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395 Fora Autólico o pai valente da mãe de Odisseu, ele que todos
superava em furtos e perjúrios. Um deus lhe dera tal dom:
Hermes. Pois para ele queimara Autólico gratas coxas
de bezerros e cabritos; e por isso Hermes o acompanhava.
A abertura do Canto 19 traz-nos de volta o famoso problema homérico da Remoção das Armas, a
que já fizemos referência em 16.284*. É claro que, na tradição oral de que o poeta é herdeiro, o
importante é o momento: cada episódio, cada bloco, está pensado para fazer efeito imediato – o que
tem como resultado inevitável os blocos, por vezes, não serem coerentes entre si, como já apontámos
inúmeras vezes. Independentemente da questão irresolúvel de quão oral é o nosso poema que só
conhecemos como texto escrito, sublinhemos os seguintes aspetos. Relativamente ao Canto 16,
ficaram esquecidos os dois jogos de armas para Odisseu e Telémaco; mas o poeta manteve o tema da
desculpa a dar aos pretendentes, embora os pretendentes nunca cheguem a reparar no facto de, sem
mais nem menos, todas as armas da grande sala de banquetes terem desaparecido (isto é, repararão,
em 22.23-25, quando começa a chacina – mas aí já será uma situação de vida ou morte; e a questão
da desculpa pela remoção das armas perdeu relevância). No Canto 16, a intenção de Odisseu era que
Telémaco removesse as armas sozinho, nas barbas dos pretendentes (16.284*). O que acontece, de
facto, no Canto 19, é que é Odisseu quem remove as armas com a ajuda de Telémaco. Ora, neste
momento, quando já lemos 18 cantos do poema, já pudemos verificar inúmeras vezes como episódios
da nossa Od. funcionam como palimpsestos compostos por cima de versões anteriores (ou
simplesmente alternativas) deste material poético. Na zona do «palimpsesto» onde encontramos a
Remoção das Armas, não são propriamente traços de versões anteriores/alternativas que chamam a
nossa atenção, mas antes a suspeita de que o aumento do número de pretendentes, a partir do
provável número original de 12 Itacenses (ver 16.245-246*), poderá ter motivado poetas
subsequentes a procurarem estratégias (como a Remoção das Armas) para tornar o confronto de
Odisseu com 108 pretendentes menos inverosímil. E, quando falamos em «poetas subsequentes», não
podemos esquecer a frase de Telémaco, «o ferro atrai o homem» (19.13): as armas genuinamente
homéricas são de bronze. Em última análise, a Remoção das Armas não resolve o problema da
inverosimilhança da desproporção numérica na luta final, já que, para todos os efeitos, os
pretendentes andam sempre armados com espadas (22.79-80, 90, etc.), o que também torna a
desculpa sugerida por Odisseu a Telémaco (de que estaria a remover as armas para os bêbedos não se
matarem uns aos outros) ainda mais implausível.
29 «as palavras dela não chegaram a bater asa»: ver 17.57*. É curioso notarmos que a expressão,
nas suas quatro ocorrências na Od. (nunca ocorre na Il.), só é usada com referência a mulheres.
33-34 «À frente deles, Palas Atena segurava / uma lamparina dourada, espalhando maravilhosa
luminescência»: os escólios dizem-nos que o grande Aristarco criticou aqui o modo como o poeta
põe a deusa a desempenhar uma tarefa tão servil, de lamparina na mão. A «lamparina» ( lúkhnos )
tem atraído o interesse dos arqueólogos – devido à sua não-existência no tempo em que o poema terá
sido composto, ainda que existissem lúkhnoi na época micénica (ver Oxf.iii, p. 76) – e também o dos
linguistas, não só por ser a única lamparina da Il. e da Od., mas também pelo modo anómalo como o
poeta escande a palavra correspondente a «dourada» (khrúseon) como dissílabo espondaico. Por seu
lado, modernos exegetas da poesia homérica insistem em dizer, contra o texto, que a luz não vem da
lamparina, mas sim da presença divina da deusa (aqui Dawe, p. 688, e Russo em Oxf.iii, p. 76, estão
de acordo) . Não esqueçamos, já agora, a interpretação de M. Müller, que viu na «maravilhosa
luminescência» (perikallès pháos) a sugestão simbólica da vitória de Odisseu sobre os pretendentes
(Athene als göttliche Helferin in der Odyssee, Heidelberg, 1966, pp. 125-126).
47-48 «Telémaco atravessou a sala de banquetes / debaixo das tochas ardentes em direção ao
quarto»: estas tochas ardentes não parecem compatibilizar-se muito bem com 34-40, em que a luz na
sala é percecionada por Telémaco como sendo prodigiosa e indicadora de uma presença divina. Mas
talvez devamos agora imaginar que as escravas já foram soltas do encarceramento nos aposentos,
pois a sua presença está implícita na forma verbal de 55, ainda que só se diga explicitamente que elas
entraram na sala em 60. Nem Penélope, nem uma única escrava, nem a governanta Eurínome
reparam que todas as armas desapareceram da sala – talvez pela simples razão de que a sequência
que estamos agora a ler teve a sua origem numa Od. em que o episódio da Remoção das Armas não
existia.
56b «que outrora fabricara o artífice Icmálio»: nada sabemos sobre Icmálio, mas percebemos
como a sua menção aqui cria o mesmo efeito de tridimensionalidade temporal que comentámos em
17.340*.
66-69 A intervenção insultuosa da escrava Melanto surpreende, por um lado, pela acusação de
que Odisseu é um voyeur, e, por outro lado, por causa das suas anomalias linguísticas, elencadas por
Shipp (Studies, p. 346).
91-95 «Não passas despercebida, ó cadela atrevida e desavergonhada! / Meteste-te num grande
sarilho, que pagarás com a tua cabeça»: Dawe (p. 691) queixa-se aqui do tom de peixeira (sic) que o
poeta dá às palavras de Penélope; mais preocupante, a meu ver, é Penélope achar que o facto de
Melanto ter sido malcriada com o mendigo merece ser castigado com a pena de morte. Há estudiosos
que interpretam estes versos como tendo pertencido, noutra Od., a um contexto em que Penélope
reagia à «fornicação de Melanto com Eurímaco» (Dawe, p. 692).
94 «no meu palácio»: é a primeira vez no poema que ouvimos Penélope a falar da casa onde vive
como «meu palácio». Por alguma razão, só encontramos no presente canto esta atitude da parte de
Penélope, de rainha do seu próprio espaço (ver ainda 254; a atitude estará também implícita, embora
não explícita, em 526).
103 «Entre eles quem começou a falar foi a sensata Penélope»: com a famosa discrição homérica,
inultrapassável no understatement, o poeta coloca-nos finalmente Odisseu e Penélope sentados um
diante do outro, na primeira conversa entre ambos ao fim de 20 anos. Parte da tensão positiva da cena
(da sua ironia dramática, em suma) advém do facto de nós, ouvintes/leitores, sabermos com Odisseu
tudo aquilo que Penélope não sabe.
107-114 Os versos iniciais dirigidos por Odisseu à sua mulher têm chamado sempre a atenção dos
helenistas pelo facto de nos transportarem para fora da poesia homérica e diretamente para dentro da
mundividência poética de Hesíodo (especialmente T&D.225-237).
110 Verso omitido por Platão ao citar esta passagem na República (363b) e também por outros
autores antigos mencionados no aparato crítico da ed. de Estugarda (onde o verso é colocado entre
parênteses retos).
113-114 «o mar proporciona muitos peixes em consequência / do bom governo»: no século XXI,
sabemos bem dar valor a estas palavras de Odisseu (embora a razão pela qual acontece o
proporcionamento de muitos peixes em função do bom governo não seja aquela que Odisseu pensou
entrever).
121-122 «não vá alguma das tuas escravas censurar-me, ou tu própria, / dizendo que estou
alagado em lágrimas por causa do vinho»: que o excesso de vinho pode provocar (nalgumas pessoas)
ataques de sentimentalismo lacrimejante é facto conhecido de todos; no entanto, não é normal na
poesia homérica que as lágrimas em si suscitem censura, como parece ser aqui a ideia por trás das
palavras de Odisseu. Num artigo que citámos em 8.86-92*, Ingrid Waern considera mais de 70
ocorrências de lágrimas na Il. e na Od. e só aqui encontra a ideia de que podem ser algo de
censurável.
135 «demiurgos»: encontrámos a palavra em 17.383; os exemplos dados dessa categoria
profissional depois, em 17.384-385, foram videntes, médicos, carpinteiros e aedos.
136 «Odisseu»: o nome tem, em grego, uma forma neste verso (Odusê) que é única em toda a Il.
e Od.
139-156 Estes versos retomam (ainda que não exatamente) o que ouvíramos sobre a teia de
Penélope em 2.94-110.
153 Este verso é omitido em vários manuscritos e colocado entre parênteses retos na ed. de
Estugarda.
154 «cadelas tontas»: a expressão funciona também como «indireta», visto que as escravas estão
presentes. No relato do Canto 2, fora só uma escrava (2.108) a descobrir o que a própria Penélope
acabou de chamar «fio / de mentiras» (137-138).
158-159 «Insistem os meus pais para que eu volte / a casar-me»: não deixa de ser espantoso como
o prospetivo segundo casamento de Penélope é sempre uma caixinha de surpresas. Ver 15.16-17*.
163 «Não nasceste de carvalho lendário nem de pedra»: o adjetivo «lendário» traduz aqui
palaíphatos («falado há muito»). A ideia de nascer de pedra ou de árvore transversal a culturas do
Próximo Oriente, como vemos pelo caso de Jeremias 2:27 («Disseram à árvore: Tu és meu pai;
Disseram à pedra: Tu me geraste»). Ver West, Helicon, p. 431.
172 «Há uma terra, Creta, que fica no meio do mar cor de vinho»: cá vamos nós novamente para
Creta, nas asas de mais mentiras deste compulsivo mitómano. Para a expressão «mar cor de vinho»,
ver 1.183*.
174 «noventa cidades»: na Il. diz-se que Creta tem cem cidades (Il.2.649).
176 «Aqueus, magnânimos Cretenses genuínos, Cidónios»: em grego, o que traduzi por
«Cretenses genuínos» (inspirei-me em Cmb.i, p. 224) é só uma palavra, Eteókrêtes
(«Eteocretenses»), que se refere aos habitantes autóctones de Creta. Os Cidónios já tinham sido
mencionados em 3.292*.
177 «Dórios divididos em três e divinos Pelasgos»: temos aqui a única referência a Dórios em
toda a poesia homérica (sobre os Dórios, ver Rocha Pereira, Estudos, pp. 42-43 e a bibliografia citada
na n. 11). O poeta está a dizer-nos que eles se dividiam em três ou que eram «de cabelos cintilantes»?
Ambas as interpretações são possíveis para o enigmático adjetivo trikháïkes. Quanto aos Pelasgos, o
termo é muito vago. Já foi interpretado como significando os habitantes pré-gregos, digamos assim,
da península helénica, mas não há certeza quanto à sua identificação (cf. F. Lochner-Hüttenbach, Die
Pelasger, Viena, 1960, que discute inconclusivamente a presente passagem nas pp. 99-100).
178 «Cnossos»: a cidade principal das noventa (ou cem – ver 174*) cidades cretenses, cujo rei
lendário foi Minos, filho de Zeus (ver 11.568*).
181 «Ora Deucalião gerou-me a mim e ao soberano Idomeneu»: até agora, esta fábula de Odisseu
soa, mutatis mutandis, aos nossos ouvidos como: «Sou inglês, nasci em Londres e sou irmão do
príncipe William.»
183 «Tenho o nome famoso de Éton»: entre «Éton» e o nome do colégio onde estudou o príncipe
mencionado na nota anterior não há relação etimológica. A palavra grega subjacente é aíthôn
(«ardente») e evoca, de forma misteriosa, as atividades de Odisseu como ateador de braseiros e de
tochas no canto anterior (ver 18.317*). Apesar de o nome ser referido como «famoso» por quem
acabou de o escolher como heterónimo, é desconhecido e – a partir deste verso, em que foi nomeado
e classificado como «famoso» – desaparece para sempre do poema.
204-204b «E ela, enquanto ouvia, vertia uma torrente de lágrimas, / a ponto de parecer que o
próprio rosto se derretia»: se é difícil solidarizarmo-nos com a credulidade de Penélope (atendendo
ao nível de inverosimilhança de tudo o que ela acabara de ouvir, já para não falar das discrepâncias
em relação àquilo que Eumeu dissera a Penélope que o mendigo lhe dissera), muito mais fácil é
compreendermos a sua emoção e o seu «derretimento». Em cada um dos versos 204, 205, 206, 207 e
208 figura uma forma, em grego, do verbo têkô («derreter»).
209 «chorando pelo marido, que estava à sua frente»: o verso que sintetiza toda a cena.
210-212 Odisseu consegue controlar as lágrimas, a ponto de não chorar, mostrando assim mais
autodomínio na presença da mulher do que mostrara na presença do cão (17.304).
213 «Depois de ela se ter deleitado com o pranto de lágrimas copiosas»: o prazer das lágrimas
não passaria despercebido a um rol infindável de autores pós-homéricos (cf. a frase célebre de Santo
Agostinho, solus fletus erat dulcis mihi, «só o choro me era doce»: Confissões 4.4).
246 «Tinha ombros arredondados, pele negra, cabelo crespo»: ver 2.15*, 16.175-176*. O adjetivo
traduzido à letra por «pele negra» é melanókhróos. «Cabelo crespo» traduz oulokárênos (à letra,
«cabeça crespa»), onde o elemento significativo é oûlos, «crespo» (embora possa significar também
«lanoso»). Em 6.231 e 23.157-158, é-nos dito, a propósito de Odisseu, que Atena «da cabeça / fez
crescer cabelos crespos, semelhantes à flor hiacintina». Os comentadores não nos explicam a razão
pela qual Odisseu é descrito como tendo cabelos «crespos» nas passagens referidas, mas como,
noutros passos (13.399, 431), nos é dito que o cabelo dele é loiro, a questão do cabelo não pode ser
tema de discussão consistente no caso de Odisseu. Quanto a Euríbates, alguns estudiosos reconhecem
que o poeta no-lo apresenta como africano (Oxf.i, p. 130, onde negroid appearance é uma expressão
infeliz; Oxf.iii, p. 90); até Rutherford, ao querer sublinhar que o Euríbates da Il. não é africano
(«There is no suggestion in the Iliad that he is black-skinned»), acaba por reconhecer através do não-
dito que o Euríbates da Od. é (R.B. Rutherford, Homer: Odyssey Books XIX & XX, Cambridge, 1992,
p.171).
260 «Ílion-a-Malévola»: em grego, Kakoïlion. A palavra ocorre novamente em 597 e em 23.19.
Está formada segundo a mesma lógica que comentámos a propósito de Iro e do seu «antónimo»,
«Desaire». Ver 18.73*.
282-284 «E Odisseu já aqui estaria, / se não lhe tivesse parecido melhor ao coração procurar /
mais riquezas, vagueando pela ampla terra»: mais um caso para o divã do psicanalista: a imagem que
Odisseu dá aqui de si próprio é deveras lamentável. Para Penélope, destinatária destas palavras, não
restaria outra conclusão a não ser a de que o marido, por cujo regresso ela iludidamente ansiava, era
um ganancioso «mais interessado em dinheiro do que em ver a mulher» (Dawe, p. 702).
306 «No decurso desta luz que passa chegará aqui Odisseu»: ver 14.161*.
313-314 «nem Odisseu regressará a sua casa, nem tu obterás / transporte, pois cá em casa já não
há ninguém que dê ordens»: contudo, em 359 a sensação que recebemos das palavras de Penélope é
que ela acredita, intimamente, que Odisseu está vivo. Quanto ao transporte, o mendigo não lhe pediu
nada: na verdade, desde que chegou ao palácio, o velho mendigo outra coisa não fez além de
consolidar a sua posição lá dentro, inclusive por meio da atividade que o levou, em 182, a dizer que
se chamava Éton («Ardente»).
317-320 «Mas agora, ó escravas, lavai o estrangeiro […] / Ao nascer do dia dai-lhe banho»: por
um lado, estas palavras fazem-nos pensar quão sujo o mendigo parece à rainha, já que ela quer
providenciar dois banhos num curtíssimo espaço de tempo (para os parâmetros homéricos); por outro
lado, a partir de 343 percebemos que esta primeira lavagem já corresponde ao pivô de um mecanismo
que o poeta começou a pôr em andamento – mecanismo esse que terá como resultado imediato o
reconhecimento de Odisseu por Euricleia, e como resultado futuro (mais de dois milénios depois) a
inspiração para a escrita de um dos mais célebres textos da história literária: o Capítulo 1 do livro
Mimesis de Erich Auerbach (Mimesis: Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur,
Tübingen, 1946).
343 «Também não me apraz nem anima a ideia do lava-pés»: mas Penélope não falara em lava-
pés (podániptra). Porque diz ele que não lhe apraz nem anima uma coisa que não lhe foi sugerida?
346 «a não ser que tenhas alguma anciã»: o mecanismo está em pleno andamento, mas range
tanto que chama demasiado a atenção para si mesmo. Estamos muito longe, aqui, da arte que procura
esconder a arte. Nas palavras lapidares de Dawe, «é Homero que precisa da anciã; não Odisseu» (p.
706).
379-381 «Já cá vieram ter muitos estrangeiros cansados, mas digo-te / que como tu nunca vi
nenhum que se parecesse / tanto, pelo corpo e pela voz, com Odisseu»: estas palavras da ama
Euricleia suscitam, por um lado, a mesma observação feita na nota anterior. Mas, por outro lado,
levam-nos de novo ao problema da transformação, efetuada por Atena, de Odisseu num velhote
quebrantado e irreconhecível. Encontramo-nos, novamente, depois de 18.67-70*, numa zona do
poema em que a transformação de Odisseu por Atena não está necessariamente pressuposta.
Penélope, na conversa anterior, pode não ter conseguido reconhecê-lo (ou reconheceu-o, mas
disfarçou muito bem…); porém, no momento do poema em que estamos, somos informados pelas
palavras da ama, antes de ter sequer visto a cicatriz, de que ele não está irreconhecível.
395-466 Estes versos narram-nos a história da cicatriz de Odisseu, que inspirou, como apontámos
antes, o famoso capítulo inicial do livro Mimesis de Auerbach, assim como palavras ainda mais
famosas na Poética de Aristóteles, onde o filósofo elogia Homero por não ter incluído na Od. a
história da cicatriz de Odisseu. O facto é que todos os manuscritos conhecidos da Od. têm a história
de como Odisseu ficou com a enorme cicatriz. Portanto: ou Aristóteles conhecia uma Od. diferente
da nossa; ou então, por algum motivo, fez confusão (Dawe, p. 708). Esta segunda hipótese não
levanta qualquer problema para helenistas que sabem como Aristóteles se enganou pelo menos duas
vezes (Retórica 1415a 20, Poética 1452a) ao referir-se à peça-modelo, várias vezes por ele citada: o
Rei Édipo de Sófocles. (Ninguém é perfeito – e não há nenhum motivo para Aristóteles ter
constituído a única exceção.) Ao mesmo tempo, mantenhamos em cima da mesa a possibilidade de à
Od. conhecida por Aristóteles ter faltado o episódio da cicatriz; pois tal possibilidade é tão plausível
quanto a de que o Estagirita se tenha enganado. Como nunca saberemos ao certo, é importante não
perdermos de vista nenhuma das hipóteses.
401 «Euricleia»: já que estamos a falar de possíveis erros cometidos pelos maiores génios da
cultura ocidental, lembremos que este episódio também induziu Cícero (Tusculanas 5.46) no erro de
afirmar que quem lavou os pés de Odisseu foi «Anticleia» (o nome da mãe de Odisseu – não o nome
da ama). Curiosamente, neste verso existe um manuscrito que tem, no lugar de Euricleia, o nome de
Anticleia (tendo o copista cometido o mesmo erro de Cícero).
440-442 Os versos a descrever o sítio onde estava o javali são parecidíssimos (mas não iguais)
com 5.478-480, onde se descrevia o sítio onde Odisseu ficou a dormir (a sua «toca») quando chegou
exausto à terra dos Feaces.
444 «Em volta do javali ouviram-se os passos de cães e homens»: parte deste verso também foi
pedido emprestado a outro contexto: a 16.6, onde os passos (em rigor, um «par de pés») eram de
Telémaco. Em 16.6, a forma de dual podoîïn fazia sentido, porque se tratava dos pés de Telémaco.
Não podemos dizer o mesmo da utilização da mesma forma no presente contexto.
455-456 «Os queridos filhos de Autólico ocuparam-se da carcaça, / e depois trataram sabiamente
da ferida do divino Odisseu»: ocuparem-se primeiro da carcaça antes de darem os primeiros socorros
ao sobrinho ferido não torna estes filhos de Autólico lá muito «queridos»; quanto ao uso muito
discutível, neste caso, do advérbio «sabiamente» (epistaménôs), ver a nota seguinte.
457 «Fizeram estancar o negro sangue com uma encantação»: a palavra traduzida por
«encantação» é epaoidê. Na Il. o conceito de medicina é menos obscurantista: perante uma situação
igualmente grave, Pátroclo intervém ao nível mais avançado, para a altura, do estado da ciência
médica: com uma raiz medicinal (11.846-848). Nem lhe passa pela cabeça pôr-se com cantorias
enquanto o ferido se esvai em sangue.
478-479 «Mas Penélope nem olhou para ela nem se apercebeu, / pois Atena lhe desviara a
mente»: a inverosimilhança atingiu agora graus até aqui evitados pelo poeta. Com que então Atena
desviou a mente de Penélope? E as escravas que estavam a assistir a esta cena? Quem as pôs em
coma mental, para não se darem conta do que acabara de acontecer?
487-490 «se em meu / benefício um deus subjugar os orgulhosos pretendentes, / não te pouparei,
embora tenhas sido minha ama; e com / as demais escravas te matarei aqui no palácio»: as palavras
de Odisseu nem precisam de comentário, de tão horríficas que são. Claramente (ou pelo menos assim
o esperamos) faltou qualquer coisa a especificar a circunstância especial em que ele mataria a mulher
que o amamentou e criou, no caso de ela não permanecer calada em relação ao que acabara de ver.
De qualquer forma, 489 não nos convence inteiramente em relação ao seu pedigree homérico, dada a
forma tardia que nele encontramos do particípio feminino presente do verbo ser (oúsês, genitivo).
497-498 «enumerar-te-ei os nomes das escravas aqui no palácio / das que te desonraram e das que
estão isentas de culpa»: o tema da culpabilidade das escravas, que, com grande pena nossa, entrou no
poema em 16.316-317, está cá para ficar, e só nos veremos livres dele com o enforcamento das
desgraçadas no final do Canto 22.
500 «Ama, porque serás tu a nomeá-las? Não há necessidade»: o Odisseu de 22.417-418 terá a
atitude contrária: «agora diz-me tu quais são as escravas no palácio / que me desonraram; e quais as
inocentes».
518 «filha de Pandáreo»: Procne, transformada em rouxinol. O nome alternativo (e mais
conhecido) de Pandáreo é Pandíon; tal como o de Ítilo é Ítis.
527 «respeitando […] a vontade do povo»: a rainha que diz isto estará a dar-nos o primeiro
prenúncio, na história da Europa, do que seria mais tarde o conceito de monarquia constitucional?
529 «oferece incontáveis dons nupciais»: o nosso velho problema; ver 1.272-305*, 11.116-117*.
533 «agora pede-me que abandone o palácio»: ainda não nos tínhamos apercebido dessa atitude
por parte de Telémaco.
536 «vinte gansos»: não é difícil aceitar que os 20 gansos do sonho de Penélope são simbólicos
de alguma coisa (pois trata-se do único sonho verdadeiramente simbólico na poesia homérica, um
exemplo do tipo de sonho que encontraremos mais tarde em Ésquilo, Persas, 181-200). Mas será
simbólico de quê? O facto de a águia (claro símbolo de Odisseu, como o próprio reconhece em 556)
matar os gansos não deixa margem para outras possibilidades que não sejam a identificação dos
gansos com os pretendentes: dando a palavra à águia, «os gansos são os pretendentes» (548). Mas
isso levanta algumas perguntas complexas em relação à atitude de Penélope face aos gansos: «com
eles me alegro quando os vejo» (537); e, mais ainda, «eu chorava convulsivamente, porque uma
águia matara / os meus gansos» (543-544). No seu íntimo – no recesso mais escondido do seu
inconsciente, que veio à tona no sonho –, ela gostará dos pretendentes? Ou gostará da situação de ser
cortejada? Estas questões psicológicas são exploradas por A.V. Rankin, «Penelope’s Dreams in
Books XIX and XX of the Odyssey», Helikon 2 (1962), pp. 612-624; e por H. Vester, «Das 19. Buch
der Odyssee», Gymnasium 75 (1968), pp. 417-434. A questão do número 20 é outro problema para o
qual não temos resposta. Pode corresponder a uma fase da evolução do poema em que os 12
Itacenses, porventura o número original de pretendentes (cf. 16.245-246*), já tinham começado a
aumentar: pois é facto que, no Canto 22, ficaremos a saber os nomes de 15 dos 108 pretendentes aí
chacinados. Outra interpretação é que os 20 gansos são simbólicos dos 20 anos que Odisseu esteve
ausente (ver West, Odyssey, p. 271, n. 202; Dawe, p. 716, rotula essa interpretação de «ilógica»).
562-563 «São dois os portões dos sonhos destituídos de vigor: um é feito de chifres; o outro, de
marfim»: mais um passo de compreensão difícil, em relação ao qual toda a maneira de interpretação
já foi proposta. Os estudiosos têm-se interrogado sobre o porquê de os sonhos saídos dos portões de
chifre serem verdadeiros, ao passo que os saídos dos portões de marfim são falsos. Pode subjazer a
esta terminologia «chifre» (kéras) ~ «marfim» (elephas) um jogo etimológico; mas mesmo esse jogo,
se existe, não reúne o consenso dos especialistas. Esta passagem dos portões dos sonhos deu azo a
uma troca de artigos algo acrimoniosa entre Anne Amory e A.B. Lord. Os pormenores encontram-se
na p. 197 do comentário de Rutherford, já aqui citado.
572 «Estabelecerei pois um concurso, o dos machados»: e eis que, de repente, literalmente do
nada, o poeta carrega no botão que desencadeará o processo necessário para chegarmos, agora de
forma inexorável, ao fim do poema. O motivo do concurso do arco tem antecedentes egípcios, hititas
e indianos (Mahabharata, Ramayana): ver West, Helicon, pp. 432-433. Num texto indiano intitulado
Nalopakhyana, a mulher já reconheceu o marido antes de instituir o concurso do arco (Dawe, p. 718).
No caso da Od., podemos, de facto, perguntar se não teriam existido versões em que Odisseu e
Penélope combinavam juntos esta prova – que porá nas mãos do herói uma arma (um arco) com a
qual ele nunca é associado na Il.
580-581 «uma casa bela, cheia de riquezas; / que sempre recordarei, penso, até em sonho»: depois
de termos evocado a Mahabharata na nota anterior, agora somos levados a pensar em Daphne du
Maurier e na sua Rebecca, adaptada ao cinema por Alfred Hitchcock: «Last night I dreamt I went to
Manderley again…»
597 «Ílion-a-Malévola»: ver 260*.
601 «pois com ela iam também as suas escravas»: o que terão pensado as escravas de tudo isto:
água entornada, cicatriz, gansos e machados?