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O PEQUENO HÉRCULES

TEÓCRITO

Teócrito foi quem nos deu a única descrição detalhada do episódio das
serpentes. Na sua versão, foi Zeus quem iluminou o quarto dos bebês
para alertar Alcmena e Anfitrião. Além disso, Teócrito faz Alcmena, não
Anfitrião, consultar Tirésias.

Uma vez, quando o pequeno Hércules tinha dez meses de idade,


Alcmena deu banho nele e em Íficles, que era mais novo por uma noite,
lavou-os e deixou-os mamarem à vontade. Depois, acomodou-os no
bojo do belo escudo de bronze, despojo que Anfitrião tinha
conquistado ao rei Pterelaus. Afagando suas cabeças, ela cantou:
“Durmam, meus filhinhos, durmam docemente, meus queridos, meus
gêmeos, minha própria alma. Os céus vão garantir que vocês
adormeçam hoje e despertem amanhã". E enquanto ela cantava,
embalava o grande escudo até pegarem no sono.
Mas à meia-noite, na hora em que a Grande Ursa começa a descer em
direção ao Oeste, indo ao encontro de Órion, então a ardilosa Hera
enviou duas horríveis serpentes monstruosas, com espiras ondulantes
e escamas negras como o aço, com a missão de transpor a ampla
soleira da casa e devorar o menino Hércules.
E lá dentro, no chão, contorcendo seus ventres vorazes, avançaram
rastejando, com um fogo maligno nos olhos, com um veneno terrível
pingando de suas presas. Porém, quando, com as línguas dardejantes,
chegaram onde as crianças estavam, de repente elas acordaram (pois
Zeus sabia de tudo) e uma luz intensa iluminou o quarto todo. Íficles,
assim que avistou, por cima da borda do escudo, os dentes afiados
daqueles répteis sinistros, gritou alto e chutou para o lado o seu
cobertor de lã, lutando para fugir. Mas, ao contrário dele, Hércules
partiu para o ataque, agarrando suas cabeças e apertando-lhes a
garganta, ali onde as serpentes mortais carregam seu veneno nocivo
que até os deuses imortais abominam
Por algum tempo, as duas cobras se enrolaram em torno do menino,
aquele bebê que ainda mamava e que nunca tinha chorado, mas logo
elas afrouxaram seus nós, lutando apenas para escapar daquele aperto
irresistível.
Ouvindo o choro, Alcmena foi a primeira a acordar. “Levanta-te,
Anfitrião”, disse ela; “Pois estou paralisada de medo. Levanta logo, e
não percas tempo em calçar as sandálias. Não ouves como o pequenino
grita? Não percebes que as paredes do quarto estão iluminadas, como
num dia puro de primavera? Algo estranho está acontecendo em toda
a casa, sem dúvida".

Obedecendo à esposa, Anfitrião saltou da cama e correu para sua


espada, que sempre mantinha pendurada num gancho acima da
cabeceira do leito. Com uma mão segurou a bainha e com a outra
desnudou a lâmina brilhante, bem no momento em que cessou a luz e
tudo ficou escuro novamente. Enquanto fazia correr os ferrolhos
reforçados das portas, gritou para seus servos, que dormiam
profundamente: "Tragam fogo! O mais rápido possível! Peguem fogo
no braseiro, homens!". Uma mulher fenícia que dormia ao lado da
cozinha repetiu o apelo de Anfitrião: "Acordem, servos corajosos; é o
mestre que está chamando!". E imediatamente acorreram os servos
com tochas acesas, e logo toda a casa encheu-se de gente correndo
por toda parte.

E quando avistaram o pequenino Hércules com os dois monstros


debatendo-se sob a força de seus dedinhos macios, todos gritaram,
maravilhados, mas ele continuou sacudindo no ar as serpentes,
mostrando-as com orgulho infantil, até jogá-las no chão, aos pés do
pai, já mergulhadas no sono da morte. Alcmena pegou no colo o
apavorado Íficles, enquanto Anfitrião, depois de acomodar Hércules no
berço, sob o seu cobertor de lã, voltou a dormir de novo.
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O canto dos galos já anunciava pela terceira vez o raiar do dia quando
Alcmena chamou Tirésias, aquele que nunca mente, e contou-lhe o
estranho caso ocorrido. O que aquilo queria dizer? "Mesmo que os
deuses nos reservem algum mal, rogo que você não esconda nada, por
piedade; pois nem mesmo assim o homem pode escapar do que o fuso
do destino teceu para ele. Mas basta, filho de Eueres; não sou eu
quem vai te ensinar o que já sabes".
Assim falou a rainha, e ele respondeu com estas palavras: “Coragem,
mulher, mãe do melhor dos filhos, sangue de Perseu. Tenha coragem.
Coloque no seu coração a melhor esperança do que está por vir — pois
eu juro a você, pela doce luz que há tanto tempo se foi de meus olhos,
que muitas mulheres, à noite, enquanto cardarem o fio macio da lã
sobre os joelhos, cantarão o nome de Alcmena, que será honrado por
todas as mulheres de Argos. Seu filho, um herói de peito largo, superior
a toda a carne, sejam homens ou sejam animais, ascenderá ao céu
estrelado
Ele está destinado a completar doze trabalhos, e embora todos os seus
restos mortais sejam consumidos numa pira na Trácia, ele irá morar
no Olimpo, na casa de Zeus, seu pai, onde casará com uma filha dos
imortais, mesmo daquela que enviou esses animais venenosos para
matá-lo no berço.[...]
Assim falou Tirésias, e, deixando sua cadeira de marfim, foi embora,
curvado pelo peso de seus muitos anos.

Teócrito – Idílio XXIV – O pequeno Hércules


(versão traduzida do Inglês e do Francês)

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