoa, 1921-1930, vol. I, tomo III, p. 70.
escreveu assim : “Tu és aquela que és”. Portanto, numa das decifrações da letra de
Fernando Pessoa esse verso foi decifrado como dirigindo-se a um homem, enquanto na
outra decifração esse verso foi decifrado como dirigindo-se a uma mulher. Também no
poema de amor, que começa deste modo : Sim, tudo é certo, logo que o não seja, na
oitava linha existe um verso que numa edição dos poemas de Fernando Pessoa o
decifrador interpretou assim : “Filho, eu que te desejo não te perder” 644, sendo portanto
um poema que se dirige a um homem, enquanto noutra versão do mesmo poema,
publicado por outra editora, o decifrador interpretou assim : “Filha, eu que te desejo não
sei qu’rer”,645 sendo interpretado como dirigindo-se a uma mulher (além do resto do
verso também não ser igual). Existem mais exemplos como estes, que têm decifrações
divergentes (no curto espaço de tempo desta introdução não cabe mostrar todos).
Portanto, o que há que realçar é que existem edições dos poemas de Fernando Pessoa
que têm alguns poemas interpretados como sendo dirigidos a uma “ela”, mas cuja letra
original, no manuscrito, não se percebe bem, e alguns desses poemas são provavelmente
dirigidos a um “ele”, e não a uma “ela”.
É certo que em Fernando Pessoa há alguns poemas que são dirigidos a uma ela,
pois percebe-se que o conteúdo é dirigido a alguém do sexo feminino. Qual o
significado disso ? Em alguns poemas trata-se simplesmente de um recurso verbal, de
uma forma de criar rima, quando por exemplo, para rimar com a palavra ainda,
Fernando Pessoa escreve noutro verso a palavra linda. Noutros poemas onde existe a
presença feminina, trata-se de situações banais do quotidiano, e não de poemas
amorosos. Em poemas mais sentimentais, a presença feminina é simplesmente um tema
poético e decorativo, uma encenação, a mulher é a musa do poeta, e torna-o mais
sensível enquanto poeta, poemas esses em que Fernando Pessoa imita a tradição lírica,
na qual o poeta canta o chamado belo sexo. O lirismo é a expressão duma emoção
pessoal intensa, e a mulher surge aí como um tema lírico, que reforça a componente
poética do texto, como era próprio da tradição literária. A poesia lírica trata de temas
como a mulher, a Natureza, a morte, o destino, etc., e são portanto temas
tradicionalmente poéticos. Cantar a mulher do ponto de vista poético não é a mesma
coisa que desejá-la do ponto de vista amoroso e sexual, e o próprio Fernando Pessoa
expressa essa ideia, ao dizer a uma mulher : “Quero-te para sonho,/ Não para te
amar”.646 Em alguns poetas, como Verlaine, que era homossexual, e que escreveu
644
Idem, p. 141.
645
Poesia, 1918-1930, p. 315.
646
Idem, “Là Bas”, p. 225.
também poemas a mulheres, a mulher é a encarnação do belo criado por Deus, a mulher
surge aí como um ser assexuado, como sucede também em Fernando Pessoa, como por
exemplo em algumas passagens do Livro do Desassossego, em que fala da mulher, mas
como um ser assexuado. A mulher (tradicionalmente dita “o belo sexo”) é uma presença
estética e não sexual.
Conforme afirma Eduardo Lourenço, “Pessoa guardará para sempre esta imagem
etérea, inacessível, da Mulher, objecto de fascínio sem outro conteúdo erótico que o da
evanescência da mulher real. Quanto mais a Mulher se aproxima da pura imagem ,
maior é o seu poder de fascínio. Em última análise, ela só é objecto de fascínio como
imagem.”647
Há mais investigadores da obra de Fernando Pessoa, que têm chamado a atenção
para o facto de faltar emoção amorosa nos seus poemas sobre mulheres. Por exemplo
Jorge de Sena aponta “a frieza amorosa que perpassa na sua obra poética inteira,
mesmo quando os autores falam em termos de amor, pois a sua obra é como a noite
obscura do sexo, o deserto da privação absoluta, normal ou anormal , da afetividade
erótica”. 648 António Quadros fala naquilo a que chama “o romantismo da mulher ideal”,
e diz a propósito da mulher em Fernando Pessoa, que “há na sua obra uma tal profusão
de simulações, de máscara, de camuflagens, que nunca é possível fazer dela uma leitura
simples, linear e literal”.649 Para o poeta mexicano Octávio Paz (prémio Nobel da
Literatura), faltou sempre na sua poesia a presença da mulher : “faltam nela os prazeres
tremendos. Falta a paixão, aquele amor que é o desejo de um ser único”. 650
Conforme afirma também Isabel Allegro de Magalhães, em relação aos
chamados “poemas de amor” a mulheres, “afirma-se aqui o abstrato em lugar do
concreto, a forma e não a substância, estamos aqui perante figurações da mulher que são
de facto construções de linguagem”. (…) as ideias e imagens da mulher aparecem
fabricadas e entretecidas no seu discurso poético. Essas ideias são frequentemente
evocadas imagisticamente, e as imagens articuladas proposicionalmente no contexto,
não exatamente de uma relação amorosa, mas de uma espécie de especulação poética
sobre a natureza da relação amorosa como conceito. E nessa especulação a imagem da
mulher é, quase por regra, para além de algumas exceções, evanescente. Muitas vezes o
feminino é uma presença meramente morfológica, a ponta de um icebergue, sem que

647
Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, rei da nossa Baviera, p. 65
648
Jorge de Sena, prefácio aos Poemas Ingleses, p. 31.
649
António Quadros, Fernando Pessoa, vida, personalidade e génio, p. 151.
650
Octávio Paz, “El desconocido de si mesmo”, p. 48.
nem a mulher nem o amor se materializem plenamente no texto, para além dessa
presença de índices morfológicos de género. E, quando de amor se fala, é
frequentemente para o denegrir ou para negar a sua possibilidade”.651
Fernando Pessoa escreveu sobre muitos temas, encenou várias situações, como
por exemplo também a do amor entre homem e mulher. Mas houve muitos outros
poetas homossexuais que, apesar de serem homossexuais, também escreveram poemas a
mulheres, poetas esses cuja maioria dos poemas de amor são homoeróticos. Por
exemplo, num escritor homossexual que Fernando Pessoa muito admirava, William
Shakespeare, os sonetos 1 ao 126 são dirigidos a um jovem do sexo masculino, por
quem exprime o seu afeto, enquanto os sonetos 127 a 152 são dirigidos a uma mulher, a
quem chama “dama morena”. Verlaine, um outro poeta homossexual, conforme já
referimos, escreveu a maior parte dos seus poemas de amor dirigidos a homens, mas
escreveu também alguns poemas dirigidos a mulheres.652 Por seu turno, Rimbaud, o
namorado de Verlaine, apesar de ser homossexual, também escreveu alguns poemas a
mulheres (Ophélie ; Au cabaret vert ; Vénus Anadyomène; L’étoile à pleuré rose;
Première soirée). Frederico Garcia Lorca, outro poeta homossexual, também escreveu
poemas a mulheres, como tema meramente literário (Casida de la mujer tendida ; La
dama de negro ; Encuentro (Maria del reposo). Existem mais poetas homossexuais cujo
conteúdo literário e temático variado inclui alguns poemas de amor sobre mulheres, em
que eles encarnam o personagem de poeta apaixonado por uma “musa”, fazendo-o
portanto como uma encenação e uma representação literária da heterossexualidade.
Apresentámos aqui apenas alguns exemplos, pois é impossível citar todos.
No caso de Fernando Pessoa, nota-se várias vezes o seu fingimento e também a
sua ironia em relação ao afeto para com as mulheres. Por exemplo o poema Uma
rapariga inglesa, de Álvaro de Campos, transcrito no presente livro, é dirigido a uma
mulher, mas conforme já referimos mais atrás, até mesmo nesse poema se revela a
homossexualidade do narrador, através do seguinte verso: “Escuso de me achar feio,
porque os feios também são amados/ E às vezes por mulheres !”653 Num outro poema,
que começa com o verso : Talvez não seja mais do que um sonho, Álvaro de Campos
fala de uma rapariga loura, e diz-lhe por exemplo : “Cada vez que te encontro lembro-

651
Isabel Allegro de Magalhães, “O gesto e não as mãos – a figuração do feminino na obra de Fernando
Pessoa : uma gramática da mulher evanescente”, pp. 18 e 21.
652
Paul Verlaine, Hombres e algumas mulheres, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2011.
653
Obra Completa de Álvaro de Campos, pp.251-252
me de versos que esqueci/ É claro que não me importo nada contigo”,654 e portanto não
está interessado nela. Há outro poema de Álvaro de Campos, o poema Acaso, onde ele
também fala de uma rapariga loura, mas segundo Álvaro de Campos, essa ou outra
rapariga loura, “é a mesma afinal”.655 Existe também um poema dirigido a uma mulher,
aparentemente de amor, mas em que Fernando Pessoa afirma : “Maria, (tu és Maria ?)/
Gosto de ti realmente/Mas não como gostaria/ Quem gosta só porque sente./ Meu gostar
é diferente/. Se sendo a mesma que és/ Tu fosses outra, e eu/ Sendo o mesmo que aqui
vês,/ Fosse outro, nem teu nem meu,/ Este amor que deus nos deu/ Talvez desse
resultado”. 656 Há mais poemas em que Fernando Pessoa fala do seu fingimento amoroso
para com o sexo feminino, como por exemplo no seguinte poema : “Vejo o meu
realejo/E já não tenho razão./Maria, dá-me esse beijo/Que me chega ao coração./ O
amor é melhor que árias,/ Mesmo que seja a fingir,/ As consequências são várias/ E tudo
se leva a rir”.657
A renúncia afetiva e a aversão sexual em relação às mulheres, está presente em
vários textos de Fernando Pessoa, como por exemplo, nos seguintes poemas:
Conselhos ; Oração (Súplica) aos Novos Deuses; Soneto Positivo; Amem outros a
graça feminina. Nos textos mediúnicos, por exemplo o texto Um homem informará
outro da tua aversão pelas mulheres; nos Diários (15 de Março e 13 a 17 de Abril de
1906, e 15 e 27 de Fevereiro de 1913). Nos textos Sobre as Mulheres (por exemplo “Só
o homem pode ser casto”). Em alguns casos Fernando Pessoa serve-se de alguns
autores para reforçar a sua atitude de desprezo em relação às mulheres, como por
exemplo no texto sobre Charles Dickens, ou no texto sobre Leopardi. Também em
alguns dos seus heterónimos (Jean Seul, António Mora, Bernardo Soares, etc.), se
encontra essa atitude. Existem mais textos onde se pode ver a rejeição e a aversão de
Fernando Pessoa em relação às mulheres.658
Quando Fernando Pessoa fala em mulheres, critica-as não apenas do ponto de
vista social e político, mas também afetivo e sexual, pois recusa a mulher carnal, exalta
a mulher virgem, e de preferência que seja uma mulher ausente. É admirador de uma
feminilidade que seja imaterial, não física, mas etérea, fora da esfera dos sentidos, fora
do corpo, portanto uma mulher assexuada, que Fernando Pessoa, considerava ser o ideal
654
Idem, p. 222.
655
Idem, p. 226.
656
Poemas de Fernando Pessoa, 1921-1930, p. 241.
657
Poesia, 1918-1930, p. 421.
658
Para mais exemplos, ver a antologia de textos organizada por Victor Correia: Homossexualidade e
Homoerotismo em Fernando Pessoa.
de mulher, conforme se pode ver no Livro do Desassossego, no texto “Nossa Senhora
do Silêncio”, onde a propósito da atitude de escrever versos a uma figura feminina,
afirma : “Os idealistas falsos da vida real fazem versos à Esposa, ajoelham à ideia de
Mãe... O seu idealismo é uma veste que tapa, não é um sonho que crie”, e conforme se
pode ver também no Livro do Desassossego, “a mulher é o “sexo sujo”.659 Fernando
Pessoa ao dizer que a mulher é o sexo sujo (e repare-se que ele põe a ênfase no sexo,
pois não diz simplesmente “a mulher”), pressupõe que há um sexo que não é sujo, e que
portanto esse é que é de admirar. Se o “sexo sujo” é o da mulher, o “sexo não sujo” é o
do homem.
Também o discurso do heterónimo Ricardo Reis é pautado por recusas a
contactos com mulheres reais, e Lídia aparece constantemente como objeto dessa
recusa. Lídia representa o amor idealizado, e irrealizável, assim como Chloe, a quem
Ricardo Reis diz: “Não quero, Chloe, o teu amor, que oprime/ Porque me exige o amor.
Quero ser livre”. Por outro lado, conforme nos revela o heterónimo Álvaro de Campos,
no seu texto As figuras de amadas, que aliás não existem como figuras, as referências a
Lídia e a Chloe são disfarces, que são dirigidos a um destinatário do sexo masculino.
Até mesmo em Alberto Caeiro, um heterónimo aparentemente heterossexual (ver no
capítulo sobre Alberto Caeiro o projeto literário em que Alberto Caeiro faria de
rapariga, e o texto de Álvaro de Campos que diz que Ricardo Reis se tornou mulher
quando tomou contacto com Caeiro), se analisarmos em pormenor, descobrimos que em
Alberto Caeiro o seu relacionamento com uma mulher é um falso amor, como se pode
depreender por exemplo através dos seguintes versos : “Quando eu não te tinha/Amava
a Natureza como um monge calmo a Cristo…/ Agora amo a Natureza como um monge
calmo à Virgem Maria” (…) “Quem ama é diferente de quem é, é a mesma pessoa sem
ninguém” (…) “Eu gosto tanto dela que não sei como a desejar” (…) “A minha voz fala
dela como se ela é que falasse” (…) “Passei toda a noite sem saber dormir/ Vendo sem
espaço a figura dela/ E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que ela é quando me
fala” (…) , e no poema IV do Pastor amoroso, a confusão entra na mente de Caeiro, que
mexe com a sua identidade. O pastor perdeu o seu cajado (uma metáfora fálica), e viu
que ninguém o tinha amado afinal. Alberto Caeiro acordou da falsa verdade desse
“amor” que o invadia, viu-se livre do papel que andava a representar, e finalmente,
conforme Fernando Pessoa afirma, “sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor,
uma liberdade no peito”.
659
Livro do Desassossego, apêndice 18, p. 503.
O fingimento amoroso é uma das características principais de Fernando Pessoa,
que num dos seus poemas mais conhecidos, a Autopsicografia, diz que “o poeta é um
fingidor”. Num dos seus textos em prosa diz também : “(…) Daí a arte, feita para
entretenimento dos outros, e a nossa ocupação, dos que somos ocupáveis desse modo.
Negada a verdade, não temos com que entreter-nos senão a mentir”. 660 Noutro texto em
prosa diz o seguinte : “Falar-lhe-ei da mentira e do erro que há no sentir e no pensar
humano; de como a nós mesmos, consciências inconscientes, mentimos por erro e
erramos por íntimo mentir”.661 Numa carta a João Gaspar Simões diz também que : “o
estudo a meu respeito, que peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são
falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir”. 662 Um dos seus heterónimos,
Alexander Search, também afirma : “Desde que tenho consciência de mim, apercebi-me
de uma tendência inata em mim para a mistificação, a mentira artística”. 663 Também por
exemplo no Livro do Desassossego afirma : “Tenho sido ator sempre, e a valer. Sempre
que amei, fingi que amei, e para mim mesmo o finjo” (fragmento 261, p. 262), e noutro
texto do Livro do Desassossego diz também que “não amamos, senão que fingimos
amar” (fragmento 368, p.337). Num dos textos dramáticos, o texto Inércia, encontramos
o seguinte diálogo entre duas personagens : “B- Fingimos que nos amámos ? B – Que
nos amámos ? Que gostámos um do outro. (…) Eu quer-me parecer que em muito do
amor há um grande conto do vigário”. 664 “ Há também um poema de Fernando Pessoa
em que ele exprime o desejo de um dia poder escrever “Um poema próprio, em que me
vá o ser,/ Em que eu diga o que sinto e o que sou,/ Sem pensar, sem fingir e sem
querer,/ Como um lugar exato, o onde estou, / E onde me possam como sou me ver”. 665
A máscara, muito empregue em Fernando Pessoa, a que não é alheio o próprio étimo
latino do nome “Pessoa” (persona), que significa “máscara”, é também o tema explícito
de alguns dos seus poemas, como por exemplo num dos seus sonetos, em que diz o
seguinte : “Ah quantas máscaras e submáscaras/ Usamos sobre a alma ! E quando, a
gosto,/ A alma tira a última das máscaras,/ Será que ela conhece o simples rosto ?” 666
Mas usar uma máscara tem subjacente algo que está por trás dessa máscara, o rosto
autêntico, a pessoa real, que Fernando Pessoa não mostrou, sendo disso um dos

660
Pessoa por conhecer, vol. II, p. 114.
661
“O sonho da vida”, Prosa - antologia mínima, p. 28, 3.
662
Correspondência, 1923-1935, p. 63 (carta de 11 de Dezembro de 1931).
663
Prosa Íntima e de autoconhecimento, Obra Essencial de Fernando Pessoa, p. 55.
664
Teatro estático, pp. 133-134.
665
Poesia 1931-1935 e não datada , p. 136.
666
Poesia inglesa, org. Richard Zenith, p. 161.
melhores exemplos a sua relação com Ofélia Queiroz, de que falaremos no capítulo
seguinte.

O EQUÍVOCO SOBRE OFÉLIA QUEIROZ

Desde muito novo que Fernando Pessoa expressou o seu fingimento amoroso em
relação às mulheres. Esse fingimento pode ver-se por exemplo no seu texto Carta de
amor equívoca, de que citamos o seguinte excerto : “O grande amor que até agora te
comuniquei é falso, e creio que a minha indiferença por ti cresce a cada dia. Quanto
mais te vejo mais apareces a meus olhos como digna de desprezo, sinto que estou
inteiramente disposto e determinado a odiar-te. Acredita que nunca tive intenção de
conceder-te a minha mão (…). Sim, espero que fiques persuadida de que falo de forma
sincera e far-me-ás o favor de ignorar-me”.667
O mesmo fingimento aconteceu em relação ao relacionamento de Fernando
Pessoa com Ofélia Queiroz, apesar deste relacionamento ser geralmente encarado de
forma literal pela opinião pública e por alguns investigadores, e portanto como se
tivesse sido um verdadeiro amor. Depois da publicação das cartas de Fernando Pessoa a
Ofélia Queiroz, alguns investigadores analisaram essas cartas e mostraram o seu
cepticismo de que tivesse sido realmente amor o relacionamento de Fernando Pessoa
com Ofélia Queiroz. Um desses investigadores foi João Gaspar Simões, que põe entre
aspas a palavra “paixão” no que se refere ao relacionamento entre Pessoa e Ofélia., 668 e
que diz o seguinte : “Fora um equívoco o amor que lhe inspirara Ofélia ? Sim, porque
não chegara sequer a ser amor”. 669 João Gaspar Simões chama também a atenção para a
banalidade das cartas dirigidas por Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz, e pergunta : “É
assim que costuma exprimir-se o amor-paixão, quando o amor-paixão vem aquecido
pelo desejo, coroamento necessário e fatal da atração que a mulher exerce sobre o
homem ? Claro que não.”670
Agostinho da Silva foi outro grande investigador a levantar dúvidas sobre a
sinceridade de Fernando Pessoa nas suas cartas a Ofélia Queiroz, cartas essas que
considerou serem um jogo, e afirma o seguinte : “A única coisa notável é a da carta de

667
Eu sou uma antologia , p. 25.
668
João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa, p. 493.
669
Idem, p. 521.
670
Idem, p. 509.
rompimento, quando ele viu que naquele jogo tinha atingido uma pessoa viva e não um
dos outros puramente criados. Mas o que ele pôs lá como heterónimo dele era o nome
que tinha : Fernando Pessoa”.671 Fernando Pessoa arrependeu-se de ter deixado que
Ofélia Queiroz se iludisse por ele. Esse arrependimento de Fernando Pessoa foi relatada
pelo próprio Fernando Pessoa a Agostinho da Silva, segundo o jornalista e escritor
Fernando Dacosta .672 Agostinho da Silva conheceu Fernando Pessoa pessoalmente, em
Dezembro de 1934. Segundo Agostinho da Silva, Fernando Pessoa confiou-lhe, num
tom envergonhado, que estava arrependido de ter escrito as cartas a Ofélia, e que apenas
o fizera “movido pela sua irremediável fantasia heteronímica”. Quando se deu conta da
“monstruosidade da coisa, pôs fim ao romance fictício, para não fazer sofrer uma
mulher real e apaixonada”.673
Entre os estudos sobre a relação entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz,
destaca-se também por exemplo o posfácio de David Mourão-Ferreira à publicação
dessas cartas, onde este estudioso diz o seguinte : “Chamar-lhe insistentemente Bébé,
Bébézinho, Bébé pequenino, Bébézinho pequeno, Bébé-anjinho, Bébé-pequeníssimo,
Bébézinho mau e bonito, ou pequeno e rabino, ou mauzinho (e muito), Bébézinho do
Nininho-ninho, Bébé-nininho, etc., etc. – ainda quando fosse apenas para lhe dizer que
não poderia ir buscá-la a Belém ou que estaria às onze nas proximidades da Livraria
Inglesa – tudo isso correspondia, no fim de contas, à patética enunciação de fórmulas
mágicas, de melopeias rituais, de conjuros propiciatórios no sentido de que a
destinatária permanecesse no estado de mítica infância em que ele próprio a colocara e
de onde a não queria ver desalojada ou decaída.”674
Outro estudioso, Yvette Centeno, vai ainda mais longe, ao dizer sobre Fernando
Pessoa e Ofélia Queiroz o seguinte : “Não queria ou não podia ver de outra maneira que
não fosse a de uma criança, inofensiva. Pois como mulher poria em risco o seu próprio
equilíbrio, todo feito de recusa, e não de aceitação do outro e de si mesmo. Assim
Ofélia, aliás logo Ofélinha, reduzida, depressa passa a Bébé (de valor neutro, e já não
feminino), a Bébézinha (neutro na mesma, e ainda mais reduzido), a Bébé-anjinho, em
que a des-sexualização mais se afirma, pois os anjos ainda menos que os Bébés podem

671
Conversas vadias, programa da RTP, do jornalista Joaquim Letria com Agostinho da Silva, ano de
1990, programa número três.
672
Fernando Dacosta, “Agostinho da Silva revela confidências de Fernando Pessoa”, Os mal amados –
confidências inéditas de figuras que construíram o Portugal como o conhecemos, pp. 357-359.
673
Idem, p. 358.
674
Cartas de Amor (organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira, p. 110
ter sexo.”675 Noutra passagem do mesmo texto Yvette Centeno diz o seguinte : “Álvaro
de Campos, homossexual, embirra com Ofélia. Mas Fernando Pessoa, não embirrando
com ela, com ela não pode viver. Como não podia viver com nenhuma mulher que não
fosse criança, anjo ou santa, ou, pior ainda (porque mis carregada de tabus), mãe. Com
nenhuma mulher que não fosse sonhada, que não estivesse por ele adormecida, isto é,
neutralizada”.676
Outro estudioso de Fernando Pessoa, José Augusto Seabra, diz também o
seguinte sobre as cartas entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz : “em termos de
migração intertextual”, relacionam-se “os elementos paradigmaticamente dispersos de
uma textualidade múltipla, nos seus discursos e sujeitos”, onde “o fingimento amoroso
das cartas a Ofélia não seria mais do que uma metamorfose dos textos poéticos, ou estes
daquele”, e onde “o discurso amoroso, bem como o seu sujeito, não são mais do que
essa encenação infinita de significantes”.677
O encontro de Ofélia Queiroz com Fernando Pessoa, no escritório onde este
trabalhava, e onde ela foi em busca de trabalho como secretária, deu-se de forma casual,
e a suposta cena romântica impulsiva entre eles, em que se terão tocado e abraçado,
aproveitando a súbita falta de eletricidade (cena essa que não se sabe se realmente
aconteceu), parece uma encenação à maneira das obras de Shakespeare, que Fernando
Pessoa tanto admirava, nomeadamente da obra Hamlet, onde existe também uma
personagem com o nome de Ofélia. Conforme refere um outro investigador de Fernando
Pessoa, a propósito dessa suposta cena romântica entre Ofélia e Fernando Pessoa, “todas
as cenas de arrebatamento amoroso revelam um ímpeto inesperado, como se o outro se
apoderasse de Fernando Pessoa, o tímido. A sua extrema permeabilidade à influência de
Shakespeare levou-o a inventar Hamlet : “sentou-se na minha cadeira, pousou o
candeeiro que trazia na mão e, vindo para mim, começou de repente a declarar-se, como
Hamlet se declarou a Ofélia”.678 “Esta cena, talvez verosímil entre namorados cultos e
bem humorados (Pessoa embirra com a palavra namoro e seus derivados), na
circunstância adquire um sentido trágico. A súbita paixão de Pessoa assume traços de
delírio, de paixão por uma personagem. Por outro lado, fingir de Hamlet é
desresponsabilizar o cidadão Pessoa”.679

675
Yvette K. Centeno, Fernando Pessoa: Ophélia – bébézinho ou o “horror do sexo”, p. 16.
676
Idem, p. 16.
677
José Augusto Seabra, O heterotexto pessoano, pp- 74-75.
678
José Martins Garcia, Fernando Pessoa, coração despedaçado, p. 394.
679
Idem, Ibidem.
Um outro investigador, Eduardo Lourenço, expressa também a sua descrença
sobre o chamado amor de Fernando Pessoa para com Ofélia Queiroz, dizendo que as
cartas que Fernando Pessoa lhe escreveu foram “uma comédia de enganos, anverso de
todo o fascínio amoroso, (…), um ostensivo erotismo adolescentemente brincalhão. (…)
Se Ofélia tivesse lido o menor dos poemas do seu efémero e improvável "namorado"
(epíteto que apenas concebido lhe seria insuportável), onde nada se glosa senão a
evidência de que a Vida é pura Ficção e a chamada Ficção a única e impensável
"verdade" dela, não teria embarcado nessa travessia do coração para um porto que
nunca existiu para o companheiro/fantasma dessa viagem sem viajante dentro”.680
Ao contrário da maior parte dos namorados, que suplicam por declarações
sinceras, e juras de verdadeiro amor, Fernando Pessoa dizia a Ofélia Queiroz :
“Compreendo que uma pessoa doente é maçadora, e que é difícil ter carinhos por ela.
Mas eu pedia-te apenas que fingisses esses carinhos, que simulasses algum interesse por
mim (…), faz, ao menos, por o fingires bem” (carta de 20 de Março de 1920). Fernando
Pessoa, embora carinhoso, chega a pedir a Ofélia para não dizer que se namoram
(“Nunca digas a ninguém que nos “namoramos”), e coloca a palavra namoramos entre
aspas. Portanto, Fernando Pessoa não levava esse relacionamento a sério, e pedia a
Ofélia que não tornasse público esse relacionamento. Fernando Pessoa fazia mesmo
ironia em relação à hipótese de casamento entre ele e Ofélia Queiroz, dizendo-lhe :
“Quando me dizes que o que mais desejas é que eu case contigo, é pena que não me
expliques que eu tenho ao mesmo tempo que casar com a tua irmã, o teu cunhado, o teu
sobrinho, e não sei quantos fregueses da tua irmã” (carta de 31-7-1920).
Foi Ofélia Queiroz quem iniciou a troca de cartas entre ela e Fernando Pessoa,
tanto na primeira como na segunda fase do relacionamento. Por outro lado, as
mensagens escritas de Fernando Pessoa para Ofélia Queiroz foram em número muito
reduzido, em comparação com as que Ofélia lhe enviou. Ofélia Queiroz escrevia-lhe
imensas cartas e bilhetes, e pedia-lhe insistentemente para ele lhe escrever mais vezes, e
suplicava-lhe mais provas de afeição, que segundo ela Fernando Pessoa não lhe
transmitia de forma convincente. Enquanto Ofélia Queiroz escreveu a Fernando Pessoa
289 mensagens (cartas, bilhetes, e cartões postais), recebeu em troca apenas 52, quase
sempre mais curtas, e algumas de um tom esquivo e evasivo. Criado um clima de
saturação da parte de Fernando Pessoa, enviar mensagens era uma tarefa apenas de
Ofélia Queiroz, e em que ela lhe pedia para ele se encontrar com ela (apenas ela pedia),
680
Eduardo Lourenço, “Amor e Literatura”, Jornal de Letras, nº. 1112, Lisboa, edição de 15/05/2013.
mas Fernando Pessoa deixou de lhe responder, mostrando-se portanto desinteressado
nela. Numa carta datada de 14 de Agosto de 1920 Ofélia escreveu-lhe uma carta em que
se queixava de que era ela que fazia tudo : escrever cartas e propor quando e onde se
encontrariam, exigindo dele mais interesse por ela. Apesar dela marcar encontros, era
habitual ele cancelar ou faltar a encontros marcados, e quando se encontrava com ela
esses encontros eram sempre curtos, e por vezes vinha contrariado, outras vezes absorto,
e outras vezes na pele de Álvaro de Campos (heterónimo homossexual de Fernando
Pessoa).
Apesar de Fernando Pessoa lhe ter escrito algumas cartas, conforme ele próprio
afirma num poema seu sobre as cartas de amor, eram cartas “ridículas”, nomeadamente
a sua infantilidade. Ainda segundo Eduardo Lourenço, as suas cartas a Ofélia Queiroz
não brilham como “eco ou reflexo de um amor ou uma ternura que o submergiu ao
menos em certos momentos” , mas sim por uma espécie de "frieza", ou reticência
afetiva, que desde o início se manifesta”.681 As cartas de Fernando Pessoa a Ofélia
Queiroz são muito diferentes do carater profundo da escrita habitual do poeta. Não há
nessas cartas um desnudamento psicológico, um sentir profundo, ao contrário da escrita
autobiográfica de Fernando Pessoa, ou das cartas que escreveu a Mário de Sá Carneiro.
Em vez disso, há nessas cartas uma espécie de encenação, uma relação literária com
alguém que embora existisse na vida real, está presente em Fernando Pessoa como uma
personagem dos seus contos e de outros seus textos de ficção. Fernando Pessoa
representou, através das suas cartas a Ofélia Queiroz, o papel de um amante que
pretendia eventualmente ter a experiência de amar uma mulher, mas não estava
realmente apaixonado. Numa das suas últimas cartas, escrita em 1 de Março de 1920, a
propósito deste relacionamento não dar certo, Fernando Pessoa afirma : “reconheço que
tudo isto é cómico e que a parte mais cómica disto tudo sou eu”.
Numa carta de 27 de Novembro de 1920, depois de uma vez mais não saber
nada dele havia já alguns dias, Ofélia escreveu-lhe dizendo-lhe não estar disposta a
continuar assim. No dia seguinte Fernando Pessoa escreveu um poema, que parece ser
sobre Ofélia, expressando o seu alívio sobre a sua farsa de amor :

“Tanto desejei deste embuste o fim


Do amor entre nós. E agora acabou.
Mas não posso fingir, nem para mim,
681
Idem, ibidem.
Que o alcançado desejo me alegrou.

Cada partida é já separação.


No dia mais feliz envelhecemos um dia.
P’ra termos estrelas há que ter escuridão,
A hora mais fresca é também a mais fria.

Não ousei hesitar em aceitar


A tua carta final, mas eu desejo
Com ciúme vago que não vou negar
Que fossemos feitos p’ra melhor ensejo.

Adeus ! Vou sorrir ou não neste momento ?


Meu sentir se perde no pensamento”.682

A sua farsa de amor tinha como um dos protagonistas o heterónimo com


tendências homossexuais, Álvaro de Campos, que intrometia-se no relacionamento de
Pessoa com Ofélia, estorvava-o, e escreveu a Ofélia Queiroz avisando-a de que o
relacionamento entre ela e Fernando Pessoa não devia ser levado a sério. A partir de
1930 Ofélia Queiroz fala sozinha, esforça-se para que Fernando Pessoa lhe dê atenção,
envia-lhe cartas, pede-lhe encontros, mas não recebe resposta. Foi um experiência
passageira, que durou pouco mais de um ano. Ofélia Queiroz perdeu Fernando Pessoa,
o qual se rendeu às interferências do homossexual Álvaro de Campos.683
Têm sido apontadas diversas razões para o facto de Fernando Pessoa ter
terminado o seu relacionamento com Ofélia Queiroz, como por exemplo : porque era
tímido, porque tinha dificuldades económicas, porque tinha que se dedicar à literatura,
etc. Nenhuma dessas razões é suficientemente justificadora. Desde sempre houve, e
continua a haver, muitos homens tímidos, outros com dificuldades económicas, e outros
que se dedicaram à literatura, mas que tiveram relações duradouras com mulheres, que
se casaram, e muitos desses escritores, apesar de se terem casado e de terem tido filhos,
escreveram muitos livros. Por exemplo o escritor James Joyce, ao mesmo tempo que

682
Poesia inglesa, org. Richard Zenith, pp. 451-452
683
Para uma abordagem mais pormenorizada sobre esta matéria, ver Yvette K. Centeno, Fernando
Pessoa: Ophélia – bébézinho ou o “horror do sexo”, p. 16.
produzia a sua ficção, estava profundamente apaixonado por Nora Barnache. Na
verdade, uma coisa não impede a outra. No entanto, existe a tendência para apresentar
esses impedimentos em Fernando Pessoa, e geralmente não se apresenta como
impedimento a sua homossexualidade.
O simples facto de Fernando Pessoa ter conhecido Ofélia Queiroz e de ter
mantido com ela um relacionamento de cerca de um ano, leva imediatamente algumas
pessoas a negarem a homossexualidade de Fernando Pessoa. Ora, existem e sempre
existiram muitos homossexuais que numa determinada fase da sua vida tiveram uma
experiência com uma mulher (e a quem também escreveram cartas), homossexuais esses
que andavam confusos, ou na esperança disso os fazer esquecer ou apagar a sua
homossexualidade, e alguns deles, tendo sido tão cortejados por uma mulher, acabaram
por se deixar levar pelas solicitações dessa mulher. Sempre houve e continua a haver
muitos homossexuais que casaram e tiveram filhos, e que continuaram casados ao
longo de muitos anos, e alguns até mesmo até ao fim da sua vida, em consequência da
pressão social, de modo a evitar suspeita da sociedade, que não olhava com bons olhos
quem ficava solteiro, e portanto muitos homossexuais sentiram necessidade de ocultar a
sua homossexualidade, através do casamento. Por outro lado, o casamento trazia outras
vantagens para muitos homossexuais : a mulher cuidava-lhes do serviço doméstico, a
mulher fazia-lhes companhia, as mulheres ricas traziam-lhes vantagens económicas, as
mulheres davam-lhes filhos (que alguns deles queriam ter), etc.
Ao longo da História houve muitos homossexuais célebres que para não
mancharem a sua celebridade ou o seu protagonismo social, mantiveram casamentos de
fachada.684 Em alguns casos isso aconteceu não apenas para se salvaguardarem da
crítica da sociedade, mas também para assegurarem a transmissão do seu nome e da sua
herança familiar (do ponto de vista genealógico). No que diz respeito a essas mulheres,
conforme refere Michel Larivière, ao serem confrontadas com a homossexualidade dos
seus maridos, as atitudes delas variam ao longo dos tempos : “a namorada desamparada
que se sente sacrificada; a ciumenta que tenta curar o seu marido; a calculista que tenta
vingar-se; a tolerante ou cúmplice que aceita mesmo os arranjos a três; a frágil, que
perde a razão; a ressentida vingativa que quer ocultar a verdade a todo o preço até
destruir a memória do seu marido”, etc.685

684
Sobre isso, pode ver-se por exemplo o livro devidamente documentado, de Michel Larivière, Les
amours masculins de nos grands hommes célèbres (“Os amores masculinos dos nossos grandes homens
célebres”), Paris, Ed. Musardine, 2014.
Houve também muitos escritores homossexuais ao longo da História que numa
determinada fase da sua vida tiveram uma namorada (ou um namorado, no caso das
lésbicas), escritores esses que lhe escreveram cartas (assim como Fernando Pessoa), e
que responderam às cartas que essa namorada lhes enviava, e em alguns desses
escritores não foi apenas um caso passageiro, não foi apenas uma namorada, mas sim
uma esposa, pois alguns desses escritores homossexuais foram mesmo casados e
tiveram filhos. Um dos casos mais famosos, no que diz respeito à escrita de cartas, é o
do escritor francês André Gide, que era homossexual, e que foi casado durante vários
anos. Quando a sua esposa Madeleine descobriu que ele era homossexual, queimou as
muitas cartas que ele lhe escreveu durante os anos de namoro, concluindo que todas
aquelas cartas eram ilusórias.
O famoso homossexual Óscar Wilde e a sua mulher Constance Lloyd também
escreveram um ao outro cartas de amor. 686
Numa carta após o seu noivado, Constance
escreveu o seguinte a Óscar Wilde : “Como posso responder às suas cartas ? elas são
lindas demais para qualquer palavra minha, só posso sonhar com você o dia todo”.687
Em 22 de Janeiro Óscar Wilde escreveu uma carta ao seu amigo Thomas Waldo
Story, Nesta carta Wilde descreveu assim a jovem a jovem de quem tinha ficado noivo
semanas antes : “Seu nome é Constance e ela é muito jovem, muito grave e mística,
com olhos maravilhosos e madeixas de cabelo castanho escuras muito perfeitas. (…)
Estamos, é claro, desesperadamente apaixonados.” 688
As cartas entre Óscar Wilde e a sua mulher eram extremamente apaixonadas e
fervorosas, e Óscar Wilde dedicava a Constance um grande afecto, apesar de ser
homossexual. Óscar Wilde e Constance Loyd casaram-se e tiveram filhos, e como Óscar
Wilde, muitos homossexuais também o fizeram. Antigamente havia uma certa pressão
social e cultural, e muitos indivíduos, apesar de serem homossexuais, casavam-se.
Alguns deles, devido ao facto de serem escritores famosos, casavam-se para evitarem
que o facto de ficarem solteiros levantasse suspeitas. Eis vários exemplos de escritores e
poetas homossexuais que foram casados : Safo, Shakespeare, Alfred Tennyson, Percy
Shelley, Paul Verlaine, Óscar Wilde, André Gide, Jean Genet, Jean Cocteau, Louis

685
Para mais pormenores, ver o desenvolvido estudo dedicado a esta matéria, realizado por este autor,
em : Femmes d’homosexuels célèbres (“Mulheres de homossexuais célebres”), Paris, Ed. La Musardine,
2016.
686
Oscar Wilde, The complete letters of Oscar Wilde, London, Ed. Henry Holt and Co., 2000.
687
Idem, p. 20.
688
Franny Moyle, Constance : the tragic and scandalous life of Mrs. Oscar Wilde (“Constance : a trágica e
escandalosa vida do senhor Oscar Wilde), p. 17.
Aragon, Thomas Mann, Edward Fitzgerald, Tennesse Williams, Somerseth Maugham,
Vigínia Wolff, Yukio Mishima. Eis também vários exemplos de escritores
homossexuais portugueses, que foram casados : Fialho de Almeida, António Botto,
Judite Teixeira, Jorge de Sena, Teixeira Gomes, Pedro Homem de Melo, Luis Miguel
Nava, Al Berto, Gastão Cruz, Guilherme de Melo.
Ora, Fernando Pessoa nem sequer chegou a casar, e o seu relacionamento com
Ofélia Queiroz durou pouco mais de um ano, relacionamento esse que, conforme se
pode ler nas suas cartas, ele não queria que se dissesse que era namoro, pois não o
considerava como tal. Portanto, o facto de Fernando Pessoa ter tido um relacionamento
com Ofélia Queiroz, não é motivo para negar a homossexualidade de Fernando Pessoa.
Depois de Ofélia se ter dirigido ao escritório onde Pessoa trabalhava, conforme
ela conta, quando já ia a sair do escritório ouviu um dos sócios do escritório perguntar a
Fernando Pessoa :
“- Ó Fernando, não estava mesmo a apetecer dar um beijo naquele pescoço ?
- Eu não acho – respondeu ele secamente”. 689
Assim achou e assim acharia ao longo dos meses que se seguiram. No entanto
acabou por ceder às solicitações de Ofélia, quis experimentar, tentou ser “normal”, e
acabou por representar um papel. Deixou-se ir, e acabou por simpatizar com o papel que
estava a representar. Acabou por sentir por Ofélia um certo afeto, mas ao mesmo tempo
desejava que esse relacionamento, que sentia ser uma farsa, acabasse um dia. O
fingimento, que era algo tão peculiar em Fernando Pessoa, tinha limites. Farto de tantas
solicitações e de pedidos de clarificação de Ofélia, Fernando Pessoa acabou finalmente
por pôr um fim à relação entre eles.

O LESBIANISMO NA OBRA DE FERNANDO PESSOA

O médico e investigador Egas Moniz, prémio Nobel da Medicina, afirmava em


1902 : “as práticas sáficas têm-se divulgado extraordinariamente mesmo em Lisboa e
Porto”. 690
Nesta época, e nos anos seguintes, “as lésbicas portuguesas saem
visivelmente do espaço que lhes estava reservado no heteropatriarcado fim-de-século,
os dos livros eróticos ou médicos. É assim que certas revistas humorísticas põem em
689
Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz, pp. 15-16 (inclui o relato de Ofélia da relação que mantiveram um
com o outro, de uma entrevista dela em 1978). Diálogo citado por Richard Zenith, Pessoa, uma
biografia, p. 671.
690
António Egas Moniz, A vida sexual, p. 169
cena, desde 1916, casais de mulheres que deixam aparecer, nas suas atitudes ou
discursos, uma certa apetência pelo mesmo sexo.” 691 Tudo isto se passava no tempo de
Fernando Pessoa. Como reagiu ele ? qual o lugar para o lesbianismo na sua obra ? o que
pensava ele sobre as lésbicas ?
Na obra de Fernando Pessoa existem alguns textos de conteúdo lésbico. Numa
das suas peças de teatro, no Diálogo no jardim do palácio, uma mulher confessa a outra
mulher os conflitos sentimentais que sente em relação a um homem, mostra-se confusa,
e acaba por ir revelando que é essa mulher que ela ama. Eis alguns excertos desse texto :

“- Tenho medo de que realmente o não ame e o não queira (…)


- Sabes tu porque é isso ? É que sentes que quem amas não é ele… Não traias a
tua alma… Essa é que é tua… Essa é que te pertence (…)
- Dir-lhe-ei que o não amo. Que melhor amante que tu ? És mulher como eu, e
amando-te é a mim que me posso amar, nem amando. És outra e preciso morrer para
mim para te amar.
- Sabemos, amar, devagar. Encosta a tua cabeça nos meus seios. Ponho a minha
mão entre os teus cabelos de ouro; passo os meus dedos pela tua pele. (…) Senta-te
aqui, defronte de mim e chegada a mim. Encosta os teus joelhos aos meus joelhos, e
toma as minhas mãos nas tuas… “692

Num livro em que se reúne a correspondência de Fernando Pessoa existe


também uma carta de uma mulher a outra mulher. Não se trata de uma carta de
Fernando Pessoa a uma mulher real, por isso está mal inserido na correspondência de
Fernando Pessoa. A ausência de uma data torna impossível situar o jornal onde teria
sido publicado o anúncio, e a identidade da mulher do anúncio, ao qual respondeu a
mulher do texto aqui publicado, que também não está identificada, devendo tratar-se
portanto um texto de ficção (e mesmo que não fosse um texto de ficção seria na mesma
um texto lésbico). O conteúdo é o seguinte :

“Menina :
Que anúncio o seu ! Mas ele tocou-me no fundo do coração.

691
Fernando Curopos, La portugayse (in)visible (“A portuguesa invisível). Neste título o autor do artigo
faz um jogo de palavras entre a palavra francesa “portugaise” e a palavra “gay”. p. 21.
692
“Diálogo no jardim do palácio”, Teatro estático, pp. 67, 68, 70.
Sou o que se pode chamar rica, tenho gostos a que é permitido chamar
modernos, e tenho não só necessidade de acarinhar como de ser acarinhada…
Posso esperar a sua resposta, indicando quando e onde poderei falar consigo ?
Dirigir a sua resposta muito simplesmente”.693

O heterónimo Jean Seul também tem um texto em que fala em relacionamentos


lésbicos. O texto diz o seguinte :

“Fui, no outro dia, ver um colégio de raparigas. O nome do colégio é “Institut


Sans Hymen” (Instituto Sem Hímen). Foi fundado, disseram-me, por uma benemérita
que teve 14 mil amantes e que morreu, ao que parece, da sua dedicação.
As jovens raparigas deste internato são bastante bem educadas. Aprendem o
máximo de vícios possível e é, de facto, fascinante ver com que facilidade as caras
moças os aprendem !
As punições – é verdade – não são de todo ligeiras; por exemplo, uma rapariga
que choramingou porque uma outra a usou para um qualquer acto de sadismo foi
condenada por um conselho de professores a não ter mais 3 amantes masculinos e 6
amantes femininas”.694

Fernando Pessoa (ortónimo) escreveu também um poema a Safo, poetisa lésbica


da Grécia antiga. O poema é o seguinte :

“Ó Safo, negra sub-rameira, ronha


Do vício q’rer achar-se subtileza,
Não é das portuguesas a vergonha,
Você, por não ser uma portuguesa.

Vive p’ra o seu país, onde a alma sonha


De boca aberta com (…) 695 tez
E a confusão de tudo é tão medonha
Que o copular é um prazer de mês.

693
Correspondência inédita, p. 198.
694
“A França em 1950”, Obras de Jean Seul de Méluret, pp. 279-280.
695
Espaço deixado em branco pelo autor.
Vá, não tenha medo que eu lhe fuja
Nem a você nem (…)696
E se, por não poder ficar mais suja,
Por perversão mais limpa se fugir,
Tenha a certeza que, se não morri,
Vossemecê ainda me agarra aqui”.697

No Outono de 1921 Fernando Pessoa escreveu em máquina de dactilografar uma


lista com mais de cinquenta títulos a publicar pela sua editora Olissipo, entre os quais
algumas traduções para Português. As traduções previstas incluíam a poesia de Safo. 698
Fernando Pessoa devia conhecer Safo através de antologias de poesia grega, como por
exemplo a célebre obra clássica intitulada Antologia Grega, que Fernando Pessoa tinha
na sua biblioteca, e que contém muitos poemas homoeróticos, de entre os quais alguns
da autoria de Safo : The Greek anthology in five volumes, trad. N. R. Paton, Londres,
Ed. William Heinemann, 1916-1917 (Richard Clay and sons Ltd.), 5 volumes. Edição
bilingue em grego e inglês.
O personagem principal de um texto de Fernando Pessoa revela desprezo pelo
lesbianismo, o seu texto Porque é que as mulheres se detestam tanto umas às outras,
que critica a homossexualidade feminina, em consonância com a sua aversão sexual
pelas mulheres expressa noutros textos, e com este poema irónico sobre Safo.

“(…)
- Essa teoria é fantástica. Com que então, para si, a inversão sexual é de certo
modo uma coisa normal?
- A inversão sexual masculina; da feminina só falei por alto. Essa é anormal. A
mulher não tem direito à inversão sexual. Nela é uma degenerescência...
- A propósito: que papel tem na sua teoria - que explicação, quero eu dizer - a
inversão sexual feminina propriamente tal ?
- Ah, essa? É simples. É simples e um pouco complexa, sobretudo para explicar.
Primeiro, a mulher desvia-se do seu papel normal de captar o homem. 699 Feito isso, ela
já está invertida, está homem. Safo, por exemplo, caindo no erro terrível e imoralíssimo
696
Idem.
697
Poesia, 1902-1917, p. 93
698
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, documento 137 A/21-24.
699
Sinal de redação provisória no final do período.
de, sendo mulher, escrever versos, ficou ipso facto 700
invertida; uma vez invertida,
tornou-se fisicamente homem.
- Sim, está bem. Já vejo o resto. Daí a sentir uma atração física pela mulher, o
passo é um e curto. Resta saber se essa explicação corresponde à realidade. É tão
simples que deve ser falsa, e tão natural que o é com certeza”. 701

Neste texto de ficção um dos interlocutores (que pode ser considerado o próprio
Fernando Pessoa), critica a “inversão sexual feminina”, aprovando no entanto a inversão
sexual masculina. Por outro lado, Fernando Pessoa com este seu texto pode ter querido
reproduzir as críticas que faziam ao lesbianismo alguns homossexuais masculinos, que
admitiam apenas a homossexualidade masculina. No entanto, Fernando Pessoa, além de
ser irónico para com Safo, na sua obra não se interessou muito pelo lesbianismo. Por
outro lado, conforme já salientámos, na polémica da chamada “literatura de Sodoma”,
cujos alvos eram António Botto, Raul Leal, e Judith Teixeira, Fernando Pessoa nos
textos que escreveu e na distribuição de folhetos, defendeu apenas António Botto e Raul
Leal, e ignorou completamente o nome de Judith Teixeira. Por outro lado, ao defender a
homossexualidade, nunca fez referência à homossexualidade feminina, mas apenas à
homossexualidade masculina.
O seu amigo Raul Leal também desprezava a homossexualidade feminina. No
seu livro Sodoma divinizada diz o seguinte :
“Se queremos atingir a nossa essência divina , puramente una, temos de
restabelecer antes de mais nada a unidade da Vida em nós, fundindo os sexos num só. E
é a pederastia, ainda melhor do que o safismo, que nos conduz a essa unificação
teometafísica da Vida. Aliás a pederastia é a atração da Força, é a mais alta
manifestação de virilidade”. 702
Esta sua teoria haveria de defendê-la mais vezes, como por exemplo numa carta
que escreveu a João Gaspar Simões, em que lhe disse o seguinte :
“A teoria de que acabo de dar uma breve indicação, é minha e não de outros
homossexuais superiores, mas todos eles sentem a inferioridade ingénita – que Platão já
reconhecia – do sexo feminino”. 703

700
Expressão latina que significa : “por isso mesmo”.
701
Misoginia e antifeminismo em Fernando Pessoa, pp. 127-128
702
Raul Leal, Sodoma divinizada, p. 89.
703
Raul Leal, “Uma carta de Raul Leal a João Gaspar Simões”, in Arnaldo Saraiva, Os órfãos do Orpheu, p.
194.
Seria de esperar que um indivíduo, sendo homossexual, apoiasse também a
homossexualidade feminina, mas as coisas não são assim tão lineares. Hoje, geralmente,
a luta da “comunidade homossexual” é em torno dos direitos de todos os homossexuais,
e de todas as suas variantes, mas nem Fernando Pessoa nem Raul Leal defendiam isso
em termos de direitos. Por outro lado, tanto antigamente como dantes, há homossexuais
masculinos que antipatizam com as lésbicas, pois elas gostam de mulheres, que é
precisamente o que eles não gostam. Existem por isso homens heterossexuais a
simpatizarem com as lésbicas, e mulheres heterossexuais a simpatizarem com os
homossexuais masculinos, por gostarem ambos da mesma coisa. Fernando Pessoa sentia
desconforto perante a presença das mulheres, como ele próprio mostra no seu diário, e
não tinha amigas mulheres. O seu desinteresse em defender as lésbicas, ao contrário do
que seria de esperar ao defender a homossexualidade, tem certamente subjacente a sua
falta de empatia, sob o ponto de vista estético e sentimental, para com as mulheres.
Havia nele um problema para com o sexo feminino, e isso terá também tido reflexos na
sua indiferença para com Judith Teixeira e o amor entre mulheres. Não desconhecia essa
realidade, nem lhe ficou indiferente, pois escreveu os textos atrás citados, em que põe
em cena o lesbianismo, mas à excepção da peça de teatro Diálogo no jardim do palácio,
são textos de ironia e indiferença para com o amor entre mulheres, provavelmente não
porque tivesse algo contra o lesbianismo em si mesmo, mas porque não gostava de
mulheres.

O PROBLEMA DA IDENTIDADE DE GÉNERO E A SUA RELAÇÃO COM


A HOMOSSEXUALIDADE

A homossexualidade na obra de Fernando Pessoa encontra-se expressa de


várias maneiras : a paixão; o amor romântico; o enamoramento; o amor platónico; o
amor físico; o sexo ocasional; a exaltação da beleza masculina; a paixão por indivíduos
mais jovens; a paixão por indivíduos mais velhos; a exaltação de figuras representativas
da masculinidade (o marinheiro, o cavaleiro, o guerreiro, os piratas, o príncipe, etc.); a
grande admiração de Fernando Pessoa por escritores homossexuais famosos
(Shakespeare, Walt Whitman, Verlaine, Rimbaud, Óscar Wilde, etc.); a sua grande
admiração pela Grécia antiga, onde a homossexualidade era aceite; a exaltação de
figuras homoeróticas da mitologia grega (Ganimedes, Apolo, Ádónis, Pã, etc.); a defesa
da literatura homoerótica e dos autores que no seu tempo sofreram perseguição devido
a essa literatura (António Botto, e Raul Leal); o emprego simbólico e estético de
determinada linguagem erótica (masturbação, orgia, etc.); o emprego de determinadas
metáforas para falar de homossexualidade (às avessas, histerismo, narcisismo, etc.); o
emprego de determinadas metáforas literárias que tradicionalmente têm a ver com
homossexualidade (decadentismo, degenerescência, etc.); os papéis sexuais de
homossexual ativo e passivo; os fetiches de sadomasoquismo; a androginia; a
feminização do masculino; o problema da identidade de género; etc. Algumas destas
formas de viver e sentir a homossexualidade estão mais presentes do que outras,
algumas são explícitas, enquanto outras estão disfarçadas com eufemismos e metáforas,
como por exemplo quando Fernando Pessoa emprega a expressão temperamento
feminino. Não cabe aqui, neste curto espaço de tempo, fazer a lista de todos os textos
onde cada uma delas existe, citá-las, e analisá-las, mas o leitor atento poderá ir
encontrando essas diferentes formas de sentir e viver a homossexualidade.
Destacamos aqui uma delas : a da identidade de género (a dualidade
masculino-feminino), nomeadamente a feminização do masculino, devido ao facto da
mesma, por vezes, estar ligada à homossexualidade, e do próprio Fernando Pessoa
também fazer essa ligação. Existe a tendência para ligar frequentemente as pessoas
LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros) ao problema da identidade de género,
ligação essa que é feita tanto a nível do senso comum, como a nível oficial, como se
pode ver por exemplo na designação de um documento da Organização das Nações
Unidas (ONU) : a Declaração sobre os direitos LGBT e a identidade de género. O
problema da identidade de género, da sua dualidade, da sua multiplicidade, e da sua
ambiguidade, ultrapassando portanto as rígidas barreiras entre os géneros, tem muito a
ver com a junção do masculino e do feminino, isto é, com a feminilidade de um
indivíduo do género masculino e a masculinidade de um indivíduo do género feminino.
No tempo de Fernando Pessoa, e ainda hoje, a presença da feminilidade num indivíduo
do género masculino, e a presença da masculinidade num indivíduo do género feminino,
eram conotadas com a homossexualidade, e por seu turno a homossexualidade também
era conotada com a feminilidade num indivíduo do género masculino, e a masculinidade
num indivíduo do género feminino, embora se trate de um estereótipo, que não
corresponda à realidade, pois por um lado a grande parte dos homossexuais masculinos
não são efeminados, e muitos são até mais masculinos que muitos heterossexuais, e por
outro lado há homens efeminados, e mulheres masculinizadas, que não são
homossexuais.
Apesar de tudo, o estereótipo em que se associa a homossexualidade
masculina à feminilidade, é um estereótipo muito antigo. Por exemplo, quando o
historiador Suetónio escreveu que “César era o homem de todas as mulheres, e a mulher
de todas as mulheres”, aplicou a palavra “mulher” para se referir ao comportamento
homossexual desse imperador romano, mas como é sabido, César era um homem
masculino fisicamente, e nada tinha de efeminado. A ideia de associar a feminilidade à
homossexualidade masculina não provém apenas da opinião pública, mas de alguns
homossexuais, que acabam por encarnar esse ideia, como por exemplo Mário de Sá
Carneiro, quando no seu poema Feminina diz o seguinte: “Eu queria ser mulher para ter
muitos amantes /E enganá-los a todos - mesmo ao predileto” (apesar de poder ser
homem na mesma, para ter muitos amantes), a não ser como estratégia para os enganar,
como se diz nestes versos, fazendo-lhes sentir que era uma mulher, no caso deles
gostarem apenas de mulheres.
O estereótipo em que se associa a feminilidade aos homossexuais masculinos
existe também nos autores que no século XIX se começaram a interessar pela
homossexualidade, do ponto de vista do seu estudo académico. Karl Heinrich Ulrichs
descreveu assim a homossexualidade : “uma alma feminina num corpo de um homem,
que expressa paixão apenas por homens viris”. A designação da homossexualidade
como inversão sexual apontava também nesse sentido, pois 1897, Havelock Ellis
empregou pela primeira vez essa designação para referir-se à chamada alma ou
sensibilidade feminina dos homens ditos “invertidos”. O próprio Fernando Pessoa fez
também a ligação entre uma coisa e outra, quando num dos seus textos autobiográficos
afirma : “Sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha
sensibilidade e os movimentos que dela procedem são de mulher. (…) É uma inversão
sexual fruste”.704
As leituras realizadas por Fernando Pessoa revelam também a sua tendência para
a ligação entre homossexualidade masculina e feminilidade. As anotações das leituras
de Fernando Pessoa, feitas por ele nos seus livros, revelam aquilo para o qual pretende
chamar a atenção, e pelo qual mostra particular interesse, ao sublinhar e anotar
determinadas passagens que pretende destacar. Um exemplo em como Fernando Pessoa
põe em relevo à ligação entre homossexualidade masculina e feminização, encontra-se
704
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, Lisboa, p. 186-187. 
nos sublinhados e nas suas anotações a uma obra que Fernando Pessoa tinha na sua
biblioteca, de autoria W.C. Rivers : Walt Whitman’s anomaly (“A anomalia de Walt
Whitman”), nomeadamente o capítulo Whitman’s feminility (“A feminilidade de
Whitman”), capítulo esse cujas frases mais significativas Fernando Pessoa sublinhou
com a sua caneta, e ao lado das quais escreveu por vezes as letras : N , ou N.B. (“Note-
se”, ou “Note Bem”).705
Há também textos escritos pelo próprio Fernando Pessoa onde existe a
homossexualidade masculina associada ao problema da identidade de género,
nomeadamente a indefinição desta, ou a sua dualidade, assim como a feminilidade
associada à homossexualidade masculina, e esta associada àquela, ou textos nos quais se
pode fazer essa associação. Vejamos alguns breves exemplos dessa atitude em Fernando
Pessoa, apresentando na sequência dos exemplos que se seguem, primeiro o nome do
texto respetivo, e depois uma pequena citação escolhida, pois cada texto tem, por vezes,
mais frases em que Fernando Pessoa faz a associação entre a homossexualidade
masculina e a feminilidade.
Na poesia temos, no poema Antínoo : “Ó corpo viril de feminino ar”. No poema
O outro amor: “Todo o fêmea em teu corpo de mancebo”. No poema Como um poeta
do amor antigo: “Se eu vivesse contigo, dia a dia,/ Eu seria mulher, trabalharia/ Seria só
formosa, satisfeito”. No poema Ó dia pesado que nasce assim a brilhar : “Minhas mãos
estendo em sua direção,/ Mas ele não vem./ Parece uma mulher e o gesto da mão/ De
mais fez nascer/ Sonhos de estranho vício na terra do coração”. No poema Meu
coração é uma princesa morta: “Entrou a paz longínqua do eleito/ Dentro de mim”. No
poema Amem outros a graça feminina : “Ó Vénus masculina!”, etc.
Nos textos em prosa aparece também o masculino e o feminino no mesmo
indivíduo, e em alguns deles a natureza feminina de um homem aparece ligada à
homossexualidade, como por exemplo no texto sobre a novela António de António
Botto (texto II), em que Fernando Pessoa afirma o seguinte : “No amor de António por
Duarte a emoção transparece, com os seus pudores, os seus receios, os seus movimentos
errados, a sua natureza feminina”. Na novela policial Quaresma Decifrador, no texto
intitulado A alma do assassino, Fernando Pessoa afirma também : “(…) Isto vê-se nos
elementos surpreendentemente femininos que há em Frederico o Grande” (que era
homossexual).

705
W. C. Rivers, Walt Whitman’s anomaly, pp. 20, 21, 22, 64, 65.
A ligação do feminino com o masculino no mesmo indivíduo, nomeadamente a
feminização de um personagem do sexo masculino, existe em vários outros textos de
Fernando Pessoa: Às vezes, em sonhos distraídos, que me surgem das esquinas: “Às
vezes sou costureira masculina, e tenho príncipes, que são princesas”; Elogio do
charlatão : “Um (a) vício oculto”; Sou um temperamento feminino com uma
inteligência masculina: “É uma inversão sexual fruste”; nos Textos mediúnicos, cujo
tema é o amor e a sexualidade, em que o espírito diz a Fernando Pessoa para não ter
sexo com homens, temos por exemplo o texto Sim, mulheres e rapazes: “rapazes de
forma feminina”; no heterónimo Álvaro de Campos, na Ode Triunfal : “A graça
feminina e falsa dos pederastas que passam, lentos”; na Ode Marítima : “Ser no meu
corpo passivo a mulher – todas-as-mulheres (…) Ser no meu ser subjugado a fêmea que
tem de ser deles”; na Passagem das Horas : “Os braços de todos os atletas apertaram-
me subitamente feminino/ E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos”;
no texto Uma aventura amorosa: “Aproximou-se de mim uma rapariga, por assim dizer
– aluno, segundo depois soube, do liceu local”. Nas Odes de Ricardo Reis, que segundo
Álvaro de Campos são dirigidas a rapazes, os nomes deles são nomes femininos (Lídia e
Chloe). Sobre Ricardo Reis, Álvaro de Campos também afirma : “Dizem alguns
fisiologistas que é possível a mudança de sexo. Não sei se é verdade, porque não sei se
alguma coisa é “verdade”. Mas o certo é que Ricardo Reis deixou de ser mulher para ser
homem, ou deixou de ser homem para ser mulher - como se preferir - quando teve
contacto com Caeiro”.706
No Livro do Desassossego, no fragmento 84 da edição que citamos nesta
investigação, Bernardo Soares diz: “Aquela rapaz”; no fragmento 123 : “A mulher que
sou quando me conheço”; no fragmento 343 : “Não ter sido madame de harém !”; no
fragmento 370 : “A minha melhor amiga – uma (deliciosa) rapaz que eu inventei”; no
fragmento 394 : “Outrora eu fui tua princesa”; na Declaração de Diferença : “Aqueles
de nós que não são pederastas desejariam ter a coragem de o ser. Toda a inapetência
para a ação inevitavelmente feminiza”. No texto de um heterónimo ou personagem não
identificado, que critica a revista Orpheu chamando-lhes “invertidos”, diz-se que o
Orpheu era uma revista de mulheres. 707 Existe também uma frase escrita por Fernando
Pessoa em francês e em inglês, que diz assim : Une allemand (sic) / jock on inversion

706
Podem-se confirmar estes textos, com as referências bibliográficas completas, na antologia
Homossexualidade e homoerotismo em Fernando Pessoa.
707
Sensacionismo e outros ismos, pp. 61-62.
(“Uma alemão _ (sic) / brincadeira sobre a inversão”). Esta frase encontra-se por baixo
do seu poema de amor escrito em língua francesa : Boire ton âme dans la coupe de ton
corps (“Beber a tua alma na taça do teu corpo”). 708 Nos seus textos esotéricos, o próprio
Quinto Império é, para Fernando Pessoa, a união do masculino e do feminino :
“Criemos um Imperialismo andrógino, reunidor das qualidades masculinas e femininas:
imperialismo que seja cheio de todas as subtilezas do domínio feminino e de todas as
forças e estruturações do domínio masculino. Realizemos Apolo espiritualmente”.709
(Apolo foi um deus pagão praticante da homossexualidade, conforme mostramos no
capítulo deste livro : Mitologia e homossexualidade).
Alguns dos seus textos, embora não sejam textos em que fala explicitamente
sobre homossexualidade, ou nos quais exprime explicitamente sentimentos
homoeróticos, são textos em que Fernando Pessoa expressa a feminilidade do
masculino, e podem-se considerar como uma forma implícita, uma metáfora ou um
eufemismo, em referência à homossexualidade, conforme Fernando Pessoa faz nos
textos em que essa referência é explícita. Há poemas em que Álvaro de Campos faz
isso referindo-se a si próprio no feminino, como por exemplo quando diz : “Eu a
mulher legítima e triste do conjunto,/ Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede
sem ser de água”, 710
ou : “Meu coração a mulher do forçado, /A estalajadeira dos
mortos da noite”, 711
e que também poderão ser interpretados do ponto de vista
homossexual, dado que são poemas do heterónimo Álvaro de Campos (que tinha
tendências homossexuais), e dado o facto de, como dissemos, Fernando Pessoa em
alguns dos seus poemas associar a feminilidade do homem à homossexualidade
masculina, e vice-versa.
Fernando Pessoa desconstrói o binarismo do género, e apresenta a componente
feminina do homem, e a componente masculina da mulher, tanto a componente física
como a psicológica, e que existe afinal em todos os seres humano, embora esteja mais
desenvolvida nuns do que noutros. Fernando Pessoa procura ultrapassar a rígida
dicotomia masculino-feminino, e essa atitude pode ver-se também na sua poesia
enquanto ortónimo, onde há poemas em que Fernando Pessoa não se vê nem como
homem nem como mulher, e em que se situa para além da dicotomia masculino-
feminino. São poemas em que Fernando Pessoa expressa a ambiguidade e a indefinição
708
Poèmes Français, (“Poemas franceses”), p. 358.
709
Sobre Portugal – Introdução ao Problema Nacional, p. 77.
710
Álvaro de Campos, Livro de versos, “Costa do sol”, org. Teresa Rita Lopes, p. 113
711
Idem, p.189.
dessa dicotomia, como por exemplo no poema : Quando se está cansado, em que fala
de “Uma coisa indecisa que não é/ Masculina ou feminina”, ou no poema Deus te livre
de estar onde estás, em que Fernando Pessoa afirma : “Deus te livre de que te tomem/
Por mulher e também por homem”. Há também alguns textos em prosa, em que
Fernando Pessoa fala de uma outra identidade de género, que supera o binarismo
tradicional masculino-feminino, e a separação entre um e outro, como por exemplo
quando no texto Às vezes em sonhos distraídos que me surgem das esquinas afirma :
“sou costureira masculina”, ou ainda por exemplo no heterónimo Maria José, a Carta
da corcunda para o serralheiro, quando Maria José afirma :“Eu não sou mulher nem
homem”, ou por exemplo quando no Livro do Desassossego Bernardo Soares diz sobre
alguém : “aquela rapaz”, ou neste mesmo livro a totalidade dos textos : O mesmo sexo
que não existe, e : Sonhar que sou o homem e a mulher, etc.
Fernando Pessoa ao exprimir a ambiguidade da identidade género, em alguns
desses textos nem sempre fala em homossexualidade, assim como ao exprimir
sentimentos homossexuais ou ao referir-se à homossexualidade, nem sempre fala da
ambiguidade da identidade de género, uma coisa não implica necessariamente a outra,
pois o masculino e o feminino são categorias não apenas sexuais mas também sociais.
Assim como não existe um único significado para a palavra homossexual, também não
existe um único significado para as palavras homem e mulher. No entanto, a
homossexualidade é uma das formas de sentir e viver a dualidade da identidade de
género, ou a sua pluralidade e a sua ambiguidade, assim como a dualidade da identidade
de género, ou a sua pluralidade e a sua ambiguidade, são também formas de sentir e
viver a homossexualidade. Alguns homossexuais sentem e vivem a feminilidade, e
através da sua homossexualidade ficam envolvidos também num problema com a sua
identidade de género. Por outro lado, há determinados homens que gostam de mulheres
mas que também têm um problema com a sua identidade de género, pois têm um
problema em relação ao seu corpo, com o qual não se identificam. Apesar de
fisicamente serem homens, ao sentirem-se mulheres, ou desejando ser mulheres,
assumindo comportamentos de mulheres, ou transformando-se em mulheres (como hoje
é possível através de intervenções cirúrgicas), e continuando no entanto a gostar de
mulheres, esses heterossexuais masculinos transformam-se em lésbicas. Também há
algumas mulheres que, apesar de gostarem de homens, têm um problema com a sua
identidade de género, e portanto têm também um problema em relação ao seu corpo,
com o qual não se identificam. Sentindo-se homens, ou desejando ser fisicamente
homens, assumindo comportamentos de homens, e transformando-se em homens
(também através de uma intervenção cirúrgica), e continuando no entanto a gostar de
homens, essas mulheres transformam-se em homossexuais masculinos. Tanto no
primeiro como no segundo caso, através de um problema derivado da sua identidade de
género, tornam-se homossexuais. Mesmo que um homem goste de mulheres mas se
sinta mulher, e se diga mulher, ele torna-se numa lésbica, assim como uma mulher que
goste de homens, mas se sinta homem, e se diga homem, e gostando na mesma de
homens, ambos tornam-se indiretamente num homossexual.
Por isso, assim como há textos de conteúdo homossexual em que Fernando
Pessoa não fala propriamente do problema da identidade de género, também há textos
em que Fernando Pessoa apresenta o problema da identidade de género, mesmo que
não fale propriamente de homossexualidade. Dado que em alguns textos, frases e
fragmentos, Fernando Pessoa é omisso no que diz respeito à ligação de uma coisa com a
outra, o leitor tem a liberdade de interpretar, e de portanto fazer ou não essa ligação. No
entanto, embora em Fernando Pessoa por vezes não esteja explicita a ligação da
dualidade e da ambiguidade da identidade de género com a homossexualidade,
tendemos a fazer essa ligação, devido ao facto do próprio Fernando Pessoa fazer essa
ligação em vários dos seus textos que expressam sentimentos homoeróticos ou que
falam sobre homossexualidade, apresentando a dualidade ou a ambiguidade da
identidade de género como uma das especificidades da homossexualidade. Em todo o
caso, como já referimos, mesmo que seja um homem a dizer-se mulher, e esse homem
gostar de mulheres, passa indiretamente a estar ligado ao lesbianismo, pois diz-se
mulher, sente-se mulher, e gosta de mulheres. Portanto, o problema da identidade de
género, tanto para os homens que gostam de homens e se sentem mulheres, como para
os homens que gostam de mulheres e se sentem mulheres, está ligado, direta ou
indiretamente, à homossexualidade, por isso incluímos neste livro também textos em
que Fernando Pessoa se refere a si próprio no género feminino, e textos em que uma
personagem apesar de ser homem se diz e se sente mulher.
Assim como não existe apenas uma sexualidade mas vários tipos de sexualidade,
também não existe apenas uma homossexualidade mas vários tipos de
homossexualidade, por isso o melhor seria falar em homossexualidades, e não em
homossexualidade. Desde logo, existem dois grandes tipos bem distintos de
homossexualidade : a masculina e a feminina. No entanto, referimo-nos neste livro à
homossexualidade masculina, dado ser essa a que está presente na generalidade dos
textos de Fernando Pessoa sobre essa matéria ou com ela relacionada. Ora, dentro da
homossexualidade masculina existem muitas variedades, há diversos tipos de vivência,
incluindo a feminilidade como uma das suas componentes, e dentro da feminilidade há
ainda que distinguir diversas formas : feminilidade física, psicológica, e estética. Por
outro lado, há homossexuais que se situam, do ponto de vista da sua identidade de
género, e da sua sexualidade, para além do masculino e do feminino, e que portanto não
se identificam nem com um nem com outro, não se identificam com o masculino, nem
com o feminino, mas que também não se identificam nem com o masculino feminizado,
e nem com o feminino masculinizado.
Estes conceitos são muito vagos e relativos, pois a feminilidade do homem, e a
masculinidade da mulher, não têm a ver apenas com o corpo, não têm a ver apenas com
o físico da pessoa, nem com os papéis sexuais desempenhados intimamente. A
feminilidade e a masculinidade tem também muito a ver ou com os papéis sociais, e
com as caraterísticas psicológicas, ou ainda com os estados de espírito, conforme se
pode ver por exemplo, neste último caso, em certas correntes místicas e esotéricas, que
fundem a sexualidade com a espiritualidade, assim como fazem a fusão do masculino
com o feminino, como sucede por exemplo na doutrina rosacruz, sobre a qual o próprio
Fernando Pessoa escreveu.
Vem aqui a propósito referir O Banquete, de Platão, um das obras em que este
filósofo fala sobre a homossexualidade, e em que fala da lenda dos andróginos, seres
completos que continham em si o masculino e o feminino. Terrivelmente fortes,
ousaram desafiar a própria Divindade, escalando os céus. Zeus, para puni-los, dividiu-os
em dois, separando assim o masculino do feminino, gerando incompletude e carência.
Geralmente as narrativas mitológicas consideram a homossexualidade, a bissexualidade,
e o transgénero, como um símbolo de experiências sagradas, e como uma forma de
restabelecer a unidade perdida. Também em Raul Leal, na sua obra Sodoma Divinizada,
que Fernando Pessoa admirava e que defendeu, o homoerotismo é a forma de
restabelecer a união entre o masculino e o feminino, contra a divisão entre os dois
sexos, Existem também alguns textos de Fernando Pessoa que falam de androginia,
tanto textos em verso como em prosa. Alguns desses textos, mesmo quando falam sobre
outros temas, como por exemplo o esoterismo ou o misticismo, utilizam figuras
homoeróticas, fazendo uma ligação entre homoerotismo e espiritualidade, e
espiritualidade e homoerotismo.
Por conseguinte, a feminização do indivíduo do sexo masculino, ou a
masculinização do indivíduo do sexo feminino, encontra no homoerotismo um dos
veículos privilegiados dessa interligação, e tem também um significado místico e
esotérico. A feminização do homem, e a masculinização da mulher, é uma busca de
completude, de união do todo na mesma pessoa, e é também um estado de espírito, tem
a ver com um sentir interior, com uma atitude não apenas física mas também
psicológica, mesmo que o corpo do indivíduo, e os papéis desempenhados sexualmente,
ou socialmente, não o expressem.
Do ponto de vista da sexualidade, há homossexuais que são efeminados, e há
outros que o não são (e uns são-no fisicamente, enquanto outros são-no apenas
psicologicamente). Há muitas especificidades que revelam que a homossexualidade,
assim como a feminilidade e a masculinidade, são conceitos com diversos significados :
há homens homossexuais fisicamente homens mas psicologicamente mulheres,
fisicamente mulheres e psicologicamente homens, e fisicamente homens e
psicologicamente homens. Há ainda a salientar os papéis sexuais, que podem também
não corresponder ao que seria de esperar do seu físico e da sua psicologia : há homens
homossexuais masculinos física e/ou psicologicamente, mas que têm um papel sexual
dito feminino, assim como há homens homossexuais ditos femininos física e/ou
psicologicamente, mas que têm um papel sexual dito masculino. Há ainda outras
especificidades, do ponto de vista da homossexualidade e da identidade de género,
tendo em conta a pessoa de quem se gosta fisicamente e psicologicamente : há
homossexuais não efeminados que gostam de homens não efeminados; há homossexuais
não efeminados que gostam de homens efeminados; há homossexuais efeminados que
gostam de homens não efeminados; há homossexuais efeminados que gostam de
homens efeminados. Há também homens que gostam de mulheres, mas que são
psicologicamente mulheres, e mulheres que gostam de homens, mas que são
psicologicamente homens. E há também homens que gostam de mulheres mas que são
em parte fisicamente mulheres, e mulheres que gostam de homens, mas que são em
parte fisicamente homens. Finalmente, há ainda a considerar os chamados papéis
sociais, sobretudo os papéis profissionais, que podem ou não corresponder à identidade
de género e à sexualidade a eles geralmente associadas. No entanto, em todos estes
casos surge o problema da identidade de género e da sua pluralidade, a indefinição
sobre o que significa ser masculino ou feminino, assim como a indefinição sobre o que
significa ser heterossexual ou homossexual.
Conforme mostra hoje a teoria queer, a orientação sexual e a identidade de
género elaboram-se de forma muito complexa, pela interseção de múltiplos grupos,
critérios e possibilidades. Não existem papéis sexuais essencialmente ou biologicamente
inscritos na natureza humana, mas antes formas socialmente variáveis de desempenhar
um ou vários papéis sexuais, assim como identidades de género. Encontramos nos
textos de Fernando Pessoa várias dessas possibilidades, que destroem os estereótipos
tradicionais sobre o que significa ser masculino e feminino, e sobre o que significa
gostar do masculino e do feminino. Fernando Pessoa desconstrói também a rígida
dicotomia masculino-feminino, em que ao homem estaria associado um determinado
papel fixo na identidade de género, assim como no amor e na sexualidade, e à mulher
outro papel, também fixo. Pode ver-se isso em alguns dos seus poemas, já citados, e
também em alguns dos textos do Livro do Desassossego.712
A fusão e a interconexão entre o masculino e o feminino, a masculinização do
feminino, e a feminização do masculino, um terceiro sexo, um terceiro género, ou como
lhe queiram chamar, por um lado pode não ser apenas algo físico (pode não ter a ver
com o corpo da pessoa), e por outro lado pode não ser apenas algo psicológico (pode
não ter a ver com o temperamento da pessoa), pois pode ser antes um jogo, uma
representação, uma fantasia sexual, um fetiche. De qualquer das formas, a indefinição
da identidade de género, isto é, a sua dualidade ou a sua multiplicidade, pode contribuir
também para ampliar o imaginário homoerótico, pode funcionar como uma das suas
componentes, e portanto a feminilidade do homem, enquanto fantasia, pode fazer parte
das vivências da homossexualidade, e ser uma das suas várias modalidades, do ponto
de vista físico, psicológico, ou estético.

PRÁTICAS SEXUAIS EM FERNANDO PESSOA

A MASTURBAÇÃO

Há textos de Fernando Pessoa onde se estabelece uma relação entre


masturbação e homossexualidade, e também há textos de Fernando Pessoa sobre si
712
Ver no livro de Victor Correia, Homossexualidade no Livro do Desassossego de Fernando Pessoa,
Lisboa, Ed. Colibri, 2020
mesmo através dos quais ficamos a saber que ele se masturbava (ou que se masturbou
numa determinada fase da sua vida). Vejamos seguidamente ambos os casos.
O heterónimo Ricardo Reis, no seu texto A moderna literatura é uma literatura
de masturbadores, afirma que a masturbação está relacionada com a
homossexualidade, que conduz à homossexualidade, ou que é um dos lados da
homossexualidade (Ricardo Reis poderá estar a referir-se à necessidade de masturbação,
devido à dificuldade de se encontrar algum homem para praticar com ele a
homossexualidade). A forma como este texto está escrito, esquematizado por tópicos, dá
a ideia de que se trata de um esboço que Fernando Pessoa pretendia desenvolver, mas
que como sucedeu com outras projetos de escrita, não chegou a concretizar. O texto é o
seguinte:

“A moderna literatura é uma literatura de masturbadores.


A da Renascença era de amorosos decadentes. 713 A do romantismo para cá é de
masturbadores.
Vejamos:
Há 3 fenómenos sexuais distintos:
1) - A sexualidade normal.
2) - A homossexualidade.
3) - A monossexualidade ou masturbação.

(3) contém 3 elementos :


     (A) - O Sonho, porque é visionado o outro elemento da cópula.
(B) -O desdobramento do Eu, porque o indivíduo figurará como dois no
mesmo.
     (C)- O requinte, porque o ato sexual tem de ser investido de várias coisas
para não (...) 714
Como a masturbação leva à pederastia.

713
Na Renascença em Itália havia muita homossexualidade. Uma das cidades principais era a de
Florença, e daí vem a expressão “pecado florentino”, ou seja, a homossexualidade. Sobre isso ver
Didier Godard, L’autre Faust – L’homosexualité masculine pendant la Renaissance, (“O outro Fausto – a
homossexualidade masculina durante a Renascença”), Paris, Ed. H&O, 2001 ; Michael ROCKE, Forbidden
Friendships : Homosexuality and Male Culture in Renaissance Florence , (“Amizades Proibidas :
Homossexualidade e Cultura Masculina na Florença Renascentista”), Oxford, Ed. Oxford University Press,
1998. Ver também o texto de Fernando Pessoa : Correntes literárias e decadentismo, e a respetiva
anotação, sobre o emprego dos conceitos de decadentismo e decadente ligado ao homoerotismo.
714
Espaço deixado em branco pelo autor.
Diferença entre a pederastia propriamente dita e aquela que a masturbação
produz.
Diferença entre o homossexual antigo e moderno”.715

O texto Elogio dos castos, dos pederastas e dos masturbadores, como o próprio
nome indica, elogia a masturbação, e coloca-a ao lado dos homossexuais e dos “castos”,
(porventura os que se abstêm sexualmente com mulheres). Trata-se de um pequeno
texto já citado algumas vezes neste livro, a propósito de outros temas. O seu conteúdo
associa a “anormalidade sexual” aos artistas, e nessa “anormalidade” está a da
masturbação, que Fernando Pessoa considera basilar (básica) :
“A vida sexual é a base de toda a vida, por isso, para uma vida anormal, como é
a vida artística ou literária ou científica, é preciso uma anormalidade basilar, sexual
portanto. Consoante a anormalidade literária ou artística, assim deve ser a basilar
anormalidade sexual. 716
O texto de um heterónimo não identificado, associa à masturbação ao facto de
Fernando Pessoa não se relacionar sexualmente com mulheres, sugerindo que Fernando
Pessoa se masturbava por não ter sexo com mulheres (com homens ainda seria mais
difícil no seu tempo). Este texto apresenta um personagem criado por Fernando Pessoa
(ou por um heterónimo não identificado), criticando Fernando Pessoa, como sucede
numa de outras personagens ou heterónimos não identificados, como por exemplo
quando Fernando Pessoa escreve um texto, em que través de uma personagem ou
heterónimo não identificado critica duramente a revista Orpheu. Um nova personagem
ou heterónimo não identificado dá um conselho a Fernando Pessoa e outros indivíduos
na situação dele, e tece depois algumas considerações críticas sobre a personalidade de
Fernando Pessoa :
“(…) que passem a usar de mulher com regularidade e sem timidez. A mulher
nada é de realmente terrível. E, mesmo como cousa estética, espasmo por espasmo, é
preferível talvez o que se divide com uma companheira bela e sadia do que o que se
provoca a si-próprio.717 Se alguns dos meus visados nunca experimentaram o contraste,

715
Prosa de Ricardo Reis, p. 225.
716
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 133 G-88.
717
Referência à masturbação, e que em alguns parágrafos mais abaixo Fernando Pessoa designa através
da palavra onanismo (que significa masturbação).
creiam que devem orientar a sua vida para o experimentar o mais depressa possível.
Creiam que uma vez feito isso, passarão a achar graça a seios dourados.718
(…)
Tudo isto acontece ao pobre rapaz (Fernando Pessoa) porque ele não está
habituado a raciocinar senão, naturalmente, para as tábuas do teto do seu quarto. Não
tem a noção de como outras pessoas possam encarar o que ele expõe. Apesar de ser da
geração dos que andam sempre a afastar-se de si próprios, dos que têm gozos na alma
para fins de um desdobramento constante, não lhe ocorre desdobrar-se para o normal.
(…)
Já se não pode tão categoricamente escrever “onanismo” por baixo dos trechos
de má prosa que constituem, por enquanto, a “obra” do snr. Fernando Pessoa. A psique
deste individuo é muito difícil de definir, não é, se a expressão se permite, solúvel em
análise.
(…)
No snr. Fernando Pessoa o que há é, não tanto onanismo psíquico, mas uma
espécie de onanismo físico. A sua histeria719 é patente no desdobramento da
individualidade de que falámos há pouco.”720

Por outro lado, num dos Textos mediúnicos, o texto “Dá-me as tuas ordens”, o
espírito de Mansel chama “onanista” e “masturbador” a Fernando Pessoa, e associa
essa prática sexual em Fernando Pessoa à homossexualidade :
“Onanista ! Vem casar comigo ! Não mais onanismo.
Ama-me.
Masturbador ! Masoquista ! Homem sem virilidade ! (…) Homem sem pénis de
homem ! Homem com clitóris em vez de pénis ! Homem com moralidade de mulher em
relação ao casamento”.721
Noutro dos Textos mediúnicos, o texto “As luxúrias nunca semeiam aspirações
sãs”, Henry More, depois de aconselhar Fernando Pessoa a procurar mulheres para se
satisfazer sexualmente, também fala de masturbação, e no caso de Fernando Pessoa

718
No poema Conselhos, Fernando Pessoa afirma : “Sê generoso e puro./Não é cantando seios de
donzelas/Que se é o futuro.” (2 - 08 – 1910, Poesia 1902-1917 , Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2005).
719
Ver a explicação da designação de histeria como metáfora de homossexualidade, no capítulo do
presente livro : Metáforas homoeróticas.
720
Revista Pessoa Plural – Revista de Estudos Pessoanos, nº. 6, pp. 1-18
721
Escritos autobiográficos, automáticos, e de reflexão pessoal, pp. 255-257
associa-a à homossexualidade : “Nunca experimentes sexo em homem. Homem é
apenas um homem – a masturbação não é nada”. 722
Também noutro dos Textos mediúnicos, o espírito de Henry More, ao falar a
Fernando Pessoa de uma mulher, diz claramente que Fernando Pessoa se masturbava :
“Ela é uma mulher que precisa de um homem, uma vez que é uma masturbadora. Ela
masturba-se como tu.723
Há um texto em prosa de Sá Carneiro, a narrativa Ressurreição, em que o
protagonista autobiográfico (Sá Carneiro) faz a defesa da masturbação, e gaba-se de que
ele e o seu amigo Fernando Passos (um nome em forma de código para Fernando
Pessoa) praticam “a arte de masturbação”. Ainda a propósito de Mário de Sá Carneiro,
em Setembro de 1912, pouco antes de Sá Carneiro ir para Paris, Fernando Pessoa fez
um projeto para um conto em Inglês, escrevendo o seguinte :
“Dois masturbadores – um masculino, outro feminino – que vivem juntos e se
masturbam um ao outro sem ousar tentar o coito, ele por falta de experiência, ela por
causa de recear ser rompida”. Depois riscou “um ao outro” , substituindo por : “a si
próprios”, mas entre parêntesis coloca a seguinte interrogação : “É isto uma coisa
bastante provável ?”724
Ao perguntar se isso seria uma coisa provável, Fernando Pessoa pergunta : será
que uma coisa pode substituir a outra ? será que masturbar-se a si próprio é a mesma
coisa que masturbar outra pessoa ? Esta mesma pergunta poderia também ser feita pelo
facto de Fernando Pessoa recorrer à masturbação, que praticava como um substituto,
como uma forma de compensação da sua carência de sexo com outros indivíduos,
conforme diz António Botto num poema que escreveu sobre Fernando Pessoa, sobre
quem fala de onanismo (masturbação) :

“Atormentava-se por fantasia,


Não vivia o que temos que viver,
Só tentava saber e não sabia,
E nem beijava para se esquecer

(…)

722
Idem, p. 309.
723
Idem, p. 301.
724
Espólio de Fernando Pessoa, 57/19a
Onanismos não dão bom resultado
Sermos o sexo. De qualquer maneira
Procuramos cumprir o nosso fado.” 725

OS PAPÉIS SEXUAIS DE ACTIVO E PASSIVO

Na homossexualidade, tal como na heterossexualidade, as relações sexuais e


afetivas não se reduzem à penetração, pois há outras formas de praticar sexo, e de
expressar sentimentos e afetos, mas falemos da penetração, por ser para a maioria dos
indivíduos o ponto central e a prática a atingir nas relações sexuais propriamente ditas.
Ao falarmos aqui em penetração, falamos na penetração anal, mas há que sublinhar que
esta não existe apenas entre os homossexuais, pois entre os heterossexuais também há
mulheres que gostam de ser penetradas analmente, e homens que gostam de as penetrar
dessa maneira. No entanto, tratando-se da penetração na homossexualidade, existem os
chamados activos (os que penetram), os chamados passivos (os que são penetrados), e
os chamados versáteis (os que penetram e são penetrados). Há diferentes tipos de
versáteis, do ponto de vista das relações anais : os que não são versáteis com a mesma
pessoa, isto é, quando são passivos com uma pessoa, são apenas com essa pessoa, e
quando são activos com outra pessoa são apenas ativos; os que são activos e passivos
com a mesma pessoa; há também os que são versáteis apenas oralmente e não
analmente, e os que são versáteis apenas analmente e não oralmente; há ainda o
chamado gouinage, isto é, o sexo sem penetração anal em ambos os parceiros, restando
a versatilidade para o sexo oral.
O que existe na obra de Fernando Pessoa ? o que se consegue detectar ? Os seus
textos não falam das práticas sexuais que descrevemos no parágrafo anterior. No
entanto, uma das coisas que existem na obra literária de Fernando Pessoa, e em certos
textos sobre ele próprio enquanto indivíduo, são os papéis sexuais de ativo e passivo,
nuns de forma implícita e noutros de forma mais ou menos explícita.
Uma relação que se estabelece geralmente com o papel sexual de passivo é o da
feminilidade. De uma maneira geral, os homossexuais efeminados (do ponto de vista da
expressão, do comportamento ou dos seus sentimentos), são homossexuais passivos, por
isso, quando Fernando Pessoa ortónimo e os seus heterónimos, ao falarem sobre si
725
Espólio de António Botto, citado por Anna Klobucka, O mundo gay de António Botto, p. 210.
mesmos, exprimem a sua feminilidade, isso leva-nos a considerar que são passivos do
ponto de vista erótico. Há vários poemas homoeróticos de Fernando Pessoa em que o
narrador exalta a feminilidade do amante, ou nos quais expressa a sua própria
feminilidade : no poema Antínoo : “Ó corpo viril de feminino ar”. No poema O outro
amor: “Todo o fêmea em teu corpo de mancebo”. No poema Livro do outro amor: “Se
eu vivesse contigo, dia a dia,/ Eu seria mulher, trabalharia/ Seria só formosa, satisfeito”.
No poema Ó dia pesado que nasce assim a brilhar : “Minhas mãos estendo em sua
direção,/ Mas ele não vem./ Parece uma mulher e o gesto da mão/ De mais fez nascer/
Sonhos de estranho vício na terra do coração”. No poema Meu coração é uma princesa
morta: “Entrou a paz longínqua do eleito/ Dentro de mim”. No poema Amem outros a
graça feminina : “Ó Vénus masculina!”, etc. Há mais exemplos, que se poderão ver no
capítulo deste livro : O problema da identidade de género na obra de Fernando Pessoa
e a sua relação com a homossexualidade.
Em alguns poemas homoeróticos de Fernando Pessoa o narrador deseja que o
amante seja como uma mulher, ou que ele próprio seja feminino, e portanto há
versatilidade sexual nesses poemas, assumindo ambos o mesmo papel sexual, assim
como há versatilidade noutros poemas devido ao facto de o narrador procurar um
amante passivo, e noutros em que ele próprio se efeminiza e implicitamente é passivo.
Em Álvaro de Campos, que é o heterónimo com o qual Fernando Pessoa mais se
identifica, nos poemas Ode Marítima, Ode Triunfal, e Saudação a Walt Whitman,
Álvaro de Campos é claramente submisso e masoquista, conforme veremos no capítulo
seguinte. Geralmente os submissos e masoquistas são passivos, por isso provavelmente
Álvaro de Campos era passivo. No entanto, nem sempre os submissos e masoquistas são
passivos na prática do sexo, pois por um lado há mulheres que apesar de serem passivas
na penetração sexual, são dominadoras e sádicas, tendo homens ativos do ponto de vista
sexual mas que são submissos e masoquistas em relação a essas mulheres nas fantasias
eróticas. Por outro lado, também há casos, embora mais raros, de homossexuais
passivos nas relações sexuais, mas que são dominadores e por vezes sádicos, e
homossexuais ativos nas relações sexuais, mas que são submissos e masoquistas.
Há também os switcher (versáteis na dominação-submissão), isto é, que são
dominadores e submissos, dependendo da pessoa com quem estão, ou que
desempenham os dois papéis com a mesma pessoa. Os switcher existem entre os
homossexuais e os heterossexuais. No entanto, tratando-se dos homossexuais, quase
sempre os submissos e os masoquistas são passivos sexualmente, e quase sempre os
dominadores e os sádicos são activos sexualmente. Em Álvaro de Campos, em versos
da Ode Marítima, da Ode Triunfal, e da Saudação a Walt Whitman o seu papel de
passivo existe de duas maneiras : por um lado do ponto de vista da sua feminilidade, e
por outro lado do ponto de vista da sua submissão (que aliás é claramente expressa
nesses versos). Álvaro de Campos, na Ode Marítima, além de ser submisso mostra que
é passivo. Eis o seguinte exemplo :

“Atai-me às viagens como a postes


E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo !
(…)
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas as mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas p’los piratas !
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles !”726

Na Ode Triunfal Álvaro de Campos exprime também as suas tendências eróticas


de passivo, por exemplo no seguinte verso :

“Eu podia morrer triturado por um motor


Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.727

Eduardo Lourenço chama a tenção para a homossexualidade passiva detectada


em alguns passos das Odes de Álvaro de Campos. Segundo este investigador pessoano,
as Odes de Álvaro de Campos revelam um impulso “de ordem erótica e suficientemente
avassalador para dominar o inteiro sintagma imagístico dos poemas em que leva a cabo
a sua libertação irreal (…) na mole imensa do cantor da vida livre, da democracia, do
trabalho, Pessoa fixa-se (é o exacto termo psicanalítico) num único ponto
prodigiosamente fantasmizado, e à sua volta faz girar , em sentido figurado e próprio, as
máquinas poéticas capitais que são a Ode Triunfal , a Ode Marítima e a Saudação. Este
ponto, escusado será dizê-lo, é o da passividade erótica”.728
Há também um poema de Álvaro de Campos em que este desconsidera o ânus
dizendo que o ânus é uma coisa porca (“a alma humana é porca como o cu”), e portanto
726
Obra Completa de Álvaro de Campos, p. 89
727
Idem, p. 53
728
Eduardo Lourenço, Pessoa revisitado, p. 96.
os ânus não lhe interessavam. Nesse mesmo poema estabelece um paralelo, pois
enquanto atribui valor negativo ao ânus, atribui valor positivo ao pénis, pois logo de
seguida diz que há uma vantagem no pénis, e por outro lado sublinha o valor do pénis
do ponto de vista do imaginário (estaria também a referir-se a si, certamente), ao dizer
que “a vantagem dos caralhos pesa em muitas imaginações”. 729
O facto de
desconsiderar o ânus, e logo de seguida dar valor ao pénis, mostra também que Álvaro
de Campos era passivo (que aliás já sabemos através de outros poemas, atrás citados).
Álvaro de Campos é considerado o heterónimo que mais entusiasma Fernando
Pessoa, o heterónimo onde dá mais largas aos seus desejos, o heterónimo com o qual
mais se identifica. Álvaro de Campos é o escape para Fernando Pessoa, é aquilo que ele
desejaria ser na prática, realizando através da poesia os seus desejos reprimidos, e
portanto devemos também incluir em Fernando Pessoa a tendência passiva do ponto de
vista sexual como fazendo parte da sua preferência, como aliás se pode concluir de
outros textos.
Há um conto de Fernando Pessoa ortónimo, o conto A perversão do longe , em
que Fernando Pessoa, através de um personagem falando na primeira pessoa, estabelece
um diálogo com outro homem, homem esse que lhe diz que viveu numa ilha onde
possuía (penetrava sexualmente) mancebos, e mais à frente Fernando Pessoa pede a esse
homem para o levar com ele , pois também quer ser um desses mancebos. Fernando
Pessoa começa o conto assim : “Fitei-o atónito”. Fernando Pessoa, através desse
personagem falando na primeira pessoa, fala desse homem que gosta de possuir
mancebos, e portanto de ser activo, e ao desejar ser como um desses mancebos, deseja
também ele ser passivo, e se considerarmos que o narrador é o próprio Fernando Pessoa,
então Fernando Pessoa é passivo sexualmente. No entanto, o outro homem diz sobre si
próprio que é um poeta simbolista, e isso também pode ser um retrato do próprio
Fernando Pessoa, dado que por um lado Fernando Pessoa era poeta, e por outro lado
Fernando Pessoa estava também de alguma forma ligado ao simbolismo, nomeadamente
ao chamado decadentismo, e nesse caso, sendo esta narrativa um autoretrato de
Fernando Pessoa, assume este o papel sexual de activo.
No fragmento para um conto que Fernando Pessoa não concluiu, que tem como
personagem principal Jacob Dermot, o narrador exprime a sua estupefação e de certo
modo a sua admiração pelo pénis de Dermot :

729
Obra completa de Álvaro de Campos, p. 282
“O seu corpo era fálico. Sim, o seu corpo era um falo enorme, e cada confim,
cada fosso imensamente instintivo e tremendo – uma vulva evidente. Os próprios
cabelos da cabeça pareciam ser do púbis. As mãos possantes, ignóbeis, masturbavam o
incerto.”730
Também aqui, se considerarmos que o narrador é o próprio Fernando Pessoa,
temos a fixação e a admiração pelo pénis de um homem, o que também revela, de algum
modo, tendências passivas.
Noutro texto de ficção, a Carta ao Bispo de Beja por um antigo admirador seu,
um texto sobre um bispo que realmente existiu, e que foi criticado no seu tempo devido
ao facto de ser homossexual, e de não apenas ser, mas também de praticar a
homossexualidade, o narrador, que se confessa ser um antigo admirador do bispo, diz-
lhe ironicamente, jogando com as palavras : “O sr. é um amigo de Peniche, mas mais
amigo de pénis”.731 Neste texto o narrador exprime a sua amizade pelo bispo, devido ao
facto de ele gostar de pénis (sendo indiretamente um convite para que o bispo aceite os
seus serviços sexuais), ou devido ao facto do próprio narrador também gostar de pénis.
O narrador pode ser o próprio Fernando Pessoa, dado que este escreve na primeira
pessoa e dado que o indivíduo que fala com o bispo não tem nome. Seja ou não
Fernando Pessoa, consoante a interpretação que se dê da frase citada, o indivíduo que
assim fala pode ser considerado activo ou passivo.
Passemos agora dos textos literários para as referências biográficas e
autobiográficas sobre Fernando Pessoa. Raul Leal declarou que Fernando Pessoa tinha
um pénis extremamente pequeno : “Quando se olhava para as entrepernas dele não se
conseguia ver lá nada”. 732
Também António Botto, segundo Jorge de Sena, falava do
seu membro viril, muito pequenino, que explicava a abstinência envergonhada dele”. 733

O facto de se ter um pénis extremamente pequeno não significa ser passivo, e portanto
estas declarações valem o que valem, mas contribuem para se considerar Fernando
Pessoa pouco ou nada apto a desempenhar o papel sexual de activo.
Nos textos mediúnicos, em que supostas “almas do outro mundo” conversam
com Fernando Pessoa sobre a sua sexualidade, e que são no fundo Fernando Pessoa a
falar sobre si próprio, uma delas repreende-o, dizendo-lhe : “Homem sem pénis de

730
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, E3, 138-66.
731
Espólio de Fernando Pessoa, E3, 1141 -23v.
732
Raul Leal, ensaio não publicado que integra a coleção Fernando Távora, no Porto (páginas 47-48).
733
Jorge de Sena, Fernando Pessoa e Cª. Heteronímia, Lisboa, Ed. 70, 2000, p. 360.
homem ! Homem com clitóris em vez de pénis !” 734, o que corrobora as declarações de
Raul Leal e de António Botto sobre o pénis de Fernando Pessoa, que ele tinha mas que
na prática era como se o não tivesse, não apenas por ser tão pequeno, mas também por
não fazer uso dele, conforme as declarações do espírito nas comunicações mediúnicas, o
que nos sugere que era passivo do ponto de vista sexual. Por outro lado, Fernando
Pessoa era pouco masculino fisicamente, tinha um corpo pouco viril, conforme se pode
ver nas suas fotos, e a sua pouca virilidade também contribui para se considerar
Fernando Pessoa como pouco ou nada activo do ponto de vista sexual.
Há um texto autobiográfico de Fernando Pessoa em que ele fala da sua “inversão
sexual frustre”, assim como da sua passividade no sentido em que não lhe agradava
tomar a iniciativa nas relações amorosas e sexuais. No entanto, dado que essa afirmação
é feita num texto em que fala da sua inversão sexual, e onde fala também do seu
temperamento feminino, pode ser interpretada também no sentido da sua passividade
no papel a desempenhar nas relações sexuais, até porque muitos passivos são-no não
apenas no acto sexual da penetração mas também no facto de não serem eles a tomar a
iniciativa, preferindo serem conduzidos por aquele que consideram ser o “macho”.
Nesse texto, que citámos mais atrás, e que aqui relembramos, Fernando Pessoa diz o
seguinte :
“Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com
uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela
procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As
minhas faculdades de relação — a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do
impulso — são de homem.
Quanto à sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de
amar, tenho dito tudo. Magoava-me sempre o ser obrigado, por um dever de vulgar
reciprocidade — uma lealdade do espírito — a corresponder. Agradava-me a
passividade”.735
Neste texto encontramos passividade na falta de iniciativa nas relações
amorosas, mas essa passividade está também ligada àquilo que neste texto Fernando
Pessoa denomina “inversão sexual” (apesar de frustrada). No que diz respeito aos papéis
sexuais, existe também o papel de versátil em Fernando Pessoa, conforme vimos em
versos atrás citados, mas a tendência geral é a de passivo. Em Álvaro de Campos,

734
Escritos autobiográficos, automáticos, e de reflexão pessoal, p. 257.
735
Idem, pp. 186-187 
conforme salientámos, o seu papel nas relações homossexuais é o de passivo. Ora, como
é sabido, Álvaro de Campos é o heterónimo em que Fernando Pessoa mais se liberta, é o
heterónimo com que sente maior identificação, é o heterónimo em que dá mais asas aos
seus desejos de forma calorosa, e isso leva-nos também a concluir a preferência passiva,
sexualmente falando, de Fernando Pessoa.

A DOMINAÇÃO-SUBMISSÃO

As fantasias eróticas estimulam o desejo sexual e enriquecem a prática da


sexualidade em algumas pessoas. Eis alguns exemplos de fantasias eróticas :
dominação-submissão; bondage; sadomasoquismo; sexo grupal; exibicionismo;
voyeurismo; indumentária fetichista (lingeries, no caso das mulheres, botas e roupas de
couro, no caso dos homens, látex em ambos os sexos). Entre estas fantasias eróticas, as
mais estimulantes para algumas pessoas (heterossexuais e homossexuais), são as da
dominação-submissão, e do sadomasoquismo. Embora o sadomasoquismo faça parte da
dominação-submissão, não é exatamente a mesma coisa, pois pode haver práticas de
dominação-submissão sem se praticar sadomasoquismo.
A dominação-submissão pode ser entendida no sentido amoroso ou sexual,
embora por vezes seja difícil distinguir entre o amoroso e o sexual. Estar
profundamente apaixonado por uma pessoa pode originar o desejo de lhe agradar ao
máximo, e portanto de lhe ser submisso, sem que isso implique determinadas práticas
de dominação-submissão do ponto de vista sexual. No entanto, por vezes as duas
atitudes coexistem.
Ficar submisso a uma pessoa no amor e no sexo, ao ponto de lhe obedecer, já é
mostrado pelos poetas da Antiguidade Clássica, como por exemplo o poeta romano
Tibulo (54 a. C.-19 a. C.), que num dos seus versos diz o seguinte a uma mulher por
quem arde de amor e de desejo sexual : “irei obedecer-te em tudo, ser teu escravo”.
(Elegias, IV, III, 19). Por seu turno, outro poeta romano, Ovídio (43 a. C.-18 d. C.),
afirma também num dos seu poemas eróticos : “(…) e, como escrava, dono me
chamou”. (Amores , III, 7). Como se vê nestes exemplos, a submissão erótica tanto pode
ser do homem perante a mulher, como da mulher perante o homem (embora este último
tipo de submissão seja o mais comum).
Do ponto de vista da sexualidade, a dominação-submissão estimula muito o
imaginário erótico de alguns indivíduos, uns porque gostam de exercer autoridade sobre
o outro (não confundir com autoritarismo), e outros porque ficam fascinados perante
essa autoridade, que segundo eles reforça a virilidade dos homens que a exercem. Na
sua grande atração pela virilidade, há em muitos homossexuais o fascínio por figuras de
autoridade. Na sua adolescência estavam muitas vezes deslumbrados pelo líder da sua
turma, ou por grandes homens históricos (Luís XIV, Napoleão, Nero, etc.). Por outro
lado, se muitos homossexuais são tentados a amar o “tirano”, ou de se identificar com
ele, é porque inconscientemente reconhecem-se nos dramas pessoais que os “tiranos”
teriam vivido na sua própria vida (despotismo parental, autoritarismo dos professores,
não reconhecimento dos talentos, profunda deceção do mundo, etc.).
Historicamente houve mesmo ligações afetivas e sexuais entre um tirano e
parceiros masculinos, nomeadamente certos imperadores romanos, que são aliás
referidos ao longo da vasta obra de Fernando Pessoa, tanto na sua poesia como na sua
prosa. Alguns desses imperadores ficaram conhecidos como tiranos : Calígula, Cláudio,
Nero, Cómodo, Caracala, e Domiciano. Houve também, nos tempos mais recentes,
outras figuras históricas autoritárias que tiveram experiências afetivas e sexuais com
homens que muito os idolatravam : Edward II com Piers Gaveston; Luís XIII com
Charles Albery de Luynes; Hitler com Erns Röhm, 736 e algumas figuras históricas
autoritárias estavam rodeadas de homossexuais que lhes eram submissos.
Muitos homossexuais tomam consciência da natureza “totalitária” e idólatra do
seu desejo homossexual, mas esta atração homossexual pelo autoritarismo, e por
“tiranos”, tem também muito a ver com uma lógica estética (a fantasia dos uniformes
militares, das fardas, e os atributos físicos do hipervirilizado), que é muito frequente
entre os homossexuais masculinos, levando por vezes a práticas fetichistas de
dominação-submissão, entre as quais as do sadomasoquismo. O próprio Fernando
Pessoa, nomeadamente o seu heterónimo Álvaro de Campos, escreveu poesia em que
exprime a sua atração pela dureza dos piratas, a cuja tirania se submete de livre vontade,
e que lhes pede que exerçam sobre ele, conforme se pode confirmar na sua Ode
Marítima, e de que falaremos no capítulo seguinte.
Em Fernando Pessoa a morte do seu pai foi sem dúvida um acontecimento
marcante na sua infância, obrigando-o a lidar, em tenra idade, com a perda, a separação

736
No caso de Hitler, ver por exemplo o livro do professor da Universidade de Brême, Lothar Machtan,
The Hiden Hitler, New York, Ed. Basic Books, 2001.
e o luto. Tal como em muitos outros órfãos, a ausência da figura paterna faz com que o
mundo apareça como caótico, inquietante, cheio de possibilidades imprevisíveis,
absurdas, o que provoca um grande desejo de uma figura paterna e autoritária, que dê
segurança, incluindo na política. Assim, Jorge de Sena via na admiração de Fernando
Pessoa por Sidónio Pais, no facto dele o considerar como um Desejado, como um
salvador da Pátria, e como um Presidente-Rei, uma atração física ou, pelo menos, um
“fascínio erótico, mais ou menos sublimado”.737
A ausência da figura paterna é aliás considerada por alguns investigadores,
como por exemplo Freud, uma das causas, em determinados indivíduos, da sua
homossexualidade. Fernando Pessoa sublimou essa ausência através de figuras
imaginárias, algumas delas levadas ao extremo, como a de um tirano amado. Assim, no
Livro do Desassossego, diz o seguinte :
“A leve embriaguez da febre ligeira, quando um desconforto mole e penetrante e
frio pelos ossos doridos fora e quente nos olhos sob têmporas que batem — a esse
desconforto quero como escravo a um tirano amado”.738
No seu poema homoerótico Meu coração é triste, Fernando Pessoa fala
indiretamente de um tirano amado, ao referir-se ao pajem de Anacreonte. 739 Trata-se de
Esmérides, que foi pajem e amante do tirano grego Polícrates, pajem esse que foi
enaltecido pelo poeta homossexual grego Anacreonte. Esse pajem tinha uma forte
ligação a esse tirano por ele amado. A “tirania” amorosa e erótica é também referida no
texto As Cousas, em que Fernando Pessoa diz o seguinte : “Os homens são os meus
prisioneiros. Os corpos deles são os braços com que os prendemos… A beleza é a
cadeia de ouro da nossa tirania.”740
No poema Ode Marítima de Álvaro Campos há vários versos em que Fernando
Pessoa exprime o seu desejo de ser submisso :

“Ah, os piratas ! os piratas !


A ânsia do ilegal unido ao feroz
A ânsia das cousas absolutamente cruéis e abomináveis
Que rói como um cio abstracto os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
737
Citado pelo investigador João Pedro George, O super Camões, p.880.
738
Livro do Desassossego, Texto 376, p. 345.
739
Poesia inglesa, II, pp. 75-77.
740
Teatro estático, o.c., p. 111.
E põe grandes febres loucas nos vossos olhares vazios !

Obrigai-me a ajoelhar diante de vós !


Humilhai-me a ajoelhar diante de vós !
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa cousa !
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Ó meus senhores ! ó meus senhores !” 741

Na Saudação a Walt Whitman também existe submissão do ponto de vista


erótico, por exemplo nos seguintes versos :

“Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,


Quero que me façam pertença doída de qualquer um outro,
Que me despejem dos caixotes,
Que me atirem aos mares,
Que me vão buscar a casa com fins obscenos”.742

No entanto, embora a dominação submissão erótica nem sempre tenha a ver com
sadomasoquismo, em Álvaro de Campos está profundamente associada a esta fantasia
erótica, por isso falaremos nisso no capítulo seguinte, que é sobre o sadomasoquismo
em Fernando Pessoa.
Associada à figura dos homens enquanto tiranos (de uma “tirania amorosa”), e
dos piratas, de quem Álvaro Campos quer ser submisso, temos também a figura dos
guerreiros, de quem falamos no capítulo deste livro : Metáforas homoeróticas em
Fernando Pessoa – cavaleiros e guerreiros. Vejamos agora uma componente associada
à bravura e à dominação-submissão : o sadomasoquismo, pois também está presente em
alguns poemas e textos em prosa de Fernando Pessoa.

O SADOMASOQUISMO

741
Obra completa de Álvaro de Campos, p. 92.
742
Idem, p.114.
O sadomasoquismo tem para alguns indivíduos uma forte componente erótica,
conforme mostrou o Marquês de Sade, e muitos outros autores, pois na história da
literatura há muitas obras literárias eróticas onde surgem cenas de sadomasoquismo. O
sadomasoquismo tem sido também estudado e explicado por alguns filósofos, como por
exemplo Michel Foucault, na sua obra História da sexualidade, e por Gorges Bataille,
na sua obra O erotismo. Há também estudos sobre as relações entre as fantasias
sadomasoquistas e o imaginário erótico, estudadas por exemplo pela Psicanálise. Um
dos estudiosos, Roman Byrde, mostra como, desde Sade à moda fetichista
contemporânea, se utiliza a estética do sadomasoquismo para configurar a própria
sexualidade. No seu livro A sexualidade estética, esta autora revela o sadomasoquismo
como uma arte da sexualidade presente na cultura ocidental. Estabelecendo relações
entre o sadomasoquismo e a filosofia estética, de Kant a Baudrillard, Byrne explica os
prazeres e paradoxos da sexualidade sadomasoquista, o sexo como jogos, fantasias,
fetiches. As reflexões filosóficas, históricas e literárias de Romana Byrne sobre a
"sexualidade estética", ou o prazer como uma forma de auto-criação fornecem uma
abordagem sobre o sadomasoquismo como existe desde o século XVIII e o seu lugar no
erotismo, e muito em especial no erotismo homossexual. 743
Embora essas fantasias eróticas existam independentemente da orientação
sexual das pessoas envolvidas, pois também existem entre homem e mulher, essas
fantasias preenchem de modo de modo especial o imaginário homoerótico. A primeira
obra homoerótica escrita e publicada em Portugal, Os jogos lésbicos ou os amores de
Joaninha, em 1877, de autoria de Arsénio de Chatenay, tem um capítulo (o terceiro)
intitulado : A flagelação, que é dedicado a cenas de sadomasoquismo lésbico. No
imaginário homoerótico masculino o sadomasoquismo também está muito presente, e o
próprio mártir São Sebastião, cujas pinturas e esculturas o representam com fechas no
seu corpo, é o patrono dos homossexuais, e esse simbolismo do sofrimento de um mártir
que morreu pelas suas convicções e pelos seus sentimentos, atrai também o imaginário
homoerótico.
Fernando Pessoa interessou-se também pelo sadomasoquismo : numa lista das
suas leituras incluiu o livro de Oswald Zimmermann relacionado com o prazer do
sadomasoquismo : La volupté de la souffrance (“A volúpia do sofrimento”). Este é um
tema sobre o qual também escreveu.744 Um dos muitos autores fictícios que Fernando
743
Roman Byrne, Aesthetic Sexuality – a literary history of sadomasochism, (“Sexualidade estética –
uma história literária do sadomasoquismo”), New York, Ed. Bloomsbury, 2013.
744
Escritos sobre génio e loucura, vol. VII, tomo I, pp. 92-93.
Pessoa criou, Usquebaugh V. Bangem, explica o significado etimológico da palavra
sadomasoquismo.745 Nos textos que escreveu em defesa da homossexualidade de
António Botto, Fernando Pessoa estabelece certas relações entre a dor e o prazer sexual:
“Aceite o prazer, e só o prazer, de que modo pode ele ser aceite ? Pode ser aceite
como alegria, ou como forma de alegria, e é esta a maneira moral, porque é natural, de
aceitar o prazer. Pode ser aceite como excitação, como, por assim dizer, a única forma
agradável da dor, pois que toda a excitação – tomada a palavra no sentido vulgar, e não
fisiológico, tem um fundo de dor, e é esta a maneira antinatural de aceitar o prazer”.746
A sensação de medo, suspense, mistério, é descrita por alguns masoquistas
como algo que lhes causa simultaneamente um certo prazer, e que é um pouco
semelhante ao prazer que muitos indivíduos sentem nos filmes de terror, em que a
própria sensação de medo, segundo eles, lhe “aumenta a adrenalina” e lhes dá prazer. A
relação entre prazer e sado masoquismo, e a sensação de “medo” é também explicada
por Freud, e outros psicólogos. Fernando Pessoa estabelece também uma relação entre o
medo e a dor, medo esse que origina ao mesmo tempo dor e prazer, num texto de
ensaio que escreveu, de que citamos o seguinte :
“Não parece haver um só homem inclinado a confundir um prazer e uma dor.
Todavia a razão que me leva a dizê-lo é que o primeiro impulso foi para escrever que
senti um medo agradável ao fazer isso. (…) havia em mim ao mesmo tempo um medo e
um prazer. Melhor, o medo e o prazer eram os efeitos de uma causa agindo sobre duas
partes, duas faculdades no meu carácter. A sua união e existência num único sujeito,
isto é, em mim próprio, fez surgir a ilusão peculiar de uma dor agradável.” 747
As sensações descritas neste texto não estão diretamente ligadas à sexualidade,
mas mostram a ligação que existe por vezes entre dor e prazer, e prazer e dor (o
sofrimento dos místicos, que sofrem voluntariamente e por prazer, é um exemplo
disso). Conforme vemos num dos capítulos deste livro, o capítulo Misticismo e
homossexualidade, existem ligações diretas e indiretas entre misticismo e sexualidade,
assim como existem entre sado masoquismo e sexualidade, que o próprio Fernando
Pessoa expressou em alguns textos da sua obra literária. Nos textos do heterónimo Jean
Seul, que são sobre sexualidade, existem algumas referências ao sadomasoquismo,
como por exemplo no texto : Escolas de Masturbações, Escolas de Sadismo e outras da

745
Eu sou uma antologia, p. 303.
746
“António Botto e o ideal estético em Portugal”, Prosa publicada em vida, pp. 219-228
747
Pessoa inédito, pp. 400-401.
mesma espécie,748 no texto : Instituto Marquês de Sade para jovens raparigas, 749
e no
texto A França em 1950 (este associado a cenas de lesbianismo, em que “uma rapariga
choramingou porque uma outra a usou para um qualquer acto de sadismo”.750
O masoquismo ligado à sexualidade encontra-se também num dos Textos
mediúnicos de Fernando Pessoa, o texto “Dá-me as tuas ordens”, em que o espírito
critica Fernando Pessoa, e associa o seu masoquismo à sua homossexualidade :
“Masturbador ! Masoquista ! Homem sem virilidade ! (…) Homem sem pénis de
homem ! Homem com clitóris em vez de pénis ! Homem com moralidade de mulher em
relação ao casamento”.751
Num dos seus textos autobiográficos, ao falar da sua “inversão sexual fruste”,
Fernando Pessoa diz que há várias pessoas que são como ele :
“Somos vários desta espécie, pela história abaixo — pela história artística
sobretudo. Shakespeare e Rousseau são dos exemplos, ou exemplares, mais ilustres. E
o meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito — radica-mo a
contemplação de como nesses dois desceu—completamente no primeiro, e em
pederastia; incertamente no segundo, num vago masoquismo.752
Neste texto Fernando Pessoa, além de se referir à homossexualidade de
Shakespeare, refere-se ao masoquismo de Jean Jacques Rousseau. Este autor revela nas
suas Confissões (na 1ª. parte, no livro I), que na sua infância foi castigado com
palmadas nas nádegas, pela senhora Lambercier, por quem foi educado. Rousseau
confessa que descobriu que isso lhe provocava uma sensação voluptuosa e sensual, que
lhe deu vontade de receber mais punições. Segundo as próprias palavras de Rousseau,
nas suas Confissões, a punição física da senhora Lambercier “foi o que decidiu as
minhas inclinações, gostos, e paixões”,753 convertendo as mulheres que teve ao longo da
sua vida em outras tantas senhoras Lambercier, tendo necessidade para as suas fantasias
eróticas masoquistas de uma mulher imperiosa e dominadora.
Há também referências ao masoquismo, com diversos significados, entre os
quais o erótico, no Livro do Desassossego. O texto Educação sentimental exalta o
sofrimento em termos masoquistas, pois a dor e o sofrimento dão a Bernardo Soares um

748
Obras de Jean Seul de Méluret, p. 62.
749
Idem, p. 86.
750
Idem, pp. 279-280.
751
Escritos autobiográficos, automáticos, e de reflexão pessoal, pp. 255-257
752
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, pp. 186-187.
753
Jean-Jacques Rousseau, Confissões, vol. I e II, p. 15.
“gozo longínquo e decadente” (texto 437, p. 439). Note-se a classificação de
“decadente”, pois foi empregue algumas vezes por Fernando Pessoa (de forma não
pejorativa), como sinónimo de homossexualidade, conforme mostramos no capítulo
deste livro Metáforas homoeróticas. Noutros textos Bernardo Soares diz que “há
suplícios da inteligência como os há do corpo e do desejo. E desses, como dos outros
suplícios, há uma volúpia” (128-152); “pertenço voluptuosamente à suavidade da minha
dor” (400-364); “gozar o sofrer, por gozar a própria personalidade consubstanciada com
a dor. O último refúgio sincero da ânsia de viver e da sede de gozar” (AP 9-501).
Embora não seja referida explicitamente a sexualidade, segundo Bernardo Soares há
uma certa volúpia no sofrimento. Há um texto do Livro do Desassossego em que o seu
autor fala também em sadismo e em homossexualidade: “Uns são grandes sádicos,
outros são grandes pederastas, outros confessam, com uma tristeza de voz alta, que são
brutais com mulheres. Trouxeram-nas ali, a chicote, pelos caminhos da vida.” 754
Existe também masoquismo erótico, ou erotismo masoquista, na poesia de
Fernando Pessoa. Damos de seguida alguns exemplos :

“Quando me falaste súbito senti


Um louco insólito terror.
Imagina. Poderia ter-me ajoelhado
Perante os teus lábios, seus gestos, seu desenho.
O sonoro desenho dos teus lábios
E os teus dentes um pouco descobertos
Eram chicotes despertando o meu delírio.
Senti minha razão abandonar-me.

Um fetichismo ultra-sensual
Atormenta meu cérebro inquieto
Abre-se em mim um abismo ainda maior,
Cisma entre minha razão e meu sentir.
Cavado pela lâmina da dor”.755

Na Ode Triunfal , Álvaro de Campos exprime o seu masoquismo homoerótico :

754
Livro do Desassossego, texto 277, p. 274.
755
“Clarões de loucura”, Pessoa inédito, p. 178.
“Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!”756

Numa das versões da Saudação a Walt Whitman, Álvaro de Campos exprime


também o seu desejo masoquista da seguinte forma :

“Vontade de me meter adiante do giro do chicote que vai bater,


De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam”.757

Numa outra das versões da Saudação a Walt Whitman Álvaro de Campos diz
ainda o seguinte :

“Ponham-me grilhetas só para eu as partir!


Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem
Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida !

Ponham-me grilhetas só para eu as partir!


Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem
Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!
Os marinheiros levaram-me preso.
As mãos apertaram-me no escuro.
Morri temporariamente de senti-lo.
Seguiu-se a minh’alma a lamber o chão do cárcere-privado” 758

No entanto, a Ode Marítima, do heterónimo Álvaro de Campos, é o poema de


Fernando Pessoa onde há mais fantasias erótico-masoquistas, e onde estas aparecem
756
Obra Completa de Álvaro de Campos, pp.50-53.
757
Idem, p. 109.
758
Idem, p. 115.
mais ligadas à homossexualidade. São vários esses versos deste longo poema, do qual
transcrevemos apenas alguns excertos do que Álvaro de Campos diz aos piratas :

“Tomar sempre gloriosamente a parte submissa


Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!
Desabai sobre mim, como grandes muros pesados,
Ó bárbaros do antigo mar!
Rasgai-me e feri-me!
De leste a oeste do meu corpo
Riscai de sangue a minha carne!
Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva
O meu alegre terror carnal de vos pertencer.
A minha ânsia masoquista em me dar à vossa fúria,
Em ser objeto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade,
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis !”

Ah, torturai-me,
Rasgai-me e abri-me!
Desfeito em pedaços conscientes
Entornai-me sobre os conveses,
Espalhai-me nos mares, deixai-me
Nas praias ávidas das ilhas!

Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós!


Cinzelai a sangue a minh’alma
Cortai, riscai!
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
Esfoladores amados da minha carnal submissão!” 759

Conforme sublinha Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa liberta através de


Álvaro de Campos as suas pulsões sadomasoquistas e a sua tendência para a
homossexualidade.760 Não apenas os textos de Álvaro de Campos, mas vários outros

759
Obra completa de Álvaro de Campos, p. 93.
760
Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, rei da nossa Baviera, p. 75.
textos de Fernando Pessoa, de que aqui citámos os mais significativos, mostram o
interesse e o fascínio de Fernando Pessoa por estas fantasias eróticas, e que neste último
poema são levados ao extremo. Fernando Pessoa certamente que na sua vida não
praticou fantasias eróticas de dominação-submissão e sadomasoquistas, nomeadamente
as tendências submissas e masoquistas que expressa nos seu poemas. No entanto, se
Fernando Pessoa não se tivesse reprimido sexualmente, se não fosse tão tímido, e se
tivesse vivido noutro país e noutra época (por exemplo nos tempos e hoje),
possivelmente tê-las-ia praticado ou experimentado. Essas dificuldades pessoais, assim
como sociais e temporais, foram um obstáculo também para o desenvolvimento da sua
própria homossexualidade, conforme veremos no capítulo seguinte.

DIFICULDADES DE FERNANDO PESSOA DESENVOLVER A SUA


HOMOSSEXUALIDADE

Nos tempos de hoje os homossexuais têm à sua disposição bares e discotecas


gays, saunas, e a Internet, onde existem sites e chats para namoro e encontros sexuais.
No tempo de Fernando Pessoa não havia nada disso, por isso os homossexuais tinham
de recorrer a outros meios, nomeadamente a encontros ao ar livre em certas zonas da
cidade. Conforme afirma o escritor português Raúl Brandão, no volume II das suas
Memórias (Edição “Jornal do Fôro”, pág. 361) : “Lisboa foi sempre, como Nápoles,
uma cidade de pederastas”. Para Lisboa vinham viver muitos homossexuais de Portugal,
devido ao facto de ser mais difícil noutras localidades do país encontrar pessoas do
mesmo sexo para com elas se ter relacionamentos sexuais. Os locais de encontro em
Lisboa, para os homossexuais e bissexuais, eram parques, jardins, urinóis públicos e ao
longo do rio Tejo, desde o Terreiro do Paço até ao cais de Alcântara, à beira rio, que
dantes era composto de muitos arbustos, e que só recentemente foi urbanizado, tendo
atualmente um circuito pedonal onde circulam muitos turistas, vindos do Terreiro do
Paço a caminho do Cais do Sodré. Conforme afirma também a historiadora São José
Almeida, ao falar sobre a homossexualidade em Lisboa nas primeiras décadas do século
XX (nas quais Fernando Pessoa viveu), os homossexuais “recorriam aos serviços
sexuais de marinheiros nos cais”761 Também havia por vezes bailes privados, de que é

761
São José Almeida, Homossexuais no Estado Novo, p. 37.
exemplo um famoso baile de Carnaval no bairro da Graça, nos anos 20, onde a polícia
entrou e prendeu os seus frequentantes, e que foi noticiado nos jornais.762
No entanto Fernando Pessoa não se identificava com esses ambientes sociais, é
difícil imaginá-lo a dançar em bailes privados, ou mesmo públicos, e também a
frequentar locais de encontros sexuais. A educação familiar conservadora de Fernando
Pessoa, contribuiu para que tivesse escrúpulos morais, e a sua timidez não apenas no
sexo mas também no trato social em geral, agravaram ainda mais a possibilidade de
desenvolver a sua homossexualidade. Há também a referir uma baixa autoestima em
relação ao seu corpo, conforme se pode ver em alguns dos seus poemas, em que se
considerava feio, e isso poderá também ter contribuído, de alguma forma, para
considerar que não tinha hipóteses de sentirem atração por ele.
Do ponto de vista social, a repressão política, a mentalidade do país e da época
em que Fernando Pessoa vivia, de que é exemplo a polémica com a então chamada
Literatura de Sodoma, também contribuíram para o ambiente social de repressão sexual.
Note-se que a missão de “higiene social” de Theotónio Pereira não se cingia à
“literatura de Sodoma”, pois era também contra todos aqueles que se passeavam nos
cafés da capital “com meneios femininos”. 763
No entanto, a repressão à
homossexualidade viria a acontecer principalmente durante o regime político do Estado
Novo, dominado por Salazar. 764
Ora, esses contextos socio-políticos também contribuíram para a dificuldade de
Fernando Pessoa praticar a sua homossexualidade. Essa mentalidade no Portugal de
então, não impedia totalmente os homossexuais de terem sexo, pois faziam-no às
escondidas, mas para isso muitas vezes tinham de pagar, como acontecia por exemplo
com António Botto em relação aos marinheiros (muitos homossexuais eram levados a
isso, porque naquela época não tinham outra alternativa). Ora, Fernando Pessoa era um
homem com muitas dificuldades económicas, tinha de pedir frequentemente dinheiro
emprestado aos seus amigos, para poder suportar as despesas básicas, tinha muitas
dívidas, e portanto não tinha dinheiro para pagar a quem se relacionasse sexualmente
com ele.

762
Diário de Lisboa, 14 de Fevereiro de 1923, p. 8. A Capital, 14 de Fevereiro de 1923, p. 2.
763
Rui Ramos, “Os Inadaptados”, José Mattoso, (dir.), História de Portugal, sexto volume, A segunda
fundação (1890-1926), pp 662.
764
Ver sobre isso : Ana Clotilde Graça Correia - Corpo de delito: a repressão policial à homossexualidade
na primeira década do Estado Novo, Arquivos da Polícia de Investigação Criminal de Lisboa (online).
Lisboa: ISCTE-IUL, 2016. Dissertação de mestrado.
António Botto diz que Fernando Pessoa se privava do sexo, e que como recurso
recorria ao onanismo (à masturbação) :

“Atormentava-se por fantasia,


Não vivia o que temos que viver,
Só tentava saber e não sabia,
E nem beijava para se esquecer

Quem se prende a um corpo ou o possui


Não tem tempo de andar nessa canseira
E ainda bem que eu assim não fui.

Onanismos não dão bom resultado


Sermos o sexo. De qualquer maneira
Procuramos cumprir o nosso fado”. 765

António Botto, assim como Raul Leal, diziam que ele tinha um sexo muito
pequeno, conforme referimos no capítulo sobre os papéis sexuais de activo-passivo, e
tendo o pénis muito pequeno (conforme eles diziam), esse facto podia também ser um
impedimento, mas não totalmente, pois desempenhando sexualmente o papel de
passivo, isso não seria um problema.
Raul Leal, numa das suas cartas, diz que Fernando Pessoa se reprimia e não se
soltava nos seus desejos sexuais, e que isso lhe era doloroso:

“Como as mais altas personalidades humanas, Fernando Pessoa era um ser


intermédio, vivendo convulsivamente o Espírito e a Carne, sempre dentro dele próprio,
num hermetismo fechado que lhe era doloroso, como se a sua alma fosse um vulcão
imenso em que todo o furor íntimo estivesse sempre terrivelmente comprimido sem
nunca se libertar na vertigem dos sentidos, no delírio da carne”.766

Fernando Pessoa tinha também escrúpulos morais e complexos de culpa, como


se pode ver por exemplo quando numa carta a João Gaspar Simões, a propósito do seu
765
Espólio de António Botto, citado por Anna Klobucka, O mundo gay de António Botto, p. 210.
766
Raul Leal, Carta a Aberto de Serpa, de 1 de Dezembro de 1949, publicada na revista Pessoa Plural,
Ed. Brown University (EUA), nº. 13, p. 211.
empenho na escrita dos seus longos poemas eróticos Epitalâmio (amor heterossexual), e
Antínoo (amor homossexual) confessa o seguinte : “como esses elementos obscenos, por
pequeno que seja o grau em que existem, são um certo estorvo para alguns processos
mentais superiores, decidi duas vezes eliminá-los pelo processo simples de os exprimir
intensamente”. 767
Há textos literários de Fernando Pessoa que expressam escrúpulos morais em
relação à prática da sexualidade, e o seu desejo de a reprimir. O facto de Fernando
Pessoa, através desses textos, querer reprimi-la, a sua preocupação em pôr essa
repressão como necessidade, mostra que tinha desejos sexuais, conforme revela por
exemplo o seu heterónimo Alexander Search, que no seu Pacto para a vida de
Alexander Search diz o seguinte como se fosse ele próprio a falar : “Nunca escrever
coisas sensuais, ou de outro modo perversas, que possam lesar ou prejudicar quem as
ler”.768
Os escrúpulos morais e os complexo de culpa existem também por exemplo nos
textos do seu heterónimo Frei Maurice :
“Porque sou tão infeliz ? Porque sou o que não devo ser. Porque metade de mim
não está irmanada com a outra metade, a conquista de uma é a derrota da outra, e
havendo derrota há sofrimento – o meu  sofrimento em qualquer dos casos. Metade de
mim é nobre e grandiosa, e metade de mim é pequena e vil. Mas ambas são eu. Quando
a parte de mim que é grandiosa triunfa,  sofro porque a outra metade – que também é
verdadeiramente eu próprio, e que não consigo alienar de mim – dói por isso. Quando a
parte inferior de mim triunfa, a parte nobre sofre e chora.  
Lágrimas ignóbeis ou lágrimas nobres – todas são lágrimas.
Quando oiço falar do crescimento do vício, da luxúria, da perversão  sexual,769
fico cheio de uma dor inexprimível, de uma profunda raiva. Porquê uma tal raiva ?
Porque nem todo o meu ser se revolta, apenas uma parte – a mais grandiosa,
verdadeiramente, a mais nobre, verdadeiramente. Mas metade de mim, ainda que oculta
no meu íntimo, exulta. A minha raiva é tão grande por isso – a raiva da guerra e da
guerra civil juntas. Dói-me não ser totalmente bom”.770

767
Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões, p.53.
768
Prosa íntima e de autoconhecimento, p. 54.
769
O conceito de “perversão sexual” é frequentemente empregue em Fernando Pessoa como sinónimo
de “homossexualidade”. Ver isso no capítulo deste livro : Metáforas homoeróticas – perversão sexual.
770
Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal, pp. 81-82.
Alguns estudiosos de Fernando Pessoa têm interpretado este texto de Frei
Maurice como referência à homossexualidade, como exemplo a psicanalista Celeste
Malpique, que afirma : “À parte vil remete o vício, a luxúria e a perversão sexual, o que
nos faz admitir que é relativamente à sexualidade e à descoberta da tendência
homossexual que se levantam as suas maiores angústias”. 771
Frei Maurice tem também
sido interpretado como um autoretrato de Fernando Pessoa, conforme defende por
exemplo o investigador Richard Zenith, quando afirma : “Frei Maurice é ele (Pessoa)
próprio, uma espécie de alter-ego sombrio”. 772
O que se destaca deste texto de Frei Maurice é a sua luta interior, pois encontra-
se dividido. Por um lado sente-se atraído pelos prazeres sexuais e essa parte tende a
triunfar, mas por outro lado sente angústia por isso, e quer reprimir-se. Ambos os lados,
o “inferior” e o “superior” são ele mesmo, e não sabe como os conciliar, como sucedia
com Fernando Pessoa. Na mente de Fernando Pessoa a ideia do amor e das relações
sexuais entre duas pessoas do mesmo sexo, apesar de tudo estava marcada pela ideia de
patologia : “doença”, “vício”, “degeneração”, etc., e imaginar-se nos braços de outro
homem fazia-o corar de vergonha, embora o desejasse. Por um lado queria, e por outro
lado não queria, pois achava que não devia. Esta luta interior levou Fernando Pessoa a
sentimentos de angústia, desassossego e depressão, de que fala nos seus poemas (por
exemplo num poema inacabado para o Livro do outro amor, em que diz ao amado :
“odeio-me por querer-te”.773 Os seus diários e algumas cartas a amigos, também
exprimem os seus conflitos interiores, que aliás o levaram a estados depressivos, como
por exemplo a Armando Côrtes Rodrigues (“o meu estado de espírito actual é uma
depressão profunda e calma”).774
Fernando Pessoa elaborou de uma lista de três livros, por trás de um fragmento
seu com um pequeno texto,775 que é a seguinte : “Dr. Gaston Loygne, Th. M.
Dostoievsky, Paris, Storck, 1904; Hartenberg, La névrose d’angoisse – Revue de
médecine, 1901, p. 680; Pitres et Régies, Obsessions et impulsions “. Fernando Pessoa
retirou do livro de Gaston Loygne, da página 43, uma frase que colocou também nesse

771
Celeste Malpique, Fernando em Pessoa, ensaios de reflexão psicanalítica, p.49.
772
Escritos autobiográficos e de reflexão pessoal, o. c., p. 7.
773
Poesia 1902-1917, p.177
774
Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues (carta de 4-10-1914), p. 36
775
Espólio de Fernando Pessoa, BNP, 37-31
seu manuscrito : “That at bottom of obsessive states there is nearly always, if not
always, an unsatisfied sexual instinct – to same purpose he quotes Bouchet, Preyer,
Freud (specially), Tchisch, Loewenfeld, Péré, Tournier. All on Dostoievsky”. A
tradução da frase de Loygne é a seguinte : “No fundo dos estados obsessivos há quase
sempre , se não sempre, um instinto sexual insatisfeito – com a mesma intenção ele cita
Bouchet, Preyer, Freud (especialmente), Tchisch, Loewenfeld, Péré, Tournier. Tudo em
Dostoievsky”. 776
Sublinhamos esta frase : “No fundo dos estados obsessivos há quase sempre, se
não sempre, um instinto sexual insatisfeito”, situação esta que foi também a razão de ser
das obsessões e angústias de Fernando Pessoa, que para resolver os seus problemas
chegou mesmo a recorrer a psiquiatras. Em 10 de Junho de 1919 escreveu a dois
psiquiatras franceses, Hector e Henri Durville, expondo-lhes os seus problemas
psicológicos, aos quais na sua carta deu a designação de histeroneurastenia, e aos quais
emprega o conceito de decadência, dizendo-lhes o seguinte : “Cultivo mesmo, com uns
cuidados um tanto ou quanto decadentes, essas emoções tão vivas quanto subtis de que
é feita a minha vida interior”777 . Ambos os conceitos (histeroneurastenia e decadência),
têm a ver com a homossexualidade, conforme mostramos no capítulo deste livro,
intitulado : Metáforas homoeróticas. Estes psiquiatras franceses eram autores do livro :
Para combater o medo, o receio, a ansiedade, a timidez e desenvolver a vontade, aos
quais Fernando Pessoa pretendia recorrer para resolver estes seus problemas. Apesar de
haver psiquiatras também em Lisboa, pretendia manter o sigilo sobre si próprio, pois
Lisboa era um meio pequeno. Fernando Pessoa pretendia corresponder-se com eles, mas
não sabemos se chegou a enviar esta carta, e se eles a receberam, pois o manuscrito
dessa carta conserva-se no seu espólio, datilografado. Poderia ser uma cópia, tendo
esboçado uma segunda carta, mas é mais provável que nunca a tivesse chegado a enviar.
Seja como for, esta carta é reveladora do seu estado de espírito e da sua necessidade de
recorrer a psiquiatras, para saber como resolver os seus problemas, recorrendo aos
métodos terapêuticos desses psiquiatras.
Fernando Pessoa sentia muito desconforto com a sua homossexualidade e
reprimia-se, transpondo para a literatura a sexualidade que desejaria realizar plenamente
na sua vida, que só realizou esporadicamente, ou que não sabemos se realmente chegou
a realizar, mas a sua literatura e outros textos, referidos ao longo deste livro, mostram

776
Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa , vol. II, p.50.
777
Páginas íntimas e de autointerpretação, p. 71.
bem que o desejava. A sua falta de coragem, a sua timidez, os seus escrúpulos morais
para desenvolver a sua homossexualidade, fizeram com que se reprimisse. A falta do
desejo homossexual realizado criaram nele estados de neurose, fizeram dele um homem
deprimido, compensando na literatura as suas dificuldades em desenvolver a sua
homossexualidade.

CONCLUSÃO

Ao longo do presente livro falámos de muitos e diversos pormenores sobre


Fernando Pessoa, aos quais procurámos estar atentos na nossa investigação.
Começámos por falar da sua infância, em que, por exemplo, por vezes a sua família o
vestiu de saia (conforme se pode ver na sua fotobiografia), o que o poderá ter
influenciado a sua autoimagem. Fernando Pessoa ficou órfão de pai, e viveu quase
sempre rodeado de mulheres no seu lar (mãe, tias, avós). A ausência de uma figura
paterna, e depois a separação da mãe, poderá também, segundo alguns psicanalistas, ter
influenciado a sua homossexualidade. Estudou e viveu durante alguns anos num colégio
interno para rapazes, onde foi encontrado na posse de revistas pornográficas, onde terá
sentido pela primeira vez a sua atração por pessoas do mesmo sexo, e onde terá vivido
as suas primeiras paixões, de que são testemunho os poemas apaixonados que dedicou a
rapazes seus colegas do colégio.
No fervilhar da sua juventude, a época em que os desejos sexuais vêm mais à
flor da pela, foi a época em que escreveu mais poemas homoeróticos. Alguns desses
poemas amorosos ou sentimentais têm escapado a muitas pessoas, mas o facto de
apenas um verso ou apenas uma palavra falar de alguém do sexo masculino, faz com
que façam parte dos seus poemas homoeróticos. Muitos outros poemas não têm
destinatário, sendo possivelmente sobre homens. No entanto, muitos estudiosos de
Fernando Pessoa não vêem isso, ou fingem que não vêem, ou não querem ver, assim
como muitos outras coisas que estão presentes na sua obra, a cujas subtilezas é
necessário estar muito atento, juntá-las e relacioná-las.
A homossexualidade presente na obra de Fernando Pessoa, não pode ser
dissociado da personalidade do seu autor, pois esta é importante para compreender
melhor a sua obra, assim como a sua obra é importante para compreender melhor a sua
personalidade. O próprio Fernando Pessoa defende isso, por exemplo quando afirma :
“Não podemos separar na personalidade de Shakespeare a intuição dramática de, por
exemplo, a inversão sexual”. No Livro do Desassossego, no fragmento 193, Fernando
Pessoa também afirma : “Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo”. Por outro
lado, com frequência Fernando Pessoa se apresentava a amigos, a camaradas de letras, e
a Ofélia Queiroz, identificando-se como Álvaro de Campos (heterónimo com tendências
homossexuais), identificando portanto a sua personalidade com essa figura heteronímica
e literária.
No nosso estudo não separamos a obra de Fernando Pessoa dele próprio
enquanto indivíduo, pois uma permite compreender melhor a outra, pois ele tinha
muito a ver com as suas personagens literárias e estas com ele próprio e com os seus
escritores preferidos. Ao longo da sua vida Fernando Pessoa vestia-se elegantemente,
com excessivo cuidado com a sua aparência física, na qual gastava quase todo o seu
dinheiro, assim como em livros. Vestia como um “dândi”, elegantemente, e usava
frequentemente um laço ao pescoço, cultivando o estilo do seu ídolo Óscar Wilde.
Fernando Pessoa gostava também que lhe fizessem manicure, tal como revela a sua
sobrinha no seu livro de memórias, a qual algumas vezes lhe polia e arranjava as unhas.
Estes pormenores não são insignificantes, assim como muitos outros.
Ao longo do presente livro vimos que existem motivos mais que suficientes (e
com tanta coincidência), para se concluir que Fernando Pessoa era homossexual, e
determinados pormenores só não vê quem não quer : o facto de, nos seus Escritos
autobiográficos, o próprio Fernando Pessoa falar da sua inversão sexual , apesar de a
classificar como “fruste”, isto é, frustrada; o facto de nos mesmos escritos
autobiográficos falar “naquele que me amava”, e não “naquela”; a comparação que
Fernando Pessoa faz de si mesmo com Óscar Wilde, empregando a expressão “o meu
caso”; a sua aversão afetiva pelas mulheres (expressa em vários textos que escreveu); os
autores por ele preferidos e muito admirados, e que eram homossexuais (Shakespeare,
Walt Whitman, Óscar Wilde, Tennyson, Verlaine, Rimbaud, etc.); a sua grande paixão
pela Grécia antiga (onde a homossexualidade era aceite e o modelo de beleza perfeito
era o da beleza masculina); a sua profunda amizade com Mário de Sá Carneiro, que
também defendemos que era homossexual; os muitos poemas homoeróticos que
Fernando Pessoa escreveu, e que escreveu não apenas numa determinada fase, mas ao
longo da sua vida; o facto de os seus heterónimos principais expressarem a
homossexualidade; o facto de até mesmo o heterónimo Alberto Caeiro, que
aparentemente amava uma mulher, se queixar de ter vivido uma farsa, de dizer que ao
deixar de ter a mulher que “amava” se ter libertado de uma prisão; o facto de Alberto
Caeiro representar um papel feminino, segundo um pequeno fragmento que Fernando
Pessoa escreveu sobre ele, em que ele faria de mulher; o facto de muitos dos textos de
Fernando Pessoa terem como tema frequente a impossibilidade de concretizar o amor; a
sua tendência para abordar algumas vezes o tema da homossexualidade e do
homoerotismo, e para analisar as coisas sob essa perspetiva, mesmo quando o tema do
texto era outro; a sua apreciação sobre o drama Octávio, de Vitoriano Braga, uma peça
de teatro que retrata a homossexualidade, que foi contestada quando foi levada à cena,
mas que Fernando Pessoa elogiou ; o elogio que Fernando Pessoa fez também à obra
literária homoerótica portuguesa, O Barão de Lavos, chamando-lhe uma “obra prima”,
apesar do seu autor (Abel Botelho) ser hoje desconhecido, e não ter ficado para a
História, ao contrário do que acontece com as obras primas; as metáforas homoeróticas
que Fernando Pessoa empregava (decadentismo, histerismo, vício, perversão, etc.),
dando-lhe um tratamento literário positivo; a presença nos seus textos de figuras
cultivadas pelo imaginário homoerótico, que o fascinam (marinheiro, príncipe,
cavaleiro, pastor, etc.); o facto das biografias imaginárias que Fernando Pessoa atribuiu
aos seus personagens, serem quase todas de homens solteiros, afastados da convivência
feminina, e alguns deles sugeridos como homossexuais; a busca em Fernando Pessoa de
um amigo íntimo, ou impossível amigo, referida em alguns dos seus textos; a repreensão
feita a Fernando Pessoa pelo espírito de uma pessoa já falecida, nos Textos mediúnicos,
dizendo-lhe para não ter sexo com homens; o interesse manifestado por Fernando
Pessoa, nesses Textos mediúnicos, de comunicar com os namorados de Óscar Wilde; o
projeto que Fernando Pessoa tinha, de escrever um livro em defesa da
homossexualidade, para o qual deixou alguns esboços; a revista Orpheu (invocando
figura da mitologia grega que teve relacionamentos sexuais com homens), revista essa
que no seu tempo foi apelidada de “revista de invertidos”, devido a alguns dos seus
textos e alguns dos seus colaboradores, que veio na sequência de uma outra revista que
Fernando Pessoa tinha projetado, segundo afirma um heterónimo, e que era para se
denominar Antínoo; o ativismo literário de Fernando Pessoa em defesa dos escritores
homossexuais António Botto e Raul Leal, através dos manifestos elogiosos que sobre
eles escreveu, apesar de ser um homem reservado, pouco dado a manifestos e à
intervenção social; a grande amizade de Fernando Pessoa com os seus amigos
homossexuais António Botto e Raul; os testemunhos sobre Fernando Pessoa,
nomeadamente de Jorge de Sena, que cita António Botto, segundo o qual Fernando
Pessoa olhava de uma certa maneira para os indivíduos jovens do sexo masculino; os
próprio poemas de António Botto onde este fala na atração de Fernando Pessoa por
indivíduos do sexo masculino; uma carta de Raul Leal a João Gaspar Simões, que faz
uma referência, de passagem, à homossexualidade em Fernando Pessoa, apesar de a
considerar platónica; a referência de António Ferro, contemporâneo de Fernando
Pessoa, sobre o café Martinho da Arcada, muito frequentado por Fernando Pessoa,
associando os seus frequentadores a Óscar Wilde, e falando dos seus jeitos femininos; a
ligação de amizade entre Fernando Pessoa e o mago bissexual Aleister Crowley, que era
considerado “o homem mais perverso do seu tempo”, e com quem Fernando Pessoa se
correspondia e cujos diários seguia com interesse, etc., etc.
Uma boa parte dos personagens das obras de Fernando Pessoa são um retrato
indireto do seu autor, do ponto de vista biográfico. Veja-se por exemplo o heterónimo
Marcos Alves, cujo problema principal é a sexualidade, e a sua dificuldade em lidar
com mulheres. “As afinidades de Marcos Alves com Pessoa são imensas : um tio
morreu tuberculoso, a avó paterna sofre de alienação mental e na progénie do bisavô era
essa senhora o único filho que sobreviveu”. Se trocarmos “tio” por “pai”,
compreendemos que Pessoa não faz mais do que ficcionar a sua própria situação. Em
Bernardo Soares, um homem solitário, que dizia que os rapazes eram um obstáculo para
ser famoso na literatura, a mulher ideal é apenas um ser assexuado, alguém com quem
não tenha de ter relações sexuais, pois considerava a mulher como “o sexo sujo”, tal
como o próprio Fernando Pessoa ortónimo noutro dos seus textos. Há também muitos
outros textos em que Fernando Pessoa rejeita e ironiza as mulheres, apresentando o seu
ceticismo em relação à possibilidade de as amar. Noutros textos, que são “poemas de
amor” destinados a mulheres, faz delas um tema literário, “brincando ao amor”, como
ele próprio afirma num desses poemas, e dizendo noutro dos seus poemas que esses
poemas “são a fingir”.
O facto de Fernando Pessoa ter tido uma experiência com uma mulher (Ofélia
Queiroz), impede alguns indivíduos de admitirem que ele era homossexual. Alguns
desses indivíduos não sabem, ou não querem saber, que sempre houve e continua a
haver muitos homossexuais que numa determinada fase da sua vida tiveram uma
experiência com uma mulher, e que também lhe escreveram cartas. As cartas entre ele e
Ofélia são na sua maioria cartas de Ofélia a Fernando Pessoa, o qual lhe respondia
laconicamente, muitas vezes apenas para lhe agradar, sentindo-se lisonjeado por haver
uma mulher tão interessada nele, mas Fernando Pessoa, apesar do curto relacionamento
entre eles (pois durou pouco de mais de uma ano), não aguentava mais as insistências de
Ofélia, e foi ele próprio acabou com o relacionamento entre eles.
Apesar de ser homossexual, Fernando Pessoa reprimiu a sua homossexualidade,
viveu-a através da literatura, e refugiou-se na literatura. Viveu com uma máscara,
deixando nos seus escritos muitos pormenores que aqui revelámos, que juntámos, que
relacionámos e dividimos por diversos temas, de modo a uma compreensão mais
pormenorizada e profunda da obra de Fernando Pessoa, e do seu desassossego enquanto
indivíduo. A sua recusa em publicar a sua obra não terá sido inocente e despropositada,
pois continha muita coisa que só com o tempo viria a ser descoberta, que só hoje pode
ser lida, e que a leitura atenta e sem preconceitos permite concluir que Fernando Pessoa
era homossexual.

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18

ÍNDICE

Introdução

A SEXUALIDADE ENQUANTO TEMA EM FERNANDO PESSOA


O interesse de Fernando Pessoa pela sexualidade
Atitudes dos estudiosos, sobre a sexualidade em Fernando Pessoa

PERCURSOS BIOGRÁFICOS MARCANTES EM FERNANDO PESSOA


A infância
A adolescência
A juventude
DECLARAÇÕES SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE DE FERNANDO
PESSOA
Declarações do próprio Fernando Pessoa
Declarações de amigos e conhecidos

OS AMIGOS PREDILECTOS DE FERNANDO PESSOA


O amigo homossexual António Botto
O amigo homossexual Raul Leal
O amigo homossexual Sá Carneiro
Outros amigos

O ATIVISMO LITERÁRIO DE FERNANDO PESSOA


Orpheu : uma “revista de invertidos”
O empenho em defesa da “literatura de Sodoma”

LIVROS QUE FERNANDO PESSOA PRETENDIA ESCREVER


Um livro em defesa da homossexualidade
Um livro de poemas homoeróticos : Livro do outro amor
Outros projetos sobre homossexualidade e de conteúdo homoerótico

O ESPECIAL INTERESSE POR ESCRITORES HOMOSSEXUAIS E OBRAS


DE CONTEÚDO HOMOERÓTICO
William Shakespeare
Walt Whitman
Óscar Wilde
Obras portuguesas homoeróticas

JUSTIFICAÇÕES DA HOMOSSEXUALIDADE E O SEU


ENQUADRAMENTO EM FERNANDO PESSOA
A tolerância
As justificações clínicas
O direito à liberdade
O direito à privacidade
Justificação aristocrática
Justificação esteticista

A HOMOSSEXUALIDADE E AS SUAS TERMINOLOGIAS


Designações dadas à homossexualidade e a sua utilização por Fernando Pessoa
Metáforas homoeróticas em Fernando Pessoa
Decadentismo
Degenerescência
Perversão
Vício
Histeria
Artistas

FIGURAS DO IMAGINÁRIO HOMOERÓTICO DE FERNANDO PESSOA


Príncipes encantados
Marinheiros
Cavaleiros e guerreiros
Pastores

A PAIXÃO DE FERNANDO PESSOA PELA ANTIGUIDADE CLÁSSICA


A Grécia antiga
A Roma antiga

A HOMOSSEXUALIDADE DIVINIZADA
Mitologia e homossexualidade
Apolo

Orfeu
Misticismo e homossexualidade

A HOMOSSEXUALIDADE NOS HETERÓNIMOS PRINCIPAIS DE


FERNANDO PESSOA
Álvaro de Campos
Ricardo Reis
Alberto Caeiro
Bernardo Soares

AS MULHERES E A FEMINILIDADE SEGUNDO FERNANDO PESSOA


A rejeição de Fernando Pessoa para com as mulheres
A crítica ao casamento
Os textos literários sobre mulheres
O equívoco sobre Ofélia Queiroz
O lesbianismo na obra de Fernando Pessoa
O problema da identidade de género e a sua relação com a homossexualidade

PRÁTICAS SEXUAIS EM FERNANDO PESSOA


A masturbação
Os papéis sexuais de activo e passivo
A dominação-submissão
O sadomasoquismo
Dificuldades de Fernando Pessoa desenvolver a sua homossexualidade

Conclusão
Bibliografia

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