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DEUS E O CORONAVÍRUS
EDITORA
INTRODUÇÃO
De repente, sem que ninguém estivesse à espera, e sem que nada o fizesse
prever, toda a Humanidade foi atingida por uma pandemia. Não foi a primeira
nem será a última catástrofe epidémica vivida pela Humanidade. No entanto, o
ano de 2020 ficará marcado na História da como um ano em que surgiu uma
nova peste, como em 1346 na Europa medieval, em 1665 em Londres, e em 1918
no mundo do pós Grande Guerra. No ano de 2020, enquanto até então se
receavam e discutiam as alterações climáticas, os imigrantes, os refugiados, o
terrorismo, a corrida ao armamento, os riscos de uma guerra nuclear, etc.,
passou-se a recear e a discutir uma pandemia. Todos os anos morrem milhares
de pessoas em todo o mundo, por gripe sazonal, assim como milhares de
pessoas em acidentes de viação. No entanto o coronavírus, 1 apesar de causar
muito menos mortes, originou um pânico total, devido à sua grande amplidão
(pois infetou e matou bastante gente,) ao seu crescimento exponencial, à
velocidade da sua propagação, e ao facto de ter havido mutações do coronavírus.
Em anos atrás o mundo já tinha sido atingido por outros vírus, mas não com tão
elevados níveis de infeção e mortes, e não se transmitia tão facilmente e tão
rapidamente.
Até aparecer esta pandemia nunca tinha acontecido o confinamento de
enormes cidades que segundo se dizia, “nunca dormem”, como por exemplo
Nova Iorque e São Paulo, nem de países inteiros, pois não foram só as cidades
que fecharam mas também os países. Mas mais do que isso, foi toda a
Humanidade que ficou atingida, ao contrário do que sucedia com as epidemias
do passado. Nunca tinha acontecido este encerramento de fronteiras entre os
países, a proibição de viajar, o encerramento de quase todo o comércio, dos
locais de convívio, e portanto e as enormes restrições de convívio entre as
pessoas. As ruas ficaram completamente desertas e silenciosas. As próprias
igrejas fecharam. Nunca se viu nada assim.
O coronavírus é mais do que um simples vírus, é mais do que outros
coronavírus que já tinham aparecido, e é mais do que uma epidemia, pois é uma
pandemia. A palavra pandemia é de origem grega, formada com o prefixo
neutro pan (todo) da qual se formaram outras palavra, como por exemplo
1
Referimo-nos neste livro ao novo coronavírus, aquele que apareceu em 2020, na China, e que foi
denominado Covid 19, pois já tinha havido mais coronavírus. No entanto, optamos pela designação que
ficou mais conhecida popularmente, a de coronavírus, e também porque é a esse vírus que se refere a
pandemia. Ao falarmos do coronavírus não especificamos qual o coronavírus a que nos referimos, por
ter sido o coronavírus de 2020 que causou impacto e que levantou mais problemas.
panteísmo (pan e teísmo), que significa todo os deuses. No caso da palavra
pandemia, temos o prefixo pan juntando-se à palavra grega demos, que
significa povo. A palavra pandemia foi pela primeira vez empregue por Platão,
no seu livro Das Leis. Platão empregou-a em sentido genérico, referindo-se a
qualquer acontecimento capaz de alcançar toda a população. Galeno (129-217),
médico e filósofo de origem grega, foi o primeiro a empregar o temo pandémico
em relação a doenças de grande difusão. A integração definitiva do termo
pandemia no glossário da Medicina surgiu a partir do século XVIII,
encontrando-se o seu registo na língua francesa, no Dictionnaire universel
François et latin, de Trévoux, em 1774. Em Portugal esse termo entrou nos
dicionários com Domingos Vieira, em 1873, significando uma epidemia de
grandes proporções que se difunde por vários países e que atinge vários
continentes, como é o caso do coronavírus.
No entanto, uma pandemia é muito mais do que um problema biológico,
pois é também um problema social, e mais do que um problema social, é uma
construção social. Pode-se analisar as pandemias sob o ponto de vista histórico,
científico, político, económico, filosófico. Porém, há questões que se colocam
respeitantes também à dimensão espiritual do ser humano, ao significado da
vida e da morte, a propósito das pandemias. É sobretudo nas vivências
negativas do ser humano, cujo sentido parece oculto, como na infelicidade, no
fracasso, na experiência da morte e nas catástrofes, que se procura não apenas a
sua superação mas também o seu sentido. Assim, como encontrar um sentido
para a vida durante a pandemia ? como encontrar um sentido para a vida apesar
da pandemia? esse sentido é Deus ? esse sentido é a ausência de Deus ? como é
que as pessoas viveram a pandemia do coronavírus sob o ponto de vista
religioso ? e como é que as pessoas viveram a religião sob o ponto de vista
pandémico ?
Perante situações como a da pandemia do coronavírus, mesmo os
crentes em Deus não podem deixar de ficarem perplexos e de se questionarem, e
em alguns casos a pandemia suscita certas dúvidas que podem abalar a própria
fé religiosa: deve-se atribuir as culpas a Deus e ilibar os seres humanos ? deve-
se dizer que Deus não tem culpa porque Deus não existe e que o problema está
na Natureza e nos seres humanos ? se o coronavírus é um castigo de Deus,
porque é que as pessoas boas, não merecedoras de castigo, também ficaram
infetados e faleceram ? se Deus é todo poderoso e bondoso, porque não fez
nada para nos libertar do coronavírus ? porque é que as crianças e as pessoas
inocentes também tiveram de sofrer as consequências do coronavírus ? será que
Deus existe ? se sim, para que será esta pandemia? Se Deus não queria que ela
tivesse acontecido, e dado que não se trata de um mal humano mas da Natureza,
como é que Deus pôde permitir que ela tivesse acontecido ? Porque razão Deus
não pôs fim a esta crise? Porque razão Deus não atendeu à oração de milhares
de crentes ? Será que Deus realmente nos protege ? O que poderemos esperar
de Deus ? A pandemia fez as pessoas aproximarem-se ou afastarem-se de Deus ?
aumentou a fé em Deus ou fez perdê-la ?
O que acontece é humana e moralmente significativo, e tem uma razão de
ser. No caso das catástrofes, estas têm uma origem, e é difícil aceitá-las como
meramente acidentais. O ser humano interroga-se pelo “para quê” da sua
existência e não se satisfaz com explicações como as do mero acaso, para
interpretar acontecimentos tão catastróficos como os desta pandemia. Há três
maneiras como a Humanidade tem lidado com as catástrofes ao longo da
História: antigamente responsabilizava-se Deus e outras forças sobrenaturais;
após o Iluminismo passou a culpar-se a Natureza; presentemente buscam-se
culpados entre os seres humanos, incluindo em relação à pandemia do
coronavírus. Além de se procurarem responsabilidades humanas no seu
surgimento, culpando por exemplo o consumo de animais selvagens, ou a forma
como a China lidou com o problema, surgiram outros problemas a esse
propósito, como por exemplo os problemas sociais, que foram também alvo de
críticas. Uns criticaram os políticos, outros criticaram os cientistas, outros
criticaram os profissionais de saúde, outros criticaram os laboratórios e os
farmacêuticos, outros criticaram o comércio por se estar a aproveitar da
pandemia, etc. O coronavírus suscita vários problemas científicos, políticos,
económicos, e também éticos, alguns com implicações religiosas. Neste caso,
temos por exemplo o dilema ético a propósito dos ventiladores : havendo
poucos ventiladores, e tendo algumas pessoas que ficar sem eles, a quem os
dar ? às pessoas mais idosas ou às pessoas mais jovens ?
Mesmo que a solução para este problema ético não decorra de normas
religiosas, e portanto mesmo que decorra de uma ética não religiosa (por
exemplo de uma ética utilitarista), este livro apresenta o coronavírus como
sendo também um problema religioso. Nos órgãos de comunicação social falou-
se muito e tem-se falado do coronavírus sob o ponto de vista médico, político,
económico, e por vezes ético, mas a questão religiosa esteve praticamente
ausente do debate. Talvez muitos indivíduos considerem que não tem sentido
falar de Deus : ou porque consideram que Deus não existe, ou porque mesmo
acreditando que Deus existe, consideram que Deus não tem nada a ver com o
problema da pandemia do coronavírus. Talvez para quem não acredite em Deus
não tenha sentido falar nisso, pois vivemos num mundo dessacralizado, e a
questão de Deus nem sequer se põe, e portanto para muitos não há qualquer
relação a estabelecer entre Deus e o coronavírus, pois segundo os que assim
pensam, Deus não existe, e estabelecer essa relação seria estabelecer uma
relação com nada, ao contrário de estabelecer relações com os problemas
políticos e económicos.
Enquanto antigamente a religião pertencia aos temas centrais da reflexão
filosófica, nos tempos de hoje os problemas religiosos são cada vez mais postos
de parte. As pessoas hoje falam menos de Deus, preocupam-se menos com isso,
consideram isso pouco importante, tanto para afirmar Deus como para o negar.
Encaram-se os assuntos religiosos como assuntos reservados às igrejas, ou
como assuntos apenas pertencentes à privacidade de cada pessoa, à sua esfera
íntima. Todavia, falar do problema de Deus não significa defender a sua
existência, e mesmo que para alguns indivíduos Deus não exista, esse problema
continua a fazer sentido, pois por um lado para o negarem têm de argumentar, e
por outro lado porque para outros indivíduos Deus existe.
Há determinados temas que, mais do que nunca, requerem uma reflexão
sobre a questão religiosa, como por exemplo o tema da pandemia do
coronavírus, por um lado porque a pandemia é um problema que faz o Homem
pensar mais sobre o sentido da existência, e nesta busca de sentido a questão de
Deus é incontornável, e por outro lado porque em situações de catástrofes,
terramotos, epidemias, etc., muitas pessoas recorrem mais a Deus, assim como
muitas outras levantam as seguintes questões : onde está Deus ? será que Deus
existe ?
Em Portugal pareceram revistas e alguns livros sobre os problemas do
coronavírus, mas não apareceu nenhum sobre a relação do coronavírus com a
questão religiosa. Ora, acredite-se ou não em Deus, este assunto é importante,
para crentes e não crentes. Ou será que só para os crentes Deus passou a ser um
problema ? passou a ser um problema porque a pandemia veio a abalar a sua
confiança em Deus, e nos crentes não abalou a confiança em Deus, pois não a
têm ? Para os que não acreditam em Deus a pandemia não é um problema do
ponto de vista religioso, mas há muitas pessoas que acreditam em Deus, por isso
é importante ser analisada a forma como encararam e viveram a pandemia à luz
da sua crença religiosa.
Deste modo, mesmo que os que acreditam em Deus defendam que não
foi ele que enviou o coronavírus, é importante que lhes perguntemos : porque
razão Deus não impediu que o coronavírus acontecesse? Deus não poderia ter
feito algo preventivamente, em vez de remediar (no caso de ter remediado) ?
Porque razão a morte veio-se instalar tão perto de nós, como se Deus, no caso de
existir, não nos protegesse dela? Será que não nos devemos sentir perplexos
com tudo isso, em alguns casos indignados, e concluir que a providência divina
falhou? Até mesmo muitos dos que acreditam em Deus perguntam pelo silêncio
de Deus perante a pandemia do coronavírus. Porque razão Deus a permitiu ?
será que é um castigo de Deus ? Devemos pedir-lhe milagres, como pede o padre
Penéloux da obra A peste, do romancista francês Albert Camus ? Devíamos ter
esperado um milagre ? tem sentido falar em milagre como solução para este
problema ? Deveremos devolver a Deus o bilhete da vida, como faz Iván
Karamazov, no Crime e castigo de Dostoievski, ao ver o sofrimento dos
inocentes ? se Deus existe, afinal onde está Deus no meio de tudo isto ?
A existência do mal (por exemplo pandemias e doenças), é um dos
problemas mais interessantes e importantes de que os filósofos se ocupam na
filosofia da religião, havendo, atualmente, duas posições que procuram oferecer
uma resposta para este problema: 1) os teístas, que procuram afirmar que a
existência de Deus é compatível com a existência do mal; 2) os ateístas, que
procuram negar a existência de Deus, ou, pelo menos, a conceção de Deus como
ser perfeitamente bom e justo, em consequência da existência do mal.
Apresentaremos diferentes teses, devido ao facto de serem defendidas
pelos crentes em Deus e pelos ateus, mas nenhuma delas é uma solução para o
problema. O nosso objetivo é sobretudo problematizar, suscitar o debate, fazer
pensar. Subjacente a isso estão muitas dúvidas na nossa parte, por isso faremos
críticas quando considerarmos que elas devem ser feitas, como por exemplo em
relação às orações de petição daqueles que só se lembram de Deus quando estão
com problemas, ou críticas ao charlatanismo e às superstições religiosas em
torno do coronavírus. Estas e outras críticas não podem deixar de se colocar, a
propósito de problemas tão graves como os de uma pandemia, e das
contradições e exageros de que falaremos. Alguns crentes religiosos também
colocam essas questões, procurando uma espiritualidade esclarecida e crítica, e
só a sua fé em Deus os fará certamente ficarem mais serenos e aceitarem aquilo
que os não crentes e agnósticos, cujas dúvidas são legítimas, não conseguem ou
têm dificuldade em aceitar.
Embora o problema do mal e da sua (in) compatibilidade com a
existência de Deus seja o forte motivador deste livro e a razão principal que nos
levou a escrevê-lo, este livro terá uma abordagem mais abrangente, pois irá
analisar a vivência religiosa à luz da pandemia, e a vivência da pandemia à luz
da religião, nas suas diversas vertentes. Veremos como é que as pessoas lidaram
com a pandemia sob o ponto de vista religioso e os problemas religiosos que isso
trouxe, como por exemplo o encerramento dos templos. Veremos os medos a
propósito do coronavírus e o seu significado sob o ponto de vista religioso.
Veremos as orações que foram feitas por causa do coronavírus, etc. Em suma, o
objetivo deste livro é falar de Deus e da vivência religiosa tendo como pretexto o
coronavírus, e por outro lado falar do coronavírus tendo como pretexto Deus e a
vivência religiosa.
As referências neste livro a Deus dizem principalmente respeito ao Deus
do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo, isto é, ao Deus monoteísta e
interventivo (ou supostamente interventivo). No entanto, a mensagem religiosa
principal, que servirá de base à nossa reflexão, é a do Cristianismo e os
respetivos textos sagrados, isto é, a Bíblia Sagrada, por serem a mensagem e os
textos que conhecemos melhor. Dentro do Cristianismo falaremos não apenas
da religião católica mas também das igrejas evangélicas, da Igreja Universal do
Reino de Deus, e das Testemunhas de Jeová. Por vezes faremos também
referência a outras religiões monoteístas sem ser as cristãs, nomeadamente o
Judaísmo e o Islamismo, e ainda, embora menos, ao Hinduísmo e ao Budismo
(apesar desta última ser mais um sistema ético ou uma filosofia de vida).
Ao analisarmos a relação entre Deus e o coronavírus nas suas diversas
vertentes, não nos basearemos em teorias e em autores, embora por vezes
citemos alguns deles. Não nos basearemos em teorias e em autores, devido ao
facto de ao longo da História terem sido muitos os autores que falaram sobre o
problema de Deus, e de não querermos privilegiar nem seguir nenhum deles,
em detrimento de outros. Um dos melhores exemplos é o do problema do mal,
que tem ocupado muitos filósofos e teólogos. Não analisaremos este e outros
problemas em função de nenhuma dessas teorias e autores, pois isso implicaria
que o grande público, a quem também se dirige este livro, conhecesse essas
teorias e autores, de modo a poder compreender melhor o enquadramento do
nosso tema em função dessas teorias, ou então que as tivéssemos de apresentar
aqui, o que alargaria o âmbito deste livro, portanto não o fizemos.
Por outro lado, habitualmente acentua-se muito a dimensão
transcendente, invisível e abstrata da religião, mas a questão de Deus não é
apenas metafísica, pois dela faz parte a vivência concreta aqui e agora sobre o
fenómeno religioso, como por exemplo o culto religioso, ou os problemas
sociais. Assim, temos sobretudo a preocupação de apresentar casos concretos, e
as afirmações de pastores e padres, sobre problemas suscitados pelo
coronavírus, como o da contestação ao encerramento dos templos, ou os
problemas sociais, e a forma como esses problemas foram encarados.
Recorreremos também a factos históricos concretos, e portanto em alguns casos
este livro comparará as atitudes religiosas do presente com as do passado, isto é,
de que modo é interpretada hoje a pandemia do coronavírus em comparação
com as interpretações do passado sobre outras catástrofes, como por exemplo a
peste negra na Europa, ou o terramoto de 1755 em Lisboa.
Este livro está norteado por um atitude crítica em relação à questão
religiosa, sempre que determinados temas aqui abordados nos suscitarem
perplexidades, fazendo aliás nossas as perplexidades que certamente muitas
pessoas também tiveram e têm a propósito do coronavírus e da questão
religiosa, incluindo as pessoas crentes em Deus. Apresentaremos diferentes
possibilidades de interpretação sobre a relação entre Deus e o coronavírus, e os
prós e os contras de diferentes interpretações. Concordaremos com algumas e
criticaremos outras, mostrando o que consideramos ser a falta de consistência
das suas argumentações, e questionaremos as suas justificações.
Incluiremos diversos assuntos a propósito da relação entre Deus e a
pandemia do coronavírus, entre os quais também alguns assuntos menos
abordados, como por exemplo a questão da linguagem, isto é, o coronavírus
como metáfora, até à questão antropológica, nomeadamente a forma como as
sociedades tradicionais, incluindo a portuguesa, encararam as epidemias sob o
ponto de vista religioso. Assim, ao abordarmos esses diversos assuntos, teremos
o problema do coronavírus não apenas como fio condutor para refletir sobre o
problema de Deus, ou o problema de Deus como fio condutor para refletir sobre
o problema do coronavírus, mas também como fio condutor para refletir sobre
outros problemas que vêm a propósito.
.
AS ATITUDES ALARMISTAS SOBRE O
CORONAVÍRUS
O MEDO DO CORONAVÍRUS SOB O PONTO DE VISTA RELIGIOSO
O ser humano teve sempre medos, que o acompanham desde o tempo das
cavernas : medo da noite, das trovoadas, dos cometas, das tempestades, do fogo,
dos animais selvagens, das pessoas violentas, dos governantes tiranos, das
doenças, da morte, da dúvida, da incerteza, do desconhecido.
Conforme relata o historiador Jean Delumeau, as epidemias que
atingiram a Humanidade geraram também muito medo, como por exemplo a
peste negra na Idade Média. Mas conforme sublinha este autor, houve outros
contágios que geraram também muito medo : o tifo, nos exércitos da Guerra
dos Trinta Anos, no século XVIII a varíola, a gripe pulmonar e a disenteria, e no
século XIX também a cólera.2 Ao longo da História as pestes originaram medos,
histerias coletivas, pavores de Deus, culpabilizações de pessoas e comunidades,
e massacres de bodes expiatórios, como por exemplo os judeus.
As crónicas das epidemias ao longo dos séculos mostram como o medo
não acontecia apenas devido ao contágio, mas também devido aos episódios de
crueldade que as epidemias traziam. Por exemplo, na cidade alemã de
Wittenberg , durante a peste de 1539, aconteceu um verdadeiro “salva-se quem
puder”. Martinho Lutero, o grande líder da Reforma Protestante, observou
que os seus concidadãos fugiam no meio de tanta histeria e que os doentes
ficavam sem ninguém para cuidar deles. Segundo Lutero, o medo era um mal
ainda pior do que a própria doença, pois perturbava as pessoas
psicologicamente e levava-as a não se preocuparem com as outras pessoas, nem
sequer com as suas próprias famílias.
O ser humano, conforme sublinha Peter Berger, “precisa de um mundo
socialmente ordenado. O que ocorreu nos últimos meses em âmbito mundial foi
uma desestruturação de mundo. O universo simbólico vem balançado como um
furacão, levando grupos inteiros à experiência da anomia. O medo voltou a
tomar conta da sociedade, desequilibrando todos os mecanismos de engenharia
2
Jean Delumeau, História do medo no Ocidente, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1990, p. 107.
social voltados para manter o mundo significativamente em pé. As estruturas de
plausibilidade vêem-se abalados pelo “caos”.3
Segundo este autor, “a constante possibilidade do terror anómico torna-
se atual sempre que as legitimações que obscurecem esta precariedade são
ameaçadas ou entram em colapso”. 4 Em momentos de forte crise, como a vivida
pela pandemia, “ficou muito mais difícil o exercício de canais legitimadores do
campo da plausibilidade do sentido, uma vez que ficaram fragilizadas as
práticas normais destinadas a silenciar dúvidas e prevenir lapsos de convicção”. 5
O facto do ser humano ter medo de certas coisas é algo natural, mas pode
também ser algo negativo, quando se trata de medo exagerado, ou quando esse
medo revela a falta de confiança em Deus, conforme defendem os cristãos,
baseados por exemplo na seguinte passagem da Bíblia Sagrada : “No amor a
Deus não há medo; ao contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo
supõe castigo. Aquele que tem medo não está aperfeiçoado no amor” (1 João,
4,18).
Com o aparecimento da pandemia do coronavírus instaurou-se um clima
de medo por vezes exagerado, uma certa histeria coletiva. Instalou-se a
desconfiança sobre cada pessoa, pois qualquer indivíduo passou a ser
potencialmente perigoso, e a ser visto como uma ameaça. Passou-se a ter medo
de frequentar espaços públicos. Passou-se a ter medo de cumprimentar as
pessoas. Passou-se a ter medo de que não houvesse cura nem vacina. Passou-se
a ter medo da morte. Passou-se a ter medo da crise económica. Passou-se a ter
medo de ficar fechado em casa, dos períodos de confinamento. Passou-se a ter
medo do desconhecido que era este vírus, que ninguém sabia como atuava, nem
as suas reais consequências.
O papa Francisco, na sua mensagem na semana santa de 2020, diante da
praça de São Pedro então vazia, transmitida pelos órgãos de comunicação social,
citou as palavras de Cristo aos apóstolos : “Porque tendes medo? Ainda não
tendes fé ?” (Mc., 4, 40), referindo-se ao medo que as pessoas estavam a ter do
coronavírus, considerando também esse medo como uma falta de confiança em
Deus.
3
Peter L. Berger, A construção social da realidade, Petrópolis, Ed. Vozes, 1973, p. 141.
4
Idem, ibidem.
5
Peter L. Berger, Rumor de anjos. A sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural, Petrópolis,
Ed. Vozes, 1997, p. 66.
O cardeal D. António Marto, bispo da diocese de Leiria-Fátima, numa
entrevista a um jornal digital católico espanhol, ao falar sobre o medo associado
ao coronavírus, disse que é "uma coisa muito humana diante do perigo iminente
e ameaçador, especialmente quando enfrentamos com tanta severidade o medo
de uma morte inesperada, a nossa, a dos nossos entes queridos e a de tantas
outras. A fé dá-nos a confiança de não sermos vencidos ou paralisados pelo
medo, de enfrentar o perigo com esperança".6
Alguns líderes religiosos evangélicos defenderam que o vírus era uma
tática do Demónio, que se alimenta do medo, e que o medo é muito pior do que
o próprio vírus. Assim, por exemplo o evangelista norte americano Kenneth
Copeland disse que o coronavírus existia há muito tempo e que apenas tinha
sido uma cepa “fraca” da gripe no passado. Copeland transmitiu a sua
mensagem em Março de 2020 no canal Victory Channel e declarou que o medo
que o coronavírus causou em todo o mundo era muito pior do que o próprio
vírus. Copeland declarou : “O medo não é bom. É pecado. É um ímã para
doenças e enfermidades. No momento em que uma pessoa começa a temer por
qualquer coisa, o diabo começa a trabalhar nessa pessoa. A pessoa está dando ao
diabo um caminho para o seu corpo.”
Ainda nos Estados Unidos da América, Greg Laurie, pastor da Harv2est
Christian Fellowship, no sul da Califórnia, incentivou as pessoas a rezarem pelo
fim da disseminação do coronavírus e para acalmarem o medo : “Há muito
medo. De certa forma, acho que o medo viral sobre ele pode ser pior que o
próprio vírus”, disse Laurie num vídeo colocado no Instagram.
Também o jesuíta James Martin, consultor do Dicastério para a
Comunicação do Vaticano, criticou o medo a propósito do coronavírus : “Pânico
e medo não vêm de Deus. Calma e esperança, sim. E é possível responder a uma
crise com seriedade e deliberação, mantendo um senso interior de calma e de
esperança. (…) O medo, ao confundir e assustar o indivíduo, afasta-o da ajuda
que Deus lhe quer dar. Ele não vem de Deus. O que vem de Deus? Santo
Inácio diz-nos : o Espírito de Deus “desperta coragem e força, consolação,
inspiração e tranquilidade”. Portanto, confie na calma e na esperança que você
6
Religion Digital, Madrid, 12 de Abril de 2020, p. 6.
sente. Essa é a voz a ser ouvida. “Não tenham medo!”, como disse Jesus muitas
vezes.”7
No entanto, a tese de que ter medo é pecado e afasta as pessoas de Deus é
contraditória com a tese de que a origem da religião é o medo e a ansiedade em
relação aos acontecimentos futuros, a apreensão e o pânico, que faz com que as
pessoas recorram a Deus. O que é afinal o medo do coronavírus ? é o medo da
morte. Ora, do ponto de vista religioso pedir para não se ter medo da morte é
contraditório, pois se as pessoas não tivessem medo da morte não recorriam a
Deus, logo pedir aos crentes em Deus para não terem medo da morte é pedir-lhe
para deixarem de ter o que as leva à religião, e indiretamente fazer com que não
precisem da religião.
Conforme sublinham alguns autores, é precisamente o medo das
doenças, o medo da morte, o medo do Inferno, etc. que leva as pessoas a Deus.
Por exemplo Lucrécio, filósofo romano que viveu no século I a. C., na sua obra
Da natureza das coisas, afirma que ”foi o medo que criou os deuses”. Lucrécio
vê no medo do Homem perante os cataclismos da Natureza a origem da ideia de
Deus. As religiões divinizaram os elementos naturais (trovoadas, etc.), para os
tentarem gerir. As religiões politeístas atribuíram cada fenómeno natural à
intervenção de um deus, e ter medo dos fenómenos naturais é ter medo dos
deuses, assim como ter medo dos deuses é ter medo dos fenómenos naturais.
Esta ideia foi retomada pelos filósofos empiristas nos séculos XVII e
XVIII. Para Hobbes, na sua obra Leviatã, assim como para Hume, na sua obra
História natural da religião, a crença religiosa está motivada por razões
psicológicas, decorre de um sentimento de medo e de impotência perante a
fragilidade do destino humano, e sendo assim, o medo do coronavírus não os
afasta de Deus, não é pecado, mas antes pelo contrário : esse medo, assim como
o medo perante outros fenómenos naturais, levou e continua a levar muitos
seres humanos a recorrerem a Deus.
Segundo estes e outros autores, a própria religião, desde os seus
primórdios, pretendia apenas manter os homens no medo, e se o medo é um
erro, a própria religião, segundo afirmam esses autores, é um erro. Para autores
como Bertrand Russell, Freud, Marx, entre outros, a religião é baseada
7
James Martin, America, The Jesuit Review, 13-03-2020, New York, Ed. America Media, p. 11.
fundamentalmente sobre o medo, e é alimentada por ele. Sendo assim, se ter
medo revela falta de confiança e é pecado, a própria religião enquanto baseado
no medo está baseada no pecado, e ao alimentar o medo, indiretamente
alimenta o pecado.
O medo tem frequentemente como origem a incerteza e o desconhecido.
Para muitos crentes o medo do coronavírus elimina-se com a confiança em
Deus, pois a falta de confiança em Deus (que segundo o Cristianismo é pecado)
leva ao pânico sobre o coronavírus. O medo do coronavírus é sobretudo medo
da morte, mas a morte deve ser encarada com naturalidade. O medo das
epidemias não se elimina simplesmente recorrendo a Deus, mas sim com mais
informação e conhecimentos sobre o coronavírus. É necessário que o
desconhecido (por exemplo as epidemias e certas doenças) seja menos
desconhecido, ou que sobre aquilo que se desconhece haja mais conhecimento,
sob pena de as pessoas recorrerem a Deus enquanto o desconhecido
permanecer, e deixarem de recorrer a ele quando aquilo que era desconhecido
passar a ser conhecido. Por exemplo as trovoadas eram para os povos antigos
consideradas um castigo de Deus, e fazia-os viver no medo. O conhecimento
sobre as origens e as consequências das trovoadas, encarando-as como um
fenómeno natural, fez o ser humano deixar de ter o medo que tinha das
trovoadas, não as atribuindo aos deuses. O mesmo deve acontecer com as
pandemias.
10
Jaime Nogueira Pinto, Idem, p. 83
Para alguns muçulmanos, a pandemia do coronavírus também foi
considerada um sinal de que o fim do mundo estaria próximo. O “Messias” dos
muçulmanos denomina-se Mahdi, que será o último imã profeta islâmico que
virá governar o mundo e derrotar os inimigos dos que servem a Alá. Alguns
xiitas acreditam que o Mahdi retornará durante um período de grande revolta
na Terra. Assim, por exemplo um dos principais clérigos iranianos, Ali Reza
Banahyan, afirmou que o coronavírus provocaria o retorno do Madhi. Também
o xeique saudita Saleh Al-Maghamsi disse num programa de televisão que o
vírus era uma mensagem de que o “dia do julgamento” estava perto.
Nas igrejas evangélicas alguns líderes religiosos fundamentalistas
afirmaram que ao falar de guerras, terremotos e pestes em vários lugares, Jesus
Cristo profetizou, segundo o evangelho de Mateus (24,7) sobre uma série de
acontecimentos, que deviam ocorrer até ao último Grande Dia do Senhor, que
seria a sua segunda vinda. Antes disso, portanto, o mundo viveria diversos
acontecimentos numa escala de intensidade, onde quanto mais próximo
ficássemos da vinda de Cristo, maiores seriam os sinais da sua vinda. Assim, a
pandemia do coronavírus seria um exemplo desses grandes acontecimentos.
Alguns líderes religiosos analisaram qual seria a relação do coronavírus
com o que a Bíblia diz sobre os últimos dias vividos na Terra, antes da segunda
vinda de Cristo, e portanto com o fim do mundo. Um desses líderes religiosos foi
por exemplo o pastor brasileiro Lamartine Posella, presidente da Igreja Batista
Palavra Viva, na cidade de São Paulo, que gravou um vídeo para dar uma
mensagem de alerta aos cristãos que, segundo ele, vivem como “mornos”, assim
como para os não cristãos. “A Bíblia diz que as pessoas no tempo da vinda de
Jesus não estariam nem aí, elas iriam continuar as suas vidas. Adiciona-se a isso
o facto de estarmos vivendo em tempos de blasfémia. Eu creio que essa
blasfémia está enchendo o pote, e daqui a pouco Deus vai derramar a sua ira
sobre a Terra”, declarou o pastor. O aparecimento de doenças como o
coronavírus faz parte dos sinais dos últimos tempos. “Jesus está voltando. Isso
tudo tem a ver com as profecias, nas quais Ele disse que estas coisas
antecederiam a Sua volta”, concluiu o pastor.
Igualmente no Brasil, também o bispo da Igreja Universal do Reino de
Deus (IURD), Edir de Macedo, encarou a pandemia do coronavírus como um
prenúncio do fim do mundo. “As pestes ou epidemias que durante séculos
ceifaram a vida de milhares de pessoas em várias partes do planeta serão mais
frequentes. Nós temos visto isso nos nossos dias, pois até mesmo doenças que
eram consideradas erradicadas têm ressurgido em algumas partes do mundo,
deixando as nações em estado de alerta”, disse o Bispo Edir Macedo, no seu
comentário na Bíblia Fiel Comentada, em comemoração dos 40 anos da Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD). “Da mesma forma que as dores de uma
mulher se intensificam, à medida que o parto se aproxima, o crescente aumento
dos enganos, das guerras, da fome, das pestes e dos terremotos mostra que a
Humanidade está perto do fim. Todos esses eventos são apenas alguns sinais
que precedem a vinda do Senhor Jesus”, comentou ainda o bispo Edir Macedo.
Além destes líderes religiosos, outros líderes religiosos evangélicos
estabeleceram uma relação entre a pandemia do coronavírus e o fim do mundo.
São muitos os nomes desses líderes religiosos , uns pouco conhecidos, e outros
mais conhecidos, como os atrás referidos, que apresentámos como importantes
exemplos. Essas declarações proféticas não deram certo, pois o mundo
continua a existir, assim como também não deram certo as profecias sobre
quando a pandemia do coronavírus ia acabar.
Assim, por exemplo o pastor evangélico norte americano, Shawn Bolz, em
Março de 2020 profetizou sobre o coronavírus, alegando que chegaria ao fim em
breve. Também em 2020 pastor evangélico norte americano, Shawn Bolz,
declarou que o Senhor lhe mostrou para breve o fim do coronavírus. O
autoproclamado profeta TB Joshua declarou que o coronavírus deixaria de
existir até 27 de Março de 2020. Também Abhigya Anand, um adolescente
hindu que na Índia ganhou fama pelas suas previsões, declarou que 5 de
Setembro de 2020 seria o momento em que o coronavírus terminaria. Estes são
apenas alguns exemplos de profecias que não se cumpriram, assim como as
declarações sobre o fim do mundo.
16
Freeman, D., Waite, F., Rosebrock, L., Petit, A., Causier, C., East, A., Lambe, S. (2020). Coronavirus
conspiracy beliefs, mistrust, and compliance with government guidelines in England. Psychological
Medicine, 1–13.
Os bodes expiatórios estão muito ligados às teorias da conspiração, pois
estas são férteis em encontrar supostas pessoas ou grupos que os seus autores
culpabilizam de determinados males que atingem a Humanidade. Judeus,
chineses, etc., foram e são por isso um alibi de grupos religiosos radicalistas.
Essa visão negativa é uma espécie de busca de sentido para o desconhecido. Os
teóricos da conspiração, ao verem o mundo como caótico, malévolo, cheio de
injustiças e de sofrimentos sem sentido, sentem um pouco de conforto ao
pensarem que há alguém ou um determinado grupo que é, segundo eles,
responsável por tudo isso. Sendo o conluio relatado pelas teorias da
conspiração, geralmente encarado como hostil, essas teorias dão uma certa
tranquilidade aos que acreditam nelas, à semelhança do que acontece nas
crenças religiosas, pois as coisas passam a fazer sentido.
O conceito de bode expiatório tem uma origem religiosa. Conforme se
pode ver na Bíblia Sagrada, no livro do Levítico, os hebreus costumavam
organizar rituais que tinham como objetivo purificar a sua nação. Para isso
organizavam um ritual religioso com dois bodes. Através de um sorteio um dos
bodes era sacrificado juntamente com um touro, e os hebreus punham marcas
do seu sangue nas paredes do seu templo. O outro bode era transformado em
“bode expiatório”, tendo como função ritual carregar todos os pecados da
comunidade. Nesse instante, um sacerdote levava as mãos até à cabeça do bode,
para que este carregasse simbolicamente os pecados das pessoas. Depois disso o
bode era abandonado no deserto, para que os males que simbolicamente ele
representava ficassem bem longe.
Ao longo da História da Humanidade houve várias minorias ou grupos
que foram utilizados como “bode expiatório” de determinados males que
atingiram a Humanidade. Por exemplo, os judeus foram culpabilizados
pela peste negra e acusados de conspiração para liquidar os cristãos, e foram
considerados como a causa do castigo que Deus enviou através da peste. As
paranoias interpretativas e as teorias da conspiração desde sempre encontraram
um terreno muito fértil nas épocas de medo, como as das epidemias, e a peste
negra foi uma das mais importantes.
Devido ao alarmismo então surgido, o Papa Clemente VI, em 1348,
publicou duas bulas instruindo os cristãos a não responsabilizarem os judeus
pela peste que assolava a Europa. O Papa declarou que aqueles que os culpavam
teriam sido “seduzidos por esse mentiroso, o diabo”. Mesmo assim, esta atitude
do Papa não impediu o massacre dos judeus em 1348, no sul de França, na
Provença, e o massacre em Estrasburgo, em 1349, que matou centenas de
judeus.
Os judeus eram acusados de serem deicidas, isto é, de serem autores da
morte de Cristo, e essa culpabilização teve consequências na hostilidade de que
historicamente foram alvo, até mesmo os cristãos novos (antigos judeus),
hostilidade essa que aumentava durante os períodos das pestes. Por exemplo na
epidemia de 1506, na cidade de Lisboa, a população enfurecida transformou a
cidade em violências e atrocidades, levando à fogueira os judeus e cristãos
novos, culpabilizados pela epidemia, conforme se pode confirmar nos
documentos da época. 17
Segundo alguns autores (Bertrand Russell, Sigmund Freud, Karl Marx,
etc.), conforme referimos no capítulo anterior, a religião é baseada
fundamentalmente sobre o medo, o terror do desconhecido, o receio do
inexplicável, o pânico do misterioso, o pavor da derrota, o medo da morte, o
medo do Inferno, daí haver uma ligação com as teorias da conspiração. Há
visões radicais do ponto de vista político, entre elas as teorias da conspiração,
que integram elementos de discursos religiosos fundamentalistas, levando
conscientemente ou inconscientemente a fazer seus os discursos religiosos que
marcaram o passado, como por exemplo em relação aos judeus, perseguidos por
motivos políticos e religiosos, que viam neles uma ameaça oculta. Este é um dos
melhores exemplos em como, por um lado a política utilizava a religião como
pretexto, e por outro lado a religião utilizava também a política como pretexto.
17
Eduardo Freire de Oliveira “Carta Régia de 26 de abril de 1506”, Elementos para a Historia do
Municipio de Lisboa, Tomo I, Lisboa, Typographia Universal, 1887, pp.395-401.
O ENCERRAMENTO DOS TEMPLOS E DE
OUTROS LUGARES RELIGIOSOS
OS AJUNTAMENTOS RELIGIOSOS COMO UM DOS PRINCIPAIS
FOCOS DE PROPAGAÇÃO DO CORONAVÍRUS
18
Raul Glaber, Hist., VI, 4-5, II, 7, II, 11. In : Georges Duby, O ano mil, Lisboa, Ed. 70, p. 110.
aos pastores religiosos defendendo a manutenção dos templos abertos, indo
portanto contra as ordens dos Governadores dos Estados brasileiros.
Nos Estados Unidos da América alguns líderes evangélicos também
negaram a existência ou a gravidade do coronavírus e mantiverem os templos
abertos. Por exemplo, um pregador da Flórida, Rodney Howard-Browne, foi
mesmo detido pela Polícia por levar pessoas de autocarro para a sua igreja,
insistindo que a celebração religiosa neutralizaria o coronavírus. Dois dias mais
tarde, o governador do Estado, Ron DeSantis, incluiu as atividades religiosas
entre “os serviços essenciais” que poderiam continuar abertos apesar do
encerramento de outros serviços. Em pelo menos dez estados norte americanos,
inicialmente, as celebrações religiosas continuaram a realizar-se.
Na religião judaica, os ultraortodoxos também contestaram muito o
encerramento dos templos. Por exemplo em Israel, Chaim Kanievsky, um dos
rabis ultraortodoxos mais respeitados, recusou-se a encerrar as sinagogas e os
seminários religiosos. Também em Israel, na fortaleza haredi de Bnei Brak, os
crentes insistiram em reunir-se para as orações, os casamentos e os funerais,
desafiando o encerramento das sinagogas e agravando as tensões entre os
haredim e o Estado israelita.
No que diz respeito aos países muçulmanos, o encerramento dos templos
foi também mal aceite, pois foi considerado uma ofensa aos crentes, e até
mesmo uma blasfémia contra Deus. Muitos crentes e alguns líderes religiosos,
através das redes sociais, incitaram à desobediência para com o encerramento
dos templos. Na Arábia Saudita, uma das maiores contestações aconteceu
devido ao encerramento da Kaaba, na Grande Mesquita na cidade de Meca, que
é considerada pelos devotos do Islão como o lugar mais sagrado da religião
islâmica. Os pregadores islâmicos recordaram que depois do profeta Maomé até
aos nossos dias nunca a Kaaba tinha sido sujeita a uma interdição de acesso aos
muçulmanos, e consideraram esse encerramento como uma infâmia. No Irão,
um dos primeiros países do mundo que foram atingidos pelo coronavírus, as
autoridades religiosas criticaram também o poder político, devido à sua decisão
de suspender as peregrinações aos lugares sagrados, de que um dos maiores
exemplos foi o da cidade sagrada de Qom, suspensão essa que foi criticada como
demasiado rigorosa. Ainda no Irão, fiéis xiitas lamberam um símbolos sagrado
numa mesquita de Fatima Masumeh, na localidade de Quom, e lamberam
também o portão de entrada dessa mesquita, defendendo através desse gesto
que o coronavírus não atingia as mesquitas xiitas.
Na religião hindu, na Índia, na cidade de Ayodhhya, que é considerado o
lugar de nascimento de Rama, um dos avatares do deus Vishnu, e que portanto
é um lugar muito importante do ponto de vista religioso, as autoridades
indianas tentaram evitar as celebrações religiosas a esse deus hindu, mas houve
muitas resistências por parte dos fiéis, que só muito lentamente acataram as
restrições impostas pelas autoridades.
Houve mesmo alguns casos em que não foram apenas os crentes e os
líderes religiosos que contestaram o encerramento dos templos, mas também os
próprios políticos. Assim, além do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, por
exemplo na Tanzânia, apesar da limitação de ajuntamentos sociais, o presidente
John Magufuli exortou os crentes a visitarem as igrejas e as mesquitas, para
expulsarem o coronavírus através da oração.
Os crentes, os políticos e os grupos religiosos, contestatários e
desobedientes ao encerramento dos templos e de outros lugares religiosos,
consideraram esse encerramento como um radicalismo das autoridades
sanitárias, e aproveitaram para pôr em questão a supremacia do Estado sobre a
religião em tempo de crise, contestando a supressão das celebrações, apesar
desta ser temporária, como se a instituição eclesial pudesse situar-se acima das
leis e das autoridades, não recebendo ordens de ninguém. Alguns aproveitaram
para fazer política, contestando os Governos e as suas ideologias políticas,
usando como pretexto o encerramento dos templos.
Houve também abusos de poder por parte das forças policiais, que
irromperam pelos templos adentro, em plenas celebrações, e mandaram-nas
parar repentinamente, apesar de em alguns países, como em França, onde isso
também aconteceu, a polícia estar proibida de entrar, sem ser em casos de
terrorismo. Alguns dos contestatários acusaram os Governos e as forças
policiais de radicalismo, devido à atuação violenta das forças policiais. No
entanto, o radicalismo também existiu em grupos religiosos mais fanáticos,
principalmente os evangélicos ultraconservadores e os radicais islâmicos, que
se recusavam radicalmente a encerrar os templos
A igreja católica acatou com maior naturalidade o encerramento dos
templos, e Portugal foi um dos melhores exemplos, pois a Conferência
Episcopal Portuguesa decidiu suspender as celebrações presenciais, sendo
incentivada como alternativa a assistência às celebrações religiosas através da
Internet e da Televisão. No dia 13 de Março de 2020 a Conferência Episcopal
Portuguesa emitiu um comunicado para o encerramento dos templos, tendo
feito isso mesmo antes da declaração do estado de emergência. No dia 13 de
Novembro de 2020, em período de novo estado de emergência, a Conferência
Episcopal Portuguesa voltou a emitir um comunicado, apelando a todos os fiéis
que respeitassem as normas das entidades sanitárias. Nesse comunicado a
Conferência Episcopal Portuguesa apresentou uma lista de múltiplas formas,
alternativas, para viver a celebração eucarística.
No entanto, acabaram por surgir também algumas contestações dentro
da Igreja católica, em relação às restrições impostas às celebrações religiosas.
Em Portugal um dos exemplos mais polémicos surgiu a propósito da
contestação à manifestação do 1º. de Maio de 2020, organizada pela CGTP em
Lisboa. Vários sacerdotes demonstraram publicamente o seu desagrado,
durante a celebração da missa, e através das redes sociais, para com a
comemoração do 1º. de Maio. Na sua grande maioria a crítica dos sacerdotes
tinha a ver com o facto da celebração do Dia do Trabalhador ter sido autorizada
e as cerimónias religiosas permanecerem proibidas. Por exemplo, entre os
líderes religiosos católicos, D. Nuno Almeida, bispo auxiliar da Arquidiocese de
Braga, partilhou no Facebook um texto da autoria do cónego João Aguiar. Nesse
texto, o cónego afirmou que as medidas adotadas pela Igreja Católica foram
levadas a cabo com “grande sofrimento interior”, pois segundo o cónego
“qualquer domingo não é, para o católico, menos que o 25 de abril ou o 1.º de
Maio para o normal cidadão”. Vejamos mais em pormenor as justificações das
contestações, no capítulo que se segue.
Na Bíblia Sagrada, Jesus Cristo diz o seguinte : “E, quando orardes, não
sejais como os hipócritas, pois que apreciam orar em pé nas sinagogas e nas
esquinas das ruas, para serem admirados pelos outros. Com toda a certeza vos
afirmo que eles já receberam o seu galardão. Tu, porém, quando orares, vai
para o teu quarto e, após ter fechado a porta, ora a Teu Pai em segredo; e Teu
Pai, que vê num lugar oculto, te recompensará” (Mat., 6, 5-6).
No entanto, não é isso o que acontece com a grande maioria dos crentes,
pois preferem rezar dentro dos templos, e praticam muito a sua crença religiosa
única ou quase exclusivamente dentro dos templos. Porque será que isso
acontece?
O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) foi o grande estudioso
dos fenómenos sociais, e mostrou-nos que mesmo os sentimentos ditos pessoais
têm um significado social, e com consequências inevitáveis no espaço público.
Este autor prestou uma atenção especial à religião. Segundo Durkheim, é
próprio da religião estabelecer uma força externa, separada, impessoal,
prescritiva e vinculativa, que não é senão a transfiguração da sociedade à qual
pertencem originariamente essas qualificações. A lei divina é uma reprodução
da lei social, o seu reforço e a afirmação da autoridade dessa mesma lei social, é
da própria essência da sociedade que deriva a religião. Para Durkheim a religião
é o fato social fundamental, fonte de todos os outros, é na própria religião que
reside a moralidade da sociedade, e por outro lado, é nas necessidades da
sociedade que se cria a religião. Este autor resume estas suas ideias através da
seguinte forma:
"A conclusão geral do livro que se vai ler é que religião é uma coisa
eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas
que exprimem realidades coletivas; os rituais são maneiras de agir que se
originam dentro de grupos organizados e que são destinadas a suscitar, a
manter ou a refazer determinados estados mentais desses grupos".19
A religião é inseparável dos templos e de outros lugares religiosos, como
este autor mostra também neste seu livro. Não se pode dizer que um pessoa
pode praticar a sua religião somente se a praticar em sua casa, pois a prática
religiosa é muito dependente das instituições, e para além dos ajuntamentos dos
crentes dentro dos templos para certas celebrações (missas, por exemplo), há
ainda uma série de cerimónias religiosas públicas (procissões na rua, por
exemplo), mesmo nas religiões menos numerosas, que mostram bem por um
lado o seu caráter institucional e por outro lado a sua ligação ao espaço público.
19
Émile Durkheim, Les formes élémentaires de la vie religieuse, Paris, Ed. CNRS, 2007, p. 48.
As coisas que se devem proteger como sendo um assunto da vida privada, como
por exemplo as convicções religiosas, não são tão privadas quanto isso, pois são
afinal um fenómeno social que está bastante ligado ao espaço público dos
templos. A sua visibilidade é por vezes intensa, e está presente no dia a dia dos
indivíduos, mesmo indiretamente, no caso dos não crentes, como por exemplo
as já referidas procissões religiosas, em plena rua.
A contestação e a recusa do encerramento dos templos teve também a ver
com a desconfiança para com as intenções dos Governos e das instituições,
políticas ou científicas. Os Governos e as instituições foram suspeitos de
encontrar na pandemia um pretexto para conter ou proibir a expressão pública
de sentimentos religiosos, e de limitar o direito à liberdade religiosa. As
medidas tomadas contra a pandemia, pelo menos nas atividades religiosas, por
vezes foram interpretadas como sendo um instrumento ao serviço da
secularização, e como tendo sido realizadas mais por razões políticas do que
sanitárias. Em alguns casos os crentes e os líderes religiosos encararam mesmo
o encerramento dos templos como uma forma de perseguição religiosa, e como
um atentado contra o direito à liberdade religiosa, pois enquanto alguns
edifícios públicos continuaram abertos, os templos foram encerrados.
Mas mais do que a preocupação com o direito à liberdade religiosa, ou
com as razões políticas, o carater social das religiões foi o pano de fundo causal
da contestação e da recusa do encerramento dos templos. Um dos motivos mais
importantes que estiveram subjacentes à contestação e à recusa de
encerramento dos templos é a socialização que a frequência dos templos
proporciona, pois muitos indivíduos encontram neles formas de convívio,
nomeadamente no final das celebrações. Estas são encontros em que os crentes
necessitam também de se verem uns aos outros e de conversarem, e alguns
participam em atividades sociais ligadas à igreja (grupos de partilha e discussão
da fé, cursos bíblicos, grupos de escuteiros, o envolvimento em obras sociais da
Igreja, a participação em grupos corais, a frequência da catequese, etc.).
Encontrar-se com outras pessoas, na missa, noutras celebrações religiosas e nas
atividades sociais da igreja, permite aos crentes encorajarem-se mutuamente. A
integração no grupo religioso e nessas atividades faz com que as pessoas se
sintam menos sós e reforça o sentimento de pertença social, e tudo isso foi
interrompido durante as semanas de confinamento.
Outra das causas da contestação e da recusa de encerramento dos
templos e outros lugares religiosos é o consolo espiritual que a frequência das
celebrações religiosas proporciona aos crentes. A religião é promotora de
suporte emocional, espiritual e psicológico para muitas pessoas, por isso para
muitas foi duro e inaceitável o encerramento dos templos, principalmente numa
época de sofrimento psicológico como o da pandemia, em que muitas pessoas
sentiam mais necessidade de recorrerem a Deus. Para os crentes a religião é
importante nas suas vidas, para alguns é mesmo bastante importante, e o
envolvimento nas celebrações religiosas proporciona-lhes experiências positivas
e enriquecedoras. Para os frequentadores habituais das celebrações religiosas
estas ajuda-os a enfrentarem muitos problemas, e em alguns casos a
recuperarem da doença física e psicológica. Existe mesmo uma relação entre o
nível de envolvimento religioso e a saúde, pois em muitos casos existe uma
melhoria do bem estar, e uma diminuição da ansiedade e da depressão. A oração
individual mas também coletiva, neste caso as celebrações religiosas nos
templos e noutros lugares religiosos, dão a muitos indivíduos grande conforto
espiritual, por isso muitos não acataram o encerramento dos templos religiosos.
Alguns continuaram a mantê-los abertos e a frequentá-los, embora depois
tivessem de os encerrar, enquanto outros os frequentaram clandestinamente.
Oficialmente os templos estavam encerrados, mas houve alguns crentes,
nomeadamente os de religiões minoritárias (por exemplo as Testemunhas de
Jeová) que continuaram discretamente a frequentá-los, deixando a porta
principal encerrada mas entrando por outras portas, ou entrando pela porta
principal e depois voltando a fechá-la.
Outra causa da contestação foi a crença de alguns indivíduos de que
continuarem a reunir-se dentro dos templos, apesar das proibições, era um teste
para a sua fé. Implicitamente ou explicitamente, aqueles que se continuaram a
reunir nos templos, apesar de tudo, estavam convencidos de que estavam a
demonstrar a sua força e a sua firmeza em relação a outros crentes que
consideravam fracos, tímidos ou mais preocupados com outros compromissos
que viam como mais importantes. Essa razão para querer continuar a manter os
templos abertos e a frequentá-los esteve também ligada à crença de que Deus
tem o controlo de tudo, que o nosso destino não está nas nossas mãos, e que
devemos entregar tudo nas mãos de Deus. A crença de que a fé pode proteger
do coronavírus ou que o grupo religioso tem as ferramentas espirituais para
prevenir e curá-lo se necessário, foi um dos fatores para que alguns líderes
religiosos tivessem continuado com os templos abertos, e que outros tivessem
contestado o seu encerramento. Pareceu estranho a muitos, e em alguns casos
contraditório, o facto dos templos habitualmente abrirem precisamente para
atos curativos, como por exemplo na Igreja Universal do Reino de Deus, e
terem fechado devido ao coronavírus, que portanto os pastores não podiam
curar.
Há também a salientar, em alguns casos, os fatores económicos que estão
por trás das recusas em encerrar os templos religiosos, pois foi como encerrar
uma empresa, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e de
algumas igrejas evangélicas, que obtêm muito dinheiro nos peditórios efetuados
durante as celebrações religiosas. Alguns pastores e outros líderes religiosos
viram-se privados dessas receitas, e algumas igrejas ficaram sem recursos para
pagar despesas de manutenção, que vinham das doações dos fiéis durante as
celebrações religiosas, e foi também por esse motivo que contestaram o
encerramento dos templos.
Outro dos motivos foi o do dever de ir à missa. Em algumas religiões não
existe a obrigatoriedade de ir à eucaristia dominical, como existe na religião
católica. Apesar de na religião católica ter havido pouca contestação e recusa do
encerramento dos templos, em comparação com o que sucedeu na religião
muçulmana e nas religiões evangélicas de alguns países, como por exemplo no
Brasil, alguns católicos contestaram, com base nos documentos da Igreja. Na
religião católica todo o fiel praticante tem a obrigação de assistir à missa
dominical com base no terceiro mandamento da Lei de Deus: “Guardar
domingos e festas de guarda“, que se encontra nos Dez Mandamentos do livro
do Êxodo, 20, 3-17, na Bíblia, assim como no livro do Deuteronómio, 5, 7-21. O
Catecismo da Igreja Católica, nos artigos 2177-2182, fornece instruções precisas
sobre os domingos e festas de guarda, falando da obrigatoriedade dos católicos
irem à missa aos domingos e nas festas de guarda. Por exemplo, o artigo 2181
diz o seguinte : “A Eucaristia dominical fundamenta e sanciona toda a prática
cristã. É por isso que os fiéis têm obrigação de participar na Eucaristia nos dias
de preceito, a menos que estejam justificados, por motivo sério (por exemplo,
doença, obrigação de cuidar de crianças de peito) ou dispensados pelo seu
pastor. Os que deliberadamente faltam a esta obrigação cometem um pecado
grave”. O Código de Direito Canónico, no cânone 1247, diz também o seguinte :
“No domingo e nos outros dias festivos de preceito os fiéis têm obrigação de
participar na Missa”. Essa é portanto uma razão pela qual muitos católicos
sentem ser seu dever irem à missa todos os domingos, e devido à qual alguns
contestaram o encerramento dos templos.
22
“Reflexões morais sobre vacinas preparadas a partir de células derivadas de fetos humanos abortados,
Medicina e Moral. Centro de Bioética, Universidade Católica do Sagrado Coração, 2005, p. 15.
23
Idem, ibidem.
Pontifícia Academia para a Vida, reafirmou "o papel essencial das vacinas na
derrota da pandemia, não apenas para a saúde individual, mas também para
proteger a saúde de todos".
Por seu turno o Papa Francisco criticou os que se opõem à vacinação,
dizendo que é uma “negação suicida”, e deu o seu próprio exemplo, fazendo-se
imediatamente vacinar contra o coronavírus. Esta sua atitude não foi uma
novidade em relação às vacinas, pois já alguns anos atrás, quando visitou o
México, o Papa Francisco tinha liderado uma campanha de vacinação contra a
poliomielite.
Sobre a vacina contra o corona vírus o Papa Francisco deu uma entrevista
à estação de televisão italiana Canale 5, transmitida no dia 9 de Janeiro de
2020, em que declarou : “Acredito que do ponto de vista ético, todos devemos
ser vacinados. É uma escolha ética, pois o que colocamos em risco é a nossa
saúde, a nossa vida, mas também a vida dos outros”. Todos os funcionários do
Vaticano foram vacinados contra o coronavírus, e além do Papa Francisco
também foi vacinado o Papa emérito Bento XVI.
No entanto permanecem as resistências religiosas contra as vacinas, no
seio de outras Igrejas cristãs. Por exemplo os seguidores da igreja Christian
Science (“Cientistas Cristãos”) criada nos Estados Unidos em 1892, defendem
que todas as doenças devem ser curadas apenas com orações, e opõem-se
também às vacinas. Em alguns casos os membros desta Igreja gozam
claramente de um privilégio em nome do direito à liberdade religiosa, como por
exemplo na Austrália. Em 1 de janeiro de 2016, a Austrália introduziu uma
legislação que retirava cuidados infantis e benefícios assistenciais se os pais se
recusassem a vacinar os seus filhos. A Christian Science da Austrália foi
autorizada a recusar a vacinação por motivos religiosos, por isso não foi afetada
pelas novas regras do Governo Federal que retiravam os benefícios sociais aos
que boicotassem programas nacionais de vacinação.
A atitude desta comunidade religiosa remonta à década de 1870, quando
a Igreja Ciência Cristã - também conhecida como Igreja de Cristo Cientista -
foi fundada pela líder espiritual norte americana Mary Baker Eddy. Para esta
Igreja as questões de saúde são extremamente importantes, e ocupam um lugar
especial nas suas atividades religiosas. Além da Bíblia Sagrada, o principal texto
religioso desta igreja é um livro de Eddy, originalmente intitulado Ciência e
Saúde, que explora a ligação entre a Bíblia, principalmente os milagres de
Jesus, e os benefícios das orações para a cura, e por conseguinte também para
as doenças causadas por vírus. Mas será que as orações podem ser uma
alternativa às vacinas, e são eficazes contra o coronavírus ? é o que veremos
seguidamente.
O RECURSO ÀS ORAÇÕES
ORAÇÕES CONTRA O CORONAVÍRUS
26
Papa Paulo VI, Constituição Apostólica Indulgentiarum Doctrina, 1 de Janeiro de 1967, artigo 8.
orações em sufrágio por elas, em especial o sacrifício eucarístico. Eles também
os ajudam dando esmolas, indulgências e obras de penitência”. 27
Durante a Peste Negra, que atingiu a Europa na Idade Média, muitas
pessoas compraram indulgências à Igreja católica, para obterem perdão pelos
seus pecados, e para que ao falecerem da peste não fossem para o Inferno. A
venda de indulgências cresceu em importância depois do Papa Bonifácio VIII
ter emitido a primeira indulgência do Jubileu em 1300. Por seu turno, o Papa
Clemente VI, em 1343, concedeu à prática da venda e compra de indulgências
uma autoridade teológica, através de um decreto em que declarou
explicitamente que o fiel podia negociar “uma quantidade ou valor fixo de
dinheiro” para “intercessão” da Igreja em nome de parentes mortos no
Purgatório.
Nos tempo de hoje continua a haver a prática das indulgências. A
Penitenciária Apostólica, no Vaticano, no dia 20 de Março de 2020 concedeu
indulgência plenária às pessoas afetadas pelo coronavírus. Além disso, aqueles
que não puderam receber o sacramento da unção dos enfermos, principalmente
os afetados com o coronavírus, receberam uma indulgência plenária pela
recitação de orações, especialmente o terço da Divina Misericórdia. Conforme
afirma o respetivo decreto do Vaticano “esta Penitenciária Apostólica também
concede voluntariamente uma Indulgência Plenária sob as mesmas condições
por ocasião da atual epidemia mundial, também aos fiéis que oferecem uma
visita ao Santíssimo Sacramento, ou adoração eucarística, ou à leitura das
Escrituras Sagradas por pelo menos meia hora, ou à recitação do Santo Rosário,
ou ao exercício piedoso do Caminho da Cruz, ou à recitação do terço da Divina
Misericórdia, para implorar a Deus Todo-Poderoso o fim da epidemia, alívio
para aqueles que são aflitos e a salvação eterna para aqueles a quem o Senhor
chamou a si mesmo.”
Isso permitiu que os católicos obtivessem perdão pelos seus pecados, e
também que os que faleceram devido ao coronavírus ficassem perdoados. Note-
se que segundo o texto do decreto do Vaticano sobre a pandemia, essas orações
também tiveram como objetivo “a salvação eterna para aqueles a quem o Senhor
chamou a si mesmo”. A diferença em relação ao tempo da Peste Negra é que
27
V.V., Catecismo da Igreja Católica – Compêndio, Coimbra, Ed. Fundação Secretariado Nacional de
Educação Cristã, 2005, p. 27.
agora a indulgência foi concedida a todos os indivíduos, perdendo a indulgência
a sua validade no caso dos que, por não terem falecido devido ao coronavírus,
voltassem a pecar. Outra característica digna de destaque desta indulgência,
comparada com as indulgências de antigamente, é que esta foi uma
indulgência grátis.
Ainda assim, houve pessoas que faleceram devido ao coronavírus que
deixaram dinheiro para que rezassem missas por elas, assim como pessoas que
ao longo da História têm morrido com outros problemas de saúde, e que eram
ricas. Muitas pessoas faleceram na crença de que os seus familiares, ou
instituições a quem deixaram o seu dinheiro, rezariam pelas suas almas presas
no Purgatório. Houve também pessoas que não pediram que se mandasse
celebrar missas pela sua alma, mas a sua família mandou-as celebrar, e em
grandes quantidades de missas, devido ao facto de serem ricas.
Há aqui a suposição da parte dos que dispõem o seu dinheiro nesse
sentido, de que não vão para o Inferno e que aguardam para irem para o céu,
através de orações. Por outro lado, as orações pelas pessoas que morreram do
coronavírus, conforme já salientámos, só podem ser pelas que foram para o
Purgatório, deixando muitas outras de fora, não valendo de nada rezar por elas.
A preocupação em se rezar pelas almas dos que morreram devido ao
coronavírus é também uma espécie de privilégio que se concede a essas almas,
comparadas com as outras almas que estão no Purgatório. As orações deviam
ser pelas almas dos que estão no Purgatório, e não por determinadas almas que
estão no Purgatório, isto é, as que morrerem do covid 19.
Se, conforme a doutrina das orações pelos que faleceram, as orações
beneficiam as pessoas que faleceram, retirando-as do Purgatório, ou diminuem
o tempo de permanência nele, as pessoas que deixaram muito dinheiro para se
mandar celebrar missas por elas, ou cujas famílias são ricas e o fizeram, estão
em vantagem. Essas pessoas beneficiaram ou vão beneficiar do Céu devido ao
seu poder económico ou ao das suas famílias, deixando em desvantagem os que
são pobres, pois não tiveram ninguém que rezasse por eles ou que mandasse
dizer missas por eles. Isso é injusto, pois muitos pobres não têm culpa de serem
pobres, e portanto as pessoas que vão para o céu não deviam ser beneficiadas
por terem dinheiro para se mandar rezar missas por elas.
OUTROS PROBLEMAS DAS ORAÇÕES
28
Oral Roberts; G. H., Montgomery, God's Formula for Success and Prosperity, Ed. Abundant Life
Publication, 1966; Gordon Lindsay, God's Master Key to Prosperity. Ed. Christ for the Nations Institute,
1960; Bruce Wilkinson; David Kopp, The Prayer of Jabez: Breaking Through to the Blessed Life, Ed.
Multnomah Books, 2000; Joel Osteen, Your Best Life Now: 7 Steps to Living at Your Full Potential, Ed.
FaithWords, 2004.
para o alterar. O plano de Deus não pode ser mudado por uma oração, se não,
Deus não sabia de tudo. Mas se Deus sabia, dado que sendo Deus sabe de tudo,
e previa que ia ser mudado, a oração não muda nada, pois a mudança já estava
prevista por Deus.
Se Deus envia ou permite que haja pandemias, para quê fazer-lhe
pedidos? para o fazer mudar de atitude ? A Bíblia diz que Deus não muda de
atitude (Malaquias, 3,6; Lucas, 21, 23; Tiago, 1, 17), e que não se arrepende do
que faz (I Samuel, 15:29; Num., 23:19; Ex., 24 : 14;). “O Seu propósito não
pode ser frustrado, pois o Seu conselho é eterno” (Salmo 33:11). “Muitos
propósitos há no coração do homem, mas o conselho de Deus permanecerá”
(Provérbios 19,21). “O Senhor dos Exércitos jurou, dizendo: Como pensei, assim
sucederá, e como determinei, assim se efetuará” (Isaías 14,24). “Mas, se ele
resolveu alguma coisa, quem então o desviará? O que a sua alma quiser, isso
fará” (Jó, 23,13).
Deus já determinou tudo à partida, na sua eternidade e na sua
imutabilidade. Deus é a imutável causa primeira de todo o movimento, que não
pode de maneira nenhuma ser mudado por uma causa exterior, neste caso o ser
humano. A doutrina da imutabilidade de Deus encontra-se em Aristóteles, em
Platão e em São Tomás de Aquino. Deus é definido como um ser sobre o qual o
ser humano não pode ter nenhuma influência, pois querer ter influência sobre
Deus seria uma forma de impiedade, de insurreição contra Ele. Se os desígnios
de Deus estão estabelecidos de maneira imutável desde toda a eternidade, então
Deus não pode reagir nem mudar a propósito do que fazemos ou sentimos, nem
responder aos pedidos que lhe fazemos. Não tem lógica pensar que Deus faz
algo devido ao facto de lhe pedirmos para o fazer. Deus é perfeito, e o que faz ou
permite está bem feito, dado que é Deus, por isso se lhe pedimos para mudar o
que ele criou ou permite que assim seja, Deus ou estava errado ou não eram
perfeitos os seus desígnios.
A imutabilidade de Deus faz com que Ele não esteja constantemente a
mudar aquilo que fez, estabeleceu ou permitiu, à mercê das orações que lhe são
feitas, se não aquilo que Deus fizesse e desfizesse dependeria de nós. Então, ele
não seria mais Deus, mas sim um Ser cuja ação estaria dependente do que lhe
dissessem e pedissem, daquilo que cada um quereria, daquilo que cada um
desejaria que ele fizesse e desfizesse, como se Deus não o soubesse ou não o
pudesse fazer sem as nossas orações. Deus seria então demasiado versátil, frágil,
e quando atenderia para mudar os acontecimentos que ele comanda, rege ou
permite, Deus daria o seu dito por não dito.
No caso de ter sido Deus que enviou as doenças, conforme alguns crentes
acreditam, é contraditório atingir uma pessoa pela doença para depois a curar,
e além de contraditório é injusto, pois apesar de todos sermos filhos de Deus, só
cura aqueles que lhe pedirem, e entre as pessoas que lhe pedem só atende a
umas e a outras não.
No caso de ter sido Deus que enviou as doenças, não tem sentido enviar
as doenças, dado que Deus, que tudo sabe por ser Deus, já sabia que num futuro
teria de curar as pessoas, a não ser que Deus enviasse as doenças para as
pessoas lhe pedirem para as curar, o que revela que Deus tem necessidade de
que as pessoas lhe peçam coisas, e tendo essa necessidade (no caso de ter
enviado as doenças para as pessoas lhe fazerem pedidos), um Deus com
necessidades não é Deus, pois se é Deus basta-se a si próprio.
Na Bíblia o centurião pede a Jesus que cure o seu crido. Jesus disse ao
centurião : “Dado que acreditaste, assim será feito. E o seu criado ficou curado
naquela mesma hora” (Mateus, 8, 13). O requisito fundamental para que Deus
atue para ajudar as pessoas é que essas pessoas creiam, confiem ou o adorem
exclusivamente a ele, ou seja, Deus só dá em determinadas condições : a pessoa
pede auxílio a Deus, e este atua dizendo : “dado que acreditaste, faço a cura”.
Apesar da sua omnisciência e da sua omnipresença, Deus precisa que lhe
peçam, e só atua em troca de súplicas e orações. Ora, se Deus atua, só atua
algumas vezes, pois muitos crentes que lhe dirigiram orações fervorosas
também por causa do coronavírus, de nada lhes valeu, pois morreram na
mesma, enquanto muitos indivíduos que não rezaram e que portanto não lhe
pediram nada, continuaram e continuam vivos.
Para o budismo, o hinduísmo e outras religiões orientais, o sofrimento
deve-se aos pecados cometidos pelo indivíduo na sua vida anterior. O
sofrimento que esses indivíduos atravessam permite-lhes trabalhar o seu
Carma. Se a cadeia de causas não pode ser alterada, todo o esforço visando
alterar as coisas (as doenças, por exemplo) é um esforço inútil, e procurar
anular o sofrimento, que segundo as religiões orientais é necessário para
purificar o Carma, iria atrasar ou parar o processo de purificação. Sendo assim,
de nada valia pedir para que o coronavírus não atingisse as pessoas e que não
lhes causasse sofrimento, e portanto também nas religiões orientais não tem
sentido rezar para o individuo não ser infetado ou para que deixe de estar
infetado, ou para que não morra do coronavírus.
CHARLATANISMO RELIGIOSO E
PRÁTICAS SUPERSTICIOSAS CONTRA O
CORONAVÍRUS
SOLUÇÃO MINERAL MILAGROSA
ÁGUA CONSAGRADA
SEMENTES DE FEIJÃO
30
Fonte da notícia: jornal Observador – https://observador.pt/2020/08/15/covid-19-bispo-atribui-
inexistencia-de-obitos-na-madeira-a-nossa-senhora-do-monte/
sabia que a qualquer momento a situação podia-se alterar, como aconteceu com
o aumento inesperado de mortes em várias regiões do país, por isso na sua
mensagem o bispo afirmou também o seguinte : “poderá acontecer que, nos
tempos futuros, sucedam mortes ou uma qualquer outra desgraça causada ainda
por esta pandemia que teima em não desaparecer”. Devemos então questionar
qual o significado da intenção divina no caso de haver mais mortes na ilha da
Madeira, causadas pelo coronavírus : Nossa Senhora do Monte deixou de ouvir?
Isso significa que a fé do bispo e da população diminuiu ou se extinguiu? Isso
significa que outras “forças” superiores às de Nossa Senhora do Monte, que
podem mais do que ela, terão atuado? Isso significa que Nossa Senhora do
Monte abandonou os seus fiéis ?
O bispo da Madeira também disse que era “importante agradecer as
graças recebidas no controlo da pandemia”, considerando que Nossa Senhora
do Monte teve influência no controle da pandemia. O bispo ao dizer que não
havia então nenhuma morte na Madeira, ignorou os cento e trinta infetados que
nessa ocasião havia nessa ilha (números de Agosto de 2020). Se Nossa Senhora
do Monte pôde evitar mortes, porque não evitou que as pessoas ficassem
infetadas ?
Na mesma celebração em honra de Nossa Senhora do Monte, mas uns
pouco anos atrás, no dia 15 de Agosto de 2017, um enorme carvalho centenário
caiu sobre as pessoas que aguardavam a passagem do cortejo religioso,
causando treze mortos e cinco dezenas de feridos. Porque é que então Nossa
Senhora do Monte não protegeu os seus fiéis, e sobretudo numa celebração que
lhe era dedicada ?
Porque razão Nossa Senhora do Monte intervém numas vezes e não
intervém noutras ? E se queria curar as pessoas porque as deixou adoecer ? e
porque curou do coronavírus ateus e pessoas que não iam à Igreja, enquanto
deixou morrer os crentes que foram vítimas da queda do carvalho na celebração
religiosa que eles faziam em sua honra ? se protegeu os madeirenses de modo a
não terem havido mortes, porque fez isso a uns a não a outros ? é que, passados
alguns meses depois das palavras do bispo, que atribuiu a Nossa Senhora do
Monte a ausência de mortes pelo coronavírus na ilha da Madeira, vieram a
morrer muitas pessoas também na ilha da Madeira em consequência do
coronavírus.
A “INTERVENÇÃO” DE DEUS NA VACINA CONTRA O CORONAVÍRUS
31
Citado pelo jornal eletrónico Portal católico, de 20 de Março de 2020. Artigo intitulado : “Que Deus
ilumine os cientistas para encontrar a vacina contra o coronavírus, pede Arcebispo”.
32
Citado pelo jornal eletrónico 180, em 8 de Janeiro de 2021. Artigo intitulado : “Vacina contra a covid
19 foi o maior desafio de 2020, avalia Themístocles Filho.
33
Fazale Rana, The Covid 19 Vaccines and God’s Providence (“As vacinas Covid 19 e a Providência de
Deus”), publicado no jornal eletrónico Reasons to believe (“Razões para acreditar”), de 23 de Dezembro
de 2020.
Alguns dos líderes e crentes defendem que não foi Deus que enviou o
coronavírus. Outros contradizem-se, pois defendem que Deus enviou o
coronavírus (como castigo), mas acreditam e defendem que Deus iluminou os
cientistas para estes descobrirem a vacina. Se o coronavírus foi a vontade de
Deus, os cientistas ao criarem a vacina não agiram contra a vontade de Deus ?
O problema aqui é semelhante ao da cura (independentemente da vacina), pois
se foi Deus que enviou o coronavírus, porque é que depois dá o dito por não
dito, e ilumina a mente dos cientistas para descobrirem a vacina para acabar
com o coronavírus ? Por um lado envia o coronavírus, e por outro lado envia a
inspiração para a vacina.
Teremos então de eliminar a hipótese de o coronavírus ter sido enviado
por Deus, e em vez disso aceitarmos apenas a hipótese de a vacina para o
coronavírus ter sido descoberta por iluminação de Deus na mente dos cientistas.
Há quem defenda que as descobertas dos cientistas, e não apenas a descoberta
da vacina para o coronavírus, têm Deus como origem. A Igreja hoje não afirma
que o conhecimento em si seja pecado, mas já o fez no passado, considerando-o
perigoso, pois podia conduzir ao orgulho do intelecto e, por conseguinte, ao
questionamentos sobre os dogmas religiosos. Algumas descobertas dos
cientistas, como por exemplo a de Galileu Galilei sobre o cosmos, que levaram à
teoria do heliocentrismo, e a de Charles Darwin sobre a origem do Homem, que
levaram à teoria do evolucionismo, contrariam a Bíblia (o geocentrismo, e a
criação do Homem por Deus), o que é portanto uma contradição com a crença
de que Deus está por trás das descobertas dos cientistas, a não ser que Deus,
através dos cientistas, negue aquilo que diz a Bíblia. Por outro lado, além de ser
um golpe na autoridade de Deus, é também um golpe na autoridade dos
cientistas, pois se soubéssemos por exemplo que Deus segredou os mistérios da
Física a Newton, este deixaria de ser um grande cientista para ser um impostor,
pois afinal não devia a si as suas descobertas mas sim a Deus.
A hipótese da inspiração divina não se coaduna com o facto de alguns dos
cientistas que fizeram parte das equipas de alguns dos países que
desenvolveram a vacina para o coronavírus, serem ateus, vacinas essas que
atingiram bons resultados, a não ser que Deus tenham sido indiferente ao facto
deles serem ateus, e os tenha inspirado na mesma, devido ao facto deles serem
bons cientistas. Mas Deus, no caso de existir, se admitirmos a hipótese de que
foi ele que inspirou a descoberta da vacina, falhou na inspiração dessa
descoberta, pois houve vacinas que resultaram e outras que não resultaram. Por
outro lado, mesmo as vacina adotadas oficialmente pela generalidade dos
países, as vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna, se foi Deus que as inspirou,
porque é que elas não são 100% eficazes ?
Se Deus está por trás da procura e da descoberta das vacinas, e dada a
imperfeição de algumas vacinas, pois algumas delas falharam, incluindo a
falibilidade das vacinas adotadas pela generalidade dos países, Deus inspirou
mal os cientistas, Deus é autor de uma inspiração imperfeita, e portanto Deus é
autor de coisas imperfeitas. Se Deus é autor de coisas imperfeitas Deus não é
perfeito, e se não é perfeito não é Deus.
Uma outra hipótese é a de Deus ter inspirado bem os cientistas, mas
alguns não terem dado ouvidos à sua inspiração, e a culpa não ser de Deus ao
inspirar os cientistas para a vacina, mas sim dos cientistas, que não seguiram
por onde Deus queria que eles seguissem. Falamos aqui do caminho a seguir do
ponto de vista científico, mas alguns crentes poderão também argumentar que
esses cientistas não receberam a inspiração divina devido aos seus pecados, ou
devido ao facto de serem ateus, mas alguns dos cientistas envolvidos nas
equipas de descoberta de vacinas eficazes também são pecadores, e alguns são
ateus, conforme dissemos. Independentemente dos cientistas serem ou não
crentes, para alguns crentes e líderes religiosos Deus está por trás da vacina que
resultou, e não das que falharam, pois Deus é Sabedoria e segundo esses crentes
Deus inspira os cientistas. Resta saber porque razão a inspiração resultou nuns
cientistas e não noutros, e ainda mais incompreensível é o facto de alguns deles
serem ateus, e de mesmo assim terem recebido uma inspiração divina.
Seja como for, no caso de ter sido Deus que inspirou a descoberta da
vacina (o que significa, portanto, que Deus não quer que as pessoas tenham o
coronavírus), não se entende porque razão Deus não age diretamente fazendo
com que as pessoas não fiquem infetadas, ou que recuperem “milagrosamente”,
em vez de agir através dos cientistas fazendo com que eles descubram a vacina.
No caso das pessoas que não ficaram infetadas, ou que ficaram infetadas mas
que recuperaram, alguns crentes afirmam que isso lhes aconteceu devido ao
facto de o terem pedido a Deus, mas no caso da vacina os cientistas não
pediram a Deus para a descobrirem, e descobriram a vacina na mesma.
Alguns dos meios utilizados nas vacinas, nomeadamente na vacina contra
a rubéola, são derivados de tecidos retirados de abortos terapêuticos realizados
na década de 1960, suscitando questões religiosas. Se é Deus que inspira as
vacinas, porque razão inspira os cientistas a fazerem vacinas que as religiões
condenam ? A gelatina de porco é um ingrediente que é usado para garantir a
estabilidade das vacinas de modo a que elas permaneçam seguras e eficazes
durante o seu armazenamento e transporte. Foram criadas várias vacinas, em
diferentes países. Ora, se foi Deus que inspirou a mente dos cientistas para
descobrirem algumas das vacinas que foram criadas para o coronavírus, porque
é que em algumas das vacinas os iluminou a fazerem uma vacina que contém
uma substância (gelatina de porco), cujo animal o próprio Deus proíbe que os
muçulmanos e os judeus consumam ? Será que há umas vacinas que são
inspiradas por Deus e outras não ? e como é que sabemos quais as que foram
inspiradas por Deus e as que não foram ? pelos ingredientes ? e se as que
contém ingredientes proibidos pelas religiões produzirem resultados positivos
para a saúde ?
Se foi Deus que inspirou os cientistas a descobrirem as vacinas, entre as
quais a vacina para o coronavírus, porque razão Deus não o faz também para
outros vírus e doenças ? porque razão Deus não inspira os cientistas a
descobrirem também uma vacina para a malária e uma vacina para o vírus do
HIV/Sida ? Haverá vírus e doenças de primeira e de segunda categoria ? A
malária afeta os países mais pobres do mundo, e mata milhares de pessoas em
vários países, incluindo muitas crianças, mas mesmo assim Deus não inspira os
cientistas a descobrirem uma vacina para a malária. Isso prova que Deus, se
existir, e que é suposto preocupar-se primeiro com os mais pobres, não é o
inspirador das vacinas, assim como no caso anteriormente referido, pois há
boas vacinas feitas com substâncias que algumas religiões dizem que Deus
proíbe. Assim como Deus não evitou que o coronavírus aparecesse e matasse
milhares de pessoas, também não interveio na vacina, e portanto a salvação do
problema ficou nas mãos do próprio ser humano.
34
Jaime Nogueira Pinto, Contágios – 2500 anos de pestes , Lisboa, Ed. Dom Quixote, 2020, p. 69.
O CORONAVÍRUS CONSIDERADO UM
CASTIGO DE DEUS
AS EPIDEMIAS E AS DOENÇAS COMO CASTIGO DE DEUS SEGUNDO
A BÍBLIA SAGRADA
35
Sudan Sontag, A doença como metáfora, Lisboa, Ed. Quetzal Editores, 2010, p. 76.
As hemorroidas foram também um castigo divino. A Bíblia diz que os
filisteus tomaram a arca da aliança e levaram-na de Ebenézer para Asdode. A
Bíblia diz que Deus resolveu ferir os filisteus com hemorroidas, e então eles
enviaram a arca da aliança para Gate, mas o problema agravou-se, pois o
destino teria que ser para o lugar de onde a arca nunca deveria ter saído, do
meio do povo de Israel. Além das hemorroidas atingirem os adultos, começaram
a atingir as crianças, pois a Bíblia diz que do menor ao maior dos seres humanos
todos haviam recebido esta enfermidade nas suas partes íntimas. Com a decisão
de não devolverem o bem mais precioso que Israel perdeu, os filisteus ainda
teimaram em enviar a arca para Ecrom, mas a praga das hemorroidas
continuou. Finalmente, ao consultarem os seus sacerdotes, os filisteus acharam
por bem devolver a arca da aliança a Israel, acompanhada de um holocausto
para expiação da culpa (I Sam., 5:1-12; 6:4).
São comuns as referências à lepra, às pestes, aos diferentes tipos de
doenças de pele, mas também às malformações e deformidades, com diversas
formas de deficiência física, havendo no Antigo Testamento também relações
entre a deficiência física e a vontade divina. Aí o próprio Deus declara-se o autor
da deficiência física, quando diz a Moisés: “Quem fez a boca do homem? Ou
quem faz o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou Eu, o Senhor?”
(Ex., 4:11). Atendendo às súplicas do profeta Eliseu, Deus castigou os sírios
através de cegueira (II Re., 6:18-19).
Passando ao Novo Testamento, verificamos na maior parte das curas a
necessidade de servir a Deus como forma de se manter livre das doenças, o
estabelecer de relações diretas entre a doença ou a deficiência física e o pecado,
assim como entre a cura da doença e o perdão divino. No evangelho de Lucas há
o relato da cura de um paralítico em Cafarnaum ligada ao perdão dos seus
pecados (Luc.,5, 20-24). Jesus ao fazer curas dizia às pessoas curadas que não
voltassem a pecar (a doença era encarada, portanto, como um castigo pelo
pecado). Segundo o evangelho de Mateus a epilepsia era causada pela possessão
demoníaca, e podia ser curada por um exorcismo (Mt., 17:14-18). A mesma
relação entre a doença e o pecado, e entre a cura e o perdão, é sublinhada no
evangelho de João. Aí, após ter curado um doente, Jesus disse-lhe que ele estava
curado mas que não devia voltar a pecar, para que não lhe acontecesse uma
coisa pior (Jo., 5:14). No Novo Testamento, em alguns casos, a doença era
também vista como um meio pelo qual se manifestavam as obras de Deus, para
o glorificar (Jo., 11:4). A epístola aos Coríntios diz também que a doença era um
castigo de Deus para que não se pecasse (2 Co., 12:7). Também a epístola do
apóstolo Tiago encara as doenças como consequência dos pecados (Tg., 6,
14:16).
Na Bíblia Sagrada existe também o aparecimento de pragas como sendo
um castigo de Deus : as dez pragas do Egito (Ex., 7:14); as pragas no incidente
do bezerro de Ouro (Ex., 32); a praga que acompanha a doação de carne de
codorniz no deserto (Núm, 11); a rebelião de Corá, Datã e Abirão, as suas
mortes e as pragas que se seguiram (Núm., 16); a murmuração do povo e a
consequente praga das serpentes venenosas (Núm. 21).
36
Santo Isidoro de Sevilha, Etimologias, I, Madrid, BAC, 1982, p.489.
37
Jacques de Voragine, La Légende Dorée, I, Paris, Ed. Garnier Flammarion, 1967, p.351.
as causas naturais", opinião partilhada pelo padre Francisco de Santa Maria
(1653-1713). Frei Luís de Sousa (1555-1632) na sequência de Santo Isidoro de
Sevilha, embora reconheça o caráter contagioso da doença, destaca que "nós os
que somos cristãos, e que damos a Deus (...) todo o governo e poder das coisas
humanas, a princípio mais alto devemos referir açoites tão horrendos." Para
Frei Francisco de Santiago (1692-1770) "a peste é um açoite da ira divina, e
entre todas as calamidades desta vida a mais cruel, e atrocíssima." O Padre
Baltazar Teles (15895-1675), referindo-se à epidemia de 1579, afirmou: "não há
dúvida de que este mal da peste é ordinariamente dado por Deus, em pena dos
pecados dos homens".Das doze causas da epidemia de 1569 apresentadas no
Breve sumário da peste, que segundo o seu autor anónimo foram juízos
correntes sobre o flagelo, onze especificam que eram um castigo divino,
enquanto só a última era devida a origens naturais : "cursos naturais e
influências dos ares". Frei Luís de Sousa, abordando o mesmo surto epidémico,
afirma que há largos anos que a cidade de Lisboa gozava de boa saúde, depois
do que "foi o Senhor servido de a visitar com um rigorosíssimo castigo de peste".
38
38
As obras dos autores aqui referidos são as seguintes : Frei Manoel da Esperança, História Seráfica,
segunda Parte, Lisboa, 1666, p.343; Padre Francisco de Santa Maria, Anno Historico, tomo Primeiro,
Lisboa, Domingos Gonsalves, MDCCXLIV, fol.106; Frei Luis de Sousa, Vida de D. Fr. Bertolameu dos
Martyres, tomo I, Lisboa, Typographia Rollandiana, 1857, pp.511-512; Frei Francisco de Santiago,
Chronica da Santa Provincia de N. Senhora da Soledade, tomo I, Lisboa, Ed. Officina de Miguel Manescal
da Costa, MDCCLXII, fol.319; P. M. Balthazar Tellez, Chronica da Companhia de Iesu, segunda parte,
Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1647, fol.198; Breue summario da peste que ouue em Lixboa o anno de 69 ,
Lisboa, Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de Reservados, Fundo Geral de Manuscritos, cod. 8571,
fols.LXX-LXXII; Frei Luis de Sousa, Terceira Parte da Historia de S. Domingos, Lisboa, Ed. Officina de
Antonio Rodrigues Galhardo, 1767, p.406. A tradução destas citações para Português contemporâneo é
de Victor Correia.
além da peste que a ninguém perdoava, apareciam os ares e campos coalhados
de gafanhotos."39
As epidemias, pragas, pestes, foram também descritas pelos clássicos da
literatura que viveram ou sofreram as suas consequências. Por exemplo
Giovanni Boccaccio (1313-1375), natural de Florença, cidade onde a Peste Negra
causou grandes danos, na sua obra Decameron contou a história de dez jovens
que durante a epidemia abandonaram a cidade, e que durante o seu
confinamento narraram uma série de contos licenciosos para esquecerem a
epidemia.40 Também o escritor inglês Geoffrey Chaucer (1343-1400), na sua
obra Os Contos de Cantuária, um conjunto de contos licenciosos, traça um
retrato da Inglaterra no tempo da Peste Negra.41 Esses escritores mostraram
bem como nesse tempo a peste era considerada pelos clérigos e pelo povo um
castigo de Deus. Esta conceção dos clérigos e do povo sobre a peste, existiu não
apenas na Idade Média mas ao longo dos séculos posteriores.
Mais próximo de nós no tempo, temos o escritor francês Albert Camus
(1913-1960). Embora este autor não tenha vivido durante um tempo de
epidemia, e embora não seja um autor religioso, antes pelo contrário, introduziu
na sua obra A Peste, como uma das principais personagens, o padre Paneloux,
para quem a peste era considerada um castigo de Deus para condenar aqueles
que se desviam do seu caminho : “Meus irmãos, vós caístes em desgraça, vós o
merecestes”. Nessa obra o padre Paneloux afirma também que esse sofrimento
salva o ser humano dos desvios por si cometidos : “esta praga que nos fere
também nos levanta e nos mostra o caminho”. 42
No entanto, dizer que as epidemias, pragas e doenças graves são castigos
de Deus pelos pecados dos seres humanos, não tem sentido, pois há muitas
pessoas e sociedades que tiveram e têm vidas consideradas “pecaminosas” e que
nunca foram nem são atingidas por esse males, e eram e são muito saudáveis.
Por outro lado, as crianças e os animais não pecam, e também foram e são
atingidos por epidemias, pragas, e graves doenças. Sobre isso falaremos em
pormenor no capítulo : A pandemia do coronavírus enquanto castigo dos
justos e dos inocentes.
39
Frei Fernando da Soledade, Historia Serafica Cronologica, tomo III, Lisboa, 1705, pp.340-341, Tomo V,
p.275; in Baltazar Teles, obra citada, fol.198.
40
Giovanni Boccaccio, Decameron, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2006.
41
Geoffrey Chaucer, Lisboa, Ed. Europa-América, 1996.
42
Albert Camus, A peste, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, 2020, p. 38.
A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS TAMBÉM CONSIDERADA COMO
UM CASTIGO DE DEUS
44
Mark R. Kolewsky, “Religious Construction of the AIDS crisis”, in Sociological Analysis, 1990, pp. 91-96.
no dia 7 de Março de 2020, o que pensava do coronavírus. Segundo ele, os
muçulmanos xiitas disseram que Aisha, uma das esposas do profeta Maomé,
tinha tomado uma decisão religiosa que permitia o consumo de ratos e que essa
decisão foi a causa do surto de coronavírus. Esse teólogo islâmico afirmou que a
disseminação do coronavírus no Irão foi um castigo divino contra Aisha, e
afirmou também que o Irão estava enviando deliberadamente iranianos
infetados para cidades sunitas e países como o Líbano, a fim de espalharem o
coronavírus entre os muçulmanos sunitas. Por isso, segundo o Sheikh
Dimashgia, o coronavírus foi um castigo de Deus contra os muçulmanos xiitas.
No hinduísmo e no budismo existe a lei do Carma (ação), que associa o
efeito à sua causa, tendo o bem e o mal que um indivíduo tenha cometido numa
vida passada trazido as respetivas consequências, boas ou más para esta vida. A
lei do Carma é conhecida em certas religiões (hinduísmo, budismo, etc.), como
“justiça celestial”. A lei do Carma tem várias interpretações, e uma delas é a do
castigo que o ser humano sofre nesta vida pelos erros de uma vida passada.
Numa entrevista ao jornal Metro, do dia 7 de Julho de 2005, sobre o tsunami
que então tinha atingido alguns países da Ásia, o Dalai Lama, chefe espiritual
dos budistas, declarou que “aquele que pereceram no tsunami tinham um mau
Carma”.45
Para o budismo um espírito reencarna noutra corpo pelo que fez de
errado em vidas passada, e fica reencarnando até se redimir de todos os seus
erros. O facto de só algumas pessoas terem sido atingidas pelo coronavírus,
terem sofrido por isso e algumas delas terem falecido, foi também encarado por
alguns religiosos, nomeadamente budistas e hindus, como uma lei do Carma,
isto é, como um castigo pelos erros cometidos nas vidas passadas. Nestas
religiões não existe o conceito de Deus como existe noutras religiões, isto é, um
Deus pessoal, que envia castigos, mas indiretamente a ideia de castigo divino
também está presente, pois os seres humanos têm de reencarnar para se
redimirem dos seus erros no passado, apesar de não serem os autores daquilo
que outros indivíduos fizeram há muitos anos atrás, noutras vidas.
No Judaísmo apareceram também líderes religiosos a defenderem que o
coronavírus foi um castigo de Deus. Uma das teorias mais hilariantes foi a
45
Noticiado pelo jornal Republica. Link : http://www.ufal29.infini.fr/article.php?id_article=310. Le
tsunami en Asie du sud est la faute au karma selon le Dalaï Lama (“O tsunami na Ásia do sul é uma
consequência do carma segundo o Dalai Lama”).
seguinte : em Israel o rabi Aryel Lipo defendeu que Deus castigou a
Humanidade com o coronavírus até que o Terceiro Templo seja construído em
Israel. Havia dois Santos Templos de Jerusalém, que eram locais de culto
importantes e construídos no Monte do Templo, mas foram destruídos pelos
babilónios e pelos romanos. O rabi Aryel Lipo defendeu que era preciso
construir um Terceiro Templo para ajudar a restaurar a fé judaica e impedir a
propagação do coronavírus. Este rabi citou o profeta Isaías : “E acontecerá nos
últimos dias que se firmará o monte da casa do Senhor no cume dos montes, e
se elevará por cima dos outeiros; e todas as nações correrão para ele.” (Is.,
2,2), e comparou o Monte do Templo a uma coroa (em alusão à coroa do
coronavírus).
Segundo o rabi Aryel Lipo, “a doença do coronavírus chegou para nos
lembrar que a verdadeira coroa do mundo está faltando. O que impedirá o
coronavírus foi ensinado a nós pelo rei David”. 46 Ao construir-se o Templo,
segundo o rabi Lipo Deus restaurará a coroa de David : “Que seja da vontade
de Deus que merecemos construir uma coroa e um palácio para o Rei Único.
Se Deus quiser, esta coroa protegerá o mundo do coronavírus”. 47
46
“E David construiu ali um mizbayach para Hashem e sacrificou holocaustos e ofertas de bem-
estar. Hashem respondeu ao apelo pela terra, e a praga contra Israel foi verificada” (II Samuel, 24,24).
47
Citado pelo jornal on-line Breaking Israel News, 24 de Fevereiro de 2020.
antecipadamente que ele viria a ser um louco cruel e assassino, esse pai seria
antecipadamente o responsável pelos crimes que o seu filho viesse a cometer.
Dado que Deus já sabia os crimes que cada ser humano iria cometer (pois Deus
sabe tudo), e mesmo assim decidiu criá-lo, então Deus tem responsabilidade
nisso.
48
Santo Agostinho, A cidade de Deus, livro I, cap. IX, Lisboa, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1996,
p.124.
tormentos da carne ou da morte, isto é, por causa dos grilhões de certas paixões
e não por causa do dever de caridade”.49
Esta é também a tese dum importante filósofo e teólogo do século XIII,
São Tomás de Aquino, que afirma : “Justiça e misericórdia aparecem no castigo
dos justos neste mundo, uma vez que pelas aflições são limpos de falhas
menores, e são mais elevados nas afeições terrenas a Deus. Do mesmo modo
São Gregório Magno diz : os males que nos pressionam neste mundo, forçam-
nos a ir mais a Deus”.50
O facto de os males atingirem também os bons e os inocentes, e mesmo
que esses males sejam encarados como castigo de Deus, é também justificado
por alguns teólogos através da doutrina do pecado original, o qual atinge todos
os seres humanos. Vejamos essa teoria seguidamente.
49
Idem, ibidem, cap. I, p. 7.
50
São Tomás de Aquino, Suma Teológica, - Vol. III, I - II Parte – I, q. 21, a.4, São Paulo, Ed. Loyola,
2003, p. 54.
A doutrina do pecado original apoia-se em várias passagens da Bíblia : a
epístola de São Paulo aos Romanos (5:12-21) e aos Coríntios (1 Co 15,22), e o
salmo 51, por seu turno sob influência do livro do Génesis, em que Deus disse a
Adão e Eva que a árvore do conhecimento do bem e do mal lhes estava interdita,
e que se comessem do seu fruto se tornariam mortais e passariam a padecer ao
longo da sua existência enquanto seres humanos (Gén., 2, 17). No entanto,
tentados pela serpente, que representava o demónio, ambos comeram o fruto
proibido, tendo Eva cedido primeiramente à tentação e posteriormente
oferecido o fruto a Adão, que o aceitou. Ambos continuaram vivos, mas foram
expulsos do jardim do Paraíso.
Segundo a Bíblia foi um ato de desobediência e uma declaração de
independência, pois comer o fruto da árvore proibida era contrário à vontade de
Deus, pois a partir de então o Homem passaria a saber o que é o bem e o mal.
Mas porque culpar Adão por um erro moral que ele nem entendia? Ele ainda
não tinha comido o fruto da Árvore do Conhecimento do bem e do mal para
saber o que era o bem e o mal. Então porquê culpá-lo de que ele cometeu um
erro moral ? Mesmo assim Deus castigou-os (Gén., 3, 17-17).
Por outro lado, a relação rompida entre a criatura e o seu Criador, Deus,
acarretou consequências que ultrapassaram a esfera da Humanidade. A partir
do momento em que Adão e Eva desobedeceram a Deus, segundo os teólogos,
toda a criação de Deus sofreu também as consequências. Adão e Eva pecaram, e
então todo o mal entrou no mundo. A própria Natureza também ficou
manchada e começou a ter parasitas, doenças, epidemias, secas, terramotos,
tempestades, tornados, erupções vulcânicas, etc. Conforme sublinha o apóstolo
Paulo, a Natureza “ficou submetida à inutilidade, não pela sua própria escolha,
mas por causa da vontade daquele que a sujeitou” (Rom., 8, 20), isto é, por
culpa do pecado original, cometido por Adão e Eva.
Dado que Deus os tinha avisado e eles não cumpriram, estabeleceu-se um
fosso entre Deus e a Humanidade, a atitude deles conduzi-os a uma existência
mortal. Enquanto dantes Adão e Eva eram seres imortais, a partir do momento
em que cometeram o pecado original passaram a sofrer de males, a terem
doenças e os seus descendentes passaram a morrer. Segundo o livro do Génesis,
foi devido ao facto de Adão e Eva rejeitaram Deus, que o pecado original entrou
no mundo, e com ele todas as consequências. Devido ao “pecado” de Adão e Eva,
os seres humanos deixaram Deus, e isso atingiu toda a Humanidade. Por seu
turno, segundo o apóstolo Paulo, “por meio de um só homem o pecado entrou
no mundo e, pelo pecado, a morte; e assim a morte passou a todos os homens,
porque todos pecaram”, afirma São Paulo (Rm., 5,12).
Assim, a Terra foi amaldiçoada por causa de Adão e Eva, e passou a estar
cheia de desgraças (terramotos, tornados, cheias, secas, epidemias, vírus,
doenças, etc.). O seres humanos têm sido e são atingidos por catástrofes
naturais, como por exemplo pandemias, porque Adão e Eva pecaram. Desde
então os seres humanos tornaram-se também sujeitos a doenças e tornaram-se
mortais. A culpa de Adão e Eva privou-os a eles e aos seus descendentes não
apenas da Graça divina, mas também de todos os dons que Deus lhes tinha
concedido na Criação. Dantes o mundo era perfeito, mas com o pecado de Adão
e Eva foi amaldiçoado por Deus. A partir desse momento, as epidemias, a
doença e a morte entraram no mundo
No entanto, a doutrina do pecado original deixa muita coisa por explicar,
principalmente em relação aos animais, pois os animais não pecaram, e
também são vítimas de desastres naturais, também sofrem doenças e também
morrem, assim como as plantas. Por outro lado, se Adão e Eva cometeram o
pecado original, que culpa temos nós disso? Porquê esta culpa coletiva, e para
toda a eternidade ? porque razão temos de continuar a sofrer, desde o início da
Humanidade, pelo pecado de Adão e Eva ? não fomos nós, individualmente
falando, quem cometeu o pecado original, mas sim eles.
Se as epidemias são também uma consequência do pecado original (como
se já não bastasse o castigo no Inferno), porque razão só aparecem em
determinados períodos da História ? Durante séculos houve largos períodos de
tempo em que não houve epidemias. Por exemplo a peste bubónica, a chamada
“gripe espanhola”, apareceu há cerca de um século. Isso significa que muitas
pessoas, que viveram menos de 100 anos, escaparam a esse mal.
À luz da doutrina do pecado original, que se propõe justificar a existência
do mal natural, Deus impôs o sofrimento sobre toda a Humanidade, dado que
Adão e Eva desobedeceram ao comerem o fruto da árvore do conhecimento do
bem e do mal. No entanto, esse castigo de nada valeu, pois segundo a Bíblia,
Deus teve de enviar depois o castigo do dilúvio, matando todos os seres
humanos, salvando apenas Noé e a sua família. Por sua vez, também o castigo
do dilúvio de nada valeu, pois os seres humanos que se seguiram continuaram a
cometer erros, tal como hoje, e assim continuará a ser, independentemente do
dilúvio e de outras catástrofes naturais como as epidemias.
O CORONAVÍRUS NÃO CONSIDERADO
UM CASTIGO DE DEUS
52
Papa Francisco, Fratelli Tutti, carta encíclica sobre a fraternidade e a amizade social, Lisboa, Ed.
Paulinas, 2020, p. 25
53
Salvatore Cernuzio, “Delpini : Da pagani pensare a un Dio che manda flagelli. A Milano Chiese chiuse
mai”, jornal La Stampa, 16 de Março de 2020, p. 8.
atingem bons e maus, e porque geralmente os pobres sofrem as maiores
consequências. São eles mais pecadores do que os outros ?” 54
O cardeal D. António Marto, bispo da diocese de Leiria-Fátima, em
entrevista ao portal católico espanhol Religión Digital, pronunciou-se do
mesmo modo. Questionado sobre o facto de alguns membros da Igreja
considerarem o coronavírus como um "castigo de Deus", o bispo de Leiria-
Fátima respondeu : “Isso não é cristão. Só o dizem aqueles que não têm nas suas
mentes ou corações, por ignorância, fanatismo sectário ou loucura, a verdadeira
imagem de Deus Amor e Misericórdia revelada em Cristo”. 55
Estas posições têm como origem uma menor radicalização nas questões
teológicas, nos tempos de hoje. Geralmente são os pastores e evangélicos
fundamentalistas, e também alguns padres e fiéis católicos ultra conservadores,
que defendem que o coronavírus foi um castigo de Deus. Nos tempos de hoje a
rara referência ao coronavírus como castigo de Deus é fruto de um maior
esclarecimento teológico e da evolução do conceito sobre Deus. Como afirma
Artur Morão, “trazer Deus para a pandemia também é problemático, porque
“quando falamos de Deus não é de Deus que falamos” (Gabriel Marcel), mas dos
nossos fantasmas e projeções a seu respeito (e, nesta insinuação de “castigo”,
justamente do nosso sadismo), e os conceitos que dele formamos são, amiúde,
simples “ídolos” (Gregório de Nissa). A palavra “Deus” – como nos lembra M.
Buber – é de todas a mais enodoada e suja, porque objeto, ao longo da História,
das instrumentalizações mais execráveis”.56
Por outro lado, o facto de muitas pessoas hoje não defenderem que a
pandemia do coronavírus foi um castigo de Deus, resulta também da
indiferença da sociedade perante Deus, ou da perda de importância da religião.
Enquanto dantes havia a tendência para em tempos de epidemia as pessoas
atribuírem isso a um castigo divino e acorrerem às igrejas em súplica a Deus,
isso hoje acontece muito menos. Dado que Deus deixou de fazer sentido para
muita gente, hoje existe a tendência para não se buscar a justificação da
pandemia do coronavírus como um castigo divino. Mesmo os crentes, apesar de
54
“O Papa celebra a paixão do Senhor. Como o pregador papal reflete na pandemia do Covid 19”, jornal
Vaticano News, 10 de Abril de 2020, p, 3.
55
João Francisco Gomes, “Ignorância, fanatismo ou loucura – cardeal António Marto critica quem diz
que pandemia é castigo de Deus”, Observador, 15 de Abril de 2020, p. 5.
56
Artur Morão, Ressurgir – 40 perguntas sobre a pandemia , o. c., pp. 189-190.
acreditarem em Deus, colocam a tónica no Deus de amor e de misericórdia, e
apresentam outras justificações para a existência do coronavírus.
Ora, mas mesmo que o coronavírus não seja um castigo de Deus, será que
Deus fica isento de responsabilidades ? É o que veremos no capítulo seguinte.
Segundo a Bíblia Sagrada (Génesis, 1,1-2 e 1,20-25), foi Deus que criou
todo o ser vivente, por isso criou também os vírus, as bactérias e os demais
organismos que produzem as doenças. O apóstolo Paulo também afirma o
seguinte : “pois tudo o que Deus criou é bom, e nada deve ser rejeitado, se for
recebido com ação de graças” (I Timóteo, 4,4).
Sem o poder criador de Deus, aquilo a que chamamos doenças (assim
como tudo o que existe naturalmente no mundo, tal como a própria vida) não
teriam existência. Nada acontece na Natureza que não seja devido ao poder do
“Criador”, que é a causa última de tudo o que existe, direta ou indiretamente.
Cristo realçou que tudo o que acontece, acontece porque Deus o quer ou permite
(Mateus, 10,29-30). O próprio Catecismo da Igreja Católica, no seu artigo 338,
também diz isso : “Nada existe que não deva a sua existência a Deus criador”.
Por exemplo na malária, se toda a criação é obra de Deus, ao ter criado o
mosquito que origina a malária, Deus criou também a malária. No caso do
coronavírus, considerando-se que este tem origem também em animais,
nomeadamente os morcegos ou os pangolins, Deus criou os animais que é
suposto terem originado o coronavírus, logo o coronavírus tem como origem
uma criação de Deus.
Excluir qualquer intervenção divina nos acontecimentos seria negar que,
conforme afirma São Tomás de Aquino, “todas as coisas, na medida em que
participam da existência, devem igualmente estar sujeitas à providência
divina”.57 Deus não criou apenas todos os seres existentes através de um ato
sobrenatural da sua vontade, mas sustenta-os na existência e guia-os para o fim
para o qual os criou, isto é, a sua glória, sem no entanto tirar a liberdade das
57
São Tomás e Aquino, Suma Teológica, o. c., vol. I, q. 22, a. 2c., p. 37.
criaturas racionais. Por outras palavras, toda a criação está sob o poder do
governo divino, e sujeita aos sábios desígnios de Deus, conforme ensina São
Tomás de Aquino :
“Deus é governador e causa dos seres, pois a Ele pertence produzi-los e
dar-lhes a perfeição, o que tudo é próprio de quem governa. Ora, Deus é, não a
causa particular de um género de seres, mas a causa universal da totalidade dos
seres. Por onde, assim como nada pode existir se ser criado por Deus, assim
também nada há que lhe possa escapar ao governo. (…) Por onde, como nada
pode haver que não se ordene à bondade divina como fim, segundo do sobredito
se colhe, impossível é a qualquer ser subtrair-se ao governo divino”. 58
A teoria do desígnio inteligente, que faz parte dos argumentos
teleológicos em defesa da existência de Deus, que é igualmente defendida por
São Tomás de Aquino,59 pode levar a concluir que o próprio coronavírus
também é obra de Deus. Segundo a teoria do desígnio inteligente, a
complexidade da Natureza indica a existência de um desígnio inteligente, isso é,
Deus. Existe uma ordem na Natureza, onde tudo, até os mais ínfimos
pormenores, está meticulosamente e cuidadosamente organizado, e parece
muitíssimo improvável que tudo isso tenha sido meramente produto do acaso.
Essa ordem não tem explicação, mas se pressupormos que Deus foi o criador do
Universo, então essa ordem só pode ter tido como origem uma inteligência
divina.
Ora, essa ordem e complexidade existe também no coronavírus,
conforme mostraram os cientistas, e isso pode suscitar também a ideia de um
design inteligente, conforme defende o cientista Marcos Eberlin : “Há sinais
claros e evidentes do Design inteligente em vírus. Ao ver por exemplo como
estes vírus funcionam e como eles atuam. Os vírus são fragmentos de material
genético, RNA, DNA empacotados e protegidos por proteínas, uma capa
proteica. Para o coronavírus, esta capa proteica ainda é colada por gordura.
Os vírus são verdadeiras naves espaciais invasoras de células, é realmente
uma arma de invadir células, como por exemplo o vírus T4, ele funciona como
uma nave espacial, ele pousa na superfície da célula, em sua membrana, e ele
tem uma espécie de seringa, então ele injeta o seu DNA, fantástico, é uma
máquina. Os vírus portanto, tem sinais claros e evidentes de design
58
Idem, ibidem, q. 103, a.5.
59
Idem, Ibidem, Ia.Q2.a. 3.
inteligente, eles tem propósito, intenção, então vemos, como eles entram na
célula, a célula tem uma fechadura, uma senha, e para entrar na célula, tem
que ter a chave correta, ou seja, uma proteína correta, e este vírus tem a
proteína correta, a célula o reconhece como um amigo, e não é, na realidade é
um inimigo disfarçado, um sequestrador, um invasor, e ao entrar na célula ele
usa a maquinaria celular da própria célula a seu favor para se reproduzir a sua
prole, tem uma intenção, um propósito, uma engenharia, sofisticação, sinais
claríssimos de design inteligente. Então a ciência não deixa dúvidas de que
vírus são frutos de design inteligente, as estratégias do design inteligente que
usamos para detetar design mostram claramente, esta conclusão é sólida,
agora.60
No entanto, é importante reconhecer a diferença entre complexidade e
design. A complexidade em si não requer um criador inteligente. A
complexidade do Universo tem explicações científicas de fenómenos que se
repetiram ao longo de bilhões de anos, em que os organismos evoluíram para a
sua complexidade, e que não sugerem logicamente um criador divino, um
design inteligente, conforme defende muitos cientistas, como por exemplo
Richard Dawkins. Além disso, segundo este autor, um Deus capaz de desígnio,
ou de conceber, não pode ser usado para explicar a complexidade organizada,
porque qualquer Deus capaz de conceber o que quer que fosse teria de ser
suficientemente complexo para levar a que o mesmo tipo de explicação fosse
aplicado a si próprio. Segundo Dawkins, Deus apresenta uma regressão
infinita da qual não nos pode ajudar a escapar. 61
60
Marcos Eberlin, O coronavírus à luz do design inteligente. Palestra on-line, visível em : “Deus criou
o coronavírus ?”, no site : A Ciência leva a Deus – Science leads to God.
61
Richard Dawkins, A desilusão de Deus, Lisboa, Ed. Casa das Letras, 2020
portanto Deus é a origem e o responsável pelos fenómenos naturais. Sendo
Deus o criador de toda a Natureza, tendo inclusivamente criado as próprias leis
que a regem, Deus é também o criador do coronavírus. Se por um lado Deus
criou tudo o que existe, e se por outro lado nada existe ou acontece sem o seu
consentimento, se Deus é o princípio e a causa suprema de tudo, se Deus é o
fundamento e o fim de tudo o que existe e acontece no Universo, se Deus não só
criou tudo como conserva tudo, então Deus também é responsável pelo
coronavírus, as pandemias fazem parte da sua vontade, e não poderiam existir
senão através do seu poder criador, mesmo que não sejam diretamente
desejadas por Deus.
Quando falamos em vontade de Deus, há que distinguir aquilo que Deus
quer daquilo que Deus permite (ou não impede) que aconteça, mas tanto um
caso como outro não podem deixar de ser considerados como fazendo parte da
sua criação e do seu plano para o mundo.
O facto de Deus ser a origem do coronavírus, ao ter criado a Natureza e
tudo o que nela existe em ato e em potência, isto é, os vírus que vão aparecendo,
e portanto ter sido Deus o seu criador, não significa que seja um castigo de Deus
por algo que os seres humanos tenham feito. Sendo assim, a tese de que o
coronavírus não é um castigo de Deus, isenta Deus da acusação de castigar
também os justos e inocentes.
Todavia, mesmo que não seja um castigo, o coronavírus também atingiu
pessoas justas e inocentes, e até mesmo crianças. Encontraríamos um sentido
nas pandemias, uma razão de ser, um acontecimento justo, se elas fossem
punição pelos nossos erros. Se não forem uma punição, e dado que Deus é o
criador de todo o Universo, incluindo os vírus, bactérias, e pandemias, Deus tem
responsabilidade nas consequências do coronavírus. Sendo algo que Deus
colocou na Natureza e que causou tanto sofrimento, mortes, danos nas famílias,
na economia mundial, etc., e se não foi devido aos erros que os seres humanos
tenham cometido, então é algo puramente gratuito e injustificado, pois as
pessoas foram vítimas sem haver razões para isso.
Também na religião muçulmana, segundo o Alcorão, (Surata LXIV, 11),
Alá, Aquele que governa o Universo o mestre absoluto, o Todo Poderoso,
“Nenhuma infelicidade atinge o Homem sem a permissão de Deus”. Isto
significa portanto que se Deus existir não pode ser isentado de responsabilidade
pelos cataclismos, pandemias e outros males naturais que existem no Universo,
pois este obedece aos padrões por si estabelecidos.
Alguns desses males naturais são por exemplo a malária, cuja origem está
num mosquito, criado por Deus. Mesmo que a malária não seja um castigo de
Deus, a sua origem está em Deus, que criou um mosquito que o causa. No caso
do coronavírus, é suposto que a sua origem esteja também em animais, em
morcegos, pangolins ou noutros animais. Mas mesmo que a sua origem não
sejam os animais, mas sim outras causas naturais, e mesmo que o coronavírus
não seja um castigo de Deus, tem Deus como origem, dado que, conforme já
referimos, segundo os crentes foi Deus que criou a Natureza, logo Deus não
pode ser isento de responsabilidades.
Assim como, se Deus não existir, o coronavírus não pode ter sido um
castigo de Deus, nem ter tido Deus como sua origem, se o Demónio também não
existir, não tem sentido dizer que é ele a origem do coronavírus. Partimos
portanto da hipótese da sua existência, sobre a qual se baseiam as acusações,
conforme veremos, de que é o Demónio a origem do coronavírus.
Há vários textos da Bíblia que falam na existência do demónio e que
dizem que o demónio anda por aí tentando-nos, vagueando em liberdade por
toda a Terra, oprimindo as pessoas, fazendo-lhes mal, e até mesmo possuindo
algumas delas (I Pe. 5:8; 1 Jo., 5:18-19; Tiago, 4:7; Ap., 12:9; Mt.,2:22; 17:14-
17; At .,16:16-18; Ap 16:14)), e que ele se disfarça de anjo de luz (2 Cor., 11:14).
Em contrapartida, segundo outros textos da Bíblia, Deus jamais é o autor do
mal, o mal é possível no mundo que Deus criou, mas não é a sua intenção para o
mundo que ele criou (conferir isso por exemplo na carta de São Tiago, 1,13). As
enfermidades podem ser causados pelo demónio, pois a Bíblia descreve vários
casos em que o sofrimento físico foi causado pelo demónio (por exemplo em
Mateus, 17,14-18, e em Lucas, 13, 10-16).
Há também importantes teólogos na tradição da Igreja que defendem
estas ideias. Por exemplo João Damasceno, dos séculos VII e VIII, que é um
santo e um doutor da Igreja, celebrado pelos católicos e pelos cristãos
ortodoxos, dizia claramente que Deus era o único criador de todos os bens, mas
que não o era do mal. Por seu turno S. Basílio de Cesareia séculos antes
escrevera um tratado teológico, cujo tema e título era : De como Deus não é o
autor do males.
Também para São Tomás de Aquino o mal não tem perfeição nem ser, o
mal só pode significar a ausência do bem e do ser, dado que o ser, enquanto ser,
é sempre um bem. Por isso o mal representa algo puramente negativo, ele não é
nem essência nem realidade. O mal é a privação de uma propriedade que a
substância deveria possuir, “é mais corretamente denominado uma privação, ou
carência daquilo que deveria estar presente”. 62 No agir de Deus é impossível
haver deficiência, dado que Deus é a perfeição absoluta. Por conseguinte,
segundo São Tomás de Aquino, não podemos responsabilizar Deus pelo mal,
pois Deus não causa senão o bem. Ora, se o coronavírus é um mal, e se Deus não
é a fonte do mal, Deus não pode ser a fonte do coronavírus.
Em vez disso, o mal teria origem no demónio, ou num ser maligno. A
hipótese de um Deus mau, ou de um génio maligno, governando este mundo,
como acreditavam os Gnósticos e os Maniqueus, ou a crença num anjo caído (o
Demónio) como eterno rival de Deus e senhor deste mundo, foi por vários
autores, e por muitos crentes em geral, considerada uma justificação para se
compreender os males que existem no mundo, entre os quais as pandemias, as
pestes e as doenças,
Os antigos gregos davam a designação de demónio aos bons e maus
espíritos, mas os judeus davam essa designação aos espíritos maus, reservando
apenas para o bom demónio a designação de espírito, e consideravam como
efeito do espírito divino tudo aquilo que encaravam como um bem, e como
efeito do demónio tudo aquilo que encaravam como um mal. Esta distinção
entre o bem e o mal fez com que chamassem “demoníacos” aos indivíduos
gravemente enfermos, aos que padeciam de males incuráveis ou de más
formações físicas (epiléticos, paralíticos etc.), que consideravam possuídos pelo
demónio. Daqui resulta que a Bíblia esteja toda cheia de histórias acerca de bons
e maus espíritos, de demónios ou seres demoníacos, e de pessoas possuídas pelo
62
Santo Tomás de Aquino, Sobre o Mal, Rio de Janeiro, Ed. Sétimo Selo, 2005. Tomo I., p. 15.
demónio, o qual não era considerado apenas a origem de doenças físicas mas
também mentais.
Ao longo da História das religiões, conforme cada religião, cada época, e
cada cultura, a figura do demónio, o seu significado e a sua importância
variaram, pois algumas vezes deu-se pouca importância ao demónio, e noutras
vezes não se falou sequer na sua existência. Nos tempos de hoje, em alguns
setores religiosos, há um retorno da importância do demónio, através da crença
na guerra espiritual, crença essa que está presente em importantes igrejas
evangélicas, especialmente nas norte-americanas. A figura do demónio recebe
novamente grande relevo, sendo considerado o responsável pelos males que
existem no mundo e explicando a coexistência entre um deus
“bondoso”,“omnisciente”, “omnipresente” e “omnipotente”, e o sofrimento
humano injusto.
Por conseguinte, alguns líderes evangélicos defenderam que a pandemia
do coronavírus foi “coisa do Demónio”, que o coronavírus seria “queimado pelo
hálito de Deus”, que “o coronavírus é a coroa do Demónio” e que a oração é a
principal “arma” de proteção contra ele. Foram muitas as afirmações de
pastores, bispos e padres nesse mesmo sentido. Por exemplo o bispo evangélico
brasileiro Edir Macedo, líder e fundador da Igreja Universal do Reino de Deus,
apareceu num vídeo divulgado na Internet, no dia 15 de Março de 2020, no qual
desvalorizou a gravidade da pandemia do coronavírus no mundo. Edir Macedo
disse que não havia motivo para as pessoas estarem preocupadas com a
pandemia, pois segundo ele era inofensiva, e era uma tática do Demónio. Para
este bispo evangélico a grande arma contra todos os vírus é a Bíblia.
Mas será que tem sentido dizer que o coronavírus é obra do Demónio ?
Segundo os crentes, a Natureza foi criada por Deus, e não pelo Demónio. Da
Natureza fazem também parte os mocróbios, bactérias, vírus, e os animais que
provocam vírus. Portanto, não tem sentido dizer que foi o Demónio que criou o
coronavírus, pois não foi o Demónio que criou a Natureza.
Se é o Demónio que está por trás do mal, e sendo o coronavírus um mal,
será que Deus não tem mais poder do que o Demónio? Não nos referimos ao
mal praticado pelos seres humanos, em que Deus, se existir, não tem que ser
responsabilizado, mas sim ao mal natural (cataclismos da Natureza). Mesmo
que o Demónio tenha influência sobre os males naturais que nos acontecem, o
Demónio não tem a última palavra, e não pode fazer nada mais do que aquilo
que Deus permite que ele faça, como se pode ver na Bíblia (Livro de Job,1,12;
2,10).
A Bíblia diz também que todas as coisas são, em última instância,
controladas por Deus : “O Meu propósito será estabelecido, e tudo o que eu
quero realizarei” (Livro de Isaías, 46,10). “Tudo quanto o Senhor quer, o faz,
nos céus e na Terra, nos mares e em todos os abismos” ( Salmo 135, 6).
“Todos os habitantes da Terra são considerados como nada, mas Ele atua
conforme a sua vontade no exército do céu, e nos habitantes da Terra;
ninguém pode deter a sua mão, nem dizer-lhe : o que fizeste?” (Livro de
Daniel, 4, 35). “Também obtivemos herança, tendo sido predestinados
segundo o propósito daquele que obra todas as coisas conforme a sua
vontade” (Efésios, 1,11).
Portanto, conforme se pode ler na Bíblia, Deus é todo poderoso e é ele
que controla tudo. Se Deus existe e é todo poderoso, dado que ele é Deus, pode
mais do que o Demónio (no caso do Demónio existir e de ter sido ele a origem
do coronavírus). Devido ao seu poder Deus poderia derrotar o Demónio e
libertar a Humanidade do coronavírus, mas não o fez. Ou não o fez porque não
quis, ou porque não pôde.
Deus criou um anjo que se viria a tornar Demónio, e Deus permitiu que
ele se tornasse Demónio. Mas Deus já sabia que ele se viria a tornar Demónio,
pois Deus é omnisciente, isto é, sabe tudo, e criou-o na mesma, logo Deus tem
responsabilidade na existância do próprio Demónio. Mesmo que seja o
Demónio a origem do coronavírus, Deus é indiratemente a origem do
coronavírus, pois foi Deus que criou o anjo que se tornou Demónio, e que Deus
já sabia que se iria tornar Demónio. Segundo a Bíblia, o Demónio é um anjo
caído, pois quando Deus o criou ele era um ser bom. Mas quer esse Ser tenha
criado bom ou mau, esse Ser é um produto de Deus. Se o demónio existe, só
pode ser por vontade de Deus, e portanto mesmo que seja o demónio a origem
do coronavírus, Deus deixa que isso aconteça, e torna-se indiretamente
responsável por isso. Se Deus pode tudo e está acima do Demónio, e se o
Demónio foi a origem do coronavírus, porque razão Deus não impediu que o
Demónio fizesse mal aos seres humanos, ao atingi-los com o coronavírus, e
indiretamente fizesse mal ao próprio Deus ao atingir as suas criaturas ? se Deus
consentiu que o Demónio atingisse os seres humanos com o coronavírus, e dado
que o Demónio só pode fazer o que Deus consente, Deus fica responsabilizado
pelo coronavírus, mesmo que este seja obra do Demónio.
Segundo os teólogos e os líderes religiosos, Deus não faz nada em relação
aos males que os seres humanos cometem, porque preserva o livre arbítrio dos
seres humanos. Mas porque razão Deus também não faz nada em relação aos
males que o Demónio comete ? é também para preservar o livre arbítrio do
Demónio ? se sim, para que quer Deus preservar o livre arbítrio de uma criatura
que por um lado o odeia e por outro lado faz tanto mal aos seres criados por
Deus? na verdade, não tem sentido falar em livre arbítro no caso do Demónio,
pois o uso do livre arbítrio significa poder fazer o bem ou o mal, mas o demónio
só pode fazer o mal, pois se fizesse o bem deixaria de ser Demónio.
O Demónio maldiz Deus, e Deus permite que ele o maldiga, logo Deus
permite que o Demónio faça mal ao próprio Deus. Por outro lado, o Demónio
faz mal aos filhos e amigos de Deus e ao fazê-lo faz também mal a Deus,
portanto Deus deixa que o Demónio faça mal ao próprio Deus. Se o Demónio faz
mal ao próprio Deus ao fazer mal aos seus filhos e amigos, como é que Deus
pode ser Deus, havendo um Ser acima dele a fazer-lhe mal ? se o Demónio tem
mais poder do que Deus, então Deus não tem suficiente poder, logo não é Deus.
Sobre a questão do poder de Deus falaremos mais em pormenor no
subcapítulo : “Se Deus é omnipotente, porque não elimina o coronavírus ?”
63
Jaime Nogueira Pinto, o. c., pp. 129-130.
64
Jane Goodall, entrevista no TED talks, New York. Entrevista on-line, realizada ao longo de Julho de
2020
seres humanos, portanto a pandemia do coronavírus não é apenas um mal
natural mas também um mal moral.
Existe também a teoria de que o coronavírus foi fabricado pelos próprios
chineses num laboratório na cidade de Whuan, na China, e foram muitos o que
defenderam essa teoria, como por exemplo o professor Joseph Tritto. 65 Esta
teoria permite também defender que o coronavírus teve origem humana e não
divina. Há outras teorias, a que se chamam vulgarmente teorias da
conspiração, como as de alguns líderes religiosos muçulmanos que afirmaram
que o coronavírus fez parte de um plano dos judeus, Israel, EUA para controlar
Meca e Medina. Na Nigéria um líder muçulmano disse que o coronavírus foi
uma farsa ocidental para impedir que os muçulmanos praticassem o Islão. No
Irão um estudioso islâmico disse que o coronavírus foi uma arma fabricada pelo
homem “contra os xiitas, muçulmanos e iranianos”.
No entanto, as teses da origem humana do coronavírus são também
suscetíveis de objeções, e algumas delas são pouco credíveis e não podem ser
provadas. Por outro lado, mesmo que o coronavírus tenha tido como origem os
maus hábitos alimentares dos seres humanos ao comerem animais portadores
do vírus, foi Deus que criou esses animais, logo Deus também aqui tem
responsabilidade. O mesmo acontece em relação aos ratos durante a peste
negra na Idade Média, que é considerada como tendo sido transmitida pelos
ratos. Neste caso a religião ainda tem mais responsabilidades, pois a prática
supersticiosa de matar gatos (que eram considerados a encarnação de Satanás),
contribuiu para propagar a peste negra, pois os gatos mantinham os ratos
afastados.
65
Joseph Tritto, Cina Covid-19. La Chimera che ha cambiato il Mondo, Cantagalli, Ed. Sena, 2020
CONTRADIÇÕES ENTRE OS ATRIBUTOS
DE DEUS E O CORONAVÍRUS
SE DEUS É PERFEITO, PORQUE CRIOU UM MUNDO IMPERFEITO,
COM TANTOS VÍRUS ?
66
Gottfried Leibniz, Monadologia, Lisboa, Ed. Colibri, 2016, p. 20.
dos primeiros a fazê-lo, criticando aquilo que ele considerava ser a ingenuidade
de Leibniz, e dando como exemplo o terramoto de 1755 em Lisboa. Voltaire
afirma que o mundo contém uma quantidade de sofrimento grande demais para
justificar esse otimismo (daí a sua denominação de cândido). Na atualidade
encontramos filósofos como por exemplo Bertrand Russell, que considerou
ilógica a teodiceia de Leibniz . Russell argumenta que o mal moral e físico
devem ser uma consequência do mal metafísico (imperfeição). Mas a
imperfeição é apenas finitude ou limitação, e se a existência é boa, conforme
defende Leibniz, a mera existência do mal exige que o mal também seja bom. A
tese do melhor dos mundos possíveis defendida por Leibniz é criticável, pois
provavelmente não existe “o melhor” de todos os mundos possíveis de forma
absoluta no meio de tantas contingências, dado que se pode sempre conceber
um mundo melhor, como um mundo com mais uma pessoa moralmente justa.
À semelhança de Leibniz no passado, em 1955 o filósofo britânico J. L.
Mackie publicou um texto intitulado O Mal e a Omnipotência,67 no qual defende
que a existência do mal não é incompatível com a existência de Deus. Em 1974
o filósofo norte americano Plantinga analisou também o problema da
incompatibilidade entre a existência do mal e a existência de Deus, no seu livro
Deus, a liberdade e o mal,68 onde defende tal como Leibniz que não existe
incompatibilidade entre a existência de Deus e do mal, e pela mesma razão
apresentada por Leibniz : alguns bens são inevitavelmente constituídos por
partes más, e por conseguinte a existência do mal por vezes é necessária para
que daí venham outros bens. Também Swinburne, no seu livro A existência de
Deus69 defende que a razão pela qual Deus permite que exista o mal é o facto
deste possibilitar que haja um progresso em direção ao bem.
No entanto, é difícil aceitar que de determinados males venham um bem
maior. Que bem trará um terramoto ? que bem trará os cento e cinquenta mil
afogados pelo tsunami do Sudeste da Ásia ? que bem maior trará o sofrimento
atroz e a morte das crianças e dos animais, que não fizeram mal a ninguém ?
Dado que os crentes acreditam que Deus é capaz de mudar as leis da Natureza,
e fazer milagres, Deus poderia evitar esses sofrimentos, mas não os evita.
67
J. L. Mackie, (1955) “Evil and Omnipotence”, Mind, Oxford Academic, Volume LXIV, Issue 254, April
1955, páginas 200–212. Reimpresso em The Problem of Evil, org. por Marilyn M. Adams & Robert M.
Adams, Oxford University Press, Oxford, 1990
68
Alvin Plantinga, Deus a liberdade e o mal, São Paulo, Ed. Vida Nova, 2012
69
Richard Swinburne, The Existence of God, Oxford, Ed. Oxford University Press, 2004
Veja-se por exemplo o caso de uma criança que sofre de uma doença
grave e incurável, e que morre depois de anos de sofrimento intenso. Não
apenas sofreu ela como sofreram também os seus pais e outros familiares, assim
comos os seus amigos. Além disso, foi gasto com essa criança muitíssimo
dinheiro, para nada, pois ela não melhorava, e faleceu, dinheiro esse que podia
ter sido gasto com outras coisas com mais utilidade. Leibniz não nos diz qual é o
bem maior de todo este sofrimento e morte da criança, e mesmo que possamos
pensar em algum bem, é dificilmente aceitável que esse bem supere tanto
sofrimento de uma criança inocente, e portanto esse sofrimento, como o de
outras doenças graves, é gratuito.
Supondo que tem de haver sofrimento nos seres humanos, não estará ele
injustamente distribuído ? porque razão algumas pessoas sofrem mais do que
outras ? e não existirá em quantidade exagerada e desnecessária ? porque razão
há tanto sofrimento para que o bem brilhe ? não será que há males
intrinsecamente tão negativos e destrutivos que nenhum bem que lhes esteja
associado os supera ? alguns defendem que o sofrimento faz as pessoas serem
virtuosas. Será necessário sofrer tanto, para se ter uma vida virtuosa? E será que
isso acontece com todos ? poderão todos esses sofrimentos ser necessários para
formar o caráter dos que sobrevivem ? que bem trará à Humanidade os
sofrimentos por exemplo do cancro e a sua agonia ? que bem trará à
Humanidade uma pessoa acamada e sem cura, a sofrer continuamente ? o
sofrimento, em vez de provocar uma vida virtuosa, em muitos casos desumaniza
o ser humano, e não o leva à vida virtuosa mas sim ao desespero e à revolta.
O sofrimento atroz de crianças e outras pessoas inocentes, de pessoas
com doenças graves e de muitos animais, provocado por desastres naturais, não
serve nenhum propósito. Há males sem sentido que Deus, se ele existe, poderia
ter impedido, sem por isso perder um bem superior, ou ter de permitir um mal
igual ou pior. Deus, dado que é um ser todo poderoso, podia ter encontrado uma
maneira de fazer esse bem, um bem igual ou superior, sem ter de permitir o
sofrimento atroz causado por catastróficos desastres naturais, pandemias,
graves doenças, etc.
Leibniz e outros autores consideram que somos limitados para sabermos
quais são os bens que os males tornam necessários e que superam os males.
Ora, se somos limitados para sabermos isso, também somos limitados para
sabermos se Deus existe ou não. Há uma contradição entre dizer que Deus
existe, e dizer que somos limitados para sabermos quais são os bens trazidos
pelos males, como por exemplo o sofrimento atroz de uma pessoa (sobretudo
quando se trata de uma criança, que portanto é um ser inocente), ou que somos
limitados para sabermos quais são os bens trazidos pelas pandemias.
Se Deus é perfeito e omnipotente, não devia ter necessidade de criar ou
permitir o mal para promover um bem mais importante, e sendo sábio, devia
saber fazer o mundo de outra maneira, sem que se causasse tanto dano. Se o
bem e o mal se relacionam de tal modo que Deus não pode criar um sem o
outro, então o poder de Deus tem limites. As justificações de Leibniz e de outros
filósofos para a existência do mal natural (pandemias, doenças graves, etc.) são
incapazes, dado o seu cariz bastante teórico, de dar conforto às pessoas mais
envolvidas no problema do mal, isto é, às pessoas que tanto sofrem.
70
Richard Swinburne, The Existence of God, Oxford, Ed. Oxford University Press, 2004 , p. 26.
pode ser melhorado”.71 Mas se “Deus não pode criar o melhor dos mundos
possíveis”, se Deus não pode criar um mundo que seja tão bom quanto possível,
como é que Deus é um ser todo poderoso e infinitamente bondoso ?
Por outro lado, se Deus é conhecedor das verdades morais, ou seja, se
Deus sabe tudo aquilo que é verdadeiramente bom, então Deus deve saber como
o mundo poderia ser o melhor possível, ou mesmo como o mundo poderia ser
perfeitamente bom, à imagem da própria perfeição e bondade de Deus. Ora, se
assim é, e se Deus é omnipotente, porque razão Deus não pode criar o melhor
dos mundos possíveis ?
É incompreensível que um Deus moralmente superior permita tanta
desgraça no mundo. No caso de Deus ter razões desconhecidas para permitir o
mal, que nesse caso seria aparentemente gratuito, é difícil que essa justificação
possa reconfortar a dor dos que sofreram perdas enormes, como por exemplo
com a pandemia do coronavírus, em que muitas pessoas perderam os seus
entes mais queridos e o seu emprego. Em que é que a Humanidade tem a
beneficiar de uma pessoa perder os seus entes mais queridos e o seu emprego ?
Devemos questionar se é razoável acreditar e aceitar que haja um bem
maior que esteja associado a tanto sofrimento e a tantos danos que a pandemia
do coronavírus trouxe à Humanidade, sem que Deus pudesse obter esse bem
sem haver tantos sofrimentos e tantos prejuízos económicos. Muitas pessoas
não encontram esses bens, e mesmo que os haja não os conseguem
compreender, e por outro lado, mesmo compreendendo-os não os conseguem
aceitar. Vejamos quais poderão ser esses “bens” no capítulo seguinte.
71
Idem, Ibidem.
“BENS” PROPORCIONADOS PELO
CORONAVÍRUS
72
Peter Pollard, “Are viruses actually vital for our existence ?”, World Economic Forum, 3 de Novembro
de 2015 (artigo on-line).
73
Marilyn Roossinck, “The good viruses: viral mutualistic symbioses” in Nature Reviews Microbiology,9,
pp.99, 2011. Ver também :Mario Mietzsch, e Mavis Agbandje-McKenna, “The good that vírus do”, in
Annual Review of Virology, 2017 4:1, III-V.
termostato mundial reciclando os produtos químicos essenciais à manutenção
do equilíbrio uniforme do nível de dióxido de carbono. 74
Por outro lado, Peter Ward e Donald Brownbe afirmam que a tectónica
das placas mantém o campo magnético da Terra sem o qual os raios cósmicos
eliminariam toda a forma de vida : “A tectónica das placas parece ser a condição
primeira para que haja vida sobre um planeta; ela é portanto necessária para
manter um mundo alimentado em água”. 75
Portanto, segundo estes autores, tanto os vírus como os tremores de
Terra são necessários à vida no planeta Terra. No entanto, será que Deus, que é
um Ser sábio, não sabia criar uma outra forma de vida ? será que Deus não
poderia ter criado um mundo que funcionasse sem esses vírus ? Deus não é um
ser que tudo pode? Não poderia um ser que tudo pode ter criado leis da
Natureza que não conduzissem aos males ocorridos na Natureza, ou pelo menos
a tantos males atrozes ? É necessário que morram milhares de pessoas em
tremores de Terra, para que as placas tectónicas da Terra possam funcionar
corretamente ? É necessário que os animais tenham vírus para que existam ? se
os vírus são necessário aos organismos vivos e aos animais seus portadores,
porque razão isso acontece com alguns animais e com outros não ? São os
acasos da Natureza e Deus não pode fazer nada ? se assim é, Deus está
submetido à própria Natureza e não é um ser omnipotente.
74
Peter D. Ward, Donald Brownlee, Rare Earth: Why Complex Life is Uncommon in the Universe, New
York, Ed. Springer, 2009, p. 32.
75
Idem, ibidem.
permanecer em repouso, num quarto. Um homem que tenha o bastante para
viver, se fosse capaz de ficar em sua casa com prazer não sairia para ir viajar por
mar ou pôr cerco a uma praça-forte. Ninguém compraria tão caro um posto no
exército se não achasse insuportável deixar-se estar quieto na cidade; e quem
procura a convivência e a diversão dos jogos, é porque é incapaz de ficar em
casa, com prazer”.76
A pandemia do coronavírus originou períodos de confinamento, e isso foi
certamente para muitos indivíduos uma oportunidade de introspeção, de
reflexão, de exame de consciência, de retorno sobre si mesmo. Sob a pressão da
globalização e das economias em crescimento, das viagens, da tecnologia, da
competição desenfreada, do consumismo, da velocidade, dos muitos afazeres, a
sociedade acelerou-se e caiu num ritmo frenético. A generalidade dos seres
humanos, sobretudo nos países ocidentais, nos últimos tempos tem vivido
muito apegada a novos ídolos : o progresso, o consumismo, o bem-estar, o
comodismo, o hedonismo, e passou-se a levar uma vida muito superficial. No
seu dia a dia as pessoas andam sempre envolvidas em muitos projetos,
trabalhos, reuniões, divertimentos, etc., e têm muitas ambições e desejos
materiais (carro novo, casa nova, vestido novo, viagem nova, etc.,), perdem-se
em futilidades e vaidades, não distinguindo o essencial do superficial.
Com situações como a do coronavírus, nomeadamente o confinamento
que o mesmo originou, houve uma paragem, um retemperar de energias, um
recarregar de baterias, uma forma das pessoas se encontrarem consigo próprias,
uma oportunidade de retiro do supérfluo, um parar da vida mundana, uma
evasão, que teve para muitos indivíduos aspetos positivos. Os confinamentos
provocados pelo coronavírus foram para alguns indivíduos uma oportunidade
para uma tomada de consciência dos seus hábitos, um espaço para uma
conversação interior, para um maior discernimento, de modo a reorganizarem a
sua vida. Muitos indivíduos foram levados a parar e a pensar a vida de outro
modo, e portanto este retorno sobre si foi para muitos indivíduos
psicologicamente fecundo.
O ser humano confia demasiado nas suas capacidades, e vê-se como o
centro do mundo, por exemplo destruindo as florestas e matando os animais,
vê-se como um ser todo poderoso, confiando demasiado da ciência, na técnica, e
76
Blaise Pascal, Pensamentos, Lisboa. Ed. Relógio d´Água, 2019, p. 20.
no dinheiro. Ora, a pandemia do coronavírus fez reconhecer que o ser humano é
frágil e não tem controle sobre a existência, fez muitas pessoas despertarem
para a sua vulnerabilidade e terem uma outra visão sobre a Vida e as relações
humanas. A pandemia do coronavírus fez tomar maior consciência sobre o que
realmente importa, sobre o que tem sentido, e fez ver melhor que todas as
conquistas e ambições de nada valem, que tudo é fútil e frágil, e pode acabar
num instante, dando portanto ao ser humano uma maior consciência da sua
finitude. Por outro lado, fez muitas pessoas darem mais importância àquilo que
tinham, e perceberem que afinal não eram tão infelizes como pensavam, pois há
infelicidades maiores que nos podem atingir.
O confinamento proporcionou a muitos indivíduos focarem-se nas suas
prioridades e reexaminarem tudo o que antes considerava como prioritário,
importante e verdadeiro. Fez parar, questionar e pensar crenças, hábitos,
anseios, capacidades pessoais, e compreender melhor que muito disso não passa
de ilusões. Muitos indivíduos vivem as suas vidas cheias de ambições para o
futuro, como se fossem eternos. Situações como a da pandemia fez muitas
pessoas compreenderem melhor o quão impotentes somos perante a morte, e
que alguns dos objetivos que pretendemos realizar não só ultrapassam a nossa
capacidade de realização, como também dependem da duração, sempre incerta,
da nossa vida, convidando-nos portanto a termos uma atitude mais humilde.
A pandemia do coronavírus causou sofrimento psicológico e social,
principalmente naqueles que ficaram doentes, mas o sofrimento e a dor podem
também contribuir para o aperfeiçoamento do caráter. A pandemia do
coronavírus, enquanto sofrimento, um teste à capacidade de superar as
adversidades, e forneceu a muitos uma oportunidade de crescerem como seres
humanos. Pôs à prova a força de carater, constituindo um processo de
amadurecimento psicológico, e o apelo a uma maior autenticidade de Vida,
àquilo que realmente importa na vida do ser humano, numa existência que se
sabe condenada à morte, mas cuja condição mortal é ignorada ou esquecida, e
portanto deu mais significado à própria Vida. A ausência de sofrimento, morte,
velhice, doenças, tornaria os seres humanos mais arrogantes, presunçosos,
caprichosos, e egoístas. Portanto, situações como estas faz desenvolver uma
maior humildade e bondade, espírito de sacrifício e altruísmo.
No entanto, estes efeitos benéficos proporcionado pela pandemia,
tiveram também o reverso da medalha, pois a pandemia trouxe muita solidão a
muitas pessoas, trouxe-lhes demasiado sofrimento psicológico, e que para
algumas foi bastante duro. Esse sofrimento psicológico e em alguns casos o
trauma a ele associado, nomeadamente nas pessoas que ficaram gravemente
doentes, internadas nos cuidados intensivos dos hospitais, foi algo que muitos
dispensariam de bom grado, e de que aliás não precisavam para o seu
amadurecimento psicológico. A Vida já tem bastante sofrimento no dia a dia,
muitos indivíduos já tinham bastantes problemas, e não precisavam do
coronavírus para receberem os “bens” por ele proporcionados sob o ponto de
vista psicológico.
Mesmo que muitas pessoas consigam aproveitar a morte, a doença, a
velhice e o sofrimento moral para amadurecerem psicologicamente, para se
superarem, para mudarem de vida, para refletirem, para adquirirem sabedoria,
isso não justifica tanto sofrimento no mundo. Deus enviou, ou permitiu, o
coronavírus para que as milhares de pessoas que foram atingidas por ele
melhorassem psicologicamente ? Muitas pessoas que são atingidas por grandes
e traumáticos problemas não chegam a desenvolver essas capacidades,
nomeadamente as virtudes morais como a coragem e a humildade,
desenvolvendo antes a revolta e o desespero, e em muitas delas, portanto, uma
situação como por exemplo a do coronavírus foi um mal que originou não um
bem mas outro mal.
Apesar dos “bens” do ponto de vista psicológico, atrás mencionados,
benéficos para alguns indivíduos, o ser humano é um animal social, e para
muitos indivíduos as restrições de contactos sociais trazidas pela pandemia
trouxeram-lhes muita solidão, principalmente aos indivíduos que vivem
sozinhos. A “paz de espírito” trazida pelos confinamentos foi antes, para muitos
indivíduos, um tormento. Além disso, sabendo que diariamente estavam a
morrer centenas de pessoas, como sucedeu durante o segundo confinamento, e
tendo os familiares e amigos em hospitais, e alguns deles a morrerem, deixou
muitos indivíduos abalados psicologicamente.
Por outro lado, falar das virtudes do ficar em casa, da paz do lar, e da
necessidade de repouso físico e psicológico, é esquecer os que não tinham casa,
os sem abrigo, e os que tiveram de voltar para casa dos pais. Falar no bem de
ficar em casa é esquecer os que tinham casas muito pequenas, é esquecer os
muitos vivem apenas em quartos, em casas onde há muitas pessoas, com
barulho e riscos de contágio. Muitos indivíduos com famílias numerosas, e com
toda a família fechada em casa, não encontraram a paz de espírito do
recolhimento, antes pelo contrário. Em vez de se retirarem em casa para se
reconciliarem consigo mesmos, e para uma espécie de retemperar de energias
físicas e psicológicas, encontrarem precisamente o contrário. Com os
confinamentos, em muitas casas nasceram ou aumentaram problemas
familiares, principalmente a violência doméstica, devido à falta de bens
essenciais para partilharem com o resto da família, ao desemprego que atingiu
muitas famílias, e à tensão psicológica de se estar todo o dia fechado em casa,
rodeado de mais pessoas o tempo todo. A pandemia do coronavírus nem sempre
trouxe bens do ponto de vista psicológico, mas sim o contrário para a maioria
das pessoas.
78
John Piper, Coronavirus and Christ, Wheaton, IL, Ed. Crossway, 2020
grande sofrimento, pois ficaria sem o seu filho), assim como testou Jó, através
de muitos sofrimentos de que este padeceu.
Todavia, se assim é, Deus deveria só atingir os crentes, para testar a sua
fidelidade, mas o coronavírus atingiu toda a gente, uns de maneira direta, ao
serem atingidos pelo vírus, outros de maneira indireta com a perda de
familiares e amigos, e com a perda de empregos. Porque é que os não crentes
também têm que sofrer o coronavírus, para que Deus teste a fidelidade dos
crentes ? Por outro lado, se Deus é omnisciente, Deus sabe tudo, logo não
precisa de fazer testes para saber se os crentes lhe são ou não fiéis, e se
realmente acreditam ou não nele, e portanto se continuam com ele e não se
revoltam no meio das tribulações, dado que Deus não lhes valeu.
Para os crentes em Deus, a pandemia do coronavírus é também
considerada uma forma de redenção do ser humano através do sofrimento. Esta
tese pode ser encontrada por exemplo na carta apostólica do Papa João Paulo II,
Salvici Doloris, sobre o sentido cristão do sofrimento humano. À luz da
perspetiva cristã, o sofrimento adquire significado, e portanto não é algo
gratuito. Cristo disse : “Felizes os infelizes, felizes aqueles que têm fome e sede
de justiça”. O sofrimento identifica-se com a recompensa, como uma espécie de
morte-infelicidade, que faz frutificar vida-felicidade, ou seja, a imortalidade.
A ideia de redenção pelo sofrimento é uma ideia que pressupõe que o ser
humano precisa de ser redimido, isto é, salvo. Mas isto pressupõe que há algo
de que o ser humano precisa de ser salvo, isto é, do pecado, tanto do pecado
original, como dos pecados que comete no seu dia a dia. Ora, isso significa
acreditar que somos pecadores, o que não se coaduna com o que muitas pessoas
sentem e pensam em relação aos seus atos, dado que não prejudicam outros
indivíduos, e por outro lado isso implica que é preciso ter fé em Deus. Há
determinadas ações que muitas pessoas não consideram pecado, e por isso não
sentem necessidade de redenção espiritual pelo sofrimento ou por outra forma.
Por outro lado, conforme pensam os não crentes, mesmo que sejam erradas,
como roubar e matar, não precisam de ser redimidas por Deus, pois por um lado
são erradas independentemente de Deus as considerar como pecado, e por
outro lado porque podem e devem ser punidas neste mundo, através da
condenação nos Tribunais, e não através do castigo de Deus com pandemias,
que aliás atingem toda a gente, tanto os que cometem crimes como os que não
cometem.
São Paulo diz que “para quem ama a Deus tudo se pode converter num
bem” (Romanos, 8, 28). No caso do coronavírus, para quem a ama a Deus, Ele
pode converter-se num bem, mas o sofrimento do coronavírus não expia nem
paga os erros cometidos pelos seres humanos, como por exemplo matar ou
roubar. A redenção divina pelos pecados, a salvação do ser humano pelo facto
de ter cometidos determinados erros, não é suficiente, e por outro lado só é
aceite por quem acreditar em Deus. Há outras formas mais justas do ser
humano pagar pelos seus erros, sem ser pelo sofrimento das doenças e de outros
males que lhe acontecem. A ideia de redenção dos pecados, através do
sofrimento, por exemplo com pandemias, tem também subjacente a ideia de
culpa, e consequentemente de punição. Ora, isso implica que as pessoas além de
terem de ser purificadas no Purgatório, ou punidas no Inferno, depois de
morrerem, também são punidas já neste mundo.
À luz da perspetiva religiosa não se deve encarar as contrariedades, tais
como as doenças, como algo de absurdo e sem sentido, mas para isso é preciso
acreditar em Deus, e além disso há aqui uma atitude de submissão e de
estoicismo, de aceitação. Os crentes acreditam que Deus está com eles também
no sofrimento, e aquilo que parece caótico, aleatório e absurdo, ganha sentido,
pois recorrem a Deus. Mas na prática esta atitude é em muitos casos semelhante
à de alguém que só se lembra de Santa Bárbara quando faz trovões. Trata-se de
uma atitude que revela muitos crentes como interesseiros, como as pessoas que
só se lembram de Nossa Senhora de Fátima quando têm problemas e que só vão
a Fátima se ela as curar. É uma troca com Deus, uma espécie de comércio, em
que um paga ao outro por aquilo que recebeu. As pessoas dizem a Deus : “curas-
me, e eu dou-te isto e aquilo”.
Ora, Deus, dado que é Deus, não precisa das nossas coisas. No caso do
coronavírus acontece o contrário, pois se Deus a enviou para que as pessoas se
aproximarem mais dele, é como se Deus lhes dissesse : “dou-vos a pandemia,
para vos lembrardes de mim”. Mas para que precisa Deus de nós, que Deus é
esse que nos envia uma pandemia para que as pessoas se aproximem mais
dele ? é Deus que precisa que as pessoas se aproximem dele, e então lhes envia a
pandemia, ou são elas que precisam dele ? A pandemia aproxima mais as
pessoas de Deus por necessidade de Deus ou das pessoas ?
As religiões judaica, cristã e muçulmana ensinam-nos que Deus nos ama,
e que se não o amarmos iremos para o inferno. O coronavírus, entendido como
um bem espiritual para que as pessoas se tornem religiosas (ou mais religiosas),
e amem a Deus (ou o amem mais), é uma coisa que Deus nos envia para que o
amemos e nos livremos do Inferno. Mas isto é um relacionamento abusivo,
semelhante ao homem que diz à mulher : “eu amo-te, eu quero-te, és minha, e
se não me amares mato-te” , que é o equivalente a colocar as pessoas no Inferno.
Na Bíblia Sagrada o Inferno é considerado uma segunda morte, e é chamada
segunda, porque se segue à morte física (Apocalipse, 2,11; 20, 6; 20, 14-15;
21,8), e portanto quem não tiver acreditado em Deus e quem não o tenha
amado, será também morto. Segundo os teólogos, Deus respeita o livre arbítrio
das pessoas, e portanto entramos aqui numa contradição. Se um homem
respeitasse o livre arbítrio da mulher por ela não o amar, não a matava. Se Deus
respeitasse o livre arbítrio dos seres humanos por não acreditarem na sua
existência nem o amarem não os punha no Inferno. O facto das pessoas não
acreditarem em Deus nem o amarem não significa que sejam más pessoas, pois
uma pessoa pode ter bom comportamento na sua vida na Terra, mesmo sem
acreditar em Deus nem o amar.
Se Deus enviou a pandemia do coronavírus para que as pessoas
acreditem nele e o amem, isso significa que Deus quer que as pessoas acreditem
que ele existe e que o amem. Se o coronavírus é um bem espiritual entendido
como forma de as pessoas se lembrarem dele, porque razão Deus não respeita o
livre arbítrio das pessoas, e lhes envia pandemias para que se lembrem dele ?
porque razão as pessoas não são livres de acreditarem nele ? porque razão as
pessoas não são livres de o amarem ? porque quer ele ser tão adorado ? se Deus
enviou a pandemia como um bem espiritual, fazendo com que as pessoas se
aproximem dele, porque recorre Deus a meios como esse, isto é, a pandemias,
para que se aproximem dele ? se Deus envia pandemias para que as pessoas se
aproximem dele, isso não faz sentido sendo Deus um ser que se basta a si
mesmo, e que portanto não precisa das pessoas.
Com os tormentos da vida, algumas pessoas mudaram de vida,
confessaram os seus pecados, pararam de pecar, e voltaram-se para Deus,
tornaram-se religiosas ou mais religiosas. Isso não aconteceu apenas com a
pandemia do coronavírus, mas com outras tragédias que aconteceram ao longo
da História, como por exemplo com a peste negra. Mas com o passar do tempo
voltou tudo ao mesmo, as pessoas esqueceram-se dos seu bons propósitos,
esqueceram-se de Deus, e voltaram à vida que dantes levavam, não valeu de
nada, e também não valerá de nada o “bem religioso” trazido pelo coronavírus.
Nem todas as pessoas se aproximam mais de Deus em situações como as
da pandemia do coronavírus, pois as preocupações do ser humano voltam-se
principalmente para a saúde e para a economia. A pirâmide do psicólogo e
filósofo norte-americano Abraham Maslow, que classifica as necessidades
humanas por ordem de importância, coloca em primeiro lugar as necessidades
fisiológicas e securitárias, e em último lugar as necessidades de auto realização,
entre as quais se incluem as necessidades espirituais. Esta pirâmide permite
compreender porque razão, em tempos de crise, as necessidades fundamentais
(comida, saúde, segurança) estão no centro da atenção, e as necessidades do
espírito (Filosofia, Poesia, Arte, Espiritualidade) são como um luxo e vêm em
último lugar.
Por outro lado, em tragédias como as da pandemia do coronavírus muitas
pessoas ficam dececionadas com Deus, devido ao facto de Deus, sendo
considerado todo poderoso e bondoso, nada fazer para livrar as pessoas do
coronavírus. Muitas pessoas chegam à conclusão de que para o problema das
catástrofes, pandemias, doenças, e outros males naturais, não podem contar
com a fé em Deus e acabam por enveredar no ceticismo, no agnosticismo, e
algumas no ateísmo. Para muitas pessoas o coronavírus, o cancro, os
terramotos, os tornados, os tsunamis, as cheias e outras grandes catástrofes
naturais, perante o silêncio e a ocultação de Deus, não levam a nada do ponto
de vista religiosos, antes pelo contrário, pois revelam que estamos sós e
abandonados, entregues a um mundo de sofrimentos atrozes, injustificados e
constantes, precisamente porque Deus está escondido ou não existe. 79
Conforme Primo Levi afirmou sobre os campos de concentração nazis,
“existe Auschwitz, logo não existe Deus”.80 À semelhança de Primo Levi muitos
perguntam : onde estava Deus enquanto acontecia a guerra no Vietname, a
79
Ver J. L. Schellenberg, Divine Hiddenness and Human Reasons, Ítaca e Londres, Ed. Cornell University
Press, 1993.
80
Primo Levi, Se isto é um homem, Lisboa, Ed. Teorema, 2011.
explosão de Hiroshima, no Ruanda, em Dresde, e em tantos outros cenários de
horror ? Não esteve presente, e portanto para muitos significa que Deus não
existe, ou não se importa com isso no caso de existir. Esqueceu-se das pessoas,
deixou-as sós e abandonadas, assim como na pandemia do coronavírus É isso o
que sentem e pensam muitas pessoas, fazendo-as ficar mais descrentes em
Deus.
Os motivos maiores para a rejeição da existência de Deus não são
racionais (por uma ausência de evidências filosóficas e científicas em favor da
existência de Deus), mas emocionais. Devido a muitas dificuldade na vida,
sofrimentos, rejeições, traumas, deceção com alguém, perda de entes queridos,
desemprego, injustiças sociais, saúde debilitada, problemas amorosos,
catástrofes naturais, massacres e guerras que muitos indivíduos viveram e
testemunharam, e outras situações como as pandemias, levam muitas as
pessoas a ficarem revoltadas, e em vez de as aproximarem mais de Deus, afasta-
as. Portanto, só com algumas pessoas a pandemia do coronavírus proporcionou
o bem espiritual do encontro com Deus, pois com muitas pessoas aconteceu
precisamente o contrário.
83
Dalai Lama, entrevista à revista Time Magazine, 14 de Abril de 2020.
ensinamento, embora algumas destaquem mais a fé em vez das obras, como um
meio de receber a Graça Divina e a santificação, enquanto outras juntam as
duas, considerando que não há verdadeira fé em Deus sem a prática de boas
obras, conforme diz na Bíblia o apóstolo Tiago, para quem «fé sem obras é
morta» (Tg 2, 17).
A doutrina do catolicismo classifica a caridade como uma das três
virtudes teologais (fé, esperança e caridade), e uma das sete virtudes capitais
(humildade, generosidade, castidade, paciência, temperança, caridade,
diligência). São Paulo disse que, de todas as virtudes, “a maior delas é a caridade
(1 Coríntios, 13,13), e o Catecismo da Igreja Católica (artigo 388) enaltece a
sua prática, citando outras afirmações de São Paulo sobre isso : "a caridade é a
virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo
como a nós mesmos por amor de Deus. Jesus faz dela o mandamento novo, a
plenitude da lei. A caridade é «o vínculo da perfeição (Colossenses 3:14) e o
fundamento das outras virtudes, que ela anima, inspira e ordena: sem ela «não
sou nada» e «nada me aproveita» (Coríntios, 13,1-3).
A caridade constitui uma das questões teológicas centrais desde o século
XII, pois Bernardo de Claraval, Aelred de Riévaulx, Guillaume de Saint-Thierry,
Richard de Saint-Victor, e ainda Pierre de Blois consagram-lhe amplas
reflexões. A caridade é historicamente um dever de cada católico, e muitas
ordens religiosas dedicaram-se exclusivamente à sua prática, e
autodenominam-se mesmo com a palavra “caridade”, como por exemplo as
“Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo”. Algumas instituições seculares,
como por exemplo a “Santa Casa da Misericórdia”, em Portugal, estão também
muito inspiradas pelo princípio da caridade, e como a própria designação
indica, pela misericórdia.
Na Igreja Católica é também importante destacar a Caritas, (palavra
latina que significa “caridade”), que é uma organização internacional que como
o nome indica foi criada para o exercício da caridade, fundada em 1924, e que
atua em mais de duzentos países. Em Portugal foi instituída pela Conferência
Episcopal Portuguesa, em 1945. No pós II Grande Guerra Mundial, e no início
das tensões da Guerra Fria, portanto desde o início dos anos 50 até aos anos 80
a atividade da Caritas centrou-se na distribuição de alimentos pela população
portuguesa em geral. Atualmente a Caritas dedica-se também ao apoio
materno-infantil, infantojuvenil e à terceira idade, bem como ao apoio às
minorias étnicas, às comunidades de imigrantes e suas famílias, aos
toxicodependentes, aos seropositivos e aos alcoólicos. Com a pandemia do
coronavírus estas e outras organizações dentro da Igreja Católica tiveram um
papel importante, ajudando muitas famílias carenciadas.
No entanto, apesar de devermos reconhecer a sua importância, não nos
devemos também esquecer que há organizações não religiosas muito
empenhadas no apoio social, que revelam que a ajuda ao próximo é um bem em
si mesmo, que não necessita de fundamento divino, conforme veremos
seguidamente.
84
Richard Taylor, Virtue Ethics, Interlaken, Ed. Linden Books, 1991, pp. 2-3.
significa que qualquer pessoa que não acredite em Deus não poderá agir
moralmente ou de forma correta, o que não é verdade, pois os ateus podem
cumprir os seus deveres morais e jurídicos como as outras pessoas, e muitos
deles praticam grandes atos louváveis moralmente, sem precisarem de acreditar
em Deus.
Os defensores da teoria ética dos mandamentos divinos defendem que
não se pode atuar bem nem evitar atuar mal sem a esperança de uma
recompensa divina ou o medo de um castigo divino, ou seja, devemos agir bem
do ponto de vista ético, para que Deus não nos castigue (por exemplo com
pandemias, no caso destas serem um castigo divino). Ora, nós devemos agir
bom do ponto de vista ético, não por medo de sermos castigados por Deus
durante a nossa vida (por exemplo através de pandemias), nem por medo do
Inferno (no caso deste existir), e portanto independentemente de Deus existir
ou não.
Decorrente da prática religiosa da atenção para com os mais necessitados
temos, conforme já referimos, a prática da caridade. Ora, caridade tem efeitos
negativos, pois cria uma mentalidade de dependência entre os destinatários, e
não incentiva ao investimento do dinheiro por parte de quem o recebe. É uma
atitude sentimentalista que prolonga o ml da pobreza e de outros problemas
sociais, em vez o resolver, isto é, não combate a origem do problema, e portanto
o problema continua. A caridade, quando exercida pelos que são ricos, é uma
atitude que não lhes custa nada fazer, pois é como dar sobras ao outro, é uma
relação de desigualdade, e é também uma situação humilhante para a pessoa
ajudada.
Por outro lado, na caridade muitos ajudam os outros para serem vistos,
ou fazem-no sob o peso ou a pressão social, de modo a não serem criticados por
não ajudarem, e também para ficaram mais tranquilos com a sua consciência,
não sentido complexos de culpa por não terem ajudado, apenas sentindo-se bem
por terem participado na luta contra o sofrimento. Na mentalidade tradicional
as pessoas eram muito ajudadas por doações, mas essa ajuda dependia da boa
vontade de quem ajudava. Nessa ajuda havia também muita hipocrisia social,
pois muitos filantropos ajudavam para serem louvados pela sociedade, para
terem honras sociais, e muitos crentes em Deus, conforme já referimos, faziam-
no para terem uma recompensa no céu.
Ora, mais do que à caridade e à misericórdia, o nosso tempo dá atenção a
outros valores éticos considerados como mais importantes : a solidariedade, a
ação social, a hospitalidade, o respeito, o reconhecimento. A caridade, assim
como a tolerância, é um sentimento de paternalismo, de condescendência e de
superioridade para com o outro. Em vez disso, hoje o princípio ético em que
assentam as demandas de atenção aos problemas sociais e às catástrofes (por
exemplo um incêndio de grandes proporções), é a da solidariedade, que significa
que os seus praticantes se sintam integrantes na mesma comunidade, e portanto
se sintam interdependentes. Trata-se da cooperação mútua entre as pessoas, da
necessidade compartilhada, e da interdependência de sentimentos. A
solidariedade é uma atitude de reciprocidade, tendo em conta em que em
situações como por exemplo a da pandemia do coronavírus, “estamos todos no
mesmo barco”, e portanto, “hoje ajudo-te eu, amanhã ajudas-me tu”, ou “eu
ajudo-te numas coisas, e tu ajudas-me noutras”. Ligada à solidariedade está
também a empatia, que significa a capacidade psicológica de alguém para se pôr
no lugar do outro, sentir e compreender o que sente e compreende o outro
indivíduo, se estivesse na mesma situação vivenciada por ele.
A caridade não resolve os problemas de fundo das pessoas, pois elas
continuam a ter os mesmos problemas, isto é, continuam a ser pobres. Há que
lutar, tanto quanto possível, para erradicar ou diminuir a pobreza no mundo, e
isso não se faz simplesmente com esmolas, como se fazia no passado. Conforme
recomenda um provérbio, “não dês um peixe, ensina a pescar”. Quando se
insiste na prática da “dádiva de peixes”, estamos negando ao outro o saber.
Quando se cria o hábito de dar peixe, como se faz com a caridade, não se lhe está
transmitindo nenhum ensinamento, quem continua a dar peixes continua no
monopólio da pesca, continua detentor do saber pescar e não o transmite aos
outros.
A caridade implica também que é uma fatalidade ser pobre. Ora, a
pobreza deve ser combatida, e lutar-se para que haja igualdade de
oportunidades de modo a que todos possam ter melhores condições de vida,
igualdade essa que é um dos fundamentos da preocupação para com os mais
necessitados. Embora não haja igualdade socioeconómica no ponto de chegada,
pois há sempre pessoas que se esforçam mais do que outras, e esse mérito deva
ser recompensado, todos devem ter igualdade de oportunidades.
Visando colmatar a pobreza e outras necessidades, como as trazidas por
exemplo pela pandemia do coronavírus, as novas atitudes para com a situação
dos necessitados requerem a chamada ação social, que designa o conjunto dos
meios pelos quais a sociedade age sobre si mesma para preservar a sua coesão,
nomeadamente pelos dispositivos legais ou por ações visando ajudar as pessoas
ou os grupos sociais frágeis a melhor viverem, a adquirirem ou a preservarem a
sua autonomia, e a adaptarem-se ao meio social que os rodeia. Nos tempos de
hoje temos também como nova atitude e fundamento a justiça social, isto é,
uma construção moral e política que visa a igualdade de direitos, e que concebe
a necessidade de uma solidariedade partilhada entre as pessoas dentro da
sociedade.
Vários autores têm defendido, embora cada um de maneira diferente,
novos valores morais e novos princípios políticos como forma de resolver os
problemas sociais (John Rawls, Peter Singer, Friedrich Hayeck, Nancy Fraser,
Nigel Dower, Thomas Pogge, Charles Beitz, Charles Taylor, Axel Honneth,
Philippe Van Parijs, etc.). Não é aqui o lugar para especificar e debater cada
umas dessas teorias, nem para concordar ou discordar de algumas delas, mas na
sua generalidade estes autores enquadram-se nas novas atitudes e nos novos
fundamentos da assistência para com os mais necessitados. Apesar de não
propormos nenhum das teses em especial, defendidas por esses autores, nem
nenhuma das suas ideologias, há um princípio ético fundamental, que
salientamos, devido à sua abrangência, que fala da complexa necessidade
humana, quer comunitária quer individual, de aceitação e acolhimento do outro
e como de construção da identidade : o reconhecimento. Charles Taylor (1994),
um dos principais teóricos deste princípio moral, no seu ensaio A Política do
reconhecimento está preocupado em compreender e solucionar o problema da
singularidade das identidades e da diversidade da sua coexistência dentro de
uma mesma organização social. 85
Taylor defende que a falta ou recusa de reconhecimento e/ou um
reconhecimento deformado podem ser considerados formas de opressão e de
expressão de desigualdades. Daí a sua defesa do caráter dialógico da entidade
em que o que nós somos depende da interação com os outros. Essa
inevitabilidade da condição humana como diálogo defende a necessidade de
85
Charles Taylor, A ética da autenticidade, Lisboa, Ed. 70, 2009.
uma política de reconhecimento aliada a uma política de diferença, pois o
universalismo dos direitos humanos não deve anular a unicidade, a
autenticidade e a originalidade de cada indivíduo. Para compreender estas duas
políticas Charles Taylor põe a tónica em conceitos como a autenticidade e a
dignidade, à luz das teorias de Rousseau, Herder ou Stuart Mill. É nas
sociedades democráticas, independentemente da religião, que o conceito de
dignidade se estabelece como garante do universalismo dos direitos humanos,
isto é, a dignidade passa a ser encarada como um valor comum a todos os
indivíduos, crentes, descrentes e agnósticos, ao contrário do conceito de filhos
de Deus, que dantes sustentava a atenção ao outro, por também ele ser filho de
Deus, ou porque, conforme a antiga expressão popular portuguesa, “ quem dá
aos pobres empresta a Deus”. A pertença a uma determinada religião,
legitimava não só a salvação eterna desse indivíduo no Paraíso, como também a
aceitação desse indivíduo pelos outros indivíduos, que consideravam essa a
verdadeira religião, e que só por isso eram aceites num país, como no caso dos
judeus, que tivera que deixar a religião do judaísmo e fazerem-se cristãos
(cristãos novos).
Outro autor importante no princípio ético do reconhecimento, é Axel
Honneth. 86
A teoria do reconhecimento de Axel Honneth desenvolve-se com
base na luta do ser humano para ser reconhecido. Este autor vê o
reconhecimento como uma forma conceder identidade ao indivíduo, atribuindo
a essa identidade o significado de liberdade individual e autonomia. Para isso a
intersubjetividade tem um papel muito importante, pois a identificação é
construída através da interação social. Axel Honnet apresenta três esferas de
reconhecimento : no amor (nas relações pessoais com vínculo afetivo); no
campo jurídico-moral (nas relações de Direito); na estima social (nas relações
de solidariedade). O conceito de reconhecimento é muito importante na
atualidade, pois defende a inclusão e a visibilidade daquele que estava
tradicionalmente invisível, portanto independentemente do seu género, da sua
idade, da sua condição social, da cor da sua pele, da sua crença religiosa, da sua
convicção política, ou da sua orientação sexual.
Por conseguinte, os fundamentos éticos alteraram-se. Enquanto dantes
se falava em Deus, hoje fala-se em Direitos Humanos. Enquanto dantes se
86
Axel Honneth, Luta pelo reconhecimento, Lisboa, Ed. 70, 2011
falava em honra, hoje fala-se em dignidade. Enquanto dantes se falava em
caridade, hoje fala-se em solidariedade. Enquanto dantes se falava em
tolerância, hoje fala-se em respeito pelas diferenças. À semelhança da caridade,
a tolerância é um dos princípios éticos menos invocados nos tempos de hoje,
vendo-se nele uma certa arrogância, pois pressupõe que o outro está no erro, e
que o devemos tolerar. Ora, não é erro ser negro ou chinês, por exemplo. Por
outro lado, é uma atitude de condescendência e de inferiorização do outro. Mais
do que ser tolerado, o estrangeiro (o imigrante, o refugiado, etc.) deve ser
reconhecido como um ser de direitos, e portanto independentemente de Deus e
das religiões, e não seve ser acolhido e respeitado porque Deus existe, e porque
ser um filho de Deus, mas sim porque é um ser humano, dotado de direitos,
entre os quais o direito à dignidade e à igualdade, o direito à vida e à segurança.
Em vez da caridade, hoje temos outras atitudes e valores do ponto de
vista ético-político, que significam colocar-se no lugar do outro, descobrir com
os olhos do outro, sentir o que o outro sente, ter a capacidade psicológica para
se identificar com o outro, conseguindo sentir o mesmo que ele sente nas
situações e circunstâncias por ele vividas. Significa sentir como o outro se sente
e se percebe, como ele descobre e encara o mundo que o rodeia, como ele
percebe as outras pessoas que o cercam, quais são as suas dúvidas, as suas
angústias. Significa respeitar e aprender que o outro que é diferente de nós nos
acrescenta crescimento e conhecimento. Essa atitude, independentemente do
respeito pelas crenças religiosas, não tem no entanto a ver com as crenças
religiosas, mas sim com a necessidade de sermos corretos para os outros devido
ao facto não de serem filhos de Deus mas sim de serem seres humanos.
A Igreja católica, com o Papa Francisco, tem-se aproximado dos novos
princípios éticos da necessidade de atenção para com o outro, e dos respetivos
fundamentos, procurando fazer uma ligação com os princípios religiosos. Pode
ver-se isso principalmente na encíclica Todos Irmãos (“Fratelli Tutti”), assinada
no dia 3 de Outubro de 2020 em Assis, em honra de S. Francisco, protetor da
ecologia e dos mais frágeis. 87
Nessa encíclica o Papa fala no valor dos direitos
humanos,88 da solidariedade, 89
na necessidade de reconhecer o outro, 90
e na
87
Papa Francisco, Fratelli Tutti, carta encíclica sobre a fraternidade e a amizade social, Lisboa, Ed.
Paulinas, 2020.
88
Idem, p. 63
89
Idem, p. 69
90
Idem, p. 134
necessidade de fazer-se presente a quem precisa de ajuda independentemente
de fazer parte ou não do próprio círculo de pertença, incluindo religioso, 91 e
portanto de sociedade abertas que integram a todos, não necessariamente por
serem filhos de Deus, mas por serem seres humanos. 92 O Papa Francisco nesta
sua encíclica tem mesmo um capítulo a que deu o título : “As pandemias e
outros flagelos da história”. Termina este capítulo desejando que “descubramos
enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros”, pois “ se não
conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de
pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens,
desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê
da náusea e do vazio”.93
A generalidade da Igreja católica tem alinhado, nos tempos de hoje, com
esta e outras mensagens do Papa Francisco. No entanto, a Igreja católica não é
só o Papa, por isso tem também havido e continua a haver no seio da Igreja
católica algumas vozes discordantes do teor da sua mensagem. Resta saber se a
atitude da Igreja católica irá continuar a ser como o do Papa Francisco, ou se
mudará em função de cada Papa.
91
Idem, p. 50
92
Idem, p. 60
93
Idem, ibidem, p. 26
O CORONAVÍRUS EM PORTUGAL SOB O
PONTO DE VISTA RELIGIOSO
COMPARAÇÃO COM A ATITUDE EM RELAÇÃO AO TERRAMOTO DE
1755 EM LISBOA
94
Gottfried Leibniz, Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de l'homme et l'origine du mal,
Paris, Ed. Flammarion, 1999.
Ora, também a pandemia do coronavírus pode ser explicada
cientificamente, atribuindo-lhe causas naturais e humanas, e não tem de ser
explicada como um castigo de Deus. Se a Ciência pode explicar a Natureza, a
origem e as consequências do coronavírus, não há necessidade de considerar o
coronavírus como resultado da intervenção de forças sobrenaturais e de um
castigo divino.
95
Jean-Jacques Rousseau, Cartas morais , seguido de correspondência sobre a providência, a sociedade e
o mal, Lisboa, Ed. 70, 2020
Em Lisboa, há cerca de 500 anos atrás, era com preces a São Roque que a
maioria dos lisboetas se sentiam protegidos da peste. Uma relíquia do santo,
que veio expressamente de Veneza, como doação do Papa, deu origem a uma
ermida que meio século depois foi demolida para se construir a atual igreja de
São Roque, no Bairro Alto, em Lisboa.
No atual largo da Misericórdia existia um cemitério dos mortos pela
peste. Esse lugar ficava fora das muralhas de Lisboa e era pouco povoado. Foi o
povo que construiu a ermida, em 1506, e rapidamente se tornou um lugar de
peregrinação e culto religioso. O santo passou a ter grande aceitação e foi até
criada a Irmandade de São Roque, que hoje continua a existir. O culto a São
Roque desenvolveu-se em Portugal em geral, e a sua vida também está
relacionada com a peste. Foi um santo que ajudou a curar pessoas infetadas, ele
próprio chegou a ser atingido por uma peste e curou-se.
Ora, nos tempos de hoje a devoção a São Roque é bem diferente. Algumas
capelas e igrejas de São Roque em Portugal deixaram de ter celebrações em sua
honra, e outras têm celebrações no dia do seu aniversário, mas essas celebrações
hoje são muito simples. As celebrações solenes em honra de São Roque na
igreja de São Roque em Lisboa, eram as mais célebres, pois vinha gente de todo
o país, e eram muito demoradas : tinham missa, novena, procissão, e incluíam a
celebração de vésperas solenes no dia anterior. No dia das celebrações do santo
(que eram a 16 de Agosto e passaram para o dia 4 de Outubro) havia uma
liturgia própria, com introito, oração, epístola, evangelho, acompanhada de
música e de cânticos. Nestas celebrações na igreja de São Roque, em Lisboa, a
igreja estava sempre cheia, e por vezes ainda ficava muita gente na rua, por não
haver lugar para mais gente dentro da Igreja. Ora, nada disso acontece nos
tempos de hoje.
Seria de esperar que com a pandemia do coronavírus, tal como
aconteceu com pestes ao longo da História, que atingiram Portugal e a cidade de
Lisboa, a igreja de São Roque em Lisboa se enchesse, e o povo acorresse
frequentemente a essa igreja, para pedir a proteção de São Roque contra as
pestes, tal como acontecia no passado. Ora, apesar de ter sido uma missa
festiva, a celebração em honra de São Roque, em Outubro de 2020, em plena
pandemia, foi muito mais simples que antigamente, e não teve muita
assistência. A irmandade de São Roque compareceu, vestida com um traje
próprio, mas as pessoas que assistiram a essa celebração não foram em maior
número do que o habitual nos outros domingos. Por outro lado, a igreja de São
Roque nos outros dias sem ser no domingo continuou a ter praticamente o
mesmo número de visitantes que tinha antes da pandemia do coronavírus. Esta
fraca afluência religiosa, não apenas no dia das celebrações em honra de São
Roque revela que, apesar deste ser o santo protetor das pestes, as pessoas hoje
confiam menos nele e mais na Medicina, a qual no passado se encontrava pouco
desenvolvida.
Também, na cidade de Lisboa havia uma devoção muito forte a Nossa
Senhora da Saúde, na capela do mesmo nome, no largo de Martim Moniz. Essa
capela foi mandada construir em 1505, pelos artilheiros da guarnição de Lisboa,
e inicialmente foi dedicada a São Sebastião, também ele protetor da peste,
enfermidade que então se espalhava por toda a cidade de Lisboa. Em 1569 a
capela foi dedicada a Nossa Senhora da Saúde, e em 1662 acolheu a sua imagem,
passando a ser conhecida sob essa designação.
Em 1568 surgiu o primeiro surto de uma peste, em Lisboa, e perante a
elevada mortandade a população de Lisboa começou a organizar procissões em
honra de Nossa Senhora da Saúde, para que por sua intercessão terminasse a
peste, e rezaram-se muitas missas e novenas para que a peste terminasse. A
peste de Lisboa veio a ser extinta, tendo os crentes atribuído a Nossa Senhora da
Saúde a sua extinção. Mas pelos vistos foi um bem de pouca duração, pois se foi
Nossa Senhora que a extinguiu, não impediu que ela mais tarde voltasse a
aparecer. Em 1599 ocorreu um novo surto da peste em Lisboa, e uma vez mais a
população recorreu a Nossa Senhora da Saúde.
Desde então, ao longo dos séculos, o culto a Nossa Senhora da Saúde foi
muito forte, não apenas devido às pestes mas também a outras enfermidades, e
à sua capela na cidade de Lisboa acorriam também muitas pessoas de várias
partes do país. Atualmente esse culto está muito enfraquecido, e a capela, que
antigamente estava sempre de portas abertas para os crentes rezarem e pagarem
promessas a Nossa Senhora da Saúde, tem estado e está quase sempre
encerrada. Nem mesmo a pandemia do coronavírus despertou o antigo culto a
Nossa Senhora da saúde.
96
Alfreda Ferreira da Fonseca, Ressurgir – 40 perguntas sobre a pandemia, Lisboa, o.c., p.207.
Mas o facto de se ser devoto libertaria os devotos de Nossa Senhora de
Fátima da pandemia ? é uma contradição a proibição de peregrinações e
celebrações a um “local de cura”, mesmo tratando-se de pandemias ? Se isso é
uma contradição, essa contradição já existe nas próprias aparições de Fátima,
pois os próprios videntes (Jacinta Marto e Francisco Marto) que disseram ter
visto Nossa Senhora, morreram com a pandemia que apareceu nessa época (a
pneumónica ou gripe espanhola), pouco tempo depois de alegadamente terem
recebido a aparição de Nossa Senhora em Fátima.
No santuário de Fátima lentamente foram levantadas as restrições, e tal
como nas igrejas em Portugal, o santuário de Fátima passou também a ter as
habituais celebrações. Os comerciantes do santuário de Fátima aproveitaram a
pandemia do coronavírus para fazer comércio, pois fabricaram pulseiras e
terços com as cores do arco-íris gravadas (que se tornaram um símbolo muito
difundido a propósito da pandemia). Nas pulseiras gravaram as cores do arco-
íris com as imagens de Nossa Senhora de Fátima, e nos terços colocaram uma
medalha com o arco-íris e a frase também muito difundida na sequência da
pandemia : “Vai ficar tudo bem”. Na verdade, não ficou tudo bem, ao contrário
do que dizia esse slogan muito espalhado, pois a pandemia agravou-se ao longo
de meses, o estado de emergência durou muito tempo, e no Inverno de 2021
teve que voltar a haver outro confinamento.
O cardeal D. António Marto, bispo da diocese de Leiria-Fátima, em
entrevista ao portal católico espanhol Religión Digital , enviou uma mensagem
de esperança a todos os católicos. A 25 de Março de 2020, o cardeal presidiu em
Fátima à celebração da consagração de Portugal e de Espanha ao Sagrado
Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria. Sobre este momento, D.
António Marto frisou que todo o significado está expresso numa frase do Papa
Francisco: "Queremos responder à pandemia do vírus com a universalidade da
oração, compaixão e ternura".
"O objetivo da oração de consagração ao Coração de Jesus e Maria, sua
mãe e nossa, era confiar à misericórdia divina, neste momento dramático, as
nossas tristezas e gritos de dor do mundo".
Também o Papa Francisco lembrou Nossa Senhora de Fátima a propósito
da pandemia do coronavírus, na sua audiência pública semanal em 7 de
Outubro, realizada no auditório Paulo VI. O Papa evocou as aparições de Fátima
para pedir aos católicos que rezem o Rosário, nestes tempos de pandemia, e que
a sua vida seja “serviço de amor” ao próximo, especialmente os mais
desprotegidos.
“Nossa Senhora, nas suas aparições, exortou muitas vezes à recitação do
Rosário, especialmente perante as ameaças que pairavam sobre o mundo.
Também hoje, neste momento de pandemia, é necessário ter o Rosário nas
mãos, rezando por nós, pelos nossos entes queridos e por todas as pessoas”,
disse o Papa nas saudações aos peregrinos que se reuniram, pela primeira vez
desde o confinamento, no Auditório Paulo VI. As saudações do Papa Francisco
aos peregrinos de vários países reunidos no Vaticano, foram feitas no dia 7 de
outubro, que é o dia da festa de Nossa Senhora do Rosário.
“Convido todos a redescobrir, especialmente durante este mês de
outubro, a beleza da oração do Rosário, que alimentou a fé do povo cristão ao
longo dos séculos”, disse o Papa.
O Papa Francisco dirigiu-se, em particular, aos peregrinos e ouvintes de
língua portuguesa :
“Convido-vos a tomar o rosário nas mãos todos os dias e erguer o vosso
olhar para Nossa Senhora, sinal de consolação e esperança segura. Que a
Virgem Santa ilumine e proteja toda a peregrinação da vossa vida até à Casa do
Pai”, disse o Papa.
As aparições de Nossa Senhora em Fátima não são um dogma de fé, pois
pode-se ser católico sem se acreditar nas aparições de Fátima, que muita
polémica suscitaram e continuam a suscitar. Sobre as aparições de Fátima
existem diversos livros, que desconstroem meticulosamente e desmistificam a
construção do “mito de Fátima” e colocam muitas dúvidas sobre a veracidade
dessas aparições,97 que no entanto não cabe aqui analisar.
As dúvidas sobre as aparições de Nossa Senhora em Fátima colocam-se
também hoje, na sequência da pandemia do coronavírus, a propósito das
aparições de Nossa Senhora em Medjugorje na Bósnia, aparições essas que
aconteciam todos os meses, desde o ano de 1981, mas que pararam com
97
Tomás Fonseca, Na cova dos leões, Lisboa, Ed. Antígona, 2009; João Ilharco, Fátima desmascarada,
Coimbra, 1971 (ed. do autor); Prosper Alfaric, A fabricação de Fátima, Lisboa, Ed. Delfos (s/d.); Fina
d’Armada, Fátima, o que se passou em 1917, Lisboa, Ed. Bertrand, 1980; Mário de Oliveira, Fátima
nunca mais, Porto, Ed. Campo das Letras, 1999; Luís Filipe Torgal, Fátima – a desconstrução do mito,
Lisboa, Ed. Palimage, 2027; Patrícia Carvalho, Fátima – milagre ou construção ?, Lisboa, Ed. Ideias de ler,
2027.
pandemia do coronavírus. Nossa Senhora, que é supostamente um ser divino e
poderoso, deixou de poder aparecer, tendo ficado limitada pelos acontecimentos
terrenos, ou então deixou de ter algo a dizer às pessoas, apesar de ser uma época
em que as pessoas mais precisavam dela. Devido ao coronavírus os peregrinos
deixaram de aparecer. Mas os peregrinos iam ao lugar da aparição porque
Nossa Senhora aparecia, ou esta aparecia porque os peregrinos lá iam ? Nossa
Senhora estava dependente dos peregrinos para aparecer ? se era uma
intervenção divina, porque não livrava os peregrinos do coronavírus ? se não
aparecia para falar aos peregrinos (pois estes não a viam nem a ouviam), mas
sim a uma mulher, podia muito bem continuar a aparecer-lhe e falar com ela
sozinha em casa.
Continuemos agora a falar de Fátima. Durante a pandemia do
coronavírus muitos peregrinos foram a Fátima pagar promessas que fizeram a
Nossa Senhora: irem desde as suas casas a pé até ao Santuário, rezarem o
rosário, porem velas a arder em frente da capela das aparições, andarem de
joelhos à volta da capela das aparições, oferecerem uma determinada quantia
em dinheiro ao santuário, oferecerem o seu vestido de casamento ao santuário,
oferecerem flores a Nossa Senhora, mandarem dizer uma missa ou uma novena
em sua honra, etc.
Muitos peregrinos fizeram isso porque acreditam que a sua recuperação
do coronavírus se deveu a um milagre de Nossa Senhora de Fátima, apesar de,
como sabemos, a recuperação não se dever a essas promessas e a milagres, mas
sim ao sistema imunitário do corpo humano. Nossa Senhora, no caso de existir,
dado que é um Ser divino, não precisa destas doações, e muito menos de
doações interesseiras (é como se as pessoas lhe tivessem dito : se me deres a
cura, eu dou-te “X”). Nossa Senhora não precisa de velas, nem de dinheiro, nem
de rosários, nem de flores, nem vestidos de casamento, nem que as pessoas vão
a Fátima a pé, mas muitas pessoas continuam a fazê-lo, e uma das razões foi o
facto de terem recuperado da infeção do coronavírus. Outras pessoas não
chegaram a ficar infetadas, e prometeram a Nossa Senhora de Fátima que se
nunca ficassem infetadas iriam a Fátima a pé, ou que pagariam a Nossa Senhora
de Fátima outra promessa. É certo que algumas pessoas não ficaram infetadas,
mas isso deveu-se ao facto de terem tido muitos cuidados (o uso de máscara, a
higienização das mãos, a distância social, a não frequência de espaços fechados,
terem recebido a vacina, etc.).
EPÍLOGO
- Introdução
4) – O RECURSO ÀS ORAÇÕES
- Orações contra o coronavírus
- O não atendimento de Deus às orações contra o coronavírus
- Orações pelos que faleceram devido ao coronavírus
- Outros problemas das orações
- Epílogo
- Bibliografia
- Índice