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REVISÃO DE VÉSPERA

Filosofia do
Direito e
Sociologia
Jurídica
DPE/SP

Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas

www.institutovirtus.com.br
Sobre o Professor
O Professor Doglas Cesar Lucas possui graduação
em Direito pela Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ (1998),
mestrado em Direito pela Universidade Federal de
Santa Catarina (2001), Doutorado em Direito pela
UNISINOS (2008) e Pós-Doutorado em Direito pela
Università Degli Studi di Roma Tre (2012). É professor
dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em
Direito na Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ e professor no
Curso de Direito da Faculdade CNEC Santo Ângelo,
ministrando as disciplinas de Filosofia do Direito,
Direitos Humanos, Direito Internacional dos Direitos
Humanos e Ética Geral e Profissional, disciplinas que
leciona há mais de 20 anos. É Professor colaborador
no mestrado e doutorado em Direito da URI – Santo
Ângelo e Editor-chefe da Revista Direitos Humanos e
Democracia (B1). É coordenador da Coleção Direitos
Humanos e Democracia, da Editora UNIJUÍ.
Pesquisador do Instituto Jurídico Portucalense, no
grupo de pesquisa Dimensions of Human Rigths.
Avaliador do MEC/INEP. Pesquisador colaborador do
IBEROJUR, na área temática de Filosofia do Direito e
Direitos Fundamentais. Para maiores informações, o
currículo lattes do Professor Doglas está disponível
neste link.

*Canal de dúvidas via WhatsApp: (55) 9.9609-9159.


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SUMÁRIO

Introdução ...................................................................................................................................................................... 3

O Examinador.............................................................................................................................................................. 8

3. PODER, VERDADE E DIREITO ....................................................................................................................... 10


3.1 O conhecimento como invenção ............................................................................................................... 11
3.2 Prática penal e formas de verdade .......................................................................................................... 12
3.3 Regime da verdade e poder político ....................................................................................................... 13
3.4 O inquérito nas práticas judiciárias da Grécia Antiga ................................................................... 13
3.5 A tragédia de Édipo e o surgimento do inquérito na Antiguidade ........................................ 14
3.6 O sistema do inquérito e a descoberta judiciária da verdade ................................................... 18
3.7 O antigo Direito Germânico e o sistema de provas ........................................................................ 18
3.8 O sistema das provas no Direito Feudal ............................................................................................... 19
3.9 O segundo nascimento do inquérito na Idade Média .................................................................. 21
3.10 Direito e sociedade disciplinar ................................................................................................................ 22
3.11 Disciplina, prisão e panoptismo ............................................................................................................... 24
3.12 O criminoso como inimigo social ............................................................................................................ 31
3.13 O exame como forma de saber-poder ................................................................................................ 32
3.14 Ciências do exame e sociedade capitalista ...................................................................................... 32

Referências ................................................................................................................................................................. 38

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Introdução

Querido(a) aluno(a), olá!


Seja muito bem-vindo(a)!
Neste curso, apresentaremos de modo didático e, na medida do possível, bastante
resumido, os conteúdos de absolutamente todos os pontos do edital referentes às
disciplinas de Filosofia do Direito e Sociologia Jurídica do IX CONCURSO PÚBLICO DE
PROVAS E TÍTULOS PARA INGRESSO NA CARREIRA DE DEFENSORA OU DEFENSOR
PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO.
O certame ficará a cargo da FCC – Fundação Carlos Chagas. A prova, no entanto,
será elaborada por uma banca própria de examinadores, entre os quais o Professor Dr.
Márcio Alves da Fonseca que, a propósito, é um acadêmico de excelência e, não por acaso,
é, há muitos anos, o examinador das disciplinas de Filosofia do Direito e Sociologia
Jurídica nos certames da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Segundo consta do edital, a Primeira Prova Escrita – Objetiva compreenderá 88
(oitenta e oito) questões objetivas de múltipla escolha, com 5 (cinco) alternativas cada
uma, sobre as seguintes matérias: (i) Direito Constitucional; (ii) Direito Administrativo e
Direito Tributário; (iii) Direito Penal; (iv) Direito Processual Penal; (v) Direito Civil e Direito
Empresarial; (vi) Direito Processual Civil; (vii) Direitos Difusos e Coletivos; (viii) Direito da
Criança e do Adolescente; (iv) Direitos Humanos; (x) Princípios e Atribuições Institucionais
da Defensoria Pública do Estado; (xi) Filosofia do Direito e Sociologia Jurídica. As provas
anteriores contaram com 8 (oito) questões de Filosofia do Direito e Sociologia Jurídica. As
questões costumam ser muito bem elaboradas e não há uma tradição de anulações, já
que voltam-se especificamente às obras indicadas no edital e não
A Terceira Prova Escrita – Discursiva também contará com 2 (duas) questões com
peso de 5 (cinco) pontos cada, abordando os temas de Filosofia do Direito e Sociologia
Jurídica.
Além disso, a Prova Oral também pode aventar os conhecimentos exigidos nas
disciplinas que serão trabalhadas neste curso.
Este material pretende prepará-los(as) especialmente para a primeira fase do
certame, sem prejuízo de sua utilização para as etapas posteriores.
Nesse sentido, os pontos do edital abordados neste curso são os seguintes:

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1. CIÊNCIA DO DIREITO, ESTADO E ORDEM JURÍDICA.


1.1 A Teoria do direito e do Estado de Hans Kelsen. 1.2 Definição científica e definição
política de Direito. 1.3 O conceito de Direito e a ideia de justiça. 1.4 O Direito como teoria
social específica. 1.5 A norma. 1.5.1 Validade e eficácia da norma. 1.5.2 O Direito como
comando. 1.5.3 Vontade das partes e transação jurídica. 1.5.4 A vontade do legislador. 1.5.5
O “dever ser”. 1.5.6 Normas individuais e normas gerais. 1.5.7 Normas condicionais e
normas incondicionais. 1.5.8 Norma e ato. 1.5.9 A eficácia como condição de validade. 1.5.10
A esfera de validade das normas. 1.5.11 Leis retroativas. 1.5.12 A norma jurídica. 1.5.13 A
sanção. 1.6 A unidade da ordem normativa. 1.7 O direito como sistema dinâmico de
normas. 1.8 A norma fundamental. 1.9 Conceito estático e conceito dinâmico de Direito.
1.10 A hierarquia das normas. 1.10.1 Norma superior e norma inferior. 1.10.2 Os estágios da
ordem jurídica. 1.10.3 A transação jurídica. 1.10.4 A natureza do Direito constitucional. 1.10.5
Lacunas do Direito. 1.10.6 Conflitos entre normas de diferentes estágios. 1.11 Jurisprudência
normativa e jurisprudência sociológica. 1.12 O Estado como entidade sociológica ou
entidade jurídica. 1.13 Os órgãos do Estado. 1.14 O Estado como sujeito de deveres e
direitos. 1.15 Direito público e Direito privado. 1.16 O território do Estado. 1.17 O tempo como
elemento do Estado. 1.18 O povo do Estado. 1.19 Direitos e deveres fundamentais do
Estado. 1.20 O poder do Estado. 1.21 A separação de poderes. 1.22 As formas de governo da
Democracia e da Autocracia. 1.23 Os conceitos jurídicos de centralização e
descentralização. 1.24 Direito nacional e Direito internacional. 1.25 A doutrina do Direito
natural e o Positivismo jurídico.

2. O DIREITO COMO SISTEMA AUTOPOIÉTICO.


2.1 Teoria do direito como autodescrição do sistema jurídico. 2.2 Fechamento operacional
e autopoiese do sistema jurídico. 2.3 Validade e unidade operacional do sistema jurídico.
2.4 Princípio da igualdade e unidade operacional do sistema jurídico. 2.5 A função do
sistema jurídico. 2.6 A distinção entre função e prestações do sistema jurídico. 2.7
Codificação e programação do sistema jurídico. 2.8 A justiça como fórmula de
contingência. 2.9 Justiça, igualdade e desigualdade. 2.10 Evolução do direito: variação,
seleção e (r)estabilização. 2.11 Evolução do direito e escrita. 2.12 Evolução e autopoiese do
direito. 2.13 O lugar dos tribunais no sistema jurídico. 2.14 Centro e periferia do sistema
jurídico. 2.15 Argumentação jurídica. 2.16 Argumentação jurídica e a distinção entre

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variedade e redundância. 2.17 A relação entre direito e política. 2.18 O conceito de Estado
de Direito. 2.19 Acoplamentos estruturais do sistema jurídico com o sistema econômico e
com o sistema político. 2.20 Autodescrição e heterodescrição do sistema jurídico. 2.21 O
direito como “sistema imunológico” da sociedade. 2.22 Sistema jurídico e “sociedade
mundial”. 2.23 A questão dos direitos humanos. 2.24 Inclusão e exclusão como
metacódigo.

3. PODER, VERDADE E DIREITO.


3.1 O conhecimento como invenção. 3.2 Prática penal e formas de verdade. 3.3 Regime da
verdade e poder político. 3.4 O inquérito nas práticas judiciárias da Grécia Antiga. 3.5 A
tragédia de Édipo e o surgimento do inquérito na Antiguidade. 3.6 O sistema do inquérito
e a descoberta judiciária da verdade. 3.7 O antigo Direito Germânico e o sistema de
provas. 3.8 O sistema das provas no Direito Feudal. 3.9 O segundo nascimento do
inquérito na Idade Média. 3.10 Direito e sociedade disciplinar. 3.11 Disciplina, prisão e
panoptismo. 3.12 O criminoso como inimigo social. 3.13 O exame como forma de saber-
poder. 3.14 Ciências do exame e sociedade capitalista.

4. SOBERANIA, ESTADO DE EXCEÇÃO E POLÍTICA DE MORTE.


4.1 As noções de soberania, biopoder e estado de exceção. 4.2 A soberania como direito
de matar. 4.3 Racismo e exercício do biopoder. 4.4 A escravidão como manifestação da
experimentação biopolítica. 4.4.1 O sistema de plantation como manifestação do estado
de exceção. 4.5 Situação colonial e estado de exceção. 4.5.1 Ocupação colonial e
territorialização. 4.6 A noção de necropoder. 4.6.1 A ocupação colonial contemporânea da
Palestina como forma de necropoder. 4.7 Características das guerras da era da
globalização. 4.7.1 A noção de “máquinas de guerra”. 4.7.2 A pluralidade de funções de
uma máquina de guerra. 4.7.3 A forma governamental consistente na gestão das
populações. 4.8 Relações entre terror, liberdade e sacrifício.

5. RACISMO, SOCIEDADE E DIREITO.


5.1 Teoria crítica da raça: as escolas “idealista” e “realista”. 5.2 A crítica à neutralidade racial.
5.3 A noção de determinismo estrutural. 5.4 Teoria crítica da raça, storytelling jurídico e
análise narrativa. 5.5 Significado da análise interseccional. 5.6 O debate entre

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essencialismo e antiessencialismo. 5.7 Os debates sobre nacionalismo versus assimilação.


5.8 Análise do paradigma negro-branco. 5.9 Os estudos críticos da branquitude. 5.10
Críticas externas e internas à teoria crítica da raça. 5.11 Principais respostas às críticas à
teoria crítica da raça. 5.12 Raça e classe social. 5.13 Raça e pobreza. 5.14 Racismo e sistema
de justiça penal. 5.15 Racismo e discurso de ódio. 5.16 Ações afirmativas e neutralidade
racial. 5.17 Racismo, globalização e imigração.

Obras contempladas
DELGADO, R.; STEFANCIC, J. Teoria crítica da raça: uma introdução. Tradução de Diógenes
Moura Breda. 3. ed. São Paulo: Contracorrente, 2021.
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Eduardo Jardim e Roberto
Machado. Rio de Janeiro: NAU, 2013.
KELSEN, H. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 1990.
LUHMANN, N. O Direito da sociedade. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo: Martins
Fontes, 2016.
MBEMBE, A. Necropolítica. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1 ed., 2022.

A disponibilização dos materiais ocorrerá conforme o seguinte cronograma:

Ponto do Autor de Data-limite para


Temática de referência
edital referência liberação do material
CIÊNCIA DO DIREITO, ESTADO E 06/02/2022 (2ª-feira)
Ponto 1 Hans Kelsen
ORDEM JURÍDICA *Parte 1 já disponível.
O DIREITO COMO SISTEMA
Ponto 2 Niklas Luhmann 06/02/2022 (2ª-feira)
AUTOPOIÉTICO
Ponto 3 PODER, VERDADE E DIREITO Michel Foucault 23/01/2022 (2ª-feira)
SOBERANIA, ESTADO DE EXCEÇÃO E 26/12/2022 (2ª-feira)
Ponto 4 Achille Mbembe
POLÍTICA DE MORTE *Já disponível.
Jean Stefancic
Ponto 5 RACISMO, SOCIEDADE E DIREITO 23/01/2022 (2ª feira)
Richard Delgado

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Neste material, além da parte teórica, buscamos contemplar algumas questões,


ainda que não da banca FCC e não vocacionadas ao cargo de Defensor(a) Público(a) do
Estado de São Paulo, desde que envolvam os temas aqui tratados.
Às vésperas da prova, é importante que as ideias, categorias e autores centrais
previstos no edital sejam compreendidas com objetividade, o que não significa um
estudo raso ou superficial. Pelo contrário. Por isso, este curso entrega uma análise
direcionada dos temas com maior incidência, mas com a clareza necessária para a
compreensão adequada de temas tão complexos como são aqueles afetos à Filosofia e a
Sociologia Jurídica.
Conte conosco rumo à sua aprovação no concurso para o cargo dos seus sonhos.

Atenciosamente,
Equipe Instituto Virtus.

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O Examinador

O Examinador da disciplina de Filosofia do Direito e


Sociologia Jurídica do certame da Defensoria Pública do Estado
de São Paulo é o Professor Dr. Márcio Alves da Fonseca1. Ele tem
Pós-Doutorado em Filosofia pela École Normale Supérieure de
Paris e pela Universidade de Paris-XII, Doutorado em Direito,
com ênfase em Filosofia do Direito, pela Universidade de São
Paulo, Mestrado em Filosofia (Filosofia das Ciências Humanas)
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Graduação em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Também é graduado em História pela Universidade
de São Paulo. É Professor Assistente-Doutor do Departamento de Filosofia e do Programa
de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Atualmente é Pró-Reitor de Pós-Graduação da PUC-SP.
No Doutorado, foi orientado pelo Professor Tércio Sampaio Ferraz Junior com uma
tese sobre Michel Foucault e o Direito. No Mestrado, estudou “O problema da constituição
do sujeito em Michel Foucault”, sob a orientação do Professor Oswaldo Giacóia Júnior.
Seu projeto de pesquisa ainda em andamento, desde 2009 e do qual é
coordenador, tem como título “Max Weber e Michel Foucault, convergências em uma
ontologia crítica do presente”. Segundo informações do currículo do Examinador, “Trata-
se de uma pesquisa sobre o conjunto dos escritos de Max Weber e Michel Foucault, com
o objetivo de indicar algumas convergências entre suas abordagens, em especial dos
seguintes problemas: os usos da história, a questão da racionalidade, o tema da
Modernidade.”
Em 2004, Márcio Alves da Fonseca traduziu “A hermenêutica do sujeito”, de Michel
Foucault. O tema da subjetividade em Foucault, portanto, é muito presente nos estudos
do Examinador.
Os últimos artigos publicados pelo Examinador e os eventos dos quais participou,
inclusive em 2022, também tratam de autores e temas como Michel Foucault, migração,
biopolítica, direito e norma. Evidencia-se, assim, uma grande complementaridade nos

1
Currículo lattes disponível aqui.

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estudos de Márcio Fonseca e o fato de que se trata de um grande conhecedor brasileiro


da obra de Foucault.
Diante do exposto, sugerimos especial atenção ao ensaio do professor camaronês
Achille Mbembe e do tradicionalmente sempre cobrado, Michel Foucault, com seu “A
verdade e as formas jurídicas”. Contudo, não deixem de ler o material no que se refere às
outras três obras, tendo em vista que a prova da Defensoria Pública do Estado de São
Paulo costuma cobrar ao menos uma questão de cada livro sugerido na bibliografia.

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3. PODER, VERDADE E DIREITO

Para este tópico, utilizar-se-á a obra “A verdade e as formas jurídicas”, de Michel


Foucault. O livro compõe-se de 6 (seis) capítulos que consubstanciam, em verdade, 5
conferências pronunciadas por Michel Foucault na Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro entre 21 e 25 de maio de 1973.
Chamamos atenção, desde logo, para o fato de que o examinador, Dr. Márcio Alves
da Fonseca, é um grande estudioso de Foucault e um grande conhecedor das nuanças
teóricas deste importante filósofo francês.
“A verdade e as formas jurídicas” é uma tentativa de Foucault de demonstrar que
entre as práticas sociais de controle e vigilância que viabilizam novas formas de
subjetividade – aqui compreendidas como a maneira a partir da qual, a partir do século
XIX, foi possível estabelecer um saber que conforma o sujeito e o aloca na condição de
normal/anormal – uma das mais importantes é a prática jurídica. E, aqui, é importante
esclarecer o que são as chamadas práticas jurídicas, as quais consistem na

maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as


responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu
e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em razão dos
erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados
indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras
(FOUCAULT, 1996, p. 11).

Foucault (1996, p. 07) parte de três eixos fundamentais. Primeiramente, questiona-


se sobre “como se puderam formar domínios de saber a partir de práticas sociais.” Com
isso, ele pretende descortinar o modo pelo qual as práticas sociais (como o controle e a
vigilância, por exemplo) fazem surgir não somente novos objetos, novos conceitos, novas
técnicas, novas metodologias, mas, também, novas formas de sujeitos e sujeitos de
conhecimento. Este tema é particularmente caro ao examinador, pois a subjetividade
parece ser um dos temas de sua predileção.
Foucault também debruça-se sob um eixo metodológico, que é a análise dos
discursos. É dizer, o discurso deve ser percebido não somente em seu aspecto linguístico,
mas também numa perspectiva daquilo que Foucault (1996, p. 09) chama de games, ou

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seja, enquanto jogos estratégicos, de ação e reação, pergunta e resposta, dominação e


esquiva, e de luta.
Finalmente, um terceiro eixo da pesquisa foucaultiana reside na reelaboração da
teoria do sujeito, para a qual é fundamental reconhecer o caráter central da psicanálise.
Em poucas palavras, trata-se da “constituição histórica de um sujeito de conhecimento
através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que fazem parte das
práticas sociais.” (FOUCAULT, 1996, p. 10-11). Para Foucault, as práticas jurídicas, e mais
precisamente, as judiciárias, são uma das mais importantes formas a partir das quais
nossa sociedade definiu tipos de subjetividade e formas de saber.
Um ponto de partida fundamental e que deve guiá-los no estudo da teoria
foucaultiana é o seguinte: para o autor, existem duas histórias da verdade. Uma primeira
história, interna, própria da verdade, que é da sua essência, e uma segunda história, que
é externa à verdade, porque é discursiva em relação a ela. Portanto, tenham clareza de
que para Foucault qualquer fato histórico ou prática social pode ser lido a partir dessas
duas formas de verdade.
Passemos agora à análise de cada item proposto no edital, tendo clareza de que
eles parecem seguir a ordem da obra (em que pese o livro não seja dividido em capítulos
denominados como proposto no edital, já que são conferências proferidas pelo filósofo
aqui no Brasil na década de 1970). Alguns itens do edital exigem uma análise mais
minuciosa. Outros, em atenção à proposta pedagógica deste curso, permitiram maior
concisão.

3.1 O conhecimento como invenção

Para Foucault (1996), o conhecimento não está inscrito na natureza humana. Ao


falar em invenção – Erfindung, Foucault contrapõe a expressão à ideia de origem –
Ursprung. E ele faz isso a partir de Nietzsche, que sempre utilizava a noção de invenção
com sentido e intenção polêmicos.

O conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer
que ele não tem origem. É dizer, de maneira mais precisa, por mais
paradoxal que seja, que o conhecimento não está em absoluto inscrito na
natureza humana. O conhecimento não constitui o mais antigo instinto do

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homem, ou, inversamente, não há no comportamento humano, no apetite


humano, no instinto humano, algo como o germe do conhecimento
(FOUCAULT, 1996, p. 16).

Nietzsche (2012), em “A gaia ciência”, em um trecho intitulado “Que significa


conhecer?”, retoma um texto de Spinoza, para quem, se quisermos efetivamente
compreender algo, devemos nos abster de rir (debochar), de deplorar e de odiar esse algo.
“Somente quando estas paixões se apaziguam podemos enfim compreender.”
(FOUCAULT, 1996, p. 20). E Nitzsche vai dizer que o que ocorre é exatamente o oposto, até
mesmo porque essas três paixões ou instintos – o rir, o deplorar e o detestar – são uma
maneira de não se aproximar do objeto, de conservá-lo à distância, de se proteger.
Portanto, o conhecimento é contra-instintivo e contranatural. Para Foucault (1996),
existe a natureza humana, o mundo, e algo entre os dois, que é o conhecimento. Não há,
entretanto, entre eles, nenhuma afinidade ou elo da natureza. Por isso, entre o instinto e
o conhecimento o que existe é não uma continuidade, mas uma relação de luta, de
dominação, de subserviência, de compensação. Há, em síntese, uma relação de poder. É
somente nessas relações de luta e de poder, de dominação, de subserviência, que
compreendemos exatamente em que consiste o conhecimento. Por isso, Foucault (1996)
fala em história política do conhecimento.
Nesse sentido, o conhecimento é sempre e invariavelmente parcial, oblíquo,
perspectivo, enviesado. “Pode-se falar do caráter perspectivo do conhecimento porque
há batalha e porque o conhecimento é o efeito dessa batalha.” (FOUCAULT, 1996, p. 25).

3.2 Prática penal e formas de verdade

Quando fala em prática penal e formas de verdade, Foucault (1996) está


preocupado em entender o Direito Penal como lugar de origem de um determinado
número de formas de verdade. Isto é, como certas formas de verdade podem ser
estabelecidas a partir das práticas penais.
Isso ocorre especialmente por meio do inquérito – enquête, que consiste(ia) em
entender exatamente quem fez o quê, em que condições e em que ocasião. De fato, o
inquérito é, ainda, uma forma bem característica de estabelecer a verdade em nossas
sociedades.

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Além disso, no século XIX, numa ligação direta com o controle político e social da
formação da sociedade capitalista, também houve a invenção do exame – examen, o qual
deu origem à Sociologia, à Psicologia, à Psicopatologia, à Criminologia, à Psicanálise.
Falaremos sobre o exame e sobre o inquérito mais detidamente nos tópicos seguintes.

3.3 Regime da verdade e poder político

Para Foucault (1996, p. 27), as condições políticas e econômicas não são


exatamente um obstáculo para o sujeito do conhecimento. São, em verdade, justamente
os fatores que permitem a formação do sujeito de conhecimento e as relações de
verdade. “Só pode haver certos tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de
verdade, certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em que
se formam o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade.”
Portanto, a verdade é produzida e influenciada pelo poder político. É dizer, o poder
político é tramado com o saber. Por isso, a verdade muda dependendo do tempo e do
espaço. O poder político, então, é produtor do saber e do regime da verdade.

3.4 O inquérito nas práticas judiciárias da Grécia Antiga

Foucault considera que a peça “Édipo-Rei”, de Sófocles, é a história do saber-poder


da qual emerge, no direito grego, a prática do inquérito. A trama, a respeito da qual
falaremos com mais aprofundamento a seguir (item 3.5), gira em torno da exigência
política, jurídica e religiosa de fazer de um acontecimento um fato conservado
definitivamente por meio da comprovação de testemunhas. Muito resumidamente,
portanto, Édipo é uma história da e sobre a verdade tendo como pano de fundo um crime
que precisa ser esclarecido e um criminoso que precisa ser descoberto, individualizado e
punido.
Fato é que a democracia grega traz consigo uma importante conquista: o direito
de testemunhar, de opor a verdade. Nesse sentido, houve (i) a elaboração das formas
racionais de prova e de demonstração. “Como produzir a verdade, em que condições, que
formas observar, que regras aplicar.” (FOUCAULT, 1996, p. 54). Desenvolve-se também (ii)
a arte da persuasão, do convencimento acerca da verdade, o que remete imediatamente

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ao problema da retórica grega. Finalmente, tem-se (iii) o desenvolvimento de um novo


tipo de conhecimento, que é o conhecimento por meio do inquérito, ou seja, um
conhecimento do tipo retrospectivo, da lembrança, do testemunho.
Dada a semelhança entre os itens 3.4 e 3.5, restringimo-nos a analisar o inquérito
como prática judiciária na Grécia Antiga e sua relação com o mito edipiano tão somente
no item 3.5, para onde remetemos o(a) aluno(a).

3.5 A tragédia de Édipo e o surgimento do inquérito na Antiguidade

Na segunda conferência, Foucault (1996) apresenta, através de Édipo, duas formas


de julgamento, o litígio ou contestação e a disputa, relacionando-as com o surgimento
do inquérito no pensamento grego.
O mito de Édipo é um dos mais tradicionais da história da mitologia grega. Sua
versão mais popular foi narrada por Sófocles, dramaturgo grego, em “Édipo Rei” que, ao
lado de “Édipo em Colono” e “Antígona”, formam a chamada trilogia tebana.
Antes de prosseguir, vamos retomar a tragédia edipiana.
Édipo é filho de Laio, Rei de Tebas, e de sua esposa, Jocasta. Em certa ocasião, Laio
recebe uma profecia no Oráculo de Delfos, um dos mais importantes centros religiosos
da Grécia antiga, segundo a qual Laio seria morto pelo seu próprio filho e sua esposa –
Jocasta – seria desposada por ele. Por isso, Laio e Jocasta decidem pôr fim à vida de Édipo,
entregando-o a um servo que, ao invés de matar a criança, abandona-a numa floresta
entre as cidades de Tebas e Corinto.
Édipo, então, é levado por um camponês para Corinto, onde é adotado por Políbio,
Rei daquela cidade. Já crescido, é a vez de Édipo ir até o Oráculo de Delfos e receber uma
profecia: ele mataria seu pai e se casaria com sua mãe. Com medo, Édipo abandona
Corinto em direção a Tebas. No caminho, encontra Laio, seu pai biológico, e um servo que
acompanhava o Rei de Tebas. Na ocasião, Laio e o servo se desentendem com Édipo e, ao
ser agredido, Édipo, sem saber, mata o próprio pai, cumprindo-se parte da profecia.
Após, Édipo segue em direção a Tebas, agora sem Rei, e encontra a cidade sob a
ameaça da esfinge, ser mitológico, com corpo de leão e cabeça de homem. A esfinge
matava todos aqueles que, ao cruzarem o seu caminho, não conseguissem resolver o
seguinte enigma: o que é que pela manhã tem quatro patas, à tarde tem duas e à noite

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tem três? Édipo responde, acertadamente, que é o ser humano, que engatinha na
infância, anda ereto na juventude e com o auxílio da bengala na velhice. Tomada pela
vergonha de ver seu enigma até então inabalável ser decifrado, a esfinge comete o
suicídio. A população de Tebas, em gratidão a Édipo, faz dele o seu Rei. Quando coroado
Rei, porém, Édipo deve casar-se com a própria mãe, Jocasta (tudo isso sem saber acerca
de sua verdade biológica). A profecia do Oráculo de Delfos, assim, concretiza-se por
completo e Édipo tem quatro filhos com sua mãe. Ao final, e anos depois, Édipo descobre,
por meio do adivinho Tirésias, que ele era o responsável pela praga que assolou Tebas.
Jocasta, em choque ao saber da verdade, comete o suicídio, e Édipo perfura seus dois
olhos, cegando-se, e vai embora de Tebas, vivendo como um mendigo desde então.
A “moral da história” vocês provavelmente já entenderam. E agora, talvez seja
possível perceber o motivo pelo qual Sigmund Freud, o pai da psicanálise, alcunhou o
vínculo entre pai, mãe e filho como o “Complexo de Édipo”.
Porém, a partir de “O anti-Édipo”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Foucault
visualiza nessa apropriação psicanalítica do mito edipiano “um instrumento de limitação
e coação que os psicanalistas, a partir de Freud, utilizaram para conter o desejo e fazê-lo
entrar em uma estrutura familiar definida por nossa sociedade em determinado
momento.” (FOUCAULT, 1996, p. 29). Em resumo, portanto, a tríade pai-mãe-filho não é,
dirá Foucault, com base em Deleuze e Guattari, uma verdade absoluta e atemporal, mas
uma manipulação, uma construção, relativamente ao desejo e ao inconsciente.
A tragédia de Édipo, segundo Foucault, é o primeiro testemunho das práticas
judiciárias gregas. Trata-se da história de uma pesquisa da verdade sobre quem matou
Laio, Rei de Tebas.
Foucault adverte que existiam dois métodos principais para descobrir a verdade
na Antiguidade grega. O primeiro deles era o jogo de prova, evidenciado em Ilíada, um
dos principais poemas épicos da Grécia Antiga de autoria de Homero. Nele, Antíloco e
Menelau participam de uma corrida de carros durante jogos que se realizavam por
ocasião da morte de Pátroclo. A corrida desenrola-se normalmente e Antíloco e Menelau
estão à frente. Ocorre uma irregularidade e Antíloco chega primeiro. Menelau intervém e
informa que Antíloco cometeu uma irregularidade, e por isso chegou primeiro. Nesse
texto de Homero, não se faz apelo, como se fará em Édipo-Rei, à testemunha ocular (tão

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importante à época e ainda hoje no curso das investigações penais). Há, ao contrário, tão
somente uma contestação entre os adversários Menelau e Antíloco.

Depois da acusação de Menelau – “tu cometeste uma irregularidade” – e da


defesa de Antíloco – “eu não cometi irregularidade” – Menelau lança um
desafio: “Põe tua mão direita na teta do teu cavalo; segura com a mão
esquerda teu chicote e jura diante de Zeus que não cometeste
irregularidade”. Nesse momento, Antíloco, diante deste desafio que é uma
prova (épreuve), renuncia à prova, renuncia a jurar e reconhece assim que
cometeu irregularidade (FOUCAULT, 1996, p. 32).

Zeus puniria o falso julgamento de Antíloco e, por isso, a descoberta final da


verdade seria transferida aos deuses. Com isso, Menelau sagra-se vencedor. Por isso, a
prova é característica da sociedade grega arcaica.
No entanto, quando Édipo e o povo de Tebas procuram a verdade, não se valem
deste método. Pelo contrário. Utilizam aquilo que Foucault (1996) vai chamar de lei das
metades. “É por metades que se ajustam e se encaixam que a descoberta da verdade
procede em Édipo.” (FOUCAULT, 1996, p. 34).
Não vamos entrar em detalhes que demandariam uma leitura de “Édipo-Rei” e
mesmo um aprofundamento quanto à segunda conferência do curso de Foucault. Mas,
é importante dizer, que no decorrer da história de Édipo, Sófocles traz elementos sempre
conectados, embora nada óbvios, que permitem chegar a uma conclusão (a uma
verdade). Como dirá Foucault (1996, p. 35), “desde a segunda cena de Édipo, tudo está dito
e representado.”
Por exemplo, o Deus de Delfos, o Rei Apolo, informa que “o país está atingido por
uma conspurcação2”. Impõe-se questionar, agora, sobre quem conspurcou. A primeira
metade, então, é o fato da conspurcação. A segunda, diz respeito a entender quem
conspurcou. É preciso entender, também, o que causou a conspurcação. E Creonte
responde a Édipo que foi um assassinato. Se houve um assassinato, alguém matou e
alguém morreu. Quem matou? Quem morreu? Essa é a lógica trazida na concepção
foucaultiana de lei das metades. Para saber o nome do assassino, é preciso apelar ao
adivinho Tirésias, que diz a Édipo: “Foste tu quem matou Laio”.

2
Mácula, difamação.

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Em resumo, “temos toda a verdade, mas na forma prescritiva e profética que é


característica ao mesmo tempo do oráculo e do adivinho.” (FOUCAULT, 1996, p. 35). E
aquilo que havia sido dito em forma de profecia no começo da peça passa a ser redito sob
a forma de testemunho por dois pastores, um dos quais viu Jocasta entregar uma criança
para que fosse levada a floresta e abandonada. O outro viu a criança na floresta e lembra-
se de ter levado o menino a Políbio. “É o olhar do testemunho. É a este olhar que Homero
não fazia referência ao falar do conflito e do litígio entre Antíloco e Menelau.” (FOUCAULT,
1996, p. 39).

Podemos dizer, portanto, que toda a peça de Édipo é uma maneira de


deslocar a enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e
prescritivo a um outro discurso, de ordem retrospectiva [da ordem da
lembrança, do visto, do olhar], não mais da ordem da profecia, mas do
testemunho (FOUCAULT, 1996, p. 40).

Em síntese, tem-se o seguinte em termos de práticas judiciárias na Grécia Antiga:

Método para descobrir a verdade Fonte histórica


Prova (épreuve) Ilíada
Lei das metades
Édipo-Rei
Testemunha

Por fim, é importante mencionar que Foucault, como tradicionalmente costuma


fazer, visualiza no mito edipiano uma história em torno do poder. “Édipo é o homem do
poder”, dirá Foucault (1996, p. 41). Nesse sentido, aliás, chama atenção o fato de que o
nome da peça é “Édipo-Rei”, e não “Édipo, o incestuoso” ou “Édipo, o parricida”. Porque
para Édipo, o grande problema era não ter matado o seu pai e desposado sua própria
mãe, mas a iminência da perda do poder sobre Tebas. O que está em questão, portanto,
é a queda do poder de Édipo. Ademais, o enigma da esfinge, que é resolvido por Édipo,
confere-lhe poder. Portanto, podemos concordar com a constatação foucaultiana de que
saber é poder.

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3.6 O sistema do inquérito e a descoberta judiciária da verdade

Segundo Foucault (1996), o inquérito é uma forma política, de gestão, de exercício


do poder que, mediante uma instituição judiciária, tornou-se a maneira por meio da qual,
na cultura do Ocidente, encontra-se a verdade. É, portanto, uma forma de saber-poder.
Com efeito, o inquérito foi (e ainda é, a despeito de algumas modificações
substanciais) uma maneira de criar discursos acerca da verdade, de perpetuar o poder do
Estado, desde a Grécia Antiga, passando pela Idade Média, chegando até os dias atuais,
como veremos nos itens seguintes.

3.7 O antigo Direito Germânico e o sistema de provas

A expressão “Direito Germânico” é alusiva às instituições e os sistemas jurídicos


existentes nas diversas nações bárbaras de origem teutônica que se apossaram da
Europa após a queda do Império Romano do Ocidente, em 476. Eram leis escritas em
latim que geralmente seguiam o modelo do Direito Romano. Por isso, fala-se em Direito
Romano-Germânico (Civil Law), em oposição ao modelo Anglo-Saxão (Common Law).
Segundo Foucault, o Direito Germânico caracteriza-se basicamente a partir das seguintes
premissas:

1. Não havia ação penal pública – Não havia intervenção de nenhum representante
ou autoridade. A ação penal no Direito Germânico era um ato de dois personagens,
e não 3, como costumamos afirmar contemporaneamente à luz do sistema
acusatório e do conhecido actum trium personarum. Para haver uma ação penal
era necessário que tivesse havido um dano, que uma vítima tivesse se sentido
lesada por esse dano e que essa vítima designasse o seu adversário (o causador do
dano). A exceção quanto à ação pública ficava por conta dos crimes de traição e da
prática da homossexualidade, o que é bastante curioso e evidencia a preocupação
no nível do biopoder relativamente às práticas íntimas dos sujeitos. Nesses casos,
a comunidade intervinha porque se sentia lesada (observem como esse
movimento permite entender historicamente muitos dos ressentimentos que

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existem em parcelas mais conservadoras da sociedade quanto às minorias sexuais


e identitárias);
2. A ação penal era uma espécie de guerra – “Distribuída” a ação penal, a liquidação
judiciária desenvolvia-se numa espécie de continuação de luta entre os indivíduos.
Era uma espécie de guerra particular, individual, e o procedimento penal era
apenas a ritualização dessa guerra entre os envolvidos. “O direito é, pois, uma
maneira regulamentada de fazer a guerra.” (FOUCAULT, 1996, p. 56-57); e
3. Era possível converter a ação penal em um acordo – O acordo emerge como a
possibilidade de interrupção das hostilidades regulamentadas. “O antigo Direito
Germânico oferece sempre a possibilidade, ao longo dessa série de vinganças
recíprocas e rituais, de se chegar a um acordo, a uma transação. Pode-se
interromper a série de vinganças com o pacto.” (FOUCAULT, 1996, p. 57). Um árbitro,
então, vai estabelecer uma soma em dinheiro (o resgate), cujo pagamento põe fim
à guerra.

3.8 O sistema das provas no Direito Feudal

“O Direito Feudal é essencialmente do tipo germânico.” (FOUCAULT, 1996, p. 58).


Ele não traz consigo nenhum dos elementos típicos dos procedimentos do inquérito, do
estabelecimento da verdade na sociedade grega ou no Império Romano.
O litígio no sistema feudal era regulamentado pelo sistema da prova (épreuve).
Quando alguém se apresentava com alguma reivindicação, o litígio era resolvido por uma
série de provas aceitas por ambos e a que os envolvidos eram submetidos.

1. Provas sociais – Apresentavam-se 12 testemunhas para jurar a favor do caráter do


acusado (vejam como soa familiar com o Direito Penal do Autor) ao invés de prestar
depoimento sobre sua conduta (o já conhecido Direito Penal do Fato). O
juramento, então, estava fundado não no fato, mas na pessoa do acusado (algo
como as chamadas testemunhas abonatórias do Direito Processual Penal). A prova
da inocência, por isso, não residia num testemunho retrospectivo sobre um fato,
mas no “peso” daquele indivíduo na sociedade;

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2. Provas verbais – Nesse caso, o acusado deveria proferir fórmulas gramaticais (no
estilo “trava língua”) jurando que não havia cometido o fato de que era acusado,
um assassinato ou um roubo, por exemplo. Dependendo de suas habilidades
oratórias, era absolvido ou não. É interessante o apontamento feito por Foucault
de que os menores, as mulheres e os padres podiam ser substituídos por outra
pessoa. Observem que interessante esse antecedente histórico remoto da figura
do advogado, que devia pronunciar as fórmulas no lugar do acusado. “Se ele se
enganava ao pronunciá-las, aquele em nome de quem falava perdia o processo.”
(FOUCAULT, 1996, p. 60);
3. Provas mágico-religiosas – Consistiam em exigir que o acusado prestasse
juramento e, caso hesitasse ou não o fizesse, perdia o processo.
4. Provas corporais físicas (ordálios) – Submetia-se a pessoa a uma espécie de jogo de
luta com o seu próprio corpo, através do qual se constataria se venceria ou
fracassaria. No Império Carolíngio, por exemplo, havia uma prova imposta a quem
fosse acusado de assassinato consistente no seguinte: o acusado devia andar sobre
ferro em brasa e, se dois dias depois ele ainda tivesse cicatrizes, perdia o processo.

Por isso, Foucault (1996, p. 61) fala que o sistema de provas do Direito Feudal
assume uma (i) forma binária:

No sistema de prova judiciária feudal, trata-se não da pesquisa da verdade,


mas de uma espécie de jogo de estrutura binária. O indivíduo aceita a prova
ou renuncia a ela. Se renuncia, se não quer tentar a prova, perde o processo
de antemão. Havendo a prova, vence ou fracassa. Não há outra
possibilidade. A forma binária é a primeira característica da prova.

Além disso, essa prova sempre termina por uma (ii) vitória ou pelo fracasso. Em
nenhum momento aparece algo como a sentença, que só vamos conhecer a partir do
fim do século XII e do início do século XIII, algo como a enunciação, por um terceiro, acerca
de fatos imputados por uma parte à outra. Ademais, outra característica desse sistema
de provas é sua (iii) automaticidade, pois o terceiro somente interfere para testemunhar
a regularidade do procedimento. Ele é, em verdade, quase desnecessário. Por fim, a
quarta característica (iv) é de que nesse mecanismo a prova não serve para nomear e
definir quem disse a verdade, mas para estabelecer quem é o mais forte.

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Veja na questão a seguir a forma de cobrança na prova discursiva da DPE-SP de


2013 e antecipadas em “Vigiar e punir” (atentemos para o fato de que o livro objeto de
cobrança à ocasião daquele certame era outro, e isso repercutiu na forma de elaboração
da pergunta e no enfoque dado):

No livro “Vigiar e punir”, o filósofo Michel Foucault analisa três formas punitivas
historicamente situadas: o suplício, as penas proporcionais aos crimes e a prisão. Segundo
sua análise, cada uma destas formas punitivas vincula-se, em seus princípios, sua forma
e seus efeitos, a uma determinada “economia do poder”, também historicamente
localizada. Explicite a análise realizada pelo autor sobre a forma punitiva consistente no
suplício, considerando os seguintes aspectos: 1) O que é o suplício. Os principais
elementos que caracterizam essa forma punitiva; 2) A relação entre o suplício e a
descoberta da verdade do crime; 3) A relação entre a manifestação da verdade do crime
e a forma de execução do suplício (execução pública); e 4) O significa do suplício como
“ritual político”.3

3.9 O segundo nascimento do inquérito na Idade Média

A história do inquérito na Grécia Antiga permaneceu esquecida e somente foi


retomada séculos mais tarde, já na Idade Média. O nascimento de fato, portanto, da

3
Segundo espelho da banca, esperava-se que o(a) candidato(a) conseguisse explicitar a análise
realizada por Foucault relativamente ao suplício (penas físicas, ordálias) como expressão concreta
da economia do poder soberano. Quanto ao questionamento (1), o(a) candidato(a) devia ser capaz
de definir o suplício como uma pena corporal e caracterizá-lo a partir de seus principais elementos
constitutivos: a produção de certa quantidade de sofrimento, a correlação entre o tipo de
ferimento físico e a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, bem como o nível social das vítimas.
Quanto ao item (2), o(a) candidato(a) deveria demonstrar a relação entre a forma de suplício e a
determinação da própria verdade sobre o crime, ou seja, que no suplício misturam-se um ato de
instrução e um elemento de punição. No tocante ao item (3), o(a) candidato(a) deveria demonstrar
que a realização pública do suplício tinha por objetivo realizar uma manifestação atual do crime.
Assim, a execução pública incluía os seguintes aspectos: o culpado era o arauto da sua própria
condenação; o suplício seguia a cena da confissão; o estabelecimento de relações decifráveis entre
o suplício e o crime; o suplício constituía-se ao final de seu ritual como uma derradeira prova.
Finalmente, quanto ao item (4), o(a) candidato(a) devia demonstrar implicações entre a forma
punitiva do suplício e a “economia” do poder soberano. A explicitação dos elementos que constitui
o suplício como um ritual político evidenciará o vínculo desta forma punitiva como o modelo do
poder soberano.

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prática judiciária do inquérito, foi na Grécia Antiga. O segundo nascimento, afirma


Foucault, dar-se-á no medievo europeu. É que o método grego não chegou a se colocar
como um projeto racional, o que só vai ocorrer efetivamente na Idade Média e em
proporções extraordinárias.
Portanto, o inquérito que ressurge nos séculos XII e XIII é substancialmente
diferente daquele que estudamos em Édipo.
Conforme já mencionamos no item 3.7, nesse caso, não havia ação pública, em
regra, e a ação penal somente tinha vez quando houvesse dano e quando a vítima
designasse seu adversário (o causador do dano).

3.10 Direito e sociedade disciplinar

Foucault designa a sociedade contemporânea como sociedade disciplinar. Ela


caracteriza-se, segundo o autor, pelo aparecimento, entre o final do século XVIII e início
do século XIX, da reorganização do sistema judiciário e penal nos diferente países
europeus e no mundo. E em que consistem essas transformações dos sistemas penais?
Quais as relações de poder subjacentes? Quais as formas de saber, os tipos de
conhecimento que emergem?
A partir de autores como Cesare Beccaria, Jeremy Bentham e Jacques-Pierre
Brissot, algumas transformações importantes começam a ocorrer. Primeiramente, (i) o
crime ou a infração, no sentido penal do termo, passam a ser vistos, simplesmente, como
a ruptura de uma lei, e não mais como uma falta moral ou religiosa. Além disso, (ii) a lei,
que será violada por força da infração penal, deve simplesmente ser útil à sociedade. Não
há que se falar em lei religiosa ou moral. Em terceiro lugar, (ii) o crime emerge como dano
social, e não como pecado ou desvio moral. Finalmente, (iv) há uma nova definição de
criminoso, como sendo o inimigo social, aquele que causou o dano social.
Dito isso, percebe-se que a lei penal deve limitar-se a restabelecer a perturbação
causada pelo inimigo social. Não há mais punição divina, de ordem religiosa, ou moral (ao
menos não institucionalmente). A lei penal existe para impedir, em resumo, que males
semelhantes ocorram e para reparar o mal causado. Observem como existe um
antecedente histórico interessante dos fins (declarados) da pena, do ponto de vista
preventivo e repressivo.

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Fato é que, à época, existiam 4 tipos possíveis de punição:

1. Expulsão – Como o criminoso rompeu o pacto social, não pertence mais ao corpo
social, motivo pelo qual deve ser expulso do campo da legalidade que infringiu;
2. Exclusão, isolamento, escândalo-público – É o isolamento constituído e fortalecido
basicamente pela opinião pública. Abandona-se a pessoa (o inimigo social) e sua
falta ao desprezo público;
3. Trabalho forçado – A ideia era forçar as pessoas ao desempenho de uma atividade
útil, de modo que o dano causado fosse compensado. Observem, também, que em
certa medida, ainda convivemos com punições desta ordem, muito embora
inclusive os instrumentos normativos de direitos humanos afirmem – em posição
não livre de críticas – que o trabalho no cárcere não se configura como pena de
trabalhos forçados;
4. Lei de Talião – O intento é fazer com que o dano não posse ser novamente
cometido. Por isso, faz-se com o inimigo social o que ele fez: mata-se quem matou,
rouba-se quem roubou.

Todas essas penas foram substituídas pela pena de prisão, que surge no decorrer
do século XIX. A prisão, que surge quase que sem justificação teórica, implica o abandono
do projeto segundo o qual é preciso fazer do sujeito aprisionado alguém útil à sociedade.
Em seu lugar, surge uma forma de punição que se ajusta ao indivíduo, por exemplo, com
as circunstâncias atenuantes (que também conhecemos por serem mencionadas em
nosso Código Penal). Com o aprisionamento, objetiva-se menos a defesa geral da
sociedade e mais o controle e a reforma psicológica e moral do indivíduo.
Trata-se de passar do questionamento e da preocupação sobre o que foi feito pelo
criminoso (no passado) para o que ele pode fazer (no futuro).
Essa forma de punição difere substancialmente de todas vistas até então, a
começar pelo fato de que, com base no princípio fundamental de Beccaria, não haveria
punição sem lei explícita. Com isso, surge também uma escandalosa noção de
periculosidade, ainda manejada no campo das medidas de segurança, que leva em
consideração o indivíduo não em razão de seus atos, mas em virtude de seu potencial
perigo.

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Finalmente, outro ponto fulcral desse período histórico diz respeito ao fato de que
o controle do comportamento dos indivíduos não poderia estar mais inteiramente sob a
responsabilidade do Poder Judiciário. Era preciso viabilizar o controle penal punitivo dos
indivíduos no campo de suas virtualidades (periculosidade) a partir de uma ampla gama
de instituições: polícia, instituições pedagógicas, asilos, hospitais, escolas etc.

Entramos assim na idade do que eu chamaria de ortopedia social. Trata-se


de uma forma de poder, de um tempo de sociedade que classifico de
sociedade disciplinar por oposição às sociedades propriamente penais que
conhecíamos anteriormente. É a idade de controle social (FOUCAULT, 1996,
p. 86).

Nesse sentido, Bentham está entre os teóricos que ilustrou a arquitetura da


sociedade de vigilância, dessa grande ortopedia social, especialmente a partir da noção
do Panóptico, do qual falaremos a seguir.

3.11 Disciplina, prisão e panoptismo

pan·-óp·ti·co |ópt|
(pan- + óptico)
Adjetivo
1. Que permite ver todos os elementos ou todas as
partes (ex.: pretendia construir uma prisão pan-
óptica).

Substantivo masculino
2. Modelo de prisão ou de torre de observação,
idealizado para que os vigilantes possam facilmente
observar todas as partes do edifício ou recinto, sem
serem observados.

Já sabemos que para Foucault, a sociedade contemporânea é a sociedade


disciplinar. Agora, precisamos relacionar essa sociedade à prisão e ao chamado panóptico
de Bentham.

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O panóptico é um termo utilizado pelo jusfilósofo inglês Jeremy Bentham, em 1785,


para designar uma penitenciária ideal. A ideia de um novo princípio de construção
aplicável a toda sorte de estabelecimentos nos quais as pessoas tenham de estar
mantidas sob inspeção permanente, tais como penitenciárias, “casas de indústria, casas
de trabalho, casas para pobres, manufaturas, hospícios, lazaretos, hospitais e escolas.”
(BENTHAM, 2008, p. 15).
Bentham, segundo Foucault, descreveu precisamente as formas de poder dessa
sociedade disciplinar. O panóptico permite a um único vigilante observar todos os
prisioneiros (ou todos os institucionalizados), sem que estes possam saber se estão ou
não sendo observados. O medo e o receio de não saberem se estão a ser observados leva-
os a adotar o comportamento desejado pelo vigilante.

Vigilância

Panoptismo Controle

Correção

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O panoptismo, portanto, não tem mais por referência o inquérito, mas aquilo que
Foucault vai chamar de exame. O inquérito tem viés retrospectivo, intenta reconstruir no
presente o que ocorreu no passado (quem matou, quem morreu, em que circunstâncias
etc.). Já o panóptico4 parte do pressuposto do exame e da vigilância como práticas
permanentes que implicam questionar-se sobre se determinado comportamento é
normal.
É essa lógica que, ao abandonar o inquérito, vai dar lugar às ciências humanas
como a Psiquiatria, a Psicologia, a Sociologia etc. Mas como (e quando, precisamente) isso
ocorreu?
Já na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra, existiam determinados
grupos espontâneos de pessoas que se atribuíram, sem qualquer delegação do Poder
Público, a tarefa de manter e assegurar a ordem. Vejamos a seguir alguns desses grupos:

1. Quakers – Basicamente, eram grupos religiosos com origem comum num


movimento protestante britânico cujo objetivo era fazer a vigilância e prestar
assistência à população. Aos quakers eram submetidos todos os casos de
desordem: embriaguez, adultério, recusa ao trabalho etc. A tarefa de assistência e
vigilância funcionava numa bilateralidade muito eficiente: ao mesmo tempo em
que assistiam a população, tinham a prerrogativa indissociável de vigiá-la. “Tratava-
se, portanto, de grupos de vigilância espontânea com origem, funcionamento e
ideologia profundamente religiosos.” (FOUCAULT, 1996, p. 90);
2. Sociedade para a Reforma das Maneiras – Em 1692, fundou-se essa sociedade que
tinha 100 filiais na Inglaterra e 10 na Irlanda. Posteriormente, foi substituída pela
Sociedade da Proclamação que, em 1802, recebe a alcunha de Sociedade para a
Supressão do Vício. O objetivo dessas sociedades, em resumo, era fazer respeitar
os domingos, impedir a bebedeira, reprimir a prostituição, o adultério, a blasfêmia

4
O Presídio Modelo, prisão construída entre 1926 e 1931 na Isla de la Juventud, em Cuba, abrigou o
líder Fidel Castro poucos anos antes da Revolução Cubana. O Presidio Modelo é a única prisão com
sistema de vigilância do panóptico que foi construída na América Latina. Para saber mais, clique
aqui.

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e tudo que pudesse significar algum desprezo em relação a Deus, embora a


Sociedade para a Supressão do Vício tenha evoluído para algo mais laicizado;
3. Grupos de autodefesa de caráter paramilitar – A exemplo da Infantaria Militar de
Londres e da Companhia de Artilharia, surgem, no século XVIII, grupos com o
objetivo de fazer reinar a ordem, seja do ponto de vista político, penal ou
simplesmente num bairro, numa cidade, numa região.
4. Sociedades propriamente econômicas – Objetivavam responder às mudanças
demográficas e sociais da época, bem como às transformações econômicas que
tinham como pano de fundo a urbanização e o deslocamento da população do
campo para a cidade. Em síntese, havia uma nova forma de acumulação da
riqueza, e quando “a riqueza começa a se acumular em forma de estoque, de
mercadoria armazenada, de máquinas, torna-se necessário guardar, vigiar e
garantir sua segurança.” (FOUCAULT, 1996, p. 92).

No decorrer da evolução desses associações de pessoas, Foucault refere que há


três deslocamentos importantes:

1. Se a princípio esses grupos eram de autodefesa ou vigilância efetiva,


paulatinamente, eles passam a ter interesse em tentar escapar do Poder
Judiciário que, à época, era absolutamente sanguinário (apenas para se ter uma
ideia, em mais de 300 casos havia a possibilidade de ser enforcado). Para
escapar desse Poder Judiciário os indivíduos organizavam essas sociedades de
reforma moral. No entanto, no decorrer do século XVIII, tais grupos vão mudar
seu enfoque para justamente reforçar a autoridade penal. “Ao lado do temível
instrumento penal que possui, o poder vai se atribuir esses instrumentos de
pressão, de controle. Trata-se, de certo modo, de um mecanismo de estatização
dos grupos de controle.” (FOUCAULT, 1996, p. 93);
2. Um segundo deslocamento importante reside no fato de que, pouco a pouco,
e com a adesão de aristocratas e pessoas ricas, esses grupos passam a tentar
obter do Poder Político novas leis que ratificam essa ordem moral. Por isso, é
um deslocamento da moralidade à penalidade;

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3. Finalmente, o controle passa, enfim, a ser exercido pelas classes mais altas em
face da classe explorada. Textos da época evidenciam a percepção de que a lei
era feita para os pobres. Se os ricos escapavam à lei, não havia problema algum,
pois a lei não era feita para eles.

Na França, ao contrário da Inglaterra (cenário que vimos até aqui), ocorreu um


processo bastante diferente, até mesmo porque existia, em solo francês, um forte
aparelho de Estado, ausente na Inglaterra.

Esse forte aparelho monárquico da França estava apoiado em um duplo


instrumento: um instrumento judiciário clássico – os parlamentares, as
cortes etc. – e um instrumento para-judiciário – a polícia – cuja invenção é
privilégio da França. Uma polícia que comportava os intendentes, o corpo
de polícia montada, os tenentes de polícia; que era dotada de instrumentos
arquiteturais como a Bastilha Bicêtre, as grandes prisões etc.; que possuía
também seus aspectos institucionais como as curiosas lettres-de-cachet
(FOUCAULT, 1996, p. 95).

E aqui, precisamos falar sobre a lettre-de-cachet, também chamada de lettre close


ou lettre fermée, ou seja, algo como “carta fechada”. Tratava-se de uma ordem do Rei,
direcionada a uma pessoa em específico, obrigando-a a fazer algo. Na maioria das vezes,
esse instrumento de poder era utilizado para viabilizar a punição. E é interessante
perceber que na maioria das vezes não era o Rei quem tomava a decisão de emanar a
ordem, mas indivíduos diversos: “maridos ultrajados por suas esposas, pais de família
descontentes com seus filhos, famílias que queriam se livrar de um indivíduo,
comunidades religiosas perturbadas por alguém, uma comuna descontente com seu
cura etc.” (FOUCAULT, 1996, p. 96). A lettre-de-cachet, portanto, consistia numa forma de
regulamentar a moralidade cotidiana da vida social.
Existiam três categorias de condutas que suscitavam o pedido de lettre-de-cachet:

1. Condutas de imoralidade – Devassidão, adultério, sodomia, bebedeira etc.;


2. Condutas religiosas julgadas perigosas e dissidentes – A lettre-de-cachet, aqui,
servia para prender feiticeiros que já há muito não eram entregues à fogueira;
3. Condutas ligadas a conflitos de trabalho – Quando patrões não estavam satisfeitos
com os operários, podiam valer-se da lettre-de-cachet para livrar-se deles.

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A origem da prisão, não por acaso, está justamente na lettre-de-cachet, como bem
assevera Foucault (1996, p. 98):

A prisão, que vai se tornar a grande punição do século XIX, tem sua origem
precisamente nesta prática para-judiciária da lettre-de-cachet, utilização
do poder real pelo controle espontâneo dos grupos. Quando uma lettre-de-
cachet era enviada contra alguém, esse alguém não era enforcado, nem
marcado, nem tinha de pagar uma multa. Era colocado na prisão e nela
devia permanecer por um tempo não fixado previamente.

Interessante perceber, portanto, como “essa ideia de uma penalidade que procura
corrigir aprisionando é uma ideia policial, nascida paralelamente à justiça, fora da justiça,
em uma prática dos controle sociais ou em um sistema de trocas entre a demanda do
grupo e o exercício do poder.” (FOUCAULT, 1996, p. 99).
Com o nascimento do capitalismo e com a aceleração da sua instalação, a riqueza
passa, cada vez mais, a receber um novo tipo de materialidade não mais monetária. É que
a riqueza, nos séculos XVI e XVII era essencialmente constituída pela fortuna de terras,
por espécies monetárias ou letras de câmbio que podiam ser trocadas. No século XVIII,
esse cenário muda. Agora, existem mercadorias, estoques, máquinas, oficinas, matérias-
primas etc. E tudo isso exposto à depredação. “Toda essa população de gente pobre, de
desempregados, de pessoas que procuram trabalho tem agora uma espécie de contato
direto, físico com a fortuna, com a riqueza.” (FOUCAULT, 1996, p. 100-101).
Foi, por conseguinte, justamente a nova distribuição espacial e social da riqueza
industrial e agrícola que viabilizou novos controles sociais no fim do século XVIII.
Para concluir, veja como a questão do panóptico surgiu na prova discursiva da
DPE-BA em 2017 também pela banca FCC:

“Dispositivo importante, pois automatiza e desindividualiza o poder. Este tem seu


princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada dos corpos,
das superfícies, das luzes, dos olhares; numa aparelhagem cujos mecanismos internos
produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos. As cerimônias, os rituais,
as marcas pelas quais se manifesta no soberano o mais-poder são inúteis. Há uma
maquinaria que assegura a dissimetria, o desequilíbrio, a diferença. Pouco importa,

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consequentemente, quem exerce o poder.” (FOUCAULT, M. Vigiar e punir, 2007, p. 167).


No trecho citado, Michel Foucault refere-se ao “dispositivo panóptico”. Acerca deste
dispositivo, segundo as análises do filósofo na obra “Vigiar e punir”, pergunta-se: A) Quais
seus principais efeitos em instituições como, por exemplo, a prisão? B) O dispositivo
panóptico está relacionado a quais mecanismos de poder? Explique.5

E a questão a seguir também trabalha o tema da disciplina em Foucault:

2022 | CEBRASPE | DPE-PI | Defensor(a) Público(a)6


Acerca da função simbólica do Direito e da Eficácia do Direito e legitimidade da ordem
jurídica, assinale a opção correta.
A) A contrariedade à política de cotas e de popularização de espaços como aeroportos
baseada em argumentos meritocráticos são exemplo de defesa de capital simbólico
pelas classes dominadas.
B) Para Foucault, o campo do Direito não é autônomo e independente das pressões
sociais como em Kelsen, mas também não se submete, como no marxismo estruturalista,
de forma inexorável ao poder econômico a partir da ideologia, mas o Direito constitui-se
como um universo social relativamente independente em relação a pressões externas.
C) Em Kelsen, a legitimidade do direito encontra-se fora da norma jurídica.
D) A convenção social, em Weber, depende da existência da norma jurídica para se ver
praticada.

5
A resposta deveria ser apresentada em até 30 linhas e o espelho da prova contém as seguintes
orientações:
A) A criação de um sistema de visibilidade axial e a invisibilidade lateral, que tem por resultado
imediato a garantia da ordem; a indução, no detento de um estado que visibiliza, que assegura o
funcionamento automático do poder; a sujeição real dos indivíduos, que decorre mecanicamente
de uma relação fictícia, sendo desnecessário recorrer-se à força para obtenção dos
comportamentos esperados; um estabelecimento de diferenças e de classificações entre os
indivíduos em função de suas características e de seu comportamento; atuação sobre o
comportamento dos indivíduos, permitindo realizar sobre esse comportamento experiências,
modificações e treinamentos.
B) A explicação consiste em mostrar que tal dispositivo permite a concretização da disciplina dos
corpos, na medida em que, por meio de um sistema de visibilidade completo e ininterrupto,
favorece o controle das atividades dos indivíduos, controle do tempo, controle dos
comportamentos de cada um e o conjunto dos indivíduos, a produção de um saber sobre cada
um e sobre o conjunto dos indivíduos.
6
Gabarito: E.

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E) Em Foucault, a explicação para a legitimidade do direito não está na busca por justiça,
mas se encontra em um poder disciplinar que se encontra desde a família, passando pela
escola, até chegar à prisão.

3.12 O criminoso como inimigo social

Na sociedade disciplinar a que alude Foucault, o criminoso é concebido como um


inimigo social, isto é, como alguém que causou o dano social ao infringir uma ordem de
coisas previamente estabelecida. Em “A sociedade punitiva”, Foucault discorre com
maiores detalhes sobre o inimigo social, categoria que aparece de forma mais tangencial
em “A verdade e as formas jurídicas”.
Para o autor, o criminoso é o inimigo do bem estar social, do progresso, do futuro.
Ele é uma ameaça, pois acha mais fácil infringir a norma. Falta-lhe respeito, sujeição,
disciplina, vontade. O criminoso é aquele que se recusa a trabalhar, se recusa a ser
explorado. É aquele que, de alguma forma, resiste. “A punição, portanto, instala-se a partir
de uma definição do criminoso como aquele que guerreia contra a sociedade.”
(FOUCAULT, 2015, p. 32).

Com efeito, a partir do fim do século XVIII, tem-se a instauração de toda


uma série de instituições que vão, precisamente, instituir o personagem do
criminoso como inimigo social e defini-lo na prática como tal: instituições
do ministério público, da instrução, da ação judiciária, e organização de
uma polícia judiciária, que permitirão que a ação pública se desenvolva a
contento; júri, que já existia na Inglaterra, por exemplo, na origem como
direito de ser julgado pelos pares, mas o júri que se vê em funcionamento
no século XIX é a instituição que marca o direito de a própria sociedade
julgar (ou de julgar por seus representantes) alguém que tenha se colocado
em posição de conflito com ela. Ser julgado por um júri já não é ser julgado
por seus pares, mas ser julgado em nome da sociedade pelos
representantes dela (FOUCAULT, 2015, p. 33).

A fim de evitar a repetição, e em atenção à proposta pedagógica do curso, remete-


se o(a) leitor(a) ao item 3.10, no qual discorreu-se sobre o inimigo social à luz das
teorizações trazidas na obra mencionada no edital.

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3.13 O exame como forma de saber-poder

Segundo Foucault, tanto o inquérito quanto o exame são formas de saber-poder.


No entanto, o exame é substancialmente diferente do inquérito sobretudo porque se
trata de um saber de vigilância “organizado em torno da norma pelo controle dos
indivíduos ao longo de sua existência.” (FOUCAULT, 1996, p. 88).
Em “Vigiar e punir”, Foucault (1987, p. 209) fala extensamente sobre a técnica do
exame, um tipo de vigilância que permite qualificar ou punir. Nesse sentido, articula-se o
olhar hierárquico e a sanção normalizadora, permitindo avaliar o indivíduo a partir de suas
notas. É um sistema, portanto, de punição e recompensa.7

O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que


normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite
qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma
visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso
que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado.
Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a
demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos
processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos
como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. A superposição das
relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível.

3.14 Ciências do exame e sociedade capitalista

Tendo clareza de que o exame é um tipo de vigilância que permite qualificar ou


punir, há que se compreender que a ciência do exame está umbilicalmente relacionada
com o funcionamento da sociedade capitalista.
Com efeito, o inquérito e o exame são formas de saber-poder. No entanto, em uma
sociedade como a feudal, como já vimos, inexista algo parecido com o panóptico. E isso
não significa, é evidente, que não tenham existido instâncias de controle social e de
punição/recompensa também na sociedade feudal.
Na última conferência, Foucault alerta para um paradoxo no aparecimento do
panoptismo. É que, curiosamente, o panoptismo opõe-se à teoria legalista do Direito

7
Há até mesmo uma certa semelhança com a sistemática da aprovação em concursos públicos.
O próprio vocábulo – exame – remete a esse sistema de punir/recompensar.

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Penal que se formara nos anos precedentes com Beccaria (legalismo estrito). O
panoptismo opõe-se inteiramente ao legalismo estrito. Isso porque

no panoptismo a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível do que se


é; não do que se faz, mas do que se pode fazer. Nele, a vigilância tende, cada
vez mais, a individualizar o autor do ato, deixando de considerar a natureza
jurídica, a qualificação penal do próprio ato (FOUCAULT, 1996, p. 104).

A sociedade capitalista relaciona-se especialmente com o panóptico, sobretudo a


partir da noção de panóptico industrial: a chamada fábrica-prisão, utopia capitalista que
se contrapôs à utopia socialista.
Foucault interessantemente descreve uma dessas instituições e diz que ela
poderia identificar-se não somente com uma fábrica, mas também com uma escola, com
uma prisão, com um hospital psiquiátrico, com um convento, com um quartel, com um
asilo, enfim, com qualquer instituição:

Era uma instituição onde havia 400 pessoas que não eram casadas e que
deviam levantar-se todas as manhãs às cinco horas; às cinco e cinquenta
deveriam ter terminado de fazer a toilette, a cama e ter tomado o café; às
seis horas começava o trabalho obrigatório, que terminava às oito e quinze
da noite, com uma hora de intervalo para o almoço; às oito e quinze, jantar,
oração coletiva; o recolhimento aos dormitórios era às nove horas em
ponto. O domingo era um dia especial; o artigo cinco do regulamento desta
instituição dizia: "Queremos guardar o espírito que o domingo deve ter, isto
é, dedicá-lo ao cumprimento do dever religioso e ao repouso. Entretanto,
como o tédio não demoraria a tornar o domingo mais cansativo do que os
outros dias da semana, deverão ser feitos exercícios diferentes, de modo a
passar este dia cristã e alegremente"; de manhã, exercícios religiosos, em
seguida exercícios de leitura e de escrita e finalmente recreação às últimas
horas da manhã; à tarde, catecismo, as vésperas, e passeio depois das
quatro horas, se não fizesse frio. Caso fizesse frio, leitura t'.m comum. Os
exercícios religiosos e a missa não eram assistidos na igreja próxima porque
isto permitiria aos pensionistas deste estabelecimento terem contato com
o mundo exterior; assim, para que nem mesmo a igreja fosse o lugar ou o
pretexto de um contato com o mundo exterior, os serviços religiosos
tinham lugar em um capela construída no interior do estabelecimento. "A
igreja paroquial, diz ainda este regulamento, poderia ser um ponto de
contato com o mundo e por isso uma capela foi consagrada no interior do
estabelecimento". Os fiéis de fora não eram sequer admitidos. Os
pensionistas só podiam sair do estabelecimento durante os passeios de
domingo, mas sempre sob a vigilância do pessoal religioso. Este pessoal
vigiava os passeios, os dormitórios e assegurava a vigilância e a exploração
das oficinas. O pessoal religioso garantia, portanto, não só o controle do
trabalho, da moralidade, mas também o controle econômico. Estes

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pensionistas não recebiam salários, mas um prêmio – uma soma global


estipulada entre 40 e 80 francos por ano – que somente lhes era dado no
momento em que saíam. No caso de uma pessoa de outro sexo precisar
entrar no estabelecimento por razões materiais, econômicas etc. deveria
ser escolhida com o maior cuidado e permanecer por muito pouco tempo.
O silêncio lhes era imposto sob pena de expulsão. De um modo geral, os
dois princípios de organização, segundo o regulamento, eram: os
pensionistas nunca deveriam estar sozinhos no dormitório, no refeitório, na
oficina, ou no pátio, e deveria ser evitada qualquer mistura com o mundo
exterior, devendo reinar no estabelecimento um único espírito. Que
instituição era esta? No fundo a questão não tem importância, pois poderia
ser indiferentemente qualquer uma: uma instituição para homens ou para
mulheres, para jovens ou para adultos, uma prisão, um internato, uma
escola ou uma casa de correção. Não é um hospital, pois, fala-se muito em
trabalho. Também não é um quartel, pois se trabalha. Poderia ser um
hospital psiquiátrico, ou mesmo uma casa de tolerância. Na verdade, era
simplesmente uma fábrica. Uma fábrica de mulheres que existia na região
do Ródano e que comportava quatrocentos operárias.

Para Foucault (1996, p. 110), “as utopias proletárias socialistas [...] têm a propriedade
de nunca se realizassem, e as utopias capitalistas [...] têm a má tendência de se realizarem
frequentemente.” Em resumo, o que Foucault quer dizer é que a noção de fábrica-prisão
“caiu no colo” da estratégia da sociedade do capital, pelo menos num primeiro momento.
Ocorre que, a carga econômica dessas instituições revelou-se muito pesada, de modo
que a estrutura rígida dessas fábricas-prisões levou muitas delas à ruína. Então,
“organizaram-se técnicas laterais ou marginais, para assegurar, no mundo industrial, as
funções de internamento, de reclusão, de fixação da classe operária desempenhadas
inicialmente por estas instituições rígidas, quiméricas, um pouco utópicas.” (FOUCAULT,
1996, p. 111). Nesse sentido, foram tomadas medidas como a criação de cidades operárias,
caixas econômicas, caixas de assistência etc., a fim de fixar a população operária, o
proletariado.
E aqui, imperioso questionar-se sobre os motivos pelos quais objetivou-se instituir
a reclusão dessas duas formas: primeiramente, sob a forma encontrada no início do
século XIX, forte, compacta, em instituições como escolas, hospitais psiquiátricos, casas
de correção, prisões etc. e, depois, em instituições como a classe operária, a classe
econômica, a caixa de assistência. Segundo o autor, diz com uma conjugação de duas
heranças diretas: por um lado, a técnica francesa do internamento e, de outro, o
procedimento do controle típico dos ingleses.

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Foucault conclui que, atualmente, todas as instituições têm por objetivo não
excluir os indivíduos, mas fixa-los. A fábrica, por exemplo, liga os indivíduos a um aparelho
de produção. A escola, a um aparelho de transmissão do saber. O hospital psiquiátrico, a
um aparelho de correção, de normalização. Com a casa de correção ou com a prisão, a
finalidade primeira é não excluir, mas fixar os indivíduos em um aparelho de normalização
do sujeito. “Trata-se de garantir a produção ou os produtores em função de uma
determinada norma.” (FOUCAULT, 1996, p. 114). Por isso, a reclusão do século XIX é
substancialmente distinta daquela forma de punição que lhe precedeu no século XVIII.
Outro ponto que chama atenção é o fato de que, nesse novo modelo, não há muita
clareza sobre o caráter estatal ou extraestatal desse poder. Ou seja, muitas vezes, é difícil
definir se essas instituições – fábrica, escola, hospital etc. – são do aparelho do Estado ou
não.
Chama atenção, também, o fato lembrado por Foucault de que no decorrer do
século XIX, inúmeras medidas serão tomadas para suprimir as festas e diminuir o tempo
de ociosidade ou descanso do trabalhador. Essa técnica sutil tem por objetivo controlar a
economia dos operários. Vejamos o interessante raciocínio desenvolvido por Foucault
(1996, p. 117-118) acerca das chamadas instituições de sequestro8:

Para que a economia, por um lado, tivesse a flexibilidade necessária, era


preciso, havendo necessidade, poder desempregar os indivíduos; mas por
outro lado, para que os operários pudessem depois do tempo de
desemprego indispensável recomeçar a trabalhar, sem que neste intervalo
morressem de fome, era preciso que tivessem reservas e economias. Daí o
aumento dos salários que vemos claramente se esboçar na Inglaterra nos
anos 40 e na França nos anos 50. Mas, a partir do momento em que os
operários têm dinheiro, é preciso que eles não utilizem suas economias
antes do momento em que estiverem desempregados. Eles não devem
utilizar suas economias no momento em que desejarem, para fazer greve
ou para festejar. Surge então a necessidade de controlar as economias do
operário. Daí a criação, na década de 1820 e sobretudo, a partir dos anos 40
e 50, de caixas econômicas, de caixas de assistências etc., que permitem
drenar as economias dos operários e controlar a maneira como são
utilizadas. Desta forma, o tempo do operaria, não apenas o tempo do seu
dia de trabalho, mas o de sua vida inteira, poderá efetivamente ser utilizado

8
Aqui, vale referir que a diferença entre aparelho de Estado e o que não é aparelho de Estado não
parece importante para Foucault. São, em resumo, instituições-pedagógicas, médicas, penais ou
industriais para estabelecer o controle, a responsabilidade sobre a totalidade, ou a quase
totalidade do tempo dos indivíduos. Portanto, são instituições que, de certa forma, se encarregam
de toda a dimensão temporal da vida dos indivíduos (FOUCAULT, 1996).

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da melhor forma pelo aparelho de produção. É assim que sob a forma


destas instituições aparentemente de proteção e de segurança se
estabelece um mecanismo pelo qual o tempo inteiro da existência humana
é posto à disposição de um mercado de trabalho e das exigências do
trabalho. A extração da totalidade do tempo é a primeira função destas
instituições de sequestro. Seria possível mostrar, igualmente, como nos
países desenvolvidos este controle geral do tempo é exercido pelo
mecanismo do consumo e da publicidade.

Veja-se, portanto, que as instituições de sequestro viabilizam “que o tempo da vida


se torne tempo de trabalho, que o tempo de trabalho se torne força de trabalho, que a
força de trabalho se torne força produtiva.” (FOUCAULT, 1996, p. 122).
Então, se a primeira função das chamadas instituições de sequestro é a extração
da totalidade do tempo, a segunda função é não mais a de controlar o tempo dos
indivíduos, mas pura e simplesmente controlar os seus corpos, até mesmo porque o
patronato não suportava a sexualidade operária. Este tema, da sexualidade, está
intensamente explorado na trilogia “História da sexualidade” de Foucault, cuja primeira
publicação deu-se em 1975.
Com efeito, a primeira função das instituições de sequestro era extrair dos
indivíduos o máximo de seu tempo, fazendo com que o tempo dos homens fosse única e
exclusivamente direcionado ao trabalho.9 A segunda função, como dito, consiste em fazer
com que os corpos se tornem corpos de trabalho, isto é, força de trabalho. A terceira
função das instituições de sequestro é estabelecer uma forma de poder polimorfo,
polivalente. Por isso, Foucault menciona que esse poder é não somente econômico e
político, como Judiciário.

Nessas instituições, não apenas se dão ordens, se tomam decisões, não


somente se garantem funções como a produção, a aprendizagem etc., mas
também se tem o direito de punir e recompensar, se tem o poder de fazer
comparecer diante de instâncias de julgamento. Este micropoder que
funciona no interior destas instituições é ao mesmo tempo um poder
judiciário (FOUCAULT, 1996, p. 120).

Finalmente, a quarta função das instituições de sequestro implica extrair um saber


dos próprios indivíduos, a partir de seu próprio comportamento. Por exemplo, em uma

9
Veja que a própria noção de “dia útil” como sendo aquele no qual, a rigor, se trabalha, impõe
algumas reflexões sobre em quais atividades é útil investir o tempo.

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fábrica, o operário melhora o trabalho com o saber que ele tem sobre o seu próprio ofício.
E esses melhoramentos são imediata e constantemente registrados, permitindo maior
vigilância sobre se, por exemplo, Fulano produziu como no mês passado ou como no
mesmo mês do ano anterior. Ao lado desse saber que Foucault chama de tecnológico,
surge um saber de observação: um saber que nasce da observação dos indivíduos, da sua
classificação, do registro e da análise de seus comportamentos. Trata-se de um saber do
tipo clínico, da ordem da psiquiatria, da psicologia, da psicossociologia, da criminologia
etc.
Foucault conclui, então, nas últimas páginas da obra, que as análises feitas em “A
verdade e as formas jurídicas” permitem explicar o surgimento da prisão, que
paradoxalmente nasce de uma teoria do Direito Penal como a de Beccaria. Para o
historiador das ideias francês, a prisão consolida todas as instituições de sequestro criadas
no século XIX. E, justamente por isso, é como se a prisão não fosse algo absurdo ou
desumano, mas tão somente a expressão de um consenso social que, aliás, existe na
fábrica, na escola, no hospital etc. É esta ambiguidade – consistente no fato de que a
prisão, embora reproduza a lógica das instituições de sequestro, delas se diferencia – que
permitiu o sucesso da prisão e a facilidade da sua aceitação desde o desenvolvimento das
primeiras grandes prisões penais, de 1817 a 1830.
Foucault também sinaliza, a título de conclusão, para o fato de que o sistema
capitalista penetra muito profundamente em nossa existência.10 O trabalho, nesse
sentido, é um instrumento que viabiliza o sobrelucro. E, para haver lucro, é fundamental
a instalação de espaços de micropoder, de um poder capilarizado e microscópico, quase
imperceptível. Dito de outro modo, não há sobrelucro sem sub-poder. Não se trata,
portanto, do aparelho do Estado exercendo o clássico poder político, mas de um poder
de outra ordem que se exerce se forma horizontalizada e atravessada.
Finalmente, Foucault (1996, p. 126) questiona o conceito atribuído à expressão
“ideologia”, propondo que “Poder e saber encontram-se assim firmemente enraizados;
eles não se superpõem às relações de produção, mas se encontram enraizados muito
profundamente naquilo que as constitui”.

10
Essa ideia aparece de forma bastante interessante em “Psicopolítica: neoliberalismo e as novas
técnicas de poder”, do filósofo Byung-Chul Han.

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Referências

BENTHAM, Jeremy. O panóptico. Organização de Tomaz Tadeu. Traduções de Guacira


Lopes Louro. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2008.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de


Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Ed., 1996.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel


Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972 -1973).


Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução


de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Editora Ayiné, 2018.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de


Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010.

SÓFOCLES. Édipo-Rei. Tradução de J. B. de Mello e Souza, 2005. Versão digital.

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