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VICTOR CORREIA

DEUS E O CORONAVÍRUS

EDITORA
INTRODUÇÃO
De repente, sem que ninguém estivesse à espera, e sem que nada o fizesse
prever, toda a Humanidade foi atingida por uma pandemia. Não foi a primeira
nem será a última catástrofe epidémica vivida pela Humanidade. No entanto, o
ano de 2020 ficará marcado na História da como um ano em que surgiu uma
nova peste, como em 1346 na Europa medieval, em 1665 em Londres, e em 1918
no mundo do pós Grande Guerra. No ano de 2020, enquanto até então se
receavam e discutiam as alterações climáticas, os imigrantes, os refugiados, o
terrorismo, a corrida ao armamento, os riscos de uma guerra nuclear, etc.,
passou-se a recear e a discutir uma pandemia. Todos os anos morrem milhares
de pessoas em todo o mundo, por gripe sazonal, assim como milhares de
pessoas em acidentes de viação. No entanto o coronavírus, 1 apesar de causar
muito menos mortes, originou um pânico total, devido à sua grande amplidão
(pois infetou e matou bastante gente,) ao seu crescimento exponencial, à
velocidade da sua propagação, e ao facto de ter havido mutações do coronavírus.
Em anos atrás o mundo já tinha sido atingido por outros vírus, mas não com tão
elevados níveis de infeção e mortes, e não se transmitia tão facilmente e tão
rapidamente.
Até aparecer esta pandemia nunca tinha acontecido o confinamento de
enormes cidades que segundo se dizia, “nunca dormem”, como por exemplo
Nova Iorque e São Paulo, nem de países inteiros, pois não foram só as cidades
que fecharam mas também os países. Mas mais do que isso, foi toda a
Humanidade que ficou atingida, ao contrário do que sucedia com as epidemias
do passado. Nunca tinha acontecido este encerramento de fronteiras entre os
países, a proibição de viajar, o encerramento de quase todo o comércio, dos
locais de convívio, e portanto e as enormes restrições de convívio entre as
pessoas. As ruas ficaram completamente desertas e silenciosas. As próprias
igrejas fecharam. Nunca se viu nada assim.
O coronavírus é mais do que um simples vírus, é mais do que outros
coronavírus que já tinham aparecido, e é mais do que uma epidemia, pois é uma
pandemia. A palavra pandemia é de origem grega, formada com o prefixo
neutro pan (todo) da qual se formaram outras palavra, como por exemplo
1
Referimo-nos neste livro ao novo coronavírus, aquele que apareceu em 2020, na China, e que foi
denominado Covid 19, pois já tinha havido mais coronavírus. No entanto, optamos pela designação que
ficou mais conhecida popularmente, a de coronavírus, e também porque é a esse vírus que se refere a
pandemia. Ao falarmos do coronavírus não especificamos qual o coronavírus a que nos referimos, por
ter sido o coronavírus de 2020 que causou impacto e que levantou mais problemas.
panteísmo (pan e teísmo), que significa todo os deuses. No caso da palavra
pandemia, temos o prefixo pan juntando-se à palavra grega demos, que
significa povo. A palavra pandemia foi pela primeira vez empregue por Platão,
no seu livro Das Leis. Platão empregou-a em sentido genérico, referindo-se a
qualquer acontecimento capaz de alcançar toda a população. Galeno (129-217),
médico e filósofo de origem grega, foi o primeiro a empregar o temo pandémico
em relação a doenças de grande difusão. A integração definitiva do termo
pandemia no glossário da Medicina surgiu a partir do século XVIII,
encontrando-se o seu registo na língua francesa, no Dictionnaire universel
François et latin, de Trévoux, em 1774. Em Portugal esse termo entrou nos
dicionários com Domingos Vieira, em 1873, significando uma epidemia de
grandes proporções que se difunde por vários países e que atinge vários
continentes, como é o caso do coronavírus.
No entanto, uma pandemia é muito mais do que um problema biológico,
pois é também um problema social, e mais do que um problema social, é uma
construção social. Pode-se analisar as pandemias sob o ponto de vista histórico,
científico, político, económico, filosófico. Porém, há questões que se colocam
respeitantes também à dimensão espiritual do ser humano, ao significado da
vida e da morte, a propósito das pandemias. É sobretudo nas vivências
negativas do ser humano, cujo sentido parece oculto, como na infelicidade, no
fracasso, na experiência da morte e nas catástrofes, que se procura não apenas a
sua superação mas também o seu sentido. Assim, como encontrar um sentido
para a vida durante a pandemia ? como encontrar um sentido para a vida apesar
da pandemia? esse sentido é Deus ? esse sentido é a ausência de Deus ? como é
que as pessoas viveram a pandemia do coronavírus sob o ponto de vista
religioso ? e como é que as pessoas viveram a religião sob o ponto de vista
pandémico ?
Perante situações como a da pandemia do coronavírus, mesmo os
crentes em Deus não podem deixar de ficarem perplexos e de se questionarem, e
em alguns casos a pandemia suscita certas dúvidas que podem abalar a própria
fé religiosa: deve-se atribuir as culpas a Deus e ilibar os seres humanos ? deve-
se dizer que Deus não tem culpa porque Deus não existe e que o problema está
na Natureza e nos seres humanos ? se o coronavírus é um castigo de Deus,
porque é que as pessoas boas, não merecedoras de castigo, também ficaram
infetados e faleceram ? se Deus é todo poderoso e bondoso, porque não fez
nada para nos libertar do coronavírus ? porque é que as crianças e as pessoas
inocentes também tiveram de sofrer as consequências do coronavírus ? será que
Deus existe ? se sim, para que será esta pandemia? Se Deus não queria que ela
tivesse acontecido, e dado que não se trata de um mal humano mas da Natureza,
como é que Deus pôde permitir que ela tivesse acontecido ? Porque razão Deus
não pôs fim a esta crise? Porque razão Deus não atendeu à oração de milhares
de crentes ? Será que Deus realmente nos protege ? O que poderemos esperar
de Deus ? A pandemia fez as pessoas aproximarem-se ou afastarem-se de Deus ?
aumentou a fé em Deus ou fez perdê-la ?
O que acontece é humana e moralmente significativo, e tem uma razão de
ser. No caso das catástrofes, estas têm uma origem, e é difícil aceitá-las como
meramente acidentais. O ser humano interroga-se pelo “para quê” da sua
existência e não se satisfaz com explicações como as do mero acaso, para
interpretar acontecimentos tão catastróficos como os desta pandemia. Há três
maneiras como a Humanidade tem lidado com as catástrofes ao longo da
História: antigamente responsabilizava-se Deus e outras forças sobrenaturais;
após o Iluminismo passou a culpar-se a Natureza; presentemente buscam-se
culpados entre os seres humanos, incluindo em relação à pandemia do
coronavírus. Além de se procurarem responsabilidades humanas no seu
surgimento, culpando por exemplo o consumo de animais selvagens, ou a forma
como a China lidou com o problema, surgiram outros problemas a esse
propósito, como por exemplo os problemas sociais, que foram também alvo de
críticas. Uns criticaram os políticos, outros criticaram os cientistas, outros
criticaram os profissionais de saúde, outros criticaram os laboratórios e os
farmacêuticos, outros criticaram o comércio por se estar a aproveitar da
pandemia, etc. O coronavírus suscita vários problemas científicos, políticos,
económicos, e também éticos, alguns com implicações religiosas. Neste caso,
temos por exemplo o dilema ético a propósito dos ventiladores : havendo
poucos ventiladores, e tendo algumas pessoas que ficar sem eles, a quem os
dar ? às pessoas mais idosas ou às pessoas mais jovens ?
Mesmo que a solução para este problema ético não decorra de normas
religiosas, e portanto mesmo que decorra de uma ética não religiosa (por
exemplo de uma ética utilitarista), este livro apresenta o coronavírus como
sendo também um problema religioso. Nos órgãos de comunicação social falou-
se muito e tem-se falado do coronavírus sob o ponto de vista médico, político,
económico, e por vezes ético, mas a questão religiosa esteve praticamente
ausente do debate. Talvez muitos indivíduos considerem que não tem sentido
falar de Deus : ou porque consideram que Deus não existe, ou porque mesmo
acreditando que Deus existe, consideram que Deus não tem nada a ver com o
problema da pandemia do coronavírus. Talvez para quem não acredite em Deus
não tenha sentido falar nisso, pois vivemos num mundo dessacralizado, e a
questão de Deus nem sequer se põe, e portanto para muitos não há qualquer
relação a estabelecer entre Deus e o coronavírus, pois segundo os que assim
pensam, Deus não existe, e estabelecer essa relação seria estabelecer uma
relação com nada, ao contrário de estabelecer relações com os problemas
políticos e económicos.
Enquanto antigamente a religião pertencia aos temas centrais da reflexão
filosófica, nos tempos de hoje os problemas religiosos são cada vez mais postos
de parte. As pessoas hoje falam menos de Deus, preocupam-se menos com isso,
consideram isso pouco importante, tanto para afirmar Deus como para o negar.
Encaram-se os assuntos religiosos como assuntos reservados às igrejas, ou
como assuntos apenas pertencentes à privacidade de cada pessoa, à sua esfera
íntima. Todavia, falar do problema de Deus não significa defender a sua
existência, e mesmo que para alguns indivíduos Deus não exista, esse problema
continua a fazer sentido, pois por um lado para o negarem têm de argumentar, e
por outro lado porque para outros indivíduos Deus existe.
Há determinados temas que, mais do que nunca, requerem uma reflexão
sobre a questão religiosa, como por exemplo o tema da pandemia do
coronavírus, por um lado porque a pandemia é um problema que faz o Homem
pensar mais sobre o sentido da existência, e nesta busca de sentido a questão de
Deus é incontornável, e por outro lado porque em situações de catástrofes,
terramotos, epidemias, etc., muitas pessoas recorrem mais a Deus, assim como
muitas outras levantam as seguintes questões : onde está Deus ? será que Deus
existe ?
Em Portugal pareceram revistas e alguns livros sobre os problemas do
coronavírus, mas não apareceu nenhum sobre a relação do coronavírus com a
questão religiosa. Ora, acredite-se ou não em Deus, este assunto é importante,
para crentes e não crentes. Ou será que só para os crentes Deus passou a ser um
problema ? passou a ser um problema porque a pandemia veio a abalar a sua
confiança em Deus, e nos crentes não abalou a confiança em Deus, pois não a
têm ? Para os que não acreditam em Deus a pandemia não é um problema do
ponto de vista religioso, mas há muitas pessoas que acreditam em Deus, por isso
é importante ser analisada a forma como encararam e viveram a pandemia à luz
da sua crença religiosa.
Deste modo, mesmo que os que acreditam em Deus defendam que não
foi ele que enviou o coronavírus, é importante que lhes perguntemos : porque
razão Deus não impediu que o coronavírus acontecesse? Deus não poderia ter
feito algo preventivamente, em vez de remediar (no caso de ter remediado) ?
Porque razão a morte veio-se instalar tão perto de nós, como se Deus, no caso de
existir, não nos protegesse dela? Será que não nos devemos sentir perplexos
com tudo isso, em alguns casos indignados, e concluir que a providência divina
falhou? Até mesmo muitos dos que acreditam em Deus perguntam pelo silêncio
de Deus perante a pandemia do coronavírus. Porque razão Deus a permitiu ?
será que é um castigo de Deus ? Devemos pedir-lhe milagres, como pede o padre
Penéloux da obra A peste, do romancista francês Albert Camus ? Devíamos ter
esperado um milagre ? tem sentido falar em milagre como solução para este
problema ? Deveremos devolver a Deus o bilhete da vida, como faz Iván
Karamazov, no Crime e castigo de Dostoievski, ao ver o sofrimento dos
inocentes ? se Deus existe, afinal onde está Deus no meio de tudo isto ?
A existência do mal (por exemplo pandemias e doenças), é um dos
problemas mais interessantes e importantes de que os filósofos se ocupam na
filosofia da religião, havendo, atualmente, duas posições que procuram oferecer
uma resposta para este problema: 1) os teístas, que procuram afirmar que a
existência de Deus é compatível com a existência do mal; 2) os ateístas, que
procuram negar a existência de Deus, ou, pelo menos, a conceção de Deus como
ser perfeitamente bom e justo, em consequência da existência do mal.
Apresentaremos diferentes teses, devido ao facto de serem defendidas
pelos crentes em Deus e pelos ateus, mas nenhuma delas é uma solução para o
problema. O nosso objetivo é sobretudo problematizar, suscitar o debate, fazer
pensar. Subjacente a isso estão muitas dúvidas na nossa parte, por isso faremos
críticas quando considerarmos que elas devem ser feitas, como por exemplo em
relação às orações de petição daqueles que só se lembram de Deus quando estão
com problemas, ou críticas ao charlatanismo e às superstições religiosas em
torno do coronavírus. Estas e outras críticas não podem deixar de se colocar, a
propósito de problemas tão graves como os de uma pandemia, e das
contradições e exageros de que falaremos. Alguns crentes religiosos também
colocam essas questões, procurando uma espiritualidade esclarecida e crítica, e
só a sua fé em Deus os fará certamente ficarem mais serenos e aceitarem aquilo
que os não crentes e agnósticos, cujas dúvidas são legítimas, não conseguem ou
têm dificuldade em aceitar.
Embora o problema do mal e da sua (in) compatibilidade com a
existência de Deus seja o forte motivador deste livro e a razão principal que nos
levou a escrevê-lo, este livro terá uma abordagem mais abrangente, pois irá
analisar a vivência religiosa à luz da pandemia, e a vivência da pandemia à luz
da religião, nas suas diversas vertentes. Veremos como é que as pessoas lidaram
com a pandemia sob o ponto de vista religioso e os problemas religiosos que isso
trouxe, como por exemplo o encerramento dos templos. Veremos os medos a
propósito do coronavírus e o seu significado sob o ponto de vista religioso.
Veremos as orações que foram feitas por causa do coronavírus, etc. Em suma, o
objetivo deste livro é falar de Deus e da vivência religiosa tendo como pretexto o
coronavírus, e por outro lado falar do coronavírus tendo como pretexto Deus e a
vivência religiosa.
As referências neste livro a Deus dizem principalmente respeito ao Deus
do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo, isto é, ao Deus monoteísta e
interventivo (ou supostamente interventivo). No entanto, a mensagem religiosa
principal, que servirá de base à nossa reflexão, é a do Cristianismo e os
respetivos textos sagrados, isto é, a Bíblia Sagrada, por serem a mensagem e os
textos que conhecemos melhor. Dentro do Cristianismo falaremos não apenas
da religião católica mas também das igrejas evangélicas, da Igreja Universal do
Reino de Deus, e das Testemunhas de Jeová. Por vezes faremos também
referência a outras religiões monoteístas sem ser as cristãs, nomeadamente o
Judaísmo e o Islamismo, e ainda, embora menos, ao Hinduísmo e ao Budismo
(apesar desta última ser mais um sistema ético ou uma filosofia de vida).
Ao analisarmos a relação entre Deus e o coronavírus nas suas diversas
vertentes, não nos basearemos em teorias e em autores, embora por vezes
citemos alguns deles. Não nos basearemos em teorias e em autores, devido ao
facto de ao longo da História terem sido muitos os autores que falaram sobre o
problema de Deus, e de não querermos privilegiar nem seguir nenhum deles,
em detrimento de outros. Um dos melhores exemplos é o do problema do mal,
que tem ocupado muitos filósofos e teólogos. Não analisaremos este e outros
problemas em função de nenhuma dessas teorias e autores, pois isso implicaria
que o grande público, a quem também se dirige este livro, conhecesse essas
teorias e autores, de modo a poder compreender melhor o enquadramento do
nosso tema em função dessas teorias, ou então que as tivéssemos de apresentar
aqui, o que alargaria o âmbito deste livro, portanto não o fizemos.
Por outro lado, habitualmente acentua-se muito a dimensão
transcendente, invisível e abstrata da religião, mas a questão de Deus não é
apenas metafísica, pois dela faz parte a vivência concreta aqui e agora sobre o
fenómeno religioso, como por exemplo o culto religioso, ou os problemas
sociais. Assim, temos sobretudo a preocupação de apresentar casos concretos, e
as afirmações de pastores e padres, sobre problemas suscitados pelo
coronavírus, como o da contestação ao encerramento dos templos, ou os
problemas sociais, e a forma como esses problemas foram encarados.
Recorreremos também a factos históricos concretos, e portanto em alguns casos
este livro comparará as atitudes religiosas do presente com as do passado, isto é,
de que modo é interpretada hoje a pandemia do coronavírus em comparação
com as interpretações do passado sobre outras catástrofes, como por exemplo a
peste negra na Europa, ou o terramoto de 1755 em Lisboa.
Este livro está norteado por um atitude crítica em relação à questão
religiosa, sempre que determinados temas aqui abordados nos suscitarem
perplexidades, fazendo aliás nossas as perplexidades que certamente muitas
pessoas também tiveram e têm a propósito do coronavírus e da questão
religiosa, incluindo as pessoas crentes em Deus. Apresentaremos diferentes
possibilidades de interpretação sobre a relação entre Deus e o coronavírus, e os
prós e os contras de diferentes interpretações. Concordaremos com algumas e
criticaremos outras, mostrando o que consideramos ser a falta de consistência
das suas argumentações, e questionaremos as suas justificações.
Incluiremos diversos assuntos a propósito da relação entre Deus e a
pandemia do coronavírus, entre os quais também alguns assuntos menos
abordados, como por exemplo a questão da linguagem, isto é, o coronavírus
como metáfora, até à questão antropológica, nomeadamente a forma como as
sociedades tradicionais, incluindo a portuguesa, encararam as epidemias sob o
ponto de vista religioso. Assim, ao abordarmos esses diversos assuntos, teremos
o problema do coronavírus não apenas como fio condutor para refletir sobre o
problema de Deus, ou o problema de Deus como fio condutor para refletir sobre
o problema do coronavírus, mas também como fio condutor para refletir sobre
outros problemas que vêm a propósito.

.
AS ATITUDES ALARMISTAS SOBRE O
CORONAVÍRUS
O MEDO DO CORONAVÍRUS SOB O PONTO DE VISTA RELIGIOSO

O ser humano teve sempre medos, que o acompanham desde o tempo das
cavernas : medo da noite, das trovoadas, dos cometas, das tempestades, do fogo,
dos animais selvagens, das pessoas violentas, dos governantes tiranos, das
doenças, da morte, da dúvida, da incerteza, do desconhecido.
Conforme relata o historiador Jean Delumeau, as epidemias que
atingiram a Humanidade geraram também muito medo, como por exemplo a
peste negra na Idade Média. Mas conforme sublinha este autor, houve outros
contágios que geraram também muito medo : o tifo, nos exércitos da Guerra
dos Trinta Anos, no século XVIII a varíola, a gripe pulmonar e a disenteria, e no
século XIX também a cólera.2 Ao longo da História as pestes originaram medos,
histerias coletivas, pavores de Deus, culpabilizações de pessoas e comunidades,
e massacres de bodes expiatórios, como por exemplo os judeus.
As crónicas das epidemias ao longo dos séculos mostram como o medo
não acontecia apenas devido ao contágio, mas também devido aos episódios de
crueldade que as epidemias traziam. Por exemplo, na cidade alemã de
Wittenberg , durante a peste de 1539, aconteceu um verdadeiro “salva-se quem
puder”.  Martinho Lutero, o grande líder da Reforma Protestante,   observou
que os seus concidadãos fugiam no meio de tanta histeria e que os doentes
ficavam sem ninguém para cuidar deles. Segundo Lutero,  o medo era um mal
ainda pior do que a própria doença, pois perturbava as pessoas
psicologicamente e levava-as a não se preocuparem com as outras pessoas, nem
sequer com as suas próprias famílias.
O ser humano, conforme sublinha Peter Berger, “precisa de um mundo
socialmente ordenado. O que ocorreu nos últimos meses em âmbito mundial foi
uma desestruturação de mundo. O universo simbólico vem balançado como um
furacão, levando grupos inteiros à experiência da anomia. O medo voltou a
tomar conta da sociedade, desequilibrando todos os mecanismos de engenharia

2
Jean Delumeau, História do medo no Ocidente, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1990, p. 107.
social voltados para manter o mundo significativamente em pé. As estruturas de
plausibilidade vêem-se abalados pelo “caos”.3
Segundo este autor, “a constante possibilidade do terror anómico torna-
se atual sempre que as legitimações que obscurecem esta precariedade são
ameaçadas ou entram em colapso”. 4 Em momentos de forte crise, como a vivida
pela pandemia, “ficou muito mais difícil o exercício de canais legitimadores do
campo da plausibilidade do sentido, uma vez que ficaram fragilizadas as
práticas normais destinadas a silenciar dúvidas e prevenir lapsos de convicção”. 5
O facto do ser humano ter medo de certas coisas é algo natural, mas pode
também ser algo negativo, quando se trata de medo exagerado, ou quando esse
medo revela a falta de confiança em Deus, conforme defendem os cristãos,
baseados por exemplo na seguinte passagem da Bíblia Sagrada : “No amor a
Deus não há medo; ao contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo
supõe castigo. Aquele que tem medo não está aperfeiçoado no amor” (1 João,
4,18).
Com o aparecimento da pandemia do coronavírus instaurou-se um clima
de medo por vezes exagerado, uma certa histeria coletiva. Instalou-se a
desconfiança sobre cada pessoa, pois qualquer indivíduo passou a ser
potencialmente perigoso, e a ser visto como uma ameaça. Passou-se a ter medo
de frequentar espaços públicos. Passou-se a ter medo de cumprimentar as
pessoas. Passou-se a ter medo de que não houvesse cura nem vacina. Passou-se
a ter medo da morte. Passou-se a ter medo da crise económica. Passou-se a ter
medo de ficar fechado em casa, dos períodos de confinamento. Passou-se a ter
medo do desconhecido que era este vírus, que ninguém sabia como atuava, nem
as suas reais consequências.
O papa Francisco, na sua mensagem na semana santa de 2020, diante da
praça de São Pedro então vazia, transmitida pelos órgãos de comunicação social,
citou as palavras de Cristo aos apóstolos : “Porque tendes medo? Ainda não
tendes fé ?” (Mc., 4, 40), referindo-se ao medo que as pessoas estavam a ter do
coronavírus, considerando também esse medo como uma falta de confiança em
Deus.

3
Peter L. Berger, A construção social da realidade, Petrópolis, Ed. Vozes, 1973, p. 141.
4
Idem, ibidem.
5
Peter L. Berger, Rumor de anjos. A sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural, Petrópolis,
Ed. Vozes, 1997, p. 66.
O cardeal D. António Marto, bispo da diocese de Leiria-Fátima, numa
entrevista a um jornal digital católico espanhol, ao falar sobre o medo associado
ao coronavírus, disse que é "uma coisa muito humana diante do perigo iminente
e ameaçador, especialmente quando enfrentamos com tanta severidade o medo
de uma morte inesperada, a nossa, a dos nossos entes queridos e a de tantas
outras. A fé dá-nos a confiança de não sermos vencidos ou paralisados pelo
medo, de enfrentar o perigo com esperança".6
Alguns líderes religiosos evangélicos defenderam que o vírus era uma
tática do Demónio, que se alimenta do medo, e que o medo é muito pior do que
o próprio vírus. Assim, por exemplo o evangelista norte americano Kenneth
Copeland disse que o coronavírus existia há muito tempo e que apenas tinha
sido uma cepa “fraca” da gripe no passado. Copeland transmitiu a sua
mensagem em Março de 2020 no canal Victory Channel e declarou que o medo
que o coronavírus causou em todo o mundo era muito pior do que o próprio
vírus. Copeland declarou : “O medo não é bom. É pecado. É um ímã para
doenças e enfermidades. No momento em que uma pessoa começa a temer por
qualquer coisa, o diabo começa a trabalhar nessa pessoa. A pessoa está dando ao
diabo um caminho para o seu corpo.”
Ainda nos Estados Unidos da América, Greg Laurie, pastor da Harv2est
Christian Fellowship, no sul da Califórnia, incentivou as pessoas a rezarem pelo
fim da disseminação do coronavírus e para acalmarem o medo : “Há muito
medo. De certa forma, acho que o medo viral sobre ele pode ser pior que o
próprio vírus”, disse Laurie num vídeo colocado no Instagram.
Também o jesuíta James Martin, consultor do Dicastério para a
Comunicação do Vaticano, criticou o medo a propósito do coronavírus : “Pânico
e medo não vêm de Deus. Calma e esperança, sim. E é possível responder a uma
crise com seriedade e deliberação, mantendo um senso interior de calma e de
esperança. (…) O medo, ao confundir e assustar o indivíduo, afasta-o da ajuda
que Deus lhe quer dar. Ele não vem de Deus. O que vem de Deus? Santo
Inácio diz-nos : o Espírito de Deus “desperta coragem e força, consolação,
inspiração e tranquilidade”. Portanto, confie na calma e na esperança que você

6
Religion Digital, Madrid, 12 de Abril de 2020, p. 6.
sente. Essa é a voz a ser ouvida. “Não tenham medo!”, como disse Jesus muitas
vezes.”7
No entanto, a tese de que ter medo é pecado e afasta as pessoas de Deus é
contraditória com a tese de que a origem da religião é o medo e a ansiedade em
relação aos acontecimentos futuros, a apreensão e o pânico, que faz com que as
pessoas recorram a Deus. O que é afinal o medo do coronavírus ? é o medo da
morte. Ora, do ponto de vista religioso pedir para não se ter medo da morte é
contraditório, pois se as pessoas não tivessem medo da morte não recorriam a
Deus, logo pedir aos crentes em Deus para não terem medo da morte é pedir-lhe
para deixarem de ter o que as leva à religião, e indiretamente fazer com que não
precisem da religião.
Conforme sublinham alguns autores, é precisamente o medo das
doenças, o medo da morte, o medo do Inferno, etc. que leva as pessoas a Deus.
Por exemplo Lucrécio, filósofo romano que viveu no século I a. C., na sua obra
Da natureza das coisas, afirma que ”foi o medo que criou os deuses”. Lucrécio
vê no medo do Homem perante os cataclismos da Natureza a origem da ideia de
Deus. As religiões divinizaram os elementos naturais (trovoadas, etc.), para os
tentarem gerir. As religiões politeístas atribuíram cada fenómeno natural à
intervenção de um deus, e ter medo dos fenómenos naturais é ter medo dos
deuses, assim como ter medo dos deuses é ter medo dos fenómenos naturais.
Esta ideia foi retomada pelos filósofos empiristas nos séculos XVII e
XVIII. Para Hobbes, na sua obra Leviatã, assim como para Hume, na sua obra
História natural da religião, a crença religiosa está motivada por razões
psicológicas, decorre de um sentimento de medo e de impotência perante a
fragilidade do destino humano, e sendo assim, o medo do coronavírus não os
afasta de Deus, não é pecado, mas antes pelo contrário : esse medo, assim como
o medo perante outros fenómenos naturais, levou e continua a levar muitos
seres humanos a recorrerem a Deus.
Segundo estes e outros autores, a própria religião, desde os seus
primórdios, pretendia apenas manter os homens no medo, e se o medo é um
erro, a própria religião, segundo afirmam esses autores, é um erro. Para autores
como Bertrand Russell, Freud, Marx, entre outros, a religião é baseada

7
James Martin, America, The Jesuit Review, 13-03-2020, New York, Ed. America Media, p. 11.
fundamentalmente sobre o medo, e é alimentada por ele. Sendo assim, se ter
medo revela falta de confiança e é pecado, a própria religião enquanto baseado
no medo está baseada no pecado, e ao alimentar o medo, indiretamente
alimenta o pecado.
O medo tem frequentemente como origem a incerteza e o desconhecido.
Para muitos crentes o medo do coronavírus elimina-se com a confiança em
Deus, pois a falta de confiança em Deus (que segundo o Cristianismo é pecado)
leva ao pânico sobre o coronavírus. O medo do coronavírus é sobretudo medo
da morte, mas a morte deve ser encarada com naturalidade. O medo das
epidemias não se elimina simplesmente recorrendo a Deus, mas sim com mais
informação e conhecimentos sobre o coronavírus. É necessário que o
desconhecido (por exemplo as epidemias e certas doenças) seja menos
desconhecido, ou que sobre aquilo que se desconhece haja mais conhecimento,
sob pena de as pessoas recorrerem a Deus enquanto o desconhecido
permanecer, e deixarem de recorrer a ele quando aquilo que era desconhecido
passar a ser conhecido. Por exemplo as trovoadas eram para os povos antigos
consideradas um castigo de Deus, e fazia-os viver no medo. O conhecimento
sobre as origens e as consequências das trovoadas, encarando-as como um
fenómeno natural, fez o ser humano deixar de ter o medo que tinha das
trovoadas, não as atribuindo aos deuses. O mesmo deve acontecer com as
pandemias.

A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS COMO PRENÚNCIO DO FIM DO


MUNDO

Existe historicamente uma tendência para associar as epidemias ao fim


do mundo, tendência essa que nos países ocidentais está muito ligada aos textos
da Bíblia, onde por exemplo se pode ler : “Vi a seguir um outro sinal grande e
admirável no céu. Eram sete anjos designados para lançar as sete últimas
pragas, depois das quais ficava satisfeita a ira de Deus” (Livro do Apocalipse, 15,
22). Também no Livro do Êxodo, no Livro do Deuteronómio, no Livro de
Samuel, em Ezequiel, em Oseias, e em Amós, entre os meios de destruição
oriundos da ira divina, as pragas e as pestes são abundantes. No Novo
Testamento, além do Livro do Apocalipse, as palavras de Cristo sobre os
acontecimentos do fim mundo falam das pestes como um dos seus sinais :
"Haverá grandes terramotos, fomes e pestes em vários lugares, acontecimentos
terríveis e grandes sinais provenientes dos céus" (Lucas, 21, 11). “Porquanto se
levantará nação contra nação, e reino contra reino, e haverá fomes, e pestes, e
terramotos, em vários lugares” (Mateus, 24,7). O fim do mundo e a segunda
vinda de Cristo é aliás um dogma do credo cristão. Os cristãos acreditam que
assim como o pecado original abriu caminho à vinda de Cristo para salvar a
Humanidade, também será necessário que aconteçam “coisas assustadoras”
grandes sinais no céu, pestes e outras catástrofes (“é necessário que estas coisas
aconteçam primeiro”) para que se dê a segunda vinda de Cristo Salvador e
chegue plenamente o reino de Deus.
As pestes, ao longo da História (de Tebas, de Atenas, de Constantinopla,
na Antiguidade, etc.) foram por vezes interpretadas como um prenúncio do fim
do mundo, assim como mais tarde a peste negra, a peste branca, outras grandes
epidemias, e mais recentemente até mesmo a SIDA, foram interpretadas por
alguns líderes religiosos fundamentalistas como um prenúncio do fim do
mundo. A epidemia da peste negra, que atingiu a Europa no final da Idade
Média, foi a que mais originou essa interpretação, e levou muitos crentes a
pensarem que estava iminente o Juízo Final . “Assim, quase todos os que
tinham estado no Leste ou nas regiões do Sul ou do Norte, caíram vítimas de
morte súbita, depois de contraírem a doença fatal, como que atingidos por uma
flecha mortal que lhes despertava um tremor nos corpos. A escalada de
mortandade e o modo como se declarava convenceram todos os viventes,
chorosos e aflitos, nestes acontecimentos de 1346 a 1348, que tinha chegado o
Juízo Final”.8
No século XIV “os Flagelantes apareceram na Europa Central, na Áustria,
na Hungria e na Alemanha. (…) Descalços e em farrapos, entoando cânticos
fúnebres, marchando pelas ruas, carregando cruzes vermelhas e parando para
se açoitarem até sangrar, os Flagelantes ficariam como um símbolo dos horrores
da Peste Negra. Constituíam uma espécie de ordem paralela, pregando ao povo,
arvorando-se em santos e fazedores de milagres, anunciando os dias do fim e a
Segunda Vinda do Messias, que os horrores da Peste prenunciavam”. 9
8
M. Wheelis, “Biological Warfare at yhe 1346 Siege of Caffa”, in Emerg Infect Dis., 2002, p. 971.
9
Jaime Nogueira Pinto, Contágios – 2500 anos de pestes , Lisboa, Ed. Dom Quixote, 2020, pp. 70-71.
No século XV, entre 1405 e 1480 apareceram também vários surtos de
pestes. “Estas epidemias foram atingindo a França, a Inglaterra e as cidades
italianas; e, com o aproximar do ano de 1500, uma nova onda milenarista
preparava-se para percorrer a Europa. Vinha aí outro fim do mundo. O Juízo
Final estava já previsto para a passagem do milénio. A Imprensa era recente,
mas publicava-se muito e os livros proféticos e cabalísticos faziam furor; entre
todos, o Apocalipse de São João ou Livro da Revelação”. 10
Também a pandemia do coronavírus, para alguns crentes, significou que
o primeiro cavaleiro do Apocalipse “começou a andar”, pois na Bíblia, no Livro
do Apocalipse, o primeiro cavaleiro é conhecido como Pestilência, associado a
doenças e a pragas, e há outra passagem na Bíblia que leva também a pensar no
fim do mundo, pois Deus diz : “Quando eu cerrar o céu e não houver mais
chuva, quando ordenar aos gafanhotos que devorem a Terra, ou quando enviar a
peste contra o meu povo” (II Crónicas, 7, 15).
A pandemia do coronavírus apareceu aproximadamente na mesma
ocasião em que apareceram outros acontecimentos catastróficos : as erupções
do vulcão Anak Krakatoa, na Indonésia, o incêndio florestal na região de
Chernobyl, na Ucrânia, os enxames de milhões de gafanhotos em África, e a
NASA, agência espacial norte-americana responsável por visualizar objetos
espaciais que se aproximam da Terra, identificou um asteroide de quatro
quilómetros de diâmetro que deveria chegar à Terra em 29 de Abril. Estes
acontecimentos, que foram surgindo todos mais ou menos nos meses próximos
do aparecimento do coronavírus, levaram alguns crentes e líderes religiosos a
pensarem que o fim do mundo estava próximo.
Alguns líderes religiosos do Médio Oriente, de Israel ao Irão, defenderam
também que a pandemia do coronavírus estava relacionada com a chegada do
Messias, no judaísmo. Shmuel Eliyahu, rabino-chefe do judaísmo ortodoxo,
declarou que o mundo estava aproximando-se dos “dias do Messias” e que a
pandemia traria uma observância mais exata da Lei de Moisés, como honrar o
Shabat (o dia de descanso). “Talvez os muçulmanos nos digam para construir o
terceiro templo”, sugeriu Eliyahu, evento que judeus – à sua maneira, e os
cristãos, acreditam que antecederia a vinda do Messias, no caso dos judeus, e a
segunda vinda de Jesus, no caso dos cristãos.

10
Jaime Nogueira Pinto, Idem, p. 83
Para alguns muçulmanos, a pandemia do coronavírus também foi
considerada um sinal de que o fim do mundo estaria próximo. O “Messias” dos
muçulmanos denomina-se Mahdi, que será o último imã profeta islâmico que
virá governar o mundo e derrotar os inimigos dos que servem a Alá. Alguns
xiitas acreditam que o Mahdi retornará durante um período de grande revolta
na Terra. Assim, por exemplo um dos principais clérigos iranianos, Ali Reza
Banahyan, afirmou que o coronavírus provocaria o retorno do Madhi. Também
o xeique saudita Saleh Al-Maghamsi disse num programa de televisão que o
vírus era uma mensagem de que o “dia do julgamento” estava perto.
Nas igrejas evangélicas alguns líderes religiosos fundamentalistas
afirmaram que ao falar de guerras, terremotos e pestes em vários lugares, Jesus
Cristo profetizou, segundo o evangelho de Mateus (24,7) sobre uma série de
acontecimentos, que deviam ocorrer até ao último Grande Dia do Senhor, que
seria a sua segunda vinda. Antes disso, portanto, o mundo viveria diversos
acontecimentos numa escala de intensidade, onde quanto mais próximo
ficássemos da vinda de Cristo, maiores seriam os sinais da sua vinda. Assim, a
pandemia do coronavírus seria um exemplo desses grandes acontecimentos.
Alguns líderes religiosos analisaram qual seria a relação do coronavírus
com o que a Bíblia diz sobre os últimos dias vividos na Terra, antes da segunda
vinda de Cristo, e portanto com o fim do mundo. Um desses líderes religiosos foi
por exemplo o pastor brasileiro Lamartine Posella, presidente da Igreja Batista
Palavra Viva, na cidade de São Paulo, que gravou um vídeo para dar uma
mensagem de alerta aos cristãos que, segundo ele, vivem como “mornos”, assim
como para os não cristãos. “A Bíblia diz que as pessoas no tempo da vinda de
Jesus não estariam nem aí, elas iriam continuar as suas vidas. Adiciona-se a isso
o facto de estarmos vivendo em tempos de blasfémia. Eu creio que essa
blasfémia está enchendo o pote, e daqui a pouco Deus vai derramar a sua ira
sobre a Terra”, declarou o pastor. O aparecimento de doenças como o
coronavírus faz parte dos sinais dos últimos tempos. “Jesus está voltando. Isso
tudo tem a ver com as profecias, nas quais Ele disse que estas coisas
antecederiam a Sua volta”, concluiu o pastor.
Igualmente no Brasil, também o bispo da Igreja Universal do Reino de
Deus (IURD), Edir de Macedo, encarou a pandemia do coronavírus como um
prenúncio do fim do mundo. “As pestes ou epidemias que durante séculos
ceifaram a vida de milhares de pessoas em várias partes do planeta serão mais
frequentes. Nós temos visto isso nos nossos dias, pois até mesmo doenças que
eram consideradas erradicadas têm ressurgido em algumas partes do mundo,
deixando as nações em estado de alerta”, disse o Bispo Edir Macedo, no seu
comentário na Bíblia Fiel Comentada, em comemoração dos 40 anos da Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD). “Da mesma forma que as dores de uma
mulher se intensificam, à medida que o parto se aproxima, o crescente aumento
dos enganos, das guerras, da fome, das pestes e dos terremotos mostra que a
Humanidade está perto do fim. Todos esses eventos são apenas alguns sinais
que precedem a vinda do Senhor Jesus”, comentou ainda o bispo Edir Macedo.
Além destes líderes religiosos, outros líderes religiosos evangélicos
estabeleceram uma relação entre a pandemia do coronavírus e o fim do mundo.
São muitos os nomes desses líderes religiosos , uns pouco conhecidos, e outros
mais conhecidos, como os atrás referidos, que apresentámos como importantes
exemplos. Essas declarações proféticas não deram certo, pois o mundo
continua a existir, assim como também não deram certo as profecias sobre
quando a pandemia do coronavírus ia acabar.
Assim, por exemplo o pastor evangélico norte americano, Shawn Bolz, em
Março de 2020 profetizou sobre o coronavírus, alegando que chegaria ao fim em
breve. Também em 2020 pastor evangélico norte americano, Shawn Bolz,
declarou que o Senhor lhe mostrou para breve o fim do coronavírus. O
autoproclamado profeta TB Joshua declarou que o coronavírus deixaria de
existir até 27 de Março de 2020. Também Abhigya Anand, um adolescente
hindu que na Índia ganhou fama pelas suas previsões, declarou que 5 de
Setembro de 2020 seria o momento em que o coronavírus terminaria. Estes são
apenas alguns exemplos de profecias que não se cumpriram, assim como as
declarações sobre o fim do mundo.

AS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO SOBRE O CORONAVÍRUS E A SUA


RELAÇÃO COM A ATITUDE RELIGIOSA

As teorias da conspiração são hipóteses explicativas ou especulativas, que


sugerem que existem determinadas pessoas ou uma organização que estão por
trás de qualquer fenómeno social, como uma trama, para causar ou encobrir,
através de um planeamento secreto, uma situação ou um acontecimento. São
crenças irracionais sobre pessoas ou instituições poderosas que, segundo essas
teorias, estariam fazendo uma “coisa errada” secretamente. Um exemplo das
teses defendidas pelas teorias da conspiração é a de que o Homem não foi à Lua,
e que as provas da ida do Homem à lua teriam sido forjadas pela NASA.
Uma constante das epidemias ao longo da História foi a busca de bodes
expiatórios, de elementos malignos, causadores ou cúmplices do flagelo, dando
também origem a diversas teorias da conspiração. Sobre o coronavírus surgiram
também as mais diversas teorias da conspiração, e algumas delas apontaram
também como culpados determinadas indivíduos ou comunidades. Esta
pandemia foi uma ocasião propícia para constatar até que ponto os seres
humanos procuram responsáveis para determinados males, que eles identificam
como sendo a origem, fazendo deles bodes expiatórios e alvos de teorias da
conspiração.
Os estrangeiros serviram de bode expiatório para a pandemia do
coronavírus, como por exemplo os africanos na China, os muçulmanos na Índia,
ou os cristãos em países hostis ao Cristianismo. Apareceram também teorias da
conspiração sobre o coronavírus : foi fabricado por um laboratório na China; foi
uma arma biológica criada pela China para destruir o Ocidente; foi criado pelos
serviços secretos dos Estados Unidos para fazerem uma guerra económica com
a China e paralisar a sua economia; foi criado e financiado por Bill Gates para
reduzir a população mundial; a sua origem foi um meteorito que teria atingido o
norte da China em 2019; foi fabricado pela ONU e pela OMS para tomarem o
controle do mundo; foi uma arma alienígena para destruir a Humanidade; não
é uma doença viral, mas sim o efeito da implantação do 5G, a mais nova geração
de telecomunicação móvel; a sua vacina contém microchips para controlar as
pessoas;  foi a própria indústria farmacêutica que criou o coronavírus para
lucrar com isso, etc.
Um estudo científico publicado na revista britânica Royal Society Open
Science, em 14 de Outubro de 2020,  defendeu que há também uma “ligação
clara” entre a crença em teorias da conspiração e a relutância em relação à
vacina contra a Covid-19. Baseada em inquéritos de opinião realizados no Reino
Unido, em duas fases sucessivas com cerca de mil participantes, e nos Estados
Unidos, na Irlanda, no México e na Espanha, com 700 participantes de cada vez,
esta investigação estabeleceu uma “ligação clara entre acreditar em teorias da
conspiração e a relutância em relação a uma vacina”, defendendo-se nessas
teorias que a pandemia de covid-19 “faz parte de um plano para impor a
vacinação global”. Algumas das razões que estão por trás da oposição às vacinas
são de natureza religiosa, conforme se pode ver no capítulo do presente livro : A
oposição religiosa às vacinas.
Segundo a professora da Universidade de San Diego, Rebecca Moore, “o
termo teoria da conspiração não é neutro. Ele está carregado de valores, e traz
consigo a condenação, a ridicularização e a rejeição. É bastante parecido com a
palavra culto que utilizamos para descrever as religiões das quais não
gostamos”.11 Um outro autor, Clare Birchall, do King’s College de Londres
define a teoria da conspiração como sendo uma “forma de interpretação ou
conhecimento popular”, semelhante a contos de abdução alienígena,
bisbilhotices, algumas filosofias da nova era, astrologia e crenças religiosas”. 12
Também o investigador Michael Barkun encara a atitude da teoria da
conspiração como uma atitude semelhante à da atitude religiosa, por ser “uma
questão de fé em vez de provas”. 13
Por seu turno, Harry G. West analisa essas
teorias como uma parte da cultura popular norte-americana, comparando-as
com o ultranacionalismo e o fundamentalismo religioso. 14 Também o psicólogo,
conferencista e jornalista Sebastien Bartoschek estabelece um paralelo entre os
grupos religiosos e as teorias conspiratórias, afirmando : “a religiosidade
funciona de acordo com os mesmos princípios estruturais que as teorias da
conspiração. Em ambos os casos, um instala o medo do outro. Na religião, por
exemplo, temos medo do diabo ou daqueles que nos podem afastar do caminho
certo. Ao mesmo tempo, apresentamos a nós mesmos uma solução para ter
assumido esse medo. Na maioria dos casos, a solução aparece na forma de duas
promessas: uma promessa de comunidade e uma promessa de redenção”. 15
11
Rebecca Moore, “Contested Knowledge : what conspiracy theories tell us”, Alternative considerations
of Jonestown & People Temple, San Diego State University (texto on-line).
12
Clare Birchall, “Cultural studies on conspiracy theory”, in Knowledge goes pop from conspiracy theory
to gossip, Oxford-New York, Ed. Berg, 2006, p. 72.
13
Michael Barkun, A culture of conspiracy : apocalyptic visions in contemporary America, University of
California Press, 2003, p. 7.
14
Harry G. West et al., Transparency and conspiracy : ethnographies of suspicion in the new world order,
Ed. Duke University Press Books (s/d.).
15
“La religiosité a les mêmes príncipes structurels que la théorie du complot”, in Jornal eletrónico Arte –
la chaîne culturelle européenne, 7 de Setembro de 2017.
Por seu turno, Daniel Freeman conduziu uma pesquisa que teve como
objetivo investigar as teorias da conspiração. Entre outras coisas, Freeman
também pretendeu ver se essas teorias da conspiração estariam associadas ao
nível de religiosidade dos participantes. 16 Como resultado, Freeman constatou
que, quanto mais religiosas eram as pessoas entrevistadas, mais fortemente elas
concordavam com as teorias da conspiração sobre o coronavírus. Isso
significaria que quanto mais as pessoas acreditam em Deus, e quanto mais
fanáticas são nas suas crenças religiosas, mais acreditam em teorias da
conspiração sobre o coronavírus, que determinadas religiões ou comunidades
religiosas, como por exemplo as evangélicas fundamentalistas, nomeadamente
os pastores, se empenharam em criar, ou pelo menos ajudaram a difundir. Por
outro lado, além das crenças religiosas terem alimentando algumas crenças
conspiratórias sobre o coronavírus, essas crenças conspiratórias também
fortaleceram a atitude religiosa fundamentalista.
Nos Estados Unidos da América, o pastor evangélico fundamentalista e
teórico da conspiração Rodney Howard-Browne realizou serviços religiosos na
sua igreja The River em Tampa Bay, Flórida, no domingo dia 15 de Março de
2020, onde encorajou os fiéis da sua Igreja a cumprimentarem-se apertando as
mãos. Howard-Browne dedicou a maior parte do seu sermão dominical a troçar
dos temores sobre a propagação do coronavírus, que denominou "praga
fantasma", que segundo ele foi projetada para aterrorizar as pessoas a
receberem vacinas que as matarão. Para este líder religioso, o coronavírus faz
parte de um plano traçado num documento de 2010 chamado "Cenários para o
Futuro da Tecnologia e do Desenvolvimento Internacional" produzido pela
Fundação Rockefeller e pela Global Business Network.
Também o pastor evangélico Perry Stone, nos Estados Unidos, é autor de
uma teoria da conspiração. Falando numa celebração religiosa do "Firehouse
Prayer" na sua igreja em Cleveland, Tennessee, no dia 19 de Março de 2020, este
pastor declarou que o coronavírus foi uma tentativa satânica de matar cristãos
mais velhos para que o socialismo se possa instaurar nos Estados Unidos da
América.

16
Freeman, D., Waite, F., Rosebrock, L., Petit, A., Causier, C., East, A., Lambe, S. (2020). Coronavirus
conspiracy beliefs, mistrust, and compliance with government guidelines in England. Psychological
Medicine, 1–13.
Os bodes expiatórios estão muito ligados às teorias da conspiração, pois
estas são férteis em encontrar supostas pessoas ou grupos que os seus autores
culpabilizam de determinados males que atingem a Humanidade. Judeus,
chineses, etc., foram e são por isso um alibi de grupos religiosos radicalistas.
Essa visão negativa é uma espécie de busca de sentido para o desconhecido. Os
teóricos da conspiração, ao verem o mundo como caótico, malévolo, cheio de
injustiças e de sofrimentos sem sentido, sentem um pouco de conforto ao
pensarem que há alguém ou um determinado grupo que é, segundo eles,
responsável por tudo isso. Sendo o conluio relatado pelas teorias da
conspiração, geralmente encarado como hostil, essas teorias dão uma certa
tranquilidade aos que acreditam nelas, à semelhança do que acontece nas
crenças religiosas, pois as coisas passam a fazer sentido.
O conceito de bode expiatório tem uma origem religiosa. Conforme se
pode ver na Bíblia Sagrada, no livro do Levítico, os hebreus costumavam
organizar rituais que tinham como objetivo purificar a sua nação. Para isso
organizavam um ritual religioso com dois bodes. Através de um sorteio um dos
bodes era sacrificado juntamente com um touro, e os hebreus punham marcas
do seu sangue nas paredes do seu templo. O outro bode era transformado em
“bode expiatório”, tendo como função ritual carregar todos os pecados da
comunidade. Nesse instante, um sacerdote levava as mãos até à cabeça do bode,
para que este carregasse simbolicamente os pecados das pessoas. Depois disso o
bode era abandonado no deserto, para que os males que simbolicamente ele
representava ficassem bem longe.
Ao longo da História da Humanidade houve várias minorias ou grupos
que foram utilizados como “bode expiatório” de determinados males que
atingiram a Humanidade. Por exemplo, os judeus foram culpabilizados
pela peste negra e acusados de conspiração para liquidar os cristãos, e foram
considerados como a causa do castigo que Deus enviou através da peste. As
paranoias interpretativas e as teorias da conspiração desde sempre encontraram
um terreno muito fértil nas épocas de medo, como as das epidemias, e a peste
negra foi uma das mais importantes.
Devido ao alarmismo então surgido, o Papa Clemente VI, em 1348,
publicou duas bulas instruindo os cristãos a não responsabilizarem os judeus
pela peste que assolava a Europa. O Papa declarou que aqueles que os culpavam
teriam sido “seduzidos por esse mentiroso, o diabo”. Mesmo assim, esta atitude
do Papa não impediu o massacre dos judeus em 1348, no sul de França, na
Provença, e o massacre em Estrasburgo, em 1349, que matou centenas de
judeus.
Os judeus eram acusados de serem deicidas, isto é, de serem autores da
morte de Cristo, e essa culpabilização teve consequências na hostilidade de que
historicamente foram alvo, até mesmo os cristãos novos (antigos judeus),
hostilidade essa que aumentava durante os períodos das pestes. Por exemplo na
epidemia de 1506, na cidade de Lisboa, a população enfurecida transformou a
cidade em violências e atrocidades, levando à fogueira os judeus e cristãos
novos, culpabilizados pela epidemia, conforme se pode confirmar nos
documentos da época. 17
Segundo alguns autores (Bertrand Russell, Sigmund Freud, Karl Marx,
etc.), conforme referimos no capítulo anterior, a religião é baseada
fundamentalmente sobre o medo, o terror do desconhecido, o receio do
inexplicável, o pânico do misterioso, o pavor da derrota, o medo da morte, o
medo do Inferno, daí haver uma ligação com as teorias da conspiração. Há
visões radicais do ponto de vista político, entre elas as teorias da conspiração,
que integram elementos de discursos religiosos fundamentalistas, levando
conscientemente ou inconscientemente a fazer seus os discursos religiosos que
marcaram o passado, como por exemplo em relação aos judeus, perseguidos por
motivos políticos e religiosos, que viam neles uma ameaça oculta. Este é um dos
melhores exemplos em como, por um lado a política utilizava a religião como
pretexto, e por outro lado a religião utilizava também a política como pretexto.

17
Eduardo Freire de Oliveira “Carta Régia de 26 de abril de 1506”, Elementos para a Historia do
Municipio de Lisboa, Tomo I, Lisboa, Typographia Universal, 1887, pp.395-401.
O ENCERRAMENTO DOS TEMPLOS E DE
OUTROS LUGARES RELIGIOSOS
OS AJUNTAMENTOS RELIGIOSOS COMO UM DOS PRINCIPAIS
FOCOS DE PROPAGAÇÃO DO CORONAVÍRUS

Como é sabido, o coronavírus propaga-se mais facilmente nos grandes


ajuntamentos de pessoas, principalmente nos eventos desportivos, nos festivais
de música, e nos encontros religiosos, sobretudo porque estes últimos, como
alguns dos festivais de música, são geralmente realizados à porta fechada, isto é,
dentro de templos. Em alguns países, como por exemplo os islâmicos, não
existem grandes encontros de futebol, e existem poucos festivais musicais,
noutros países há eventos desses mas poucos, e noutros foram cancelados com a
pandemia do coronavírus, mas isso não aconteceu com alguns encontros
religiosos, pois continuaram-se a realizar. Certos encontros religiosos, como por
exemplo os da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e que são geralmente
eventos de grandes massas, foram fortes veículos de propagação do coronavírus.
Aconteceram também eventos de grupos religiosos independentes das
instituições religiosas dominantes nos seus países, e à revelia das ordens dos
líderes religiosos, mas em alguns casos os próprios líderes religiosos também
estiveram presentes nesses eventos, e foram encontros realizados oficialmente
pelas próprias igrejas. Não vamos aqui referir todos esses casos, que
aconteceram em diversos países do mundo, pois foram muitos, e provenientes
de várias religiões, mas vamos referir alguns, como exemplo, que são muito
significativos.
Na Malásia, um evento islâmico, uma festa do final do Ramadão, que teve
a participação de 16 000 muçulmanos foi o ponto de partida que despoletou o
surto do coronavírus no sudoeste asiático. Entre os fiéis reunidos na Malásia, a
maioria deles vieram de países estrangeiros, e daí resultou uma enorme
propagação do coronavírus nos países de origem. Apresentaram resultado
positivo da infeção do coronavírus muitas pessoas que tinham participado
nesse grande evento religioso, oriundas do Camboja, de Singapura, do Brunei,
do Vietname e da Tailândia. Dos casos confirmados na Malásia dois terços deles
estiveram relacionados com esse encontro religioso islâmico.
Na Coreia do Sul, a Igreja Shincheonji de Jesus, o Templo do
Tabernáculo do Testemunho, fundada por Lee Man-Hee, um líder carismático
nascido em 1931, foi também um importante foco de propagação do
coronavírus. Este grupo religioso, dado que é muito fechado, foi mesmo acusado
de não ter comunicado prontamente essa situação às autoridades. No dia 2 de
Março de 2020, aquando duma conferência de Imprensa, Lee Man-Hee e outros
responsáveis do movimento religioso, responderam às questões dos jornalistas,
e Lee Man-Hee prostrou-se por terra, inclinando a sua face contra o chão,
diante das câmeras de televisão, e pediu perdão.
Outros casos que foram alvo de grande destaque foram os de um grande
templo budista em Hong-Kong, com milhares de fiéis, dois grandes encontros
de cristãos em Singapura, e encontros do movimento de despertar islâmico
Tablighi Jamaat, em Kuala Lumpur, em finais de Fevereiro de 2020, e em Nova
Deli em Março do mesmo ano. Os crentes sentiram-se mal físicamente depois
desses encontros religiosos, e muitos deles faleceram. Na Birmâmia o pastor
David Lah organizou também um grande encontro religioso em Yangon, no
início do mês de Abril de 2020, tendo então sido responsabilizado por uma das
maiores disseminações do coronavírus na Birmânia. Alguns tempos depois o
pastor e dezenas de discípulos seus também foram testados positivos do
coronavírus.
Em Israel o rabi Chaim Kanievsky, o líder mais venerado da comunidade
judaica ultraortodoxa, desobedeceu às autoridades de saúde e enquanto líder
mandou manter abertas as sinagogas e as escolas rabínicas, garantindo que o
Talmude e o Pentateuco seriam a sua proteção contra o coronavírus. O número
de infetados e de mortos disparou largamente em Israel, e a polícia e o exército
israelitas tiveram de cercar os seus bairros e encerrar os lugares religiosos.
Nos Estados Unidos da América houve também igrejas, principalmente
as evangélicas, que já depois do início da pandemia continuaram a realizar
celebrações religiosas, assim como também outras comunidades religiosas. Por
exemplo, um dos casos mais falados foi o das comunidades judaicas hassídicas
de Brooklyn e do norte de Nova York, que continuaram a realizar reuniões
públicas. Centenas de pessoas comemoraram um casamento religioso hassídico
em Brooklyn, e amontoaram-se na rua.
Na Europa um dos casos mais mediáticos foi o de um grande encontro
religioso realizado na cidade de Moulhouse, em França, durante uma semana de
oração, à semelhança de outras semanas de oração que são organizadas
anualmente pela grande igreja do movimento pentecostal, A Porta Aberta. De
17 a 21 de Fevereiro de 2020, apesar do coronavírus já se encontrar em
propagação no mundo, cerca de 2500 pessoas reuniram-se à porta fechada, pois
não havia ainda nenhuma restrição para os grandes ajuntamentos. Este grande
ajuntamento religioso foi considerado responsável pela propagação do
coronavírus através de toda a França e nos países vizinhos de onde vieram
muitos participantes. Muitas dezenas de crentes deste movimento religiosos
vieram a falecer.

A CONTESTAÇÃO E A RECUSA DO ENCERRAMENTO DOS TEMPLOS


E DE OUTROS LUGARES RELIGIOSOS

Durante a peste negra na Idade Média tudo fechou, mas os templos


continuaram abertos, assim como outros lugares sagrados, onde os crentes iam
em peregrinação, e onde se organizavam celebrações religiosas para pedir a
Deus que livrasse as pessoas da peste negra. Conforme afirma o historiador
Georges Duby, “já no ano de 997, atingidos por uma epidemia semelhante, o
mal dos ardentes, os povos apenas haviam encontrado um apoio, o dos poderes
sobrenaturais, encerrado nos relicários. (….) Encontrou-se na memória de
numerosos santos o remédio para esta aterradora peste; as multidões acorreram
sobretudo às igrejas de três santos confessores : Martinho de Tours, Ulrique de
Bayeux, enfim o nosso venerável pai Maîeul (de Cluny); e encontraram pelas
boas ações a cura desejada”. 18
Também em 1918, com a gripe espanhola, muitos templos continuaram
abertos. Em 2020, com a pandemia do coronavírus, devido à influência dos
meios de comunicação social, às campanhas governamentais, às recomendações
das autoridades sanitárias, à maior importância dada à ciência e aos cuidados de
saúde, e em alguns casos à menor atenção dada à religião, a maioria dos templos
e outros espaços religiosos no mundo, durante o primeiro confinamento, foram
totalmente encerrados. Muitos bispos e líderes religiosos de diversas religiões
dispensarem os fiéis da sua obrigação do culto religioso e mandaram encerrar os
templos, mas em alguns casos isso foi bastante contestado.
O fanatismo religioso pode assumir formas destrutivas (com os
muçulmanos bombistas suicidas, por exemplo), mas pode assumir formas ainda
mais destrutivas se for reprimido, como aconteceu na forte contestação ao
encerramento dos templos devido à pandemia. O termo fanatismo tem origem
religiosa, pois vem do termo latino fanaticus, que por sua vez provém do temo
latino fanum (“templo”), significando : pertencente ao templo. É como se a
crença religiosa tivesse a sua raiz no próprio templo, e dele dependesse, levando
ao radicalismo religioso, cuja característica principal é o fanatismo.
No Brasil, na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), ao contrário do
que afirmavam os cientistas de todo o mundo e as autoridades sanitárias, alguns
pastores, entre eles Silas Malafaia e Edir Macedo, garantiram não existir
nenhum risco de transmissão do coronavírus nos seus templos, durante as
pregações bíblicas, cantos de hinos religiosos e testemunhos de fé, e o próprio
presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, também ele muito crente em Deus, uniu-se

18
Raul Glaber, Hist., VI, 4-5, II, 7, II, 11. In : Georges Duby, O ano mil, Lisboa, Ed. 70, p. 110.
aos pastores religiosos defendendo a manutenção dos templos abertos, indo
portanto contra as ordens dos Governadores dos Estados brasileiros.
Nos Estados Unidos da América alguns líderes evangélicos também
negaram a existência ou a gravidade do coronavírus e mantiverem os templos
abertos. Por exemplo, um pregador da Flórida, Rodney Howard-Browne, foi
mesmo detido pela Polícia por levar pessoas de autocarro para a sua igreja,
insistindo que a celebração religiosa neutralizaria o coronavírus. Dois dias mais
tarde, o governador do Estado, Ron DeSantis, incluiu as atividades religiosas
entre “os serviços essenciais” que poderiam continuar abertos apesar do
encerramento de outros serviços. Em pelo menos dez estados norte americanos,
inicialmente, as celebrações religiosas continuaram a realizar-se.
Na religião judaica, os ultraortodoxos também contestaram muito o
encerramento dos templos. Por exemplo em Israel, Chaim Kanievsky, um dos
rabis ultraortodoxos mais respeitados, recusou-se a encerrar as sinagogas e os
seminários religiosos. Também em Israel, na fortaleza haredi de Bnei Brak, os
crentes insistiram em reunir-se para as orações, os casamentos e os funerais,
desafiando o encerramento das sinagogas e agravando as tensões entre os
haredim e o Estado israelita.
No que diz respeito aos países muçulmanos, o encerramento dos templos
foi também mal aceite, pois foi considerado uma ofensa aos crentes, e até
mesmo uma blasfémia contra Deus. Muitos crentes e alguns líderes religiosos,
através das redes sociais, incitaram à desobediência para com o encerramento
dos templos. Na Arábia Saudita, uma das maiores contestações aconteceu
devido ao encerramento da Kaaba, na Grande Mesquita na cidade de Meca, que
é considerada pelos devotos do Islão como o lugar mais sagrado da religião
islâmica. Os pregadores islâmicos recordaram que depois do profeta Maomé até
aos nossos dias nunca a Kaaba tinha sido sujeita a uma interdição de acesso aos
muçulmanos, e consideraram esse encerramento como uma infâmia. No Irão,
um dos primeiros países do mundo que foram atingidos pelo coronavírus, as
autoridades religiosas criticaram também o poder político, devido à sua decisão
de suspender as peregrinações aos lugares sagrados, de que um dos maiores
exemplos foi o da cidade sagrada de Qom, suspensão essa que foi criticada como
demasiado rigorosa. Ainda no Irão, fiéis xiitas lamberam um símbolos sagrado
numa mesquita de Fatima Masumeh, na localidade de Quom, e lamberam
também o portão de entrada dessa mesquita, defendendo através desse gesto
que o coronavírus não atingia as mesquitas xiitas.
Na religião hindu, na Índia, na cidade de Ayodhhya, que é considerado o
lugar de nascimento de Rama, um dos avatares do deus Vishnu, e que portanto
é um lugar muito importante do ponto de vista religioso, as autoridades
indianas tentaram evitar as celebrações religiosas a esse deus hindu, mas houve
muitas resistências por parte dos fiéis, que só muito lentamente acataram as
restrições impostas pelas autoridades.
Houve mesmo alguns casos em que não foram apenas os crentes e os
líderes religiosos que contestaram o encerramento dos templos, mas também os
próprios políticos. Assim, além do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, por
exemplo na Tanzânia, apesar da limitação de ajuntamentos sociais, o presidente
John Magufuli exortou os crentes a visitarem as igrejas e as mesquitas, para
expulsarem o coronavírus através da oração.
Os crentes, os políticos e os grupos religiosos, contestatários e
desobedientes ao encerramento dos templos e de outros lugares religiosos,
consideraram esse encerramento como um radicalismo das autoridades
sanitárias, e aproveitaram para pôr em questão a supremacia do Estado sobre a
religião em tempo de crise, contestando a supressão das celebrações, apesar
desta ser temporária, como se a instituição eclesial pudesse situar-se acima das
leis e das autoridades, não recebendo ordens de ninguém. Alguns aproveitaram
para fazer política, contestando os Governos e as suas ideologias políticas,
usando como pretexto o encerramento dos templos.
Houve também abusos de poder por parte das forças policiais, que
irromperam pelos templos adentro, em plenas celebrações, e mandaram-nas
parar repentinamente, apesar de em alguns países, como em França, onde isso
também aconteceu, a polícia estar proibida de entrar, sem ser em casos de
terrorismo. Alguns dos contestatários acusaram os Governos e as forças
policiais de radicalismo, devido à atuação violenta das forças policiais. No
entanto, o radicalismo também existiu em grupos religiosos mais fanáticos,
principalmente os evangélicos ultraconservadores e os radicais islâmicos, que
se recusavam radicalmente a encerrar os templos
A igreja católica acatou com maior naturalidade o encerramento dos
templos, e Portugal foi um dos melhores exemplos, pois a Conferência
Episcopal Portuguesa decidiu suspender as celebrações presenciais, sendo
incentivada como alternativa a assistência às celebrações religiosas através da
Internet e da Televisão. No dia 13 de Março de 2020 a Conferência Episcopal
Portuguesa emitiu um comunicado para o encerramento dos templos, tendo
feito isso mesmo antes da declaração do estado de emergência. No dia 13 de
Novembro de 2020, em período de novo estado de emergência, a Conferência
Episcopal Portuguesa voltou a emitir um comunicado, apelando a todos os fiéis
que respeitassem as normas das entidades sanitárias. Nesse comunicado a
Conferência Episcopal Portuguesa apresentou uma lista de múltiplas formas,
alternativas, para viver a celebração eucarística.
No entanto, acabaram por surgir também algumas contestações dentro
da Igreja católica, em relação às restrições impostas às celebrações religiosas.
Em Portugal um dos exemplos mais polémicos surgiu a propósito da
contestação à manifestação do 1º. de Maio de 2020, organizada pela CGTP em
Lisboa. Vários sacerdotes demonstraram publicamente o seu desagrado,
durante a celebração da missa, e através das redes sociais, para com a
comemoração do 1º. de Maio. Na sua grande maioria a crítica dos sacerdotes
tinha a ver com o facto da celebração do Dia do Trabalhador ter sido autorizada
e as cerimónias religiosas permanecerem proibidas. Por exemplo, entre os
líderes religiosos católicos, D. Nuno Almeida, bispo auxiliar da Arquidiocese de
Braga, partilhou no Facebook um texto da autoria do cónego João Aguiar. Nesse
texto, o cónego afirmou que as medidas adotadas pela Igreja Católica foram
levadas a cabo com “grande sofrimento interior”, pois segundo o cónego
“qualquer domingo não é, para o católico, menos que o 25 de abril ou o 1.º de
Maio para o normal cidadão”. Vejamos mais em pormenor as justificações das
contestações, no capítulo que se segue.

CAUSAS DA CONTESTAÇÃO E DA RECUSA DO ENCERRAMENTO


DOS TEMPLOS E DE OUTROS LUGARES RELIGIOSOS

Na Bíblia Sagrada, Jesus Cristo diz o seguinte : “E, quando orardes, não
sejais como os hipócritas, pois que apreciam orar em pé nas sinagogas e nas
esquinas das ruas, para serem admirados pelos outros. Com toda a certeza vos
afirmo que eles já receberam o seu galardão. Tu, porém, quando orares, vai
para o teu quarto e, após ter fechado a porta, ora a Teu Pai em segredo; e Teu
Pai, que vê num lugar oculto, te recompensará” (Mat., 6, 5-6).
No entanto, não é isso o que acontece com a grande maioria dos crentes,
pois preferem rezar dentro dos templos, e praticam muito a sua crença religiosa
única ou quase exclusivamente dentro dos templos. Porque será que isso
acontece?
O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) foi o grande estudioso
dos fenómenos sociais, e mostrou-nos que mesmo os sentimentos ditos pessoais
têm um significado social, e com consequências inevitáveis no espaço público.
Este autor prestou uma atenção especial à religião. Segundo Durkheim, é
próprio da religião estabelecer uma força externa, separada, impessoal,
prescritiva e vinculativa, que não é senão a transfiguração da sociedade à qual
pertencem originariamente essas qualificações. A lei divina é uma reprodução
da lei social, o seu reforço e a afirmação da autoridade dessa mesma lei social, é
da própria essência da sociedade que deriva a religião. Para Durkheim a religião
é o fato social fundamental, fonte de todos os outros, é na própria religião que
reside a moralidade da sociedade, e por outro lado, é nas necessidades da
sociedade que se cria a religião. Este autor resume estas suas ideias através da
seguinte forma:
"A conclusão geral do livro que se vai ler é que religião é uma coisa
eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas
que exprimem realidades coletivas; os rituais são maneiras de agir que se
originam dentro de grupos organizados e que são destinadas a suscitar, a
manter ou a refazer determinados estados mentais desses grupos".19
A religião é inseparável dos templos e de outros lugares religiosos, como
este autor mostra também neste seu livro. Não se pode dizer que um pessoa
pode praticar a sua religião somente se a praticar em sua casa, pois a prática
religiosa é muito dependente das instituições, e para além dos ajuntamentos dos
crentes dentro dos templos para certas celebrações (missas, por exemplo), há
ainda uma série de cerimónias religiosas públicas (procissões na rua, por
exemplo), mesmo nas religiões menos numerosas, que mostram bem por um
lado o seu caráter institucional e por outro lado a sua ligação ao espaço público.

19
Émile Durkheim, Les formes élémentaires de la vie religieuse, Paris, Ed. CNRS, 2007, p. 48.
As coisas que se devem proteger como sendo um assunto da vida privada, como
por exemplo as convicções religiosas, não são tão privadas quanto isso, pois são
afinal um fenómeno social que está bastante ligado ao espaço público dos
templos. A sua visibilidade é por vezes intensa, e está presente no dia a dia dos
indivíduos, mesmo indiretamente, no caso dos não crentes, como por exemplo
as já referidas procissões religiosas, em plena rua.
A contestação e a recusa do encerramento dos templos teve também a ver
com a desconfiança para com as intenções dos Governos e das instituições,
políticas ou científicas. Os Governos e as instituições foram suspeitos de
encontrar na pandemia um pretexto para conter ou proibir a expressão pública
de sentimentos religiosos, e de limitar o direito à liberdade religiosa. As
medidas tomadas contra a pandemia, pelo menos nas atividades religiosas, por
vezes foram interpretadas como sendo um instrumento ao serviço da
secularização, e como tendo sido realizadas mais por razões políticas do que
sanitárias. Em alguns casos os crentes e os líderes religiosos encararam mesmo
o encerramento dos templos como uma forma de perseguição religiosa, e como
um atentado contra o direito à liberdade religiosa, pois enquanto alguns
edifícios públicos continuaram abertos, os templos foram encerrados.
Mas mais do que a preocupação com o direito à liberdade religiosa, ou
com as razões políticas, o carater social das religiões foi o pano de fundo causal
da contestação e da recusa do encerramento dos templos. Um dos motivos mais
importantes que estiveram subjacentes à contestação e à recusa de
encerramento dos templos é a socialização que a frequência dos templos
proporciona, pois muitos indivíduos encontram neles formas de convívio,
nomeadamente no final das celebrações. Estas são encontros em que os crentes
necessitam também de se verem uns aos outros e de conversarem, e alguns
participam em atividades sociais ligadas à igreja (grupos de partilha e discussão
da fé, cursos bíblicos, grupos de escuteiros, o envolvimento em obras sociais da
Igreja, a participação em grupos corais, a frequência da catequese, etc.).
Encontrar-se com outras pessoas, na missa, noutras celebrações religiosas e nas
atividades sociais da igreja, permite aos crentes encorajarem-se mutuamente. A
integração no grupo religioso e nessas atividades faz com que as pessoas se
sintam menos sós e reforça o sentimento de pertença social, e tudo isso foi
interrompido durante as semanas de confinamento.
Outra das causas da contestação e da recusa de encerramento dos
templos e outros lugares religiosos é o consolo espiritual que a frequência das
celebrações religiosas proporciona aos crentes. A religião é promotora de
suporte emocional, espiritual e psicológico para muitas pessoas, por isso para
muitas foi duro e inaceitável o encerramento dos templos, principalmente numa
época de sofrimento psicológico como o da pandemia, em que muitas pessoas
sentiam mais necessidade de recorrerem a Deus. Para os crentes a religião é
importante nas suas vidas, para alguns é mesmo bastante importante, e o
envolvimento nas celebrações religiosas proporciona-lhes experiências positivas
e enriquecedoras. Para os frequentadores habituais das celebrações religiosas
estas ajuda-os a enfrentarem muitos problemas, e em alguns casos a
recuperarem da doença física e psicológica. Existe mesmo uma relação entre o
nível de envolvimento religioso e a saúde, pois em muitos casos existe uma
melhoria do bem estar, e uma diminuição da ansiedade e da depressão. A oração
individual mas também coletiva, neste caso as celebrações religiosas nos
templos e noutros lugares religiosos, dão a muitos indivíduos grande conforto
espiritual, por isso muitos não acataram o encerramento dos templos religiosos.
Alguns continuaram a mantê-los abertos e a frequentá-los, embora depois
tivessem de os encerrar, enquanto outros os frequentaram clandestinamente.
Oficialmente os templos estavam encerrados, mas houve alguns crentes,
nomeadamente os de religiões minoritárias (por exemplo as Testemunhas de
Jeová) que continuaram discretamente a frequentá-los, deixando a porta
principal encerrada mas entrando por outras portas, ou entrando pela porta
principal e depois voltando a fechá-la.
Outra causa da contestação foi a crença de alguns indivíduos de que
continuarem a reunir-se dentro dos templos, apesar das proibições, era um teste
para a sua fé. Implicitamente ou explicitamente, aqueles que se continuaram a
reunir nos templos, apesar de tudo, estavam convencidos de que estavam a
demonstrar a sua força e a sua firmeza em relação a outros crentes que
consideravam fracos, tímidos ou mais preocupados com outros compromissos
que viam como mais importantes. Essa razão para querer continuar a manter os
templos abertos e a frequentá-los esteve também ligada à crença de que Deus
tem o controlo de tudo, que o nosso destino não está nas nossas mãos, e que
devemos entregar tudo nas mãos de Deus. A crença de que a fé pode proteger
do coronavírus ou que o grupo religioso tem as ferramentas espirituais para
prevenir e curá-lo se necessário, foi um dos fatores para que alguns líderes
religiosos tivessem continuado com os templos abertos, e que outros tivessem
contestado o seu encerramento. Pareceu estranho a muitos, e em alguns casos
contraditório, o facto dos templos habitualmente abrirem precisamente para
atos curativos, como por exemplo na Igreja Universal do Reino de Deus, e
terem fechado devido ao coronavírus, que portanto os pastores não podiam
curar.
Há também a salientar, em alguns casos, os fatores económicos que estão
por trás das recusas em encerrar os templos religiosos, pois foi como encerrar
uma empresa, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e de
algumas igrejas evangélicas, que obtêm muito dinheiro nos peditórios efetuados
durante as celebrações religiosas. Alguns pastores e outros líderes religiosos
viram-se privados dessas receitas, e algumas igrejas ficaram sem recursos para
pagar despesas de manutenção, que vinham das doações dos fiéis durante as
celebrações religiosas, e foi também por esse motivo que contestaram o
encerramento dos templos.
Outro dos motivos foi o do dever de ir à missa. Em algumas religiões não
existe a obrigatoriedade de ir à eucaristia dominical, como existe na religião
católica. Apesar de na religião católica ter havido pouca contestação e recusa do
encerramento dos templos, em comparação com o que sucedeu na religião
muçulmana e nas religiões evangélicas de alguns países, como por exemplo no
Brasil, alguns católicos contestaram, com base nos documentos da Igreja. Na
religião católica todo o fiel praticante tem a obrigação de assistir à missa
dominical com base no terceiro mandamento da Lei de Deus: “Guardar
domingos e festas de guarda“, que se encontra nos Dez Mandamentos do livro
do Êxodo, 20, 3-17, na Bíblia, assim como no livro do Deuteronómio, 5, 7-21. O
Catecismo da Igreja Católica, nos artigos 2177-2182, fornece instruções precisas
sobre os domingos e festas de guarda, falando da obrigatoriedade dos católicos
irem à missa aos domingos e nas festas de guarda. Por exemplo, o artigo 2181
diz o seguinte : “A Eucaristia dominical fundamenta e sanciona toda a prática
cristã. É por isso que os fiéis têm obrigação de participar na Eucaristia nos dias
de preceito, a menos que estejam justificados, por motivo sério (por exemplo,
doença, obrigação de cuidar de crianças de peito) ou dispensados pelo seu
pastor. Os que deliberadamente faltam a esta obrigação cometem um pecado
grave”. O Código de Direito Canónico, no cânone 1247, diz também o seguinte :
“No domingo e nos outros dias festivos de preceito os fiéis têm obrigação de
participar na Missa”. Essa é portanto uma razão pela qual muitos católicos
sentem ser seu dever irem à missa todos os domingos, e devido à qual alguns
contestaram o encerramento dos templos.

O RECURSO A CELEBRAÇÕES RELIGIOSAS ALTERNATIVAS

Ao contrário do que aconteceu com outras epidemias ao longo da


História, no século XXI , com a epidemia do coronavírus, os crentes em Deus
dispuseram de outras alternativas para as celebrações religiosas. As igrejas
oficialmente instituídas, assim como outras comunidades religiosas, cancelaram
o culto público nos templos e recomendaram aos seus fiéis que seguissem o
culto na Internet e na Televisão. Na Suíça e na Alemanha, por exemplo, o site da
"Igreja em casa" continha uma lista com dezenas de oportunidades para assistir
a um serviço religioso online (evangélico, protestante e católico).
Houve então celebrações de todo o tipo : por vídeo-conferência, de
maneira síncrona e interativa. Recriou-se a comunidade paroquial através de
fotografias, que os fiéis enviavam e eram postas on-line, os participantes
reagiam às celebrações e às prédicas dos padres e pastores através de
mensagens instantâneas, com frases e likes, para partilharem as suas alegrias e
as suas tristezas, as suas esperanças e os seus medos, os seus acordos e
desacordos, e em alguns casos fizeram pedidos de oração.
As Testemunhas de Jeová, que são um grupo religioso com uma intensa
prática intensiva presencial, também adaptaram a sua vida religiosa às novas
circunstâncias. Renunciaram à pregação de porta a porta e as visitas presencias
a pessoas que pretendiam recrutar para a sua religião, ou a pessoas em fase de
esclarecimentos religiosos. Em vez disso os crentes das Testemunhas de Jeová
foram incentivados pela sua organização religiosa a transmitirem a sua
mensagem através de outros meios, por exemplo por telefone ou escrevendo
cartas a indivíduos com quem já tinham contacto ou que davam sinais de
interesse pela sua religião. As Testemunhas de Jeová ficaram nas suas casas
particulares, utilizando aplicações como o Zoom para encontros religiosos à
distância, e chegaram mesmo a vestir-se rigorosamente, os homens de fato e
gravata, e as mulheres trajando os seus melhores vestidos, e com o cabelo
arranjado, como se estivessem presencialmente no interior dos templos, a Sala
do Reino, como as Testemunhas de Jeová lhes chamam. Até mesmo o
Memorial, uma cerimónia anual importante das Testemunhas de Jeová, foi
celebrada através da Internet para os grupos locais.
Na religião católica houve várias formas muito imaginativas de contornar
o problema, como por exemplo nos Estados Unidos da América, com
celebrações religiosas num modelo drive-in, com o padre em plena rua ou numa
praça, e as pessoas também na rua ou na praça, mas nas varandas das casas, ou
dentro de carros, a assistirem individualmente ou com a suas famílias, dado que
permanecendo nas varandas ou dentro dos carros não podiam infetar nem
serem infetadas pelo vírus. Houve também padres católicos a ouvirem
confissões e a darem a absolvição ao ar livre, guardando uma distância de um
metro e meio, e por vezes hove também confissões em que os crentes
permaneciam dentro dos seus carros, e o sacerdote ficavam também dentro de
um carro, apenas com um vidro entreaberto.
Houve trasmissões da missa feitas a partir dos templos católicos, em que
o sacerdote se encontrava sózinho lá dentro, apenas com uma câmara de filmar
virada para si, missa essa que era transmitida por exemplo através do Facebook.
Alguns padres optaram por celebrar a missa em ruas e jardins, com os
paroquianos a assistirem através da janela e das varandas das suas casas.
Outros padres optaram por celebrar missa dentro das suas casas particulares, e
transmiti-las pela Internet, fazendo-se acompanhar de cantores e músicos que
em simultâneo mas à distância, também dentro das suas próprias casas, íam
alternando com as palavras do padre, entoando ou tocando músicas religiosas, e
houve também casos em que o grupo coral foi a sua própria família (a família
dos padres da religião ortodoxa, pois estes podem constituir família).
Muitos fiéis seguiam nas suas casas estas celebrações, como se
estivessem dentro dos templos, ajoelhando-se quando tinham de se ajoelhar,
pondo-se de pé quando tinham de se pôr, e sentando-se quando tinham que se
sentar. Mesmo sem a presença física, reproduzia-se tanto quanto possível as
condições e o ambiente das missas, às quais centenas de pessoas assistiam,
como se estivessem dentro dos templos. Algumas celebrações eram tranmitidas
em direto, enquanto outras eram gravadas e transmitidas mais tarde, para
evitar problemas técnicos que entretanto pudessem surgir durante a gravação e
puderem ser posteriormente solucionados, ou ou as filmagens serem repetidas.
Para as comunidades evangélicas foi mais natural fazerem estes
encontros religiosos através da Internet, pois as religiões evangélicas não
sacralisam os seus locais de culto, e já utilizavam outros locais em ser os
templos, como por exemplo uma sala de conferências, um salão de festas, uma
garagem, etc., para se reunirem. Nos templos das igrejas evangélicas
(protestantes, por exemplo) não existem altares, sacrário, etc., e não existe
também a consagração da hóstia, como nas celebrações dos católicos, e foi-lhes
portanto mais fácil fazerem celebrações nas suas próprias casas. Nas religiões
evangélicas não existe a exigência de um espaço específico, pois não existe a
diferença entre espaço sagrado e espaço não sagrado, o que conta é a própria
celebração, que consiste geralmente na pregação da palavra e na oração, e assim
como anteriormente já se podia realizar uma celebração religiosa em qualquer
espaço, com o confinamento causado pela pandemia do coronavírus também o
puderam fazer.
No caso das religiões em que existe uma tradição litúrgica,
nomeadamente a religião católica e a religião ortodoxa, os fiéis estão habituados
a celebrar o culto religioso em espaços muito específicos, em espaços
consagrados, benzidos, alguns deles com uma longa tradição histórica,
nomeadamente em edificios antigos, com relíquias de santos, água benta, velas
a arder, incensos, etc., que para os crentes são um ambiente propício para
inspirar as suas celebrações, por isso foi mais difícil adaptarem-se ao novo tipo
de celebrações, transmitidas através da Internet e da Televisão. No entanto,
antes da pandemia já existiam missas transmitidas através da televisão, e alguns
fiéis já estavam habituados a assistirem à missa através da televisão, devido a
dificuldades de deslocação, a doença, ou ao facto da igreja ficar muito longe das
suas casas, e não terem meios de transporte. A possibilidade de aceder às
pregações e às celebrações litúrgicas através de meios tecnológicos à distância,
foi geralmente compreendida e bem aceite, pois permitia manter a distância
física, mas por outro lado foi também mal aceite e contestada por muitas
pessoas, como veremos de seguida.
A CRÍTICA ÀS CELEBRAÇÕES RELIGIOSAS ALTERNATIVAS

Se por um lado o encerramento dos templos e de outros lugares religiosos


originou contestações e recusas, e dado que a pandemia do coronavírus originou
experiências de diferentes modalidades de celebrações religiosa através da
Internet, da televisão e da rádio, umas nacionais e outras locais, originou
também reflexões, questionamentos e críticas em torno das práticas religiosas
ligadas às novas tecnologias.
As celebrações religiosas alternativas, nomeadamente as realizadas à
distância, transmitidas pela televisão e pela Internet, fizeram muitos crentes
terem maior consciência da importância das celebrações presenciais, pois essas
celebrações estão muito ligadas a perceções sensoriais, olhares, toques (por
exemplo o abraço da paz, ou um aperto de mão, durante a missa), e exprime-se
através de palavras vivas, de cantos presenciais (em que as pessoas se ouçam
umas às outras a cantar), e imagens presenciais tais como a presença real de
esculturas religiosas nos altares, a presença da hóstia consagrada não através de
um écran mas ali mesmo junto dos crentes, receber a hóstia dentro da boca,
assim como posturas físicas (por exemplo, vénias diante do sacrário), mergulhar
a mão na água benta, benzer-se à entrada dos tempos, os odores próprios das
igrejas (o incenso e o cheiro das velas a arder), etc.
A mensagem religiosa não passa apenas pelo texto, se não bastaria ler a
Bíblia, ou gravar a pregação dos líderes religiosos e vê-la e ouvi-la em casa. A
experiência religiosa é uma experiência de comunidade, e os rituais, como por
exemplo a missa, são praticados em conjunto e expressos presencialmente. A
dimensão emocional da religiosidade manifesta-se através de encontros em
massa. Além disso, estar com outras pessoas ajuda-as a encorajarem-se
mutuamente, a integração social numa comunidade religiosa reforça a pertença
e a prática da religião, por isso as celebrações religiosas realizadas à distância
foram por vezes criticadas e mal recebidas. Muitos crentes sentiram grande
necessidade de celebrações presenciais, por isso rejeitaram as celebrações
religiosas à distância, e desejaram intensamente o regresso às celebrações
vividas dentro dos templos.
Alguns recusaram-se mesmo a ligar a televisão, a rádio ou a Internet, a
fim de assistirem à liturgia, e alguns consideraram-na uma banalização e uma
espécie de impiedade para com a sacralidade das celebrações religiosas. Que as
pessoas ficassem em suas casas e rezassem, era uma coisa, mas outra coisa era a
liturgia, nomeadamente a missa, a missa. Não existem sacramentos na Internet,
pois a realidade virtual não pode substituir a real presença de Cristo no altar, na
qual os católicos acreditam. Na religião católica a eucaristia tem um significado
sagrado, pois não é apenas um encontro de oração como nas religiões
evangélicas, nas Testemunhas de Jeová, ou na religião muçulmana. No
catolicismo a missa faz do pão e do vinho o «corpo» e o «sangue» de Cristo,
numa transubstanciação realizada pelo sacerdote, que o crente está a viver
presencialmente, e cujo resultado, isto é, a hóstia e o vinho consagrados, não se
pode ingerir numa missa à distância.
Para muitos crentes que contestaram as formas alternativas de
celebração religiosa, não se participa numa celebração religiosa pela televisão,
pela rádio ou pela Internet, da mesma maneira que se participa físicamente, se
não os que acompanham as celebrações através de meios como a televisão,
tornam-se meros espetadores. Por outro lado, segundo os críticos das
celebrações à distância, corre-se o risco das missas remotas se tornarem na
única característica da fé partilhada pelos católicos, esquecendo-se a dimensão
comunitária, isto é, que a missa é algo celebrado em comunidade, não o ato em
si, e defenderam portanto que uma participação virtual na missa não deveria ser
considerada como idêntica à participação física. Este problema põe-se também
no caso dos sacramentos como o batismo e o casamento. No caso da confissão,
esta não pode ser realizada à distância, pois a confissão precisa da benção final
pelo sacerdote da pessoa que está a ser confessada, portanto precisa de ser
frente a frente, a não ser que o sacerdote benzesse o vidro da câmara do
computador ou da câmara da televisão, mas isso teologicamente não é válido.
 
DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA OU
DIREITO À SAÚDE ?

CONFLITOS ENTRE O DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA E O


DIREITO À SAÚDE

A declaração sobre os direitos, na independência dos Estados Unidos da


América (1776), e a declaração francesa sobre os direitos do Homem e do
cidadão (1789) reconhecem quatro direitos fundamentais : liberdade,
propriedade, segurança e resistência à opressão. O preâmbulo da declaração da
independência menciona por sua vez o direito à vida e o direito à felicidade. Há
um direito que é comum a ambas as declarações : o direito à liberdade. Trata-se
de uma liberdade individual e não coletiva, baseada na noção agostiniana do
livre arbítrio. Muitas pessoas lutaram e lutam pelo direito à liberdade, pondo
em risco a sua própria saúde e a sua vida, defendendo grandes causas, através
de revoltas populares, de greves da fome, do martírio, etc. Para essas pessoas o
direito à liberdade, incluindo o direito à liberdade religiosa, estava acima de
qualquer outra coisa, incluindo o seu direito à saúde e à vida.
No entanto, geralmente põe-se o direito à saúde e à vida acima do direito
à liberdade religiosa, nomeadamente quando o direito à liberdade religiosa
colide com o direito à saúde e à vida dos outros indivíduos. Com a pandemia do
coronavírus verificou-se a perda da liberdade individual, como por exemplo a
liberdade de circulação, em nome da saúde de todos. O direito à saúde e à vida
ficou acima de outros direitos, e até mesmo os indivíduos que punham em risco
a sua saúde mas não punham em risco a saúde dos outros indivíduos, foram
solicitados a preservar a sua saúde. As liberdades individuais foram suspensas
em nome do interesse geral, mas isso foi algo que surpreendeu e foi contestado,
dado que vivemos numa época em que se dá grande valor à liberdade individual,
e se contesta cada vez mais a interferência da esfera pública. Um dos melhores
exemplos é o da diminuição e por vezes a suspensão do direito à privacidade, em
nome do interesse público, através da vigilância a que nos tempos de hoje todos
estamos sujeitos, não apenas da parte do Estado, como também das instituições
privadas, das empresas, das câmaras municipais, etc.
A suspensão do direito à liberdade deu-se também no direito à liberdade
religiosa, e isso foi muito contestado a propósito das restrições devido ao
coronavírus. Não se suspendeu só a liberdade religiosa, suspenderam-se
também outras liberdades, mas a suspensão da liberdade religiosa foi a mais
contestada. Temos portanto aqui um conflito entre o direito à liberdade
religiosa e o direito à saúde. Mas este conflito já existia, como por exemplo
entre o direito à liberdade religiosa das Testemunhas de Jeová (que recusam as
transfusões de sangue) e o direito à saúde. Quando são pessoas adultas, o
problema não é grave, pois é uma escolha individual, mas isso não acontece
quando se trata dos filhos menores dos membros das Testemunhas de Jeová.
Em alguns países, como por exemplo em África, a religião é determinante na
decisão a tomar, mas noutros países, como por exemplo na Europa, os pais são
obrigados a aceitar as transfusões de sangue dos seus filhos, quando estes são
menores e se encontram com graves problemas de saúde, mesmo que esses pais
sejam fervorosos membros das Testemunhas de Jeová (isto no caso de ser
conhecido publicamente o problema, pois há muitos casos clandestinos em que
o fanatismo religioso dos pais contorna as situações e se sobrepõe ao direito à
saúde dos filhos).
O conflito entre o direito à liberdade religiosa e o direito à saúde coloca-
se também por exemplo nas convicções religiosas de uma família que impedem
a interrupção voluntária da gravidez de uma adolescente que engravidou, e que
corre risco de saúde ou de vida se nascer a criança (por exemplo, essa mãe pode
vir a ter problemas de saúde ao longo da sua vida, ou pode falecer se nascer a
criança). Noutros casos, se a criança nascer, o individuo adulto a que esse
nascimento dará origem pode também vir a sofrer de graves problemas de
saúde. Entre o direito às convicções religiosas e o direito à saúde e à vida, em
alguns casos as convicções religiosas sobrepõem-se ao direito à saúde e à vida, e
noutros casos o direito à saúde e à vida sobrepõe-se às convicções religiosas.
Uma escolha ou outra (quando há possibilidade de escolha) dependem da
cultura e das leis de cada país, e da decisão da família ou da mulher.
A eutanásia, realizada de modo a pôr fim a uma vida gravemente sem
saúde e muito dolorosa para o paciente, e sem possibilidades de recuperação, e
portanto em nome do direito à saúde e a uma vida digna, mesmo certificada por
equipas médicas, e apesar desse indivíduo viver de maneira nenhuma sem
saúde, é também por vezes muito contestada, devido às convicções religiosas
daqueles que as contestam.
Richard Dawkins relata um exemplo da situação privilegiada de que
gozam as convicções religiosas, mesmo em casos que podem ser um risco para a
saúde: “A 26 de Fevereiro de 2006 o Supremo Tribunal dos Estados Unidos
decidiu que uma igreja do Novo México estaria isenta de uma lei a que todas as
outras pessoas têm de obedecer, contra o consumo de drogas alucinogénias. Os
fiéis membros do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal acreditam que
só podem compreender Deus se beberem chá de hoasca, que contém a droga
alucinogénia ilegal dimetiltriptamina. Repare-se que basta que eles acreditem
que a droga melhora a sua capacidade de compreensão. Não têm de apresentar
provas. Pelo contrário, há muitas provas de que a canábis diminui as náuseas e
o desconforto dos doentes de cancro submetidos a quimioterapia. Ainda assim,
e de novo em conformidade com a Constituição, o Supremo Tribunal decidiu em
2005 que todos os doentes que usam canábis com fins terapêuticos são
passíveis de instauração de uma ação judicial (mesmo na minoria dos estados
em que essa utilização concreta é legal). Como sempre, o trunfo é a religião”. 20
Christopher Hitchens dá também um exemplo importante sobre uma
prática exercida em nome do direito à liberdade religiosa que põe em risco a
saúde, e em que o direito à liberdade religiosa é privilegiado. Trata-se de um
ritual de circuncisão, exercido por uma comunidade religiosa judaica, os
hassídicos, que ordena que o circuncisador pegue no pénis do bebé com a mão,
corte à volta do prepúcio e complete o serviço colocando o pénis na boca,
chupando o prepúcio e cuspindo a pele amputada juntamente com uma boca
cheia de sangue e saliva.
Segundo Cristopher Hitchens, “na cidade de Nova Iorque, no ano de
2005, este ritual levado a cabo por um mohel de 77 anos provocou herpes
genital em diversos meninos e causou a morte de pelo menos dois deles. Em
circunstâncias normais, a divulgação destes factos teria levado o departamento
de saúde pública a permitir a prática e o presidente da Câmara a denunciá-la.
Porém, na capital do mundo moderno, na primeira década do século XXI, não
foi o que aconteceu. Ao invés disso, o presidente da Câmara Bloomberg ignorou
os relatórios efetuados por prestigiados médicos que alertavam para o perigo do
costume e deu instruções ao seu departamento de saúde para adiar qualquer
veredicto. Afirmou que era crucial garantir que não se infringia o livre exercício
religioso”. 21
A prática da circuncisão não existe apenas nos indivíduos do sexo
masculino, mas também, e sobretudo, nos do sexo feminino, praticada em mais
países e em mais grupos religiosos. Na África animista e muçulmana, muitas
meninas são sujeitas à circuncisão e à infibulação, que envolve o corte do
clitóris, muitas vezes com uma pedra aguçada, e depois a sutura da abertura
vaginal. Esta prática era e é permitida ou tolerada em alguns países, por ser
considerada sagrada e santificada, ficando acima dos cuidados com a saúde.
Para muitos europeus parece evidente que esta prática deve ser proibida, mas
para os povos desses países isso não é evidente, e mesmo na Europa há quem
aceite, em nome do direito à liberdade religiosa e do multiculturalismo, que os
20
Richard Dawkins, A desilusão de Deus, Lisboa, Ed. Casa das Letras, 2020, p. 48.
21
Christopher Hitchens, Deus não é grande, Lisboa, Ed. Dom Quixote, 2013, p. 67.
imigrantes desses países deviam poder praticar esses rituais. Há nestas
situações, de que demos importantes exemplos, a ideia de que a fé religiosa
deve ser protegida e que goza de prerrogativas de que não gozam outras áreas
dentro da sociedade, a propósito dos mais variados assuntos, e por vezes basta
alegar motivos religiosos para isentar as pessoas de cumprirem as suas
obrigações, em alguns casos pondo em risco o direito à saúde.

CONFLITOS ENTRE O DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA E O


DIREITO À PROTEÇÃO CONTRA O CORONAVÍRUS

Do ponto de vista dos direitos, a liberdade de pensamento implica


também o direito de professar publicamente ideias adotadas na consciência
individual, e sendo assim, não é exigido que o indivíduo se esconda, ou que
guarde para si mesmo ou para algumas pessoas íntimas as opiniões ou as
opções de ordem religiosa, filosófica ou política. Expressar a sua religião ou a
sua crença, é também poder ensiná-la publicamente, e portanto o direito à
liberdade religiosa refere-se também à possibilidade de levar aos outros a
mensagem religiosa, como por exemplo fazem as Testemunhas de Jeová. Na
medida em que estes contactos públicos não sejam impostos, e as pessoas que
os recebem os aceitem, são reconhecidos como legítimos. Há também a
salientar o direito à liberdade de reunião, incluindo a religiosa, que foi suspenso
com os confinamentos, devido à pandemia do coronavírus, pois as pessoas
deixaram de pode fazer celebrações dentro dos templos.
Uma das justificações mais invocadas na contestação ao encerramento
dos templos foi a da violação do direito à liberdade religiosa, pois muitos crentes
consideraram o encerramento dos templos como ofensivo, e eventualmente
discriminatório em comparação com outras medidas, e alguns líderes religiosos
apresentaram queixas junto dos Tribunais. Não podendo aqui relatar todos os
casos, damos o exemplo da França, país pioneiro das declarações dos Direitos
do Homem, que é um dos melhores exemplos da salvaguarda dos direitos, entre
eles o da liberdade religiosa.
Em França foram autorizadas apenas as atividades consideradas
"essenciais". Assim, as escolas, os transportes públicos, os supermercados, as
farmácias, permaneceram abertos. Os líderes religiosos foram autorizados a
celebrar nos locais de culto apenas determinadas atividades religiosas, em
detrimento de outras, ou seja, apenas casamentos e funerais, mas os cristão
ficaram proibidos de celebrar eucaristias e batismos, e os muçulmanos as
orações públicas de sexta feira. Ao fazê-lo, o Ministério do Interior Francês
estabeleceu uma lista das celebrações religiosas que considerava serem
essenciais e das que, segundo ele, não o eram. Muitos católicos e muçulmanos
contestaram essa atitude, perguntando : porque é que um casamento é mais
importante do que um batismo e uma eucaristia, ou uma oração de sexta-feira?
O bispo de Tournai fez foi um dos que contestou esta medida tomada pelo
Governo, ao publicar sobre isso um artigo no jornal de maior circulação belga,
La Belgique Libre, no dia 25 de Maio.
Em resposta a estas queixas, um acórdão do Conselho de Estado francês
(o equivalente ao Tribunal Constitucional em Portugal), em 18 de Maio de 2020
declarou desproporcionada a proibição total de celebrações religiosas durante o
período de confinamento, e ordenou que o Governo francês deveria limitar as
restrições à liberdade de culto ao estritamente necessário às exigências
sanitárias de combate ao coronavírus.
Mas as medidas de restrição ao culto religioso regressaram mais tarde ,
em relação às quais voltou a haver discordâncias, e em 3 de Novembro de 2020
a Conferência dos Bispos de França, um órgão que representa 120 bispos,
interpôs um recurso de tutela provisória junto do Conselho de Estado de
França, na segunda vaga da pandemia, referente ao novo confinamento, e as
restrições foram revistas e alteradas.
No segundo confinamento, em alguns países as medidas sanitárias
tiveram algumas exceções, entre elas o culto religioso, que foi uma situação nova
em comparação com o confinamento de Março e Abril de 2020. Por exemplo em
Portugal, durante o segundo confinamento, realizado em Janeiro e Fevereiro de
2021, fechou quase tudo (cafés, bares, restaurantes sem take away, ginásios,
teatros, cinemas, livrarias, Escolas, Universidades, etc.) e ficaram abertas
apenas as portas de acesso os “bens essenciais”. Entre os bens essenciais,
ficaram abertas também as igrejas, onde apesar de não haver missas, onde os
católicos continuaram a deslocar-se, embora em menor número Ora, no
conflito entre a religião e a saúde pública houve uma especial atenção para com
a religião, pois muitos outros edifícios semelhantes às igrejas, nomeadamente os
teatros e os cinemas, foram encerrados. Entre o direito à cultura e o direito à
religião, o Governo português proibiu totalmente o exercício de um direito e
privilegiou o outro (note-se que a não celebração de missas nas igrejas
portuguesas foi uma decisão tomada pela Conferência Episcopal Portuguesa, e
não pelo Governo).
As igrejas, conforme vimos no capítulo sobre o encerramento dos
templos, foram dos principais focos de propagação do coronavírus em muitos
países do mundo. Apesar do dever de preservar a saúde pública, e do dever de
igualdade de tratamento para com outros edifícios e eventos que encerraram,
houve uma cedência em relação ao direito à liberdade religiosa, que é praticada
apenas por alguns indivíduos, que acarretou riscos para a generalidade da
população, isto é, o direito à saúde de todos.
Outro exemplo importante do conflito entre o direito à liberdade religiosa
e o direito à saúde pública é o da oposição às vacinas (por motivos religiosos),
incluindo a vacina contra o coronavírus, ficando a saúde pública em risco por
vezes também devido à oposição às vacinas, de que falaremos especificamente
no capítulo seguinte.

A OPOSIÇÃO RELIGIOSA ÀS VACINAS

Apesar da Humanidade ter sido muito fustigada ao longo da História por


várias pestes, epidemias, e outras doenças infectocontagiosas, a Ciência não
estava ainda suficientemente desenvolvida para as conseguir travar ou curar.
Foi apenas nos finais do século XIX que aconteceram grandes progressos na
luta contra as doenças infectocontagiosas. Louis Pasteur foi o pioneiro da
Microbiologia, Robert Koch descobriu o bacio da tuberculose, e só cerca de
quarenta anos depois, com Fleming, seria inventada a penicilina.
No entanto, a descoberta de vacinas e a vacinação originou e continua a
originar hostilidades, algumas delas de natureza religiosa, devido ao facto de
certas comunidades religiosas, seitas e religiões se oporem à vacinação, não só
das crianças como também dos adultos. Em 2019, a Organização Mundial de
Saúde classificou os movimentos anti vacina como uma ameaça à saúde global, e
concluiu que a difusão de desinformação está contribuindo para a situação de
incertezas que rodeiam as vacinas, polarizando o debate (uns a favor e outros
contra), levando por vezes ao extremismo (o alarmismo e o negacionismo), tal
como sucedeu sobre o coronavírus.
A oposição religiosa às vacinas divide-se em várias justificações,
conforme veremos: as vacinas violam a proibição de matar; as vacinas violam
alguns preceitos alimentares religiosos; as vacinas interferem com a ordem
natural das coisas dispostas por Deus ; as vacinas contariam a punição divina
das pandemias; a vacinação é antinatural; as pessoas devem apanhar as
doenças, e não devem ser sujeitas a "agressões" de origem humana, pois as
próprias vacinas originam doenças, etc. Algumas razões não são apenas
religiosas, mas também políticas, mas mesmo quando não se trata de razões
religiosas há pais que usam a religião para obterem a permissão para não
vacinarem os seus filhos.
Algumas congregações religiosas evangélicas, e alguns membros das
Testemunhas de Jeová, defendem que os crentes devem confiar exclusivamente
em Deus, e que ser vacinado significa uma falta de fé na providência divina.
Segundo estas comunidades religiosas, será o próprio Deus, caso Deus julgue
necessário, a imunizar os seus fiéis.
Outro tipo de argumentos contra as vacinas é o da proibição de matar
qualquer ser vivo, até mesmo as bactérias e os vírus. A vacinação deveria,
portanto, ser considerada ilegal, pois implica uma ação violenta contra os vírus,
que por exemplo segundo o Jainismo, são considerados seres vivos. Seguindo-se
estas crenças religiosas, também não devia haver vacinas para o coronavírus.
A hostilidade religiosas à vacinas está também determinada pela  ideia de
que uma doença é uma punição divina, contra a qual não se devia ir contra. Para
muitos crentes e líderes religiosos há que respeitar o "plano de Deus", por isso
opõem-se à vacinação. Assim, Timothy Dwight, presidente da Universidade de
Yale e um dos teólogos mais respeitados dos Estados Unidos da América opôs-
se à vacina contra a varíola, considerando-a uma interferência no desígnio de
Deus. Apesar de tudo, os avanços da Medicina conseguiram afastar o medo da
varíola, e a mesma coisa veio a acontecer em relação à poliomielite.
Atualmente, nos Estados Unidos da América as pessoas podem opor-se
à vacinação, oposição essa com base no direito à liberdade religiosa, ou com
base em leis específicas que permitem uma isenção religiosa da obrigação de ser
vacinado. Por exemplo na comunidade religiosa dos Amish, desde sempre os
pais recusam dar a vacina aos seus filhos. Mas isso não acontece apenas com os
Amish. Os Estados Unidos da América criaram leis específicas que protegem o
direito à liberdade religiosa, e assim todos os estados, exceto o Mississipi, a
Califórnia a, a Virgínia Ocidental, o Maine, e Nova Iorque, permitem que os pais
se recusem a dar vacinas aos seus filhos, invocando motivos religiosos.  Estas
isenções colocam em risco a saúde não apenas do indivíduo não vacinado, mas
também da sociedade em geral, mas são permitidas em nome do “direito à
liberdade religiosa”.
Muitos cristãos evangélicos difundiram também mitos sobre a vacina
para o coronavírus. Muitos pastores fundamentalistas espalharam teorias
infundadas que incentivaram os fiéis a ignorarem os dados de saúde pública e as
informações dos especialistas sobre o coronavírus. Algumas justificações
extremistas incluem por exemplo a afirmação de que a vacina é a marca da besta
(alusão ao Diabo), ou que causará esterilização nas mulheres. Muitos
evangélicos fundamentalistas têm receio de que os líderes políticos tomem
decisões que eles consideram ser contra a vontade de Deus. Essa oposição
religiosa está ligada à rejeição das vacinas que desde há décadas ajudam a
erradicar várias doenças graves, como por exemplo o sarampo e poliomielite. A
suspeita entre os ultra conservadores cristãos em relação à vacina para o
coronavírus é o culminar de décadas de crescente desconfiança na Ciência e na
Medicina.
Na religião muçulmana houve e há também uma oposição às vacinas,
originada, em parte, por líderes religiosos que questionaram a segurança das
vacinas do sarampo e da rubéola, e instituíram uma fátua (um decreto religioso)
declarando a proibição da vacinação. Algumas vacinas contêm ingredientes de
origem animal, nomeadamente gelatina de porco, que é um ingrediente
utilizado para garantir a estabilidade das vacinas de forma a que se mantenham
seguras e eficazes durante o seu armazenamento e transporte. Ora, o consumo
do porco é proibido pela religião muçulmana. Assim, por exemplo em Setembro
de 2018, quando alguns funcionários do Ministério da Saúde da Indonésia, que
é um país muçulmano, se deslocaram à ilha de Celebes, durante uma campanha
de vacinação contra o sarampo e a rubéola, foram recebidos pelos nativos
armados com facas.
Em 2001, na Índia, os muçulmanos conservadores difundiram a notícia
de que a vacina contra a poliomielite era uma conspiração, e que quem a
tomasse seria atingido pela impotência e pela diarreia. Em 2005, no norte da
Nigéria, um grupo de figuras religiosas islâmicas emitiu também uma fátua, isto
é, uma norma religiosa, que declarava que a vacina da poliomielite era uma
conspiração dos Estados Unidos contra a religião muçulmana, e que a vacina se
destinava a esterilizar os crentes. O boicote fez com que o número de casos de
poliomielite aumentasse não só na Nigéria mas também nos países vizinhos. 
Nos anos 2000, no Paquistão  e no Afeganistão, alguns talibãs emitiram
também declarações em oposição à vacinação, considerando-a como um complô
americano para esterilizar os muçulmanos, e sequestraram, espancaram e
assassinaram funcionários da vacinação, e o chefe da campanha de vacinação do
Paquistão foi assassinado em 2007, ao regressar de uma reunião com um líder
religioso. 
As autoridades de saúde procuraram convencer os dirigentes religiosos
de que a vacinação pode erradicar algumas doenças, como é o caso da
poliomielite, que ainda existe em algumas partes do mundo por desconfiança
das autoridades religiosas islâmicas em países muito marcados pela influência
da religião, que encaram a vacina como uma forma de esterilizar os
muçulmanos. As autoridades sanitárias explicaram aos religiosos que não
querem pôr em causa Deus nem as crenças religiosas, e que as vacinas também
podem ser consideradas como estando no "plano de Deus", mas muitos crentes
não ficaram convencidos.
Este é um grande problema para as comunidades religiosas não apenas
muçulmanas mas também para os judeus ortodoxos, que também se recusam a
consumir carne de porco. Há uma divergência de opiniões entre os crentes e
líderes religiosos, em relação a consumir algo que contenha gelatina de porco,
mesmo que tenha passado por uma transformação química rigorosa, pois para
alguns muçulmanos e judeus fundamentalistas continua a ser um ingrediente
impuro (devido ao facto de conter uma substância do porco). Outros crentes
muçulmanos e judeus defendem que, apesar de tudo, as vacinas devem ser
permitidas, uma vez que a sua não administração pode provocar um “mal
maior”.
As farmacêuticas Pfizer, a Moderna e a AstraZeneca garantiram que as
suas vacinas contra a covid-19 não contêm produtos derivados do porco, mas
muitas outras farmacêuticas que abasteceram populações com grandes
percentagens de muçulmanos, como é o caso da Indonésia, encontraram
desconfiança por parte das autoridades religiosas e de muitos crentes em geral,
e muitos recusaram recebê-las, devido ao preconceito religioso contra o porco.
O emprego de tecido de fetos no desenvolvimento de vacinas também
originou alguma controvérsia no seio do catolicismo e de outras religiões.
Alguns dos meios utilizados nas vacinas, nomeadamente na vacina contra a
rubéola, são derivados de tecidos retirados de abortos terapêuticos realizados na
década de 1960, suscitando questões religiosas. A Cúria do Vaticano expressou
preocupação com a origem embrionária celular da vacina da rubéola,
declarando que os católicos têm "uma responsabilidade grave de usar vacinas
alternativas e fazer uma objeção de consciência em relação àqueles que têm
problemas morais." 22 O Vaticano concluiu que até que uma alternativa se torne
disponível, é aceitável que os católicos usem a vacina existente, declarando no
entanto : "Esta é uma escolha alternativa injusta, que deve ser eliminada o mais
rápido possível". 23
A controvérsia em torno das vacinas atingiu também a vacina contra o
coronavírus que foi desenvolvida na Universidade de Oxford, trazendo
implicações religiosas no caso desta ser a vacina adotada. A vacina que foi
testada na Universidade de Oxford usou elementos celulares originalmente
retiradas de um feto abortado na década de 1970. Embora a prática de usar
elementos celulares retiradas do feto seja geralmente aceita pela comunidade
científica como ética, isso não a liberta dos preconceitos religiosos contra essa
prática.
No entanto, a generalidade da Igreja católica aceita as vacinas,
considerando que elas também estão no plano de Deus. Embora houvesse e haja
polémicas em torno das vacinas contra o coronavírus, a Santa Sé quis esclarecer
a sua posição publicando uma nota em 29 de dezembro de 2020, na qual
estabeleceu em vinte pontos a sua posição sobre o uso de vacinas contra o
coronavírus. Este documento, escrito pela Comissão do Vaticano Covid-19 e pela

22
“Reflexões morais sobre vacinas preparadas a partir de células derivadas de fetos humanos abortados,
Medicina e Moral. Centro de Bioética, Universidade Católica do Sagrado Coração, 2005, p. 15.
23
Idem, ibidem.
Pontifícia Academia para a Vida, reafirmou "o papel essencial das vacinas na
derrota da pandemia, não apenas para a saúde individual, mas também para
proteger a saúde de todos".
Por seu turno o Papa Francisco criticou os que se opõem à vacinação,
dizendo que é uma “negação suicida”, e deu o seu próprio exemplo, fazendo-se
imediatamente vacinar contra o coronavírus. Esta sua atitude não foi uma
novidade em relação às vacinas, pois já alguns anos atrás, quando visitou o
México, o Papa Francisco tinha liderado uma campanha de vacinação contra a
poliomielite.
Sobre a vacina contra o corona vírus o Papa Francisco deu uma entrevista
à estação de televisão italiana Canale 5, transmitida no dia 9 de Janeiro de
2020, em que declarou : “Acredito que do ponto de vista ético, todos devemos
ser vacinados. É uma escolha ética, pois o que colocamos em risco é a nossa
saúde, a nossa vida, mas também a vida dos outros”. Todos os funcionários do
Vaticano foram vacinados contra o coronavírus, e além do Papa Francisco
também foi vacinado o Papa emérito Bento XVI.
No entanto permanecem as resistências religiosas contra as vacinas, no
seio de outras Igrejas cristãs. Por exemplo os seguidores da igreja  Christian
Science (“Cientistas Cristãos”) criada nos Estados Unidos em 1892, defendem
que todas as doenças devem ser curadas apenas com orações, e opõem-se
também às vacinas. Em alguns casos os membros desta Igreja gozam
claramente de um privilégio em nome do direito à liberdade religiosa, como por
exemplo na Austrália. Em 1 de janeiro de 2016, a Austrália introduziu uma
legislação que retirava cuidados infantis e benefícios assistenciais se os pais se
recusassem a vacinar os seus filhos. A Christian Science da Austrália foi
autorizada a recusar a vacinação por motivos religiosos, por isso não foi afetada
pelas novas regras do Governo Federal que retiravam os benefícios sociais aos
que boicotassem programas nacionais de vacinação.
A atitude desta comunidade religiosa remonta à década de 1870, quando
a Igreja Ciência Cristã - também conhecida como Igreja de Cristo Cientista -
foi fundada pela líder espiritual norte americana Mary Baker Eddy. Para esta
Igreja as questões de saúde são extremamente importantes, e ocupam um lugar
especial nas suas atividades religiosas. Além da Bíblia Sagrada, o principal texto
religioso desta igreja é um livro de Eddy, originalmente intitulado Ciência e
Saúde, que explora a ligação entre a Bíblia, principalmente os milagres de
Jesus, e os benefícios das orações para a cura, e por conseguinte também para
as doenças causadas por vírus. Mas será que as orações podem ser uma
alternativa às vacinas, e são eficazes contra o coronavírus ? é o que veremos
seguidamente.
O RECURSO ÀS ORAÇÕES
ORAÇÕES CONTRA O CORONAVÍRUS

Há diversos tipos de orações : de louvor, ação de graças, lamento, petição,


adoração, comunhão com Deus, etc. Quando a pandemia do coronavírus
apareceu, os muçulmanos do Estado Islâmico rezaram a Alá em agradecimento,
e pediram mais coronavírus. O grupo do Estado Islâmico disse, através dos seus
canais de comunicação, que o coronavírus era “a vingança de Alá contra os
infiéis” e pediu “mais tortura”. No entanto, não nos referimos aqui a este tipo de
orações, mas sim a outro tipo : as orações de petição. Dentro deste tipo de
orações, temos as seguintes : pedir a Deus para acabar com a pandemia; pedir a
Deus a cura depois de se ficar infetado; pedir a Deus para não se ficar infetado;
pedir a Deus força espiritual para conseguir enfrentar a ansiedade e a atmosfera
de medo causada pela pandemia.
Todas estas orações de petição aconteceram durante a pandemia, e foram
feitas por líderes religiosos, por crentes em particular, e até por líderes
políticos, que além disso as recomendaram vivamente. Em vários países, líderes
religiosos, padres, bispos e pastores, incluindo em igrejas cristãs independentes,
garantiram a capacidade de oração para "imunizar" contra o Covid-19. Assim,
por exemplo em Itália, que foi um dos países mas afetados pela pandemia do
coronavírus, um helicóptero trazendo no seu interior um crucifixo e a imagem
de Nossa Senhora de Fátima, sobrevoou em Março de 2020 as principais
cidades e regiões de Itália, em súplica a Deus para livrar a Itália do coronavírus.
Em Março de 2020, quando a pandemia alastrava em grande força por
toda a Itália, o Papa Francisco saiu do Vaticano para rezar pelo fim da pandemia
em Itália e em todo o mundo, rezando primeiro na Basílica da Santa Maria
Maior e depois na igreja de São Marcelo, diante da famosa imagem do Cristo
milagroso que no passado salvou a cidade de Roma da peste. A imagem de
Nossa Senhora, na referida Basílica, tinha sido levada em procissão pelo Papa
Gregório I em 593, para pedir o fim da peste, e em 1837 o Papa Gregório XVI
rezou junto dessa imagem a pedir o fim de uma epidemia de cólera.
Fazendo um trajeto na Via do Corso a pé, como uma espécie de
peregrinação, o Papa Francisco chegou à Igreja de São Marcello al Corso, onde
se encontra o Crucifixo milagroso que em 1522 foi levado em procissão pelos
bairros da cidade onde as pessoas rezavam pelo fim da grande peste em Roma.
Com a sua oração o Papa pediu a Deus o fim da pandemia que assolava a Itália e
o mundo, implorando a cura para os muitos doentes. O Papa também pediu a
Deus para proteger os agentes de saúde, médicos, enfermeiros e todos os que
naqueles dias com o seu trabalho garantiam o funcionamento dos cuidados
sanitários.
Este crucifixo passou a ser venerado como milagroso pelos habitantes de
Roma depois de ser a única imagem religiosa que ficou intacta depois de um
incêndio que destruiu completamente a igreja em 23 de maio de 1519. Menos de
três anos depois, a cidade de Roma foi devastada pela peste. A pedido dos fiéis,
a escultura de Cristo milagroso foi levada numa procissão do Convento dos
Servos de Maria, na Via del Corso, até à Praça de São Pedro, parando em todos
os bairros da cidade de Roma. Essa procissão durou 16 dias, de 4 a 20 de Agosto
de 1522. Quando o crucifixo regressou à Igreja de São Marcelo, segundo rezam
as crónicas, a peste desapareceu completamente da cidade. A partir daquela
data, a imagem de Cristo milagroso é levada em procissão até à basílica de São
Pedro em cada Ano Santo, isto é, de 50 em 50 anos. Atualmente, o crucifixo tem
gravado na parte de trás o nome de cada um dos Papas que conduziram essas
procissões. O último nome gravado é o do Papa João Paulo II, que abraçou o
crucifixo durante o “Dia do Perdão”, no âmbito do Jubileu de 2000.
Numa mensagem em vídeo transmitida também em Março de 2020,
durante a oração do terço organizada pelos bispos italianos e seguida pelos
católicos de todo o mundo, o Papa Francisco deixou um apelo para que “nesta
situação sem precedentes, na qual tudo parece vacilar, ajudemo-nos a
permanecer firmes no que realmente importa”. A mensagem terminou com
várias orações a São José, para que guardasse cada nação e os seus responsáveis
e para que reforçasse a inteligência dos cientistas “que buscam meios adequados
para a saúde e o bem-estar físico dos irmãos”, e que ajudasse “os voluntários,
enfermeiros e médicos e os que estão na vanguarda do tratamento dos doentes,
à custa da sua própria segurança”. O Papa pediu também : “que preserve os
idosos da solidão”, “que ninguém fique em desespero por abandono e
desânimo” e que São José implore a Deus, juntamente com a Virgem Mãe, “para
que liberte o mundo de toda a forma de pandemia”.
A pandemia do coronavírus uniu também os evangélicos italianos, que
criaram um “Dia Nacional de Oração”, contra o coronavírus, no último domingo
de Março de 2020. Pentecostais, reformados, batistas, congregacionistas,
wesleyanos, etc., reuniram-se juntos “aos pés do Senhor unidos pelos Espírito
Santo”, para os proteger do coronavírus, segundo Giacomo Ciccone, presidente
da Aliança Evangélica Italiana.
Nos Estados Unidos da América, que foi também um dos países mais
atingidos pelo coronavírus, o então presidente Donald Trump anunciou no dia
13 de Março de 2020 a criação do que chamou de “Dia Nacional de Oração”, que
foi celebrado no domingo, 15 de Março de 2020. Donald Trump fez essa
declaração no seu perfil oficial no Twitter. “É uma grande honra declarar o
domingo, 15 de Março, como dia nacional de oração. Somos um país que, ao
longo da nossa história, buscou a Deus proteção e força em tempos como esses.
(…) Não importa onde você esteja, encorajo você a se voltar para a oração num
ato de fé. Juntos, vamos facilmente prevalecer!”, declarou o presidente norte-
americano.
Também o pastor norte-americano Shawn Bolz, que profetizou o fim do
coronavírus,   ensinou uma fórmula de oração para que os cristãos de todo
mundo pudessem rezar: “Eu venho a Ti, Senhor – totalmente rendido e
vulnerável sobre o meu medo. Minha carga é muito pesada para mim quando
penso no coronavírus e preciso de você. Eu escolho levar Seu jugo de paz sobre
esta doença e sabedoria sobre meus ombros sobre como viver minha vida
durante esse surto e abraçar Seu descanso para minha alma. Sei que o meu
corpo é de carne onde o coronavírus me ameaça, mas não luto na carne. As
minhas armas são poderosas em Deus e eu tenho Jesus Cristo dentro de mim.
Tenho o poder de derrubar a fortaleza do coronavírus sobre a minha família e
escolho guerrear contra todos os pensamentos sobre esse vírus que atormentam
a minha mente.”
No Brasil o padre Emerson Rogerio sobrevoou a cidade de São Paulo com
um avião agrícola utilizado para pulverizar as lavouras, para espalhar água
benta contra o coronavírus. O padre vestiu os paramentos religiosos e
transportou também consigo uma custódia com a hóstia do Santíssimo
Sacramento, com a qual dava a benção às populações conforme o avião ía
sobrevoando a região, e ia pedindo a Deus proteção contra o coronavírus. “Peço
ao bom Deus que nos proteja, nos livre do mal, para que cada um tenha
consciência do que deve ser feito, pois juntos somos mais fortes. Não tenhamos
medo, mas prudência e vigilância. Que Deus nos abençoe e cuide das nossas
famílias”. 24
Ainda no Brasil, o presidente da República, Jair Bolsonaro, convocou as
principais igrejas evangélicas do país para um jejum nacional contra o
coronavírus, no dia 5 de Abril de 2020. Num vídeo divulgado por Jair Bolsonaro
nas suas redes sociais, o pastor e deputado federal Roberto Lucena afirmou que
o presidente tinha convocado “o exército de Cristo para a maior campanha de
jejum e oração já vista no país” e que “a igreja de Cristo na terra irá clamar e o
inferno irá explodir”.25
Em África alguns líderes religiosos e políticos apelaram também à oração
para pedir a Deus para acabar com o coronavírus, defenderam que bastava
alguém rezar com fervor para se proteger do coronavírus, puseram em causa a
gravidade da pandemia, e alguns mantiveram as celebrações religiosas. O
próprio presidente do Tribunal Supremo da África do Sul, o juíz Mogoeng,
lançou um apelo solene sobre a pandemia : “Dirijo-me a todos os que podem
rezar : a partir de hoje, considerai a oração como uma necessidade absoluta”.
Também em Portugal, na nota pastoral em que faz o ponto da situação
das celebrações da Páscoa de 2020, o arcebispo primaz de Braga exortou a
comunidade católica a incluir nas suas orações uma oração contra o
coronavírus:
"Senhor Jesus, Salvador do mundo, esperança que não conhece a
desilusão, tem piedade de nós e livra-nos do mal! A Ti imploramos a vitória
sobre o flagelo deste vírus que está a alastrar, a cura dos doentes, a proteção dos
que estão sãos, o auxílio para quem presta cuidados de saúde. Mostra-nos o Teu
Rosto de Misericórdia e salva-nos com o Teu grande amor. Tudo isto te pedimos
por intercessão de Maria, Tua e nossa Mãe, que fielmente nos acompanha! Tu
que vives e reinas pelos séculos dos séculos. Ámen!"

O NÃO ATENDIMENTO DE DEUS ÀS ORAÇÕES CONTRA O


CORONAVÍRUS
24
Reportagem relatada pelo jornal digital Isto é, de 26 de Março de 2020.
25
Notícia relatada on-line : “Bolsonaro faz chamado para jejum religioso neste domingo contra
coronavírus”. Link: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/bolsonaro-faz-chamado-para-
jejum-religioso-neste-domingo-contra-coronavirus.shtml>
Conforme os exemplos atrás apresentados, existe a noção de que as
orações de petição são eficazes para acabar com o coronavírus, ou para não se
ficar infetado, ou para se ficar “curado”. Efetivamente, muitos crentes religiosos
queriam ver-se livres do coronavírus, e pediram a Deus que alcancem esses seus
desejos. Ora, apesar da Bíblia dizer para se rezar, pois Deus, segundo a Bíblia,
atenderá às orações, e apesar do próprio Papa, bispos, padres, pastores e crentes
em geral terem rezado para Deus libertar a Humanidade do coronavírus e das
suas drásticas consequências, Deus não atendeu às suas orações. O silêncio de
Deus foi duro para muitos crentes, assim como para as suas famílias e amigos, e
desistiram de rezar, enquanto outros insistiram e continuaram a rezar, pedindo
a Deus que acabasse com a pandemia, ou que não os deixasse ficar infetados, o
que não morressem. No entanto, isso não aconteceu, pois o coronavírus
continuou, muitos dos que pediram a Deus para não ficarem infetados ficaram
infetados na mesma, e muitos dos que lhe pediram para não morrerem,
morreram na mesma. Por conseguinte, surgiram em muitos crentes, e nas
pessoas em geral, algumas dúvidas: onde está Deus ? será que ele existe? Se
existe, porque não atende às orações ?
As orações são pelos crentes consideradas eficazes para provocarem
“curas milagrosas”. Todavia, o mundo foi atingido pelo coronavírus de todas as
maneiras, as pessoas ficaram doentes, muitas foram internadas nos cuidados
intensivos dos hospitais, muitos faleceram, ou faleceram os seus amigos e
familiares pelos quais rezaram, e portanto as suas orações foram inúteis. Isso
não foi uma novidade, pois muita gente reza a Deus pedindo-lhe algo e não é
atendida, e as orações por causa do coronavírus foram um bom exemplo disso,
pois muitas pessoas que foram atingidas pelo coronavírus rezaram a Deus pela
sua recuperação, mas também faleceram.
Segundo a revista digital francesa “Chrétiens Lifestyle” (não refere o
nome do autor), no seu artigo intitulado : “8 raisons pour lesquelles Dieu ne
réponds pas à vos prières” (“8 razões pelas quais Deus não responde às vossas
orações”), citando alguns textos da Bíblia, o não atendimento de Deus às
orações deve-se aos seguintes fatores :
Falta de fé ao rezar . “Por isso vos digo que todas as coisas que pedirdes,
orando, crede receber, e tê-las-eis” (Marcos, 11,24).
A pessoa que reza está em pecado. “É sabido que Deus não ouve
pecadores; mas a todo adorador de Deus, e a todo que faz a sua vontade, a esse
Ele atende” (João, 9,31).
A pessoa não reza de maneira correta. “Pedis, e não recebeis, porque
pedis mal, para o gastardes em vossos deleites”. (Tiago, 4,3).
Deus respondeu mas a pessoa não reparou, ou não quer a resposta que
Deus lhe deu. “Pois a verdade é que Deus fala, ora de um modo, ora de outro,
mesmo que o Homem não o perceba” (Job, 33,14).
Aquilo que a pessoa deseja não é da vontade de Deus. “E não sede
conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do
vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e
perfeita vontade de Deus”. (Rom., 12,2).
Ainda não é o tempo de Deus. “Deus marcou o tempo certo para cada
coisa. Ele nos deu o desejo de entender as coisas que já aconteceram e as que
ainda vão acontecer, porém não nos deixa compreender completamente o que
ele faz” (Eclesiastes, 3,11).
É necessário preservar na oração. “Preservai na oração, estejam alerta e
sempre agradecidos” (Colossenses, 4,2).
Deus tem algo ainda melhor para nós. “Porque sou eu que conheço os
planos que tenho para vós, diz o Senhor, planos de fazê-los prosperar e não de
causar dano, planos de vos dar esperança e um futuro” (Jeremias, 29,11).
Segundo esta revista, o facto da oração não ser atendida imediatamente,
não significa que Deus se tenha esquecido de quem lhe rezou. Uma máxima
latina diz que a oração é, por vezes, ineficaz – mali, mala, male petimus –, isto
é, os crentes pedem a Deus sendo maus (mali), o que é mau (mala), e de
maneira má (male). Os crentes querem que Deus os atenda, mas não querem
abandonar as suas “más ações”, continuam com um coração de pedra. Um
homem guarda rancor contra outro homem e suplica a Deus a sua cura. Esse
homem guarda rancor e pede a Deus que lhe seja propício.
Ainda segundo a mesma revista, por vezes pedimos coisas más. Por
exemplo: pedimos justiça quando, na verdade, queremos vingança, que uma
pessoa pague pelo mal que nos fez, e tantas outras coisas. Essas coisas, se Deus
as concedesse, provavelmente, comprometeriam a nossa salvação.
Finalmente, ainda segundo a revista, pedimos de maneira má, não como
filhos, mas como interesseiros, que se aproximam de Deus apenas pelo facto de
saberem que Deus os pode beneficiar.
É difícil reunir todas estas condições na mesma pessoa, para ser atendida
por Deus (pedir coisas boas, não estar em pecado, pedir bem, ser perseverante,
rezar com fé, aquilo que se pede ser a vontade de Deus, ser o tempo de Deus,
quem pede não reparar na resposta que Deus lhe deu). Basta faltar uma ou duas
delas para Deus não atender ? por exemplo se aquilo que a pessoa pede for uma
coisa boa mas a pessoa não a pedir com fé, Deus não atende ? a forma como se
pede é mais importante do que aquilo que se pede ? por exemplo, um mulher
viúva, que tenha filhos pequenos para criar, e que tenha sido infetada pelo
coronavírus, se não pedir a Deus com fé para não morrer, Deus deixa-a
morrer ? se uma pessoa rezar mas não for uma boa pessoa Deus não a atende ?
isso não é verdade, pois houve muitas más pessoas que rezaram e salvaram-se, e
outras que nem sequer rezaram e também se salvaram.
Houve bons padres, com comportamentos éticos exemplares, e mesmo
alguns considerados santos pelos seus paroquianos, mas que morreram com o
coronavírus. Rezaram a Deus pela sua cura mas estavam em pecado e por isso
Deus não os atendeu ? esses padres não sabiam rezar ? não rezaram com fé ?
mas não eram padres ? Deus tinha um plano melhor do que a paróquia ficar
sem padres em países onde há uma enorme falta de padres ? aquilo que alguns
deles eles pediram a Deus (não falecerem, para poderem continuar à frente de
orfanatos e de outras casas de assistência social) era uma coisa má ?
Em alguns países aconteceram situações drásticas deste tipo, com lideres
religiosos e crentes em geral que rezaram fervorosamente a Deus para os livrar
do coronavírus, mas mesmo assim foram atingidas, e além disso faleceram.

ORAÇÕES PELOS QUE FALECERAM DEVIDO AO CORONAVÍRUS

Em vários países realizaram-se também muitas orações pelos que


faleceram devido ao coronavírus. No caso da Igreja católica, por exemplo,
realizaram-se missas, adorações eucarísticas, rosários e novenas, pelos que
faleceram atingidos pelo coronavírus. Tendo sido muitas essas orações,
realizadas em diversos países, damos aqui apenas alguns exemplos importantes.
Em Roma, a missa do dia 18 de Março, em pleno período da pandemia,
celebrada pelo Papa Francisco na Casa Santa Marta, teve uma intenção muito
especial: o Papa celebrou a missa pelas pessoas que faleceram em consequência
do coronavírus, e pelos profissionais de saúde que morreram em pleno exercício
da sua missão : “Rezemos hoje pelos defuntos, por aqueles que devido ao vírus
perderam a vida; de modo especial, gostaria que rezássemos pelos agentes de
saúde que morreram nestes dias” – declarou o Papa.
Também no dia 2 de Novembro de 2020, Dia de Finados, o Papa
Francisco fez um pedido aos católicos para que rezassem para que rezassem
pelos fiéis falecidos. O convite foi feito na sua rede social no Twitter, com uma
referência especial ao contexto da pandemia : “Hoje rezemos por todos os fiéis
defuntos, e especialmente pelas vítimas do coronavírus” – escreveu o Papa.
No Brasil, o Santuário de Cristo Redentor foi palco de uma grande missa
pelos que faleceram com coronavírus. Esse evento, organizado pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil e pela Cáritas Brasileira, aconteceu no dia 30 de
Junho de 2020. A missa foi presidida pelo cardeal brasileiro Dom Orani João
Tempesta e teve uma mensagem de solidariedade enviada pelo Papa Francisco.
"A nossa arquidiocese foi escolhida para ser o lugar de manifestar a nossa
solidariedade e oração por aqueles que faleceram com essa pandemia.
Justamente nesse altar, que é o de Cristo Redentor, queremos colocar todas as
pessoas do mundo inteiro que partiram, para que sejam recebidas na casa do
Pai”, afirmou o cardeal Dom Orani João Tempesta.
Em Portugal, o cardeal-patriarca de Lisboa, Dom Manuel Clemente,
celebrou uma missa na Capela do Rato, em Lisboa, no dia 28 de Junho de 2020,
em memória das vítimas mortais da pandemia de covid-19 e rezou pelas suas
famílias. Durante a celebração da missa, que foi também transmitida online, os
fiéis rezaram por todos aqueles que “faleceram na solidão, longe dos seus
familiares” e pelas famílias em luto.
No início da missa, o capelão da Capela do Rato, o padre António
Martins, recordou a impossibilidade de “celebrar em comunidade, com tempo e
interioridade” os funerais de muitos daqueles que morreram durante o período
de confinamento devido ao coronavírus. O padre salientou que esta missa,
presidida por D. Manuel Clemente, foi celebrada com o objetivo de “rezar
expressamente” pelas vítimas mortais da pandemia e recordou os nomes de
alguns homens e mulheres que morreram nos últimos meses, em consequência
do coronavírus.
A contrário do que era esperado, a pandemia continuou durante mais
meses, e em Janeiro de 2021 agravou-se com a variante inglesa do vírus. Assim,
devido ao novo confinamento, a nota pastoral da Conferência Episcopal
Portuguesa, ao determinar a suspensão da celebração pública da eucaristia,
dizia também o seguinte : “Pedimos que, a nível individual, nas famílias e nas
comunidades, se mantenha uma atitude de constante oração a Deus pelas
vítimas mortais da pandemia, pedindo ao Senhor da Vida que os acolha nos seus
braços misericordiosos”.
As orações pelos que faleceram do coronavírus foram também
recomendadas por alguns políticos. Assim, por exemplo o presidente do Brasil,
Jair Bolsonaro rezou e mandou os brasileiros rezarem pelos que faleceram com
o coronavírus. O ex presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump
conforme já referimos instituiu um dia de oração devido ao coronavírus, onde
lembrou também os que faleceram vítimas do coronavírus. Por seu turno, o
novo presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden, durante a sua
tomada de posse, rezou também pelos que faleceram devido ao coronavírus.
Ora, subjacente às orações e às missas pelos que faleceram devido ao
coronavírus só pode estar, logicamente, a ideia de que existe o Purgatório, e que
é a esses que se referem essas orações, pois aqueles que entraram diretamente
no Céu não precisam de orações, assim como os que entraram no Inferno, pois
se eram merecedores do Inferno devido ao seu mau comportamento na Terra,
com as orações não deixaram de o ser, exceto se Deus der o seu dito por não
dito, e os tenha retirado do Inferno e entretanto os tenha posto no céu. É difícil
imaginar Deus ir bater às portas do Inferno e dizer ao Demónio : “dá-me cá essa
alma, que agora é minha”. O demónio vai dá-la ? afinal a alma era ou não digna
de ir para o Inferno? isso seria contraditório com o que diz a Bíblia, segundo a
qual Deus não muda aquilo que diz nem se arrepende daquilo que faz (veja-se
isso mais em pormenor no capítulo: “Outros problemas das orações”).
O Purgatório é o período de purificação ou castigo temporário em que as
almas daqueles que faleceram em estado de graça são preparadas para o “Reino
dos Céus”. Nem todas as religiões cristãs defendem a existência do Purgatório,
mas a religião católica sim, e é aliás a sua principal defensora. Para a religião
católica, o Purgatório é o estado de purificação necessário às almas que
faleceram na graça de Deus, mas que ainda são imperfeitas, e que portanto
precisam de serem purificadas. As que já estão no céu não precisam que se reze
por elas, e conforme referimos, não tem sentido rezar pelas almas que foram
para o Inferno, pois se eram merecedoras do Inferno devido à sua vida terrena,
continuam a ser merecedoras. Só tem sentido rezar pela alma dos que foram
para o purgatório, que são as dos que faleceram em estado de graça, mas que
precisam ainda de serem purificadas. Então, rezar pela alma dos que faleceram
devido ao coronavírus significa que as pessoas que faleceram devido ao
coronavírus estavam em estado de graça mas que precisaram primeiro de ir
para o Purgatório. Mas porquê ? como sabemos isso ? será que o facto de terem
falecido devido ao coronavírus, as fez irem automaticamente para o
Purgatório ? faleceram milhares de pessoas devido ao coronavírus, e sobre elas
rezou-se muito. Se só tem sentido rezar por almas que foram para o Purgatório,
será que as milhares de pessoas que faleceram devido ao coronavírus foram
todas para o Purgatório ?
A religião católica ensina que o destino dos que estão no Purgatório pode
ser afetado pelas ações de intercessão dos vivos, isto é, por orações de petição
em seu favor. Este ensino baseia-se na prática da oração  pelos mortos referida
na Bíblia (II Macabeus 12:42-46). Além deste texto do Antigo Testamento, a
Religião Católica também justifica a doutrina do Purgatório na oração que
o apóstolo Paulo  fez em favor de um amigo falecido, Onesíforo (II Epístola a
Timóteo, I, 16-18).
Para a Igreja católica as orações pelos mortos e as indulgência diminuem
a duração do tempo que os mortos passam no Purgatório, e essa doutrina
continua atual. Por exemplo o Papa Paulo VI escreveu que a indulgência é “(…)
uma remissão da pena (…) através da intervenção da Igreja”. 26
O Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, publicado pela primeira
vez em 2005, resume em forma de diálogo o Catecismo da Igreja Católica,
dizendo o seguinte : “Por causa da comunhão dos santos, os fiéis que ainda são
peregrinos na Terra são capazes de ajudar as almas do Purgatório, oferecendo

26
Papa Paulo VI, Constituição Apostólica Indulgentiarum Doctrina, 1 de Janeiro de 1967, artigo 8.
orações em sufrágio por elas, em especial o sacrifício eucarístico. Eles também
os ajudam dando esmolas, indulgências e obras de penitência”. 27
Durante a Peste Negra, que atingiu a Europa na Idade Média, muitas
pessoas compraram indulgências à Igreja católica, para obterem perdão pelos
seus pecados, e para que ao falecerem da peste não fossem para o Inferno. A
venda de indulgências cresceu em importância depois do Papa Bonifácio VIII
ter emitido a primeira indulgência do Jubileu em 1300. Por seu turno, o Papa
Clemente VI, em 1343, concedeu à prática da venda e compra de indulgências
uma autoridade teológica, através de um decreto em que declarou
explicitamente que o fiel podia negociar “uma quantidade ou valor fixo de
dinheiro” para “intercessão” da Igreja em nome de parentes mortos no
Purgatório.
Nos tempo de hoje continua a haver a prática das indulgências. A
Penitenciária Apostólica, no Vaticano, no dia 20 de Março de 2020 concedeu
indulgência plenária às pessoas afetadas pelo coronavírus. Além disso, aqueles
que não puderam receber o sacramento da unção dos enfermos, principalmente
os afetados com o coronavírus, receberam uma indulgência plenária pela
recitação de orações, especialmente o terço da Divina Misericórdia. Conforme
afirma o respetivo decreto do Vaticano “esta Penitenciária Apostólica também
concede voluntariamente uma Indulgência Plenária sob as mesmas condições
por ocasião da atual epidemia mundial, também aos fiéis que oferecem uma
visita ao Santíssimo Sacramento, ou adoração eucarística, ou à leitura das
Escrituras Sagradas por pelo menos meia hora, ou à recitação do Santo Rosário,
ou ao exercício piedoso do Caminho da Cruz, ou à recitação do terço da Divina
Misericórdia, para implorar a Deus Todo-Poderoso o fim da epidemia, alívio
para aqueles que são aflitos e a salvação eterna para aqueles a quem o Senhor
chamou a si mesmo.”
Isso permitiu que os católicos obtivessem perdão pelos seus pecados, e
também que os que faleceram devido ao coronavírus ficassem perdoados. Note-
se que segundo o texto do decreto do Vaticano sobre a pandemia, essas orações
também tiveram como objetivo “a salvação eterna para aqueles a quem o Senhor
chamou a si mesmo”. A diferença em relação ao tempo da Peste Negra é que
27
V.V., Catecismo da Igreja Católica – Compêndio, Coimbra, Ed. Fundação Secretariado Nacional de
Educação Cristã, 2005, p. 27.
agora a indulgência foi concedida a todos os indivíduos, perdendo a indulgência
a sua validade no caso dos que, por não terem falecido devido ao coronavírus,
voltassem a pecar. Outra característica digna de destaque desta indulgência,
comparada com as indulgências de antigamente, é que esta foi uma
indulgência grátis.
Ainda assim, houve pessoas que faleceram devido ao coronavírus que
deixaram dinheiro para que rezassem missas por elas, assim como pessoas que
ao longo da História têm morrido com outros problemas de saúde, e que eram
ricas. Muitas pessoas faleceram na crença de que os seus familiares, ou
instituições a quem deixaram o seu dinheiro, rezariam pelas suas almas presas
no Purgatório. Houve também pessoas que não pediram que se mandasse
celebrar missas pela sua alma, mas a sua família mandou-as celebrar, e em
grandes quantidades de missas, devido ao facto de serem ricas.
Há aqui a suposição da parte dos que dispõem o seu dinheiro nesse
sentido, de que não vão para o Inferno e que aguardam para irem para o céu,
através de orações. Por outro lado, as orações pelas pessoas que morreram do
coronavírus, conforme já salientámos, só podem ser pelas que foram para o
Purgatório, deixando muitas outras de fora, não valendo de nada rezar por elas.
A preocupação em se rezar pelas almas dos que morreram devido ao
coronavírus é também uma espécie de privilégio que se concede a essas almas,
comparadas com as outras almas que estão no Purgatório. As orações deviam
ser pelas almas dos que estão no Purgatório, e não por determinadas almas que
estão no Purgatório, isto é, as que morrerem do covid 19.
Se, conforme a doutrina das orações pelos que faleceram, as orações
beneficiam as pessoas que faleceram, retirando-as do Purgatório, ou diminuem
o tempo de permanência nele, as pessoas que deixaram muito dinheiro para se
mandar celebrar missas por elas, ou cujas famílias são ricas e o fizeram, estão
em vantagem. Essas pessoas beneficiaram ou vão beneficiar do Céu devido ao
seu poder económico ou ao das suas famílias, deixando em desvantagem os que
são pobres, pois não tiveram ninguém que rezasse por eles ou que mandasse
dizer missas por eles. Isso é injusto, pois muitos pobres não têm culpa de serem
pobres, e portanto as pessoas que vão para o céu não deviam ser beneficiadas
por terem dinheiro para se mandar rezar missas por elas.
OUTROS PROBLEMAS DAS ORAÇÕES

Aquando do atentado contra as torres gémeas em Nova Iorque, no dia 11


de Setembro de 2001, muitos dos que sobreviveram atribuiram isso a um
milagre, e rezarem para agradecerem a Deus. No caso de ter sido um milagre,
essas pessoas não pensaram em todos os que foram mortos, em consequência
desse mesmo Deus seletivo ou arbitrário, pois isso seria fazer um milagre a uns
e não a outros. Também muitos rezaram pelas vítimas do atentado para que
elas fossem admitidas no Céu (como se o facto de terem falecido num atentado
fizesse com que tivessem automaticamnete direito a irem para o Céu), em vez de
perguntarem porque é que elas não podiam continuar sobre a Terra, tal como as
pessoas que sobreviveram. Esta atitude contraria a Bíblia, que diz que Deus não
faz acepção de pessoas (2 Crónicas, 19,7; Atos dos apóstolos, 20, 34; Epístola
aos Romanos, 2,11).
Em Marrocos, no dia 3 de Abril, o rei Moamed VI disse numa mensagem
aos marroquinos : “Caro povo, Deus Todo Poderoso quis que o nosso país
conhecese este ano a seca”. Portanto, o próprio rei identificou como culpado
pela calamidade da seca o próprio Deus. Os imãs fizeram uma oração para
afastar a seca, mas foi em vão, pois Alá não atendeu às suas orações. Além de
Marrocos, também noutros países muçulmanos reza-se para que chova, e
mesmo assim não chove. Em contrapartida, chove abundantemente em países
cujas pessoas creem pouco em Deus, e em alguns países muito pouco.
Curiosamente, é nos países onde há mais descrença em Deus, isto é, na Europa
do Norte, que chove mais, enquanto nos países onde as pessoas são mais
religiosas, como por exemplo em Marrocos, em que pedem a Deus que chova,
chove muito pouco e por veze não chove nada. Em alguns países muçulmanos a
oração para pedir chuva é feita todas as semanas, mas não cai uma única gota de
água, e quando cai é pouca, enquanto em países europeus, onde existe fraca
frequência de igrejas, e onde não se reza para pedir chuva, a chuva cai
normalmente, e em alguns desses países cai abundantemente.
Para muitos muçulmanos rezar a Alá era o melhor remédio para o
coronavírus. Sendo assim, porque é que as orações muçulmanas não foram
eficazes para lutar contra o coronavírus e proteger a cidade santa de Meca ?
Muitos muçulmanos consideram que o coronavírus foi uma consequência da
cólera divina. Ora, os países muçulmanos foram dos países mais afetados pelo
coronavírus. Isso significa que Alá também estava em cólera contra os
muçulmanos ?
Se Deus é omnisciente, e portanto já sabe aquilo de que precisamos, para
que precisamos de lho dizer ? Na Bíblia o salmista diz o seguinte a Deus :
“Ainda não me chegou à língua, e já, Senhor, a conheceis toda” (Salmos, 138,4).
O médico, melhor que o doente, sabe do que realmente o doente necessita. Ele
sabe o que é melhor para nós mais que nós mesmos sabemos. Deus é
omnisciente, sabe tudo, e portanto sabe também do que necessitamos e pode
conceder-nos muito mais do que pedimos ou pensamos. Sendo assim, para quê
pedir-lhe ?
Em muitas orações há um espírito interesseiro e negociador com Deus,
pois o crente diz a Deus (ou a Nossa Senhora) : “dá-me isto, e eu dou-te aquilo”,
“dá-me a cura de uma doença, e eu darei dinheiro à Igreja, porei velas a arder,
irei a Fátima a pé, etc.”. “Se não me deres o que eu quero, não darei esmola aos
pobres, não farei determinados sacrifícios, não mandarei dizer missas, não irei a
Fátima a pé, etc.”
Muitas pessoas fazem de Deus um amigo mas “um amigo para as
ocasiões”, pois só se lembram de Deus quando precisam. É como fazer de Deus
um ser à nossa imagem e necessidade, em função dos nossos desejos. Quando
um indivíduo se dirige a Deus na oração, Deus torna-se para ele num “tu”, com
quem ele entra em comunicação, e assim Deus torna-se para esse indivíduo
num ser pessoal. Nesta atitude há uma invasão e uma negação da
Transcendência de Deus, ao ser concebido como um “tu”, pois é como se Deus
fosse uma pessoa a quem lhe vai pedir coisas. Na representação da
personalidade de Deus pela oração, além do carater abusivo das petições, a
Transcendência de Deus fica à mercê dos seres humanos, reduzida à dimensão
dum ser finito.
Algumas orações são mesmo absurdas e contraditórias. Por exemplo,
como pode Deus atender a uma oração proporcionando a um indivíduo da
classe trabalhadora nos Estados Unidos da América um aumento salarial no seu
local de trabalho, para que ele possa mudar com a sua família para uma casa
maior, ou dar a riqueza a outros indivíduos, conforme defende a Teologia da
Prosperidade,28 mas não atende as orações para parar a fome e doenças de
milhões e milhões de crianças em todo o mundo ?
A oração de petição consiste num pedido para que as leis da Natureza
(por exemplo, uma doença) sejam suspensas em benefício daquele que pede. Se
foi Deus que criou o mundo, criou-o de acordo com as suas leis, e dado que ele é
o seu criador, não precisa de dar novas ordens todo o tempo, para que a sua
criação e as leis da Natureza se alterem, ou que em alguns casos não atuem. Que
as placas tectónicas colidam umas com as outras e originem um terramoto é
normal, e portanto é absurdo um indivíduo pedir a Deus que a sua casa não seja
atingida por um tremor de Terra quando ele acontece. O mesmo tipo de absurdo
existe quando um indivíduo pede a Deus para o coronavírus não o atingir. Se
um indivíduo tocar em áreas infetadas, e estiver muito próximo de uma pessoa
infetada, sem máscara, é normal que fique também infetado, apesar da sua fé
em Deus, a não ser que Deus altere as leis da Natureza.
As pessoas que rezaram a Deus para não ficarem infetadas com o
coronavírus, no fundo pediram-lhe para, apesar de se aproximarem ou de
estarem junto de pessoas que estavam infetadas, não ficarem infetadas. O
pedido de um milagre será uma pessoa pedir que a ordem natural das coisas não
aconteça: “as pessoas sãs sem proteção, junto das pessoas infetadas ficam
também infetadas, mas a mim faz com que eu não fique infetada”. Para que
haveria Deus de privilegiar essa pessoa? Só porque lho pediu ? entre uma pessoa
boa que não pediu a Deus para não ficar infetada e uma pessoa não boa, ou
pouco boa, que rezou a Deus para não ficar infetada, Deus salva esta última ?
conta mais ser uma boa pessoa, ou os muitos pedidos feitos a Deus ?
O indivíduo que pede algo a Deus acredita que Deus dispôs as coisas
como erradas, ou que não servem os interesses do indivíduo que lhe pede para
as alterar, e considera que pode instruir Deus sobre como corrigir as coisas. Se o
coronavírus estava no plano de Deus, e se mesmo que Deus não o tenha
enviado, permitiu-o (se não, acabava com ele), não tem sentido a oração feita

28
Oral Roberts; G. H., Montgomery, God's Formula for Success and Prosperity, Ed. Abundant Life
Publication, 1966; Gordon Lindsay, God's Master Key to Prosperity. Ed. Christ for the Nations Institute,
1960; Bruce Wilkinson; David Kopp, The Prayer of Jabez: Breaking Through to the Blessed Life, Ed.
Multnomah Books, 2000; Joel Osteen, Your Best Life Now: 7 Steps to Living at Your Full Potential, Ed.
FaithWords, 2004.
para o alterar. O plano de Deus não pode ser mudado por uma oração, se não,
Deus não sabia de tudo. Mas se Deus sabia, dado que sendo Deus sabe de tudo,
e previa que ia ser mudado, a oração não muda nada, pois a mudança já estava
prevista por Deus.
Se Deus envia ou permite que haja pandemias, para quê fazer-lhe
pedidos? para o fazer mudar de atitude ? A Bíblia diz que Deus não muda de
atitude (Malaquias, 3,6; Lucas, 21, 23; Tiago, 1, 17), e que não se arrepende do
que faz (I Samuel, 15:29; Num., 23:19; Ex., 24 : 14;). “O Seu propósito não
pode ser frustrado, pois o Seu conselho é eterno” (Salmo 33:11). “Muitos
propósitos há no coração do homem, mas o conselho de Deus permanecerá”
(Provérbios 19,21). “O Senhor dos Exércitos jurou, dizendo: Como pensei, assim
sucederá, e como determinei, assim se efetuará” (Isaías 14,24). “Mas, se ele
resolveu alguma coisa, quem então o desviará? O que a sua alma quiser, isso
fará” (Jó, 23,13).
Deus já determinou tudo à partida, na sua eternidade e na sua
imutabilidade. Deus é a imutável causa primeira de todo o movimento, que não
pode de maneira nenhuma ser mudado por uma causa exterior, neste caso o ser
humano. A doutrina da imutabilidade de Deus encontra-se em Aristóteles, em
Platão e em São Tomás de Aquino. Deus é definido como um ser sobre o qual o
ser humano não pode ter nenhuma influência, pois querer ter influência sobre
Deus seria uma forma de impiedade, de insurreição contra Ele. Se os desígnios
de Deus estão estabelecidos de maneira imutável desde toda a eternidade, então
Deus não pode reagir nem mudar a propósito do que fazemos ou sentimos, nem
responder aos pedidos que lhe fazemos. Não tem lógica pensar que Deus faz
algo devido ao facto de lhe pedirmos para o fazer. Deus é perfeito, e o que faz ou
permite está bem feito, dado que é Deus, por isso se lhe pedimos para mudar o
que ele criou ou permite que assim seja, Deus ou estava errado ou não eram
perfeitos os seus desígnios.
A imutabilidade de Deus faz com que Ele não esteja constantemente a
mudar aquilo que fez, estabeleceu ou permitiu, à mercê das orações que lhe são
feitas, se não aquilo que Deus fizesse e desfizesse dependeria de nós. Então, ele
não seria mais Deus, mas sim um Ser cuja ação estaria dependente do que lhe
dissessem e pedissem, daquilo que cada um quereria, daquilo que cada um
desejaria que ele fizesse e desfizesse, como se Deus não o soubesse ou não o
pudesse fazer sem as nossas orações. Deus seria então demasiado versátil, frágil,
e quando atenderia para mudar os acontecimentos que ele comanda, rege ou
permite, Deus daria o seu dito por não dito.
No caso de ter sido Deus que enviou as doenças, conforme alguns crentes
acreditam, é contraditório atingir uma pessoa pela doença para depois a curar,
e além de contraditório é injusto, pois apesar de todos sermos filhos de Deus, só
cura aqueles que lhe pedirem, e entre as pessoas que lhe pedem só atende a
umas e a outras não.
No caso de ter sido Deus que enviou as doenças, não tem sentido enviar
as doenças, dado que Deus, que tudo sabe por ser Deus, já sabia que num futuro
teria de curar as pessoas, a não ser que Deus enviasse as doenças para as
pessoas lhe pedirem para as curar, o que revela que Deus tem necessidade de
que as pessoas lhe peçam coisas, e tendo essa necessidade (no caso de ter
enviado as doenças para as pessoas lhe fazerem pedidos), um Deus com
necessidades não é Deus, pois se é Deus basta-se a si próprio.
Na Bíblia o centurião pede a Jesus que cure o seu crido. Jesus disse ao
centurião : “Dado que acreditaste, assim será feito. E o seu criado ficou curado
naquela mesma hora” (Mateus, 8, 13). O requisito fundamental para que Deus
atue para ajudar as pessoas é que essas pessoas creiam, confiem ou o adorem
exclusivamente a ele, ou seja, Deus só dá em determinadas condições : a pessoa
pede auxílio a Deus, e este atua dizendo : “dado que acreditaste, faço a cura”.
Apesar da sua omnisciência e da sua omnipresença, Deus precisa que lhe
peçam, e só atua em troca de súplicas e orações. Ora, se Deus atua, só atua
algumas vezes, pois muitos crentes que lhe dirigiram orações fervorosas
também por causa do coronavírus, de nada lhes valeu, pois morreram na
mesma, enquanto muitos indivíduos que não rezaram e que portanto não lhe
pediram nada, continuaram e continuam vivos.
Para o budismo, o hinduísmo e outras religiões orientais, o sofrimento
deve-se aos pecados cometidos pelo indivíduo na sua vida anterior. O
sofrimento que esses indivíduos atravessam permite-lhes trabalhar o seu
Carma. Se a cadeia de causas não pode ser alterada, todo o esforço visando
alterar as coisas (as doenças, por exemplo) é um esforço inútil, e procurar
anular o sofrimento, que segundo as religiões orientais é necessário para
purificar o Carma, iria atrasar ou parar o processo de purificação. Sendo assim,
de nada valia pedir para que o coronavírus não atingisse as pessoas e que não
lhes causasse sofrimento, e portanto também nas religiões orientais não tem
sentido rezar para o individuo não ser infetado ou para que deixe de estar
infetado, ou para que não morra do coronavírus.

CHARLATANISMO RELIGIOSO E
PRÁTICAS SUPERSTICIOSAS CONTRA O
CORONAVÍRUS
SOLUÇÃO MINERAL MILAGROSA

O termo superstição (do latim superstitio, que significa literalmente


“profecia, medo excessivo dos deuses”), é um termo que se refere a uma crença
ou prática que é considerada irracional ou sobrenatural, uma espécie de crença
popular que não possui fundamento científico, como por exemplo a crença de
que uma determinada coisa “dá azar”. As superstições são criadas pelo povo, e
muitas delas são transmitidas de geração em geração.
Assim, por exemplo no Camboja os moradores de muitas aldeias remotas
colocaram espantalhos diante das suas casas, para os protegerem do
coronavírus. A prática dos espantalhos contra os males, entre os quais o de
fazerem espantar qualquer vírus, já existe há mais de um século em algumas
aldeias cambojanas. Mas esses cambojanos não ficaram infetados devido aos
espantalhos, mas sim devido ao facto de viverem em aldeias remotas, com
poucos contactos com o mundo exterior.
Por desconhecerem as causas e os efeitos de determinados fenómenos,
muitas pessoas atribuem-lhes explicações sem sentido racional e, portanto, são
falsas, como por exemplo a cura para o coronavírus, que algumas pessoas
atribuíram ao facto de terem ingerido um determinado produto. A mente
humana pode ser uma poderosa ferramenta de cura. O cérebro humano pode
convencer o corpo de que um tratamento falso é algo real, e assim estimula a
cura: isso é o chamado “efeito placebo”.
No âmbito do desespero geral à procura de uma cura para as mais
diversas doenças, desde sempre apareceram aproveitadores sem escrúpulos e
charlatães religiosos, novos curandeiros, transformando “mezinhas caseiras” em
produtos religiosos, e objetos vulgares que eles diziam terem poderes
sobrenaturais, comercializando amuletos e outros produtos religiosos,
explorando a crendice e o fanatismo religioso, especialmente dentro de algumas
seitas religiosas.
Assim, por exemplo, a Igreja Genesis II de Saúde e Cura foi criada em
2006 nos Estados Unidos da América, com sede na Flórida, tendo como um dos
principais objetivos "levar saúde para toda a Humanidade". "Queremos criar um
mundo sem doenças", dizia Jim Humble, um dos fundadores dessa igreja, ex-
garimpeiro na América do Sul e ex-cientologista (uma seita religiosa nos
Estados Unidos da América)
Jim Humble criou então aquilo a que chamou uma "Solução Mineral
Milagrosa", ou MMS (na sigla em inglês), como um remédio contra todos os
tipos de doenças. A substância foi “descoberta” há mais de uma década por Jim
Humble. O nome MMS foi cunhado pelo próprio Jim Humble, no seu livro The
Miracle Mineral Solution of the 21st Century (A Solução Mineral Milagrosa do
Século 21). Uma versão mais diluída da solução foi depois vendida como
Solução de Dióxido de Cloro (CDS).
O MMS é uma solução de cloreto de sódio e água destilada, que devia ser
misturada com um "ativador", por exemplo, ácido cítrico, para transformá-la
em dióxido de cloro. No entanto, esse produto veio a ser considerado altamente
tóxico para o organismo humano. Tanto o cloreto de sódio como o dióxido de
cloro são ingredientes ativos de alguns desinfetantes, além de terem outros usos
industriais, como por exemplo na fabricação de papel. Mark Grenon foi o co-
fundador e o mais recente líder da Igreja Genesis II de Saúde e Cura. Mark
Grenon, assim como a sua família, difundiu essa cura milagrosa entre os crentes
dessa seita religiosa, para várias doenças.
A associação norte americana Food and drug administration (FDA)
alertou duas vezes o público de que o dióxido de cloro é arriscado para o
consumo humano. Efeitos colaterais potencialmente fatais incluem vómitos
graves, diarreia grave, pressão baixa com risco de vida causada por desidratação
e insuficiência hepática aguda. Passados alguns meses depois do último aviso
da FDA, esta Igreja não só ainda estava no negócio, como encontrou um novo
mercado para seu "sacramento": pessoas que queriam proteção contra o
coronavírus. Aqueles que ficaram infetados com o Covid-19 eram tratáveis com
a mesma solução milagrosa, afirmou esta Igreja.
O produto passou a ser vendido como um “kit sacramental”, que incluía
uma garrafa de MMS, composta de cloreto de sódio, e uma garrafa de ácido
clorídrico. Os líderes desta organização religiosa recomendaram que as pessoas
tomassem até seis doses por dia durante cinco dias para tratarem o coronavírus,
com as crianças recebendo cerca de metade dessa quantidade. A Igreja Génesis
II declarou que o MMS eliminava as pessoas desse vírus que considerava
semelhante à gripe.
Mark Grenon e a sua família venderam dezenas de milhares de garrafas
desse produto e chegaram a faturar milhares de dólares por mês com as vendas
de MMS. Realizaram essas vendas não apenas aos seus seguidores mas também
a outras pessoas que pensaram que ficaram recuperadas devido a esse produto.
Ora, muitas pessoas não recuperaram e morreram, e outras que recuperaram
não foi devido a esse produto mas sim ao sistema imunitário do organismo. A
família Grenon foi acusada de conspiração por cometer fraude e violação da Lei
Federal de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos, e foi presa pela Polícia norte
americana, julgada e condenada por crime de burla e charlatanismo.

ÁGUA CONSAGRADA

Conforme afirma José d’Encarnação, “desde há séculos que se tornou


comum o uso da expressão ‘o culto das águas’, para identificar a atitude duma
comunidade para com os elementos naturais suscetíveis de as fornecer : os rios,
os mananciais e o próprio mar. Também desde há muito que os investigadores –
da História, da Etnologia e da Etnografia, da Geografia … - se debruçam sobre
essas manifestações, inserindo-as habitualmente nesse halo de religiosidade,
uma vez que à primordial existência da água, imprescindível à vida, se atribui
permanente númen divino”. 29
É através da água que se opera o batismo, um ritual feito sobre o iniciado
através da imersão, efusão ou aspersão, que está presente em vários grupos
religiosos, principalmente os cristãos. A água consagrada, vulgarmente
chamada “água benta”, na religião católica, anglicana, e ortodoxa, é a água
santificada por um sacerdote, tendo como objetivo além do batismo, a bênção
29
José d’Encarnação, A entidade sobrenatural da água, Biblos, revista da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, nº. 6, 2020, 3ª. série, p. 55.
de pessoas, de lugares e de objetos, ou repelir um mal, através da prática do
exorcismo. Na religião católica e na religião ortodoxa os leigos não podem
abençoar a água de forma a torná-la consagrada, apenas um sacerdote pode
fazê-lo. No caso da religião católica, é necessário que o sacerdote a abençoe
conforme um ritual romano, dito em latim, e antigamente o sacerdote punha
também um pouco de sal na água. Mas essa água era e é apenas para batizar ou
aspergir as pessoas, objetos e lugares, e nunca para ingerir, e muito menos para
curar doenças, como sucedeu com uma “solução milagrosa” criada e
recomendada por um pastor evangélico no Brasil.
Com a expansão da pandemia do coronavírus e o início do confinamento,
em meados de Março de 2020, muitos líderes de igrejas evangélicas no Brasil
ficaram desesperados porque os cultos religiosos foram cancelados e portanto as
doações de dinheiro deixaram de aparecer. Alguns pastores recusaram-se
mesmo a encerrar os templos, conforme vimos num dos capítulos anteriores, e
outros pastores, que os encerraram imediatamente, sofreram muitas perdas de
receitas económicas.
Como forma de compensar essas perdas, o pastor Romildo Ribeiro
Soares, fundador e líder da Igreja Internacional da Graça de Deus, uma igreja
protestante de denominação neopentecostal fundada em 9 de Junho de 1980 no
Rio de Janeiro, divulgou uma suposta cura para o coronavírus, em troca de
dinheiro. O pastor Romildo garantiu aos seus fiéis que a água “consagrada” por
ele num ritual religioso podia eliminar o coronavírus.
Durante o seu programa de televisão “O show da fé”, em canais de
televisão brasileiros que são propriedade desse pastor (a RTI e a Nossa TV), o
pastor falou de uma “oração milagrosa” que ele fazia na água, e que era capaz de
a transformar num medicamento contra o coronavírus.
Durante uma cerimónia religiosa realizada no interior da sua Igreja, o
pastor Romildo também pregou outras virtudes milagrosas da água por si
abençoada, e distribuiu copos com essa água aos seus fiéis, para a beberem, ao
mesmo tempo que lhes ia pedindo dinheiro.
Para comprovar a eficácia da “água consagrada” o pastor criou um
placard no qual mostrou aos seus fiéis os que tinham sido curados pela água
milagrosa, e criou vídeos de publicidade ao produto, que também colocou na
Internet. Nesses vídeos os assistentes do programa de televisão do pastor
reproduziram relatos de pessoas supostamente curadas pela água milagrosa,
provenientes de diversos locais do Brasil, que compraram a água abençoada
pelo pastor. Essas curas deveram-se à recuperação natural do organismo, mas
muitos que ficaram curados acreditaram que foi devido ao facto de terem bebido
a água consagrada pelo pastor Romildo Ribeiro Soares.
O Ministério Público Federal do Brasil investigou o caso e ordenou de
imediato a retirada dos vídeos de divulgação da cura da água milagrosa para o
coronavírus, que circulavam na Internet, e o pastor Romildo Soares foi depois
acusado e condenado pelos Tribunais por prática de charlatanismo.

SEMENTES DE FEIJÃO

Muitos bruxos, feiticeiros, xamãs e sacerdotes utilizaram e utilizam


plantas, vegetais, drogas, para curarem os enfermos, associando essas práticas e
esses produtos a um poder sobrenatural ou à ajuda divina, por intermédio deles
enquanto bruxos, feiticeiros, xamãs e sacerdotes e os seus supostos poderes.
Nos tempos de hoje também se podem encontrar, em alguns países, bruxos e
feiticeiros que afirmam curar enfermidades, por intermédio de determinadas
plantas, por eles abençoadas, em troca de dinheiro.
No Brasil, um país onde existem muitos feiticeiros, nomeadamente na
Amazónia, muitos indivíduos crentes em espíritos recorrem frequentemente a
feiticeiros, que lhes dão receitas de mezinhas caseiras, que incluem misturas de
plantas. Nas igrejas evangélicas isso não costuma acontecer, no entanto, numa
delas aconteceu um caso parecido, que provou grande impacto. Referimo-nos a
um caso surgido na Igreja Mundial do Poder de Deus, uma organização
evangélica neopentecostal, fundada na cidade de Sorocaba, no interior do
Estado de São Paulo, em 1998, por Valdemiro Santiago, que também se tornou o
pastor dessa Igreja. Esse pastor encontrava-se cheio de problemas financeiros,
sem conseguir pagar o arrendamento do edifício onde estava instalada a sua
Igreja. Segundo o pastor, a pandemia tornou-se a culpada pelos seus problemas
financeiros, pois segundo ele, “tirou o fôlego da sua atividade empresarial”.
O feijão é um dos produtos alimentares mais consumidos pelo povo
brasileiro, mas o pastor Valdemiro Santiago decidiu transformá-lo numa cura
para o coronavírus, não enquanto alimento natural que fizesse bem à saúde,
como muitos outros alimentos, mas sim como um “produto sobrenatural”,
visando uma cura milagrosa. O pastor abençoou os feijões e as sementes de
feijão, dotando-as de poderes sagrados. Segundo o pastor, a simples germinação
dos grãos teria o poder de curar as pessoas do coronavírus. As sementes
germinariam e na planta estaria escrito : “Sê tu uma bênção” (o slogan da
organização religiosa por ele criada e liderada). Outra forma de cura era ingerir
o feijão.
As sementes do feijão foram anunciadas em três vídeos na Internet, a
preços que alcançavam cento e sessenta Euros cada feijão. Nos vídeos o pastor
usava a palavra “propósito”, em vez da palavra “valor” como disfarce linguístico
para contornar a venda do produto a pagar. Os vídeos divulgaram também
supostos casos de pessoas, muito crentes e fanáticas, que diziam que tinham
sido curadas do coronavírus através do “feijão miraculoso”, e para confirmar o
seu testemunho faziam-se acompanhar de um “atestado médico”. Essas pessoas
recuperaram naturalmente da infeção, mas o facto de entretanto terem aderido
à cura pelo “feijão milagroso” fez com que pensassem que foi devido ao feijão,
não passando no entanto de uma mera coincidência.
O Ministério Público do Brasil mandou retirar os vídeos da Internet, e
processou e condenou judicialmente o pastor, que apesar de tudo não se
mostrava arrependido, e insistia nas virtudes milagrosas do seu feijão, para
curar as pessoas da infeção do coronavírus.
Este e os exemplos da solução mineral milagrosa e da água consagrada,
atrás referidos, mostram bem como o direito à liberdade religiosa deve ter
limites, não apenas devido ao direito à saúde, que por vezes é posto em risco
com a fabricação e a distribuição destes “remédios caseiros divinos”, mas
também devido à exploração económica das pessoas, em nome de Deus.

URINA E FEZES DE VACA

Há também a destacar o exemplo da Índia, onde se recorreu também a


coisas religiosas estranhas contra o coronavírus. Assim, temos o caso de um
sacerdote da religião hindu, que estava encarregue do templo de Wenkateswara,
em Tirumala, dedicado a Venkateswara, uma divina encarnação do deus Vishnu.
Trata-se do sacerdote Srinivasa Murthy Deekshitulu, que realizou uma
cerimónia de fogo extremo durante oito horas, para pedir o fim da pandemia.
Para esse efeito, enterrou-se até ao pescoço, fechado num círculo com madeira
a arder à sua volta, e cantou incansavelmente, durante todo esse tempo,
mantras para parar a pandemia. A sua cabeça estava repetidamente cercada por
faixas de fumaça negra, correndo portanto risco de vida. De nada lhe valeu este
ritual religioso, pois veio a falecer meses mais tarde atingido pelo coronavírus.
No entanto, na Índia o ritual que causou mais impacto foram as festas da urina
de vaca, como veremos seguidamente.
Ligados ao conceito de “doença” estão os de “infeção”, “mancha”,
“impureza”, por isso alguns rituais religiosa pretendem limpar simbolicamente a
pessoa infetada ou doente recorrendo a água benzida, como vimos
anteriormente. Recorrer a urina e fezes de vaca é portanto contraditório, pois
recorre-se a uma sujidade para limpar outra sujidade, a uma impureza para
limpar outra impureza, que aliás causa ou pode causar outras doenças. No
entanto, na Índia, como veremos seguidamente, as coisas não são assim
encaradas.
Em Março de 2020 centenas de pessoas compareceram a uma festa
gaumutra (festa de urina de vaca) para se protegerem e curarem do
coronavírus. Essa festa foi organizada pelo presidente da União Indiana Hindu,
Swami Chakrapani, em que os indianos presentes beberam urina de vaca (que é
considerado um animal sagrado para os indianos), como um remédio milagroso
para evitar que ficassem infetados pelo coronavírus. Cerca de duzentas pessoas
participaram nesta cerimónia, que foi realizada em Nova Deli, a capital da Índia.
Durante a cerimónia o presidente da União Indiana Hindú disse que “o
coronavírus veio por causa das pessoas que matam e comem animais. Quando
uma pessoa mata um animal ele cria um tipo de energia que causa destruição
naquele local”.
Dirigindo-se aos líderes religiosos, Swami Chakrapani propôs o seguinte :
“Peço a todos os presidentes e primeiros ministros do mundo que tomem urina
de vaca diariamente. Você tem todos esses cientistas que não conhecem a cura,
mas nós temos a cura dada a nós pelos nossos deuses”.
Chakrapani acrescentou :
“O coronavírus fica quieto na Índia devido aos rituais yajña . Mas esses
ministros ignorantes e arrogantes de Telangana desafiaram o coronavírus
matando animais e comendo frango em público. Assim, esses ministros devem
buscar o perdão imediatamente, caso contrário, será um desastre que ninguém
poderá parar”.
Já no início desse mês Chakrapani tinha declarado o seguinte ao jornal
indiano The Print :
“Assim como organizamos festas de chá, decidimos organizar uma festa
gaumutra na qual informaremos as pessoas sobre o que é o coronavírus e
como, consumindo produtos relacionados com vacas, as pessoas podem ser
salvas dele”.
Esta ideia já tinha sido defendida por um ministro da Assembleia
legislativa de Assam, no início do mês de Março de 2020, Suman Haripriya, em
Hajo, um antigo centro de peregrinação na Índia, num evento religioso em que
declarou : “o coronavírus é uma doença transmitida pelo ar e pode ser curada
usando o gaumutra e o esterco de vaca”. As chamadas “festas da urina de vaca”
levaram centenas de pessoas a juntarem-se para beberem a urina desse animal,
que muitos hindus acreditam ter propriedades medicinais.
Também na Índia, dado que a vaca é um animal sagrado, não apenas a
sua urina, mas também o seu leite e as suas fezes são utilizados frequentemente
em rituais de purificação espiritual e para a cura das doenças. Assim, um grupo
de homens da cidade indiana de Hiriyur tomou banho em fezes de vaca, para se
protegerem do coronavírus. Tomaram banho de imersão dentro de uma tina de
fezes, defendendo que o banho de imersão nas fezes de vaca os tornaria imunes
ao coronavírus. No entanto, muitos deles vieram a ficar infetados na mesma
com o coronavírus.
A “INTERVENÇÃO MILAGROSA”
CONTRA O CORONAVÍRUS
A “INTERVENÇÃO” DE NOSSA SENHORA DO MONTE NA ILHA DA
MADEIRA

Muitos peregrinos acorreram ao santuário de Fátima, em busca de


proteção de Nossa Senhora para o coronavírus, e alguns consideraram a sua
proteção como um milagre. Sobre isso falaremos no capítulo deste livro : “O
coronavírus em Portugal sob o ponto de vista religioso”, mais propriamente no
subcapítulo sobre Fátima. Antes disso, apresentemos como exemplo o caso de
Nossa Senhora do Monte, na ilha da Madeira.
No dia 15 de Agosto de 2020, realizou-se a festa de Nossa Senhora do
Monte, na ilha da Madeira. Durante uma celebração religiosa solene, Nuno
Brás, o bispo do Funchal, atribuiu a então ausência de mortes causados pelo
coronavírus na Madeira, à intercessão de Nossa Senhora do Monte, padroeira
da região. O bispo já tinha feito um apelo a Nossa Senhora do Monte durante
uma oração e, “por uma questão de fé”, Nossa Senhora teria intercedido. 30
Será isto uma prova de intervenção divina?
Depois do bispo ter feito o pedido durante a oração, continuou a não
haver mortes provocadas pelo coronavírus, e o bispo concluiu que isso se deveu
à oração. Ora, o bispo atribuiu uma causalidade onde ela não existe. O bispo

30
Fonte da notícia: jornal Observador – https://observador.pt/2020/08/15/covid-19-bispo-atribui-
inexistencia-de-obitos-na-madeira-a-nossa-senhora-do-monte/
sabia que a qualquer momento a situação podia-se alterar, como aconteceu com
o aumento inesperado de mortes em várias regiões do país, por isso na sua
mensagem o bispo afirmou também o seguinte : “poderá acontecer que, nos
tempos futuros, sucedam mortes ou uma qualquer outra desgraça causada ainda
por esta pandemia que teima em não desaparecer”. Devemos então questionar
qual o significado da intenção divina no caso de haver mais mortes na ilha da
Madeira, causadas pelo coronavírus : Nossa Senhora do Monte deixou de ouvir?
Isso significa que a fé do bispo e da população diminuiu ou se extinguiu? Isso
significa que outras “forças” superiores às de Nossa Senhora do Monte, que
podem mais do que ela, terão atuado? Isso significa que Nossa Senhora do
Monte abandonou os seus fiéis ?
O bispo da Madeira também disse que era “importante agradecer as
graças recebidas no controlo da pandemia”, considerando que Nossa Senhora
do Monte teve influência no controle da pandemia. O bispo ao dizer que não
havia então nenhuma morte na Madeira, ignorou os cento e trinta infetados que
nessa ocasião havia nessa ilha (números de Agosto de 2020). Se Nossa Senhora
do Monte pôde evitar mortes, porque não evitou que as pessoas ficassem
infetadas ?
Na mesma celebração em honra de Nossa Senhora do Monte, mas uns
pouco anos atrás, no dia 15 de Agosto de 2017, um enorme carvalho centenário
caiu sobre as pessoas que aguardavam a passagem do cortejo religioso,
causando treze mortos e cinco dezenas de feridos. Porque é que então Nossa
Senhora do Monte não protegeu os seus fiéis, e sobretudo numa celebração que
lhe era dedicada ?
Porque razão Nossa Senhora do Monte intervém numas vezes e não
intervém noutras ? E se queria curar as pessoas porque as deixou adoecer ? e
porque curou do coronavírus ateus e pessoas que não iam à Igreja, enquanto
deixou morrer os crentes que foram vítimas da queda do carvalho na celebração
religiosa que eles faziam em sua honra ? se protegeu os madeirenses de modo a
não terem havido mortes, porque fez isso a uns a não a outros ? é que, passados
alguns meses depois das palavras do bispo, que atribuiu a Nossa Senhora do
Monte a ausência de mortes pelo coronavírus na ilha da Madeira, vieram a
morrer muitas pessoas também na ilha da Madeira em consequência do
coronavírus.
A “INTERVENÇÃO” DE DEUS NA VACINA CONTRA O CORONAVÍRUS

Há líderes e crentes religiosos que acreditam e defendem que foi Deus


que iluminou a mente dos cientistas, para eles descobrirem as vacinas, entre as
quais a vacina contra o coronavírus. Damos aqui dois exemplos, dentro da
religião católica, um antes de se descobrir a vacina, e outro depois de se ter
descoberto a vacina, o primeiro por um líder religioso, e o segundo por um não
líder religioso.
Dom Juan del Río, Arcebispo militar da Espanha, incentivou a rezar e a
confiar em Deus naquele momento “de calamidade” da pandemia de
coronavírus, porque Ele podia “iluminar as mentes dos cientistas para que
encontrassem as vacinas necessárias”. 31 Por seu turno o presidente da
Assembleia Legislativa do Piauí, no Brasil, deputado estadual Themístocles
Filho (MDB), ao analisar o ano de 2020, destacou a preocupação com o
coronavírus. Segundo ele, Deus deu a inteligência aos cientistas e médicos para
que, a partir de Janeiro, todos tivessem começado a ser vacinados, protegendo
as pessoas de continuarem a ser contaminadas e de falecerem. 32
Até mesmo alguns cientistas cristãos acreditam que por trás da vacina
para o coronavírus está a Providência Divina. Este é, por exemplo, o caso do
bioquímico norte americano Fazale Rana, que declarou o seguinte : “Como
cristão e bioquímico, não posso deixar de ver a mão providencial de Deus
trabalhando no momento do surto de COVID-19. Aconteceu precisamente na
época em que os avanços nas vacinas mRNA permitiriam uma resposta rápida.
A notável confluência da pandemia COVID-19 com os avanços das vacinas
mRNA tem uma das duas explicações possíveis: ou é um acidente fortuito ou um
reflexo do timing providencial de Deus e da provisão fiel à Humanidade. Como
cristão, escolho a última explicação.”33

31
Citado pelo jornal eletrónico Portal católico, de 20 de Março de 2020. Artigo intitulado : “Que Deus
ilumine os cientistas para encontrar a vacina contra o coronavírus, pede Arcebispo”.
32
Citado pelo jornal eletrónico 180, em 8 de Janeiro de 2021. Artigo intitulado : “Vacina contra a covid
19 foi o maior desafio de 2020, avalia Themístocles Filho.
33
Fazale Rana, The Covid 19 Vaccines and God’s Providence (“As vacinas Covid 19 e a Providência de
Deus”), publicado no jornal eletrónico Reasons to believe (“Razões para acreditar”), de 23 de Dezembro
de 2020.
Alguns dos líderes e crentes defendem que não foi Deus que enviou o
coronavírus. Outros contradizem-se, pois defendem que Deus enviou o
coronavírus (como castigo), mas acreditam e defendem que Deus iluminou os
cientistas para estes descobrirem a vacina. Se o coronavírus foi a vontade de
Deus, os cientistas ao criarem a vacina não agiram contra a vontade de Deus ?
O problema aqui é semelhante ao da cura (independentemente da vacina), pois
se foi Deus que enviou o coronavírus, porque é que depois dá o dito por não
dito, e ilumina a mente dos cientistas para descobrirem a vacina para acabar
com o coronavírus ? Por um lado envia o coronavírus, e por outro lado envia a
inspiração para a vacina.
Teremos então de eliminar a hipótese de o coronavírus ter sido enviado
por Deus, e em vez disso aceitarmos apenas a hipótese de a vacina para o
coronavírus ter sido descoberta por iluminação de Deus na mente dos cientistas.
Há quem defenda que as descobertas dos cientistas, e não apenas a descoberta
da vacina para o coronavírus, têm Deus como origem. A Igreja hoje não afirma
que o conhecimento em si seja pecado, mas já o fez no passado, considerando-o
perigoso, pois podia conduzir ao orgulho do intelecto e, por conseguinte, ao
questionamentos sobre os dogmas religiosos. Algumas descobertas dos
cientistas, como por exemplo a de Galileu Galilei sobre o cosmos, que levaram à
teoria do heliocentrismo, e a de Charles Darwin sobre a origem do Homem, que
levaram à teoria do evolucionismo, contrariam a Bíblia (o geocentrismo, e a
criação do Homem por Deus), o que é portanto uma contradição com a crença
de que Deus está por trás das descobertas dos cientistas, a não ser que Deus,
através dos cientistas, negue aquilo que diz a Bíblia. Por outro lado, além de ser
um golpe na autoridade de Deus, é também um golpe na autoridade dos
cientistas, pois se soubéssemos por exemplo que Deus segredou os mistérios da
Física a Newton, este deixaria de ser um grande cientista para ser um impostor,
pois afinal não devia a si as suas descobertas mas sim a Deus.
A hipótese da inspiração divina não se coaduna com o facto de alguns dos
cientistas que fizeram parte das equipas de alguns dos países que
desenvolveram a vacina para o coronavírus, serem ateus, vacinas essas que
atingiram bons resultados, a não ser que Deus tenham sido indiferente ao facto
deles serem ateus, e os tenha inspirado na mesma, devido ao facto deles serem
bons cientistas. Mas Deus, no caso de existir, se admitirmos a hipótese de que
foi ele que inspirou a descoberta da vacina, falhou na inspiração dessa
descoberta, pois houve vacinas que resultaram e outras que não resultaram. Por
outro lado, mesmo as vacina adotadas oficialmente pela generalidade dos
países, as vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna, se foi Deus que as inspirou,
porque é que elas não são 100% eficazes ?
Se Deus está por trás da procura e da descoberta das vacinas, e dada a
imperfeição de algumas vacinas, pois algumas delas falharam, incluindo a
falibilidade das vacinas adotadas pela generalidade dos países, Deus inspirou
mal os cientistas, Deus é autor de uma inspiração imperfeita, e portanto Deus é
autor de coisas imperfeitas. Se Deus é autor de coisas imperfeitas Deus não é
perfeito, e se não é perfeito não é Deus.
Uma outra hipótese é a de Deus ter inspirado bem os cientistas, mas
alguns não terem dado ouvidos à sua inspiração, e a culpa não ser de Deus ao
inspirar os cientistas para a vacina, mas sim dos cientistas, que não seguiram
por onde Deus queria que eles seguissem. Falamos aqui do caminho a seguir do
ponto de vista científico, mas alguns crentes poderão também argumentar que
esses cientistas não receberam a inspiração divina devido aos seus pecados, ou
devido ao facto de serem ateus, mas alguns dos cientistas envolvidos nas
equipas de descoberta de vacinas eficazes também são pecadores, e alguns são
ateus, conforme dissemos. Independentemente dos cientistas serem ou não
crentes, para alguns crentes e líderes religiosos Deus está por trás da vacina que
resultou, e não das que falharam, pois Deus é Sabedoria e segundo esses crentes
Deus inspira os cientistas. Resta saber porque razão a inspiração resultou nuns
cientistas e não noutros, e ainda mais incompreensível é o facto de alguns deles
serem ateus, e de mesmo assim terem recebido uma inspiração divina.
Seja como for, no caso de ter sido Deus que inspirou a descoberta da
vacina (o que significa, portanto, que Deus não quer que as pessoas tenham o
coronavírus), não se entende porque razão Deus não age diretamente fazendo
com que as pessoas não fiquem infetadas, ou que recuperem “milagrosamente”,
em vez de agir através dos cientistas fazendo com que eles descubram a vacina.
No caso das pessoas que não ficaram infetadas, ou que ficaram infetadas mas
que recuperaram, alguns crentes afirmam que isso lhes aconteceu devido ao
facto de o terem pedido a Deus, mas no caso da vacina os cientistas não
pediram a Deus para a descobrirem, e descobriram a vacina na mesma.
Alguns dos meios utilizados nas vacinas, nomeadamente na vacina contra
a rubéola, são derivados de tecidos retirados de abortos terapêuticos realizados
na década de 1960, suscitando questões religiosas. Se é Deus que inspira as
vacinas, porque razão inspira os cientistas a fazerem vacinas que as religiões
condenam ? A gelatina de porco é um ingrediente que é usado para garantir a
estabilidade das vacinas de modo a que elas permaneçam seguras e eficazes
durante o seu armazenamento e transporte. Foram criadas várias vacinas, em
diferentes países. Ora, se foi Deus que inspirou a mente dos cientistas para
descobrirem algumas das vacinas que foram criadas para o coronavírus, porque
é que em algumas das vacinas os iluminou a fazerem uma vacina que contém
uma substância (gelatina de porco), cujo animal o próprio Deus proíbe que os
muçulmanos e os judeus consumam ? Será que há umas vacinas que são
inspiradas por Deus e outras não ? e como é que sabemos quais as que foram
inspiradas por Deus e as que não foram ? pelos ingredientes ? e se as que
contém ingredientes proibidos pelas religiões produzirem resultados positivos
para a saúde ?
Se foi Deus que inspirou os cientistas a descobrirem as vacinas, entre as
quais a vacina para o coronavírus, porque razão Deus não o faz também para
outros vírus e doenças ? porque razão Deus não inspira os cientistas a
descobrirem também uma vacina para a malária e uma vacina para o vírus do
HIV/Sida ? Haverá vírus e doenças de primeira e de segunda categoria ? A
malária afeta os países mais pobres do mundo, e mata milhares de pessoas em
vários países, incluindo muitas crianças, mas mesmo assim Deus não inspira os
cientistas a descobrirem uma vacina para a malária. Isso prova que Deus, se
existir, e que é suposto preocupar-se primeiro com os mais pobres, não é o
inspirador das vacinas, assim como no caso anteriormente referido, pois há
boas vacinas feitas com substâncias que algumas religiões dizem que Deus
proíbe. Assim como Deus não evitou que o coronavírus aparecesse e matasse
milhares de pessoas, também não interveio na vacina, e portanto a salvação do
problema ficou nas mãos do próprio ser humano.

OUTROS PROBLEMAS SUSCITADOS PELA “INTERVENÇÃO


MILAGROSA” CONTRA O CORONAVÍRUS
Conforme referimos, há crentes e líderes religiosos que atribuem a Deus
o facto deles e de outras pessoas terem recuperadas do coronavírus. Mas se
Deus enviou o coronavírus, conforme alguns deles também acreditam, porque é
que Deus enviou o coronavírus e depois a inspiração para a vacina, conforme
também alguns acreditam ?
Há também alguns crentes e líderes religiosos que defendem que não foi
Deus que enviou o coronavírus, pois segundo eles, de Deus só pode vir o bem e
não o mal. Mas se é Deus que envia o bem, neste caso a recuperação do
coronavírus, dado que houve pessoas que não ficaram recuperadas e faleceram,
porque é que Deus recupera uns e não recupera outros ? Devido aos pecados
daqueles a quem não recuperou ? mas há muitos pecadores (alguns deles
grandes pecadores) que ficaram recuperados, enquanto outros indivíduos, que
tinham um comportamento ético exemplar, não recuperaram e faleceram, assim
como houve indivíduos que ficaram infetados e outros não, independentemente
de serem ou não pecadores.
Por outro lado, se é Deus que cura, a sua cura por vezes fica mal feita,
como sucede por exemplo em pessoas doentes que recorreram a Deus e que
dizem terem ficado curadas, mas que continuaram a ter alguns problemas de
saúde ligados à doença de que dizem que ficaram curadas, e portanto só ficaram
curadas parcialmente. Isto contraria o princípio segundo o qual aquilo que
Deus faz é perfeito, dado que Deus enquanto Deus é um Ser perfeito, a não ser
que o inacabamento da obra operada por Deus, isto é, a cura não completa e
portanto mal feita, esteja dentro dos planos de Deus.
Este problema é semelhante ao que aconteceu por exemplo em 1568,
quando um surto de peste atingiu a cidade de Lisboa, que provocou uma elevada
mortandade. A população de Lisboa recorreu a Nossa Senhora da Saúde, que
tinha e tem uma capela erguida em sua honra na cidade de Lisboa. A peste foi
extinta, e a população atribuiu a sua extinção a Nossa Senhora da Saúde. No
entanto, em 1599 surgiu um novo surto da peste, que fez com que a população
de Lisboa tivesse de recorrer novamente a Nossa Senhora da Saúde. Muitas das
pessoas que tinham sido infetadas e cuja cura foi atribuída a Nossa Senhora da
Saúde, voltaram a ficar infetadas com o novo surto.
No caso do coronavírus, há pessoas que recuperaram mas que voltaram a
ficar infetadas. Se foi Deus que interveio na recuperação e se passados alguns
meses essas pessoas voltaram a ficar infetadas, então Deus interveio mal,
inacabadamente, sem perfeição, na recuperação operada. É como fazer uma
casa nova mas a casa cair passado pouco tempo, e portanto foi uma intervenção
imperfeita, o que revela que ao fazer um milagre imperfeito Deus faz coisas
imperfeitas, e portanto é um ser imperfeito naquilo que faz, e se é um ser
imperfeito não é Deus, o que é portanto uma contradição.
Se não foi Deus que interveio, e portanto se as pessoas recuperaram
naturalmente, esta contradição não se coloca. Todavia, se acreditar-se que a
recuperação foi operada por Deus, isto é, se uma pessoa estava infetada e deixou
de estar, e se isso foi por uma intervenção divina, estamos perante aquilo a que
os crentes denominam um “milagre”. Isto significa que além de acreditarem na
existência de Deus, acreditam também em milagres.
Considerando-se que recuperação do coronavírus acontece por um
milagre, muitos milagres acontecem, conforme acreditam os crentes, por terem
pedido a Deus que as recuperasse, e outros milagres por intervenção divina
sobre os crentes, mesmo sem estes o terem pedido a Deus. No entanto,
conforme referimos mais atrás, há muitas pessoas que não acreditam em Deus e
que não lhe pediram nada, mas que ficaram recuperadas, logo a sua recuperação
não se deve à intervenção divina, e muito menos em resposta a orações.
Pode-se retorquir que a recuperação se deve a um milagre de Deus para
todos (crentes e não crentes). Mas se Deus intervém nesse sentido, e se recupera
tanto os crentes como os não crentes em Deus, porque não agiu diretamente
acabando com o coronavírus (no caso deste não ter sido enviado por ele),
fazendo o milagre de as pessoas não ficarem infetadas, em vez de deixar que elas
primeiro se infetassem e depois as recuperar ?
Muitas pessoas que recuperaram atribuíram isso à intervenção divina e
agradeceram-no a Deus, e algumas consideraram mesmo uma milagre. Mas
será que tem sentido agradecer a alguém (Deus) um cura de algo, se esse alguém
(Deus) tinha poderes para o ter evitado ? por exemplo, quando uma pessoa cai
à água, não sabe nadar e é salva por alguém, agradece-lhe tê-la salvado. Ora, se
quem a salvou tinha poder para que ela não caísse à agua e a deixou cair na
mesma, para que a deixou cair ? e se aquele que caiu à água sabe que o outro
indivíduo podia evitar que isso acontecesse mas não fez nada e o deixou cair,
que sentido tem ficar-lhe imensamente grata por a ter salvo ?
No século XIV, na peste negra que atingiu a Europa, a mortalidade do
clero foi bastante elevada (50 %). “O desaparecimento físico de padres levava à
desertificação religiosa do território, ao fim da quadrícula assistencial que a
Igreja exercia. E se em muitas regiões da Grã Bretanha a taxa de mortalidade
dos religiosos andou próxima dos 50 %, em Barcelona chegaria aos 60 %. Dos
17 500 frades e freiras do clero regular existentes em Inglaterra antes da peste,
metade morreria com a epidemia. Com a morte dos sacerdotes, a Igreja debatia-
se com a incapacidade de enquadrar os fiéis. Falava disso o próprio Papa
Clemente VI, ao escrever para uma diocese que se queixava da falta de padres :
“Por causa da mortalidade da peste que assolou a vossa diocese neste tempo,
não há padres suficientes para orientar, dirigir as almas e para administrar os
sacramentos.”34
O mesmo aconteceu com a pandemia do coronavírus, pois houve
centenas de padres, frades e freiras que faleceram, assim como alguns bispos,
sobretudo em países católicos como a Itália, a Espanha, e a França. Também
muitos pastores das igrejas evangélicas, sobretudo no Brasil e nos Estados
Unidos, ficaram infetados e faleceram devido ao coronavírus. Esta situação foi
incompreensível para muitos familiares e amigos, em alguns casos foi revoltante
e fez alguns deles perderem a fé em Deus, pois apesar desses padres, pastores e
feiras terem recorrido fervorosamente à oração para não ficarem infetados ou
para não falecerem, apesar de se encontrarem zelosamente ao serviço de Deus, e
de serem bons líderes religiosos, e apesar da Igreja católica ter uma grande falta
de padres, foram na mesma infetados pelo coronavírus e faleceram.

34
Jaime Nogueira Pinto, Contágios – 2500 anos de pestes , Lisboa, Ed. Dom Quixote, 2020, p. 69.
O CORONAVÍRUS CONSIDERADO UM
CASTIGO DE DEUS
AS EPIDEMIAS E AS DOENÇAS COMO CASTIGO DE DEUS SEGUNDO
A BÍBLIA SAGRADA

Na Bíblia Sagrada as doenças adquirem um significado para além do seu


significado biológico : um significado punitivo pelos comportamentos errados
dos seres humanos, especialmente quando não são conhecidas as suas causas ou
a sua cura. Conforme afirma Sudan Sontag:“qualquer moléstia importante cuja
causa é obscura e cujo tratamento é ineficaz tende a ser carregada de
significação. Primeiro, os objetos do medo mais profundo (corrupção,
decadência, poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a doença. Os
sentimentos relacionados com o mal são projetados numa doença. E a doença
(assim enriquecida de significados) é projetada no mundo (...). E são as doenças
das quais se acredita terem múltiplas causas (isto é, as doenças misteriosas) que
reúnem as maiores possibilidades de serem usadas como metáforas para o que
se considera social ou moralmente errado.”35
Embora as doenças tenham uma causa natural, explicada
cientificamente, na Bíblia Sagrada a ideia de que as doenças são um castigo de
Deus é-nos apresentada num dos primeiros livros, o do Êxodo, em que Deus diz
A Moisés que se ouvirem atentos a sua voz, e fizerem o que é reto diante dos
seus olhos, se derem ouvidos aos seus mandamentos, e guardarem todas as suas
leis, não lhe enviaria nenhuma doença (Ex., 15:26), pois o desrespeito pela lei
provocaria doenças como castigo (Ex., 23:25).
O castigo de Deus surge também quando Miriam e Aarão criticaram
Moisés, em que Miriam aparece com lepra devido a um castigo de Deus por
terem criticado Moisés (Num., 12, 9-10). Também no livro das Crónicas, Deus
castigou Uzias com a lepra, dado que ele queimava incenso sem licença (II Cr.,
26:19-21). No livro dos Reis o profeta Eliseu amaldiçoou eternamente com lepra
Geazi e todos os seus descendentes (II Re., 5:27).
No livro dos Salmos a oração de um doente revela a sua crença de que a
sua doença é causada pelos pecados que ele cometeu (Sl., 38: 1-6), e ainda
segundo o mesmo livro, é Deus que sara as doenças (Sl., 102:3). No livro do
Levítico Deus ameaça enviar febre, devido ao facto de não lhe obedecerem (Lv.,
26:16): No livro do Deuteronómio Deus diz que desviará dos seus servidores
todas as doenças, mas que as porá sobre os que o odeiam (Deut., 7:15), e mais à
frente Deus ameaça com tísica, febre, inflamação, delírio, secura, ardência e
palidez (Dt., 28:22; 28:35; 28: 58-61) como castigo aos que infringirem a sua
Lei. “Se não tiveres cuidado de guardar todas as palavras desta lei, (...). Também
o Senhor fará vir sobre ti toda enfermidade e toda praga que não estão escritas
no livro desta lei, até que sejas destruído” (Deut. 28:58-61). No livro de Samuel
Deus ameaça castigar Israel com peste (2 Sm., 24:15-16). No livro das Crónicas,
Asa, quando teve uma doença nos seus pés, buscou médicos em vez de buscar
Deus, e isso é encarado na Bíblia de forma negativa. (II Cr., 16:12), o que
confirma a tese bíblica de que as doenças são um castigo divino. Segundo o
Livro dos Números, uma praga divina matou 14 700 pessoas (Núm., 16-49), e
outra praga divina matou 24 000 pessoas (Núm., 25-9).

35
Sudan Sontag, A doença como metáfora, Lisboa, Ed. Quetzal Editores, 2010, p. 76.
As hemorroidas foram também um castigo divino. A Bíblia diz que os
filisteus tomaram a arca da aliança e levaram-na de Ebenézer para Asdode. A
Bíblia diz que Deus resolveu ferir os filisteus com hemorroidas, e então eles
enviaram a arca da aliança para Gate, mas o problema agravou-se, pois o
destino teria que ser para o lugar de onde a arca nunca deveria ter saído, do
meio do povo de Israel. Além das hemorroidas atingirem os adultos, começaram
a atingir as crianças, pois a Bíblia diz que do menor ao maior dos seres humanos
todos haviam recebido esta enfermidade nas suas partes íntimas. Com a decisão
de não devolverem o bem mais precioso que Israel perdeu, os filisteus ainda
teimaram em enviar a arca para Ecrom, mas a praga das hemorroidas
continuou. Finalmente, ao consultarem os seus sacerdotes, os filisteus acharam
por bem devolver a arca da aliança a Israel, acompanhada de um holocausto
para expiação da culpa (I Sam., 5:1-12; 6:4).
São comuns as referências à lepra, às pestes, aos diferentes tipos de
doenças de pele, mas também às malformações e deformidades, com diversas
formas de deficiência física, havendo no Antigo Testamento também relações
entre a deficiência física e a vontade divina. Aí o próprio Deus declara-se o autor
da deficiência física, quando diz a Moisés: “Quem fez a boca do homem? Ou
quem faz o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou Eu, o Senhor?”
(Ex., 4:11). Atendendo às súplicas do profeta Eliseu, Deus castigou os sírios
através de cegueira (II Re., 6:18-19).
Passando ao Novo Testamento, verificamos na maior parte das curas a
necessidade de servir a Deus como forma de se manter livre das doenças, o
estabelecer de relações diretas entre a doença ou a deficiência física e o pecado,
assim como entre a cura da doença e o perdão divino. No evangelho de Lucas há
o relato da cura de um paralítico em Cafarnaum ligada ao perdão dos seus
pecados (Luc.,5, 20-24). Jesus ao fazer curas dizia às pessoas curadas que não
voltassem a pecar (a doença era encarada, portanto, como um castigo pelo
pecado). Segundo o evangelho de Mateus a epilepsia era causada pela possessão
demoníaca, e podia ser curada por um exorcismo (Mt., 17:14-18). A mesma
relação entre a doença e o pecado, e entre a cura e o perdão, é sublinhada no
evangelho de João. Aí, após ter curado um doente, Jesus disse-lhe que ele estava
curado mas que não devia voltar a pecar, para que não lhe acontecesse uma
coisa pior (Jo., 5:14). No Novo Testamento, em alguns casos, a doença era
também vista como um meio pelo qual se manifestavam as obras de Deus, para
o glorificar (Jo., 11:4). A epístola aos Coríntios diz também que a doença era um
castigo de Deus para que não se pecasse (2 Co., 12:7). Também a epístola do
apóstolo Tiago encara as doenças como consequência dos pecados (Tg., 6,
14:16).
Na Bíblia Sagrada existe também o aparecimento de pragas como sendo
um castigo de Deus : as dez pragas do Egito (Ex., 7:14); as pragas no incidente
do bezerro de Ouro (Ex., 32); a praga que acompanha a doação de carne de
codorniz no deserto (Núm, 11); a rebelião de Corá, Datã e Abirão, as suas
mortes e as pragas que se seguiram (Núm., 16); a murmuração do povo e a
consequente praga das serpentes venenosas (Núm. 21).

AS EPIDEMIAS COMO CASTIGO DE DEUS SEGUNDO A TRADIÇÃO


RELIGIOSA OCIDENTAL

Como vimos, na Bíblia todas as pestes e epidemias são anunciadas como


um castigo de Deus. Sendo assim, dado que os cristãos seguem a Bíblia, existe
historicamente também a tendência, na cultura religiosa ocidental, muito
marcada pelo Cristianismo, para encarar as pestes e as epidemias como algo
enviado por Deus, e como um castigo. Foram vários os autores que na tradição
católica defenderam essa ideia, como por exemplo Santo Isidoro de Sevilha
(570-636), que nas suas Etimologias afirmou seguinte : "Ainda que esta
enfermidade (a peste) seja muitas vezes provocada pelas propriedades que têm
o ar, ela não ocorre nunca, no entanto, sem a decisão de Deus onipotente”. 36
Para Jacques de Voragine (1230-1290) a epidemia da peste foi um castigo de
Deus, provocado pelos romanos, que tão logo acabada a Páscoa entregaram-se à
gula, ao jogo e à luxúria.37
Nas fontes religiosas portuguesas são também abundantes as referências
às pestes como castigo divino. Segundo frei Manuel da Esperança (1586-1670), a
dureza da peste de 1348 persuadiu a "todos que mais era um açoite, mandado
por Deus do céu em castigo de pecados, que doença, a qual tivesse princípio em

36
Santo Isidoro de Sevilha, Etimologias, I, Madrid, BAC, 1982, p.489.
37
Jacques de Voragine, La Légende Dorée, I, Paris, Ed. Garnier Flammarion, 1967, p.351.
as causas naturais", opinião partilhada pelo padre Francisco de Santa Maria
(1653-1713). Frei Luís de Sousa (1555-1632) na sequência de Santo Isidoro de
Sevilha, embora reconheça o caráter contagioso da doença, destaca que "nós os
que somos cristãos, e que damos a Deus (...) todo o governo e poder das coisas
humanas, a princípio mais alto devemos referir açoites tão horrendos." Para
Frei Francisco de Santiago (1692-1770) "a peste é um açoite da ira divina, e
entre todas as calamidades desta vida a mais cruel, e atrocíssima." O Padre
Baltazar Teles (15895-1675), referindo-se à epidemia de 1579, afirmou: "não há
dúvida de que este mal da peste é ordinariamente dado por Deus, em pena dos
pecados dos homens".Das doze causas da epidemia de 1569 apresentadas no
Breve sumário da peste, que segundo o seu autor anónimo foram juízos
correntes sobre o flagelo, onze especificam que eram um castigo divino,
enquanto só a última era devida a origens naturais : "cursos naturais e
influências dos ares". Frei Luís de Sousa, abordando o mesmo surto epidémico,
afirma que há largos anos que a cidade de Lisboa gozava de boa saúde, depois
do que "foi o Senhor servido de a visitar com um rigorosíssimo castigo de peste".
38

Integrada, por vezes, num conjunto de sinais, à peste juntam-se outros


flagelos que, enquanto característicos da justiça divina, reforçam o seu caráter
de punição. Assim, Frei Fernando da Soledade (1663-1737), refletindo sobre as
misérias que se abateram sobre o reino de Portugal durante o reinado de Afonso
V, afirmou que "o céu se armava por todos os caminhos contra nós com dilúvios
de água, peste, fome e guerra; mas tudo lhe mereciam as culpas dos homens."
Segundo o mesmo autor, no ano de 1601 encontram-se em várias partes do
mundo sinais evidentes de Justiça divina e "particularmente em Portugal, aonde

38
As obras dos autores aqui referidos são as seguintes : Frei Manoel da Esperança, História Seráfica,
segunda Parte, Lisboa, 1666, p.343; Padre Francisco de Santa Maria, Anno Historico, tomo Primeiro,
Lisboa, Domingos Gonsalves, MDCCXLIV, fol.106; Frei Luis de Sousa, Vida de D. Fr. Bertolameu dos
Martyres, tomo I, Lisboa, Typographia Rollandiana, 1857, pp.511-512; Frei Francisco de Santiago,
Chronica da Santa Provincia de N. Senhora da Soledade, tomo I, Lisboa, Ed. Officina de Miguel Manescal
da Costa, MDCCLXII, fol.319; P. M. Balthazar Tellez, Chronica da Companhia de Iesu, segunda parte,
Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1647, fol.198; Breue summario da peste que ouue em Lixboa o anno de 69 ,
Lisboa, Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de Reservados, Fundo Geral de Manuscritos, cod. 8571,
fols.LXX-LXXII; Frei Luis de Sousa, Terceira Parte da Historia de S. Domingos, Lisboa, Ed. Officina de
Antonio Rodrigues Galhardo, 1767, p.406. A tradução destas citações para Português contemporâneo é
de Victor Correia.
além da peste que a ninguém perdoava, apareciam os ares e campos coalhados
de gafanhotos."39
As epidemias, pragas, pestes, foram também descritas pelos clássicos da
literatura que viveram ou sofreram as suas consequências. Por exemplo
Giovanni Boccaccio (1313-1375), natural de Florença, cidade onde a Peste Negra
causou grandes danos, na sua obra Decameron contou a história de dez jovens
que durante a epidemia abandonaram a cidade, e que durante o seu
confinamento narraram uma série de contos licenciosos para esquecerem a
epidemia.40 Também o escritor inglês Geoffrey Chaucer (1343-1400), na sua
obra Os Contos de Cantuária, um conjunto de contos licenciosos, traça um
retrato da Inglaterra no tempo da Peste Negra.41 Esses escritores mostraram
bem como nesse tempo a peste era considerada pelos clérigos e pelo povo um
castigo de Deus. Esta conceção dos clérigos e do povo sobre a peste, existiu não
apenas na Idade Média mas ao longo dos séculos posteriores.
Mais próximo de nós no tempo, temos o escritor francês Albert Camus
(1913-1960). Embora este autor não tenha vivido durante um tempo de
epidemia, e embora não seja um autor religioso, antes pelo contrário, introduziu
na sua obra A Peste, como uma das principais personagens, o padre Paneloux,
para quem a peste era considerada um castigo de Deus para condenar aqueles
que se desviam do seu caminho : “Meus irmãos, vós caístes em desgraça, vós o
merecestes”. Nessa obra o padre Paneloux afirma também que esse sofrimento
salva o ser humano dos desvios por si cometidos : “esta praga que nos fere
também nos levanta e nos mostra o caminho”. 42
No entanto, dizer que as epidemias, pragas e doenças graves são castigos
de Deus pelos pecados dos seres humanos, não tem sentido, pois há muitas
pessoas e sociedades que tiveram e têm vidas consideradas “pecaminosas” e que
nunca foram nem são atingidas por esse males, e eram e são muito saudáveis.
Por outro lado, as crianças e os animais não pecam, e também foram e são
atingidos por epidemias, pragas, e graves doenças. Sobre isso falaremos em
pormenor no capítulo : A pandemia do coronavírus enquanto castigo dos
justos e dos inocentes.
39
Frei Fernando da Soledade, Historia Serafica Cronologica, tomo III, Lisboa, 1705, pp.340-341, Tomo V,
p.275; in Baltazar Teles, obra citada, fol.198.
40
Giovanni Boccaccio, Decameron, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2006.
41
Geoffrey Chaucer, Lisboa, Ed. Europa-América, 1996.
42
Albert Camus, A peste, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, 2020, p. 38.
A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS TAMBÉM CONSIDERADA COMO
UM CASTIGO DE DEUS

Nos tempos de hoje há muitos líderes e crentes religiosos que continuam


a defender que os desastres naturais (tsunamis, furacões, epidemias, etc.) são
castigos de Deus por causa dos pecados dos seres humanos. Assim, por exemplo
os muçulmanos do Sri Lanka culparam as celebrações do Natal de 2004, onde
houve abundância de vinho, pelo tsunami que se seguiu. Também, por exemplo,
quando em 2005 o furacão Katrina atingiu os Estados Unidos da América,
muitos clérigos norte-americanos culparam o “pecado humano” pelo furacão
Katrina.43
De forma semelhante, muitos clérigos e crentes em geral, não apenas nos
Estados Unidos mas também noutros países, defenderam e defendem que a
pandemia do coronavírus foi um castigo de Deus pelos pecados dos seres
humanos, de que apresentamos seguidamente alguns exemplos significativos.
Comecemos por ver alguns dentro do Cristianismo. Um importante líder
religioso da Ucrânia, o patriarca Filaret, que lidera a grande igreja ortodoxa
ucraniana – Patriarcado de Kiev, numa entrevista em Março de 2020, para uma
estação de televisão ucraniana local, disse que a pandemia do coronavírus era
uma “punição pelos pecados dos homens e pela pecaminosidade da
Humanidade”, e acrescentou : “em primeiro lugar, quero dizer o casamento
entre pessoas do mesmo sexo – esta é a causa do coronavírus”. Ora, este líder
religioso, apesar de não ser homossexual, ficou também infetado pelo
coronavírus, e teve mesmo de ser hospitalizado.
Também um pastor do Tennessee, nos Estados Unidos, Perry Stone,
pregou para os seus fiéis de uma igreja em Cleveland, que a pandemia do
coronavírus foi um castigo de Deus, devido ao casamento entre pessoas do
mesmo sexo, apesar dos países mais afetados não terem nenhuma lei que
permita o casamento entre pessoas do mesmo sexo), e devido ao aborto. A
China, a Itália e o Irão não legalizaram o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, nem aí é legal o aborto, mas foram dos três países que mais vítimas
tiveram.
43
Para uma coleção de sermões de clérigos norte-americanos que culparam o “pecado” humano pelo
furacão Katrina, ver na Internet o seguinte site : http://universist.org/neworleans.htm.
Esta justificação apresentada para o coronavírus como castigo de Deus é
semelhante à que nos Estados Unidos da América alguns crentes e pastores
protestantes apresentaram quando surgiu o vírus da SIDA. Assim, por exemplo,
o pastor Jerry Fallwell, teleevangelista e fundador da Moral Majority, no Verão
de 1983 afirmava sem rodeios que o vírus da SIDA não era apenas um castigo
que Deus reservava aos homossexuais, mas que era também um castigo de Deus
às sociedades que os toleravam. 44
Outros líderes e pregadores protestantes e evangélicos, nomeadamente
nos Estados Unidos e no Brasil, defenderam que o coronavírus foi um castigo
de Deus contra a China, por ser, segundo eles, um dos países onde os cristãos
sofrem mais perseguição, e por a China ser um país cujo Governo é comunista.
Esta tese foi defendida por exemplo por Rick Wiles, pastor e fundador da Igreja
TruNews, nos Estados Unidos. Segundo este líder religioso, se Xi Jinping, o
presidente da República Popular da China e secretário geral do Partido
Comunista Chinês, aceitasse Jesus, não haveria mais infeções e mortes. No
entanto, o coronavírus atingiu toda a Humanidade, e portanto também os países
não comunistas, que são a quase totalidade da Humanidade.
Outros líderes religiosos evangélicos, como por exemplo David Guzik,
pastor da Capela do Calvário em Santa Barbara, Califórnia (EUA), defenderam
que o coronavírus foi um castigo de Deus pelos maus hábitos alimentares dos
seres humanos, entre os quais comer carne de morcego, pois a Bíblia Sagrada
(Levítico, 11, 19), proibe expressamente comer carne de morcego, animal que se
pensa ter transmitido o coronavírus ao ser humano, pois a carne de morcego é
um prato muito usado na China.
Também alguns líderes, teólogos e crentes na religião muçulmana
defenderam que o coronavírus foi um castigo de Deus. O grupo terrorista Estado
Islâmico disse em 28 de Maio de 2020, através dos seus canais de comunicação
social, que o coronavírus foi “a vingança de Alá contra os infiéis”. Alguns líderes
muçulmanos apresentaram justificações absurdas para a existência do
coronavírus. Vejamos um exemplo. O teólogo islâmico, radicado no do Reino
Unido o, Sheikh Abdul Rahman Dimashqia , que estudou na Arábia Saudita, no
Paquistão e nos Estados Unidos, e que é um escritor e um orador importante na
religião muçulmana, declarou numa mensagem colocada num vídeo na Internet

44
Mark R. Kolewsky, “Religious Construction of the AIDS crisis”, in Sociological Analysis, 1990, pp. 91-96.
no dia 7 de Março de 2020, o que pensava do coronavírus. Segundo ele, os
muçulmanos xiitas disseram que Aisha, uma das esposas do profeta Maomé,
tinha tomado uma decisão religiosa que permitia o consumo de ratos e que essa
decisão foi a causa do surto de coronavírus. Esse teólogo islâmico afirmou que a
disseminação do coronavírus no Irão foi um castigo divino contra Aisha, e
afirmou também que o Irão estava enviando deliberadamente iranianos
infetados para cidades sunitas e países como o Líbano, a fim de espalharem o
coronavírus entre os muçulmanos sunitas. Por isso, segundo o Sheikh
Dimashgia, o coronavírus foi um castigo de Deus contra os muçulmanos xiitas.
No hinduísmo e no budismo existe a lei do Carma (ação), que associa o
efeito à sua causa, tendo o bem e o mal que um indivíduo tenha cometido numa
vida passada trazido as respetivas consequências, boas ou más para esta vida. A
lei do Carma é conhecida em certas religiões (hinduísmo, budismo, etc.), como
“justiça celestial”. A lei do Carma tem várias interpretações, e uma delas é a do
castigo que o ser humano sofre nesta vida pelos erros de uma vida passada.
Numa entrevista ao jornal Metro, do dia 7 de Julho de 2005, sobre o tsunami
que então tinha atingido alguns países da Ásia, o Dalai Lama, chefe espiritual
dos budistas, declarou que “aquele que pereceram no tsunami tinham um mau
Carma”.45
Para o budismo um espírito reencarna noutra corpo pelo que fez de
errado em vidas passada, e fica reencarnando até se redimir de todos os seus
erros. O facto de só algumas pessoas terem sido atingidas pelo coronavírus,
terem sofrido por isso e algumas delas terem falecido, foi também encarado por
alguns religiosos, nomeadamente budistas e hindus, como uma lei do Carma,
isto é, como um castigo pelos erros cometidos nas vidas passadas. Nestas
religiões não existe o conceito de Deus como existe noutras religiões, isto é, um
Deus pessoal, que envia castigos, mas indiretamente a ideia de castigo divino
também está presente, pois os seres humanos têm de reencarnar para se
redimirem dos seus erros no passado, apesar de não serem os autores daquilo
que outros indivíduos fizeram há muitos anos atrás, noutras vidas.
No Judaísmo apareceram também líderes religiosos a defenderem que o
coronavírus foi um castigo de Deus. Uma das teorias mais hilariantes foi a
45
Noticiado pelo jornal Republica. Link : http://www.ufal29.infini.fr/article.php?id_article=310. Le
tsunami en Asie du sud est la faute au karma selon le Dalaï Lama (“O tsunami na Ásia do sul é uma
consequência do carma segundo o Dalai Lama”).
seguinte : em Israel o rabi Aryel Lipo defendeu que Deus castigou a
Humanidade com o coronavírus até que o Terceiro Templo seja construído em
Israel. Havia dois Santos Templos de Jerusalém, que eram locais de culto
importantes e construídos no Monte do Templo, mas foram destruídos pelos
babilónios e pelos romanos. O rabi Aryel Lipo defendeu que era preciso
construir um Terceiro Templo para ajudar a restaurar a fé judaica e impedir a
propagação do coronavírus. Este rabi citou o profeta Isaías : “E acontecerá nos
últimos dias que se firmará o monte da casa do Senhor no cume dos montes, e
se elevará por cima dos outeiros; e todas as nações correrão para ele.” (Is.,
2,2), e comparou o Monte do Templo a uma coroa (em alusão à coroa do
coronavírus).
Segundo o rabi Aryel Lipo, “a doença do coronavírus chegou para nos
lembrar que a verdadeira coroa do mundo está faltando. O que impedirá o
coronavírus foi ensinado a nós pelo rei David”. 46 Ao construir-se o Templo,
segundo o rabi Lipo Deus restaurará a coroa de David : “Que seja da vontade
de Deus que merecemos construir uma coroa e um palácio para o Rei Único.
Se Deus quiser, esta coroa protegerá o mundo do coronavírus”. 47

Em todas estas interpretações há a ideia de punição, direta ou


indiretamente, e a ideia de que temos de fazer algo para acalmar ou apagar a
ira divina. No tempo em que os seres humanos se regiam por mitos, e ainda
hoje em algumas tribos em povos distantes, as trovadas eram consideradas um
castigo dos deuses, e os índios diziam que o barulho dos trovões era os deuses
a ralharem com os seres humanos, devido ao seu mau comportamento. Ora,
sabemos que não é o pecado dos seres humanos que faz com que haja
trovoadas, terramotos, tornados, inundações, vulcões, epidemias, e outros
cataclismos naturais, pois têm uma explicação científica.
Mas mesmo que fosse um castigo de Deus, esse castigo seria
incompreensível. Antes de criar o mundo Deus previu toda a dor e sofrimento
que implicaria criá-lo, e sabia que os seres humanos iriam cometer erros, mas
mesmo assim criou o ser humano, por isso, em última instância, não é o ser
humano o culpado do sofrimento que reina no mundo, mas Deus, pois foi Deus
que criou o mundo. Se um pai fizesse um filho apesar de saber

46
“E David construiu ali um mizbayach para Hashem e sacrificou holocaustos e ofertas de bem-
estar. Hashem respondeu ao apelo pela terra, e a praga contra Israel foi verificada” (II Samuel, 24,24).
47
Citado pelo jornal on-line Breaking Israel News, 24 de Fevereiro de 2020.
antecipadamente que ele viria a ser um louco cruel e assassino, esse pai seria
antecipadamente o responsável pelos crimes que o seu filho viesse a cometer.
Dado que Deus já sabia os crimes que cada ser humano iria cometer (pois Deus
sabe tudo), e mesmo assim decidiu criá-lo, então Deus tem responsabilidade
nisso.

A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS ENQUANTO CASTIGO DOS


JUSTOS E DOS INOCENTES

Na obra de Albert Camus, A Peste, o padre Paneloux afirma que o


sofrimento aí retratado tem algo de positivo : “esta praga que nos fere também
nos levanta e nos mostra o caminho”. No entanto, nesse romance existe a agonia
e a morte de uma criança (filho de um dos personagens do romance, o juíz
Othon), criança essa atingida também pela peste, que faz outro dos personagens
principais do romance, o doutor Rieux, declarar o seguinte : “recusarei até à
morte amar essa criação onde as crianças são torturadas”. Esta atitude do
doutor Rieux é semelhante à de Ivan, um dos personagens principais do
romance Crime e Castigo, de Fédor Dostoievsky, que se revolta contra o
sofrimento das crianças inocentes, que segundo Ivan não deveriam ser atingidas
por Deus como castigo pelos erros dos adultos.
As situações que originaram a atitude dos personagens destes romances
permanecem atuais, pois há muitos indivíduos justos e inocentes, incluindo as
crianças, que são atingidos por graves males, e portanto defender que a todos os
que foram e são atingidos por males foi-lhes dada uma retribuição justa, é algo
absurdo. Até há bem pouco tempo o povo judeu era considerado deicida pela
Igreja Católica, isto é, o povo judeu como um todo era considerado o portador
de uma responsabilidade coletiva, apesar de só alguns judeus, no tempo Cristo,
o terem morto. Esta coletivização da culpa é semelhante à ideia em que
acreditam algumas pessoas, segundo a qual os milhões de judeus que Hitler
exterminou, teriam sido punidos por Deus, que se serviu de Hitler, devido aos
pecados cometidos por judeus, no passado.
Além da inocência da generalidade dos judeus, temos também a
inocência dos animais, e neste caso uma inocência absoluta, pois os animais não
cometem pecados, não são agentes morais, não têm liberdade de escolha, agem
por instinto. Os animais não têm alma, para que possam ser compensados no
Paraíso pelo seu sofrimento terreno, ou castigados no Inferno, e além disso não
podem ser aperfeiçoados moralmente pelo sofrimento. No entanto os animais
também são atingidos em grande número por graves doenças, pandemias e
outros desastres naturais, e muitos deles sofrem intensamente. Por conseguinte,
também no caso dos animais a existência do sofrimento fica por justificar.
A pandemia do coronavírus atingiu todas as classes sociais, mas para os
pobres do mundo inteiro a situação foi ainda pior, devido às graves condições
económicas em que os pobres vivem em alguns países, onde os cuidados de
saúde são escassos, ou ainda nos próprios países desenvolvidos onde as
consequências são fortemente desiguais consoante o nível socioeconómico das
pessoas atingidas. Embora a pandemia tenha atingido ricos e pobres, os ricos
têm melhores condições económicas para se defenderem : melhor acesso aos
cuidados de saúde, carros privados para se deslocarem nas cidades em vez de
irem de transportes públicos cheios de gente, casa no campo para fugirem das
multidões, maior capacidade de suportarem a crise económica trazida pela
pandemia, mesmo que tenham perdido os seus postos profissionais, etc.
Portanto, embora a pandemia tenha sido um problema que atingiu a todos, as
condições de resposta à mesma foram diferentes, e portanto também neste caso
houve injustiça na punição, se entendermos a pandemia como um castigo de
Deus.
O coronavírus atacou cegamente a condição social das pessoas, mas
também a sua idade, e o seu comportamento, por isso esta catástrofe,
comparada com as das grandes guerras mundiais do século XX, foi bastante
injusta : as pessoas foram atingidas, sem encontrarmos qualquer razão de ser,
contrariamente àquilo que se passa nas guerras entre nações, ou ainda nas de
inspiração racista ou religiosa. No passado e no presente, as pessoas foram
atingidos pela tragédia da guerra, movidas por nacionalismo, por interesses
económicos, por fanatismo religioso, por racismo, etc., e portanto pagaram o
preço dos seus interesses, egoísmos, paixões, e fanatismos, que os levaram a
fazer a guerra.
Ora, no caso do coronavírus ter sido um castigo de Deus, este castigo foi
desproporcionado, pois também atingiu crianças, indivíduos bons e inocentes, e
muitas crianças ficaram sem pais, que faleceram devido ao coronavírus. Por
outro lado, muitos indivíduos que eram fervorosos crentes em Deus, e que
tinham um bom comportamento, e até mesmo alguns que eram grandes
benfeitores da Humanidade, foram também atingidos pela pandemia.
O facto de também os ter atingido, dado que Deus é perfeito e justo, leva
por outro lado a considerar que não é um castigo divino, pois se fosse um
castigo de divino, Deus seria injusto, o que iria contra a natureza de Deus, que é
um ser justo. Assim, não tem lógica dizer que a pandemia do coronavírus e
outros males naturais foram um castigo de Deus pela má conduta dos seres
humanos, dado que atingiu tanto as pessoas más como as boas, e em alguns
casos atingiu mais estas do que aquelas, pois muitas “pessoas más”
sobreviveram ao coronavírus.
Considerando-se o coronavírus como um castigo de Deus, e dado que
atingiu também os bons e os inocentes, segundo alguns teólogos isso deve-se ao
facto de Deus punir o pecado coletivamente, pois quando o pecado se
generaliza, compromete toda a família humana, a cidade, a região a nação, e
mesmo épocas históricas. Os maus e os bons sofrem : os maus como castigo
pelas suas faltas, os bons para se tornarem mais perfeitos, conforme defendem
alguns teólogos, como por exemplo um dos mais importantes teólogos e
filósofos dos séculos IV-V, Santo Agostinho.
Este autor, na sua obra A cidade de Deus, explica o motivo dos castigos
coletivos. Segundo ele, dado que as nações não passam para a vida eterna, são
recompensadas ou castigadas nesta vida pelo bem e pelo mal que praticam. Os
bons e os maus sentem os efeitos da recompensa e do castigo. Quanto aos bons,
o castigo purifica neles o amor de Deus, e pode levá-los das tribulações desta
vida para a vida eterna. Segundo Santo Agostinho, “os bons têm ainda outra
razão para sofrer os males temporais. É a mesma de Job : que o Homem
submeta o seu próprio espírito à prova, e comprove e conheça com que grau de
piedade e com que desinteresse ama a Deus”. 48 Por outro lado, segundo Santo
Agostinho, os bons “receiam pôr em perigo e perder a sua integridade e
reputação (…), comprazem-se nas adulações e temem a opinião pública, os

48
Santo Agostinho, A cidade de Deus, livro I, cap. IX, Lisboa, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1996,
p.124.
tormentos da carne ou da morte, isto é, por causa dos grilhões de certas paixões
e não por causa do dever de caridade”.49
Esta é também a tese dum importante filósofo e teólogo do século XIII,
São Tomás de Aquino, que afirma : “Justiça e misericórdia aparecem no castigo
dos justos neste mundo, uma vez que pelas aflições são limpos de falhas
menores, e são mais elevados nas afeições terrenas a Deus. Do mesmo modo
São Gregório Magno diz : os males que nos pressionam neste mundo, forçam-
nos a ir mais a Deus”.50
O facto de os males atingirem também os bons e os inocentes, e mesmo
que esses males sejam encarados como castigo de Deus, é também justificado
por alguns teólogos através da doutrina do pecado original, o qual atinge todos
os seres humanos. Vejamos essa teoria seguidamente.

O PECADO ORIGINAL COMO JUSTIFICAÇÃO DO CASTIGO DOS


JUSTOS E INOCENTES

Já apresentámos causas diretas como razões de ser dadas por alguns


crentes e líderes religiosos para a existência do coronavírus. Há que distinguir
entre causas direta, e fundamentos. Causas diretas são as razões dadas por esses
líderes e crentes para o facto de Deus, segundo eles, ter castigado a
Humanidade: a homossexualidade; o aborto; o divórcio; a eutanásia; o
comunismo; a ingestão de animais impuros; a não construção de um templo; o
facto dos seres humanos se terem afastado de Deus e não irem à missa ao
domingo, etc.
Os fundamentos vão mais longe, pois não têm a ver com as ações
concretas dos seres humanos aqui e agora, mas sim com a razão de ser última
do castigo divino, que segundo os cristãos é um fundamento de todos os males
que atingem a Humanidade, e não apenas o do coronavírus, e que justificariam
o facto de também as crianças, os justos e os inocentes serem atingidos por
pandemias e outros males : o pecado original.

49
Idem, ibidem, cap. I, p. 7.
50
São Tomás de Aquino, Suma Teológica, - Vol. III, I - II Parte – I, q. 21, a.4, São Paulo, Ed. Loyola,
2003, p. 54.
A doutrina do pecado original apoia-se em várias passagens da Bíblia : a
epístola de São Paulo aos Romanos (5:12-21) e aos Coríntios (1 Co 15,22), e o
salmo 51, por seu turno sob influência do livro do Génesis, em que Deus disse a
Adão e Eva que a árvore do conhecimento do bem e do mal lhes estava interdita,
e que se comessem do seu fruto se tornariam mortais e passariam a padecer ao
longo da sua existência enquanto seres humanos (Gén., 2, 17). No entanto,
tentados pela serpente, que representava o demónio, ambos comeram o fruto
proibido, tendo Eva cedido primeiramente à tentação e posteriormente
oferecido o fruto a Adão, que o aceitou. Ambos continuaram vivos, mas foram
expulsos do jardim do Paraíso.
Segundo a Bíblia foi um ato de desobediência e uma declaração de
independência, pois comer o fruto da árvore proibida era contrário à vontade de
Deus, pois a partir de então o Homem passaria a saber o que é o bem e o mal.
Mas porque culpar Adão por um erro moral que ele nem entendia? Ele ainda
não tinha comido o fruto da Árvore do Conhecimento do bem e do mal para
saber o que era o bem e o mal. Então porquê culpá-lo de que ele cometeu um
erro moral ? Mesmo assim Deus castigou-os (Gén., 3, 17-17).
Por outro lado, a relação rompida entre a criatura e o seu Criador, Deus,
acarretou consequências que ultrapassaram a esfera da Humanidade. A partir
do momento em que Adão e Eva desobedeceram a Deus, segundo os teólogos,
toda a criação de Deus sofreu também as consequências. Adão e Eva pecaram, e
então todo o mal entrou no mundo. A própria Natureza também ficou
manchada e começou a ter parasitas, doenças, epidemias, secas, terramotos,
tempestades, tornados, erupções vulcânicas, etc. Conforme sublinha o apóstolo
Paulo, a Natureza “ficou submetida à inutilidade, não pela sua própria escolha,
mas por causa da vontade daquele que a sujeitou” (Rom., 8, 20), isto é, por
culpa do pecado original, cometido por Adão e Eva.
Dado que Deus os tinha avisado e eles não cumpriram, estabeleceu-se um
fosso entre Deus e a Humanidade, a atitude deles conduzi-os a uma existência
mortal. Enquanto dantes Adão e Eva eram seres imortais, a partir do momento
em que cometeram o pecado original passaram a sofrer de males, a terem
doenças e os seus descendentes passaram a morrer. Segundo o livro do Génesis,
foi devido ao facto de Adão e Eva rejeitaram Deus, que o pecado original entrou
no mundo, e com ele todas as consequências. Devido ao “pecado” de Adão e Eva,
os seres humanos deixaram Deus, e isso atingiu toda a Humanidade. Por seu
turno, segundo o apóstolo Paulo, “por meio de um só homem o pecado entrou
no mundo e, pelo pecado, a morte; e assim a morte passou a todos os homens,
porque todos pecaram”, afirma São Paulo (Rm., 5,12).
Assim, a Terra foi amaldiçoada por causa de Adão e Eva, e passou a estar
cheia de desgraças (terramotos, tornados, cheias, secas, epidemias, vírus,
doenças, etc.). O seres humanos têm sido e são atingidos por catástrofes
naturais, como por exemplo pandemias, porque Adão e Eva pecaram. Desde
então os seres humanos tornaram-se também sujeitos a doenças e tornaram-se
mortais. A culpa de Adão e Eva privou-os a eles e aos seus descendentes não
apenas da Graça divina, mas também de todos os dons que Deus lhes tinha
concedido na Criação. Dantes o mundo era perfeito, mas com o pecado de Adão
e Eva foi amaldiçoado por Deus. A partir desse momento, as epidemias, a
doença e a morte entraram no mundo
No entanto, a doutrina do pecado original deixa muita coisa por explicar,
principalmente em relação aos animais, pois os animais não pecaram, e
também são vítimas de desastres naturais, também sofrem doenças e também
morrem, assim como as plantas. Por outro lado, se Adão e Eva cometeram o
pecado original, que culpa temos nós disso? Porquê esta culpa coletiva, e para
toda a eternidade ? porque razão temos de continuar a sofrer, desde o início da
Humanidade, pelo pecado de Adão e Eva ? não fomos nós, individualmente
falando, quem cometeu o pecado original, mas sim eles.
Se as epidemias são também uma consequência do pecado original (como
se já não bastasse o castigo no Inferno), porque razão só aparecem em
determinados períodos da História ? Durante séculos houve largos períodos de
tempo em que não houve epidemias. Por exemplo a peste bubónica, a chamada
“gripe espanhola”, apareceu há cerca de um século. Isso significa que muitas
pessoas, que viveram menos de 100 anos, escaparam a esse mal.
À luz da doutrina do pecado original, que se propõe justificar a existência
do mal natural, Deus impôs o sofrimento sobre toda a Humanidade, dado que
Adão e Eva desobedeceram ao comerem o fruto da árvore do conhecimento do
bem e do mal. No entanto, esse castigo de nada valeu, pois segundo a Bíblia,
Deus teve de enviar depois o castigo do dilúvio, matando todos os seres
humanos, salvando apenas Noé e a sua família. Por sua vez, também o castigo
do dilúvio de nada valeu, pois os seres humanos que se seguiram continuaram a
cometer erros, tal como hoje, e assim continuará a ser, independentemente do
dilúvio e de outras catástrofes naturais como as epidemias.
O CORONAVÍRUS NÃO CONSIDERADO
UM CASTIGO DE DEUS

SE DEUS NÃO EXISTIR, O CORONAVÍRUS NÃO É UM CASTIGO DE


DEUS

Antes de mais há que ver a conceção sobre Deus. O facto de os deuses


mudarem ao longo da História, o facto de novos deuses emergirem como
resultado de novos contextos geográficos, deixa as pessoas confusas, fazendo-as
concluir que a pluralidade dos deuses, cada um deles à medida de cada cultura e
de cada época, e as diversas explicações religiosas dadas para aquilo que
acontece no mundo, não são mais do que uma criação humana. Exemplo disso é
o castigo dos deuses da Antiguidade Clássica, que fizeram com que o facto de
Pandora ter aberto uma caixa (que ela estava proibida de abrir), tivessem
entrado todos os males na Humanidade, incluindo as epidemias e as doenças.
Os gregos acreditavam nos seus deuses, mas hoje já nem eles nem ninguém
acredita nos seus deuses, e foram substituídos por outros deuses.
Uma conceção mais simplificada é a do monoteísmo, segundo a qual só
existe um Deus, um Deus Uno, e não uma pluralidade de deuses como na
Antiguidade Clássica. Mesmo assim há que esclarecer a que Deus Uno nos
referimos. Não nos referimos aqui ao Deus Uno do deísmo, que é a conceção
filosófica defendida por filósofos como Aristóteles, que acreditam na criação do
Universo por uma inteligência superior, a que geralmente se chama “Deus”, em
vez dos elementos comuns das religiões, como a revelação direta, ou a tradição.
Segundo o deísmo, Deus criou o Universo e as suas leis, retirando-se em seguida
da criação para a deixar desenvolver-se por si própria. Assim, por exemplo
Voltaire, outro dos filósofos deístas mais famosos, apesar de na sua obra
Cândido descrever uma vasta gama de desastres, cataclismos, guerras, mortes,
crueldades e sofrimentos, Voltaire não nega a existência de Deus.
No entanto, este Deus não é providente, é um Deus que está ausente do
mundo e é moralmente neutro e impassível perante o que nele se passa, é um
Deus que não atende a orações, que não faz milagres nem se preocupa com a
sorte e o dia a dia dos seres humanos. Este Deus é indiferente ao sofrimento das
pessoas, incluindo as pandemias, pois limitou-se a criar o mundo,
determinando as leis que o regem, e depois deixou-o entregue a si próprio. Um
Deus deste tipo também não recompensa nem castiga, pois é um Ser distante e
ausente. Ora, se concebermos Deus neste sentido, não o devemos
responsabilizar pelo coronavírus, nem temos de esperar que nos ajude devido a
isso e a outros males que nos acontecem. Este Deus, do qual não temos que
esperar nada, é mais facilmente compatível com os sofrimentos da
Humanidade, entre os quais os provocados pelo coronavírus.
Pode-se acreditar na existência de Deus com estas características, como
faz o deísmo, e não na existência do Deus interventivo na Humanidade, por isso
pode-se defender que o coronavírus não é um castigo de Deus, dado que o Deus
interventivo na Humanidade não existe, e só existe o Deus do deísmo.
O facto de nos referirmos no presente livro ao Deus interventivo (ao Deus
do teísmo), partindo do pressuposto da sua existência, e não ao Deus ausente
(ao Deus do deísmo), não significa que este último exista, ou que é esta a
conceção certa que se deva ter sobre Deus. Referimo-nos apenas ao primeiro,
porque é a este que se deve pedir responsabilidade, dado que é a ele que se
refere a ideia de castigo, ou a quem se pede auxílio, dado que ele é considerado
um ser interventivo na Humanidade.
A existência do mal natural, como por exemplo as pandemias, leva
muitos indivíduos a não acreditarem na existência de Deus, tendo em conta que
um Deus que tem como atributos a bondade, a omnipotência, e a intervenção na
Humanidade, não deveria permitir o mal natural. Dado que as pandemias e
muitos outros males naturais existem, Deus não existe, ou é contraditório que
exista. Essa não é a única razão para os que não acreditam na existência de
Deus não acreditarem nele, mas a existência do mal natural é uma das razões
mais fortes.
Todavia, referimo-nos aqui ao postulado de que Deus não existe,
defendido por muitos indivíduos e alguns filósofos, independentemente de
haver ou não o mal no mundo, independentemente de haver ou não pandemias.
A descrença em Deus não é apenas uma consequência de haver mal no mundo,
pois deve-se a mais justificações, apresentadas pelos ateus, mas que devido à
sua diversidade e a serem defendidas por muitos autores, não cabe aqui
descrever.
Conforme referimos, é mais facilmente compatível a crença no Deus do
teísmo com a existência do mal natural, do que a crença no Deus das religiões e
a existência do mal natural. Dado que é das religiões, conforme vimos, que
procede a ideia de que o coronavírus é um castigo de Deus, se o Deus das
religiões não existir, também não existe qualquer regência de Deus sobre o
mundo, não existe nenhum ser transcendente a reger o bem e a justiça na
Humanidade, não existe nenhum Ser direta ou indiretamente a quem se possa
pedir responsabilidades pelo que acontece no mundo, como por exemplo as
pandemias.
Não existindo nenhum ser transcendente ao qual se possa exigir algo ou
de quem se possa esperar um castigo ou uma retribuição pelo nosso
comportamento no mundo, se não existe nenhum ser perfeito e omnipotente,
que comanda tudo o que existe, então não temos de atribuir a esse ser
responsabilidades pela existência do coronavírus. Se não existir Deus
interventivo, se não existe um Ser que criou o Universo e que é todo poderoso,
se não existe um Deus bondoso e zeloso que se interessa pela Humanidade, não
temos de esperar dele responsabilidades pelo coronavírus. Se não existe um
Deus para dar sentido à existência do mundo e do Homem, não tem razão de ser
atribuir culpas e exigir responsabilidades a Deus pelo mal que existe no mundo.
Se Deus nem sequer existe, tanto o Deus do deísmo como o Deus das religiões,
não tem sentido dizer que o coronavírus é um castigo de Deus, ou que havendo
coronavírus Deus não se interessa pela Humanidade, ou que tem
responsabilidades, diretas ou indiretas, na existência do coronavírus, dado que
só se pode atribuir responsabilidade moral a um ser realmente existente.
Não se trata apenas de defender que a razão para a existência do mal no
mundo se deve a outras razões que não a Deus (no caso do coronavírus, razões
naturais e humanas), pois nesse caso pode-se continuar a acreditar em Deus.
Não se trata apenas de defender que a existência do mal no mundo não tem a
ver com Deus e com aquilo que Deus pode, quer ou permite, pois isso seria
compatível com a crença na existência de Deus (para os que não consideram que
isso é contraditório). Trata-se de ter em consideração que o mal no mundo
existe (por exemplo o coronavírus), mas que isso não acontece porque Deus
existe (sendo um castigo de Deus, ou sendo algo que mesmo não sendo castigo
de Deus existe por permissão de Deus), mas sim que é algo que existe e que
Deus não existe.
Mas não é apenas a existência do mal no mundo, como por exemplo o
coronavírus, que pode ser uma razão, como acontece de facto com alguns
indivíduos, para não acreditarem em Deus, pois mesmo que não houvesse mal
no mundo, isto é, ainda que vivessemos num mundo perfeito, isso não
significaria que Deus existisse, pois há outros argumentos nos quais se apoiam
os que defendem que Deus não existe.
Conforme já referimos, a tese da compatibilidade do mal com a existência
de Deus é mais facilmente aceitável para quem defenda o Deus do teísmo, e aí
não temos que reclamar a sua intervenção, nem dizer que as pandemias são um
castigo de Deus, mesmo que esse Deus exista. Ora, se o Deus das religiões não
existir, então as pandemias não são um castigo de Deus. Trata-se portanto de
um falso problema discutir se as pandemias são ou não um castigo de Deus.
Num dos próximos capítulos discutiremos as contradições entre os atributos de
Deus e a existência da pandemia do coronavírus : porque é que Deus, sendo um
Ser bom e misericordioso (como é próprio do conceito de “Deus”) não nos livra
do coronavírus ? porque é que Deus, sendo um Ser todo poderoso (como
também é próprio do conceito de “Deus), permite que haja o coronavírus ?
Estas interrogações pressupõem que Deus exista, mas se Deus não existir, não
tem sentido colocar estas questões. Da mesma maneira, se Deus não existir, não
temos de esperar de Deus recompensa para o nosso comportamento no mundo,
nem temos de ter medo dos castigos de Deus pelo nosso comportamento, nem
defender que o coronavírus é um castigo de Deus. Não se trata apenas de
defender que o coronavírus não é um castigo de Deus mas que se deve a outras
causas (e neste caso Deus poderia existir na mesma), mas sim defender pura e
simplesmente que Deus não existe (para aqueles que defendem que ele não
existe), e sendo assim o coronavírus não pode ser considerado um castigo de
Deus.

MESMO QUE DEUS EXISTA, O CORONAVÍRUS NÃO É UM CASTIGO


DE DEUS

Outra tese defensável é a de que os que foram infetadas e faleceram pelo


coronavírus, e os danos sociais e económicos provocados pelo coronavírus, não
significa que seja um castigo de Deus. Alguns dos homens amados por Deus –
quer no passado quer no presente – foram atingidos por doenças, como por
exemplo Jó. Como negação das doenças enquanto castigo de Deus, a Bíblia
mostra também, através do caso de Jó, que as doenças não são necessariamente
um castigo de Deus. O próprio Deus repreende os amigos de Jó, que acusaram
Jó de ser responsável pelos seus próprios sofrimentos (Jó, 42,7-9). Ao longo do
livro de Jó procura-se denunciar o falso vínculo de causa-efeito que tenha
necessariamente de existir entre uma calamidade e eventuais culpas passadas.
Assim, não será pelo facto de alguma desgraça ter caído sobre algumas pessoas
que se pode concluir que essas pessoas tenham necessariamente feito algo de
mal.
Conforme se pode ver na Bíblia Sagrada, Timóteo adoecia
frequentemente (1 Timóteo, 5,23). No entanto, a Bíblia não diz que isso era um
castigo de Deus. Muitas vezes essas pessoas, segundo a Bíblia, estavam
simplesmente no sítio errado e à hora errada :“E vi ainda outra coisa debaixo do
sol: os velozes nem sempre vencem a corrida, e nem sempre os fortes vencem a
batalha; os sábios nem sempre têm alimento, os inteligentes nem sempre têm
riquezas, os que têm conhecimento nem sempre têm sucesso; porque o tempo e
o imprevisto sobrevêm-lhes a todos” (Eclesiastes, 9,11).
No evangelho segundo São Lucas, Cristo afirmou claramente que os
Galileus cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios, não foram mais
pecadores do que os outros Galileus por terem sofrido tais coisas (Lucas, 13, 1-
2), e que os dezoito indivíduos sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou,
não eram mais culpados do que todos os outros que habitavam em Jerusalém
(Lucas, 13, 4-5). Há também um texto da Bíblia em que perguntaram a Jesus
sobre um homem cego de nascença, se este tinha pecado ou se, dado que os seus
pais tinham pecado, ele estaria a sofrer em consequência dos pecados dos seus
pai. Os discípulos perguntaram-lhe : “Quem pecou, para que este homem
nascesse cego?”. A resposta de Jesus foi a seguinte : “Nem ele pecou nem seus
pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus” (João 9,2-3).
No entanto, estas afirmações da Bíblia são contraditórias com outras
afirmações da Bíblia segundo os quais as doenças e as epidemias são um castigo
de Deus, conforme mostrámos no capítulo do presente livro : “O coronavírus
considerado um castigo de Deus”, nomeadamente no subcapítulo : “As pestes e
as doenças como um castigo de Deus segundo a Bíblia Sagrada”, na qual aliás
existem muitas outras contradições.51
Dado que a Bíblia tem muitas contradições, incluindo sobre a razão de
ser das pandemias, teríamos que recorrer ao que dizem as Igrejas cristãs hoje,
mas também aqui há versões diferentes : segundo alguns líderes religiosos, a
pandemia do coronavírus foi um castigo de Deus, conforme vimos no capítulo
anterior, mas segundo outros, não foi um castigo de Deus. Alguns líderes
51
Ver o livro de Victor Correia: Os mistérios do livro sagrado – contradições, erros e absurdos da Bíblia
Sagrada, Lisboa, Ed. Clube do Autor, 2020.
religiosos importantes, tanto evangélicos como católicos, negaram que o
coronavírus tenha sido um castigo divino. Por exemplo o presidente da Igreja
Evangélica Reformada da Suiça, o pastor Gottfried Locher, numa entrevista
exclusiva concedida ao programa “Sinais dos tempos” da Rádio Televisão Suiça
(RSI), transmitido no dia 12 de Março de 2020, rejeitou claramente a ideia de
que o coronavírus fosse um castigo de Deus : “Não se pode dizer que Deus é a
razão de ser da nossa infelicidade. Esta antiga visão encontramo-la no livro
bíblico de Job. Esta pandemia não é devida à nossa relação com o divino, mas
antes àquilo que é a norma do nosso mundo, cheio de belas coisas, mas também
de coisas terríveis”.
Também dentro da hierarquia da Igreja Católica se defendeu que o
coronavírus não foi um castigo de Deus. O Papa Francisco, na sua encíclica
Fratelli Tutti, publicada no decorrer da pandemia do coronavírus, afirmou o
seguinte sobre esta pandemia: “Não quero dizer que se trata de uma espécie de
castigo divino. Nem seria suficiente afirmar que o dano causado à Natureza
acaba por se cobrar dos nossos atropelos. É a própria realidade que geme e se
rebela”.52
Um jornalista perguntou a Dom Mário Delpini, sucessor de São Carlos
Borromeu na arquidiocese de Milão, em Itália : “Devemos implorar a Deus por
socorro porque, como dizem alguns pregadores, é Ele quem envia o flagelo do
vírus ?” A resposta do bispo foi a seguinte : “Essas são teorias sobre Deus, que
eu não sei de onde vêm, e que não compartilho. A oração agora não pretende
pedir a Deus que remova um castigo que Ele mesmo enviou; nós não temos um
Deus irado que deve ser acalmado. Para mim isso parece uma conceção muito
pagã”.53
O padre franciscano Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia
desde 1980, também negou, num sermão que pregou na noite de sexta feira
santa na Basílica de São Pedro, então vazia, que a pandemia do coronavírus
fosse um castigo de Deus : “Deus é o nosso aliado, não o aliado do vírus ! (…) se
esses flagelos fossem castigos de Deus, seria inexplicável porque razão eles

52
Papa Francisco, Fratelli Tutti, carta encíclica sobre a fraternidade e a amizade social, Lisboa, Ed.
Paulinas, 2020, p. 25
53
Salvatore Cernuzio, “Delpini : Da pagani pensare a un Dio che manda flagelli. A Milano Chiese chiuse
mai”, jornal La Stampa, 16 de Março de 2020, p. 8.
atingem bons e maus, e porque geralmente os pobres sofrem as maiores
consequências. São eles mais pecadores do que os outros ?” 54
O cardeal D. António Marto, bispo da diocese de Leiria-Fátima, em
entrevista ao portal católico espanhol Religión Digital, pronunciou-se do
mesmo modo. Questionado sobre o facto de alguns membros da Igreja
considerarem o coronavírus como um "castigo de Deus", o bispo de Leiria-
Fátima respondeu : “Isso não é cristão. Só o dizem aqueles que não têm nas suas
mentes ou corações, por ignorância, fanatismo sectário ou loucura, a verdadeira
imagem de Deus Amor e Misericórdia revelada em Cristo”. 55
Estas posições têm como origem uma menor radicalização nas questões
teológicas, nos tempos de hoje. Geralmente são os pastores e evangélicos
fundamentalistas, e também alguns padres e fiéis católicos ultra conservadores,
que defendem que o coronavírus foi um castigo de Deus. Nos tempos de hoje a
rara referência ao coronavírus como castigo de Deus é fruto de um maior
esclarecimento teológico e da evolução do conceito sobre Deus. Como afirma
Artur Morão, “trazer Deus para a pandemia também é problemático, porque
“quando falamos de Deus não é de Deus que falamos” (Gabriel Marcel), mas dos
nossos fantasmas e projeções a seu respeito (e, nesta insinuação de “castigo”,
justamente do nosso sadismo), e os conceitos que dele formamos são, amiúde,
simples “ídolos” (Gregório de Nissa). A palavra “Deus” – como nos lembra M.
Buber – é de todas a mais enodoada e suja, porque objeto, ao longo da História,
das instrumentalizações mais execráveis”.56
Por outro lado, o facto de muitas pessoas hoje não defenderem que a
pandemia do coronavírus foi um castigo de Deus, resulta também da
indiferença da sociedade perante Deus, ou da perda de importância da religião.
Enquanto dantes havia a tendência para em tempos de epidemia as pessoas
atribuírem isso a um castigo divino e acorrerem às igrejas em súplica a Deus,
isso hoje acontece muito menos. Dado que Deus deixou de fazer sentido para
muita gente, hoje existe a tendência para não se buscar a justificação da
pandemia do coronavírus como um castigo divino. Mesmo os crentes, apesar de

54
“O Papa celebra a paixão do Senhor. Como o pregador papal reflete na pandemia do Covid 19”, jornal
Vaticano News, 10 de Abril de 2020, p, 3.
55
João Francisco Gomes, “Ignorância, fanatismo ou loucura – cardeal António Marto critica quem diz
que pandemia é castigo de Deus”, Observador, 15 de Abril de 2020, p. 5.
56
Artur Morão, Ressurgir – 40 perguntas sobre a pandemia , o. c., pp. 189-190.
acreditarem em Deus, colocam a tónica no Deus de amor e de misericórdia, e
apresentam outras justificações para a existência do coronavírus.
Ora, mas mesmo que o coronavírus não seja um castigo de Deus, será que
Deus fica isento de responsabilidades ? É o que veremos no capítulo seguinte.
 

O CORONAVÍRUS NÃO É UM CASTIGO DE DEUS MAS A SUA


ORIGEM É DEUS

Segundo a Bíblia Sagrada (Génesis, 1,1-2 e 1,20-25), foi Deus que criou
todo o ser vivente, por isso criou também os vírus, as bactérias e os demais
organismos que produzem as doenças. O apóstolo Paulo também afirma o
seguinte : “pois tudo o que Deus criou é bom, e nada deve ser rejeitado, se for
recebido com ação de graças” (I Timóteo, 4,4).
Sem o poder criador de Deus, aquilo a que chamamos doenças (assim
como tudo o que existe naturalmente no mundo, tal como a própria vida) não
teriam existência. Nada acontece na Natureza que não seja devido ao poder do
“Criador”, que é a causa última de tudo o que existe, direta ou indiretamente.
Cristo realçou que tudo o que acontece, acontece porque Deus o quer ou permite
(Mateus, 10,29-30). O próprio Catecismo da Igreja Católica, no seu artigo 338,
também diz isso : “Nada existe que não deva a sua existência a Deus criador”.
Por exemplo na malária, se toda a criação é obra de Deus, ao ter criado o
mosquito que origina a malária, Deus criou também a malária. No caso do
coronavírus, considerando-se que este tem origem também em animais,
nomeadamente os morcegos ou os pangolins, Deus criou os animais que é
suposto terem originado o coronavírus, logo o coronavírus tem como origem
uma criação de Deus.
Excluir qualquer intervenção divina nos acontecimentos seria negar que,
conforme afirma São Tomás de Aquino, “todas as coisas, na medida em que
participam da existência, devem igualmente estar sujeitas à providência
divina”.57 Deus não criou apenas todos os seres existentes através de um ato
sobrenatural da sua vontade, mas sustenta-os na existência e guia-os para o fim
para o qual os criou, isto é, a sua glória, sem no entanto tirar a liberdade das

57
São Tomás e Aquino, Suma Teológica, o. c., vol. I, q. 22, a. 2c., p. 37.
criaturas racionais. Por outras palavras, toda a criação está sob o poder do
governo divino, e sujeita aos sábios desígnios de Deus, conforme ensina São
Tomás de Aquino :
“Deus é governador e causa dos seres, pois a Ele pertence produzi-los e
dar-lhes a perfeição, o que tudo é próprio de quem governa. Ora, Deus é, não a
causa particular de um género de seres, mas a causa universal da totalidade dos
seres. Por onde, assim como nada pode existir se ser criado por Deus, assim
também nada há que lhe possa escapar ao governo. (…) Por onde, como nada
pode haver que não se ordene à bondade divina como fim, segundo do sobredito
se colhe, impossível é a qualquer ser subtrair-se ao governo divino”. 58
A teoria do desígnio inteligente, que faz parte dos argumentos
teleológicos em defesa da existência de Deus, que é igualmente defendida por
São Tomás de Aquino,59 pode levar a concluir que o próprio coronavírus
também é obra de Deus. Segundo a teoria do desígnio inteligente, a
complexidade da Natureza indica a existência de um desígnio inteligente, isso é,
Deus. Existe uma ordem na Natureza, onde tudo, até os mais ínfimos
pormenores, está meticulosamente e cuidadosamente organizado, e parece
muitíssimo improvável que tudo isso tenha sido meramente produto do acaso.
Essa ordem não tem explicação, mas se pressupormos que Deus foi o criador do
Universo, então essa ordem só pode ter tido como origem uma inteligência
divina.
Ora, essa ordem e complexidade existe também no coronavírus,
conforme mostraram os cientistas, e isso pode suscitar também a ideia de um
design inteligente, conforme defende o cientista Marcos Eberlin : “Há sinais
claros e evidentes do Design inteligente em vírus. Ao ver por exemplo como
estes vírus funcionam e como eles atuam. Os vírus são fragmentos de material
genético, RNA, DNA empacotados e protegidos por proteínas, uma capa
proteica. Para o coronavírus, esta capa proteica ainda é colada por gordura.
Os vírus são verdadeiras naves espaciais invasoras de células, é realmente
uma arma de invadir células, como por exemplo o vírus T4, ele funciona como
uma nave espacial, ele pousa na superfície da célula, em sua membrana, e ele
tem uma espécie de seringa, então ele injeta o seu DNA, fantástico, é uma
máquina. Os vírus portanto, tem sinais claros e evidentes de design
58
Idem, ibidem, q. 103, a.5.
59
Idem, Ibidem, Ia.Q2.a. 3.
inteligente, eles tem propósito, intenção, então vemos, como eles entram na
célula, a célula tem uma fechadura, uma senha, e para entrar na célula, tem
que ter a chave correta, ou seja, uma proteína correta, e este vírus tem a
proteína correta, a célula o reconhece como um amigo, e não é, na realidade é
um inimigo disfarçado, um sequestrador, um invasor, e ao entrar na célula ele
usa a maquinaria celular da própria célula a seu favor para se reproduzir a sua
prole, tem uma intenção, um propósito, uma engenharia, sofisticação, sinais
claríssimos de design inteligente. Então a ciência não deixa dúvidas de que
vírus são frutos de design inteligente, as estratégias do design inteligente que
usamos para detetar design mostram claramente, esta conclusão é sólida,
agora.60
No entanto, é importante reconhecer a diferença entre complexidade e
design. A complexidade em si não requer um criador inteligente. A
complexidade do Universo tem explicações científicas de fenómenos que se
repetiram ao longo de bilhões de anos, em que os organismos evoluíram para a
sua complexidade, e que não sugerem logicamente um criador divino, um
design inteligente, conforme defende muitos cientistas, como por exemplo
Richard Dawkins. Além disso, segundo este autor, um Deus capaz de desígnio,
ou de conceber, não pode ser usado para explicar a complexidade organizada,
porque qualquer Deus capaz de conceber o que quer que fosse teria de ser
suficientemente complexo para levar a que o mesmo tipo de explicação fosse
aplicado a si próprio. Segundo Dawkins, Deus apresenta uma regressão
infinita da qual não nos pode ajudar a escapar. 61

Se Deus existir, e dado que Deus é considerado o criador do mundo e das


suas leis, fenómenos como os terramotos ou as pandemias são uma criação de
Deus, mesmo que não sejam um castigo. Qualquer um destes casos não pode
deixar de fazer parte da sua criação, e por isso são da sua vontade. Se Deus
criou o Universo, se foi Ele que o dotou de leis que o regem e se aquilo a que
chamamos mal natural é o conjunto das fatalidades que resultam do jogo
normal das forças da Natureza, o autor responsável por todas essas coisas é o
Ser que criou o mundo e que o governa. Mesmo que todas essas coisas que
causam danos não sejam um castigo de Deus, foi ele que criou a Natureza e

60
Marcos Eberlin, O coronavírus à luz do design inteligente. Palestra on-line, visível em : “Deus criou
o coronavírus ?”, no site : A Ciência leva a Deus – Science leads to God.
61
Richard Dawkins, A desilusão de Deus, Lisboa, Ed. Casa das Letras, 2020
portanto Deus é a origem e o responsável pelos fenómenos naturais. Sendo
Deus o criador de toda a Natureza, tendo inclusivamente criado as próprias leis
que a regem, Deus é também o criador do coronavírus. Se por um lado Deus
criou tudo o que existe, e se por outro lado nada existe ou acontece sem o seu
consentimento, se Deus é o princípio e a causa suprema de tudo, se Deus é o
fundamento e o fim de tudo o que existe e acontece no Universo, se Deus não só
criou tudo como conserva tudo, então Deus também é responsável pelo
coronavírus, as pandemias fazem parte da sua vontade, e não poderiam existir
senão através do seu poder criador, mesmo que não sejam diretamente
desejadas por Deus.
Quando falamos em vontade de Deus, há que distinguir aquilo que Deus
quer daquilo que Deus permite (ou não impede) que aconteça, mas tanto um
caso como outro não podem deixar de ser considerados como fazendo parte da
sua criação e do seu plano para o mundo.
O facto de Deus ser a origem do coronavírus, ao ter criado a Natureza e
tudo o que nela existe em ato e em potência, isto é, os vírus que vão aparecendo,
e portanto ter sido Deus o seu criador, não significa que seja um castigo de Deus
por algo que os seres humanos tenham feito. Sendo assim, a tese de que o
coronavírus não é um castigo de Deus, isenta Deus da acusação de castigar
também os justos e inocentes.
Todavia, mesmo que não seja um castigo, o coronavírus também atingiu
pessoas justas e inocentes, e até mesmo crianças. Encontraríamos um sentido
nas pandemias, uma razão de ser, um acontecimento justo, se elas fossem
punição pelos nossos erros. Se não forem uma punição, e dado que Deus é o
criador de todo o Universo, incluindo os vírus, bactérias, e pandemias, Deus tem
responsabilidade nas consequências do coronavírus. Sendo algo que Deus
colocou na Natureza e que causou tanto sofrimento, mortes, danos nas famílias,
na economia mundial, etc., e se não foi devido aos erros que os seres humanos
tenham cometido, então é algo puramente gratuito e injustificado, pois as
pessoas foram vítimas sem haver razões para isso.
Também na religião muçulmana, segundo o Alcorão, (Surata LXIV, 11),
Alá, Aquele que governa o Universo o mestre absoluto, o Todo Poderoso,
“Nenhuma infelicidade atinge o Homem sem a permissão de Deus”. Isto
significa portanto que se Deus existir não pode ser isentado de responsabilidade
pelos cataclismos, pandemias e outros males naturais que existem no Universo,
pois este obedece aos padrões por si estabelecidos.
Alguns desses males naturais são por exemplo a malária, cuja origem está
num mosquito, criado por Deus. Mesmo que a malária não seja um castigo de
Deus, a sua origem está em Deus, que criou um mosquito que o causa. No caso
do coronavírus, é suposto que a sua origem esteja também em animais, em
morcegos, pangolins ou noutros animais. Mas mesmo que a sua origem não
sejam os animais, mas sim outras causas naturais, e mesmo que o coronavírus
não seja um castigo de Deus, tem Deus como origem, dado que, conforme já
referimos, segundo os crentes foi Deus que criou a Natureza, logo Deus não
pode ser isento de responsabilidades.

O CORONAVÍRUS NÃO TEM COMO ORIGEM DEUS MAS SIM O


DEMÓNIO

Assim como, se Deus não existir, o coronavírus não pode ter sido um
castigo de Deus, nem ter tido Deus como sua origem, se o Demónio também não
existir, não tem sentido dizer que é ele a origem do coronavírus. Partimos
portanto da hipótese da sua existência, sobre a qual se baseiam as acusações,
conforme veremos, de que é o Demónio a origem do coronavírus.
Há vários textos da Bíblia que falam na existência do demónio e que
dizem que o demónio anda por aí tentando-nos, vagueando em liberdade por
toda a Terra, oprimindo as pessoas, fazendo-lhes mal, e até mesmo possuindo
algumas delas (I Pe. 5:8; 1 Jo., 5:18-19; Tiago, 4:7; Ap., 12:9; Mt.,2:22; 17:14-
17; At .,16:16-18; Ap 16:14)), e que ele se disfarça de anjo de luz (2 Cor., 11:14).
Em contrapartida, segundo outros textos da Bíblia, Deus jamais é o autor do
mal, o mal é possível no mundo que Deus criou, mas não é a sua intenção para o
mundo que ele criou (conferir isso por exemplo na carta de São Tiago, 1,13). As
enfermidades podem ser causados pelo demónio, pois a Bíblia descreve vários
casos em que o sofrimento físico foi causado pelo demónio (por exemplo em
Mateus, 17,14-18, e em Lucas, 13, 10-16).
Há também importantes teólogos na tradição da Igreja que defendem
estas ideias. Por exemplo João Damasceno, dos séculos VII e VIII, que é um
santo e um doutor da Igreja, celebrado pelos católicos e pelos cristãos
ortodoxos, dizia claramente que Deus era o único criador de todos os bens, mas
que não o era do mal. Por seu turno S. Basílio de Cesareia séculos antes
escrevera um tratado teológico, cujo tema e título era : De como Deus não é o
autor do males.
Também para São Tomás de Aquino o mal não tem perfeição nem ser, o
mal só pode significar a ausência do bem e do ser, dado que o ser, enquanto ser,
é sempre um bem. Por isso o mal representa algo puramente negativo, ele não é
nem essência nem realidade. O mal é a privação de uma propriedade que a
substância deveria possuir, “é mais corretamente denominado uma privação, ou
carência daquilo que deveria estar presente”. 62 No agir de Deus é impossível
haver deficiência, dado que Deus é a perfeição absoluta. Por conseguinte,
segundo São Tomás de Aquino, não podemos responsabilizar Deus pelo mal,
pois Deus não causa senão o bem. Ora, se o coronavírus é um mal, e se Deus não
é a fonte do mal, Deus não pode ser a fonte do coronavírus.
Em vez disso, o mal teria origem no demónio, ou num ser maligno. A
hipótese de um Deus mau, ou de um génio maligno, governando este mundo,
como acreditavam os Gnósticos e os Maniqueus, ou a crença num anjo caído (o
Demónio) como eterno rival de Deus e senhor deste mundo, foi por vários
autores, e por muitos crentes em geral, considerada uma justificação para se
compreender os males que existem no mundo, entre os quais as pandemias, as
pestes e as doenças,
Os antigos gregos davam a designação de demónio aos bons e maus
espíritos, mas os judeus davam essa designação aos espíritos maus, reservando
apenas para o bom demónio a designação de espírito, e consideravam como
efeito do espírito divino tudo aquilo que encaravam como um bem, e como
efeito do demónio tudo aquilo que encaravam como um mal. Esta distinção
entre o bem e o mal fez com que chamassem “demoníacos” aos indivíduos
gravemente enfermos, aos que padeciam de males incuráveis ou de más
formações físicas (epiléticos, paralíticos etc.), que consideravam possuídos pelo
demónio. Daqui resulta que a Bíblia esteja toda cheia de histórias acerca de bons
e maus espíritos, de demónios ou seres demoníacos, e de pessoas possuídas pelo

62
Santo Tomás de Aquino, Sobre o Mal, Rio de Janeiro, Ed. Sétimo Selo, 2005. Tomo I., p. 15.
demónio, o qual não era considerado apenas a origem de doenças físicas mas
também mentais.
Ao longo da História das religiões, conforme cada religião, cada época, e
cada cultura, a figura do demónio, o seu significado e a sua importância
variaram, pois algumas vezes deu-se pouca importância ao demónio, e noutras
vezes não se falou sequer na sua existência. Nos tempos de hoje, em alguns
setores religiosos, há um retorno da importância do demónio, através da crença
na guerra espiritual, crença essa que está presente em importantes igrejas
evangélicas, especialmente nas norte-americanas. A figura do demónio recebe
novamente grande relevo, sendo considerado o responsável pelos males que
existem no mundo e explicando a coexistência entre um deus
“bondoso”,“omnisciente”, “omnipresente” e “omnipotente”, e o sofrimento
humano injusto.
Por conseguinte, alguns líderes evangélicos defenderam que a pandemia
do coronavírus foi “coisa do Demónio”, que o coronavírus seria “queimado pelo
hálito de Deus”, que “o coronavírus é a coroa do Demónio” e que a oração é a
principal “arma” de proteção contra ele. Foram muitas as afirmações de
pastores, bispos e padres nesse mesmo sentido. Por exemplo o bispo evangélico
brasileiro Edir Macedo, líder e fundador da Igreja Universal do Reino de Deus,
apareceu num vídeo divulgado na Internet, no dia 15 de Março de 2020, no qual
desvalorizou a gravidade da pandemia do coronavírus no mundo. Edir Macedo
disse que não havia motivo para as pessoas estarem preocupadas com a
pandemia, pois segundo ele era inofensiva, e era uma tática do Demónio. Para
este bispo evangélico a grande arma contra todos os vírus é a Bíblia.
Mas será que tem sentido dizer que o coronavírus é obra do Demónio ?
Segundo os crentes, a Natureza foi criada por Deus, e não pelo Demónio. Da
Natureza fazem também parte os mocróbios, bactérias, vírus, e os animais que
provocam vírus. Portanto, não tem sentido dizer que foi o Demónio que criou o
coronavírus, pois não foi o Demónio que criou a Natureza.
Se é o Demónio que está por trás do mal, e sendo o coronavírus um mal,
será que Deus não tem mais poder do que o Demónio? Não nos referimos ao
mal praticado pelos seres humanos, em que Deus, se existir, não tem que ser
responsabilizado, mas sim ao mal natural (cataclismos da Natureza). Mesmo
que o Demónio tenha influência sobre os males naturais que nos acontecem, o
Demónio não tem a última palavra, e não pode fazer nada mais do que aquilo
que Deus permite que ele faça, como se pode ver na Bíblia (Livro de Job,1,12;
2,10).
A Bíblia diz também que todas as coisas são, em última instância,
controladas por Deus : “O Meu propósito será estabelecido, e tudo o que eu
quero realizarei” (Livro de Isaías, 46,10). “Tudo quanto o Senhor quer, o faz,
nos céus e na Terra, nos mares e em todos os abismos” ( Salmo 135, 6).
“Todos os habitantes da Terra são considerados como nada, mas Ele atua
conforme a sua vontade no exército do céu, e nos habitantes da Terra;
ninguém pode deter a sua mão, nem dizer-lhe : o que fizeste?” (Livro de
Daniel, 4, 35). “Também obtivemos herança, tendo sido predestinados
segundo o propósito daquele que obra todas as coisas conforme a sua
vontade” (Efésios, 1,11).
Portanto, conforme se pode ler na Bíblia, Deus é todo poderoso e é ele
que controla tudo. Se Deus existe e é todo poderoso, dado que ele é Deus, pode
mais do que o Demónio (no caso do Demónio existir e de ter sido ele a origem
do coronavírus). Devido ao seu poder Deus poderia derrotar o Demónio e
libertar a Humanidade do coronavírus, mas não o fez. Ou não o fez porque não
quis, ou porque não pôde.
Deus criou um anjo que se viria a tornar Demónio, e Deus permitiu que
ele se tornasse Demónio. Mas Deus já sabia que ele se viria a tornar Demónio,
pois Deus é omnisciente, isto é, sabe tudo, e criou-o na mesma, logo Deus tem
responsabilidade na existância do próprio Demónio. Mesmo que seja o
Demónio a origem do coronavírus, Deus é indiratemente a origem do
coronavírus, pois foi Deus que criou o anjo que se tornou Demónio, e que Deus
já sabia que se iria tornar Demónio. Segundo a Bíblia, o Demónio é um anjo
caído, pois quando Deus o criou ele era um ser bom. Mas quer esse Ser tenha
criado bom ou mau, esse Ser é um produto de Deus. Se o demónio existe, só
pode ser por vontade de Deus, e portanto mesmo que seja o demónio a origem
do coronavírus, Deus deixa que isso aconteça, e torna-se indiretamente
responsável por isso. Se Deus pode tudo e está acima do Demónio, e se o
Demónio foi a origem do coronavírus, porque razão Deus não impediu que o
Demónio fizesse mal aos seres humanos, ao atingi-los com o coronavírus, e
indiretamente fizesse mal ao próprio Deus ao atingir as suas criaturas ? se Deus
consentiu que o Demónio atingisse os seres humanos com o coronavírus, e dado
que o Demónio só pode fazer o que Deus consente, Deus fica responsabilizado
pelo coronavírus, mesmo que este seja obra do Demónio.
Segundo os teólogos e os líderes religiosos, Deus não faz nada em relação
aos males que os seres humanos cometem, porque preserva o livre arbítrio dos
seres humanos. Mas porque razão Deus também não faz nada em relação aos
males que o Demónio comete ? é também para preservar o livre arbítrio do
Demónio ? se sim, para que quer Deus preservar o livre arbítrio de uma criatura
que por um lado o odeia e por outro lado faz tanto mal aos seres criados por
Deus? na verdade, não tem sentido falar em livre arbítro no caso do Demónio,
pois o uso do livre arbítrio significa poder fazer o bem ou o mal, mas o demónio
só pode fazer o mal, pois se fizesse o bem deixaria de ser Demónio.
O Demónio maldiz Deus, e Deus permite que ele o maldiga, logo Deus
permite que o Demónio faça mal ao próprio Deus. Por outro lado, o Demónio
faz mal aos filhos e amigos de Deus e ao fazê-lo faz também mal a Deus,
portanto Deus deixa que o Demónio faça mal ao próprio Deus. Se o Demónio faz
mal ao próprio Deus ao fazer mal aos seus filhos e amigos, como é que Deus
pode ser Deus, havendo um Ser acima dele a fazer-lhe mal ? se o Demónio tem
mais poder do que Deus, então Deus não tem suficiente poder, logo não é Deus.
Sobre a questão do poder de Deus falaremos mais em pormenor no
subcapítulo : “Se Deus é omnipotente, porque não elimina o coronavírus ?”

O CORONAVÍRUS NÃO TEM COMO ORIGEM DEUS NEM O


DEMÓNIO, MAS SIM O SER HUMANO

A tese de que coronavírus não teve origens sobrenaturais mas sim


naturais, leva-nos ao tema da Natureza como sua causa, que pode ser visto no
capítulo deste livro intitulado : “Bens” sob o ponto de vista biológico”.
Dentro das justificações não sobrenaturais temos também a de que o
coronavírus teve como origem o ser humano. É certo que, se Deus existir e se foi
ele que criou o ser humano, o próprio Deus também pode ser considerado
responsável, indiretamente, por aquilo que o ser humano faz, isto porque Deus,
dado que é omnisciente, antes de o ter criado já sabia o que ele ia fazer. Ainda
assim, a situação é diferente em comparação com a origem natural do
coronavírus, pois a Natureza não é dotada de livre arbítrio, enquanto o ser
humano sim.
Admitindo que Deus existe e que foi ele que deu o livre arbítrio ao ser
humano, o coronavírus pode ser uma consequência de um conjunto de ações
humanas que se encadeiam. Deus poderá ser então considerado um espetador
que assistiu ao aparecimento deste vírus tal como já assistiu ao aparecimento
de outros vírus que ao longo da História foram atingindo a Humanidade. Deus
não seria a sua origem, nem o Demónio, e muitos cataclismos naturais seriam
afinal consequência da ação do próprio ser humano : a perda da biodiversidade,
a interferência humana no ciclo do nitrogénio e as alterações climáticas, etc.
No passado, quando um terço da população foi dizimada por outras
epidemias, como a peste negra, esta teve causas humanas, pois era transmitida
essencialmente pelos parasitas, devido aos maus hábitos de higiene dos seres
humanos, causadores de pulgas e de ratos. Por outro lado, foi uma doença
contra a qual os organismos dos europeus não tinham defesas, pois a peste
negra vinha da Ásia pela rota da seda, e era portanto um dos efeitos do
progresso e do crescimento económico. Este progresso e crescimento acontece
também, e sobretudo, no nosso tempo, em que se viaja imenso, não apenas por
motivos económicos, como os da emigração, mas também devido ao turismo, o
que fez com que o coronavírus se tivesse propagado tão rapidamente, à escala
mundial, e se tivesse tornado numa pandemia. Também outras pragas e
doenças se devem a origens humanas, tais como por exemplo a cólera, pois está
associada a países de extrema pobreza, a ambientes insalubres, a problemas de
higiene, ao desperdício de água, etc.
Assim como as pestes se devem a causas humanas e não a Deus, a sua
diminuição e o seu declínio também se devem a causas humanas e não a Deus.
Conforme afirma Jaime Nogueira Pinto, “o declínio da incidência da peste nos
séculos XVIII e XIX deveu-se sobretudo a causas ambientais : as águas limpas,
os esgotos fechados, o arejamento e a remoção de lixos foram determinantes na
prevenção e contenção das pragas. No século XIX, em Inglaterra, homens como
Edwin Chadwick defenderiam e promoveriam esta e outras medidas sanitárias.
Ao longo do século XVIII fora-se formando a consciência de que a
diminuição das populações de ratos nas cidades, a alteração dos materiais de
construção, o fim da imundície nas ruas e nos rios, a disciplina na construção e
arrumação do espaço urbano tinham efeitos mitigadores na pandemia”. 63
Portanto, antigamente pulgas, piolhos, ratos, e maus hábitos alimentares,
assim como hoje, com os mercados de animais selvagens e a sua utilização como
alimento, assim como a alteração das condições climáticas, causada pelo
próprio ser humano, que favorecem a propagação de vírus e de doenças. Tudo
isso, as caçadas mortíferas, o tráfico de animais selvagens em vias de extinção,
o esgotar dos recursos naturais da Terra, a procurar o lucro destruindo a
Natureza, são obras humanas e não divinas.
A bióloga e primatologista britânica Jane Goodall, conhecida
internacionalmente pelos seus estudos sobre os primatas, afirmou que a
exploração dos animais promovida pelos seres humanos é a causa da pandemia
do Covid 19. Segundo Jane Goodall, a aglomeração de animais contribui para o
aparecimento de novas doenças, quando os seus habitats são destruídos ou
quando os animais são mantidos em cativeiro para serem vendidos em feiras ou
pelo tráfico de animais.
“Quando os animais ficam amontoados, um vírus de uma espécie que
viveu inofensivamente por talvez centenas de anos pode às vezes saltar para
uma nova espécie. Há também os animais que são levados a ter contacto mais
próximo do Homem. Isso cria uma oportunidade para um vírus de um animal
infetar pessoas e criar novas doenças, como a Covid 19. Nós caçamos, matamos,
comemos, traficamos animais, e os mandamos para mercados (…) onde vivem
em condições terríveis, aglomerados em pequenas jaulas cheias de animais,
onde vivem em condições terríveis, com pessoas contaminadas com sangue,
urina e fezes. São as condições ideais para um vírus pular de um animal para
outro ou para uma pessoa”.64
Os impactos económicos e demográficos do coronavírus dependem
também das vulnerabilidades que já existiam noutras áreas, como a económica.
Em alguns países as autoridades regionais não tiveram acesso à saúde pública.
Os seres humanos ao sofrerem os males naturais, podem eles próprios
manipular os acontecimentos, de tal maneira que podem causar mal a outros

63
Jaime Nogueira Pinto, o. c., pp. 129-130.
64
Jane Goodall, entrevista no TED talks, New York. Entrevista on-line, realizada ao longo de Julho de
2020
seres humanos, portanto a pandemia do coronavírus não é apenas um mal
natural mas também um mal moral.
Existe também a teoria de que o coronavírus foi fabricado pelos próprios
chineses num laboratório na cidade de Whuan, na China, e foram muitos o que
defenderam essa teoria, como por exemplo o professor Joseph Tritto. 65 Esta
teoria permite também defender que o coronavírus teve origem humana e não
divina. Há outras teorias, a que se chamam vulgarmente teorias da
conspiração, como as de alguns líderes religiosos muçulmanos que afirmaram
que o coronavírus fez parte de um plano dos judeus, Israel, EUA para controlar
Meca e Medina. Na Nigéria um líder muçulmano disse que o coronavírus foi
uma farsa ocidental para impedir que os muçulmanos praticassem o Islão. No
Irão um estudioso islâmico disse que o coronavírus foi uma arma fabricada pelo
homem “contra os xiitas, muçulmanos e iranianos”.
No entanto, as teses da origem humana do coronavírus são também
suscetíveis de objeções, e algumas delas são pouco credíveis e não podem ser
provadas. Por outro lado, mesmo que o coronavírus tenha tido como origem os
maus hábitos alimentares dos seres humanos ao comerem animais portadores
do vírus, foi Deus que criou esses animais, logo Deus também aqui tem
responsabilidade. O mesmo acontece em relação aos ratos durante a peste
negra na Idade Média, que é considerada como tendo sido transmitida pelos
ratos. Neste caso a religião ainda tem mais responsabilidades, pois a prática
supersticiosa de matar gatos (que eram considerados a encarnação de Satanás),
contribuiu para propagar a peste negra, pois os gatos mantinham os ratos
afastados.

65
Joseph Tritto, Cina Covid-19. La Chimera che ha cambiato il Mondo, Cantagalli, Ed. Sena, 2020
CONTRADIÇÕES ENTRE OS ATRIBUTOS
DE DEUS E O CORONAVÍRUS
SE DEUS É PERFEITO, PORQUE CRIOU UM MUNDO IMPERFEITO,
COM TANTOS VÍRUS ?

A perfeição é um dos atributos de Deus. Segundo a Bíblia Sagrada, Cristo


disse : “Portanto, sejam perfeitos como perfeito é o vosso Pai celestial” (Mat.,
5,48). Há mais textos da Bíblia que também se referem à perfeição de Deus,
como por exemplo : “Deus é o rochedo, o que ele realiza é perfeito, dado que
todas as suas vias são justas” (Deuteronómio, 32,4); “Este é o Deus cujo
caminho é perfeito” (Salmos, 18,30); “A lei do Senhor é perfeita e revigora a
alma” (Salmos, 19,7); “quando porém vier o que é perfeito, o que é imperfeito
desaparecerá” (1 Coríntios, 13, 10).
Ora, se Deus é perfeito, porque criou um mundo imperfeito, com tantos
vírus ?
Pode também considerar-se que o mundo apesar de ter tantos vírus não é
imperfeito, e que os vírus fazem parte da própria perfeição do mundo, pois só
aparentemente são um mal, ou que pelo menos este mundo é o melhor dos
mundos possíveis. Veremos isso no capítulo : “Bens” proporcionados pelo
coronavírus”, nomeadamente no subcapítulo : “Bens sob o ponto de vista
biológico”. No entanto, há que ver as diversas considerações, e entre elas a que
considera o mundo como imperfeito pelo facto de nele haver muitos vírus,
conforme veremos seguidamente.
A ligação entre Deus, mundo e (im)perfeição, e as suas implicações, pode
colocar-se das seguintes formas : Deus é perfeito e o mundo é imperfeito; Deus é
perfeito e o mundo é perfeito; Deus é perfeito e o mundo é imperfeito, mas essa
imperfeição não é um mal, pois contribui para um bem maior; Deus é perfeito e
o mundo é imperfeito, e as suas imperfeições são um mal, pois não têm
consequências positivas (são um mal gratuito); a existência do mundo
imperfeito não é contraditória com a existência de Deus como perfeito, e não
nega a sua existência, portanto Deus existe; a existência de um mundo
imperfeito é contraditória com a existência de Deus enquanto perfeito e
enquanto seu Criador, isto é, a imperfeição do mundo prova que Deus não
existe, pois de Deus que é perfeito não pode vir o imperfeito; sendo o mundo
imperfeito, e tendo sido Deus o seu criador, Deus também não é perfeito, e se
Deus não é perfeito não pode ser Deus, pois Deus para ser Deus tem de ser
perfeito, e portanto Deus não existe.
Estas teses têm originado largas discussões, e muitos e diferentes autores
têm defendido tanto umas como outras. A descrição aqui de todas essas teses,
de todas as justificações apresentadas, consoante cada uma das diferentes
possibilidades, e consoante cada um dos diferentes autores, ao longo dos
séculos, seria bastante vasta, e levaria a uma discussão que só por si daria um
livro, e que portanto não cabe aqui apresentar. No entanto, faremos uma
referência sucinta às teses de Leibniz e de alguns autores contemporâneos, que
não encontram incompatibilidade entre Deus como perfeição e o mundo com os
seus males, entre os quais os vírus, e terminaremos com uma apreciação crítica
sobre essas teses.
Leibniz apresentou a sua teoria do mundo perfeito no seu livro : A
Monadologia, apresentado os seus argumentos em cinco partes:
1) - Deus tem a ideia de infinitos universos.
2) - Apenas um desses universos pode realmente existir.
3) -As escolhas de Deus estão sujeitas ao princípio de uma razão
suficiente, isto é, Deus tem motivos para escolher uma coisa ou outra.
4) -Deus é bom.
5) -Portanto, o universo que Deus escolheu existir é o melhor de todos os
mundos possíveis.66
Para Leibniz, se o mal existe no mundo é porque Deus não podia criar um
mundo que fosse perfeito. Por ter sido criado, o mundo é necessariamente
limitado e o mal existe nele. No entanto, entre todos os mundos que poderia ter
criado, dado que Deus é um Ser perfeito, criou o melhor dos mundos possíveis,
o mais próximo possível da perfeição, isto é, que contém o máximo de bem e o
mínimo de mal. Assim, o mal é integrado num conjunto que o justifica : aquilo
que nós seres humanos, que não temos a visão do todo, consideramos que é um
mal, é antes uma necessidade, um elemento de um encadeamento causal cuja
finalidade nos escapa, mas onde tudo se combina tendo em vista a melhor das
finalidades possíveis.
Esta teoria foi criticada por diversos filósofos ao longo da História, de que
damos seguidamente alguns exemplos. Voltaire, na sua obra Cândido foi um

66
Gottfried Leibniz, Monadologia, Lisboa, Ed. Colibri, 2016, p. 20.
dos primeiros a fazê-lo, criticando aquilo que ele considerava ser a ingenuidade
de Leibniz, e dando como exemplo o terramoto de 1755 em Lisboa. Voltaire
afirma que o mundo contém uma quantidade de sofrimento grande demais para
justificar esse otimismo (daí a sua denominação de cândido). Na atualidade
encontramos filósofos como por exemplo Bertrand Russell, que considerou
ilógica a teodiceia de Leibniz . Russell argumenta que o mal moral e físico
devem ser uma consequência do mal metafísico (imperfeição). Mas a
imperfeição é apenas finitude ou limitação, e se a existência é boa, conforme
defende Leibniz, a mera existência do mal exige que o mal também seja bom. A
tese do melhor dos mundos possíveis defendida por Leibniz é criticável, pois
provavelmente não existe “o melhor” de todos os mundos possíveis de forma
absoluta no meio de tantas contingências, dado que se pode sempre conceber
um mundo melhor, como um mundo com mais uma pessoa moralmente justa.
À semelhança de Leibniz no passado, em 1955 o filósofo britânico J. L.
Mackie publicou um texto intitulado O Mal e a Omnipotência,67 no qual defende
que a existência do mal não é incompatível com a existência de Deus. Em 1974
o filósofo norte americano Plantinga analisou também o problema da
incompatibilidade entre a existência do mal e a existência de Deus, no seu livro
Deus, a liberdade e o mal,68 onde defende tal como Leibniz que não existe
incompatibilidade entre a existência de Deus e do mal, e pela mesma razão
apresentada por Leibniz : alguns bens são inevitavelmente constituídos por
partes más, e por conseguinte a existência do mal por vezes é necessária para
que daí venham outros bens. Também Swinburne, no seu livro A existência de
Deus69 defende que a razão pela qual Deus permite que exista o mal é o facto
deste possibilitar que haja um progresso em direção ao bem.
No entanto, é difícil aceitar que de determinados males venham um bem
maior. Que bem trará um terramoto ? que bem trará os cento e cinquenta mil
afogados pelo tsunami do Sudeste da Ásia ? que bem maior trará o sofrimento
atroz e a morte das crianças e dos animais, que não fizeram mal a ninguém ?
Dado que os crentes acreditam que Deus é capaz de mudar as leis da Natureza,
e fazer milagres, Deus poderia evitar esses sofrimentos, mas não os evita.
67
J. L. Mackie, (1955) “Evil and Omnipotence”, Mind,  Oxford Academic, Volume LXIV, Issue 254, April
1955, páginas 200–212. Reimpresso em The Problem of Evil, org. por Marilyn M. Adams & Robert M.
Adams, Oxford University Press, Oxford, 1990
68
Alvin Plantinga, Deus a liberdade e o mal, São Paulo, Ed. Vida Nova, 2012
69
Richard Swinburne, The Existence of God, Oxford, Ed. Oxford University Press, 2004
Veja-se por exemplo o caso de uma criança que sofre de uma doença
grave e incurável, e que morre depois de anos de sofrimento intenso. Não
apenas sofreu ela como sofreram também os seus pais e outros familiares, assim
comos os seus amigos. Além disso, foi gasto com essa criança muitíssimo
dinheiro, para nada, pois ela não melhorava, e faleceu, dinheiro esse que podia
ter sido gasto com outras coisas com mais utilidade. Leibniz não nos diz qual é o
bem maior de todo este sofrimento e morte da criança, e mesmo que possamos
pensar em algum bem, é dificilmente aceitável que esse bem supere tanto
sofrimento de uma criança inocente, e portanto esse sofrimento, como o de
outras doenças graves, é gratuito.
Supondo que tem de haver sofrimento nos seres humanos, não estará ele
injustamente distribuído ? porque razão algumas pessoas sofrem mais do que
outras ? e não existirá em quantidade exagerada e desnecessária ? porque razão
há tanto sofrimento para que o bem brilhe ? não será que há males
intrinsecamente tão negativos e destrutivos que nenhum bem que lhes esteja
associado os supera ? alguns defendem que o sofrimento faz as pessoas serem
virtuosas. Será necessário sofrer tanto, para se ter uma vida virtuosa? E será que
isso acontece com todos ? poderão todos esses sofrimentos ser necessários para
formar o caráter dos que sobrevivem ? que bem trará à Humanidade os
sofrimentos por exemplo do cancro e a sua agonia ? que bem trará à
Humanidade uma pessoa acamada e sem cura, a sofrer continuamente ? o
sofrimento, em vez de provocar uma vida virtuosa, em muitos casos desumaniza
o ser humano, e não o leva à vida virtuosa mas sim ao desespero e à revolta.
O sofrimento atroz de crianças e outras pessoas inocentes, de pessoas
com doenças graves e de muitos animais, provocado por desastres naturais, não
serve nenhum propósito. Há males sem sentido que Deus, se ele existe, poderia
ter impedido, sem por isso perder um bem superior, ou ter de permitir um mal
igual ou pior. Deus, dado que é um ser todo poderoso, podia ter encontrado uma
maneira de fazer esse bem, um bem igual ou superior, sem ter de permitir o
sofrimento atroz causado por catastróficos desastres naturais, pandemias,
graves doenças, etc.
Leibniz e outros autores consideram que somos limitados para sabermos
quais são os bens que os males tornam necessários e que superam os males.
Ora, se somos limitados para sabermos isso, também somos limitados para
sabermos se Deus existe ou não. Há uma contradição entre dizer que Deus
existe, e dizer que somos limitados para sabermos quais são os bens trazidos
pelos males, como por exemplo o sofrimento atroz de uma pessoa (sobretudo
quando se trata de uma criança, que portanto é um ser inocente), ou que somos
limitados para sabermos quais são os bens trazidos pelas pandemias.
Se Deus é perfeito e omnipotente, não devia ter necessidade de criar ou
permitir o mal para promover um bem mais importante, e sendo sábio, devia
saber fazer o mundo de outra maneira, sem que se causasse tanto dano. Se o
bem e o mal se relacionam de tal modo que Deus não pode criar um sem o
outro, então o poder de Deus tem limites. As justificações de Leibniz e de outros
filósofos para a existência do mal natural (pandemias, doenças graves, etc.) são
incapazes, dado o seu cariz bastante teórico, de dar conforto às pessoas mais
envolvidas no problema do mal, isto é, às pessoas que tanto sofrem.

SE DEUS É OMNISCIENTE, PORQUE NÃO ELIMINOU O


CORONAVÍRUS?

O atributo da omnisciência de Deus não é apenas uma consequência do


conceito de Deus (como poderia um ser perfeito ser ignorante a respeito de
alguma coisa?), mas também a própria Bíblia diz que Deus é aquele que conhece
o fim desde o começo, que todas as coisas estão patentes e abertas diante dos
seus olhos. Vejamos alguns exemplos : Deus sabe de tudo (1 João, 3,20); Ele não
só conhece os mínimos pormenores da nossa vida, como também de tudo ao
nosso redor, pois sabe até quando um pardal cai ou quando perdemos um único
fio de cabelo (Mateus 10:29-30); Deus não só sabe de tudo o que ocorrerá até ao
fim do mundo (Isaías 46:9-10), mas também conhece os nossos pensamentos
antes mesmo de falarmos (Salmo 139:4); Deus conhece o coração do ser
humano de longe e até nos viu quando ainda estávamos no ventre materno
(Salmo 139:1-3, 15-16); Salomão expressa essa verdade quando afirma :
“porque só tu conheces o coração de todos os filhos dos homens” (1 Reis 8:39).
Uma consequência sobre Deus enquanto omnisciente é que a sua sabedoria é
profunda, conforme está escrito também na Bíblia (Romanos 11,33-36). Outra
consequência sobre Deus enquanto omnisciente é que não existem segredos
para Ele, conforme afirma também a Bíblia (Hebreus 4:13).
Se Deus é Deus, sabe tudo, logo tem também de saber da existência do
mal. Além disso, se foi Ele o criador do mundo, tem de saber que nesse mundo
existe mal. É importante sublinhar a omnisciência de Deus, pois mesmo sendo
poderoso e bondoso, poderia não saber que o coronavírus e outros males
existiam no mundo. Esta hipótese é teoricamente possível na conceção sobre
Deus segundo o Deísmo. Por exemplo, Aristóteles acreditava numa divindade a
que chamava o Primeiro Motor (ou Primeiro Movente), que havia dado início à
criação de um universo, ao qual não estava ligado e pelo qual já não tinha
interesse. Deus poderia ter-se ausentado depois de ter criado o mundo, e tê-lo
apenas criado. Conforme já referimos mais atrás, segundo o Deísmo Deus criou
todas as coisas, mas deixou-as para que mediante as imutáveis leis da Natureza
elas sigam o seu próprio percurso, e na sua ausência Deus pode não saber de
tudo o que acontece no mundo, como por exemplo a pandemia do coronavírus.
No entanto, não falamos aqui do Deus do Deísmo mas sim do Deus das
religiões (Judaísmo, Cristianismo, Islamismo), ao qual se atribuem
determinados atributos como o da omnisciência. Sendo assim, Deus tem de
saber de tudo, e portanto que existem pandemias, e que aconteceu no mundo a
do coronavírus. Mas será que Deus, mesmo que saiba que o coronavírus existe,
conhece realmente o coronavírus assim como as enfermidades por este
provocadas ?
Se Deus é um ser perfeito não pode ter as imperfeições do mundo, as suas
doenças, o seu sofrimento. Se Deus é incorruptível não pode adoecer, ao
contrário dos seres humanos. Por outro lado, Deus conhece e sabe de tudo, se
não, não era Deus. Um ser omnisciente é um ser que conhece tudo o que é
conhecível, ou tudo o que pode ser conhecido. Ora, como é que Deus pode
conhecer as pandemias, os vírus, as doenças e o seu sofrimento, se ele não as
experiencia ? Deus é um ser sem corpo. Para se adoecer tem de se ter corpo. Se
Deus é um ser sem corpo, não pode adoecer. Ora, a omnisciência implica saber
tudo o que se pode saber, portanto nenhum ser que não tem corpo pode saber
tudo. Deus tem apenas conhecimento teórico do coronavírus, mas não é afetado
por ele (se não, não era Deus). Saber tudo implica saber também o que é estar
doente, por exemplo com o coronavírus.
Mas se Deus nunca contrai vírus nem nunca adoece, Deus tem apenas
conhecimento teórico sobre isso, isto é, se ele não sabe na prática o que o
coronavírus é, há algo que Deus não sabe, logo Deus não sabe tudo, logo não é
um ser omnisciente. Ou Deus tem também doenças para saber realmente o que
elas são (mas se ele tem doenças então não é perfeito), ou Deus não tem
doenças, dado que ele é um ser perfeito, mas sendo assim não sabe tudo (pois só
sabe teoricamente).
Esta limitação do saber é um deficiência do ponto de vista do saber,
como aliás de outras coisas de um ser que sabe sem as ter experienciado, e que
portanto sabe apenas teoricamente. Esta lacuna atinge o próprio Deus, pois só
experienciando uma coisa se pode saber realmente o que ela é. Enquanto seres
humanos essa nossa limitação é natural, dado que somos seres humanos, e não
sabemos tudo (por exemplo uma pessoa que nunca esteve apaixonada apenas
pode saber o que é estar apaixonado ouvindo os outros dizer o que isso é, mas
não conhece de facto o que estar apaixonado). Seja qual for o desconhecimento,
é sempre uma limitação do nosso conhecimento total das coisas. Se Deus não
adoece, enquanto condição para saber realmente o que é estar doente, ou se não
se apaixona por alguém, para saber realmente o que é a paixão, Deus não sabe
tudo, e se para ser Deus é necessário saber tudo, então esse Ser não é Deus.
A omnisciência de Deus é também incompatível com a sua omnipotência,
pois um Deus omnisciente, e que portanto tem todo o conhecimento sobre os
acontecimentos futuros, não tem o poder de os mudar, dado que este futuro
(que é previamente conhecido por Deus), já está determinado. Se Deus já sabe o
que acontecerá, não pode mudar o que acontecerá, e portanto o seu poder fica
limitado, incluindo o da possibilidade de não acontecerem pandemias. Sobre o
problema do poder de Deus nos ocuparemos mais em pormenor seguidamente.

SE DEUS É OMNIPOTENTE, PORQUE NÃO ELIMINOU O


CORONAVÍRUS ?

A tese da omnipotência de Deus é defendida pelo Cristianismo, e no


Catolicismo foi proclamada oficialmente pelo Concílio de Niceia. Esta tese é
defendida também pelo Judaísmo, e na religião muçulmana a fórmula “Deus é
todo poderoso sobre todas as coisas” está bem presente ao longo do livro do
Alcorão.
Na Bíblia Sagrada, Deus pergunta a Abraão: “haveria coisa alguma difícil
ao Senhor?” (Génesis, 18,14), e no Novo Testamento Jesus diz aos seus
discípulos que “para Deus todas as coisas são possíveis” (Mc 10:27), e que “para
Deus nada é impossível” (Lucas, 1,37). Outros textos da Bíblia falam também do
poder de Deus : “tu dominas sobre tudo, e na tua mão há força e poder; e na tua
mão está o engrandecer e dar força a tudo” (1 Crónicas, 29, 12); “Ah ! Senhor !
Eis que tu fizestes os céus e a Terra com o teu grande poder e com o teu braço
estendido; não te é maravilhoso demais coisa alguma”. (Jeremias, 32,17);
“Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Omnipotente
descansará” (Salmos, 91, 1-2); “Eu sou o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim, diz
o Senhor, que é, e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso” (Apocalipse, 1,8).
Ora, se Deus é omnipotente, porque é que não eliminou o coronavírus ?
A resposta a esta questão depende de uma das duas hipóteses seguintes :
ou o coronavírus é um mal humano (provêm do próprio ser humano) ou é um
mal natural (provém da própria Natureza). Conforme vimos no capítulo : “O
coronavírus considerado um castigo de Deus”, nomeadamente no subcapítulo :
“O coronavírus não tem como origem Deus ou o Demónio mas sim o ser
humano”, o coronavírus pode ser considerado um mal humano, devido à forma
como o ser humano lida com a Natureza. Segundo os biólogos, há um nexo
causal entre a destruição das áreas selvagens, nomeadamente as florestas, e a
destruição da biodiversidade, com o consequente aumento do número de
epidemias. A forma como o ser humano lida com os animais selvagens,
trazendo-os para junto de si e comendo-os, os maus hábitos de higiene do ser
humano (que no passado originaram também pestes), assim como a hipótese de
o coronavírus ter sido criado em laboratório na China, ou mesmo que isso não
tivesse acontecido, a forma como a China lidou com o problema, etc., faz com
que possa ser considerado um mal humano.
Se o coronavírus tiver como origem o ser humano, e partindo do
pressuposto de que Deus não intervém de modo a preservar o livre arbítrio do
ser humano, deixa de ter sentido questionar Deus, mas se o coronavírus for um
mal natural de que portanto o Homem não tem culpa, porque razão Deus não
interveio ? Para os crentes, Deus já interveio várias vezes ao longo da História
da Humanidade, e já operou muitos milagres, para ajudar os seres humanos.
Sendo assim, porque não intervém também agora, na pandemia do
coronavírus ? porque razão intervém numas vezes e noutras não ?
Deus não intervém porque não pode ? Se Deus quer acabar com o
coronavírus mas não pode, então ele é não é todo poderoso. De acordo com esse
pensamento, embora Deus queira acabar com o coronavírus, ele não pode
realizar o seu desejo. Isto acontece porque Deus não é todo poderoso.
No entanto, isso é contraditório com o conceito de Deus, pois se ele é
Deus é todo poderoso, absoluto, incondicionado e ilimitado, e não um ser que
tem o mundo acima dele, pois se ele nada pudesse sobre o mundo, este seria
mais poderosa do que ele.
Deus, devido ao facto de ser Deus, tem o poder de criar, conservar ou
aniquilar o que quer que seja, grande ou pequeno, faz coisas e pode mudá-las ou
suspendê-las, se assim o quiser. Não nos referimos aqui a coisas ilógicas, pois
Deus não pode fazer com que dois mais um não sejam três, ou que um triângulo
não tenha três lados, assim como não pode criar um círculo quadrado, ou um
número inteiro par maior do que dois e mais pequeno do que quatro, mudar o
passado, fazer o Universo existir e não existir ao mesmo tempo, etc. Tirando
este tipo de excepções, que são logicamente impossíveis, há muita coisa que
Deus poderia fazer e não faz, que poderia evitar e que não evita, e pelas quais ele
próprio está limitado, no caso de não as poder mudar.
Referimo-nos aqui aos males naturais (terramotos, furacões, erupções
vulcânicas, tornados, cheias, secas, epidemias, graves doenças, etc.). Se Deus é
todo poderoso, porque não os evita ? a resposta a esta questão tem sido dada
também em teodiceias contemporâneas, nomeadamente em Swinburne, um
autor já referido, segundo o qual Deus não pode alterar as leis da Natureza. Por
exemplo, um terramoto obedece a leis da Natureza, e as erupções vulcânicas
acontecem de acordo com as leis da Física, que Deus quer que existam, caso
contrário o mundo seria diferente do que é. Deus não pode suster as leis da
Natureza exceto através de milagres, e isso prejudicaria as leis da Natureza. Os
tremores de terra e as erupções vulcânicas deixariam de existir, ou em alguns
casos sim e noutros não, e segundo os cientistas, os tremores de Terra e as
erupções vulcânicas são necessários do ponto de vista físico, para que o
Universo funcione.
Mas será que Deus, dado que é um ser todo poderoso, não poderia fazer
as coisas de outro modo ? Um ser todo poderoso poderia dar origem ao bem
sem o mal, ou pelo menos dar origem a menos mal do que aquele que o mundo
contém, que por vezes tudo destrói. O tsunami que em 2004 afetou 14 países do
Ocidente Índico, o que é que trouxe de bem ? Deus já alterou muitas vezes as
leis da Natureza, fazendo milagres, logo isso não é impossível a Deus.
Entre as coisas que não são impossíveis de existirem, se o mal natural for
um meio necessário para o bem, isso implica uma restrição do poder de Deus.
Quando alguém defende que um certo elemento é um meio para atingir um
certo fim está a defender que essa é uma ação causal, ou seja, que não é uma
ação livre, estando, portanto, determinada. Se Deus tem de introduzir
o mal como um meio para atingir o bem, isso significa que o próprio Deus está
submetido às leis da causalidade, e às leis da Natureza, não sendo
absolutamente livre. O próprio Deus está então sujeito à determinação, o que é
contraditório com o seu atributo de ser omnipotente. Por outro lado, isso
significa não apenas que Deus está limitado pelas leis da Natureza, como sendo
algo que está acima dele, mas também que, ao estar limitado por elas, não pode
ter sido ele a criá-las, logo Deus não é o criador de tudo, pois Deus não criaria a
sua própria negação ou limitação. Por conseguinte, teríamos de negar uma das
duas seguintes proposições : “Deus é omnipotente” ; “omnipotente significa o
poder de fazer tudo”. Mas assim como é contraditória a negação de que
“omnipotente” é o pode de fazer de fazer tudo, também é contraditória a
negação de que Deus não é omnipotente, e sendo omnipotente, tudo pode, e
também poderia acabar com o mal de que o ser humano é vítima pela Natureza
que o próprio Deus criou.

SE DEUS É BONDOSO, PORQUE NÃO ELIMINOU O CORONAVÍRUS ?

Se Deus tem o poder de eliminar o coronavírus mas não o faz, e tendo


havido tanto sofrimento devido ao coronavírus, e se um ser bondoso o
eliminaria mas não o faz, então Deus não é bondoso. De acordo com tal
concepção, Deus é um ser mau e por isso, envia pandemias às pessoas, e mesmo
que não as envie envia permite que elas existam, nada faz nada, nem antes nem
depois delas aparecerem, nem mesmo quando lho pedem.
Isto significa que se Deus é bondoso devia desejar o bem das suas
criaturas e proceder nesse sentido. Na Bíblia Sagrada o salmista dirigindo-se a
Deus diz : “tu não és um Deus que tenha prazer na iniquidade, nem contigo
habitará o mal” (Salmo 5:4), e noutros salmos pode também ler-se o seguinte :
“o Senhor é bom para todos, e as suas misericórdias são sobre todas as suas
obras” (Salmo 145,9): Há outras passagens da Bíblia que também dizem que
Deus é bondoso :“Falarei da bondade do Senhor, dos seus gloriosos feitos, por
tudo o que o Senhor fez por nós, sim, de quanto bem ele fez à nação de Israel,
conforme a sua compaixão e a grandeza da sua bondade” (Isaías, 63,7); “não há
ninguém que seja bom, a não ser somente Deus” (Lucas, 18,19); “Deus nos
ressuscitou com Cristo e com ele nos fez assentar nas regiões celestiais em
Cristo Jesus, para mostrar, nas eras que hão de vir, a incomparável riqueza de
sua graça, demonstrada na sua bondade para connosco em Cristo Jesus”
(Efésios, 2,5-7); “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1
João, 4,8).
A Bíblia também diz que Deus é misericordioso: “O Senhor é clemente e
cheio de compaixão, tardio em irar-se e grande em misericórdia. O Senhor é
bom para todos, e as suas misericórdias são sobre todas as suas obras.” (Salmo
145, 8-9); “Através das misericórdias do Senhor não somos consumidos, porque
suas compaixões não falham. Eles são novos todas as manhãs; Grande é a tua
fidelidade.” (Lamentações, 3, 22-23); “Portanto, sejam misericordiosos, assim
como o vosso Pai também é misericordioso.” (Lucas 6,36). “Mas Deus, que é
rico em misericórdia, por causa do seu grande amor com que nos amou, mesmo
estando mortos em delitos, nos fez vivos juntamente com Cristo (pela graça sois
salvos).” (Efésios 2,4-5).
Ligado à bondade de Deus está o seu zelo, que significa atenção
extraordinária que se demonstra por alguém, cuidado, afeição ardente e viva,
atenção, dedicação, empenho em procurar o bem alheiro, solicitude, diligência,
aplicação. A Bíblia fala também do zelo de Deus : “Porque te não inclinarás
diante de outro deus; pois o nome do Senhor é Zeloso; Deus zeloso é ele (Êxodo,
34, 14); “Porque o Senhor, teu Deus, é um fogo que consome, um Deus zeloso”.
(Deuteronómio, 4,24).
Uma pessoa zelosa procura estar sempre atenta e presente no que
acontece, não se preocupa apenas em dar atenção e ter a certeza de que a pessoa
está bem, mas também cuidar da pessoa, como acontece por exemplo com os
pais para com os seus filhos. A Bíblia diz mesmo o seguinte : “Acaso pode uma
mulher esquecer-se do seu bébé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas ?
Ainda que ela se esquecesse dele, eu nunca te esqueceria” (Isaías, 49, 15). Ora,
se Deus é zeloso, isto é, se está atento, se ele se preocupa com os seres humanos
e cuida da Humanidade como uma mãe cuida do seu filho, porque não faz nada
quando aparecem pandemias ? será que Deus está realmente preocupado
connosco ao acontecerem-nos pandemias ?
Se Deus é bondoso, misericordioso e zeloso, porque criou um mundo
onde existem tantos sofrimentos ? se o mundo é ordenado e harmonioso, e se foi
criado por um Deus bondoso, porque razão criou animais tão maus e que se
torturam uns aos outros causando gritos lacinantes de dor ? se Deus é bondodo
e zeloso, porque razão criou animais que comem também os seres humanos ?
Os teólogos costumam dizer que Deus respeita o livre arbítrio dos seres
humanos (mesmo em situações terríveis como o campo de concentração de
Auschwitz), por isso Deus não faz nada. No caso dos animais que são violentos,
será que Deus deixa-os serem violentos também para respeitar o seu livre
arbítrio ? mas os animais não têm livre arbítrio, e alguns são maus por natureza.
Deus é bondoso mas criou seres maldosos. Isso não será uma contradição ?
Porque razão Deus envia ou permite que existam tantos sofrimentos que
acontecem à Humanidade, como as pandemias ? porque razão não acode às
pessoas em semelhantes calamidades, mesmo que não tenha sido ele que as
tenha enviado? Se Deus é infinito amor, porque cria ou permite terramotos,
tsunamis, inundações, secas, vulcões, tornados e outras grandes catástrofes
naturais num mundo que foi ele próprio que criou, que matam milhares de
indivíduos, muitos deles seres bondosos, e crianças inocentes ? Como pode um
Deus de amor criar ou pelo menos consentir que a encefalite, a paralisia
cerebral, o câncro, a lepra, a síndrome de Down, o alzheimer, o parkinson, a
leucemia para crianças, o HIV/Sida, e outras enfermidades incuraveis atinjam
milhares de vítimas em todo o mundo, muitas delas com um bom
comportamamento, assim como tantas crianças inocentes ? como pode Deus,
dado que ele é um ser cheio de amor e de misericórida para com os seus filhos,
ter criado o Inferno, e enchê-lo com milhares e milhares de pessoas ao longo
dos séculos, aí os colocando para toda a eternidade, pagando eternamente por
umas dezenas de anos que vieram na Terra, apenas porque não o adoraram, ou
não podiam ou não queriam, na sua consciência, aceitar determinados dogmas
religiosos ? como pode um ser que é tão bondoso e misericordioso atormentar
as pessoas com chamas, e fazê-lo para todo o sempre ? Dado que Deus é
infinitamente bom e misericordioso, como é possível o sofrimenta eterno do
Inferno, depois das pessoas já terem sofrido tanto neste mundo ? se Deus um
ser de infinita bondade, zelo e misericórdia, porque criou ou permite o
coronavírus, que tantos sofrimentos causou aos seres humanos em todo o
mundo ?
Conforme já referimos, têm sido dadas várias justificações para a
existência destes males, justificações essas feitas através das teodiceias, que
defendem que mesmo um Deus bom que criasse um Universo , por uma boa
razão poderia ser obrigado a criar ou a permitir algum mal, como um meio para
atingir um fim. Por outro lado, segundo essas teodiceias, Deus não pretende
tudo o que acontece no Universo, apesar de ser a causa de tudo o que existe, e
deixa o Universo seguir as suas próprias leis, que causam coisas como
pandemias. Mas não foi Deus que criou essas leis ? ou será que as leis do
Universo estão acima do próprio Deus ?
Para Swinburne, um filósofo contemporâneo autor de uma teodiceia,
Deus tem também várias obrigações e pode realizar vários atos bons mas que
excedam as suas obrigações, tendo, na sua omnipotência, poder para isso,
exceto quando, conforme já dissemos mais atrás, se trata de coisas logicamente
impossíveis, como por exemplo fazer com que dois mais um não sejam três, que
o círculo seja um quadrado, etc. Swinburne diz que é impossível para Deus
realizar todos os atos bons possíveis que superem as suas obrigações. Segundo
este filósofo, a perfeita bondade de Deus “consiste em cumprir as suas
obrigações, em não praticar atos maus e em realizar muitíssimos atos bons”. 70
Swinburne diz que Deus não pode realizar todos os atos bons possíveis
que superem as suas obrigações. Mas Deus não está acima das obrigações ? se
Deus é todo poderoso e se é perfeitamente bom, porque não pode
realizar todos os atos bons mas apenas alguns? Neste caso, qual é o limite lógico
que impede Deus de o fazer? Swinburne diz que “Deus não pode criar o melhor
dos mundos possíveis, pois esse mundo não pode existir — qualquer mundo

70
Richard Swinburne, The Existence of God, Oxford, Ed. Oxford University Press, 2004 , p. 26.
pode ser melhorado”.71 Mas se “Deus não pode criar o melhor dos mundos
possíveis”, se Deus não pode criar um mundo que seja tão bom quanto possível,
como é que Deus é um ser todo poderoso e infinitamente bondoso ?
Por outro lado, se Deus é conhecedor das verdades morais, ou seja, se
Deus sabe tudo aquilo que é verdadeiramente bom, então Deus deve saber como
o mundo poderia ser o melhor possível, ou mesmo como o mundo poderia ser
perfeitamente bom, à imagem da própria perfeição e bondade de Deus. Ora, se
assim é, e se Deus é omnipotente, porque razão Deus não pode criar o melhor
dos mundos possíveis ?
É incompreensível que um Deus moralmente superior permita tanta
desgraça no mundo. No caso de Deus ter razões desconhecidas para permitir o
mal, que nesse caso seria aparentemente gratuito, é difícil que essa justificação
possa reconfortar a dor dos que sofreram perdas enormes, como por exemplo
com a pandemia do coronavírus, em que muitas pessoas perderam os seus
entes mais queridos e o seu emprego. Em que é que a Humanidade tem a
beneficiar de uma pessoa perder os seus entes mais queridos e o seu emprego ?
Devemos questionar se é razoável acreditar e aceitar que haja um bem
maior que esteja associado a tanto sofrimento e a tantos danos que a pandemia
do coronavírus trouxe à Humanidade, sem que Deus pudesse obter esse bem
sem haver tantos sofrimentos e tantos prejuízos económicos. Muitas pessoas
não encontram esses bens, e mesmo que os haja não os conseguem
compreender, e por outro lado, mesmo compreendendo-os não os conseguem
aceitar. Vejamos quais poderão ser esses “bens” no capítulo seguinte.

71
Idem, Ibidem.
“BENS” PROPORCIONADOS PELO
CORONAVÍRUS

“BENS” SOB O PONTO DE VISTA BIOLÓGICO


Existe um grande número de vírus na Natureza, por exemplo um lago ou
um rio podem facilmente produzir milhões de vírus. Segundo Peter Polland, “os
vinte e um tipos de vírus que são nocivos para o corpo humano representam
uma ínfima fração dos 100 milhões de famílias de vírus sobre a Terra. A maior
parte deles são vitais para a nossa existência”. Segundo este cientista, “é a
combinação dum forte crescimento bacteriano e duma infeção viral que permite
aos ecossistemas continuarem a funcionar (…) os vírus são um elemento
essencial da reciclagem dos nutrientes inorgânicos. Assim, embora eles sejam
minúsculos e pareçam insignificante, os vírus desempenham um papel essencial
a nível mundial na reciclagem dos nutrientes das cadeias alimentares.
Começamos justamente a dar-nos conta de todo o alcance do seu impacto
positivo sobre a nossa vida. Uma coisa é certa : de todos os nossos heróis
desconhecidos, os vírus são os mais pequenos”. 72
Também a cientista Marilyn Roossinck escreveu um artigo sobre os
benefícios dos vírus, que resume da seguinte maneira : “Embora os vírus sejam
frequentemente estudados como patógenos, muitos são benéficos para os seus
hospedeiros, fornecendo funções essenciais em alguns casos e
condicionalmente benéficas em outros. Vírus benéficos foram descobertos em
muitos hospedeiros diferentes, incluindo bactérias, insetos, plantas, fungos e
animais. Como essas interações benéficas evoluem ainda é um mistério em
muitos casos, mas, conforme discutido neste artigo, os mecanismos dessas
interações estão começando a serem entendidos com mais detalhes.” 73
O papel dos vírus é semelhante ao dos tremores de Terra. No seu livro
Terra rara, o geólogo Peter Ward e o astrólogo Donald Brownbe, professores da
Universidade de Whashington, escreveram um capítulo que tem como tema e
título “A importância surpreendente da tectónica das placas”. Segundo eles, se
as placas tectónicas da Terra deixassem de se mexer, seguir-se-ia uma extinção
massiva da Vida sobre a Terra. Segundo eles, há várias razões para isso. A
tectónica das placas é essencial para a formação dos continentes e a manutenção
do equilíbrio entre a Terra (montanhas) e o mar. Ela age igualmente como um

72
Peter Pollard, “Are viruses actually vital for our existence ?”, World Economic Forum, 3 de Novembro
de 2015 (artigo on-line).
73
Marilyn Roossinck, “The good viruses: viral mutualistic symbioses” in Nature Reviews Microbiology,9,
pp.99, 2011. Ver também :Mario Mietzsch, e Mavis Agbandje-McKenna, “The good that vírus do”, in
Annual Review of Virology, 2017 4:1, III-V.
termostato mundial reciclando os produtos químicos essenciais à manutenção
do equilíbrio uniforme do nível de dióxido de carbono. 74
Por outro lado, Peter Ward e Donald Brownbe afirmam que a tectónica
das placas mantém o campo magnético da Terra sem o qual os raios cósmicos
eliminariam toda a forma de vida : “A tectónica das placas parece ser a condição
primeira para que haja vida sobre um planeta; ela é portanto necessária para
manter um mundo alimentado em água”. 75
Portanto, segundo estes autores, tanto os vírus como os tremores de
Terra são necessários à vida no planeta Terra. No entanto, será que Deus, que é
um Ser sábio, não sabia criar uma outra forma de vida ? será que Deus não
poderia ter criado um mundo que funcionasse sem esses vírus ? Deus não é um
ser que tudo pode? Não poderia um ser que tudo pode ter criado leis da
Natureza que não conduzissem aos males ocorridos na Natureza, ou pelo menos
a tantos males atrozes ? É necessário que morram milhares de pessoas em
tremores de Terra, para que as placas tectónicas da Terra possam funcionar
corretamente ? É necessário que os animais tenham vírus para que existam ? se
os vírus são necessário aos organismos vivos e aos animais seus portadores,
porque razão isso acontece com alguns animais e com outros não ? São os
acasos da Natureza e Deus não pode fazer nada ? se assim é, Deus está
submetido à própria Natureza e não é um ser omnipotente.

“BENS” SOB O PONTO DE VISTA PSICOLÓGICO

Com os confinamentos devido à pandemia do coronavírus, as pessoas


tiveram de ficar retidas em casa, e isso para algumas pessoas pode ser
considerado um bem. O filósofo Pascal, no século XVII afirmou o seguinte:
“Quando me ponho às vezes a considerar as diversas agitações dos homens, e os
perigos e trabalhos a que eles se expõem, na corte, na guerra, donde nascem
tantas querelas, paixões, cometimentos ousados e muitas vezes nocivos, etc.
descubro que toda a miséria dos homens vem duma só coisa, que é não saberem

74
Peter D. Ward, Donald Brownlee, Rare Earth: Why Complex Life is Uncommon in the Universe, New
York, Ed. Springer, 2009, p. 32.
75
Idem, ibidem.
permanecer em repouso, num quarto. Um homem que tenha o bastante para
viver, se fosse capaz de ficar em sua casa com prazer não sairia para ir viajar por
mar ou pôr cerco a uma praça-forte. Ninguém compraria tão caro um posto no
exército se não achasse insuportável deixar-se estar quieto na cidade; e quem
procura a convivência e a diversão dos jogos, é porque é incapaz de ficar em
casa, com prazer”.76
A pandemia do coronavírus originou períodos de confinamento, e isso foi
certamente para muitos indivíduos uma oportunidade de introspeção, de
reflexão, de exame de consciência, de retorno sobre si mesmo. Sob a pressão da
globalização e das economias em crescimento, das viagens, da tecnologia, da
competição desenfreada, do consumismo, da velocidade, dos muitos afazeres, a
sociedade acelerou-se e caiu num ritmo frenético. A generalidade dos seres
humanos, sobretudo nos países ocidentais, nos últimos tempos tem vivido
muito apegada a novos ídolos : o progresso, o consumismo, o bem-estar, o
comodismo, o hedonismo, e passou-se a levar uma vida muito superficial. No
seu dia a dia as pessoas andam sempre envolvidas em muitos projetos,
trabalhos, reuniões, divertimentos, etc., e têm muitas ambições e desejos
materiais (carro novo, casa nova, vestido novo, viagem nova, etc.,), perdem-se
em futilidades e vaidades, não distinguindo o essencial do superficial.
Com situações como a do coronavírus, nomeadamente o confinamento
que o mesmo originou, houve uma paragem, um retemperar de energias, um
recarregar de baterias, uma forma das pessoas se encontrarem consigo próprias,
uma oportunidade de retiro do supérfluo, um parar da vida mundana, uma
evasão, que teve para muitos indivíduos aspetos positivos. Os confinamentos
provocados pelo coronavírus foram para alguns indivíduos uma oportunidade
para uma tomada de consciência dos seus hábitos, um espaço para uma
conversação interior, para um maior discernimento, de modo a reorganizarem a
sua vida. Muitos indivíduos foram levados a parar e a pensar a vida de outro
modo, e portanto este retorno sobre si foi para muitos indivíduos
psicologicamente fecundo.
O ser humano confia demasiado nas suas capacidades, e vê-se como o
centro do mundo, por exemplo destruindo as florestas e matando os animais,
vê-se como um ser todo poderoso, confiando demasiado da ciência, na técnica, e

76
Blaise Pascal, Pensamentos, Lisboa. Ed. Relógio d´Água, 2019, p. 20.
no dinheiro. Ora, a pandemia do coronavírus fez reconhecer que o ser humano é
frágil e não tem controle sobre a existência, fez muitas pessoas despertarem
para a sua vulnerabilidade e terem uma outra visão sobre a Vida e as relações
humanas. A pandemia do coronavírus fez tomar maior consciência sobre o que
realmente importa, sobre o que tem sentido, e fez ver melhor que todas as
conquistas e ambições de nada valem, que tudo é fútil e frágil, e pode acabar
num instante, dando portanto ao ser humano uma maior consciência da sua
finitude. Por outro lado, fez muitas pessoas darem mais importância àquilo que
tinham, e perceberem que afinal não eram tão infelizes como pensavam, pois há
infelicidades maiores que nos podem atingir.
O confinamento proporcionou a muitos indivíduos focarem-se nas suas
prioridades e reexaminarem tudo o que antes considerava como prioritário,
importante e verdadeiro. Fez parar, questionar e pensar crenças, hábitos,
anseios, capacidades pessoais, e compreender melhor que muito disso não passa
de ilusões. Muitos indivíduos vivem as suas vidas cheias de ambições para o
futuro, como se fossem eternos. Situações como a da pandemia fez muitas
pessoas compreenderem melhor o quão impotentes somos perante a morte, e
que alguns dos objetivos que pretendemos realizar não só ultrapassam a nossa
capacidade de realização, como também dependem da duração, sempre incerta,
da nossa vida, convidando-nos portanto a termos uma atitude mais humilde.
A pandemia do coronavírus causou sofrimento psicológico e social,
principalmente naqueles que ficaram doentes, mas o sofrimento e a dor podem
também contribuir para o aperfeiçoamento do caráter. A pandemia do
coronavírus, enquanto sofrimento, um teste à capacidade de superar as
adversidades, e forneceu a muitos uma oportunidade de crescerem como seres
humanos. Pôs à prova a força de carater, constituindo um processo de
amadurecimento psicológico, e o apelo a uma maior autenticidade de Vida,
àquilo que realmente importa na vida do ser humano, numa existência que se
sabe condenada à morte, mas cuja condição mortal é ignorada ou esquecida, e
portanto deu mais significado à própria Vida. A ausência de sofrimento, morte,
velhice, doenças, tornaria os seres humanos mais arrogantes, presunçosos,
caprichosos, e egoístas. Portanto, situações como estas faz desenvolver uma
maior humildade e bondade, espírito de sacrifício e altruísmo.
No entanto, estes efeitos benéficos proporcionado pela pandemia,
tiveram também o reverso da medalha, pois a pandemia trouxe muita solidão a
muitas pessoas, trouxe-lhes demasiado sofrimento psicológico, e que para
algumas foi bastante duro. Esse sofrimento psicológico e em alguns casos o
trauma a ele associado, nomeadamente nas pessoas que ficaram gravemente
doentes, internadas nos cuidados intensivos dos hospitais, foi algo que muitos
dispensariam de bom grado, e de que aliás não precisavam para o seu
amadurecimento psicológico. A Vida já tem bastante sofrimento no dia a dia,
muitos indivíduos já tinham bastantes problemas, e não precisavam do
coronavírus para receberem os “bens” por ele proporcionados sob o ponto de
vista psicológico.
Mesmo que muitas pessoas consigam aproveitar a morte, a doença, a
velhice e o sofrimento moral para amadurecerem psicologicamente, para se
superarem, para mudarem de vida, para refletirem, para adquirirem sabedoria,
isso não justifica tanto sofrimento no mundo. Deus enviou, ou permitiu, o
coronavírus para que as milhares de pessoas que foram atingidas por ele
melhorassem psicologicamente ? Muitas pessoas que são atingidas por grandes
e traumáticos problemas não chegam a desenvolver essas capacidades,
nomeadamente as virtudes morais como a coragem e a humildade,
desenvolvendo antes a revolta e o desespero, e em muitas delas, portanto, uma
situação como por exemplo a do coronavírus foi um mal que originou não um
bem mas outro mal.
Apesar dos “bens” do ponto de vista psicológico, atrás mencionados,
benéficos para alguns indivíduos, o ser humano é um animal social, e para
muitos indivíduos as restrições de contactos sociais trazidas pela pandemia
trouxeram-lhes muita solidão, principalmente aos indivíduos que vivem
sozinhos. A “paz de espírito” trazida pelos confinamentos foi antes, para muitos
indivíduos, um tormento. Além disso, sabendo que diariamente estavam a
morrer centenas de pessoas, como sucedeu durante o segundo confinamento, e
tendo os familiares e amigos em hospitais, e alguns deles a morrerem, deixou
muitos indivíduos abalados psicologicamente.

Por outro lado, falar das virtudes do ficar em casa, da paz do lar, e da
necessidade de repouso físico e psicológico, é esquecer os que não tinham casa,
os sem abrigo, e os que tiveram de voltar para casa dos pais. Falar no bem de
ficar em casa é esquecer os que tinham casas muito pequenas, é esquecer os
muitos vivem apenas em quartos, em casas onde há muitas pessoas, com
barulho e riscos de contágio. Muitos indivíduos com famílias numerosas, e com
toda a família fechada em casa, não encontraram a paz de espírito do
recolhimento, antes pelo contrário. Em vez de se retirarem em casa para se
reconciliarem consigo mesmos, e para uma espécie de retemperar de energias
físicas e psicológicas, encontrarem precisamente o contrário. Com os
confinamentos, em muitas casas nasceram ou aumentaram problemas
familiares, principalmente a violência doméstica, devido à falta de bens
essenciais para partilharem com o resto da família, ao desemprego que atingiu
muitas famílias, e à tensão psicológica de se estar todo o dia fechado em casa,
rodeado de mais pessoas o tempo todo. A pandemia do coronavírus nem sempre
trouxe bens do ponto de vista psicológico, mas sim o contrário para a maioria
das pessoas.

“BENS” SOB O PONTO DE VISTA RELIGIOSO

O coronavírus provocou o encerramento dos templos, e os crentes


tiveram de procurar outras alternativas, conforme se pode ver no capítulo O
encerramento dos templos e de outros lugares religiosos. Embora isso tenha
sido contestado, isso permitiu a descoberta, ou a redescoberta, de outras formas
de viver a fé religiosa, sem ser a da formalidade das celebrações dentro dos
templos. Os crentes tiveram de viver a sua fé sem o clero, tal como sucedia na
igreja primitiva, que era essencialmente uma igreja doméstica. Não havia
sacerdote a presidir e a consagrar a hóstia, não existiam sacerdotes para benzer
a água e benzer as pessoas. Todos os batizados eram considerados sacerdotes, e
o que se denomina hoje “sacerdote” era apenas aquele que presidia às
celebrações, e que podia ser alternado. A Igreja primitiva não estava tão
dependente de hierarquias eclesiásticas como está hoje. Com o encerramento
dos templos, sublinhou-se que a igreja é o conjunto de todos os batizados.
Conforme já referimos no capítulo sobre o encerramento dos templos, com a
pandemia e os seus confinamentos muitos crentes inventaram maneiras de
rezar em casa, em consonância aliás com o apelo lançado pelo concílio Vaticano
II para se redescobrir a casa como uma “igreja doméstica”, como se pode ler na
exortação da encíclica Amoris laetitia (“A Alegria no amor”) do Papa
Francisco.77
No entanto, nem todos conseguiam assistir pela televisão e pela internet
às celebrações religiosas, por vezes nem sequer tinham ambiente e tempo
rezarem sozinhos, pois tinham mais pessoas a viverem consigo, sempre juntas
durante os confinamentos, alguns membros da família não se interessavam
pela religião, não queriam ouvir celebrações, havia crianças que faziam barulho,
etc. A ideia de se reunirem à volta de uma mesa, celebrando a palavra de Deus,
conforme aconteceu em algumas famílias, não resultou com todas as famílias, e
por outro lado há muita gente que vive sozinha, que não pode viver uma igreja
doméstica.
Além da descoberta de novas práticas religiosas, que nuns casos resultou
e noutros não, o sofrimento trazido pela pandemia constituiu um processo de
amadurecimento psicológico mas também espiritual, para quem acredita em
Deus. Conforme defenderam alguns líderes religiosos, o coronavírus teve
aspetos positivos, pois foi uma oportunidade para os crentes provarem a sua
obediência e testarem o seu amor a Deus. Segundo a perspetiva religiosa, Deus
permite o mal porque o mal possibilita um progresso em direção ao bem, e os
sofrimentos provocados pelo mal fortalecem a alma do crente, tornando a fé
espiritualmente mais autêntica e madura. O coronavírus confrontou as pessoas
com o problema do sofrimento, e atuou como um dos veículos para despertar a
fé religiosa. O sofrimento fala aos crentes mediante a sua fé em Deus, é um
meio que, conforme acreditam os crentes, Deus usa para fazer despertar os
seres humanos, para Deus, ou para os crentes consolidarem a sua crença.
Estes bens do coronavírus sob o ponto de vista religioso são apresentados
por John Piper, no seu livro “O coronavírus e Cristo”. Para Piper Deus é
soberano sobre o coronavírus, o coronavírus existe para sua glória, qualquer
que seja o sofrimento que os cristãos possam suportar é para o nosso bem e nos
aproximar de Deus, e qualquer sofrimento que os não-cristãos possam suportar
é uma forma de chamá-los para o arrependimento e a crença no Evangelho, se
nos arrependermos e nos reconciliarmos com Deus seremos salvos. Segundo
Piper, para que os cristãos pudessem suportar o coronavírus, precisavam de ser
77
Papa Francisco, Amoris laetitia, Lisboa, Ed. Paulus, 2016, capítulo IX, nomeadamente “Espiritualidade
matrimonial e familiar”.
capazes de estarem dispostos a ver a mão de Deus trabalhando na pandemia, e
submeterem-se às mãos de Deus enquanto rezam, o servem e o adoram. 78
Segundo este autor, situações como a da pandemia do coronavírus fez os
crentes recordarem a promessa de uma vida eterna depois da morte, aspirarem
mais ao Paraíso, pois conforme diz São Paulo, “não há nenhuma medida comum
entre os sofrimentos da vida presente e a glória que se vai revelar em nós”
(Romanos, 8, 18; 38-39); “Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não
haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras
coisas são passadas.”(Apocalipse, 21,4) e todos os flagelos do mundo não
existirão mais.
Um estudo realizado nos Estados Unidos da América, pela  pelo Pew
Research Center, em 27 de Janeiro de 2021, descobriu que 28% dos americanos
acreditam que o COVID fortaleceu a sua fé pessoal. Outros 28% também
disseram que o vírus fortaleceu a fé dos outros. Mas essa percentagem varia em
cada país, sendo nesse estudo os Estados Unidos um dos países em que isso
mais aconteceu. Em países como por exemplo a Alemanha, a Suécia, ou a
Dinamarca, as percentagens de crentes que fortaleceram a sua fé são muito mais
baixas : Alemanha, 5% ; Suécia, 3 % ; Dinamarca, 2 %.
Com o coronavírus os psicólogos e psicoterapeutas falam de resiliência,
os sociólogos, de instituições credíveis, os economistas, de sustentabilidade, os
filósofos, de sabedoria como estilo de vida, e os religiosos, de conversão. O
coronavírus levou algumas pessoas a recorrerem a Deus. Em situações de
perdas como a da pandemia do coronavírus (perda de trabalho, perda do
marido, perda dos pais, perda dos filhos, etc.), muitas pessoas passam por
conversões religiosas, voltam-se para a religião, que dantes não lhes interessava,
ou que lhes interessava mas que não praticavam. Com as crises algumas pessoas
aproximam-se mais de um refúgio espiritual, e mudam os seus hábitos de vida.
Para os crentes também existe um bem considerado do ponto de vista
religioso, apontado por muitos pregadores das igrejas evangélicas e por alguns
padres : Deus testa a fidelidade dos crentes, ao atingi-los e às suas famílias com
os males, como as enfermidades, assim como quis testar a fidelidade de Abrãao,
ao mandá-lo mandar o seu filho único (algo que seria para Abrãao motivo de

78
John Piper, Coronavirus and Christ, Wheaton, IL, Ed. Crossway, 2020
grande sofrimento, pois ficaria sem o seu filho), assim como testou Jó, através
de muitos sofrimentos de que este padeceu.
Todavia, se assim é, Deus deveria só atingir os crentes, para testar a sua
fidelidade, mas o coronavírus atingiu toda a gente, uns de maneira direta, ao
serem atingidos pelo vírus, outros de maneira indireta com a perda de
familiares e amigos, e com a perda de empregos. Porque é que os não crentes
também têm que sofrer o coronavírus, para que Deus teste a fidelidade dos
crentes ? Por outro lado, se Deus é omnisciente, Deus sabe tudo, logo não
precisa de fazer testes para saber se os crentes lhe são ou não fiéis, e se
realmente acreditam ou não nele, e portanto se continuam com ele e não se
revoltam no meio das tribulações, dado que Deus não lhes valeu.
Para os crentes em Deus, a pandemia do coronavírus é também
considerada uma forma de redenção do ser humano através do sofrimento. Esta
tese pode ser encontrada por exemplo na carta apostólica do Papa João Paulo II,
Salvici Doloris, sobre o sentido cristão do sofrimento humano. À luz da
perspetiva cristã, o sofrimento adquire significado, e portanto não é algo
gratuito. Cristo disse : “Felizes os infelizes, felizes aqueles que têm fome e sede
de justiça”. O sofrimento identifica-se com a recompensa, como uma espécie de
morte-infelicidade, que faz frutificar vida-felicidade, ou seja, a imortalidade.
A ideia de redenção pelo sofrimento é uma ideia que pressupõe que o ser
humano precisa de ser redimido, isto é, salvo. Mas isto pressupõe que há algo
de que o ser humano precisa de ser salvo, isto é, do pecado, tanto do pecado
original, como dos pecados que comete no seu dia a dia. Ora, isso significa
acreditar que somos pecadores, o que não se coaduna com o que muitas pessoas
sentem e pensam em relação aos seus atos, dado que não prejudicam outros
indivíduos, e por outro lado isso implica que é preciso ter fé em Deus. Há
determinadas ações que muitas pessoas não consideram pecado, e por isso não
sentem necessidade de redenção espiritual pelo sofrimento ou por outra forma.
Por outro lado, conforme pensam os não crentes, mesmo que sejam erradas,
como roubar e matar, não precisam de ser redimidas por Deus, pois por um lado
são erradas independentemente de Deus as considerar como pecado, e por
outro lado porque podem e devem ser punidas neste mundo, através da
condenação nos Tribunais, e não através do castigo de Deus com pandemias,
que aliás atingem toda a gente, tanto os que cometem crimes como os que não
cometem.
São Paulo diz que “para quem ama a Deus tudo se pode converter num
bem” (Romanos, 8, 28). No caso do coronavírus, para quem a ama a Deus, Ele
pode converter-se num bem, mas o sofrimento do coronavírus não expia nem
paga os erros cometidos pelos seres humanos, como por exemplo matar ou
roubar. A redenção divina pelos pecados, a salvação do ser humano pelo facto
de ter cometidos determinados erros, não é suficiente, e por outro lado só é
aceite por quem acreditar em Deus. Há outras formas mais justas do ser
humano pagar pelos seus erros, sem ser pelo sofrimento das doenças e de outros
males que lhe acontecem. A ideia de redenção dos pecados, através do
sofrimento, por exemplo com pandemias, tem também subjacente a ideia de
culpa, e consequentemente de punição. Ora, isso implica que as pessoas além de
terem de ser purificadas no Purgatório, ou punidas no Inferno, depois de
morrerem, também são punidas já neste mundo.
À luz da perspetiva religiosa não se deve encarar as contrariedades, tais
como as doenças, como algo de absurdo e sem sentido, mas para isso é preciso
acreditar em Deus, e além disso há aqui uma atitude de submissão e de
estoicismo, de aceitação. Os crentes acreditam que Deus está com eles também
no sofrimento, e aquilo que parece caótico, aleatório e absurdo, ganha sentido,
pois recorrem a Deus. Mas na prática esta atitude é em muitos casos semelhante
à de alguém que só se lembra de Santa Bárbara quando faz trovões. Trata-se de
uma atitude que revela muitos crentes como interesseiros, como as pessoas que
só se lembram de Nossa Senhora de Fátima quando têm problemas e que só vão
a Fátima se ela as curar. É uma troca com Deus, uma espécie de comércio, em
que um paga ao outro por aquilo que recebeu. As pessoas dizem a Deus : “curas-
me, e eu dou-te isto e aquilo”.
Ora, Deus, dado que é Deus, não precisa das nossas coisas. No caso do
coronavírus acontece o contrário, pois se Deus a enviou para que as pessoas se
aproximarem mais dele, é como se Deus lhes dissesse : “dou-vos a pandemia,
para vos lembrardes de mim”. Mas para que precisa Deus de nós, que Deus é
esse que nos envia uma pandemia para que as pessoas se aproximem mais
dele ? é Deus que precisa que as pessoas se aproximem dele, e então lhes envia a
pandemia, ou são elas que precisam dele ? A pandemia aproxima mais as
pessoas de Deus por necessidade de Deus ou das pessoas ?
As religiões judaica, cristã e muçulmana ensinam-nos que Deus nos ama,
e que se não o amarmos iremos para o inferno. O coronavírus, entendido como
um bem espiritual para que as pessoas se tornem religiosas (ou mais religiosas),
e amem a Deus (ou o amem mais), é uma coisa que Deus nos envia para que o
amemos e nos livremos do Inferno. Mas isto é um relacionamento abusivo,
semelhante ao homem que diz à mulher : “eu amo-te, eu quero-te, és minha, e
se não me amares mato-te” , que é o equivalente a colocar as pessoas no Inferno.
Na Bíblia Sagrada o Inferno é considerado uma segunda morte, e é chamada
segunda, porque se segue à morte física (Apocalipse, 2,11; 20, 6; 20, 14-15;
21,8), e portanto quem não tiver acreditado em Deus e quem não o tenha
amado, será também morto. Segundo os teólogos, Deus respeita o livre arbítrio
das pessoas, e portanto entramos aqui numa contradição. Se um homem
respeitasse o livre arbítrio da mulher por ela não o amar, não a matava. Se Deus
respeitasse o livre arbítrio dos seres humanos por não acreditarem na sua
existência nem o amarem não os punha no Inferno. O facto das pessoas não
acreditarem em Deus nem o amarem não significa que sejam más pessoas, pois
uma pessoa pode ter bom comportamento na sua vida na Terra, mesmo sem
acreditar em Deus nem o amar.
Se Deus enviou a pandemia do coronavírus para que as pessoas
acreditem nele e o amem, isso significa que Deus quer que as pessoas acreditem
que ele existe e que o amem. Se o coronavírus é um bem espiritual entendido
como forma de as pessoas se lembrarem dele, porque razão Deus não respeita o
livre arbítrio das pessoas, e lhes envia pandemias para que se lembrem dele ?
porque razão as pessoas não são livres de acreditarem nele ? porque razão as
pessoas não são livres de o amarem ? porque quer ele ser tão adorado ? se Deus
enviou a pandemia como um bem espiritual, fazendo com que as pessoas se
aproximem dele, porque recorre Deus a meios como esse, isto é, a pandemias,
para que se aproximem dele ? se Deus envia pandemias para que as pessoas se
aproximem dele, isso não faz sentido sendo Deus um ser que se basta a si
mesmo, e que portanto não precisa das pessoas.
Com os tormentos da vida, algumas pessoas mudaram de vida,
confessaram os seus pecados, pararam de pecar, e voltaram-se para Deus,
tornaram-se religiosas ou mais religiosas. Isso não aconteceu apenas com a
pandemia do coronavírus, mas com outras tragédias que aconteceram ao longo
da História, como por exemplo com a peste negra. Mas com o passar do tempo
voltou tudo ao mesmo, as pessoas esqueceram-se dos seu bons propósitos,
esqueceram-se de Deus, e voltaram à vida que dantes levavam, não valeu de
nada, e também não valerá de nada o “bem religioso” trazido pelo coronavírus.
Nem todas as pessoas se aproximam mais de Deus em situações como as
da pandemia do coronavírus, pois as preocupações do ser humano voltam-se
principalmente para a saúde e para a economia. A pirâmide do psicólogo e
filósofo norte-americano Abraham Maslow, que classifica as necessidades
humanas por ordem de importância, coloca em primeiro lugar as necessidades
fisiológicas e securitárias, e em último lugar as necessidades de auto realização,
entre as quais se incluem as necessidades espirituais. Esta pirâmide permite
compreender porque razão, em tempos de crise, as necessidades fundamentais
(comida, saúde, segurança) estão no centro da atenção, e as necessidades do
espírito (Filosofia, Poesia, Arte, Espiritualidade) são como um luxo e vêm em
último lugar.
Por outro lado, em tragédias como as da pandemia do coronavírus muitas
pessoas ficam dececionadas com Deus, devido ao facto de Deus, sendo
considerado todo poderoso e bondoso, nada fazer para livrar as pessoas do
coronavírus. Muitas pessoas chegam à conclusão de que para o problema das
catástrofes, pandemias, doenças, e outros males naturais, não podem contar
com a fé em Deus e acabam por enveredar no ceticismo, no agnosticismo, e
algumas no ateísmo. Para muitas pessoas o coronavírus, o cancro, os
terramotos, os tornados, os tsunamis, as cheias e outras grandes catástrofes
naturais, perante o silêncio e a ocultação de Deus, não levam a nada do ponto
de vista religiosos, antes pelo contrário, pois revelam que estamos sós e
abandonados, entregues a um mundo de sofrimentos atrozes, injustificados e
constantes, precisamente porque Deus está escondido ou não existe. 79
Conforme Primo Levi afirmou sobre os campos de concentração nazis,
“existe Auschwitz, logo não existe Deus”.80 À semelhança de Primo Levi muitos
perguntam : onde estava Deus enquanto acontecia a guerra no Vietname, a

79
Ver J. L. Schellenberg, Divine Hiddenness and Human Reasons, Ítaca e Londres, Ed. Cornell University
Press, 1993.
80
Primo Levi, Se isto é um homem, Lisboa, Ed. Teorema, 2011.
explosão de Hiroshima, no Ruanda, em Dresde, e em tantos outros cenários de
horror ? Não esteve presente, e portanto para muitos significa que Deus não
existe, ou não se importa com isso no caso de existir. Esqueceu-se das pessoas,
deixou-as sós e abandonadas, assim como na pandemia do coronavírus É isso o
que sentem e pensam muitas pessoas, fazendo-as ficar mais descrentes em
Deus.
Os motivos maiores para a rejeição da existência de Deus não são
racionais (por uma ausência de evidências filosóficas e científicas em favor da
existência de Deus), mas emocionais. Devido a muitas dificuldade na vida,
sofrimentos, rejeições, traumas, deceção com alguém, perda de entes queridos,
desemprego, injustiças sociais, saúde debilitada, problemas amorosos,
catástrofes naturais, massacres e guerras que muitos indivíduos viveram e
testemunharam, e outras situações como as pandemias, levam muitas as
pessoas a ficarem revoltadas, e em vez de as aproximarem mais de Deus, afasta-
as. Portanto, só com algumas pessoas a pandemia do coronavírus proporcionou
o bem espiritual do encontro com Deus, pois com muitas pessoas aconteceu
precisamente o contrário.

“BENS” SOB O PONTO DE VISTA SOCIAL

Com os períodos de confinamento, a vida em família aumentou, e


durante algumas semanas foi o único meio de contacto social, sobretudo para
aqueles que não estavam habituados à experiência de retiro do mundo social.
Isso trouxe situações consideradas benéficas tais como um maior convívio em
família, mais tempo para se ler livros devido ao facto de se estar fechado em
casa, etc. No entanto, a vida em família, com todos fechados em casa, criou
também conflitos familiares, tensões psicológicas, foi também um ambiente
propício para se descarregar a raiva pelas frustrações de estar fechado em casa.
Com os confinamentos, a violência doméstica aumentou, entre marido e
mulher, entre pais e filhos, e entre irmãos. Na sequência dos confinamentos, o
número de divórcios também aumentou.
A crise financeira causada pela pandemia fez com que muitas pessoas
economizassem mais e revissem os seus hábitos de consumo, passando a
distinguir melhor o supérfluo do essencial, e tornando-se menos consumistas, o
que pode também ser considerado um bem sob o ponto de vista social. A
pandemia do coronavírus baixou também o preço da habitação, que nos últimos
tempos tinha alcançado valores demasiado elevados. A pandemia trouxe para o
mundo dos negócios a necessidade de rever as prioridades, pois enquanto antes
da pandemia se incentivava a aumentar a produção e as vendas, com a
pandemia tornou-se necessário pensar mais na atenção a dar às pessoas. Em
suma, fez muita gente repensar a produção desenfreada, o lucro pelo lucro e o
consumismo. Com a possibilidade de novas pandemias num futuro próximo, o
setor do comércio passou a pensar novas formas de o exercer, de que se
destacam novos modelos de negócio para restaurantes. O teletrabalho era já
uma realidade, mas devido à pandemia do coronavírus muitas empresas e
muitos trabalhadores descobriram as suas potencialidades, e portanto cresceu
muito. Devido à pandemia passou a haver mais empresas que adotaram este
modelo de trabalho, mesmo depois dos períodos de confinamento, pois
encontrarem vantagens nesse modelo de trabalho (menores gastos financeiros
com os espaços, mais autonomia e flexibilidade de horários para os
trabalhadores, etc.). Além disso, o teletrabalho evita a necessidade de estar em
espaços fechados, com muita gente junta, e economiza-se mais tempo, devido
ao facto de não ter que se andar todos os dias de transportes públicos, ou
mesmo de carro próprio, perdendo tempo no trânsito, principalmente no início
e no final do dia, em que as pessoas começam e terminam o trabalho. Para
muitas pessoas, a descoberta do teletrabalho, com horários flexíveis e sem
perdas de templo nas deslocações para o trabalho, permitiu-lhes dedicar mais
tempo a si e à família, e isso foi também considerado um bem do ponto de vista
social.
No entanto, muitos trabalhadores também se queixaram e queixam de
que o teletrabalho não é um bem mas sim um mal, pois com a família em casa e
as suas solicitações, não se conseguiam nem conseguem concentrar. Por outro
lado, sentiam a necessidade do contacto presencial com os colegas de trabalho,
da interação, da interajuda, do calor humano. O mesmo aconteceu com o Ensino
à distância, que foi considerado um meio mais cómodo de aprendizagem, mas
foi também criticado e rejeitado pela maioria dos alunos, por não conseguirem
aprender, ou por aprenderem menos, em comparação com as aulas presenciais,
e pela falta de convívio com os colegas.
Outro “bem” proporcionado pela pandemia do coronavírus tem a ver com
a questão ecológica. Ao longo das últimas décadas os seres humanos destruíram
muitos ecossistemas, modificando geneticamente os seres vivos, os alimentos,
ou espalhando todas as espécies de lixos, e emitindo muitos gazes poluentes
para a atmosfera. O confinamento em casa, devido ao coronavírus, fez diminuir
o aquecimento global, dado que a situação gerada pela pandemia diminuiu
menos de um milhão a emissão de toneladas de dióxido de carbono por dia,
devido ao encerramento de fábricas e à grande diminuição de carros nas
estradas e nas cidades. As imagens de satélite mostraram ao mundo as imagens
de reduções drásticas das emissões de gazes poluentes. A pandemia ajudou a
equilibrar os problemas ecológicos, principalmente os causados pelas alterações
climáticas que levaram ao aquecimento global. A paragem e a diminuição da
produção industrial, devido à pandemia do coronavírus, fez cair a emissão de
gazes poluentes , diminuiu o aquecimento da atmosfera, aumentou a qualidade
do ar, e originou portanto melhor saúde para o planeta e por conseguinte para s
populações. No entanto, embora isto seja positivo, não foi suficiente, dado que
depois do confinamento pouco a pouco tudo voltou ao mesmo. A solução está
em que os Governos criem limites à emissão de gazes para atmosfera, que não
haja tantas indústrias poluentes, que sejam penalizadas por poluírem tanto,
que não haja tantos carros a circularem no dia a dia, etc.
Além do problema ecológico temos também o problema demográfico, que
aliás está interligado. O Fundo das Nações Unidas para a população declarou
no seu relatório de 2009 sobre o estado da população mundial, apresentada na
conferência de Copenhaga no dia 18 de Novembro de 2009, que o aquecimento
global não poderia ser reduzido senão por uma redução massiva da população
global. Também um relatório elaborado pela London School of Economics , sob
pedido da Optimum Population Trust – uma organização britânica de defesa da
redução da população mundial, estimava que o meio menos custoso para
solucionar o problema do aquecimento global seria reduzir a população
mundial. Ora, a diminuição da densidade populacional, através dos milhares de
mortos causados pelo coronavírus, foi uma forma de redução do excesso de
população mundial, por isso embora seja de lamentar, por outro lado pode ser
encarada como “positiva”.
No entanto, a diminuição da explosão demográfica com a pandemia do
coronavírus fez-se à custa de um meio discriminatório, pois atingiu
principalmente os idosos, fracos fisicamente e doentes, em vez de atingir toda a
gente de igual maneira. Por outro lado, a explosão demográfica devia ser
controlada de outra forma, nomeadamente através do planeamento familiar.
Em alguns casos seria mais adequado, por exemplo, evitar que crianças
indesejadas nascessem, recorrendo-se à interrupção voluntária da gravidez, em
vez de falecerem milhares de pessoas com o coronavírus, que já tinham as suas
vidas estabelecidas, de modo a “salvarem” o planeta. Com a pandemia do
coronavírus faleceram muitas pessoas que deixaram filhos e netos, a quem
fizeram bastante falta, pois eram o seu sustento económico, a sua educação e o
seu apoio psicológico. Por isso, em vez de se encarar as pandemias como uma
maneira de solucionar a explosão demográfica, devia-se recorrer a outras
alternativas.
Outro aspeto que pode ser considerado positivo do ponto de vista social,
trazido pela crise do coronavírus, foi o desenvolvimento da entreajuda. Esta
crise sanitária fez muitas pessoas terem atitudes de solidariedade, e levou-as a
relativizar muitas coisas que até então consideravam indispensáveis e
intocáveis, tais como o consumismo. Com a pandemia do coronavírus as pessoas
sentiram-se mais interdependentes, pois despertou a consciência de que todos
somos vulneráveis e necessitamos uns dos outros. Por exemplo, criaram-se
números telefónicos de escuta, apelos telefónicos aos próximos e aos distantes,
redes de entreajuda, grupos de crianças enviando desenhos aos residentes de
lares de idosos, e houve mesmo em lares de idosos alguns confinados
voluntários para viverem com as pessoas vulneráveis e não as deixarem sós.
Organizaram-se grupos de vizinhos, de associações, e de paróquias dentro das
igrejas, para ajudar os idosos e os doentes. Dentro dos prédios houve pessoas
que colocaram anúncios no hall de entrada do prédio, dizendo que estavam à
disposição para saírem para comprar coisas de que precisassem os idosos que
não podiam sair de casa.
O mal natural torna-se assim justificado sob outras perspetivas, como
defende Swinburne na sua teodiceia da edificação da alma. 81 Este autor defende
que o mal foi colocado no mundo para originar a ocorrência de altruísmo,
grandes feitos e atos de fé, virtudes como a compaixão, a perseverança, a
coragem, a generosidade, a responsabilidade, a solidariedade. Swinburne
defende que as situações de catástrofes conduzem a uma maior virtude moral,
pois permite atos heroicos, como por exemplo a de uma pessoa que arrisca a sua
vida para salvar outra de uma enxurrada. Sem ciclones, terramotos, cheias,
epidemias, doenças, etc., não seria possível a virtude moral que grandes
filantropos demonstraram ao ajudar os outros. Sem pandemias e doenças, mas
também sem as guerras e a pobreza no mundo, muitos heróis, benfeitores,
filantropos não poderiam existir nem exercer a virtude da solidariedade. Assim,
segundo este autor, o mal origina um bem maior, que triunfa sobre o sofrimento
humano. 82
No entanto, existem no mundo grandes quantidades de sofrimento, por
vezes exageradas, e muito desse sofrimento atinge também crianças e adultos
inocentes, e adultos que muita falta fazem aos seus filhos, que ficam sem
ninguém para cuidar deles. Além disso, os animais também são atingidos por
grandes sofrimentos, e não podem ser melhorados psicologicamente pelo
sofrimento. Os animais desconhecem as razões mais profundas de porque estão
sofrendo, e não têm a capacidade de crescer moralmente a partir do sofrimento.
Os animais ao sofrerem não ficam melhores no seu caráter, nem passam a ser
benfeitores e filantropos. Portanto, será que é preferível um “bem” como o da
solidariedade, que justifique realmente tantos sofrimentos ? embora a
solidariedade seja uma coisa positiva, não era melhor não ser necessária (ou
menos necessária) ? não seria possível a um Ser que é todo poderoso
proporcionar esses “bens” e outros, sem precisar de recorrer a pandemias ?
Deus tem razões suficientes para permitir o coronavírus ? que evidência temos
disso ? não será isto uma mera justificação para desculpar Deus?
Na verdade, apenas algumas pessoas se prontificam a ajudar os outros
em situações como a de catástrofes naturais e de grande sofrimento, e há muitas
pessoas com poder económico que permanecem agarradas à sua avareza e ao
seu egoísmo, e que continuam a não se preocuparem com os outros. Há
81
Richard Swinburne, The Existence of God, Oxford, Ed. Oxford University Press, 2004.
82
Richard Swinburne, The existence of God, o. c.
demasiado sofrimento e a sua dimensão é muito maior do que a que seria
necessária para que houvessem muitos filantropos e pessoas solidárias. As
milhares de pessoas nos campos nazis não fizeram nascer santos, heróis e
filantropos, assim como outros grandes sofrimentos no mudo. Em muitos casos
o indivíduo que sofre não tem ninguém a ver o seu sofrimento, que o possa
ajudar e que tenha para com ele atos de solidariedade. Não é claro que um
mundo em que existam tantos males seja preferível a um mundo onde
existissem menos males, como por exemplo as pandemias, e por conseguinte
onde houvesse menos heróis, santos, filantropos e pessoas solidárias. Não tem
sentido justificar as pandemias, doenças, e tantos sofrimentos humanos,
defendendo que isso permite que os que os presenciam se tornarão melhores do
ponto de vista moral, através do bem que praticam do ponto de vista social. Ou
será que Deus gosta de usar tais métodos para que os seres humanos se
aperfeiçoem moralmente ? A pandemia do coronavírus não fez a sociedade ficar
mais virtuosa e atenta a resolver os problemas sociais (exceto algumas
exceções). Em vez disso, trouxe muitos problemas sociais e económicos, que
ficaram sem ninguém que lhes acudisse, e com imensas dificuldades de solução,
conforme veremos no capítulo seguinte.
PROBLEMAS SOCIAIS TRAZIDOS PELO
CORONAVÍRUS E A SUA ABORDAGEM
RELIGIOSA
OS VÁRIOS TIPOS DE PROBLEMAS SOCIAIS TRAZIDOS PELA
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS

Conforme já referimos, a pandemia do coronavírus afetou todas as


pessoas, devido ao isolamento social a que ficaram sujeitas com os
confinamentos, deixando de poderem estar com os amigos e familiares,
enfraquecendo-se portanto os laços sociais. As medidas de prevenção que foram
adotadas tiveram um impacto muito negativo, de que se destaca também a
limitação dos direitos e liberdades, que afetou a generalidade da população. Por
outro lado, criou também situações de egoísmo, como por exemplo o
açambarcamento de géneros alimentares e outros, nas corridas aos
supermercados. No entanto, houve determinados setores da população,
determinados grupos sociais, e determinadas pessoas em particular, que
ficaram mais vulneráveis, que portanto sofreram mais as consequências da
pandemia.
As epidemias e as doenças, assim como outros grandes males que
atingem a Humanidade, dão por vezes origem a bodes expiatórios. Por exemplo,
para a peste na Idade Média, culpou-se os judeus, pois estes não tinham terra
fixa, e agravaram-se os preconceitos que contra eles já existiam por motivos
religiosos e económicos. Para a SIDA, nos anos 80 do século XX, culpou-se os
homossexuais, devido ao facto do vírus da SIDA ter sido identificado pela
primeira vez em homossexuais, chamando-lhe por isso o vírus gay (apesar dos
heterossexuais também terem relações sexuais). O Nazismo fez dos judeus o
alibi da discriminação, enquanto com a pandemia do coronavírus o alibi foi o
vírus, que foi instrumentalizado por muitos que viram nele uma oportunidade
de fragilizar os direitos das pessoas, de as discriminar, de as estigmatizar, e de
tornar o sistema político menos democrático.
Há determinadas doenças que levam à estigmatização (por exemplo a
SIDA, o cancro, as doenças mentais, etc.), e embora menos, em alguns países, e
para algumas pessoas com uma mentalidade mais preconceituosa, o coronavírus
levou também à estigmatização. A pandemia do coronavírus originou diversos
comportamentos de discriminação, alimentou sentimentos de desconfiança
para com diversos tipos de pessoas que tiveram o vírus, provocou ansiedade e
medo, incerteza perante o desconhecido, alimentando estereótipos e crenças
erradas. O próprio nome oficial da doença (COVID 19) foi propositadamente
escolhido para evitar a estigmatização. “Co” significa “corona”, “vi” significa
“vírus”, “d” significa “doença”, e “19” significa o vírus apareceu pela primeira
vez, isto é, em 2019.
Com o coronavírus aconteceram atitudes preconceituosas contra os
chineses e pessoas indiretamente ligadas à China, ou mesmo contra asiáticos em
geral, devido à sua nacionalidade, à sua ascendência familiar, ou à sua aparência
física. Dado que o coronavírus apareceu pela primeira vez na China, desde que o
vírus apareceu e se espalhou pelo mundo muitos chineses começaram a ser alvo
de críticas e a serem associados diretamente à doença. O surto do coronavírus
trouxe de volta a sinofobia (xenofobia contra a China) em formas explícitas ou
implícitas. Um das formas mais comuns foi a censura dos hábitos alimentares
dos chineses, mas não se percebendo bem se a crítica é apenas devidos aos seus
hábitos alimentares considerados estranhos ao comeram animais exóticos, ou se
é devido ao facto de serem chineses, ou se é devido ao facto de a China ser um
país comunista, ou se é tudo isso junto.
Com a pandemia do coronavírus publicaram-se cartoons em alguns
jornais em que uma bandeira chinesa era formada por partículas representando
o coronavírus. Nas redes sociais fizeram-se muitas postagens com avisos para
que não se comesse comida chinesa, ou pedidos de proibição de viagens à China
ou vindas da China. Nas redes sociais houve também ofensas e agressões
verbais contra chineses e asiáticos em geral. Em alguns países houve cenas de
hostilidade e agressão verbal e física em transportes públicos, em Escolas, em
centros comerciais, em cafés, em restaurantes, em unidades de saúde, e até
mesmo na rua, contra chineses. Houve uma brutal quebras de vendas de
produtos de origem chinesa, em muitas cidades do mundo, e muitos
restaurantes chineses deixaram também de ter clientes. Muitos viajantes
chineses saudáveis foram impedidos de se alojar em muitos hotéis e outros
locais públicos para dormidas.
Estas situações tomaram tal proporção que o Conselho de Direitos
Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) criou uma campanha de
combate ao racismo ligado ao coronavírus. E alguns países criaram-se também
campanhas de combate a essa discriminação contra os chineses. A própria
sociedade civil organizou-se, através de grupos de defesa dos Direitos
Humanos, ou através dos próprios grupos de chineses vivendo em países
estrangeiros, como por exemplo em França a campanha “Eu não sou um vírus”.
Mas não foram só os chineses que sofreram discriminação, muitos
estrangeiros serviram também de bodes expiatórios, receando-se que fossem
portadores do coronavírus, aplicando-se a expressão “casos importados”, por
isso encerraram-se fronteiras, por vezes acompanhado de uma histeria
xenófoba. Com a pandemia entrou-se numa histeria coletiva de hostilização do
turista, do imigrante, do refugiado, e em alguns países acentuaram-se ou
fizeram-se reviver rivalidades económicas e políticas. Por exemplo, o ex
presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, acusou mesmo os
Europeus de serem responsáveis pela propagação do coronavírus nos Estados
Unidos.
Alguns indivíduos foram discriminados por serem estrangeiros, tendo
como pretexto o coronavírus, e outros foram discriminados por serem
portadores do coronavírus, tendo como pretexto o facto de serem estrangeiros.
O fechamento grupal, identitário ou “tribal,” onde existe maior pendor
nacionalista, também emergiu. Por exemplo os muçulmanos ficaram numa
posição frágil na Índia, e houve medidas que os discriminaram. O coronavírus
deixou-os numa posição mais frágil, afastando-os de uma série de atividades
económicas, tendo como pretexto o coronavírus, e que foi algo semelhante ao
modo como o tifo foi utilizado contra os judeus, na Alemanha nazi, para os pôr
em ghettos e os estigmatizar.
Os próprios chineses também discriminaram estrangeiros na China, país
onde o coronavírus apareceu, pois muitos chineses suspeitaram que o vírus
tivesse sido trazido pelos estrangeiros, e por exemplo alguns africanos que
viviam na China foram vítimas de racismo, agravado pelo coronavírus. Em
algumas cidades chinesas houve comunidades africanas que foram expulsas das
casas e recusadas em hotéis, e houve africanos também impedidos de entrar em
lojas, devido ao receio de novos casos importados de infeção. Por outro lado, os
estrangeiros brancos que moravam em países africanos também foram alvo de
ofensas xenófobas, sendo associados ao coronavírus.
Historicamente, não é a primeira vez que um surto epidémico origina um
aumento do racismo. Por exemplo nos Estados Unidos da América os
imigrantes italianos foram responsabilizados pela poliomielite no início do
século XX, assim como vários grupos de migrantes, incluindo alemães e judeus,
foram responsabilizados pela cólera na década de 1830. Mais recentemente,
adeptos da extrema direita nos Estados Unidos da América exploraram a
pandemia da gripe suína de 2009 para afirmarem que os “illegal aliens” do
México transportavam esse vírus através da fronteira. Também nos Estados
Unidos, em 2014, durante a epidemia do Ébola, na África Ocidental, um jogador
negro de futebol americano de uma Escola Secundária da Pensilvânia foi
recebido no campo de futebol com “cânticos de ébola”.
Assim, e ainda a propósito de xenofobia, mesmo indireta, com a
pandemia do coronavírus alguns países da Europa rapidamente aproveitaram a
oportunidade para encerrar as suas fronteiras, e deixaram de responder aos
pedidos de asilo, tendo como pretexto a pandemia do coronavírus ou o
preconceito contra determinados países. Houve também Governos
preconceituosos para com determinados países, que decidiram impor a
quarentena a pessoas que retornavam de determinados países, mas que não a
impuseram a pessoas que vinham de outros países, onde a pandemia também
era grave. Esses Governos decidiram diferentes abordagens relativamente a
certos países, levando a um tratamento desigual, tendo Portugal sido um dos
países mais afetados pelas “listas vermelhas”.
A pandemia do coronavírus desumanizou a vida social, e teve um impacto
maior em grupos sociais com menor acesso à saúde, à alimentação, à educação e
à higiene, e os imigrantes foram as principais vítimas. Nos países que recebem
trabalhadores migrantes, muitos deles estiveram na linha da frente no combate
ao coronavírus, em setores como a saúde, nos cuidados pessoas idosas, na
distribuição de alimentos, etc. Os trabalhadores migrantes estão mais expostos
à discriminação, à precariedade laboral, à exploração salarial e ao tráfico. Os
imigrantes são um grupo muito vulnerável à violação dos Direitos Humanos,
principalmente no trabalho. Há muitos países onde estes trabalhadores não têm
acesso a cuidados de saúde, e portanto são dos que mais sofreram as
consequências do coronavírus. Noutros países alguns migrantes optaram por
não procurarem ajuda, com receio de serem expulsos desses países, por se
encontrarem em situação ilegal.
A pandemia trouxe outras exclusões sociais, agravando a desvinculação
com o próximo a que já se vinha assistindo por razões de ordem económico-
social, mesmo entre os indivíduos que não eram estrangeiros. O confinamento
atingiu a generalidade dos trabalhadores, muitos deles ocupados com muitas
tarefas domésticas, com o acompanhamento dos filhos, etc. Muitos desses
trabalhadores tinham horários sobrecarregados, pois por um lado tinham
teletrabalho e por outro lado tinham de dar atenção à família em casa, e isso
afetou sobretudo os mais pobres e que não tinham quem os ajudasse. Os
indivíduos que não estavam em teletrabalho, que tinham de se deslocar
diariamente para o trabalho, sobretudo os que viviam nas periferias das grandes
cidades, devido ao facto de não poderem pagar uma casa mais perto do local
onde trabalhavam, sofreram mais com esta pandemia. Dado que não tinham
viatura própria, tinham de se deslocar em transportes públicos cheios de gente,
correndo maior risco de ficarem infetadas pelo vírus, enquanto as pessoas com
viatura própria não correram esse risco. Ainda em relação aos problemas
laborais, houve patrões que se serviram da crise sanitária, pois dispensaram os
trabalhadores mais facilmente, nomeadamente os que tinham contratos
precários ou sem vínculo, não lhes renovaram o contrato, e outros patrões
cortaram nos seus salários, por vezes com uma certa arbitrariedade, tendo como
pretexto a pandemia.
A pandemia do coronavírus originou também o encerramento de muitos
postos de trabalho, levando muitos indivíduos a ficarem sem trabalho, fazendo
portanto aumentar as fracas condições económicas em que muitos deles já
viviam dantes. Os mais ricos tinham recursos financeiros, tinham as suas
poupanças, enquanto muitos indivíduos não tinham mais nada além do seu
salário mensal, ao ficaram sem trabalho devido à pandemia, ficaram sem
recursos económicos. A pobreza aumentou muito, e em alguns países houve
mesmo longas filas de espera para ir buscar comida aos bancos alimentares.
Muitas pessoas não tiveram sequer espaços próprios para ficarem em
confinamento, nomeadamente as que viviam em famílias muito numerosas e
que tinham casas pequenas. Muitas pessoas que viviam em quartos alugados,
devido ao facto de não poderem pagar o aluguer do quarto deixaram de ter para
onde ir.
A pandemia acentuou também as diferenças sociais entre alunos que
podiam continuar a acompanhar as atividades letivas através da Internet, e
alunos que não o podiam fazer porque não tinham computador, ou porque em
casa só havia um computador para toda a família. Alguns alunos podiam ter
aulas pela Internet mas outros não, dado que essas aulas decorriam em
simultâneo, com matérias escolares e professores diferentes. Outros alunos
estavam habituados a estudar na Escola, nomeadamente na biblioteca, e em
casa não tinham um quarto individual onde pudessem estudar em silêncio, pois
muitos viviam no mesmo quarto com os irmãos. A falta de concentração para
seguirem as aulas pela Internet e para estudarem, agravou-se com os
confinamentos, devido ao facto da família estar toda fechada em casa. Estas
situações, comparadas com as pessoas que dispunham de recursos financeiros e
de melhores e mais vastas habitações, deram azo a exclusões e a desigualdades
sociais, pois alguns alunos ficaram privados de poderem assistir às aulas mesmo
pela Internet, e de poderem estudar. Por outro lado, muitos alunos tinham na
Escola a principal refeição do dia, isto é, o almoço, e ficaram sem ele, e muitas
famílias, habituadas a contar com a Escola para as ajudarem a alimentar os
filhos, sofreram também com isso.
Os alunos ficaram sem qualquer contacto com os seus professores
durante o confinamento, e mesmo tendo seguido as aulas pela Internet muitos
disseram terem aprendido “pouco ou nada” desde o encerramento das Escolas.
Entre os alunos que não tiveram aulas enquanto estavam em casa, alguns dizem
ter sido alvo de violência doméstica, assim como as próprias mães, e alguns
casais divorciaram-se, devido ao ambiente de tensão psicológica com toda a
família fechada em casa dias seguidos, que fez reavivar antigas tensões
psicológicas. As crianças e o mais jovens também sofreram com a morte dos
pais e dos avós (muitos jovens estavam a cargo dos avós). Dado que o
coronavírus ataca sobretudo as pessoas mais velhas, com a morte dos pais e dos
avós, muitos jovens ficaram órfãos, e nos países mais pobres notou-se a
marginalização e risco de exploração a que ficaram sujeitas as crianças “chefes
de família”.
Outro problema social que se tornou evidente durante os confinamentos
e mesmo depois dele, dado que muitas medidas de segurança continuaram
depois do confinamento, foi a situação dos idosos, devido à falta de apoios
sociais e psicológicos, devido às más condições de alguns lares (instalações
pobres, falta de pessoal, alimentação fraca, etc.). Muitos idosos, por serem um
grupo de risco, faleceram devido ao facto de viverem em lares com fracas
condições, enquanto os idosos que viviam em lares com melhores condições
tiveram mais cuidados e sobreviveram. O próprio facto de haver idosos que
precisam de viver em lares devido ao facto de não terem família para cuidar
deles, ou da família não querer ou não puder ocupar-se deles, é também uma
desigualdade e uma exclusão social que a pandemia do coronavírus fez vir ao de
cima, fazendo com que esses idosos se sentissem mais sós, abandonados, sem o
apoio psicológico de familiares, num momento tão importante como o da
pandemia. Mas mesmo os idosos que tinham família sentiram-se abandonados
e mais isolados, devido à proibição de visitas aos lares.
Muitos idosos que não viviam em lares, mas que frequentavam centros de
dia, com o seu encerramento viram-se totalmente sós, fechados em casa durante
o dia e a noite, sem terem família que os pudesse ajudar socialmente e
psicologicamente, ou mesmo tendo família, as famílias deixaram-nos
abandonados. Muitos idosos não tinham sequer a possibilidade de ir aos
supermercados para fazerem compras, devido à dificuldade de se
movimentarem fisicamente.
Outra questão no combate a esta pandemia, relacionada com a exclusão
dos idosos, tem a ver com o uso dos ventiladores, para salvar vidas. Em caso de
haver poucos ventiladores, ou de haver só um ventilador, quem deverá ser
socorrida, uma pessoa mais jovem, por poder viver mais anos, ou uma pessoa
idosa ? Não é pelo facto das vítimas da pandemia serem de idade avançada ou já
não “produtivas” que se devem pôr de parte todos os sacrifícios em prol da
sobrevivência dessas pessoas. Por essa razão são também lamentáveis as mortes
em lares, que não foram possíveis de serem evitadas, ou a que se dedicou menos
cuidado por já serem pessoas idosas. Trata-se de uma discriminação em função
da idade, o idadismo, à semelhança do sexismo e do racismo.
Embora os idosos tivessem sido especialmente atingidos, não apenas pela
doença mas também pela discriminação, também houve muitas pessoas, que
não eram idosas, mas que sofriam de outras doenças, que não receberam a
assistência médica que deveriam receber, devido ao facto dos cuidados de saúde
nas clínicas e nos hospitais estarem demasiado concentrados no combate à
pandemia do coronavírus, pessoas essas que também não deviam ser excluídas,
mesmo num contexto de pandemia. Houve ainda casos de doentes gravíssimos
com o coronavírus mas sem resposta positiva ao tratamento, que levaram à
decisão de remoção dessa pessoa para uma cama comum, e por conseguinte
para um processo terminal até ao seu falecimento, sem cuidados paliativos. Por
outro lado, em alguns países houve pessoas que não tiveram acesso a nenhuns
cuidados de saúde, devido ao facto de serem países muito pobres, ou devido ao
facto de nesses países não haver Serviço Nacional de Saúde. O cuidar do outro
foi esquecido em alguns casos, e impossível noutros, devido à crise económica
do país, ou às deficientes políticas de saúde. O cuidado, a solidariedade, a
assistência aos problemas sociais ficou enfraquecido e em alguns casos esteve
ausente, não apenas devido aos problemas estruturais, mas também em muitos
casos devido ao egoísmo do ser humano.

A EXORTAÇÃO RELIGIOSA PARA ACUDIR AOS PROBLEMAS


SOCIAIS

As mensagens das religiões têm desde sempre chamado a atenção para a


necessidade do amor ao próximo, principalmente para com as pessoas mais
vulneráveis. No caso da Bíblia, o texto sagrado no qual aqui nos baseamos mais,
tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento essa preocupação está
bem presente. Há alguns textos da Bíblia que falam explicitamente sobre isso, e
indicam quais as atitudes a serem tomadas no que diz respeito à necessidade de
dar atenção os mais vulneráveis e carenciados, e aos problemas sociais em geral.
Por exemplo, a parábola do bom samaritano exprime bem a necessidade de
cuidar do próximo (Lucas, 10, 30-37). Outro texto importante na Bíblia é o das
bem-aventuranças, no sermão de Cristo na montanha, que está no evangelho de
Mateus (5,3-12), e de Lucas (6,20-23), que exorta a ajudar os mais necessitados.
O Cristianismo lembra que Jesus manda-nos ter misericórdia (Lucas, 10,
29-37), e São Paulo, caridade (I Cor., 13). Essas duas atitudes, defendidas aliás
também por outras religiões, como por exemplo o budismo, nomeadamente a
compaixão, constituem o fundamento da relação que se deve ter para com os
pobres e as pessoas necessitadas, entre as quais as que sofreram problemas
sociais como os causados ou agravados pela pandemia do coronavírus. Assim,
apenas para darmos um exemplo de outras religiões além do Cristianismo, o
líder espiritual dos budistas, o Dalai Lama, declarou o seguinte : “a pandemia do
coronavírus é uma oportunidade para praticarmos a compaixão e ajudar”. 83
No Cristianismo, no Judaísmo e no Islamismo a necessidade de ajudar o
próximo, especialmente as pessoas carenciadas, está muito ligada à crença de
que Deus recompensará os seres humanos pelos seus bons atos neste mundo,
através da bem-aventurança no Céu, que se resume para os cristãos seguinte
frase da Bíblia : “Quem trata bem os pobres empresta ao Senhor, e Ele o
recompensará regiamente!” (Provérbios 19:17).
Devido a este e a muitos outros textos da Bíblia, a Igreja Católica
desenvolveu-se a prática das chamadas “obras de misericórdia”. Essas ações
exprimem, como a própria palavra indica, a necessidade de ter misericórdia do
próximo, segundo uma das bem-aventuranças do sermão da montanha feito por
Cristo : "Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão
misericórdia." (Mat., 5,7). Essas obras de misericórdia são as seguintes : obras
corporais : dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir
os nus; dar pousada aos peregrinos; assistir aos enfermos; visitar os presos;
enterrar os mortos. Obras espirituais : dar bons conselhos; ensinar os
ignorantes; corrigir os que erram; consolar os tristes; perdoar as injúrias; sofrer
com paciência as fraquezas do próximo; rogar a Deus por vivos e defuntos.
As obras de misericórdia são práticas que o Cristianismo, em geral,
espera que todos os cristãos pratiquem. A sua prática é considerada pela religião
católica como um ato de caridade. Por outro lado, a religião católica ensina que
as obras de misericórdia são um dos meios de receber a Graça Divina e a
santificação. Algumas comunidades protestantes concordam com esse

83
Dalai Lama, entrevista à revista Time Magazine, 14 de Abril de 2020.
ensinamento, embora algumas destaquem mais a fé em vez das obras, como um
meio de receber a Graça Divina e a santificação, enquanto outras juntam as
duas, considerando que não há verdadeira fé em Deus sem a prática de boas
obras, conforme diz na Bíblia o apóstolo Tiago, para quem «fé sem obras é
morta» (Tg 2, 17).
A doutrina do catolicismo classifica a caridade como uma das três
virtudes teologais (fé, esperança e caridade), e uma das sete virtudes capitais
(humildade, generosidade, castidade, paciência, temperança, caridade,
diligência). São Paulo disse que, de todas as virtudes, “a maior delas é a caridade
(1 Coríntios, 13,13), e o Catecismo da Igreja Católica (artigo 388) enaltece a
sua prática, citando outras afirmações de São Paulo sobre isso : "a caridade é a
virtude teologal pela qual amamos a Deus   sobre todas as coisas e ao próximo
como a nós mesmos por amor de Deus. Jesus faz dela o mandamento novo, a
plenitude da lei. A caridade é «o vínculo da perfeição (Colossenses 3:14) e o
fundamento das outras virtudes, que ela anima, inspira e ordena: sem ela «não
sou nada» e «nada me aproveita» (Coríntios, 13,1-3).
A caridade constitui uma das questões teológicas centrais desde o século
XII, pois Bernardo de Claraval, Aelred de Riévaulx, Guillaume de Saint-Thierry,
Richard de Saint-Victor, e ainda Pierre de Blois consagram-lhe amplas
reflexões. A caridade é historicamente um dever de cada católico, e muitas
ordens religiosas dedicaram-se exclusivamente à sua prática, e
autodenominam-se mesmo com a palavra “caridade”, como por exemplo as
“Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo”. Algumas instituições seculares,
como por exemplo a “Santa Casa da Misericórdia”, em Portugal, estão também
muito inspiradas pelo princípio da caridade, e como a própria designação
indica, pela misericórdia.
Na Igreja Católica é também importante destacar a Caritas, (palavra
latina que significa “caridade”), que é uma organização internacional que como
o nome indica foi criada para o exercício da caridade, fundada em 1924, e que
atua em mais de duzentos países. Em Portugal foi instituída pela Conferência
Episcopal Portuguesa, em 1945. No pós II Grande Guerra Mundial, e no início
das tensões da Guerra Fria, portanto desde o início dos anos 50 até aos anos 80
a atividade da Caritas centrou-se na distribuição de alimentos pela população
portuguesa em geral. Atualmente a Caritas dedica-se também ao apoio
materno-infantil, infantojuvenil e à terceira idade, bem como ao apoio às
minorias étnicas, às comunidades de imigrantes e suas famílias, aos
toxicodependentes, aos seropositivos e aos alcoólicos. Com a pandemia do
coronavírus estas e outras organizações dentro da Igreja Católica tiveram um
papel importante, ajudando muitas famílias carenciadas.
No entanto, apesar de devermos reconhecer a sua importância, não nos
devemos também esquecer que há organizações não religiosas muito
empenhadas no apoio social, que revelam que a ajuda ao próximo é um bem em
si mesmo, que não necessita de fundamento divino, conforme veremos
seguidamente.

NOVOS FUNDAMENTOS E RESPETIVAS ATITUDES NA RESPOSTA


AOS PROBLEMAS SOCIAIS

A moralidade foi tradicionalmente identificada com a religiosidade, a


imoralidade com o pecado, as normas morais foram consideradas
mandamentos divinos, e a vida moral foi definida como uma vida divina. Por
sua vez, agir imoralmente era, essencialmente, desobedecer a Deus. Por
conseguinte, a generalidade das religiões fizeram e fazem depender da adesão a
Deus a atitude que se deve ter para com o próximo, o necessitado, o doente, o
idoso, o órfão, a viúva, o estrangeiro, o refugiado, os quais , não devem ser
amados por si mesmos mas pelo amor a Deus.
Ora, será que é preciso Deus recompensar a Humanidade, para que as
pessoas tenham atenção para com os problemas sociais? Será que é preciso que
os livros sagrados digam que há determinadas coisas que não se devem fazer,
para sabermos que elas não se devem fazer ?
A teoria ética dos mandamentos divinos defende que sem um Ser que
diga o que é o bem e o que é o mal, e sem um Ser que que castigue e recompense
as nossas ações, perderíamos a motivação para agir moralmente. Deus castiga a
Humanidade pelos seus erros, sendo portanto Deus o fundamento do bem e do
mal, e a transgressão do bem faria com Deus castigasse aqueles que praticam o
mal. Segundo a teoria ética dos mandamentos divinos, sem um Ser divino que
legisle sobre os nossos deveres morais, não poderia haver regras morais
objetivas, e portanto se é errado matar ou roubar, é porque Deus legislou que
assim fosse. Deste modo, o que é errado ou correto depende de Deus, que é a
fonte da lei moral. Há muitas pessoas, padres, pastores, e outros líderes
religiosos, assim como alguns filósofos, que defendem essa ideia. Por exemplo o
filósofo norte americano Richard Taylor afirma o seguinte : “A época moderna,
que mais ou menos rejeitou a ideia de um legislador divino, procurou não
obstante conservar as ideias morais do bem e do mal. Mas ela não sublinhou
que afastando Deus, ela aboliu igualmente a pertinência do bem e do mal moral
(…). No entanto, as pessoas sensatas sabem que tais problemas são impossíveis
de resolver sem o apoio da religião”. 84
Segundo esta teoria, Deus deu a conhecer aos homens a Sua vontade de
diversas formas, tendo sido a Bíblia, ou outro livro sagrado, o meio de
transmissão dessa vontade. No caso da Bíblia temos por exemplo os Dez
Mandamentos, que são um conjunto de regras que pretendem expressar a
vontade de Deus e mostrar aos seres humanos o que devem ou não devem fazer.
Um desses Dez Mandamentos, o quinto, afirma : “Não matarás.” Ora, será que
uma coisa é moralmente condenável, neste caso o homicídio, devido ao facto de
ser condenada por Deus ? Determinadas ações, como o homicídio, são erradas
porque Deus afirma que o são, ou Deus afirma que o são, porque elas são
erradas ? Não serão erradas independentemente da perspetiva divina ?
Fazer depender o bem simplesmente da vontade de Deus, em última
instância faria aceitar tudo de Deus, e até mesmo uma arbitrariedade, só por
Deus ser Deus. Ora, Deus não deve ser concebido como algo arbitrário, Deus
deve ser encarado como um Ser que manda fazer as coisas que são certas, para
as permitir e proibir. Deus tem de aceitar o que é justo, exatamente como nós o
fazemos, e não pode fazer algo simplesmente por ele ser poderoso, ou por ter
criado tudo, ou por ter o dom de dar castigos e recompensas.
O fundamento da conduta moral não têm de ser a vontade de Deus, o
medo do castigo divino, ou o interesse de alcançar a recompensa no Céu,
quando um pessoa falecer. O defensor da teoria dos mandamentos divinos fica
numa posição difícil, pois não pode aceitar nenhuma das opções : ou os factos
morais não dependem da vontade de Deus, ou as decisões de Deus são
arbitrárias. Outra objeção à teoria dos mandamentos divinos é que esta parece
implicar que a moral só diz respeito àqueles que acreditam em Deus. Isso

84
Richard Taylor, Virtue Ethics, Interlaken, Ed. Linden Books, 1991, pp. 2-3.
significa que qualquer pessoa que não acredite em Deus não poderá agir
moralmente ou de forma correta, o que não é verdade, pois os ateus podem
cumprir os seus deveres morais e jurídicos como as outras pessoas, e muitos
deles praticam grandes atos louváveis moralmente, sem precisarem de acreditar
em Deus.
Os defensores da teoria ética dos mandamentos divinos defendem que
não se pode atuar bem nem evitar atuar mal sem a esperança de uma
recompensa divina ou o medo de um castigo divino, ou seja, devemos agir bem
do ponto de vista ético, para que Deus não nos castigue (por exemplo com
pandemias, no caso destas serem um castigo divino). Ora, nós devemos agir
bom do ponto de vista ético, não por medo de sermos castigados por Deus
durante a nossa vida (por exemplo através de pandemias), nem por medo do
Inferno (no caso deste existir), e portanto independentemente de Deus existir
ou não.
Decorrente da prática religiosa da atenção para com os mais necessitados
temos, conforme já referimos, a prática da caridade. Ora, caridade tem efeitos
negativos, pois cria uma mentalidade de dependência entre os destinatários, e
não incentiva ao investimento do dinheiro por parte de quem o recebe. É uma
atitude sentimentalista que prolonga o ml da pobreza e de outros problemas
sociais, em vez o resolver, isto é, não combate a origem do problema, e portanto
o problema continua. A caridade, quando exercida pelos que são ricos, é uma
atitude que não lhes custa nada fazer, pois é como dar sobras ao outro, é uma
relação de desigualdade, e é também uma situação humilhante para a pessoa
ajudada.
Por outro lado, na caridade muitos ajudam os outros para serem vistos,
ou fazem-no sob o peso ou a pressão social, de modo a não serem criticados por
não ajudarem, e também para ficaram mais tranquilos com a sua consciência,
não sentido complexos de culpa por não terem ajudado, apenas sentindo-se bem
por terem participado na luta contra o sofrimento. Na mentalidade tradicional
as pessoas eram muito ajudadas por doações, mas essa ajuda dependia da boa
vontade de quem ajudava. Nessa ajuda havia também muita hipocrisia social,
pois muitos filantropos ajudavam para serem louvados pela sociedade, para
terem honras sociais, e muitos crentes em Deus, conforme já referimos, faziam-
no para terem uma recompensa no céu.
Ora, mais do que à caridade e à misericórdia, o nosso tempo dá atenção a
outros valores éticos considerados como mais importantes : a solidariedade, a
ação social, a hospitalidade, o respeito, o reconhecimento. A caridade, assim
como a tolerância, é um sentimento de paternalismo, de condescendência e de
superioridade para com o outro. Em vez disso, hoje o princípio ético em que
assentam as demandas de atenção aos problemas sociais e às catástrofes (por
exemplo um incêndio de grandes proporções), é a da solidariedade, que significa
que os seus praticantes se sintam integrantes na mesma comunidade, e portanto
se sintam interdependentes. Trata-se da cooperação mútua entre as pessoas, da
necessidade compartilhada, e da interdependência de sentimentos. A
solidariedade é uma atitude de reciprocidade, tendo em conta em que em
situações como por exemplo a da pandemia do coronavírus, “estamos todos no
mesmo barco”, e portanto, “hoje ajudo-te eu, amanhã ajudas-me tu”, ou “eu
ajudo-te numas coisas, e tu ajudas-me noutras”. Ligada à solidariedade está
também a empatia, que significa a capacidade psicológica de alguém para se pôr
no lugar do outro, sentir e compreender o que sente e compreende o outro
indivíduo, se estivesse na mesma situação vivenciada por ele.
A caridade não resolve os problemas de fundo das pessoas, pois elas
continuam a ter os mesmos problemas, isto é, continuam a ser pobres. Há que
lutar, tanto quanto possível, para erradicar ou diminuir a pobreza no mundo, e
isso não se faz simplesmente com esmolas, como se fazia no passado. Conforme
recomenda um provérbio, “não dês um peixe, ensina a pescar”. Quando se
insiste na prática da “dádiva de peixes”, estamos negando ao outro o saber.
Quando se cria o hábito de dar peixe, como se faz com a caridade, não se lhe está
transmitindo nenhum ensinamento, quem continua a dar peixes continua no
monopólio da pesca, continua detentor do saber pescar e não o transmite aos
outros.
A caridade implica também que é uma fatalidade ser pobre. Ora, a
pobreza deve ser combatida, e lutar-se para que haja igualdade de
oportunidades de modo a que todos possam ter melhores condições de vida,
igualdade essa que é um dos fundamentos da preocupação para com os mais
necessitados. Embora não haja igualdade socioeconómica no ponto de chegada,
pois há sempre pessoas que se esforçam mais do que outras, e esse mérito deva
ser recompensado, todos devem ter igualdade de oportunidades.
Visando colmatar a pobreza e outras necessidades, como as trazidas por
exemplo pela pandemia do coronavírus, as novas atitudes para com a situação
dos necessitados requerem a chamada ação social, que designa o conjunto dos
meios pelos quais a sociedade age sobre si mesma para preservar a sua coesão,
nomeadamente pelos dispositivos legais ou por ações visando ajudar as pessoas
ou os grupos sociais frágeis a melhor viverem, a adquirirem ou a preservarem a
sua autonomia, e a adaptarem-se ao meio social que os rodeia. Nos tempos de
hoje temos também como nova atitude e fundamento a justiça social, isto é,
uma construção moral e política que visa a igualdade de direitos, e que concebe
a necessidade de uma solidariedade partilhada entre as pessoas dentro da
sociedade.
Vários autores têm defendido, embora cada um de maneira diferente,
novos valores morais e novos princípios políticos como forma de resolver os
problemas sociais (John Rawls, Peter Singer, Friedrich Hayeck, Nancy Fraser,
Nigel Dower, Thomas Pogge, Charles Beitz, Charles Taylor, Axel Honneth,
Philippe Van Parijs, etc.). Não é aqui o lugar para especificar e debater cada
umas dessas teorias, nem para concordar ou discordar de algumas delas, mas na
sua generalidade estes autores enquadram-se nas novas atitudes e nos novos
fundamentos da assistência para com os mais necessitados. Apesar de não
propormos nenhum das teses em especial, defendidas por esses autores, nem
nenhuma das suas ideologias, há um princípio ético fundamental, que
salientamos, devido à sua abrangência, que fala da complexa necessidade
humana, quer comunitária quer individual, de aceitação e acolhimento do outro
e como de construção da identidade : o reconhecimento. Charles Taylor (1994),
um dos principais teóricos deste princípio moral, no seu ensaio A Política do
reconhecimento está preocupado em compreender e solucionar o problema da
singularidade das identidades e da diversidade da sua coexistência dentro de
uma mesma organização social. 85
Taylor defende que a falta ou recusa de reconhecimento e/ou um
reconhecimento deformado podem ser considerados formas de opressão e de
expressão de desigualdades. Daí a sua defesa do caráter dialógico da entidade
em que o que nós somos depende da interação com os outros. Essa
inevitabilidade da condição humana como diálogo defende a necessidade de

85
Charles Taylor, A ética da autenticidade, Lisboa, Ed. 70, 2009.
uma política de reconhecimento aliada a uma política de diferença, pois o
universalismo dos direitos humanos não deve anular a unicidade, a
autenticidade e a originalidade de cada indivíduo. Para compreender estas duas
políticas Charles Taylor põe a tónica em conceitos como a autenticidade e a
dignidade, à luz das teorias de Rousseau, Herder ou Stuart Mill. É nas
sociedades democráticas, independentemente da religião, que o conceito de
dignidade se estabelece como garante do universalismo dos direitos humanos,
isto é, a dignidade passa a ser encarada como um valor comum a todos os
indivíduos, crentes, descrentes e agnósticos, ao contrário do conceito de filhos
de Deus, que dantes sustentava a atenção ao outro, por também ele ser filho de
Deus, ou porque, conforme a antiga expressão popular portuguesa, “ quem dá
aos pobres empresta a Deus”. A pertença a uma determinada religião,
legitimava não só a salvação eterna desse indivíduo no Paraíso, como também a
aceitação desse indivíduo pelos outros indivíduos, que consideravam essa a
verdadeira religião, e que só por isso eram aceites num país, como no caso dos
judeus, que tivera que deixar a religião do judaísmo e fazerem-se cristãos
(cristãos novos).
Outro autor importante no princípio ético do reconhecimento, é Axel
Honneth. 86
A teoria do reconhecimento de Axel Honneth desenvolve-se com
base na luta do ser humano para ser reconhecido. Este autor vê o
reconhecimento como uma forma conceder identidade ao indivíduo, atribuindo
a essa identidade o significado de liberdade individual e autonomia. Para isso a
intersubjetividade tem um papel muito importante, pois a identificação é
construída através da interação social. Axel Honnet apresenta três esferas de
reconhecimento : no amor (nas relações pessoais com vínculo afetivo); no
campo jurídico-moral (nas relações de Direito); na estima social (nas relações
de solidariedade). O conceito de reconhecimento é muito importante na
atualidade, pois defende a inclusão e a visibilidade daquele que estava
tradicionalmente invisível, portanto independentemente do seu género, da sua
idade, da sua condição social, da cor da sua pele, da sua crença religiosa, da sua
convicção política, ou da sua orientação sexual.
Por conseguinte, os fundamentos éticos alteraram-se. Enquanto dantes
se falava em Deus, hoje fala-se em Direitos Humanos. Enquanto dantes se

86
Axel Honneth, Luta pelo reconhecimento, Lisboa, Ed. 70, 2011
falava em honra, hoje fala-se em dignidade. Enquanto dantes se falava em
caridade, hoje fala-se em solidariedade. Enquanto dantes se falava em
tolerância, hoje fala-se em respeito pelas diferenças. À semelhança da caridade,
a tolerância é um dos princípios éticos menos invocados nos tempos de hoje,
vendo-se nele uma certa arrogância, pois pressupõe que o outro está no erro, e
que o devemos tolerar. Ora, não é erro ser negro ou chinês, por exemplo. Por
outro lado, é uma atitude de condescendência e de inferiorização do outro. Mais
do que ser tolerado, o estrangeiro (o imigrante, o refugiado, etc.) deve ser
reconhecido como um ser de direitos, e portanto independentemente de Deus e
das religiões, e não seve ser acolhido e respeitado porque Deus existe, e porque
ser um filho de Deus, mas sim porque é um ser humano, dotado de direitos,
entre os quais o direito à dignidade e à igualdade, o direito à vida e à segurança.
Em vez da caridade, hoje temos outras atitudes e valores do ponto de
vista ético-político, que significam colocar-se no lugar do outro, descobrir com
os olhos do outro, sentir o que o outro sente, ter a capacidade psicológica para
se identificar com o outro, conseguindo sentir o mesmo que ele sente nas
situações e circunstâncias por ele vividas. Significa sentir como o outro se sente
e se percebe, como ele descobre e encara o mundo que o rodeia, como ele
percebe as outras pessoas que o cercam, quais são as suas dúvidas, as suas
angústias. Significa respeitar e aprender que o outro que é diferente de nós nos
acrescenta crescimento e conhecimento. Essa atitude, independentemente do
respeito pelas crenças religiosas, não tem no entanto a ver com as crenças
religiosas, mas sim com a necessidade de sermos corretos para os outros devido
ao facto não de serem filhos de Deus mas sim de serem seres humanos.
A Igreja católica, com o Papa Francisco, tem-se aproximado dos novos
princípios éticos da necessidade de atenção para com o outro, e dos respetivos
fundamentos, procurando fazer uma ligação com os princípios religiosos. Pode
ver-se isso principalmente na encíclica Todos Irmãos (“Fratelli Tutti”), assinada
no dia 3 de Outubro de 2020 em Assis, em honra de S. Francisco, protetor da
ecologia e dos mais frágeis. 87
Nessa encíclica o Papa fala no valor dos direitos
humanos,88 da solidariedade, 89
na necessidade de reconhecer o outro, 90
e na
87
Papa Francisco, Fratelli Tutti, carta encíclica sobre a fraternidade e a amizade social, Lisboa, Ed.
Paulinas, 2020.
88
Idem, p. 63
89
Idem, p. 69
90
Idem, p. 134
necessidade de fazer-se presente a quem precisa de ajuda independentemente
de fazer parte ou não do próprio círculo de pertença, incluindo religioso, 91 e
portanto de sociedade abertas que integram a todos, não necessariamente por
serem filhos de Deus, mas por serem seres humanos. 92 O Papa Francisco nesta
sua encíclica tem mesmo um capítulo a que deu o título : “As pandemias e
outros flagelos da história”. Termina este capítulo desejando que “descubramos
enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros”, pois “ se não
conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de
pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens,
desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê
da náusea e do vazio”.93
A generalidade da Igreja católica tem alinhado, nos tempos de hoje, com
esta e outras mensagens do Papa Francisco. No entanto, a Igreja católica não é
só o Papa, por isso tem também havido e continua a haver no seio da Igreja
católica algumas vozes discordantes do teor da sua mensagem. Resta saber se a
atitude da Igreja católica irá continuar a ser como o do Papa Francisco, ou se
mudará em função de cada Papa.

91
Idem, p. 50
92
Idem, p. 60
93
Idem, ibidem, p. 26
O CORONAVÍRUS EM PORTUGAL SOB O
PONTO DE VISTA RELIGIOSO
COMPARAÇÃO COM A ATITUDE EM RELAÇÃO AO TERRAMOTO DE
1755 EM LISBOA

No dia 1 de Novembro de 1755 a cidade de Lisboa sofreu um enorme


terramoto, que foi seguido de um maremoto. Esta catástrofe atingiu toda a baixa
de Lisboa, destruindo todos os edifícios históricos e as suas obras de arte muito
valiosas, perderam-se completamente bibliotecas com livros antigos e raros, e
morreram milhares de pessoas. O terramoto aconteceu precisamente num dia
de feriado religioso, o “Dia de Todos-os-Santos”. As igrejas de Lisboa estavam
cheias para a celebração da missa, e as pessoas morreram soterradas dentro
delas.
Lisboa era a capital de um dos países mais católicos do mundo, onde
existiam muitos conventos e igrejas de ordens religiosas, empenhadas na
evangelização das colónias portuguesas. O facto de o terramoto ter acontecido
num dia santo e de ter destruído muitas igrejas importante suscitou vários
debates teológicos e filosóficos.
Para a mentalidade religiosa daquela época, o terramoto foi considerado
um castigo de Deus. Houve alguns autores que publicaram obras em que
defenderam que o terramoto era um castigo de Deus, de que damos
seguidamente alguns exemplos. O jesuíta Gabriel Malagrida (1689-1761), na sua
obra Juízo da verdadeira causa do terramoto que padeceu a corte de Lisboa no
1º. De Novembro de 1755, defendeu que essa catástrofe foi um castigo de Deus
para os desmandos humanos. Também o escritor português Francisco Xavier
Oliveira (1702-1783), conhecido como o Cavaleiro de Oliveira, na sua obra
Discurso poético sobre as calamidades presentes sucedidas em Portugal,
afirmava que, ignorando a Palavra de Deus, os “culpados habitantes de Lisboa”
tinham atraído a ira divina, e desenvolveu a sua tese acusando o marquês de
Pombal de ateísmo. O marquês de Pombal, autor da reconstrução da cidade de
Lisboa, tinha feito saber a sua opinião através de um panfleto que foi
largamente distribuído. Segundo ele, o sismo tinha como origem causas
naturais, e nele não intervieram causas sobrenaturais.
Muitos padres portuguese pregaram que o terramoto de 1755 era um
castigo divino pelos pecados, e exortavam os crentes ao arrependimento dos
seus pecados. A seguir ao terramoto organizaram-se procissões penitenciais, 
novenas, apelos à oração e ao jejum, e sacrifícios corporais, em reparação dos
pecados, como se a penitência do terramoto ainda não tivesse sido suficiente.
Nos tempos de hoje não se fizeram procissões penitenciais, novenas, jejuns e
outros sacrifícios religiosos por causa da pandemia do coronavírus, mas mesmo
assim houve alguns lideres religiosos que defenderam que a pandemia do
coronavírus foi um castigo de Deus, conforme se pode ver no capítulo do
presente livro, intitulado “O coronavírus considerado um castigo de Deus”.
Alguns dos defensores de que o terramoto de 1755 foi um castigo de Deus,
além de apresentarem como justificação os pecados cometidos pelos seres
humanos, relacionaram também essa catástrofe com a muita presença de judeus
na cidade de Lisboa, ou melhor, de cristãos novos, dado que os judeus tinham
sido expulsos durante o reinado de D. Manuel. Embora convertidos, ou
supostamente convertidos, os antigos judeus continuaram a suscitar
desconfiança, até porque muitos deles diziam-se cristãos novos mas
continuavam a celebrar na privacidade das suas casas os rituais da religião
judaica. À semelhança do que aconteceu em relação os judeus, nos tempos de
hoje existem algumas teorias da conspiração sobre o coronavírus, em que
também alguns grupos são apontados como culpados (ver o subcapítulo do
presente livro: “As teorias da conspiração sobre o coronavírus e a sua relação
com a atitude religiosa”).
O terramoto de 1755 teve grande impacto em toda Europa, levando a
grandes debates sobre se o terramoto seria ou não um castigo divino, tal como
hoje o debate sobre se a pandemia do coronavírus terá sido ou não um castigo
divino. Houve mesmo alguns filósofos que falaram ou fizeram alusões sobre o
terramoto, dos quais se destacou Voltaire, no seu romance Cândido, e no seu
longo Poema sobre o desastre de Lisboa. A aleatoriedade da sobrevivência
humana foi o que mais marcou este filósofo, que com esta sua obra também
satirizou a ideia defendida por Leibniz sobre o mundo em que vivemos, que este
filósofo, para desculpar Deus, considerava ser “o melhor de todos os mundos
possíveis”.94
Depois do terramoto de 1755, para muitos autores, sob influência do
ambiente racionalista do Iluminismo, Deus deixou de contar para explicar os
fenómenos naturais. Se Deus não tinha relação com as placas tectónicas, com as
tempestades, com o clima, etc., então era necessário explicar esses fenómenos
de outra maneira, e não considerá-los um castigo de Deus. A catástrofe do
terramoto deve-se a causas naturais (as placas tectónicas) e também humanas,
isto é, a construção urbana lisboeta, com prédios muito altos e ruas muito
estreitas, pelo que a queda de um edifício implicava a queda de outros, num
efeito dominó. Apesar de o terramoto se ter feito sentir em toda a cidade de
Lisboa e arredores, os maiores danos aconteceram na baixa de Lisboa, onde se
concentravam as ruas medievais, com casas com o exterior em alvenaria e o
interior em madeira, que ardeu na sequência do terramoto, e com os edifícios
altos e muito encostados uns aos outros.
Por seu turno, para Jean Jacques Rousseau, na sua obra Carta sobre a
Providência (1756), a culpa do que aconteceu em Lisboa não era de Deus, e
Rousseau sublinhava outras causas que não as naturais. Para este filósofo, os
motivos da catástrofe tinham de ser procurados na corrupção da “integridade”
dos homens, provocada pela degenerescência social, pela usura. Como exemplo
Rousseau referia o facto de haver em Lisboa cerca e vinte mil casas com seis e
mesmo sete andares, o que segundo ele era contrário à razão. A cupidez, a
ganância pelo lucro, a corrupção da natureza humana, eram segundo Rousseau
a principal causa da tragédia ocorrida com o terramoto de 1755. 95

94
Gottfried Leibniz, Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de l'homme et l'origine du mal,
Paris, Ed. Flammarion, 1999.
Ora, também a pandemia do coronavírus pode ser explicada
cientificamente, atribuindo-lhe causas naturais e humanas, e não tem de ser
explicada como um castigo de Deus. Se a Ciência pode explicar a Natureza, a
origem e as consequências do coronavírus, não há necessidade de considerar o
coronavírus como resultado da intervenção de forças sobrenaturais e de um
castigo divino.

COMPARAÇÃO COM A DEVOÇÃO A SÃO ROQUE, PROTETOR CONTRA


AS PESTES, E A NOSSA SENHORA DA SAÚDE

Durante a peste negra, que atingiu um terço da população da Europa em


meados do século XIV, o povo acudia em massa a rezar às igrejas pelo
apaziguamento da cólera de Deus, pois acreditava que nas igrejas Deus não
permitia a disseminação da doença. Foi este o fator que mais contribuiu para a
mortandade catastrófica que atingiu grande parte da Europa. Isso aconteceu
com várias epidemias ao longo da História, por exemplo nas igrejas que tinham
como protetor São Roque, o santo advogado contra as pestes.
São Roque era natural de Montpellier, na França, e nasceu em 1295 e
faleceu em 1327. É um santo da Igreja católica, protetor contra as pestes. É
também padroeiro de diversas profissões ligadas à Medicina, e é considerado
por algumas comunidades católicas também como protetor do gado contra
doenças contagiosas. É grande a sua popularidade, devido à intercessão contra a
peste, mal que também o atingiu a ele. É o santo padroeiro de muitas
comunidades religiosas em todo o mundo católico.
Em Portugal foram construídas algumas ermidas, capelas e igrejas
dedicadas a São Roque: em Lisboa, a Igreja de São Roque, e a capela de São
Roque no Arsenal da Marinha; em Viana do Castelo, Lordelo (Vila Real),
Guimarães, Póvoa de Varzim, Vila do Conde, Porto, Penafiel, Riba de Ave,
Oliveira de Azeméis, Vilarinho de São Roque (Albergaria-a-Velha), Louredo
(Évora), Tavira, Funchal, Machico, São Miguel (Açores), etc. Esses templos
constituíram-se como lugares de devoção e alguns deles de peregrinação, sendo
por vezes construídos nas rotas de peregrinação de Santiago de Compostela.

95
Jean-Jacques Rousseau, Cartas morais , seguido de correspondência sobre a providência, a sociedade e
o mal, Lisboa, Ed. 70, 2020
Em Lisboa, há cerca de 500 anos atrás, era com preces a São Roque que a
maioria dos lisboetas se sentiam protegidos da peste. Uma relíquia do santo,
que veio expressamente de Veneza, como doação do Papa, deu origem a uma
ermida que meio século depois foi demolida para se construir a atual igreja de
São Roque, no Bairro Alto, em Lisboa.
No atual largo da Misericórdia existia um cemitério dos mortos pela
peste. Esse lugar ficava fora das muralhas de Lisboa e era pouco povoado. Foi o
povo que construiu a ermida, em 1506, e rapidamente se tornou um lugar de
peregrinação e culto religioso. O santo passou a ter grande aceitação e foi até
criada a Irmandade de São Roque, que hoje continua a existir. O culto a São
Roque desenvolveu-se em Portugal em geral, e a sua vida também está
relacionada com a peste. Foi um santo que ajudou a curar pessoas infetadas, ele
próprio chegou a ser atingido por uma peste e curou-se.
Ora, nos tempos de hoje a devoção a São Roque é bem diferente. Algumas
capelas e igrejas de São Roque em Portugal deixaram de ter celebrações em sua
honra, e outras têm celebrações no dia do seu aniversário, mas essas celebrações
hoje são muito simples. As celebrações solenes em honra de São Roque na
igreja de São Roque em Lisboa, eram as mais célebres, pois vinha gente de todo
o país, e eram muito demoradas : tinham missa, novena, procissão, e incluíam a
celebração de vésperas solenes no dia anterior. No dia das celebrações do santo
(que eram a 16 de Agosto e passaram para o dia 4 de Outubro) havia uma
liturgia própria, com introito, oração, epístola, evangelho, acompanhada de
música e de cânticos. Nestas celebrações na igreja de São Roque, em Lisboa, a
igreja estava sempre cheia, e por vezes ainda ficava muita gente na rua, por não
haver lugar para mais gente dentro da Igreja. Ora, nada disso acontece nos
tempos de hoje.
Seria de esperar que com a pandemia do coronavírus, tal como
aconteceu com pestes ao longo da História, que atingiram Portugal e a cidade de
Lisboa, a igreja de São Roque em Lisboa se enchesse, e o povo acorresse
frequentemente a essa igreja, para pedir a proteção de São Roque contra as
pestes, tal como acontecia no passado. Ora, apesar de ter sido uma missa
festiva, a celebração em honra de São Roque, em Outubro de 2020, em plena
pandemia, foi muito mais simples que antigamente, e não teve muita
assistência. A irmandade de São Roque compareceu, vestida com um traje
próprio, mas as pessoas que assistiram a essa celebração não foram em maior
número do que o habitual nos outros domingos. Por outro lado, a igreja de São
Roque nos outros dias sem ser no domingo continuou a ter praticamente o
mesmo número de visitantes que tinha antes da pandemia do coronavírus. Esta
fraca afluência religiosa, não apenas no dia das celebrações em honra de São
Roque revela que, apesar deste ser o santo protetor das pestes, as pessoas hoje
confiam menos nele e mais na Medicina, a qual no passado se encontrava pouco
desenvolvida.
Também, na cidade de Lisboa havia uma devoção muito forte a Nossa
Senhora da Saúde, na capela do mesmo nome, no largo de Martim Moniz. Essa
capela foi mandada construir em 1505, pelos artilheiros da guarnição de Lisboa,
e inicialmente foi dedicada a São Sebastião, também ele protetor da peste,
enfermidade que então se espalhava por toda a cidade de Lisboa. Em 1569 a
capela foi dedicada a Nossa Senhora da Saúde, e em 1662 acolheu a sua imagem,
passando a ser conhecida sob essa designação.
Em 1568 surgiu o primeiro surto de uma peste, em Lisboa, e perante a
elevada mortandade a população de Lisboa começou a organizar procissões em
honra de Nossa Senhora da Saúde, para que por sua intercessão terminasse a
peste, e rezaram-se muitas missas e novenas para que a peste terminasse. A
peste de Lisboa veio a ser extinta, tendo os crentes atribuído a Nossa Senhora da
Saúde a sua extinção. Mas pelos vistos foi um bem de pouca duração, pois se foi
Nossa Senhora que a extinguiu, não impediu que ela mais tarde voltasse a
aparecer. Em 1599 ocorreu um novo surto da peste em Lisboa, e uma vez mais a
população recorreu a Nossa Senhora da Saúde.
Desde então, ao longo dos séculos, o culto a Nossa Senhora da Saúde foi
muito forte, não apenas devido às pestes mas também a outras enfermidades, e
à sua capela na cidade de Lisboa acorriam também muitas pessoas de várias
partes do país. Atualmente esse culto está muito enfraquecido, e a capela, que
antigamente estava sempre de portas abertas para os crentes rezarem e pagarem
promessas a Nossa Senhora da Saúde, tem estado e está quase sempre
encerrada. Nem mesmo a pandemia do coronavírus despertou o antigo culto a
Nossa Senhora da saúde.

A DEVOÇÃO A NOSSA SENHORA DE FÁTIMA


Nos tempos de hoje Nossa Senhora de Fátima é aquela a quem os
católicos portugueses mais recorrem para os seus males, entre os quais as
enfermidades. Dantes não havia Nossa Senhora de Fátima, pois as aparições de
Fátima só aconteceram em 1917. Muitas pessoas dizem terem recebido graças de
Deus por sua intercessão, e vão ao santuário de Fátima pagar promessas que
fizeram a Nossa Senhora, também pela cura de doenças.
Tal como aconteceu com as demais celebrações religiosas em Portugal,
quando surgiu a epidemia do coronavírus o santuário de Fátima esteve
encerrado ao culto religioso durante os períodos de confinamento. A decisão de
encerrar igrejas e santuários aconteceu por decisão da Conferência Episcopal
Portuguesa. “Fátima e as cerimónias do 13 de Maio, nos moldes determinados
pelo cardeal António Marto, bispo de Leiria-Fátima, esteve na linha do exemplo
papal. Foi talvez uma oportunidade de reformatar a piedade popular, num
modo mais centrado no essencial deixando cair definitivamente as expressões
de credulidade, tipo negócio de pagamento de promessas, libertando o espaço
de excrescências de piedade popular para o aprofundamento de uma fé adulta.
Houve procissões virtuais, terços virtuais e ninguém correu o risco de apanhar o
Covid 19, uma opção sensata que se poderá replicar noutras ocasiões e
contextos”. 96
No entanto, o encerramento do santuário de Fátima, mais do que o das
igrejas em Portugal, foi alvo de incompreensão e de contestação por alguns
católicos. Para os devotos de Nossa Senhora de Fátima, este santuário é
considerado um local de cura, é considerado um espaço sagrado aniquilador de
doenças, como resultado da forte devoção que têm a Nossa Senhora de Fátima.
Como se podia então obrigar os devotos de Nossa Senhora de Fátima a
acreditarem que o seu santuário passasse a ser um perigoso local de contágio,
onde se corria o risco de apanhar o coronavírus ? como podia o coronavírus
propagar-se num local de cura ? como justificar que os crentes passassem a ser
proibidos de aí se deslocarem devido à ameaça do coronavírus ? como seria
possível proibir os crentes de ir a um local abençoado, onde já houve “curas
milagrosas” ? como aceitar essa contradição ?

96
Alfreda Ferreira da Fonseca, Ressurgir – 40 perguntas sobre a pandemia, Lisboa, o.c., p.207.
Mas o facto de se ser devoto libertaria os devotos de Nossa Senhora de
Fátima da pandemia ? é uma contradição a proibição de peregrinações e
celebrações a um “local de cura”, mesmo tratando-se de pandemias ? Se isso é
uma contradição, essa contradição já existe nas próprias aparições de Fátima,
pois os próprios videntes (Jacinta Marto e Francisco Marto) que disseram ter
visto Nossa Senhora, morreram com a pandemia que apareceu nessa época (a
pneumónica ou gripe espanhola), pouco tempo depois de alegadamente terem
recebido a aparição de Nossa Senhora em Fátima.
No santuário de Fátima lentamente foram levantadas as restrições, e tal
como nas igrejas em Portugal, o santuário de Fátima passou também a ter as
habituais celebrações. Os comerciantes do santuário de Fátima aproveitaram a
pandemia do coronavírus para fazer comércio, pois fabricaram pulseiras e
terços com as cores do arco-íris gravadas (que se tornaram um símbolo muito
difundido a propósito da pandemia). Nas pulseiras gravaram as cores do arco-
íris com as imagens de Nossa Senhora de Fátima, e nos terços colocaram uma
medalha com o arco-íris e a frase também muito difundida na sequência da
pandemia : “Vai ficar tudo bem”. Na verdade, não ficou tudo bem, ao contrário
do que dizia esse slogan muito espalhado, pois a pandemia agravou-se ao longo
de meses, o estado de emergência durou muito tempo, e no Inverno de 2021
teve que voltar a haver outro confinamento.
O cardeal D. António Marto, bispo da diocese de Leiria-Fátima, em
entrevista ao portal católico espanhol Religión Digital , enviou uma mensagem
de esperança a todos os católicos. A 25 de Março de 2020, o cardeal presidiu em
Fátima à celebração da consagração de Portugal e de Espanha ao Sagrado
Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria. Sobre este momento, D.
António Marto frisou que todo o significado está expresso numa frase do Papa
Francisco: "Queremos responder à pandemia do vírus com a universalidade da
oração, compaixão e ternura".
"O objetivo da oração de consagração ao Coração de Jesus e Maria, sua
mãe e nossa, era confiar à misericórdia divina, neste momento dramático, as
nossas tristezas e gritos de dor do mundo".
Também o Papa Francisco lembrou Nossa Senhora de Fátima a propósito
da pandemia do coronavírus, na sua audiência pública semanal em 7 de
Outubro, realizada no auditório Paulo VI. O Papa evocou as aparições de Fátima
para pedir aos católicos que rezem o Rosário, nestes tempos de pandemia, e que
a sua vida seja “serviço de amor” ao próximo, especialmente os mais
desprotegidos.
“Nossa Senhora, nas suas aparições, exortou muitas vezes à recitação do
Rosário, especialmente perante as ameaças que pairavam sobre o mundo.
Também hoje, neste momento de pandemia, é necessário ter o Rosário nas
mãos, rezando por nós, pelos nossos entes queridos e por todas as pessoas”,
disse o Papa nas saudações aos peregrinos que se reuniram, pela primeira vez
desde o confinamento, no Auditório Paulo VI. As saudações do Papa Francisco
aos peregrinos de vários países reunidos no Vaticano, foram feitas no dia 7 de
outubro, que é o dia da festa de Nossa Senhora do Rosário.
“Convido todos a redescobrir, especialmente durante este mês de
outubro, a beleza da oração do Rosário, que alimentou a fé do povo cristão ao
longo dos séculos”, disse o Papa.
O Papa Francisco dirigiu-se, em particular, aos peregrinos e ouvintes de
língua portuguesa :
“Convido-vos a tomar o rosário nas mãos todos os dias e erguer o vosso
olhar para Nossa Senhora, sinal de consolação e esperança segura. Que a
Virgem Santa ilumine e proteja toda a peregrinação da vossa vida até à Casa do
Pai”, disse o Papa.
As aparições de Nossa Senhora em Fátima não são um dogma de fé, pois
pode-se ser católico sem se acreditar nas aparições de Fátima, que muita
polémica suscitaram e continuam a suscitar. Sobre as aparições de Fátima
existem diversos livros, que desconstroem meticulosamente e desmistificam a
construção do “mito de Fátima” e colocam muitas dúvidas sobre a veracidade
dessas aparições,97 que no entanto não cabe aqui analisar.
As dúvidas sobre as aparições de Nossa Senhora em Fátima colocam-se
também hoje, na sequência da pandemia do coronavírus, a propósito das
aparições de Nossa Senhora em Medjugorje na Bósnia, aparições essas que
aconteciam todos os meses, desde o ano de 1981, mas que pararam com

97
Tomás Fonseca, Na cova dos leões, Lisboa, Ed. Antígona, 2009; João Ilharco, Fátima desmascarada,
Coimbra, 1971 (ed. do autor); Prosper Alfaric, A fabricação de Fátima, Lisboa, Ed. Delfos (s/d.); Fina
d’Armada, Fátima, o que se passou em 1917, Lisboa, Ed. Bertrand, 1980; Mário de Oliveira, Fátima
nunca mais, Porto, Ed. Campo das Letras, 1999; Luís Filipe Torgal, Fátima – a desconstrução do mito,
Lisboa, Ed. Palimage, 2027; Patrícia Carvalho, Fátima – milagre ou construção ?, Lisboa, Ed. Ideias de ler,
2027.
pandemia do coronavírus. Nossa Senhora, que é supostamente um ser divino e
poderoso, deixou de poder aparecer, tendo ficado limitada pelos acontecimentos
terrenos, ou então deixou de ter algo a dizer às pessoas, apesar de ser uma época
em que as pessoas mais precisavam dela. Devido ao coronavírus os peregrinos
deixaram de aparecer. Mas os peregrinos iam ao lugar da aparição porque
Nossa Senhora aparecia, ou esta aparecia porque os peregrinos lá iam ? Nossa
Senhora estava dependente dos peregrinos para aparecer ? se era uma
intervenção divina, porque não livrava os peregrinos do coronavírus ? se não
aparecia para falar aos peregrinos (pois estes não a viam nem a ouviam), mas
sim a uma mulher, podia muito bem continuar a aparecer-lhe e falar com ela
sozinha em casa.
Continuemos agora a falar de Fátima. Durante a pandemia do
coronavírus muitos peregrinos foram a Fátima pagar promessas que fizeram a
Nossa Senhora: irem desde as suas casas a pé até ao Santuário, rezarem o
rosário, porem velas a arder em frente da capela das aparições, andarem de
joelhos à volta da capela das aparições, oferecerem uma determinada quantia
em dinheiro ao santuário, oferecerem o seu vestido de casamento ao santuário,
oferecerem flores a Nossa Senhora, mandarem dizer uma missa ou uma novena
em sua honra, etc.
Muitos peregrinos fizeram isso porque acreditam que a sua recuperação
do coronavírus se deveu a um milagre de Nossa Senhora de Fátima, apesar de,
como sabemos, a recuperação não se dever a essas promessas e a milagres, mas
sim ao sistema imunitário do corpo humano. Nossa Senhora, no caso de existir,
dado que é um Ser divino, não precisa destas doações, e muito menos de
doações interesseiras (é como se as pessoas lhe tivessem dito : se me deres a
cura, eu dou-te “X”). Nossa Senhora não precisa de velas, nem de dinheiro, nem
de rosários, nem de flores, nem vestidos de casamento, nem que as pessoas vão
a Fátima a pé, mas muitas pessoas continuam a fazê-lo, e uma das razões foi o
facto de terem recuperado da infeção do coronavírus. Outras pessoas não
chegaram a ficar infetadas, e prometeram a Nossa Senhora de Fátima que se
nunca ficassem infetadas iriam a Fátima a pé, ou que pagariam a Nossa Senhora
de Fátima outra promessa. É certo que algumas pessoas não ficaram infetadas,
mas isso deveu-se ao facto de terem tido muitos cuidados (o uso de máscara, a
higienização das mãos, a distância social, a não frequência de espaços fechados,
terem recebido a vacina, etc.).

 
 
EPÍLOGO

A enorme difusão nos meios de comunicação social do fenómeno do


coronavírus, mostrou que o uso das palavras não é neutro, pois usamo-las com
diversos significados, e a própria palavra “coronavírus” foi por vezes usada para
falar de outras coisas, assim como outras coisas foram por vezes usadas para
falar do coronavírus. Assim, por exemplo as palavras e expressões seguintes :
“coroa”, “apocalipse”, “a igreja como hospital de campanha”, “os profissionais
de saúde continuam a fazer milagres”. Há ainda outros paralelismos religiosos
sobre o coronavírus, como por exemplo : doença-cura, pecado-salvação;
recuperação-conversão, e a própria palavra pandemia, à semelhança da palavra
panteísmo, que remete para o vocábulo pan, que significa que está em todo o
lado, comparações essa que já vêm da Antiguidade clássica, em que Ésquilo
dizia que a peste era “a mais odiosa de todas as deusas”.
Assim como os deuses e Deus incutem nos seres humanos um sentimento
de temor, o próprio coronavírus também instaurou um sentimento de temor
universal, devido ao qual todos os seres humanos se sentiram pequenos, frágeis,
vulneráveis, tal como perante Deus (ou a ideia de Deus). O coronavírus trouxe
um clima de alarmismo universal : o medo de um vírus desconhecido, sobre
como atuava e as suas reais consequências, o medo de frequentar espaços
públicos, o medo de cumprimentar as pessoas, o medo de estar fechado em casa,
o medo de não haver cura nem vacina para o coronavírus, o medo do definhar
da economia, etc., de tal maneira que o medo do coronavírus e por causa do
coronavírus passou a ser, em muitos casos, pior do que o próprio vírus, pois foi
mais fácil a muitas pessoas recuperaram da infeção do vírus, do que das suas
consequências a nível psicológico, social e económico.
No âmbito deste clima de medo, a pandemia do coronavírus foi também
encarada, por alguns crentes, como um prenúncio do fim do mundo, e chegou a
ser vista pelos fundamentalistas religiosos como um dos sete cavaleiros do
Apocalipse, que traz pestes, assim como já aconteceu com outras pestes ao longo
da História, que desde sempre foram associadas ao fim do mundo, que estaria
iminente, mas o mundo nunca acabou. Houve também muitas teorias da
conspiração sobre o coronavírus, que têm uma relação com a atitude religiosa.
As teorias da conspiração proporcionam uma certa tranquilidade a quem
acredita nelas, à semelhança do que acontece na crença religiosa. Associados às
teorias da conspiração estão também os bodes expiatórios, que essas teorias
buscam, que são um conceito e uma prática de origem bíblica. O bode era
simbolicamente encarado como expiador dos pecados, assim como aconteceu ao
longo da História com certas pessoas ou minorias, como por exemplo os judeus,
que foram considerados responsáveis por determinadas catástrofes que
atingiram a Humanidade, como por exemplo as pestes, e que nos tempos de
hoje também sucedeu, fazendo-se dos que vinham de fora (os estrangeiros) e
principalmente os chineses, os bodes expiatórios do coronavírus.
Os grandes encontros religiosos nos templos foram importantes focos de
transmissão do coronavírus, assim como outros espaços religiosos, conforme
vimos através de vários exemplos, por isso tiveram de ser encerrados, para
prevenir futuros contágios, mas isso foi contestado e rejeitado por muitos
crentes e líderes religiosos. O seu encerramento foi considerado como uma
ofensa aos crentes, uma falta de confiança em Deus, uma blasfémia, um
atentado contra o direito à liberdade religiosa, e uma medida não apenas
sanitária mas também política e anti religiosa. Por um lado houve restrições e
proibições de atividades religiosas desigualitárias em relação a outras medidas
tomadas por alguns Governos, assim como excessos policiais na forma de
encerramento dos templos, mas por outro lado também houve arrogância e
obstinação da parte de alguns crentes e líderes religiosos, ao colocarem o direito
à liberdade religiosa acima do direito à saúde de todos.
Devido ao facto de ter sido encarado como uma medida não apenas
sanitária mas política, devido à necessidade de convívio na sequência dos
eventos religiosos, à necessidade das atividades sociais das igrejas, ao consolo
espiritual das celebrações religiosas, à ajuda psicológica da prática religiosa, ao
dever de ir à missa aos domingos na religião católica, ou devido aos donativos
económicos que são muito pedidos em algumas religiões ou seitas, como por
exemplo na Igreja Universal do Reino de Deus, e que deixaram de existir com o
encerramento dos templos, esse encerramento foi mal aceite e em alguns casos
muito contestado.
Recorreu-se a celebrações religiosas alternativas, na Internet, por vídeo
conferência, de maneira síncrona e interativa, e às redes sociais, além da
televisão, mas esses recursos também não foram bem recebidos por muitos
crentes e líderes religiosos, pois consideraram-nos como uma banalização e uma
impiedade para com a sacralidade das celebrações religiosas. Por exemplo no
caso da religião católica, não existem sacramentos na TV e na Internet, as
pessoas não podem receber a hóstia consagrada. Por outro lado, ficou
sacrificada a dimensão comunitária da celebração religiosa, que é muito
diferente virtualmente.
Ligada à necessidade dos templos estarem abertos esteve também a
necessidade das pessoas irem rezar devido aos problemas e à angústia causada
pelo coronavírus, e para esse clima de oração muitas pessoas precisam dos
templos, pois em casa não encontram ambiente propício para rezar. Ainda
assim muitas pessoas rezaram, para não ficarem infetadas nem falecerem, mas
ficaram infetadas e faleceram na mesma, incluindo muitos padres. A propósito
disso e de outras razões, questionámos o valor das orações, assim como as
superstições religiosas e em alguns casos as práticas de charlatanismo religioso
para o coronavírus.
Em alguns casos a irracionalidade religiosa atingiu níveis de exagero,
visíveis não apenas nas explicações sobre a origem do coronavírus, ou nas
soluções consideradas milagrosas para o mesmo, como também na explicação
sobre a recuperação que as pessoas tiveram, ou no facto de não terem sido
infetadas, como por exemplo a explicação sobre o facto de não haver pessoas
infetadas na ilha da Madeira devido à intervenção de Nossa Senhora do Monte,
tal como no passado se atribuiu a recuperação de outras pestes à intervenção de
São Roque, ou de Nossa Senhora da Saúde, em Lisboa. Conforme vimos, essas
explicações não têm sentido, pois o coronavírus acabou por aparecer na ilha da
Madeira, onde também faleceram muitas pessoas.
A propósito da intervenção sobrenatural para salvação, a recuperação e o
falecimento ou não falecimento pelo coronavírus, Deus é justificado e louvado
de todas as maneiras. Quando a pessoa não apanhou o vírus, os crentes dizem
que se tratou de Deus agindo. Se a pessoa apanhou e se restabeleceu, muitos
crentes dizem que foi Deus que curou. Se a pessoa faleceu os crentes dizem que
Deus tem uma missão para ela na eternidade.
Alguns crentes acreditam que ficaram recuperados devido ao facto de
terem rezado a Deus, mas alguns ficaram com outros problemas de saúde
associados, o que significa que Deus interveio mal nessa recuperação, pois só as
curou em parte. Por outro lado, há também que sublinhar que houve muitos
crentes que pediram a Deus para não ficarem infetados (pode ver-se isso em
testemunhos que deram na Internet e que apresentámos neste livro), mas que
ficaram infetados na mesma, e muitas dessas pessoas faleceram, assim como
houve líderes religiosos, como por exemplo nas igrejas evangélicas, que
negaram a gravidade do coronavírus, e que vieram a falecer infetados por ele.
Enquanto muitos indivíduos rezaram a Deus para não se infetarem nem
falecerem e isso não teve qualquer efeito, muitos indivíduos que não rezaram, e
muitos deles eram ateus, recuperaram e não faleceram. Esta situação foi motivo
para analisarmos o significado que tem Deus para muitos crentes, pois só
recorrem a ele em momentos de necessidade, estabelecendo com Deus uma
relação interesseira, como acontece também por exemplo nas promessas que
alguns peregrinos pagam a Nossa Senhora de Fátima, no caso de obterem dela
determinados favores, que os mesmos consideram que se deveu à sua
intercessão.
No caso das várias vacinas para o coronavírus, alguns crentes religiosos
consideraram que foi também o próprio Deus que inspirou os cientistas a
descobrirem-na, apesar de alguns desses cientistas serem ateus, o que também é
contraditório. Se Deus inspirou a vacina contra o coronavírus, porque não
evitou antes que o coronavírus tivesse aparecido, que ele se tivesse propagado, e
as pessoas tivessem ficado infetadas ? e se Deus inspirou as vacinas, porque
razão inspirou umas e não inspirou outras ?
Ao longo da História da Humanidade muitos crentes e líderes religiosos
defendiam que as epidemias eram um castigo de Deus, e sobre a pandemia do
coronavírus houve também alguns crentes e líderes religiosos que defenderam
isso. Alguns atribuíram esse suposto castigo aos pecados atuais da Humanidade,
à imoralidade, aos maus hábitos alimentares, à destruição da Natureza, ao
regime comunista da China, etc. Ora, o coronavírus atingiu toda a gente :
pessoas com comportamentos morais exemplares, pessoas vegetarianas, países
não comunistas, e até algumas crianças e muitas outras pessoas inocentes.
Alguns filósofos e teólogos do passado, assim como alguns crentes e líderes
religiosos do presente, defenderam e defendem que as epidemias e outros
grandes males são uma consequência do pecado original, cometido por Adão e
Eva, e que portanto atingiu toda a Humanidade, para todo o sempre. Ora, que
culpa temos nós hoje de um pecado que foi cometido por Adão e Eva ?
Nos tempos de hoje a explicação sobre a pandemia como sendo um
castigo de Deus geralmente não existe, ou existe menos, como por exemplo para
os que não acreditam em Deus, pois se para eles Deus não existe, o coronavírus
não foi um castigo de Deus. Na sociedade indiferente à religião, como é
geralmente a do mundo de hoje, Deus é uma hipótese muito pouco invocada
como causa do coronavírus. Até mesmo muitos pastores, padres, bispos, e o
próprio Papa defenderam que o coronavírus não foi um castigo de Deus, o que
revela portanto uma evolução no conceito sobre Deus.
Mas mesmo que o coronavírus não seja um castigo de Deus, a origem do
coronavírus é Deus, pois para os que acreditam em Deus foi ele que criou todas
as coisas, por isso pode-se considerar Deus como indiretamente responsável
pelo coronavírus, por um lado por ter criado o mundo e todas as coisas que nele
existem do ponto de vista biológico, e por outro lado por não ter feito nada para
que o coronavírus não tivesse atingido e morto milhares de pessoas em todo o
mundo. A não intervenção de Deus é contraditória com a tese de que Deus é
todo poderoso, bondoso, zeloso e preocupado com a Humanidade.
Devido não ao coronavírus em si mesmo, mas às más consequências que
o mesmo trouxe para a Humanidade, alguns crentes e líderes religiosos
defenderam que o coronavírus não teve como origem Deus mas sim o Demónio,
pois de Deus só pode vir o bem e não o mal. No entanto, esta explicação
religiosa, como outras sobre o coronavírus, é também questionável, pois Deus é
superior ao Demónio (no caso de ambos existirem). Se Deus é todo poderoso,
como é de esperar sendo ele Deus, poderia muito bem derrotar o Demónio e
libertar a Humanidade do coronavírus. Ainda dentro da consideração das
causas e consequências do coronavírus, analisando todas as hipótese
explicativas, no presente livro vimos também a tese segundo a qual o
coronavírus não tem Deus nem o Demónio como origem, mas sim o ser
humano. De acordo com esta tese, que nos parece ser a mais correta, o
coronavírus tem como origem causas humanas, nomeadamente os maus hábitos
alimentares dos seres humanos, a falta de higiene, a destruição da Natureza, o
tráfico de animais, a má gestão do Governo chinês quando apareceu o
coronavírus, etc.
No entanto, mesmo que o coronavírus não tenha tido Deus como sua
origem, se Deus existir não pode deixar de ser responsabilizado : se Deus é
perfeito, porque criou um mundo em que há tantos vírus ? se Deus é
omnisciente, e portanto se sabia que o coronavírus existiria, porque não
evitou ? se Deus é um Ser todo poderoso, porque não eliminou o coronavírus ?
se Deus é bondoso, misericordioso e zeloso para com a Humanidade, porque
não acabou com o coronavírus ?
As teodiceias têm tentado responder a estes paradoxos, não só para este
como também para a generalidade dos males que têm atingido a Humanidade,
como por exemplo a teodiceia de Leibniz, segundo a qual este é o melhor dos
mundos possíveis, mas essas justificações são pouco convincentes, e muito
menos a justificação destes paradoxos através dos desígnios de Deus como
insondáveis. Algumas teodiceias têm justificado que determinados males que
atingem a Humanidade, como por exemplo as pandemias, são um mal sob um
ponto de vista, mas um bem sob outro de vista, pois apesar de serem um mal
proporcionam também bens, e em alguns casos bens maiores. A pandemia do
coronavírus proporcionou alguns bens (biológicos, psicológicos, religiosos,
sociais), mas por outro lado é subjetivo e relativo que os mesmos sejam
realmente e efetivamente bens. Assim, por exemplo sob o ponto de vista social,
a pandemia do coronavírus trouxe graves problemas sociais e económicos, que
superaram em muito os “bens” proporcionados pela pandemia do coronavírus.
A Bíblia e os ensinamentos de outras religiões exortam no sentido de se
atender aos problemas sociais, mas na perspetiva da caridade, da compaixão, da
esmola, da filiação divina (o facto de sermos todos filhos de Deus), e devido ao
prémio no Céu e ao castigo divino se não ajudarmos os outros. Ora, vimos que
não é porque Deus existe (no caso de existir), que se deve ajudar os outros, nem
que as atitude a ter devem ser a da compaixão e da caridade. Existem outros
princípios éticos, como fundamento da atenção para com os mais necessitados :
o facto das pessoas serem seres humanos, o facto das pessoas terem direitos
(haja ou não haja Deus), a reciprocidade, o reconhecimento, a solidariedade.
Não é porque Deus diz que é errado matar ou roubar que é errado fazê-lo, mas
sim porque é intrinsecamente errado fazê-lo, independentemente da existência
de Deus e dos seus mandamentos. Também não é por Deus dizer que se deve
ajudar os outros que se deve ajudar os outros. A relação para com os outros
baseada em Deus, em vez de honrar os atos do Homem, diminui-os, dado que só
se Deus existir o Homem encontra sentido na ajuda aos outros. Ora, não é
preciso Deus, mesmo que ele exista, pois a nossa própria razão diz-nos que é
correto e desejável ajudar os outros, sem nos encontrarmos dependente de Deus
para a justeza do próprio ato da ajuda.
Para alguns autores a existência do mal, como por exemplo a pandemia
do coronavírus, é um sinal de que Deus não existe, mas isso também depende
do conceito de Deus e daquilo que se espera dele. Ao longo do presente livro
mantivemos um espírito crítico, mas vimos os dois lados dos problemas
levantados. Por exemplo, no encerramento dos templos houve por vezes abusos
policiais e contradições das autoridades ao mandarem-nos encerrar, e por outro
lado houve arrogância, fanatismo e ignorância de muitos crentes e líderes
religiosos ao recusarem-se a aceitar o encerramento dos templos devido à
pandemia do coronavírus. Em alguns casos é difícil determinar onde houve mais
peso e exageros, se foi nas interdições ao encerramento dos templos e nas
formas de encerramento, se foi na incompreensão e recusa de aceitar esse
encerramento.
Vimos também os dois lados da questão sobre se o coronavírus foi ou não
um castigo de Deus. A tendência geral entre os crentes e líderes religiosos nos
tempos de hoje foi a de defenderem que o coronavírus não foi um castigo de
Deus, o que contrasta com a visão antiga sobre Deus, e portanto o conceito de
Deus e o seu papel evoluiu. Também evoluiu o recurso ao sobrenatural, pois
enquanto antigamente se recorria muito a São Roque, um santo advogado
contra as pestes, hoje muito pouco se faz isso. A prática religiosa, pelo menos
nos países ocidentais, hoje está menos ligada a peregrinações, ao culto de
relíquias, a novenas, a penitências e outros sacrifícios, como o pagamento de
promessas, mas muitas pessoas continuam a recorrer a Deus. É difícil
determinar se devido à pandemia do coronavírus houve mais pessoas a
recorrerem a Deus, ou se pandemia, que para muitas pessoas foi
incompreensível, contraditória e revoltante, as afastou de Deus, mas é um facto
que hoje as pessoas recorrem muito menos a Deus e confiam e esperam mais na
Ciência. Algumas pessoas que recorreram a Deus fizeram-no
circunstancialmente, pois passado o tempo da pandemia muitas esquecer-se-ão
de Deus, o que faz questionar a própria fé religiosa. Será que Deus envia
pandemias, no caso de as enviar, para que de vez em quando a Humanidade se
lembre dele ? mas para que é que Deus, se ele existir, quer e necessita que os
seres humanos se lembrem mais dele ? não é Deus um ser auto suficiente ? para
que necessita Deus dos seres humanos ? Deus quer que se lembrem dele, por
compaixão da Humanidade ? se assim é, porque não livrou a Humanidade do
coronavírus ? Estas dúvidas estão subjacentes a muitas das reflexões deste
livro, e fazem questionar a fé religiosa e o próprio Deus, mas são de difícil
resolução, por isso apresentámo-las sobretudo enquanto dúvidas, e não uma
solução para as mesmas.
Apesar de tudo, em alguns assuntos a solução parece-nos óbvia : foi
correto os templos terem encerrado, o coronavírus não foi um castigo de Deus,
não teve como origem Deus nem o Demónio, mas sim a Natureza e o ser
humano, as orações de petição contra o coronavírus não levaram a nada, o
charlatanismo religioso em torno do coronavírus deve ser desmascarado, o
coronavírus proporcionou males e bens, mas os bens não justificam tantos
males. A dificuldade de solucionar certos problemas está sobretudo na questão
do mal, isto é, sobre se a existência deste é ou não incompatível com a existência
de Deus, e se portanto dado que existe o mal natural Deus não existe.
Assim como o problema da existência de Deus fica por solucionar devido
impossibilidade de ser solucionado, e passada a pandemia muitas pessoas
tenderão a pensar menos nisso, muitas pessoas que se voltaram para Deus com
esta pandemia, ou outras que pensaram mais nestes problemas, também se
esquecerão de Deus passado o tempo da pandemia, e darão menos importância
aos problemas aqui abordados. Passado o tempo da pandemia muitas pessoas
esquecer-se-ão também da necessidade de ajudar os mais necessitados, e voltará
tudo a ser como dantes, por isso se o coronavírus foi um castigo de Deus para
que as pessoas se emendem, não produziu efeito, assim como não produziram
efeito outras epidemias que aconteceram ao longo da História da Humanidade.
Os seres humanos continuarão a ser egoístas, continuarão a poluir o planeta
Terra, a exploração animal continuará, os maus hábitos alimentares
continuarão, a explosão demográfica continuará, o materialismo, o
consumismo, o hedonismo, o tecnicismo continuarão, e os “bens” trazidos pela
pandemia do coronavírus deixarão de existir.
Certamente que desta pandemia haverá algumas lições a retirar, quanto
mais não seja, a de que os homens não aprendem muito com as lições da
História, e estão condenados a repeti-la, como aconteceu com as epidemias no
passado, como acontece hoje, e como acontecerá no futuro. Se as pandemias
forem, direta ou indiretamente, uma intervenção de Deus, sendo portanto um
mal para trazer bens maiores, conforme alguns defendem, isso de nada tem
valido, de nada vale e de nada valerá.
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- VV., O livro dos símbolos, Köln, Ed. Taschen, 2010 (edição em
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ÍNDICE

- Introdução

1) – AS ATITUDES ALARMISTAS SOBRE O CORONAVÍRUS


- O medo do coronavírus sob o ponto de vista religioso
- A pandemia do coronavírus como prenúncio do fim do mundo
- As teorias da conspiração sobre o coronavírus e a sua relação com a
atitude religiosa

2) – O ENCERRAMENTO DOS TEMPLOS E DE OUTROS LUGARES


RELIGIOSOS
- Os ajuntamentos religiosos como um dos principais focos de
propagação do coronavírus
- A contestação e a recusa do encerramento dos templos e de outros
lugares religiosos
- Causas da contestação e da recusa do encerramento dos templos e de
outros lugares religiosos
- O recurso a celebrações religiosas alternativas
- A crítica às celebrações religiosas alternativas

3) – DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA OU DIREITO À SAÚDE ?


- Conflitos entre o direito à liberdade religiosa e o direito à saúde
- Conflitos entre o direito à liberdade religiosa e o direito à proteção
contra o coronavírus
- A oposição religiosa às vacinas

4) – O RECURSO ÀS ORAÇÕES
- Orações contra o coronavírus
- O não atendimento de Deus às orações contra o coronavírus
- Orações pelos que faleceram devido ao coronavírus
- Outros problemas das orações

5) – CHARLATANISMO RELIGIOSOS E PRÁTICAS SUPERSTICIOSAS


CONTRA O CORONAVÍRUS
- Solução mineral milagrosa
- Água consagrada
- Sementes de feijão
- Urina e fezes de vaca
6) – A “INTERVENÇÃO MILAGROSA” CONTRA O CORONAVÍRUS
- A “intervenção” de Nossa Senhora do Monte na ilha da Madeira
- A “intervenção” de Deus na vacina contra o coronavírus
- Outros problemas suscitados pela “intervenção” milagrosa contra o
coronavírus

7) – O CORONAVÍRUS CONSIDERADO UM CASTIGO DE DEUS


- As epidemias e as doenças como castigo de Deus segundo a Bíblia
Sagrada
- As epidemias como castigo de Deus segundo a tradição religiosa
ocidental
- A pandemia do coronavírus também considerada como um castigo de
Deus
- A pandemia do coronavírus enquanto castigo dos justos e dos inocentes
- O pecado original como justificação do castigo dos justos e dos
inocentes

8) – O CORONAVÍRUS NÃO CONSIDERADO UM CASTIGO DE DEUS


- Se Deus não existir, o coronavírus não é um castigo de Deus
- Mesmo que Deus exista, o coronavírus não é um castigo de Deus
- O coronavírus não é um castigo de Deus mas a sua origem é Deus
- O coronavírus não tem como origem Deus mas sim o Demónio
- O coronavírus não tem como origem Deus nem o Demónio mas sim o
ser humano

9) – CONTRADIÇÕES ENTRE OS ATRIBUTOS DE DEUS E O


CORONAVÍRUS
- Se Deus é perfeito, porque criou um mundo imperfeito, com tantos
vírus?
- Se Deus é omnisciente, porque não eliminou o coronavírus ?
- Se Deus é omnipotente, porque não eliminou o coronavírus ?
- Se Deus é bondoso, porque não eliminou o coronavírus ?
10) – “BENS” PROPORCIONADOS PELO CORONAVÍRUS
- “Bens” sob o ponto de vista biológico
- “Bens” sob o ponto de vista psicológico
- “Bens” sob o ponto de vista religioso
- “Bens” sob o ponto de vista social

11) – PROBLEMAS SOCIAIS TRAZIDOS PELO CORONAVÍRUS E A SUA


ABORDAGEM RELIGIOSA
- Os vários tipos de problemas sociais trazidos pela pandemia do
coronavírus
- A exortação religiosa para acudir aos problemas sociais
- Novos fundamentos e respetivas atitudes na resposta aos problemas
sociais

12) – O CORONAVÍRUS EM PORTUGAL SOB O PONTO DE VISTA


RELIGIOSO
- Comparação com a atitude em relação ao terramoto de 1755 em Lisboa
- Comparação com a devoção a São Roque, protetor contra as pestes, e a
Nossa Senhora da Saúde
- A devoção a Nossa Senhora de Fátima

- Epílogo
- Bibliografia
- Índice

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