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80 | abril/junho – 2020
Belo Horizonte | p. 1-306 | ISSN 1516-3210 | DOI: 10.21056/aec.v20i80
A&C – R. de Dir. Administrativo & Constitucional
www.revistaaec.com
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Instituto Paranaense
de Direito Administrativo
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CDD: 342
CDU: 342.9
Como citar este artigo/How to cite this article: MARIANO, Cynara Monteiro; SOUSA, Francisco Arlem de
Queiroz. Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito
à boa Administração Pública e a vedação ao retrocesso social. A&C – Revista de Direito Administrativo
& Constitucional, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 125-152, abr./jun. 2020. DOI: 10.21056/aec.
v20i80.1197.
*
Pós-Doutora pela Universidade de Coimbra. Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de
Fortaleza. Professora Adjunta da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: cynaramariano@gmail.com.
**
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail:
franciscoa.sousa@agu.gov.br.
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Resumo: O direito fundamental à boa Administração Pública vem ganhando reconhecimento expressivo
em boa parte da doutrina nacional, como exigência da cidadania e da concretização da principiologia do
regime jurídico administrativo. Neste trabalho, que se utiliza de metodologia exploratória e qualitativa,
problematiza-se que o direito fundamental à boa administração também exige, por seu turno, que
sejam concedidas prerrogativas especiais aos servidores públicos para que atuem com independência
e liberdade, dentre as quais se destaca a estabilidade, que volta ao destaque na cena política e
jurídica do país por meio do PLS nº 116/2017-Complementar, que se propõe a regulamentar a
exoneração por insuficiência de desempenho. Necessária à continuidade e à eficiência dos serviços
públicos, fundamentais à boa administração, a estabilidade dos servidores vem sendo mitigada desde
a reforma administrativa operada pela Emenda Constitucional nº 19/98, mas o princípio da vedação
ao retrocesso social deve impedir que essa importante conquista, vital ao serviço público, seja ainda
mais enfraquecida, inclusive mediante a realização de avaliações periódicas de desempenho utilizadas
abusivamente.
Palavras-chave: Estabilidade. Garantia ao serviço público. Direito fundamental à boa administração.
Serviço público adequado. Princípio da vedação ao retrocesso social.
Abstract: The fundamental right to good public administration has gained significant recognition in
much of the national doctrine, as a requirement of citizenship and the implementation of the principles
of administrative legal regime. In this work, which uses an exploratory and qualitative methodology, it is
argued that the fundamental right to good administration also requires special prerogatives to be granted
to civil servants to act independently and freely, among which stands out. stability, which returns to
prominence in the political and legal scene of the country through the PLS 116/2017-Complementary,
which proposes to regulate the dismissal for insufficient performance. Necessary for the continuity and
efficiency of public services, which are fundamental to good administration, the stability of civil servants
has been mitigated since the Administrative Reform operated by Constitutional Amendment 19/98, but
the principle of prohibition of social regression should prevent this important achievement, vital to the
public service, is further weakened, including by conducting periodic performance assessments that
are misused.
Keywords: Stability. Guarantee to the public service. Fundamental right to good administration.
Adequate public service. Principle of prohibition of social regression.
1 Introdução
Em novembro do ano de 2018, governadores recém-eleitos em 19 (dezenove)
Estados reuniram-se e elaboraram a Carta do Fórum de Governadores,1 encaminhando
ao também recém-eleito Presidente da República Jair Bolsonaro 13 (treze) temas
prioritários, sendo um deles a flexibilização da estabilidade dos servidores públicos.
Alguns dias antes, um grupo com mais de 100 (cem) economistas elaborou um
documento intitulado “Carta Brasil”, propondo ao novo Chefe do Poder Executivo
1
ABREU, L.; COUTO, G. “Flexibilização da estabilidade não é consenso”, diz governador. Correio do Estado,
19 nov. 2018. Disponível em: https://www.correiodoestado.com.br/politica/flexibilizacao-da-estabilidade-
nao-e-consenso-diz-governador/341270/. Acesso em: 20 maio 2020.
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Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito...
2
DE CHIARA, M. Economistas se unem em projeto para o governo. Estadão, 12 nov. 2018. Disponí-
vel em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,economistas-se-unem-em-projeto-para-o-governo,
70002604012. Acesso em: 20 maio 2020. No documento, a análise aponta que a gestão de pessoal no
governo federal, estadual e municipal é muito falha, principalmente porque existe estabilidade garantida
de forma independente da função, da produtividade e da importância do serviço prestado.
3
Em entrevista concedida a canal de televisão por assinatura (CENTRAL GloboNews entrevista com o
presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Produção de Globonews. [S.l.]: Globonews, 6 fev. 2019. Disponível
em: https://globosatplay.globo.com/globonews/v/7361358. Acesso em: 22 maio 2019).
4
Podendo-se citar o PLP nº 248/1998, que disciplina a perda de cargo público por insuficiência de
desempenho do servidor público estável, e dá outras providências; o PLP nº 539/2018 que regulamenta o
inciso III do §1º do art. 41 da Constituição Federal, para disciplinar o procedimento de avaliação periódica
de desempenho de servidores públicos estáveis das administrações diretas, autárquicas e fundacionais
da União, Estados, Distrito Federal e Municípios; e o PLP nº 550/2018 que altera o art. 41, §1º, III, da
Constituição Federal, para dispor sobre a perda da estabilidade do Servidor Público Estável por falta de
desempenho e produtividade.
5
Na exposição de motivos do PLC nº 116/2017 a Senadora Maria do Carmo informa que não se trata de
punir servidores públicos dedicados que honram cotidianamente os vencimentos, mas que é inegável
existir uma antipatia quase generalizada contra agentes públicos irresponsáveis.
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Cynara Monteiro Mariano, Francisco Arlem de Queiroz Sousa
6
Bercovici alerta que o estado de exceção econômico permanente tem sido o responsável pela diminuição
da importância do estado e da constituição: “A constituição, que deveria ser o controle político do poder
econômico, vê os poderes que deveria controlar se tornarem ocultos e inalcançáveis” (BERCOVICI, G.
Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013.
p. 335).
7
Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/assuntos/relacoes-de-trabalho/noticias/servico-publico-
americano-tem-uma-unica-carreira-e. Acesso em: 25 jun. 2019. Contudo, foi também nos Estados Unidos
onde se disseminou o spoil system (ao vitorioso pertence o espólio), isto é, a prática de dar cargos na
burocracia estatal aos apoiadores do governo eleito. Weber relata que na presidência de Andrew Jackson
havia cerca de 300.000 a 400.000 nomeações de funcionários que “não tinham nada a apresentar para
sua qualificação, senão o fato de que eles tinham realizado um bom serviço ao seu partido” (WEBER, M.
Ciência e política: duas vocações. Tradução e notas de Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martin Claret,
2015. p. 108).
8
Bresser-Pereira, ao desenvolver o conceito de direitos republicanos como aqueles que “todo cidadão tem
de que o patrimônio público seja utilizado para fins públicos”, afirmou também existirem 8 (oito) grupos de
capturadores do patrimônio público que o fazem de forma “legal”: 1) capitalistas rentistas e financistas;
2) ricos que se beneficiam de um sistema tributário dotado de baixíssima progressividade; 3) servidores
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Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito...
e membros do governo que recebem remunerações muito maiores do que o valor do seu trabalho; 4)
igrejas e outras entidades sem fins lucrativos que recebem isenções fiscais descabidas; 5) empresários
que recebem subsídios dos mais variados tipos; 6) empresas que vendem serviços e bens, ou obtêm
concessões públicas e participam de parcerias público-privadas, por preços superiores ao que vale o
serviço ou o bem; 7) políticos que adotam políticas populistas fiscais ou então cambiais para lograrem
se reeleger; e, 8) os capturadores de um patrimônio público ambiental. BRESSER-PEREIRA, L. C. Direitos
republicanos e a captura “legal” do Estado brasileiro. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 69, n. 1, 18ª
edição especial, jan./mar. 2018. p. 17.
9
BRASIL. Constituição (1824). Título 5º – Capítulo VIII – Da Força Militar, art. 149. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 23 jun. 2019.
10
CASTRO, A. Estabilidade de funccionarios públicos. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917. p. 127.
11
Averbava o art. 169 que “os funcionários públicos, depois de dois anos, quando nomeados em virtude de
concurso de provas, e, em geral, depois de dez anos de efetivo exercício, só poderão ser destituídos em
virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, regulado por lei, e, no qual lhes será
assegurada plena defesa” (BRASIL. Constituição (1934). Título VII – Dos Funcionários Públicos, art. 169.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 maio
2019).
12
“Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de
provimento efetivo em virtude de concurso público” (BRASIL. Constituição (1988). Título I – Dos Princípios
Fundamentais, art. 4º, inc. IX. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm. Acesso em: 18 maio 2019).
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13
Segundo o mentor do Plano Diretor da Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser-Pereira, não só a estabilidade
e o concurso público, mas também o formalismo do sistema de licitações e o detalhismo do orçamento,
são uma reação à cultura patrimonialista que se afirmou no modelo de administração burocrática até então
vigente, consequência de uma desconfiança nos políticos e nos administradores públicos, resultando em
entraves a uma Administração Pública moderna, gerencial, eficiente e voltada para o atendimento do
cidadão. BRASIL. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Presidência da República,
Câmara da Reforma do Estado, Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1995. p. 26-38.
Disponível em: http://www.bresserpereira.org.br/documents/mare/planodiretor/planodiretor.pdf. Acesso
em: 3 set. 2019.
14
BRASIL. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Presidência da República, Câmara da
Reforma do Estado, Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1995. p. 27. Disponível
em: http://www.bresserpereira.org.br/documents/mare/planodiretor/planodiretor.pdf. Acesso em: 3 set.
2019.
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Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito...
15
Conferir art. 41, §1º, e art. 169, §4º, da CF/88. As hipóteses de perda da estabilidade listadas nos itens
“c” e “d” foram acrescidas pela Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1988.
16
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2.444/2016. Plenário. Processo 023.410/2016-7, tipo
do processo: Solicitação do Congresso Nacional (SCN). Interessado: Comissão de Assuntos Sociais do
Senado Federal (CAS). Relator: Bruno Dantas. Unidade técnica: Secretaria de Controle Externo da Saúde
(SecexSaúde) e Secretaria de Macroavaliação Governamental (Semag). Ata: 36/2016. Data da sessão:
21.09.2016.
17
DI PIETRO, M. S. Z. Estabilidade do Servidor Público. In: CANOTILHO, J. J. G.; MENDES, G. F.; SARLET, I.
W.; STRECK, L. L. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Almedina, 2013. p.
5.012.
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18
SOUZA FILHO, M. J. N. de. Análise histórico-evolutiva do instituto da estabilidade e seus efeitos práticos na
Administração Pública brasileira. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 14, n.
54, jul./set. 2016. p. 133. Disponível em: http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=244938.
Acesso em: 23 jun. 2019.
19
FREITAS, J. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa Administração Pública. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 121.
20
Acórdão TCU 1.332/2016. Plenário. Relator: Min. Vital do Rêgo. Ata 18/2016. Diário Oficial da União, 21
jun. 2016, edição 117, seção 1, p. 49.
21
Segundo a equipe de Auditoria do TCU, a investidura em funções de confiança e cargos comissionados de
pessoas que não têm as competências necessárias representa sérios riscos aos princípios da eficiência
e da transparência (Acórdão TCU 1.332/2016. Plenário. Relator: Min. Vital do Rêgo. Ata 18/2016. Diário
Oficial da União, 21 jun. 2016, edição 117, seção 1, p. 49).
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22
COLONNELLI, E; TESO, E; PREM, M. Patronage in the Allocation of Public Sector Jobs (Job Market Paper).
2018. Disponível em: https://scholar.harvard.edu/files/edoardoteso/files/edoardoteso_jmp.pdf. Acesso
em: 3 jun. 2019.
23
Além disso, os autores apontam que o clientelismo causa um “inchaço” nas administrações municipais,
haja vista que “an increase in the extent of patronage is associated with significant higher growth in
municipal public sector personnel, consistent with politicians increasing the size of the bureaucracy in
presence of incentives to engage in patronage practices” (COLONNELLI, E; TESO, E; PREM, M. Patronage
in the Allocation of Public Sector Jobs (Job Market Paper). 2018. Disponível em: https://scholar.harvard.
edu/files/edoardoteso/files/edoardoteso_jmp.pdf. Acesso em: 3 jun. 2019).
24
Jessé Souza ensina que a legitimação do mundo moderno como mundo “justo” está fundamentada na
“meritocracia”, mas não existe o “talento inato” ou o mérito “individual” independentemente do “bilhete
premiado” de ter nascido na família certa, ou melhor, na classe social certa. SOUZA, J. Ralé Brasileira:
quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 15.
25
Em um ensaio que se tornou clássico (Raízes do Brasil), Sérgio Buarque de Holanda, um dos “inventores
do Brasil”, apresenta o retrato fiel do brasileiro da época, o qual ele denomina de “homem cordial”. A não
distinção entre o público e o privado é a marca do patrimonialismo, o qual, infelizmente, instalou-se no
Brasil juntamente com a família real portuguesa em 1808. Confira-se também: FAORO, R. Os donos do
poder: formação do patronato brasileiro. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Globo, 2001.
26
COELHO, A. F. C.; BORBA, B. E. A qualidade das instituições importa? Os protestos no Brasil no governo
Rousseff. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, n. 65, p. 219-
247, jul./set. 2016. DOI: 10.21056/aec.v16i65.266.
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Cynara Monteiro Mariano, Francisco Arlem de Queiroz Sousa
apesar do alto preço pago pelos brasileiros em comparação com a falta de retorno
em termos de serviços públicos de qualidade. Estudo divulgado pelo Instituto
Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) informa que a carga tributária suportada
pelos cidadãos-contribuintes no Brasil equivale à de países desenvolvidos, mas a
“percepção de retorno”, ou seja, a sensação de bem-estar da população em áreas
vitais da sociedade, como saúde, educação e segurança, é baixíssima.27 Isso talvez
explique o que Wanderley Guilherme dos Santos caracteriza como o seu “paradoxo
de Rousseau” ou o paradoxo da democracia, sintetizado no desejo subvertido do
brasileiro médio de usufruir de serviços públicos das melhores qualidades, mas
sem ser obrigado a pagar os tributos correspondentes.28
Nessa perspectiva de crítica visando a melhoria na prestação dos serviços
públicos, ganha destaque um direito fundamental que tem natureza instrumental
a esse propósito, o qual a doutrina especializada denomina direito fundamental
à boa Administração Pública. Preliminarmente, antes de apresentar a boa
administração como um direito fundamental, é necessário que entendamos a
razão da fundamentalidade de um direito, pois, como diz Ferrajoli,29 “na tradição
do constitucionalismo democrático, as necessidades e os interesses vitais das
pessoas estipuladas como merecedoras de tutela têm sido expressados quase
sempre sob a forma de direitos fundamentais”.
Robert Alexy30 reconhece que os direitos fundamentais são tão relevantes que
somente podem ser restringidos por normas de hierarquia constitucional ou normas
infraconstitucionais, cuja criação tenha sido autorizada por normas constitucionais,
ou seja, não podem ser deixados à livre disposição do legislador ordinário. Silva31
aponta que no qualificativo fundamental se acha a indicação de que se trata de
situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive, e
às vezes, nem sobrevive. Para Dimoulis e Martins,32 “direitos fundamentais são
direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos
constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do
Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da
liberdade individual”, constituindo, em sua dimensão objetiva, uma pauta de valores
27
Disponível em: https://ibpt.com.br/noticia/2662/Estrutura-tributaria-e-a-qualidade-dos-gastos-publicos.
Acesso em: 31 maio 2019.
28
SANTOS, W. G. dos. O paradoxo de Rousseau: uma interpretação democrática da vontade geral. Rio de
Janeiro: Rocco, 2007.
29
FERRAJOLI, L. Por uma carta dos bens fundamentais. Revista Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos,
Florianópolis, n. 60, p. 29-73, jul. 2010. p. 29. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/
sequencia/article/view/21777055.2010v31n60p29/15066. Acesso em: 23 maio 2019.
30
ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2011. p. 286.
31
SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 180.
32
DIMOULIS, D.; MARTINS, L. Teoria geral dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p. 49.
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Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito...
a ser perseguida não somente pelo Estado, mas também pelos particulares nas
relações privadas.
O giro antropocêntrico após a Segunda Guerra mundial foi decisivo para
a ascensão dos direitos fundamentais, para o surgimento de um novo direito
administrativo e para a imbricação entre ambos. Segundo Muñoz,33 “las modernas
construcciones del Derecho Administrativo y la Administración pública proporciona
el argumento medular para comprender en su cabal sentido este nuevo derecho
fundamental a la buena administración”. Nesse contexto, o reconhecimento de
um direito fundamental à boa Administração apresenta desafios, a começar pela
indeterminabilidade da expressão. Contudo, Carvalho34 ressalta que não é a fluidez
do termo que impedirá sua aplicabilidade jurídica, pois outros conceitos, como o
de “boa-fé”, apresentam igual fluidez e mesmo assim têm contornos normativos
bem definidos. Some-se a isso o fato de que esse não é um direito fundamental
que surge como realidade tópica, aninhado a dispositivo normativo específico e
isolado, mas antes um direito fundamental implícito, de natureza principiológica,
que decorre do regime e de outros princípios adotados pela cláusula de abertura
da Constituição Federal de 1988.35
Na Europa não há mais dúvidas acerca da sua fundamentalidade depois da Carta
de Direitos Fundamentais da União Europeia,36 também chamada de Carta de Nice,
reconhecendo-se o direito fundamental à boa Administração como princípio geral:
33
RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, J. Sobre el derecho fundamental a la buena administración y la posición
jurídica del ciudadano. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 12,
n. 47, jan./mar. 2012. p. 14.
34
CARVALHO, V. A. O direito à boa Administração Pública: uma análise no contexto dos direitos de cidadania
no Brasil. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2013. p. 63.
35
Art. 5º da CF/88: “[...] §2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL. Constituição (1988). Título I – Dos Princípios Fundamentais, art.
4º, inc. IX. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso
em: 18 maio 2019).
36
UNIÃO EUROPEIA. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Jornal Oficial das Comunidades
Europeias, C 364/1, 18 dez. 2000. Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_
pt.pdf. Acesso em: 22 maio 2019.
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Cynara Monteiro Mariano, Francisco Arlem de Queiroz Sousa
37
BOUSTA, R. Pour une approche conceptuelle de la notion de bonne administration. Revista Digital de
Derecho Administrativo, 21, p. 23-45, nov. 2018. DOI: https://doi.org/10.18601/21452946.n21.04.
Acesso em: 22 maio 2019.
38
Em suas palavras: “Comme nous le montrions ailleurs, la «bonne administration» est souvent réduite à un
agrégat ouvert de droits et de principes, qui existaient bien avant l’apparition de ce vocable. En témoigne
l’article 41 de la Charte des droits fondamentaux de l’Union européenne selon lequel le droit à une
bonne administration comprend «notamment» les principes d’impartialité, d’équité, de délai raisonnable,
de contradictoire, de transparence, de motivation, de réparation, et de communication dans une des
langues des Traités. La «bonne administration» est alors au cœur des principes généraux du droit et, plus
largement, de l’émergence d’un droit administratif européen”. BOUSTA, R. Pour une approche conceptuelle
de la notion de bonne administration. Revista Digital de Derecho Administrativo, 21, p. 23-45, nov. 2018.
DOI: https://doi.org/10.18601/21452946.n21.04. Acesso em: 22 maio 2019.
39
FREITAS, J. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa Administração Pública. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 198.
40
HACHEM, D. W.; VALENCIA TELLO, D. C. Reflexiones sobre el derecho fundamental a la buena administración
pública en el Derecho Administrativo brasilero. Revista Digital de Derecho Administrativo, n. 21, p. 47-75,
2019. DOI: 10.18601/21452946.n21.05; TELLO, D. C. V.; HACHEM, D. W. La buena administración
pública en el siglo XXI: análisis del caso colombiano. Revista Veredas do Direito, v. 15, n. 33, p. 101-130,
2018. DOI: 10.18623/rvd.v15i33.1326. DOI: 10.18623/rvd.v15i33.1326.
41
Embora haja grande dificuldade em se definir interesse público, esse se materializa quando as ações
136 A&C – R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 125-152, abr./jun. 2020
Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito...
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Cynara Monteiro Mariano, Francisco Arlem de Queiroz Sousa
46
FREITAS, J. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa Administração Pública. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 198.
47
ISMAIL FILHO, S. Boa administração: um direito fundamental a ser efetivado em prol de uma gestão
pública eficiente. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 277, n. 3, p. 105-137, nov. 2018.
p. 111. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/77679. Acesso em:
1 jun. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v277.2018.77679.
48
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Tradução de Irene de Bojano e Mário de Souza. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1989. p. 60-61.
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Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito...
49
FREITAS, J. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa Administração Pública. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 131.
50
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006. 2006.
51
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52
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53
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54
BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução de Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
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Cynara Monteiro Mariano, Francisco Arlem de Queiroz Sousa
Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito
dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez
alcançados ou conquistados, passam a constituir, simultaneamente,
uma garantia institucional e um direito subjectivo. Desta forma, e
independentemente do problema «fáctico» da irreversibilidade das
conquistas sociais (existem crises, situações econômicas difíceis,
recessões econômicas), o princípio em análise justifica, pelo menos,
a subtracção à livre e oportunística disposição do legislador, da
diminuição de direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio
de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do
princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos
no âmbito econômico, social e cultural (cfr. infra, Parte IV, Padrão
II). O reconhecimento desta protecção de «direitos prestacionais de
propriedade», subjectivamente adquiridos, constitui um limite jurídico
do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução
de uma política congruente com os direitos concretos e expectativas
subjectivamente alicerçadas.
55
DERBLI, F. O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar,
2007. p. 143.
56
CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 468-469.
Ainda de Portugal, mais contundente ainda, é a crítica de Avelãs Nunes, que opõe a prevalência dos
direitos humanos ao neoliberalismo em uma perspectiva econômica e global, como resposta ao ataque
aos direitos sobretudo na periferia do capitalismo. NUNES, A. J. A. Neoliberalismo & Direitos Humanos.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
140 A&C – R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 125-152, abr./jun. 2020
Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito...
Entre nós, pode-se afirmar que José Afonso da Silva57 plantou as sementes
do princípio em comento com sua classificação acerca da eficácia e aplicabilidade
das normas constitucionais, caracterizando as normas programáticas como
aquelas que vinculam o Estado ao cumprimento de certos fins e a consecução de
certas tarefas, demandando, por via de consequência, a obrigação de progressiva
concretização dos direitos sociais. Nessa perspectiva, o princípio da proibição
do retrocesso social também não surge como realidade tópica em nossa ordem
constitucional, mas decorre de sua leitura sistêmica e significa uma garantia de
proteção dos direitos fundamentais contra a atuação do legislador (constitucional ou
ordinário), da Administração Pública ou do próprio Poder Judiciário, que impliquem
supressão ou restrição das garantias ou dos níveis de concretização já alcançados
nos direitos existentes.
Sarlet e Fensterseifer58 defendem que o princípio da proibição do retrocesso
está implícito59 e decorre de outros princípios e argumentos de matriz jurídico-
constitucional, tendo como fundamentos o princípio do Estado (Democrático e Social)
de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana,60 o princípio da máxima
eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, bem como
o princípio da segurança jurídica e seus desdobramentos, dentre outros. Barroso61
sublinha que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir
determinado direito, esse se incorpora ao patrimônio jurídico e não pode mais ser
arbitrariamente suprimido, fazendo-se voltar a um estado de omissão legislativa e
ineficácia constitucional.
No âmbito internacional é possível citar normativos que preveem implicitamente
o princípio da proibição de retrocesso dos direitos fundamentais, podendo-se
57
SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 182.
58
SARLET, I. W.; FENSTERSEIFER, T. Notas sobre a Proibição de Retrocesso em Matéria (socio)ambiental.
In: Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental. Brasília: Senado Federal, 2012. p. 198.
59
Pablo Castro Miozzo discorda e é enfático ao afirmar que “existe um dispositivo específico da Constituição
de 1988 que trata do tema e que, inclusive, permite o desvelamento de um novo sentido da proibição do
retrocesso”, bastando olhar para a redação do inciso II do art. 3º da Constituição Federal que assim reza:
“Constituem objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] garantir o desenvolvimento
nacional” (MIOZZO, P. C. O princípio da proibição do retrocesso social e sua previsão constitucional: uma
mudança de paradigma no tocante ao dever estatal de concretização dos direitos fundamentais no Brasil.
Revista da Faculdade de Direito, Porto Alegre, 2005. p. 7-8). Rodrigo Goldschmidt alerta que “há quem
defenda que no nosso sistema jurídico, o princípio da proibição do retrocesso social está claramente
contemplado no ‘caput’ do artigo 7º da Constituição, o qual prescreve: ‘São direitos dos trabalhadores
urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria da sua condição social: [...]’” (GOLDSCHMIDT, R.
O princípio da proibição do retrocesso social e sua função protetora dos direitos fundamentais. Revista
Anais do I Seminário Nacional de Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos Fundamentais, Chapecó,
v. 1, n. 1, 2011. p. 284).
60
MEZZAROBA, O.; SILVEIRA, V. O. da. The principle of the dignity of human person: a reading of the
effectiveness of citizenship and human rights through the challenges put forward by globalization. Revista
de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 273-293, jan./abr. 2018. DOI: 10.5380/rinc.
v5i1.54099.
61
BARROSO, L. R. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da
Constituição brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 152.
A&C – R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 125-152, abr./jun. 2020 141
Cynara Monteiro Mariano, Francisco Arlem de Queiroz Sousa
62
Artigo 2º. 1. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço
próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico
e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por
todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em
particular, a adoção de medidas legislativas.
63
Artigo 26. Desenvolvimento progressivo: Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto
no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim
de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas,
sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos,
reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por
outros meios apropriados.
64
MENDES, G. F.; BRANCO, P. G. G. Curso de direito constitucional. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2017. (Série IDP; versão eletrônica).
65
Acórdão nº 353/2012 do Tribunal Constitucional de Portugal. A esse propósito, Paulo Otero adverte “que
a força dos fatos, ante o estrangulamento financeiro do Estado contemporâneo, torna, muitas vezes,
teorias constitucionais em prol dos direitos humanos, como a proibição do retrocesso social, em peça
retórica de pura arqueologia jurídica” (OTERO, P. Direitos econômicos e sociais na Constituição de 1976:
35 anos de evolução constitucional. In: Tribunal Constitucional: 35º aniversário da Constituição de 1976.
Coimbra: 2012. v. I. p. 53).
66
ARANGO, R. La prohibición de retroceso en Colombia. In: COURTIS, C. (org.). Ni un paso atrás. Buenos
Aires: Ed. Del Puerto, 2006. p. 157.
142 A&C – R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 125-152, abr./jun. 2020
Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito...
67
ANTUNES ROCHA, C. L. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Revista do
Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, [s.l.], n. 2, p. 49-67, dez. 2001. p. 59. Disponível em: http://
revista.ibdh.org.br/index.php/ibdh/article/view/29. Acesso em: 8 jul. 2019.
68
HACHEM, D. W. Direito fundamental ao serviço público adequado e capacidade econômica do cidadão:
repensando a universalidade do acesso à luz da igualdade material. A&C – Revista de Direito Administrativo
& Constitucional, Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 123-158, jan./mar. 2014. p. 130.
69
Aqui há uma distinção que deve ser feita. Para os adeptos da teoria absoluta, o núcleo essencial é
invariável. Para os defensores da teoria relativa, o núcleo essencial é variável e vai depender da ponderação
caso a caso. Nesse caso surge a doutrina chamada de “limites dos limites” (Schranken-Schranken), ou
seja, a necessidade de proteção do núcleo essencial de um direito fundamental contra as investidas do
legislador para que não haja seu total esvaziamento. MENDES, G. F.; BRANCO, P. G. G. Curso de direito
constitucional. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. (Série IDP; versão eletrônica). p. 194.
70
MARTINEZ, A. C. La gobernanza hoy: introducción. In: MARTINEZ, A. C. (coord.). La gobernanza hoy: 10
textos de referencia. Madrid: INAP, 2005. p. 12-22.
71
Pode-se elencar, ainda, como integrantes do núcleo essencial do direito fundamental à boa administração
contidos em nossa Carta Magna: a razoável duração dos processos (inc. LXXVIII do art. 5º); reparação dos
danos causados a terceiros (§6º do art. 37); os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade,
publicidade, moralidade e eficiência (caput do art. 37); participação popular (§3º, art. 37); a obrigação de
prestar contas (parágrafo único do art. 70) e a responsabilidade fiscal (art. 167 a 169).
72
FREITAS, J. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa Administração Pública. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 124.
73
A Lei nº 2.924, de 5 de janeiro de 1915, estabelecia que: “Art. 125. O funccionario ou empregado publico
federal, salvo os funccionarios em commissão, que contar dez ou mais annos de serviço publico federal
sem ter soffrido penas no cumprimento de seus deveres, só poderá ser destituido do mesmo cargo em
virtude de sentença judicial, ou mediante processo administrativo”.
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Cynara Monteiro Mariano, Francisco Arlem de Queiroz Sousa
74
Para os fins desse trabalho, adota-se a distinção forte entre regras e princípios elaborada por Robert Alexy,
segundo a qual princípio são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível,
dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes ou seja, os princípios são mandados de otimização
e regras “são normas que contêm determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível”.
Para ele, toda norma é ou uma regra ou um princípio (ALEXY, R. Teoria dos Direitos fundamentais. Tradução
de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 90-91).
75
SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 90.
76
STRECK, L. L. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014. p. 524.
144 A&C – R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 125-152, abr./jun. 2020
Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito...
5 Conclusão
Vivemos em um mundo de transformações rápidas em que as relações estão
cada vez mais fluidas, não se tendo certeza do hoje, tampouco sobre o amanhã,
77
MELLO, C. A. B. de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 71,
de 29.1.2012. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. p. 262.
78
MELLO, C. A. B. de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 71,
de 29.1.2012. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. p. 273-274.
79
FREITAS, J. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa Administração Pública. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 198.
A&C – R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 125-152, abr./jun. 2020 145
Cynara Monteiro Mariano, Francisco Arlem de Queiroz Sousa
80
O medo se liquefez, tal qual a modernidade, nos lembra Bauman: “O que mais amedronta é a ubiquidade
dos medos; eles podem vazar de qualquer canto ou fresta de nossos lares e de nosso planeta. Das
ruas escuras ou das telas luminosas dos televisores. De nossos quartos e de nossas cozinhas. De
nossos locais de trabalho e do metrô que tomamos para ir e voltar. De pessoas que encontramos e de
pessoas que não conseguimos perceber. De algo que ingerimos e de algo com o qual nossos corpos
entraram em contato. Do que chamamos ‘natureza’ (pronta, como dificilmente antes em nossa memória,
a devastar nossos lares e empregos ameaçando destruir nossos corpos com a proliferação de terremotos,
inundações, furacões, deslizamentos, secas e ondas de calor) ou de outras pessoas (prontas, como
dificilmente antes em nossa memória, a devastar nossos lares e empregos e ameaçando destruir nossos
corpos com a súbita abundância de atrocidades terroristas, crimes violentos, agressões sexuais, comida
envenenada, água ou ar poluídos” (BAUMAN, Z. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 11).
81
Segundo dados do IBGE (AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. PNAD Contínua: taxa de desocupação é de 12,3% e
taxa de subutilização é 25,0% no trimestre encerrado em maio de 2019. 2019. Disponível em: https://
agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/24908-
pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-12-3-e-taxa-de-subutilizacao-e-25-0-no-trimestre-encerrado-em-
maio-de-2019. Acesso em: 6 jul. 2019).
82
Estudo realizado pela consultoria McKinsey & Company, com dados de 46 países, estima que, até 2030,
de 400 milhões a 800 milhões de trabalhadores no mundo poderão perder o emprego e passar a ver suas
atividades exercidas por robôs e máquinas (RINALDI, C. Automação pode tirar trabalho de até 800 milhões
de trabalhadores até 2030, diz McKinsey. Estadão, 29 nov. 2017. Disponível em: https://economia.
estadao.com.br/noticias/geral,automacao-pode-tirar-trabalho-de-ate-800-milhoes-de-trabalhadores-ate-
2030-diz-mckinsey,70002101960. Acesso em: 9 de jul. 2019).
83
ACEMOGLU, D.; ROBINSON, J. A. Porque as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da
pobreza. Tradução de Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
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e Democrático de Direito. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano
17, n. 69, p. 127-147, jul./set. 2017. DOI: 10.21056/aec.v17i69.825. DOI: 10.21056/aec.v17i69.825;
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