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COLÉGIO INTERAÇÃO VOZES ATIVAS

Equipe Pedagógica

Direção Geral Helena Andrade de Matos


Direção Pedagógica Arlane Rodrigues Florentino
Coordenação Ensino Fundamental Arlane Rodrigues Florentino
Coordenação Ensino Médio Pedro Henrique do Nascimento
Coordenação de Linguagens Diolema Ferreira Gomes
Assessoria Pedagógica Pedro Rogério Felix Cunha

Arte e Texto
Seleção dos Textos Diolema Ferreira Gomes
Projeto Gráfico/Diagramação Dionísio Silva / Diolema Ferreira Gomes
Revisão textual Juliana Cristina de Souza Corrêa
Solimar Ferreira

Projeto Coletâneas Colégio Interação


Volume 01 – Coletânea de Crônicas - 2022
Palmas - TO
Coletânea de Crônicas Colégio Interação

A coletânea de Crônicas Colégio Interação tem como objetivo oportunizar


aos aluno o contato com vários autores em suas diferentes épocas.

A característica atemporal do gênero faz com que o olhar aguçado dos


seus autores, para suas épocas, possibilitem aos leitores o diálogo literário,
histórico e cultural com os acontecimentos retratados nas crônicas.

Desse modo, ao ler uma crônica, o leitor não tem apenas contato com um
gênero textual, mas com um documento sociológico que evidencia toda
uma experiência humana.

Como está organizada a coletânea?

A Coletânea não segue uma ordem cronológica ou alfabética (autor e/ou


data), mas a ordem do eterno vai e vem dos acontecimentos capturados
pelo olhar dos autores para a realidade.

O que é uma crônica?

A crônica é um dos gêneros textuais mais popular utilizada em situações


do cotidiano .

Ela advém de textos jornalísticos onde é publicada, é um texto


de linguagem simples e coloquial, o que torna sua leitura mais fácil e
agradável.

O tom leve da crônica prende a atenção do leitor, que se delicia com


histórias rápidas, desde o humor crítico, irônico ao sarcástico.

Embora as crônicas retratem acontecimentos do dia a dia, elas não têm a


finalidade única de informar, de se ater à verdade, como os demais
gêneros jornalísticos. O objetivo da narrativa é provocar uma reflexão
sobre o exposto, uma espécie de análise crítica sobre o contexto e as
circunstâncias abordadas.

Boa leitura!
SUMÁRIO

1. O PAVÃO | RUBEM BRAGA.................................................................... PÁG. 05


2. POR NÃO ESTAREM DISTRAÍDOS | CLARICE LISPECTOR....................... PÁG. 06
3. A RUA DO OUVIDOR | JOAQUIM MANUEL DE MACEDO.................... PÁG. 07
4. A ARTE DE SER AVÓ I RAQUEL DE QUEIROZ........................................... PÁG. 11
5. CONFORMADOS E REALISTAS | TOSTÃO................................................ PÁG. 15
6. A METAMORFOSE | LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO................................... PÁG. 18
7. SER BROTINHO| PAULO MENDES CAMPOS............................................ PÁG. 21
8. A ÚLTIMA CRÔNICA | FERNANDO SABINO............................................ PÁG. 25
9. PELADAS | ARMANDO NOGUEIRA.......................................................... PÁG. 28
10. SÃO PAULO: AS PESSOAS DE TANTOS LUGARES | MILTON HATOUM.... PÁG. 30
11. SOBRE A CRÔNICA | IVAN ÂNGELO....................................................... PÁG. 33
12. O FIM DO MUNDO| CECÍLIA MEIRELES.................................................... PÁG. 36
13. PAÍS RICO| LIMA BARRETO....................................................................... PÁG. 39
14. O HOMEM TROCADO| LUIS FERNANDO VERÍSSIMO............................... PÁG. 41
15. PRESENTE PARA A SENHORA | CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE..... PÁG. 43
16. CONSELHOS DE UM VELHO APAIXONADO | CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE.................................................................................................... PÁG. 46
17. O AMOR ACABA | PAULO MENDES CAMPOS......................................... PÁG. 48
18. UM CASO DE BURRO I MACHADO DE ASSIS............................................. PÁG. 50
19. A BOLA | LUIS FERNANDO VERÍSSIMO...................................................... PÁG. 54
20. INCIDENTE NA CASA DO FERREIRO | LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO......... PÁG. 56
21. DO ROCK | CARLOS HEITOR CONY.......................................................... PÁG. 60
22. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS AVES-BALASI IVAN ÂNGELO........... PÁG. 62
23. CUIA| LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO............................................................ PÁG. 65
24. INSÔNIA INFELIZ E FELIZ | CLARICE LISPECTOR......................................... PÁG. 67
25. NOTÍCIA DE JORNAL| FERNANDO SABINO............................................... PÁG. 68
26. A FOTO | LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO....................................................... PÁG. 70
1. O PAVÃO | RUBEM BRAGA

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de


suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros; e descobri
que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não
há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a
luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris
de plumas.

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o


máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz
ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.

Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de


tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim
existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me
cobre de glórias e me faz magnífico.

Rubem Braga (Cachoeiro do Itapemirim, no


Espírito Santo, 1913 — 1990), foi um escritor e
jornalista brasileiro. Tornou-se famoso como
cronista de jornais e revistas de grande
circulação no país. Foi correspondente de
guerra na Itália e Embaixador do Brasil em
Marrocos.

CRÔNICA NA REDE
2. POR NÃO ESTAREM DISTRAÍDOS | CLARICE LISPECTOR

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como


quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por
admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de
antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria
água deles.

Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar
matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede
deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao
toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras
– e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um
pouco mais seca de admiração.

Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou


em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa
mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros.
O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via,
ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No
entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das
ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um
sorriso.

Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam


bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram
ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque
quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se
estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para
que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o
deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais
distraídos.
Publicado na obra Para Não Esquecer (1978), Clarice
Lispector nasceu na aldeia de Tchetchelnik, na Ucrânia,
no dia 10 de dezembro de 1920 e morreu em dezembro
de 1977, Rio de Janeiro. Quanto às suas identidades
nacional e regional, declarava-se brasileira
e pernambucana.

CRÔNICA NA REDE
3. A RUA DO OUVIDOR | JOAQUIM MANUEL DE MACEDO

A Rua do Ouvidor contou diversas lojas de perfumarias, e, por


consequência, devia ser a rua mais cheirosa, mais perfumada entre
todas as da cidade do Rio de Janeiro.
E, todavia, não o era!...
Com efeito não havia nem há rua mais opulenta de aromas, de
perfumes, de pastilhas odoríferas, de banhas e de pomadas de ótimo
cheiro; mas tudo isso encerrado em vidrinhos, em frascos e em pequenas
caixas bonitas que mantinham e mantêm a Rua do Ouvidor tão inodora
como as outras de dia.
Atualmente de noite observa-se o mesmo fato.
Naquele tempo, porém, isto é, nos tempos do Demarais, e ainda depois,
a Rua do Ouvidor, de fácil e reta comunicação com a praia, era uma
das mais frequentadas pelos condutores dos repugnantes barris, das oito
horas da noite até às dez.
A esses barris asquerosos o povo deu a denominação geralmente
adotada de - tigres - pelo medo explicável que todos fugiam deles.
Esse ruim costume do passado me traz à memória informação falsa e
ridícula que li, e caso infeliz e igualmente ridículo, de que fui testemunha
ocular e nasal em 1839, no meu saudoso tempo de estudante.
A informação é a seguinte:
Um francês (viajante charlatão) passou pela cidade do Rio de Janeiro, e
demorando-se nela alguns dias, ouviu dos patrícios da Rua do Ouvidor
queixas dos incômodos tigres que frequentes passavam ali de noite.
Sábio e consciencioso observador que era, o viajante tomou nota do
ato, e poucos anos depois publicou, no seu livro de viagens, esta famosa
notícia:
“Na cidade do Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, feras terríveis,
os trigraves, vagam, durante a noite, pelas ruas, etc., etc.!!!”
E é assim que escreve a história!
O caso que observei foi desastroso, mas de natureza que fez rir a todos.
Pouco depois das oito horas da noite, um inglês, trajando casaca preta e
gravata branca...
Entre parêntese.
A RUA DO OUVIDOR

Em 1839 ainda era de uso ordinário e comum a casaca; o reinado


de paletó começou depois; muitos estudantes iam às aulas de casacas,
e não havia senador nem deputado que se
apresentasse desacasacado nas respectivas Câmaras: o paletó tornou-
se eminentemente parlamentar de 1845 em diante.
Fechou-se os parênteses.
O inglês de chapéu de patente, casaca preta e gravata branca subia
pela Rua do Ouvidor, quando encontrou um negro que descia, levando
à cabeça um tigre para despejá-lo no mar.
O pobre africano ainda a tempo recuou um passo, mas o inglês que não
sabia recuar avançou outro; o condutor do tigre encostou-se à parede
que lhe ficava à mão direita, e o inglês supondo-se desconsiderado por
um negro que lhe dava passo à esquerda pronunciou a ameaçadora
palavra goodemi, e sem mais tir-te nem guar-te honrou com um soco
britânico a face do africano, que perdendo o equilíbrio pelo ataque e
pela dor, deixou cair o tigre para diante e naturalmente de boca para
baixo.
Ah! Que não sei de nojo como o conte!
O Tigre ou o barril abismou em seu bojo o chapéu e a cabeça e inundou
com o seu conteúdo a casaca preta, o colete e as calças do inglês.
O negro fugiu acelerado, e a vítima de sua própria imprudência,
conseguindo livrar-se do barril, que o encapelara, lançou-se a correr
atrás do africano, sacudindo o chapéu em estado indizível, e bradando
furioso:
— Pegue ladron! Pegue ladron!...
Mas qual - pega ladron! -: todos se arredavam de inocente e
malcheiroso negro que fugia, e ainda mais o inglês, tornado tigre pela
inundação que recebera.
Era geral o coro de risadas na Rua do Ouvidor.
O inglês, perdendo enfim de vista o africano, completou o caso com um
remate pelo menos tão ridículo como o seu desastre. Voltando rua
acima, parou em frente de numeroso grupo de gente que testemunhara
a cena, e ria-se dela.
A RUA DO OUVIDOR

Ainda hoje o estou vendo; o inglês parou, e sempre a sacudir o chapéu


olhou iroso para o grupo e disse, mas disse com orgulhosa gravidade
britânica:
— Amanhã faz queixa a ministro da Inglaterra, e há de ter indenização de
chapéu e de casaca perdidas.
Ah! Eu creio que então a melhor das risadas que romperam foi a minha
gostosa, longa e repetida risada de estudante feliz e alegrão.
É inútil dizer que não houve questão diplomática. A Inglaterra ainda não se
tinha feito representar no Brasil por Mr. Christie, o único capaz (depois do
jantar) de exigir indenização do chapéu e da casaca que o patrício
perdera.
Não foi este único desastre que os tigres ocasionaram, foram muitos e todos
mais ou menos grotescos, e sei de um outro (além da encapelação do
inglês) ocorrido na Rua do Carmo hoje Sete de Setembro, que de súbito
desfez as mais doces esperanças do casamento inspirado e desejado por
mútuo amor.
O namorado era estudante, meu colega e amigo; estava perdidamente
apaixonado por uma viúva, viuvinha de dezoito anos, e linda como os
amores.
A RUA DO OUVIDOR

Uma noite, a bela senhora estava à janela, e à luz de fronteiro lampião viu
o namorado que, aproveitando o ponto do mais vivo clarão iluminador, lhe
mostrava, levando-o ao nariz, um raminho de lindas flores, que ia enviar-lhe,
quando nesse momento o cego apaixonado esbarrou com um condutor
de tigre, e, embora não encapelado, foi quase tão infeliz como o inglês.
O pior do caso foi que a jovem adorada incorreu no erro quase inevitável
de desatar a rir, e logo depois de fugir da janela por causa do mau cheiro
de que se encheu a rua.
O namorado ressentiu-se do rir impiedoso da sua esperançosa e querida
noiva; amoroso, porém, como estava, dois dias depois tornou a passar
diante das queridas janelas.
No erro; a formosa viúva, ao ver o estudante, saudou-o doce, ternamente,
mas levou o lenço a boca para dissimular o riso lembrador de ridículo
infortúnio.
O estudante deu então solene cavaco, e não apareceu mais à bela
viuvinha.
Um tigre matou aquele amor.

Memórias da Rua do Ouvidor. Rio de


Janeiro: Perseverança, 1878.
Joaquim Manuel de Macedo (Rio de
Janeiro 1820-1882) foi um escritor
brasileiro. A Moreninha, sua obra-prima,
deu origem ao romance romântico
brasileiro

CRÔNICA NA REDE
4. A ARTE DE SER AVÓ I RAQUEL DE QUEIROZ

Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem


ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como
dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas
do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da
maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como
o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue,
filho de filho, mais filho que o filho mesmo...

Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente,


nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que
esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem
as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso,
embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto -
mas acredita. Todavia, também obscuramente, também
sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da
mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-
idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de
alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a
mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de
criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus,
para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de
problemas, que hoje são os seus filhos, que têm sogro e sogra,
cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não
encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São
homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
A ARTE DE SER AVÓ

E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das
agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços
um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha.
Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça da qual
você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade
perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um
menino seu que lhe é “devolvido”. E o espantoso é que todos lhe
reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito
de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo
e decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo
aquele amor recalcado que há anos se acumulava,
desdenhado, no seu coração. Sim, tenho a certeza de que a vida
nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações
trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que
vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos
arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores
que namorados, pois que as violências da mocidade produzem
mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avó,
trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...

No entanto - no entanto! - nem tudo são flores no caminho da


avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe.
Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de
ser a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente,
ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de “vovozinha” e
lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e
pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival
mesmo.
A ARTE DE SER AVÓ

Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó


representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao
da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem
todas as vantagens da domesticidade e da presença
constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho,
veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a
obrigação de educar e o ônus de castigar.

Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do


romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes.
Faz coisas não programadas. Leva a passear, “não ralha
nunca”. Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão
pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o
último recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas
crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma
deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura.
Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes
uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as
mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café - café! -,
mexer no armário da louça, fazer trem com as cadeiras da sala,
destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a
luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o
telefone. Riscar a parede com o lápis dizendo que foi sem
querer - e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e em vez
de apanhar ir para os braços da avó, e de lá escutar os debates
sobre os perigos e os erros da educação moderna...
A ARTE DE SER AVÓ

Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais


requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima
da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã
de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir
orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o
olhar das outras avós com os seus filhotes magricelas ou obesos, a
morrerem de inveja do seu maravilhoso neto! E quando você vai
embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe
reconhece, sorri e diz “Vó!”, seu coração estala de felicidade,
como pão ao forno. E o misterioso entendimento que há entre
avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para
você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo
menos lhe dá sua incondicional cumplicidade... Até as coisas
negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e
neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho
- involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e
remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os
cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o
choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém”
se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um
simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro
que pague...
(Rio, julho de 1958)

Rachel de Queiroz (Fortaleza -1910 Rio de janeiro - 2003)


foi uma escritora brasileira. A primeira mulher a entrar
para a Academia Brasileira de Letras e a primeira
mulher a receber o Prêmio Camões. Foi também
jornalista, tradutora e teatróloga. Seu primeiro romance
"O Quinze", ganhou o prêmio da Fundação Graça
Aranha.
Elenco de cronistas modernos. 21ª ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2005.

CRÔNICA NA REDE
5. CONFORMADOS E REALISTAS | TOSTÃO
5. CONFORMADOS E REALISTAS | TOSTÃO

Realistas sobre a qualidade e o futuro do futebol brasileiro, da


Seleção e dos clubes. Penso da mesma forma. Estamos
preocupados. Já a numerosa turma do oba-oba, também
chamada de otimista, acha que somos muito pessimistas.
Os conformados, os que têm pouco senso crítico e também os
modernistas, que são muito bem preparados cientificamente,
dizem que o futebol moderno é esse aí. Temos de engoli-lo.
Tocar a bola e esperar o momento certo para tentar fazer o gol
virou sinônimo de lentidão. Confundem modernidade com
mediocridade.
Ninguém é tão ingênuo para achar que se deve jogar hoje no
estilo dos anos 60. O que queremos é ver mais qualidade. Não
podemos nos contentar com um futebol medíocre, quase só de
jogadas aéreas e de muita falta e correria. O encanto do
futebol é outro.
Os jogadores são produzidos em série, para exportação, como
uma fábrica de parafusos. Os atletas de talento são colocados
na mesma linha de produção dos medíocres. Há mercado para
todos. Aumentou a quantidade e diminuiu a qualidade.
Nos últimos 14 anos, a Argentina ganhou cinco mundiais sub-20
(acontecem de dois em dois anos), além de duas medalhas de
ouro nas Olimpíadas. O time que derrotou o Brasil tem sete
jogadores da equipe campeã mundial sub-20 em 2005.
CONFORMADOS E REALISTAS

Muitos vão dizer, com um ótimo argumento, que nesse período,


o Brasil ganhou duas copas do mundo e mais um vice,
enquanto a Argentina não venceu nada. A razão disso é óbvia.
A Argentina não teve um único fenômeno nesses 14 anos, até
chegar Messi. Já o Brasil teve Romário, Ronaldo, Rivaldo,
Ronaldinho e Kaká. Todos os cinco ganharam o título de melhor
do mundo.
Os fenômenos, em todos os esportes, dependem muito menos
das condições em que são treinados. Eles não têm explicação.
Mas não se pode depender tanto deles. É preciso criar boas
estruturas e estratégias para formar um número maior de
excelentes atletas. Esses têm diminuído no futebol brasileiro.
Muitos treinadores brasileiros conhecem tudo de esquema
tático, de estatísticas, dos adversários, porém conhecem pouco
as sutilezas e subjetividades. Não são bons observadores.
Quem não sabe ver não sabe nada. Eles se preocupam mais
com seus esquemas táticos que com a qualidade do jogo e se
os melhores jogadores estão nos lugares certos.
Há exceções. Enfim, apareceu um técnico brasileiro que
colocou Carlos Alberto na posição certa, se movimentando na
frente, por todos os lados, e mais perto do gol, onde pode e
deve driblar. Assim ele jogou no Porto com José Mourinho.
Carlos Alberto não é armador, organizador, como atuava.
CONFORMADOS E REALISTAS

Há exceções. Enfim, apareceu um técnico brasileiro que Felipão


estava louco para ver Robinho no Chelsea porque precisa de
um atacante rápido, habilidoso, que joga melhor pelos lados e
que é capaz de marcar no próprio campo e aparecer com
facilidade no ataque. Robinho é um desses raros jogadores. Se
Felipão fosse treinador da Seleção, certamente faria o mesmo.

Nascido em 25 de janeiro de 1947,


Eduardo Gonçalves Andrade, o Tostão,
cravou seu nome na história do futebol
mineiro, brasileiro e mundial. participou
como jogador das Copas de 1966 e
1970 . Cronista esportivo. É formado em
medicina.
6. A METAMORFOSE | LUÍS FERNANDO VERISSIMO

Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado


num ser humano. Começou a mexer suas patas e descobriu
que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de
articulação difícil. Acionou suas antenas e não tinha mais
antenas. Quis emitir um pequeno som de surpresa e, sem querer,
deu um grunhido. As outras baratas fugiram aterrorizadas para
trás do móvel. Ela quis segui-las, mas não coube atrás do móvel.
O seu primeiro pensamento humano foi: que vergonha, estou
nua! O seu segundo pensamento humano foi: que horror!
Preciso me livrar dessas baratas!

Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente, ela


seguia o seu instinto. Agora precisava raciocinar. Fez uma
espécie de manto da cortina da sala para cobrir sua nudez.
Saiu pela casa, caminhando junto à parede, porque os hábitos
morrem devagar. Encontrou um quarto, um armário, roupas de
baixo, um vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para
um ex-barata. Maquilou-se. Todas as baratas são iguais, mas
uma mulher precisa realçar a sua personalidade. Adotou um
nome: Vandirene. Mais tarde descobriu que só um nome não
bastava. A que classe pertencia? Tinha educação?
Referências? Conseguiu, a muito custo, um emprego como
faxineira. Sua experiência de barata lhe dava acesso a sujeiras
mal suspeitadas; era uma boa faxineira.
A METAMORFOSE

Difícil era ser gente. As baratas comem o que encontram pela


frente. Vandirene precisava comprar sua comida e o dinheiro
não chegava. As baratas se acasalam num roçar de antenas,
mas os seres humanos não. Se conhecem, namoram, brigam,
fazem as pazes, resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro
vai dar? Conseguir casa, móveis, eletrodomésticos, roupa de
cama, mesa e banho. A primeira noite. Vandirene e seu torneiro
mecânico. Difícil. Você não sabe nada, bem?

Como dizer que a virgindade é desconhecida entre as


baratas? As preliminares, o nervosismo. Foi bom? Eu sei que não
foi. Você não me ama. Se eu fosse alguém você me amaria.
Vocês falam demais, disse Vandirene. Queria dizer vocês, os
humanos, mas o marido não entendeu; pensou que era vocês,
os homens. Vandirene apanhou. O marido a ameaçou de
morte. Vandirene não entendeu. O conceito de morte não
existe entre as baratas. Vandirene não acreditou. Como é que
alguém podia viver sabendo que ia morrer?

Vandirene teve filhos. Lutou muito. Filas do INPS. Creches.


Pouco leite. O marido desempregado. Finalmente, acertou na
esportiva. Quase quatro milhões. Entre as baratas, ter ou não ter
quatro milhões não faria diferença. A barata continuaria a ter o
mesmo aspecto e a andar com o mesmo grupo. Mas Vandirene
mudou. Empregou o dinheiro. Trocou de bairro. Comprou casa.
Passou a se vestir bem, a comer e dar de comer de tudo, a
cuidar onde colocava o pronome. Subiu de classe. (Entre as
baratas, não existe o conceito de classe.)
A METAMORFOSE

Contratou babás e entrou na PUC. Começou a ler tudo o que


podia. Sua maior preocupação era a morte. Ela ia morrer. Os
filhos iam morrer. O marido ia morrer – não que ele fizesse falta.
O mundo inteiro, um dia, ia desaparecer. O sol. O Universo.
Tudo. Se espaço é o que existe entre a matéria, o que é que
fica quando não há mais matéria? Como se chama a
ausência do vazio? E o que será de mim quando não houver
mais nem o nada? A angústia é desconhecida entre as
baratas.

Vandirene acordou um dia e viu que tinha se transformado de


novo numa barata. Seu penúltimo pensamento humano foi:
meu Deus, a casa foi dedetizada há dois dias! Seu último
pensamento humano foi para o seu dinheiro rendendo na
financeira e o que o safado do marido, seu herdeiro legal, faria
com tudo. Depois desceu pelo pé da cama e correu para trás
de um móvel. Não pensava mais em nada. Era puro instinto.
Morreu em cinco minutos, mas foram os cinco minutos mais
felizes da sua vida. Kafka não significa nada para as baratas.

Luís Fernando Verissimo (Porto Alegre-RS


1936) é um escritor brasileiro. Famoso por
suas crônicas e contos de
humor é também jornalista, tradutor,
roteirista de programas para televisão e
músico. É filho do escritor Érico Veríssimo.

CRÔNICA NA REDE
7. SER BROTINHO| PAULO MENDES CAMPOS

Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais!


Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente
das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível,
provocasse uma tosse de riso irresistível.

Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara


lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o
corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito
sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é
lançar fogo pelos olhos.

É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a


contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a
tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar
um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo
comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir
vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um ar
sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês coloridos. É
dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa
palavra se faz imprescindível e tão inteligente e superior. É
também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das
vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo
neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.
SER BROTINHO

Ser brotinho é poder usar óculos enormes como se fosse uma


decoração, um adjetivo para o rosto e para o espírito. É
esvaziar o sentido das coisas que os coroas levam a sério, mas é
também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. Aguardar
na paciente geladeira o momento exato de ir à forra da falsa
amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados
que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas
sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois
cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda
uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento
que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.

É telefonar muito, demais, revirando-se no chão como


dançarina no deserto estendida no chão. É querer ser rapaz de
vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas
ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio;
achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase
um maço de cigarros na sacada do apartamento, pensando
coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.

Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba,


e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel
de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar
de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista
de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter
comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.
SER BROTINHO

É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva,


úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar
para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha
na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma
louca varrida. É ir sempre ao cinema, mas com um jeito de
quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez bebido
dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha e uma de
cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice
de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o
dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse
passado, e vice-versa.

Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa


com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e
ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos
telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa
um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de
salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e
morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar
para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando,
anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante.
SER BROTINHO

Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror


de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas.
Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros
mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de
um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem.
Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse sentindo-se
quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser.
É fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável
dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de
minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar
parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga
de quem nada vê, nada ouve, nada fala.

Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é


detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma
cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio
verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e
não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina,
tão estranha é a vida sobre a Terra.

Paulo Mendes Campos (Belo Horizonte, Minas


Gerais 28 de fevereiro de 1922-1991) foi um
escritor, jornalista e poeta brasileiro,
conhecido, sobretudo, por suas crônicas.

CRÔNICA NA REDE
8. A ÚLTIMA CRÔNICA | FERNANDO SABINO

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar


um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o
momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de
estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca
do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu
pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso
conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna
de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta
perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer
nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico,
torno-me simples espectador e perco a noção do essencial.
Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café,
enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu
quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem
assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem
os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se,


numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de
espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos
e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma
negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha
no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa
balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de
curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em
torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da
sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que
matar a fome
A ÚLTIMA CRÔNICA

A ÚLTIMA CRÔNICA

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que


discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se
para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo
sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel,
vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do
garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois
se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os
lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A
meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem
atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o
no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma
pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de


Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por
que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha,
obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe
na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O
pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda
também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os
observa além de mim.
A ÚLTIMA CRÔNICA A ÚLTIMA CRÔNICA

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta


caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-
Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto
ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com
força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater
palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os
pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra
você...”. Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na
bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos
sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com
ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de
bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim,
satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da
celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se
encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça
abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se
abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse
sorriso.

Fernando Sabino (Belo Horizonte, 12 de


outubro de 1923 — Rio de Janeiro, 11 de
outubro de 2004) foi um escritor, jornalista e
editor brasileiro. O livro O encontro marcado,
é uma de suas obras mais conhecidas, foi
lançada em 1956. Foi cronista do Jornal do
Brasil e da revista Senhor. Elenco de cronistas
modernos. 21ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2005.

CRÔNICA NA REDE
9. PELADAS | ARMANDO NOGUEIRA

Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa:


agora, é uma babá que passa, empurrando, sem afeto, um
bebê de carrinho, é um par de velhos que troca silêncios num
banco sem encosto.
E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol,
de bola, de sonho: “Eu jogo na linha! eu sou o Lula! no gol, eu
não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás:
entrou aqui, já sabe”. Uma gritaria, todo mundo se escalando,
todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de
uma suada vaquinha.

Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como


está; o outro joga sem camisa.

Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é


um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se
está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá
com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose
adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de uma gandula.
Em compensação, num racha de menino ninguém é mais
sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quica no meio-fio,
para de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se
espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida,
pela calçada. Parece um bichinho.
Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de
uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, um número
cinco, cheia de carimbos ilustres: “Copa Rio-Oficial”, “FIFA —
Especial”. Uma bola assim, toda de branco, coberta de
condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!),
jamais seria barrada em recepção do Itamaraty.
PELADAS

No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na


maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de
quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha,
vendo estrelas, coitadinha.
Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de
craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que
lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.
Nova saída.
Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no
quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir
licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai
expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o
mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves
feitas de camisas.
O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um
canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a
bola começa a sangrar. Em cada gomo o coração de uma
criança.

O jornalista Armando Nogueira nasceu em 14 de


janeiro de 1927 na cidade de Xapuri, no Acre. Um
dos mais importantes cronistas esportivos do país,
foi diretor de jornalismo da Globo de 1966 a 1990.
Morreu aos 83 anos, no dia 29 de março de 2010,
no Rio de Janeiro.
Os melhores da crônica brasileira. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1977.

CRÔNICA NA REDE
10. SÃO PAULO: AS PESSOAS DE TANTOS LUGARES | MILTON
HATOUM

À primeira vista, São Paulo assusta. Aos poucos, o susto cede ao


fascínio, à surpresa da descoberta de muitos lugares escondidos
ou ocultados numa metrópole da qual a natureza parece ter
sido banida. Isto só em parte é verdade. Há vários parques e
jardins — Aclimação, Villa-Lobos, Burle Marx, Água Branca e
tantos outros —, sem contar o Ibirapuera, que simboliza uma
promessa de urbanismo mais civilizado, ou de um processo
urbano mais humanizado, interrompido pela ganância das
construtoras e da especulação imobiliária em conluio com o
poder público municipal.

Esse urbanismo desastroso e desumano é uma das


características das cidades brasileiras, em que os bons
arquitetos não participam da intervenção na paisagem urbana.
Apesar das adversidades, um morador de São Paulo aprende a
gostar da metrópole. Já quase não se vê o céu de Sampa, mas
há bairros que são pequenas cidades, há ruas com um casario
de uma outra época, com um ritmo de vida próprio, como se
outro tempo resistisse ao cerco dos arranha-céus horrorosos e
ao mundo das finanças e do consumo desenfreado.
SÃO PAULO: AS PESSOAS DE TANTOS LUGARES

Gosto de passear pelo Cambuci, Belenzinho, Penha; Brás,


Mooca, Tatuapé e Santana ainda revelam muitos encantos,
assim como a Estação da Luz e o Mercado Municipal. No
mundo grandioso da metrópole, pode-se descobrir uma série
de recantos: pequenas praças, um recorte de paisagem, um
beco, um conjunto de casas neoclássicas, uma antiga vila
operária, um boteco ou restaurante. Recantos que encerram
um outro modo de vida, como se a metrópole fosse um
palimpsesto a ser descoberto em cada andança. O oposto
disso são edifícios dotados de clube e shopping centers, que
separam seus moradores do resto da cidade, gerando uma
nova forma de segregação do espaço, ainda mais radical que
os condomínios.

Há pouco tempo, uma amiga carioca me disse que gostava


cada vez mais de São Paulo. Quis saber por que. Porque fiz boas
amizades na metrópole vizinha, ela disse.
Senti isso quando me mudei para cá em 1970. Morei num quarto
de pensão na Liberdade. Um dos colegas dessa pensão era
outro migrante, um rapaz de Londrina que passava o dia
estudando música e que se tornou, além de um grande músico,
um grande amigo: Arrigo Barnabé.
SÃO PAULO: AS PESSOAS DE TANTOS LUGARES

Entendi que São Paulo era uma meca para onde confluíam
pessoas de todos os quadrantes, as latitudes e as origens; talvez
seja este o maior encanto desta metrópole que une o culto ao
trabalho com promessas de amizade. A diversidade étnica de
São Paulo reitera a mestiçagem brasileira, uma das nossas
maiores riquezas.

Não há um único paulistano que não reclame do trânsito, da


poluição, da violência e das filas intermináveis, mas as relações
de trabalho e afeto, que são formas poderosas de inserção
social, servem de contrapeso ao caos e aos males da
metrópole.

Milton Hatoum nasceu em 19 de agosto


de 1952, em Manaus, no Amazonas. Fez
faculdade de arquitetura, estudou
literatura na França, foi professor
universitário, além de ser colunista do
jornal O Estado de S. Paulo. O autor
também ganhou vários prêmios literários,
tais como o Jabuti.
Milton é autor de Órfãos do
Eldorado e Dois irmãos (ambos pela
Companhia das Letras), entre outros
títulos.
Texto publicado na Revista da Folha,
25/05/2008.
11. SOBRE A CRÔNICA | IVAN ÂNGELO

Uma leitora se refere aos textos aqui publicados como


“reportagens”. Um leitor os chama de “artigos”. Um estudante
fala deles como “contos”. Há os que dizem: “seus comentários”.
Outros os chamam de “críticas”. Para alguns, é “sua coluna”.
Estão errados? Tecnicamente, sim — são crônicas —, mas...
Fernando Sabino, vacilando diante do campo aberto, escreveu
que “crônica é tudo o que o autor chama de crônica”.
A dificuldade é que a crônica não é um formato, como o
soneto, e muitos duvidam que seja um gênero literário, como o
conto, a poesia lírica ou as meditações à maneira de Pascal¹.
Leitores, indiferentes ao nome da rosa, dão à crônica prestígio,
permanência e força. Mas vem cá: é literatura ou é jornalismo?
Se o objetivo do autor é fazer literatura e ele sabe fazer...
Há crônicas que são dissertações, como em Machado de Assis;
outras são poemas em prosa, como em Paulo Mendes Campos;
outras são pequenos contos, como em Nelson Rodrigues; ou
casos, como os de Fernando Sabino; outras são evocações,
como em Drummond e Rubem Braga; ou memórias e reflexões,
como em tantos. A crônica tem a mobilidade de aparências e
de discursos que a poesia tem — e facilidades que a melhor
poesia não se permite.
Está em toda a imprensa brasileira, de 150 anos para cá. O
professor Antônio Candido observa: “Até se poderia dizer que
sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade
com que se aclimatou aqui e pela originalidade com que aqui
se desenvolveu”.
SOBRE A CRÔNICA

Alexandre Eulálio, um sábio, explicou essa origem estrangeira:


“É nosso familiar essay², possui tradição de primeira ordem,
cultivada desde o amanhecer do periodismo nacional pelos
maiores poetas e prosistas da época”. Veio, pois, de um tipo de
texto comum na imprensa inglesa do século XIX, afável, pessoal,
sem-cerimônia e, no entanto, pertinente.
Por que deu certo no Brasil? Mistérios do leitor. Talvez por ser a
obra curta e o clima, quente.
A crônica é frágil e íntima, uma relação pessoal. Como se fosse
escrita para um leitor, como se só com ele o narrador pudesse
se expor tanto. Conversam sobre o momento, cúmplices: nós
vimos isto, não é, leitor? vivemos isto, não é? sentimos isto, não
é? O narrador da crônica procura sensibilidades irmãs.
Se é tão antiga e íntima, por que muitos leitores não
aprenderam a chamá-la pelo nome? É que ela tem muitas
máscaras. Recorro a Eça de Queirós, mestre do estilo antigo. Ela
“não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do
poeta, nem a voz doutoral do crítico; tem uma pequena voz
serena, leve e clara, com que conta aos seus amigos tudo o
que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando”.
A crônica mudou, tudo muda. Como a própria sociedade que
ela observa com olhos atentos. Não é preciso comparar
grandezas, botar Rubem Braga diante de Machado de Assis. É
mais exato apreciá-la desdobrando-se no tempo, como fez
Antônio Candido em “A vida ao rés do chão”: “Creio que a
fórmula moderna, na qual entram um fato miúdo e um toque
humorístico, com o seu quantum satis³ de poesia, representa o
amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo
mesma”.
SOBRE A CRÔNICA

Ainda ele: “Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa


revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e
mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade
insuspeitadas”.
Elementos que não funcionam na crônica: grandiloquência,
sectarismo, enrolação, arrogância, prolixidade. Elementos que
funcionam: humor, intimidade, lirismo, surpresa, estilo, elegância,
solidariedade.
Cronista mesmo não “se acha”. As crônicas de Rubem Braga
foram vistas pelo sagaz professor Davi Arrigucci como “forma
complexa e única de uma relação do Eu com o mundo”. Muito
bem. Mas Rubem Braga não se achava o tal. Respondeu assim
a um jornalista que lhe havia perguntado o que é crônica:
— Se não é aguda, é crônica.

1. Blaise Pascal (1623-1662), matemático, filósofo e teólogo francês, autor


de Pensamentos.
2. “Ensaio familiar”. Ensaio é um gênero inaugurado por Michel de
Montaigne (1533-1592); vem da palavra francesa essayer (“tentar”). Um
ensaio é um texto onde se encadeiam argumentos, por meio dos quais o
autor defende uma ideia.
3. Em latim, “a quantidade necessária”.

Ivan Ângelo é mineiro de Barbacena, Minas


Gerais, onde nasceu em 1936. Seu livro de maior
repercussão é A festa (1975), que começou a
ser escrito em 1963 e foi concluído em 1975. Em
1976, recebeu por este romance o Prêmio
Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do
Livro. Foi cronista da revista Veja São Paulo
entre 1999 e outubro de 2018.
12. O FIM DO MUNDO| CECÍLIA MEIRELES

A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para


mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me
interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me,
porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que
choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que
andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas
tanto temiam.

Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa


era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para brincar
com as flores da goiabeira e as cores do tapete.

Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num


lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me
apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até
então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça
dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um
pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma
noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua
festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um
cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas
andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo
nenhum.

Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam


enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha
ficado um pouco triste - mas que importância tem a tristeza das
crianças?
O FIM DO MUNDO

Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o


suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha
sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de
mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que
bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.

Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém


fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver
um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa
imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus
olhos naquela noite já muito antiga.

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu


verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem
tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão
hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em
nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza
ou assaltamos os cofres públicos - além dos particulares. Por
que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso
saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.

Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos


desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais
digna.

Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento,


pedindo a Deus - dono de todos os mundos - que trate com
benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua
carreira mortal. Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que,
na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.
O FIM DO MUNDO

Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes


competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a
que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos
posições que não temos - insignificantes que somos, na
tremenda grandiosidade total.

Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não


os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos
teremos fim, em qualquer mês...

Cecília Benevides de Carvalho Meireles, nasceu


no Rio de Janeiro no dia 7 de novembro de
1901 e faleceu no Rio de Janeiro, no dia 9 de
novembro de 1964. Foi uma poetisa, professora,
jornalista e pintora brasileira e a primeira voz
feminina de grande expressão na literatura
brasileira, com mais de 50 obras publicadas.
Com 18 anos estreou na literatura com o livro
"Espectros".

Crônica extraída do livro "Quatro Vozes",


Distribuidora Record de Serviços de Imprensa -
Rio de Janeiro, 1998, pág. 73.

CRÔNICA NA REDE
13. PAÍS RICO| LIMA BARRETO

Não há dúvida alguma que o Brasil é um país muito rico. Nós


que nele vivemos; não nos apercebemos bem disso, e até, ao
contrário, o supomos muito pobre, pois a toda hora e a todo
instante, estamos vendo o governo lamentar-se que não faz isto
ou não faz aquilo por falta de verba.

Nas ruas da cidade, nas mais centrais até, andam pequenos


vadios, a cursar a perigosa universidade da calariça das
sarjetas, aos quais o governo não dá destino, o os mete num
asilo, num colégio profissional qualquer, porque não tem verba,
não tem dinheiro. É o Brasil rico…

Surgem epidemias pasmosas, a matar e a enfermar milhares de


pessoas, que vêm mostrar a falta de hospitais na cidade, a má
localização dos existentes. Pede-se à construção de outros
bem situados; e o governo responde que não pode fazer
porque não tem verba, não tem dinheiro. E o Brasil é um país
rico.

Anualmente cerca de duas mil mocinhas procuram uma


escola anormal ou anormalizada, para aprender disciplinas
úteis. Todos observam o caso e perguntam:

-Se há tantas moças que desejam estudar, por que o governo


não aumenta o número de escolas a elas destinadas?

O governo responde:
- Não aumento porque não tenho verba, não tenho dinheiro.

E o Brasil é um país rico, muito rico…


PAÍS RICO

As notícias que chegam das nossas guarnições fronteiriças, são


desoladoras. Não há quartéis; os regimentos de cavalaria não
têm cavalos, etc.; etc.

- Mas que faz o governo, raciocina Brás Bocó, que não constrói
quartéis e não compra cavalhadas?

O doutor Xisto Beldroegas, funcionário respeitável do governo


acode logo:

- Não há verba; o governo não tem dinheiro

- E o Brasil é um país rico; e tão rico é ele, que apesar de não


cuidar dessas coisas que vim enumerando, vai dar trezentos
contos para alguns latagões irem ao estrangeiro divertir-se com
os jogos de bola como se fossem crianças de calças curtas, a
brincar nos recreios dos colégios.

O Brasil é um país rico…

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de


Janeiro, no dia 13 de maio de 1881, sete anos antes da
abolição da escravatura e faleceu também no Rio de
Janeiro no dia 1° de novembro de 1922, aos 41 anos.
Sua obra é composta por romances, contos e crônicas,
dentre os quais merece destaque o romance Triste fim
de Policarpo Quaresma, que narra a trajetória daquele
que ficaria conhecido como o “Dom Quixote brasileiro”,
personificação exata do ufanismo nacional.

CRÔNICA NA REDE
14. O HOMEM TROCADO| LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na


sala de recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele
pergunta se foi tudo bem.

– Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.


– Eu estava com medo desta operação...
– Por quê? Não havia risco nenhum.

– Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de


enganos... E conta que os enganos começaram com seu
nascimento.

Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os


dez anos por um casal de orientais, que nunca entenderam o
fato de terem um filho claro com olhos redondos. Descoberto o
erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua
verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que
esta não soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.

– E o meu nome? Outro engano.


– Seu nome não é Lírio?
– Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e... Os enganos
se sucediam.

Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o


vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na
universidade. O computador se enganara, seu nome não
apareceu na lista.
O HOMEM TROCADO

. – Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras


incríveis. No mês passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.
– O senhor não faz chamadas interurbanas?
– Eu não tenho telefone!
Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com
outro. Não foram felizes.
– Por quê?
– Ela me enganava.

Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para


pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca
alegria, quando ouvira o médico dizer: - O senhor está
desenganado. Mas também fora um engano do médico. Não
era tão grave assim. Uma simples apendicite.

– Se você diz que a operação foi bem...


A enfermeira parou de sorrir.
– Apendicite? - perguntou, hesitante.
– É. A operação era para tirar o apêndice.
– Não era para trocar de sexo?

Luís Fernando Verissimo (Porto Alegre-RS 1936) é


um escritor brasileiro. Famoso por suas crônicas
e contos de humor é também jornalista,
tradutor, roteirista de programas para televisão
e músico. É filho do escritor Érico Veríssimo.
Crônica retirada do livro Comédia para ser na
escola.

CRÔNICA NA REDE
15. PRESENTE PARA A SENHORA | CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Percorro as listas de presentes possíveis para o Dia das Mães,


e sinto a dificuldade do problema. Tanta coisa! Até parece
que a mamãe, coitada, não tem objeto algum em casa,
desprovida de geladeira, armários, lenços, liquidificador,
porta-notas, tigelas de cerâmica, fogão, secador de
cabelo, batas...

Não, mamãe tem geladeira sim, claro que tem. Não é desse
eletrodoméstico fundamental que saem os refrigerantes, os
cremes, as coisas gostosas que ela reservou para o paladar
do filhinho? O filhinho hoje é executivo, mas sempre que vai
visitar mamãe, sabe que ela guardou para ele um sorvete
especial na caverna do congelador. É, mas a geladeira
deve ter envelhecido mais depressa que mamãe. Não tem
esses babados modelo 75, sugerido para presente a mães
classe A.

- Filhinho, que exagero!


- Que nada, mãe, a senhora merece muito mais.
- Você devia ter deixado seu pai fazer esta despesa.
- Papai lhe deu um carro novo, não deu? Vi na calçada.
- Não. O carro eu ganhei do seu irmão Tavinho, que esteve
aqui agora mesmo para me entregar as chaves.
- E papai, nada?
- Bom, seu pai me deu... O que foi mesmo que seu pai me
deu? Ando com a cabeça tão distraída. Ah, sim, uma
lancha de passeio.
- Se ele deu a lancha, não ia dar a geladeira.
- Ora, você sabe que seu pai vai casar com aquela loura de
São Paulo, e tem procurado ser gentil comigo de todas as
maneiras, enquanto não chega o divórcio.
PRESENTE PARA A SENHORA

O filhinho sai de queixo triste. Dera o presente mais


insignificante. Ano que vem terá mais cuidado, consultará
mais atentamente o rol de regalos. Dia das Mães provoca
frustrações assim.

Se pensam que nas classes B e C a coisa é fácil, enganam-


se. Pior. Mamãe ganhou tantos pares de meia que dava
para abrir uma casa-olga. Precisava ter recebido um ou dois
pares de sapatos para usar aquele monte de meias, mas
filho não sabe nunca o número do pé de mamãe. A nora,
chamada a opinar, vai dizendo, de cabeça leve: 40. Ou 35.
A mãe calça 37. Vai trocar na loja, a loja tem 37 daquele
modelo? Pois sim. O excesso converte-se em carência.
Poucas mães conseguem o presente exato. A coleção de
talcos que mamãe guardou no armário do banheiro, no
armário do quarto e na mala, para dar de presente às
amigas que fazem anos, tem origem no segundo domingo
de maio. Mas o talco de sua predileção, esse ela tem de
comprar na drogaria distante.

- Posso escolher meu presente do Dia das Mães, meu


fofinho?
- Não, mãe. Perde a graça. Este ano, a senhora vai ver.
Compro um barato.
- Barato? Admito que você compre uma lembrancinha
barata, mas não diga isso a sua mãe. É fazer pouco de mim.
- Ih, mãe, a senhora está por fora mil anos. Não sabe que
barato é o melhor que tem, é um barato!
- Deixe eu escolher, deixe...
PRESENTE PARA A SENHORA

- Mãe é ruim de escolha. Olha aquele blazer furado


que a senhora me deu no Natal!
- Seu porcaria, tem coragem de dizer que sua mãe
lhe deu um blazer furado?
- Viu? Não sabe nem o que é furado. Aquela cor já
era, mãe, já era!

Pelo visto, todos damos presentes errados: os filhos às


mães, as mães aos filhos. Maridos, namorados, idem.
Sábia foi Dona Lucrécia que chamou os cinco filhos e
comunicou-lhes:

- Não precisam tomar trabalho comigo. Nem fazer


despesa. Fico muito grata a vocês pela intenção.
Basta cada um me trazer um pacotinho de paz,
ouviram?
- Onde a gente arranja isso, mãe?
- Sei lá. O melhor é não procurar muito. Tragam
pacotinhos vazios. A paz deve estar lá dentro.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira de


Mato Dentro, interior de Minas Gerais, no dia 31 de
outubro de 1902 e faleceu em 17 de agosto de
1987, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
Foi poeta, contista e cronista brasileiro do período do
modernismo. Considerado um dos maiores escritores
do Brasil, Drummond fez parte da segunda geração
modernista. Foi precursor da chamada "poesia de 30"
com a publicação da obra "Alguma Poesia".

CRÔNICA NA REDE
16. CONSELHOS DE UM VELHO APAIXONADO | CARLOS DRUMMOND
DE ANDRADE

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu


coração parar de funcionar por alguns segundos,
preste atenção: pode ser a pessoa mais importante
da sua vida. Se os olhares se cruzarem e, neste
momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles,
fique alerta: pode ser a pessoa que você está
esperando desde o dia em que nasceu. Se o toque
dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os
olhos se encherem da água neste momento,
perceba: existe algo mágico entre vocês.

Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for


essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a
apertar o coração, agradeça: Algo do céu te
mandou um presente divino: O Amor.
Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por
algum motivo e, em troca, receber um abraço, um
sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem
mais que mil palavras, entregue-se: vocês foram
feitos um pro outro.

Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te


deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu
sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com
ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar
com ela em qualquer momento de sua vida. Se
você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da
pessoa como se ela estivesse ali do seu lado...
CONSELHOS DE UM VELHO APAIXONADO

Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela


estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos
emaranhados... Se você não consegue trabalhar direito o dia
todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a
noite... Se você não consegue imaginar, de maneira
nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado... Se você
tiver a certeza que vai ver a outra envelhecendo e, mesmo
assim, tiver a convicção que vai continuar sendo louco por
ela... Se você preferir fechar os olhos, antes de ver a outra
partindo: é o amor que chegou na sua ida.

Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas


poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Às vezes
encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais,
deixam o amor passar, sem deixá-lo acontecer
verdadeiramente. É o livre-arbítrio. Por isso, preste atenção
nos sinais. Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem
cego para a melhor coisa da vida: O Amor. Ame muito...
Muitíssimo...

CRÔNICA NA REDE
17. O AMOR ACABA | PAULO MENDES CAMPOS

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de


lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés
engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou
a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva
contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto,
polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da
aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma,
que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no
cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no
escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos
soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos
braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias
diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos
monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela
pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de
Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente,
no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente
da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania¹ da
pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos
e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às
províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra
coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade
simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim
à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes
vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo
parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de
duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados,
aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e
o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo
imperceptível no beijo de ir e vir;
O AMOR ACABA

em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos


roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida
e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto
conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não
começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode
virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São
Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba;
uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na
descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma
música que começou, com o mesmo drinque, diante dos
mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante,
dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris,
Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o
médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo
périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares
gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o
mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes
não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de
bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém,
humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se
fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e
esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o
amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na
floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na
dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os
lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por
qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os
lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
1. No sentido literário, epifania é um momento privilegiado de revelação
quando ocorre um evento que “ilumina” a vida da personagem.
O amor acaba - Crônicas líricas e existenciais. 2ª- ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.

CRÔNICA NA REDE
18. UM CASO DE BURRO I MACHADO DE ASSIS

Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa


tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta
crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena,
receio achar no leitor menor gosto que eu para um
espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe.
Releve a importância; os gostos não são iguais.

Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o


lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de
bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio
para remanso de burros, donde concluí que não estaria
deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um
amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os
ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se
de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão
frouxamente, que parecia estar próximo do fim.

Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata


com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma
piedade houve no dono ou quem quer que seja que o deixou
na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena
ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler
esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do
capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e
outras águas, em campos mais largos e eternos.

.
UM CASO DE BURRO

Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um


deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não
sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para
espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele
não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da
anca. Diga-se a verdade; não o fez — ao menos enquanto ali
estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos,
porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra
valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu
fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.
O que me pareceu, é que o burro fazia exame de
consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à
água, tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era um
trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar
morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido
dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da
morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do
pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência.
Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o
que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou
outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras
escritas, mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-
las verbalmente.
E diria o burro consigo:
“Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que
mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não
caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida,
se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido
maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro,
que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como
linguagem.
UM CASO DE BURRO

Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei


a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar
ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do
tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado
na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que
nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando
autoridade.”
“Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim
a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação
da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a
arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo
nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos
não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele;
nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia,
oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os
interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca
o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela
teima que é, em resumo, o meu único defeito. Quando não
teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de
submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem
chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde,
para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens
que pratiquei.”
“A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando
depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada — ou
simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia ao
bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos
devedores terei conduzido para longe de um credor importuno.
Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na
gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando
algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os
amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem
tapas e punhadas na cara. Em fim...”
UM CASO DE BURRO

Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado


que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me
à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A
consideração, porém, de que todos os burros devem ter os
mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não
seriam menos exemplares do que esse. Por que se não
investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha
já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga
também, coletivamente falando, isto é, que as suas
instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais.
Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?

Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei


o animal já morto.
Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo
repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa sem
asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim
passam os trabalhos deste mundo. Sem exagerar o mérito do
finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora,
também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste
final de século.

Joaquim Maria Machado de Assis, jornalista, contista, cronista,


romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21
de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de
setembro de 1908.
Machado de Assis escreveu nove romances. Os primeiros –
Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia -, apresentam
alguns traços românticos na caracterização dos personagens.
A partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, teve início sua fase
propriamente realista quando revelou seu incrível talento na análise
do comportamento humano, descobrindo, por trás dos atos bons e
honestos, a vaidade, o egoísmo e a hipocrisia.

CRÔNICA NA REDE
19. A BOLA | LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer


que sentira ao ganhar a sua primeira bola do pai. Um número
5 sem tento oficial de couro. Agora não era mais de couro,
era de plástico. Mas era uma bola.
O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse “Legal!”.
Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando gostam do
presente ou não querem magoar o velho. Depois começou a
girar a bola, à procura de alguma coisa.
— Como e que liga? — perguntou.
— Como, como é que liga? Não se liga.
O garoto procurou dentro do papel de embrulho.
— Não tem manual de instrução?
O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são
outros. Que os tempos são decididamente outros.
— Não precisa manual de instrução.
— O que é que ela faz?
— Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela.
— O quê?
— Controla, chuta...
— Ah, então é uma bola.
— Claro que é uma bola.
— Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
— Você pensou que fosse o quê?
— Nada, não.
A BOLA

O garoto agradeceu, disse “Legal” de novo, e dali a pouco o


pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova do lado,
manejando os controles de um videogame. Algo chamado
Monster Baú, em que times de monstrinhos disputavam a posse
de uma bola em forma de bip eletrônico na tela ao mesmo
tempo que tentavam se destruir mutuamente.
O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio
rápido. Estava ganhando da máquina.
O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas.
Conseguiu equilibrar a bola no peito do pé, como
antigamente, e chamou o garoto.
— Filho, olha.
O garoto disse “Legal”, mas não desviou os olhos da tela. O pai
segurou a bola com as mãos e a cheirou, tentando recapturar
mentalmente o cheiro de couro. A bola cheirava a nada.
Talvez um manual de instrução fosse uma boa ideia, pensou.
Mas em inglês, para a garotada se interessar.

Comédias para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

CRÔNICA NA REDE
20. INCIDENTE NA CASA DO FERREIRO | LUÍS FERNANDO
VERÍSSIMO

Pela janela vê-se uma floresta com macacos. Cada um no seu


galho. Dois ou três olham o rabo do vizinho, mas a maioria
cuida do seu. Há também um estranho moinho, movido por
águas passadas. Pelo mato, aparentemente perdido – não
tem cachorro – passa Maomé a caminho da montanha, para
evitar um terremoto. Dentro da casa, o filho do enforcado e o
ferreiro tomam chá.

Ferreiro – Nem só de pão vive o homem.


Filho do enforcado – Comigo é pão, pão, queijo, queijo.
Ferreiro – Um sanduíche! Você está com a faca e o queijo na
mão. Cuidado.
Filho do enforcado – Por quê?
Ferreiro – É uma faca de dois gumes.
(Entra o cego).
Cego – Eu não quero ver! Eu não quero ver!
Ferreiro – Tirem esse cego daqui!
(Entra o guarda com o mentiroso).
Guarda (ofegante) – Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu.
Cego – Eu não quero ver!
(Entra o vendedor de pombas com uma pomba na mão e
duas voando).
Filho do enforcado (interessado) – Quanto cada pomba?
Vendedor de pombas – Está na mão é 50. As duas voando eu
faço por 60 o par.
INCIDENTE NA CASA DO FERREIRO

Cego (caminhando na direção do vendedor de pombas) –


Não me mostra que eu não quero ver.
(O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a
pomba que tinha na mão. Agora são três pombas voando sob
o telhado de vidro da casa).
Ferreiro – Esse cego está cada vez pior!
Guarda – Eu vou atrás do coxo. Cuidem do mentiroso por mim.
Amarrem com uma corda.
Filho do enforcado (com raiva) – Na minha casa você não
diria isso!
(O guarda fica confuso, mas resolve não responder. Sai pela
porta e volta em seguida).
Guarda (para o ferreiro) – Tem um pobre aí fora que quer falar
com você. Algo sobre uma esmola muito grande. Parece
desconfiado.
Ferreiro – É a história. Quem dá aos pobres empresta a Deus,
mas acho que exagerei.
(Entra o pobre).
Pobre (para o ferreiro) – Olha aqui, doutor. Essa esmola que o
senhor me deu. O que é que o senhor está querendo? Não sei
não. Dá para desconfiar…
Ferreiro – Está bem. Deixa a esmola e pega uma pomba.
Cego – Essa eu nem quero ver…
(Entra o mercador).
Ferreiro (para o mercador) – Foi bom você chegar. Me ajuda a
amarrar o mentiroso com uma… (Olha para o filho do
enforcado). A amarrar o mentiroso.
Mercador (com a mão atrás da orelha) – Hein?
Cego – Eu não quero ver!
Mercador – O quê?
INCIDENTE NA CASA DO FERREIRO

Pobre – Consegui! Peguei uma pomba!


Cego – Não me mostra.
Mercador – Como?
Pobre – Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço
um galeto.
Mercador – Hein?
Ferreiro (perdendo a paciência) – Me deem uma corda. (O
filho do enforcado vai embora, furioso).
Pobre (para o ferreiro) – Me arranja um espeto de ferro?
Ferreiro – Nesta casa só tem espeto de pau.
(Uma pedra fura o telhado de vidro, obviamente atirada pelo
filho do enforcado, e pega na perna do mentiroso. O
mentiroso sai mancando pela porta enquanto as duas
pombas voam pelo buraco no telhado).
Mentiroso (antes de sair) – Agora quero ver aquele guarda me
pegar!
(Entra o último, de tapa-olho, pela porta de trás).
Ferreiro – Como é que você entrou aqui?
Último – Arrombei a porta.
Ferreiro – Vou ter que arranjar uma tranca. De pau, claro.
Último – Vim avisar que já é verão. Vi não uma, mas duas
andorinhas voando aí fora.
Mercador – Hein?
Ferreiro – Não era andorinha, era pomba. E das baratas.
Pobre (para o último) – Ei, você aí de um olho só…
Cego (prostrando-se ao chão por engano na frente do
mercador) – Meu rei.
Mercador – O quê?
INCIDENTE NA CASA DO FERREIRO

Ferreiro – Chega! Chega! Todos para fora! A porta da rua é


serventia da casa!
(Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de
encontro à parede. Mas o último protesta).
Último – Parem! Eu serei o primeiro.
(Todos saem com o último na frente. O cego vai atrás).
Cego – Meu rei! Meu rei!

Do livro “Crônica Brasileira Contemporânea”,


Organização e apresentação de Manuel da Costa
Pinto - Editora Moderna

CRÔNICA NA REDE
21. DO ROCK | CARLOS HEITOR CONY

Tocam a campainha e há um estrondo em meus ouvidos. A


empregada estava de folga, o remédio era atender o mau-
caráter que me batia à porta àquela hora da manhã. Vejo o
camarada do bigodinho com o embrulho largo e enfeitado.
— É aqui que mora a senhorita Regina Celi?
Digo que não e fulmino o importuno com um olhar cheio de
ódio e sono, mas antes de fechar a porta sinto alguma coisa
de íntimo naquela “senhorita Regina Celi”, sim, há uma Regina
Celi em minha casa, minha própria filha, mas apenas de 12
anos, uma guria bochechuda ainda, não merecia o título e a
função de senhorita.
Chamo o homem que já estava no elevador. Eram CDs, a
garota encomendara um mundão de CDs numa loja próxima,
e pedira que mandassem as novidades, pois as novidades
estavam ali, embrulhadinhas e com a nota fiscal bem às
claras.
Gemo surdamente na hora de assinar o cheque e recebo o
embrulho. A garota dormia impune, o mundo podia desabar,
e ninguém a despertaria do sono 12 anos. Deixo o embrulho
em cima do som e volto para a cama, forçar o sono e a
tranquilidade interior, abalada pelo cheque tão matutino e
fora de propósito. Quando ordeno os pensamentos e
ambições no estreito espaço do meu pensamento e retomo
um sono e um sonho sem cor nem gosto, começa o rock.
Anos atrás, seria começa o beguine. Mas o beguine passou de
moda, e o swing, o mambo, o baião e outras pragas vindas de
alheias e próprias pragas. Pois aí estava o rock, matinal, cor de
sangue e metal inundando o dia e o quarto com sua voz
rouca, seu compasso monótono e histérico.
DO ROCK

Purgo honestamente meus pecados e lembro o pai, que me


aturava a mania pelos sambas de Ary Barroso. O velho não
dizia nada, mas me olhava fundo e talvez tivesse ganas de me
esganar. Mas me aturava e aturava o meu Brasil brasileiro.
Hoje, aturo o rock. Vou ao banheiro, lavo o rosto, visto
um short e vou para a sala disposto a causar boa impressão à
senhorita Regina Celi, que de baby-doll, esbaforida, se
degringola ao som de U2.
O tapete já fora arrastado e amarfanhado a um canto. Meu
castiçal de prata foi profanado com a cara de um tipo até
simpático que naquela manhã ganhará alguma coisa à custa
do meu labor e cheque.
A senhorita Regina Celi tem a cara afogueada, os pés e as
pernas avançam e ficam no mesmo lugar, o corpo todo treme
e sua, até que ela me estende o braço.
— Vem, papai!
O peso dos meus invernos e minhas banhas causa breve
hesitação. Mas ali estamos, eu e a senhorita Regina Celi, uma
menina que ainda pego no colo e aqueço com meu amor e o
meu carinho, quando ela tem medo do mundo ou de não
saber os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas na
hora do exame. Ela me chama e me perdoa.
Então, aumento o volume do som, espero o tal do U2 dar um
grito histérico e medonho - e esqueço o cheque, a vida e a
faina humana rebolando este cansado corpo-pasto de
espantos - até que o fôlego e o U2 acabem na manhã e no
som.

Crônicas para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva,


2009.
Carlos Heitor Cony (RJ -1926-2018) foi um jornalista e
escritor brasileiro de destaque. Acerca da sua obra,
deixou dezessete romances, contos, crônicas, ensaios
biográficos, infanto-juvenis e muito mais. Vencedor de
vários membros, era membro da Academia Brasileira de
Letras.
22. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS AVES-BALAS
| IVAN ÂNGELO

Balas perdidas transformam-se em notícia por todo o país.


Desde que isso começou — não faz muito tempo, nem pouco
— mais de uma centena de pessoas foram atingidas só na
cidade do Rio de Janeiro. Em São Paulo não se conta, ou
perde-se a conta. Em Belo Horizonte, elas sinistramente
trabalham em silêncio. Em Salvador são abafadas pelo
baticum dos tambores. Sem nenhum bairrismo elas voam
geral, irrompem num circo, num ônibus, numa janela de sala
de estar, numa padaria, em muitas escolas, numa praça, num
banco, numa rua e se alojam num corpo. Aí se livram da sua
característica principal — a de perdidas — e se acham, são
achadas.
Por que se diz perdida? Perdida é a bala que não se encontra
nunca, são as que voam até perder a força e tombam,
exaustas e sem glórias de Jornal Nacional, num mato qualquer.
A bala perdida: quem a perdeu? A linguagem tem sempre
uma lógica. Quem perdeu a bala perdida? O atirador? Pior
para quem a achou.
Uma pessoa quando perdida, não tem rumo. Se diz:
desorientada. Uma bala não. A bala perdida segue reta e
veloz como quem sabe aonde vai. Igualzinho às outras, suas
irmãs, que levam endereço certo.
Perdida, então quer dizer o quê? Desperdiçada? A linguagem
nem sempre tem lógica. Quem perdeu a bala perdida? O
atirador? Pior para quem achou.
Quando acha um corpo a bala pode ainda se chamar
perdida? A que acha, mesmo não sendo aquele corpo que
buscava, será menos desperdiçada do que as outras, que
esbarram em uma simples parede?
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS AVES-BALAS

Ninguém procura balas perdidas. Nem quem as perdeu, nem


quem as encontrou, sem querer. São indesejadas, e quanto
mais o sejam, mais ansiosas parecem por alojar-se. Essas balas
voadoras, libertas da sua casca, só são realmente perdidas se
ninguém nunca mais as viu. Então são também inúteis, pois isso
é a negação da sua essência mortal.
Uma bala, quando útil, fere, mata. É criadora: cria órfãos,
viúvas, pais inconsoláveis. Quem a dispara sabe disso. Quem
fabrica e vende sabe disso. Quem recolhe impostos sobre ela
sabe muito bem. Porque ela não serve para mais nada, para
isso foi feita.
Seria próprio chamar de desaparecidas essas inúteis? No país
das balas perdidas, perdem-se também crianças, chamadas
desaparecidas. Mas esta já é outra história.
Não, a essas balas não se poderia chamar de desaparecidas
porque ninguém sabia delas antes de se libertarem de sua
casca, ainda pacíficas, guardando para si sua capacidade
voadora e mortal. Só depois que explodem é que voam, e
então se perdem ou não.
O poeta João Cabral de Melo Neto deu um lindo nome a
essas balas sem dono: ave-bala. No poema “Morte e vida
Severina”, o retirante pergunta aos que levam um defunto:
“Quem contra ele soltou / essa ave-bala”. E a resposta: “Ali é
difícil dizer / Irmão das almas, / Sempre há uma bala voando /
desocupada”.
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS AVES-BALAS

Éramos um povo acostumado à arma branca, à peixeira, ao


punhal, ao facão; herdamos a tradição ibérica de sangrar,
cortar o pescoço, capar. Meninos já tinham seu canivete de
ponta. Malandros riscavam o ar com navalhas. Mulheres da
vida brandiam giletes. Numa arruaça, quem metia a mão
numa cara, dava rasteiras. Em algum momento o “te meto a
faca” virou “te meto a bala”, aquele “te meto a mão na cara”
virou “te meto uma bala na cara”. Começaram a voar as
aves-balas.

O que aconteceu no meio? Talvez o cinema, o faroeste,


os gangsters, a TV, guerras sujas, guerrilhas, terrorismo, drogas
proibidas. Nasceu o culto da pontaria certeira. Billy the Kid,
John Wayne, Randolph Scott, Frank e Jesse James,
Schwarzenegger, Stalone, Matrix. “No século do progresso / o
revólver teve ingresso / pra acabar com a valentia” — cantou
Noel Rosa nos anos 1930. Surgiu outro tipo de valente, o que
fica atrás do revólver. Não é preciso arriscar-se, chegar perto
para ferir. “Mais garantido é de bala / Mais longe fere”, diz o
poeta João Cabral. Ninguém pense que a influência
estrangeira é justificativa. Não, não importamos a violência, ela
é mais nossa que o petróleo. Importamos foi a cultura da arma
de fogo.
No país das balas perdidas, perdem-se também crianças, nem
sempre desaparecidas. Muitas delas, talvez a maioria, vão
mais tarde brincar por aí de soltar aves-balas, nem sempre
perdidas.
O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática,
2000. Coleção Para Gostar de Ler, v. 28.

CRÔNICA NA REDE
23. CUIA| LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé ― segundo ele,


“mais prestimosa que mãe de noiva” ―, tem sempre uma
chaleira com água quente pronta para o mate. O analista
gosta de oferecer chimarrão a seus pacientes e, como ele diz,
“charlar passando a cuia, que loucura não tem micróbio”. Um
dia entrou um paciente novo no consultório.

― Buenas, tchê ― saudou o analista. ― Se abanque no más.


O moço deitou no divã coberto com um pelego e o analista foi
logo lhe alcançando a cuia com erva nova. O moço observou:
― Cuia mais linda.
― Cosa mui especial. Me deu meu primeiro paciente. O coronel
Macedônio, lá pras bandas de Lavras.
― A troco de quê? ― quis saber o moço, chupando a bomba.
― Pues tava variando, pensando que era metade homem e
metade cavalo. Curei o animal.
― Oigalê.
― Ele até que não se importava, pues poupava montaria. A
família é que encrencou com a bosta dentro de casa.
― A la putcha.
O moço deu outra chupada, depois examinou a cuia com mais
cuidado.
― Curtida barbaridade. ― Também. Mais usada que pronome
oblíquo em conversa de professor.
― Oigatê.
E a todas estas o moço não devolvia a cuia. O analista
perguntou:
CUIA

― Mas o que é que lhe traz aqui, índio velho?


― É esta mania que eu tenho, doutor.
― Pos desembuche.
― Gosto de roubar as coisas.
― Sim.
Era cleptomania. O paciente continuou a falar, mas o analista
não ouvia mais.
Estava de olho na sua cuia.
― Passa ― disse o analista.
― Não passa, doutor. Tenho esta mania desde piá.
― Passa a cuia.
― O senhor pode me curar, doutor?
― Primeiro devolve a cuia.

O moço devolveu. Daí para diante, só o analista tomou


chimarrão. E cada vez que o paciente estendia o braço para
receber a cuia de volta, ganhava um tapa na mão.

O texto faz parte do livro O analista de


Bagé (1981), no qual o escritor apresenta
como protagonista um psicanalista gaúcho
que não leva jeito para cuidar da saúde
mental das pessoas. Esse personagem é o
mais conhecido de Luís Fernando Veríssimo,
contribuindo para tornar suas crônicas
famosas.
24. INSÔNIA INFELIZ E FELIZ | CLARICE LISPECTOR

De repente os olhos bem abertos. E a escuridão toda escura.


Deve ser noite alta. Acendo a luz da cabeceira e para o meu
desespero são duas horas da noite. E a cabeça clara e lúcida.
Ainda arranjarei alguém igual a quem eu possa telefonar às
duas da noite e que não me maldiga. Quem? Quem sofre de
insônia? E as horas não passam. Saio da cama, tomo café. E
ainda por cima com um desses horríveis substitutos do açúcar
porque Dr. José Carlos Cabral de Almeida, dietista, acha que
preciso perder os quatro quilos que aumentei com a
superalimentação depois do incêndio. E o que se passa na luz
acesa da sala? Pensa-se uma escuridão clara. Não, não se
pensa. Sente-se. Sente-se uma coisa que só tem um nome:
solidão. Ler? Jamais. Escrever? Jamais. Passa-se um tempo,
olha-se o relógio, quem sabe são cinco horas. Nem quatro
chegaram. Quem estará acordado agora? E nem posso pedir
que me telefonem no meio da noite pois posso estar dormindo
e não perdoar. Tomar uma pílula para dormir? Mas e o vício
que nos espreita? Ninguém me perdoaria o vício. Então fico
sentada na sala, sentindo. Sentindo o quê? O nada. E o
telefone à mão.

Mas quantas vezes a insônia é um dom. De repente acordar no


meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum
ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café
com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o
nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo,
sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai
amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol às vezes
pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e
sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O
mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por
nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai
acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos

CRÔNICA NA REDE
25. NOTÍCIA DE JORNAL| FERNANDO SABINO

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um


homem de cor branca, trinta anos presumíveis, pobremente
vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da
cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e
duas horas, para finalmente morrer de fome.

Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de


comerciantes, uma ambulância do Pronto Socorro e uma
radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar
auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.

Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um


homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era alçada da
Delegacia de Mendicância, especialista em homens que
morrem de fome. E o homem morreu de fome.

O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao


Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele,
senão que morreu de fome. Um homem morre de fome em
plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na
rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal,
um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma
coisa – não é homem. E os outros homens cumprem deu
destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e
duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de
fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até
mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e o homem continua
morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens,
sem socorro e sem perdão.

.
NOTÍCIA DE JORNAL

Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da


radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é
que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis.


Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a
insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome,
pedindo providências às autoridades. As autoridades nada
mais puderam fazer senão remover o corpo do homem.
Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros
homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse
de fome.

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição em plena


rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro,
um homem morreu de fome.

Morreu de fome. SABINO, Fernando. As melhores crônicas. Rio


de Janeiro: Record, 1986. p. 47-8.

CRÔNICA NA REDE
26. A FOTO | LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

Foi numa festa de família, dessas de fim de ano. Já que o


bisavô estava morre não morre, decidiram tirar uma fotografia
de toda a família reunida, talvez pela última vez.

A bisa e o bisa sentados, filhos, filhas, noras, genros e netos em


volta, bisnetos na frente, esparramados pelo chão. Castelo, o
dono da câmera, comandou a pose, depois tirou o olho do
visor e ofereceu a câmera a quem ia tirar a fotografia. Mas
quem ia tirar a fotografia? – Tira você mesmo, ué. – Ah, é? E eu
não saio na foto?

O Castelo era o genro mais velho. O primeiro genro. O que


sustentava os velhos. Tinha que estar na fotografia. – Tiro eu -
disse o marido da Bitinha. – Você fica aqui - comandou a
Bitinha. Havia uma certa resistência ao marido da Bitinha na
família. A Bitinha, orgulhosa, insistia para que o marido reagisse.
"Não deixa eles te humilharem, Mário Cesar", dizia sempre. O
Mário Cesar ficou firme onde estava, do lado da mulher.

A própria Bitinha fez a sugestão maldosa: – Acho que quem


deve tirar é o Dudu... O Dudu era o filho mais novo de
Andradina, uma das noras, casada com o Luiz Olavo. Havia a
suspeita, nunca claramente anunciada, de que não fosse filho
do Luiz Olavo. O Dudu se prontificou a tirar a fotografia, mas a
Andradina segurou o filho. – Só faltava essa, o Dudu não sair.
A FOTO

E agora? – Pô, Castelo. Você disse que essa câmara só


faltava falar. E não tem nem timer! O Castelo impávido.
Tinham ciúmes dele. Porque ele tinha um Santana do ano.
Porque comprara a câmara num duty free da Europa. Aliás, o
apelido dele entre os outros era "Dutifri", mas ele não sabia.

– Revezamento - sugeriu alguém. – Cada genro bate uma


foto em que ele não aparece, e... A ideia foi sepultada em
protestos. Tinha que ser toda a família reunida em volta da
bisa. Foi quando o próprio bisa se ergueu, caminhou
decididamente até o Castelo e arrancou a câmara da sua
mão. – Dá aqui. – Mas seu Domício... – Vai pra lá e fica quieto.
– Papai, o senhor tem que sair na foto. Senão não tem sentido!
– Eu fico implícito - disse o velho, já com o olho no visor. E
antes que houvesse mais protestos, acionou a câmara, tirou a
foto e foi dormir.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. Comédias para
se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva,
2010. P. 19-20.

CRÔNICA NA REDE

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