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Hospitalidade e suplicantes: alguns exemplos do respeito pelo outro

1. A hospitalidade

1.1. Chegada de Atena a Ítaca (Homero, Odisseia, 1. 113-155)1:

O primeiro que avistou foi Telémaco divino.


Estava sentado entre os pretendentes entristecido no seu coração,
imaginando no seu espírito o nobre pai chegando
para causar em toda a casa a dispersão dos pretendentes.
E ele próprio teria honra e seria senhor dos seus haveres.
Sentado no meio dos pretendentes a pensar estas coisas,
avistou Atena e foi direto à entrada, irritando-se em seu espírito
que um hóspede ficasse muito tempo parado à entrada.
De pé, junto dela, deu-lhe a mão direita e recebeu a brônzea lança.
E falando-lhe, proferiu palavras apetrechadas de asas.
«Salve, estrangeiro! Serás estimado por nós; mas depois
de degustares uma refeição me dirás de que tens necessidade.»

Falando assim indicou o caminho; seguiu-o Palas Atena.


E quando já se encontravam dentro da alta casa,
encostou contra uma grande coluna a lança da deusa,
dentro do bem polido guarda-lanças, aí onde outras
muitas lanças do paciente Odisseu estavam colocadas.
Levou a própria <deusa> para um trono, estendendo uma toalha,
<trono> belo e trabalhado; sob os pés havia um pequeno banco.
Perto colocou para si um assento embutido (longe dos outros,
dos pretendentes, não fosse o estrangeiro, incomodado
pelo alarido, repugnar-se pelo repasto no meio de arrogantes),
a fim de o interrogar a respeito do pai ausente.
Uma escrava trouxe água para as mãos num jarro,

1
Todas as citações dos poemas homéricos são retiradas das traduções de Frederico Lourenço. Para a
Ilíada, usou-se a edição dos Livros Cotovia (2003); para a Odisseia, usámos a edição da Quetzal (2018).
belo e dourado, e verteu<-a> por cima de uma taça prateada,
para eles se lavarem; e perto colocou uma mesa polida.
Uma venerável governanta veio trazer-lhes o pão,
dispondo iguarias abundantes, favorecendo<-os> com o que havia.
Um trinchador trouxe salvas com carnes variadas,
e colocou junto deles taças douradas;
um arauto veio amiúde para servir-lhes o vinho.

Entraram os arrogantes pretendentes. Estes depois


em fila se sentaram em cadeiras e tronos.
Para eles os arautos verteram água para as mãos,
e pão em cestos as escravas amontoaram.
Mancebos coroaram as taças de bebida.
Lançaram mão às iguarias prontas que tinham à sua frente.
E quando de bebida e de comida o desejo afastaram
os pretendentes, outras coisas lhes interessaram:
a música e a dança, pois são as ofertas do festim.
O arauto colocou uma lira de insigne beleza nas mãos
de Fémio, ele que cantava para os pretendentes por necessidade.
E ele, tangendo a sua lira, deu início ao canto formoso.

1.2. Chegada de Telémaco a Pilos (Homero, Odisseia, 3. 5-12; 29-42; 67-74; 342-355; 395-403):

Na praia ofereciam-se sacrifícios sagrados


de negros touros ao deus de azuis cabelos, que abala a terra.
Havia nove bancadas de quinhentos homens sentados;
à frente de cada uma estavam nove touros para o sacrifício.
Quando provaram as vísceras e assaram as coxas para o deus,
eles aportaram à margem, descendo e dobrando a vela
da nau redonda. Fundearam-na e desembarcaram na praia.
Da nau desembarcou Telémaco, com Atena à sua frente.

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Assim dizendo, indicou o caminho Palas Atena
rapidamente; e ele seguiu no encalço da deusa.
Chegaram à reunião e às bancadas dos homens de Pilos,
onde Nestor estava sentado com seus filhos; em redor
companheiros assavam carne ou colocavam-na em espetos.
Mas quando viram os estrangeiros, vieram todos juntos
para lhes apertar as mãos, para os convidar a sentarem-se.
O primeiro a chegar junto dele foi Pisístrato, filho de Nestor:
segurou-lhes nas mãos e sentou-os no festim
em peles macias sobre a areia da praia,
junto do pai e de Trasimedes, seu irmão.
Serviu-lhes uma dose de vísceras; derramou vinho
numa taça de ouro e, erguendo-a, interpelou
Palas Atena, filha de Zeus, Detentor da Égide:

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Mas depois de terem afastado o desejo de bebida e comida,


entre eles falou primeiro Nestor de Gerénia, o Cavaleiro:

«Agora é a melhor altura para interrogar os estrangeiros,


perguntando quem são, uma vez que já se deleitaram com comida.
Ó estrangeiros, quem sois? Donde navegastes por caminhos aquosos?
É com fito certo, ou vagueais à deriva pelo mar
como piratas, que põem suas vidas em risco
e trazem desgraças para os homens de outras terras?»

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Depois do vinho ofertado e bebido, tanto quanto pedia o coração,


Atena e Telémaco semelhante aos deuses
desejavam ambos regressar à côncava nau.
Mas Nestor deteve-os e lançou-lhes estas palavras:

«Que tal coisa impeça Zeus, e todos os deuses imortais,


que vos dirijais de minha para a vossa nau veloz,
como se de um pobre sem roupa vos afastásseis,
a quem faltam em casa cobertores e mantas
para ele ou seus hóspedes dormirem em conforto.
Em minha casa há cobertores e belas mantas.
Nem irá o querido filho deste homem Odisseu
deitar-se nas tábuas de uma nau, enquanto eu viver,
enquanto ficarem depois de mim filhos no meu palácio
para dar hospitalidade a hóspedes, a quem quer que aqui venha.»

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Vertidas as libações, beberam quanto lhes pedia o coração;


depois cada um dirigiu-se a sua casa para descansar.
Mas Nestor de Gerénia, o Cavaleiro, deitou ali mesmo
Telémaco, o querido filho do divino Odisseu,
numa cama encordoada sob o pórtico retumbante,
e, a seu lado, Pisístrato da lança de freixo, Condutor de Homens,
que de seus filhos era o único solteiro no palácio.
Ele próprio dormiu no aposento interior do alto palácio,
e a seu lado a augusta esposa, que lhe preparou a cama.

1.3. Telémaco e Pisístrato em Esparta (Homero, Odisseia, 4. 20-58; 609-619):

Chegaram aos portões do palácio, eles e os cavalos:


o herói Telémaco e o glorioso filho de Nestor;
aí estacaram. Ao sair avistou-os o poderoso Eteoneu,
ágil criado do famoso Menelau.
Atravessou o palácio para dar a notícia ao Pastor de Povos.
E acercando-se do rei, proferiu palavras apetrechadas de asas:
«Estão aqui dois estrangeiros, ó Menelau criado por Zeus,
dois homens que parecem da linhagem de Zeus soberano.
Mas diz-me: deveremos desatrelar os seus velozes cavalos,
ou mandá-los para casa de outro, que os acolha com gentileza?»
Com grande irritação lhe respondeu o loiro Menelau:
«Antes não eras tolo, ó Eteoneu, filho de Boétoo!
Mas agora dizes tolices como uma criança.
Na verdade tu e eu já comemos muitas vezes à mesa
de outros homens, no caminho que aqui nos trouxe,
na esperança de que Zeus nos aliviasse um dia a dor.
Desatrela os cavalos dos estrangeiros e trá-los para que comam.»

Assim falou; e ele apressou-se pelo palácio, chamando


outros ágeis criados para seguirem atrás dele.
Tiraram o jugo aos cavalos suados
e em seguida foram atá-los nas cavalariças,
atirando-lhes espelta misturada com a branca cevada.
Depois encostaram o carro contra as paredes resplandecentes
e conduziram os hóspedes para dentro da casa divina.
Admiraram-se estes ao ver o palácio do rei criado por Zeus.
Pois como o brilho do Sol ou da Lua
era o alto palácio do famoso Menelau.
Depois de se terem deleitado, olhando com os olhos,
foram tomar banho em banheiras polidas.
Depois que as escravas os banharam e ungiram com azeite,
atiraram-lhes por cima do corpo capas de lã e túnicas.
Sentaram-se em seguida ao lado de Menelau, filho de Atreu.
Uma escrava trouxe água para as mãos num jarro,
belo e dourado, e verteu<-a> por cima de uma taça prateada,
para eles se lavarem; e perto colocou uma mesa polida.
Uma venerável governanta veio trazer-lhes o pão,
dispondo iguarias abundantes, favorecendo<-os> com o que havia.
Um trinchador trouxe salvas com carnes variadas,
e colocou junto deles taças douradas; (…)

(………………………………………………………………)

Assim falou; sorriu Menelau, Excelente em Auxílio,


e acariciou-o com a mão. Depois falou-lhe pelo nome e disse:
«Por tudo o que dizes é excelente, querido filho, o sangue
de que provéns. Trocarei os teus presentes; posso fazê-lo.
Dos presentes que jazem como tesouros na minha casa,
dar-te-ei o que é mais belo e mais precioso:
dar-te-ei uma taça cinzelada, toda feita de prata,
mas os rebordos são trabalhados com ouro,
obra de Hefesto. Deu-ma o herói Fédimo,
rei dos Sidónios, quando me acolheu em sua casa,
a mim que por lá viajava. Agora quero dar-ta a ti.»

1.4. Calipso e Hermes (Homero, Odisseia, 5. 76-96):

Depois de no coração se ter maravilhado com tudo,


entrou de seguida na gruta espaçosa. Ao contemplá-lo,
não pôde Calipso, divina entre as deusas, deixar de o reconhecer:
pois não é hábito dos deuses imortais serem desconhecidos
uns dos outros, apesar de apartadas as suas moradas.
Porém Hermes não encontrou na gruta o magnânimo Odisseu:
na praia estava ele sentado, a chorar no sítio do costume,
torturando o coração com lágrimas, tristezas e lamentos.
E com os olhos cheios de lágrimas fitava o mar nunca vindimado.
A Hermes assim falou Calipso, divina entre as deusas,
depois que o sentara num trono resplandecente:

«Diz-me, ó Hermes da vara dourada, por que razão aqui vieste


como hóspede honrado. Antes não eram frequentes as tuas visitas.
Exprime a tua intenção, pois manda-me o coração cumpri-la
(se for suscetível de cumprimento e cumpri-la eu puder).
Mas chega-te mais à frente, para que te ofereça refrigério.»

Assim falando, colocou a deusa à sua frente uma mesa


carregada de ambrósia, misturando depois o rubro néctar.
Por seu lado comeu e bebeu o mensageiro Argeifonte.
Depois de ter comido e satisfeito o coração com ambrósia,
tomou a palavra e assim se dirigiu à deusa: (…)

1.5. O Ciclope (Homero, Odisseia, 9. 106-115; 216-230; 250-278):

Chegámos à terra dos Ciclopes arrogantes e sem lei


que, confiando nos deuses imortais, nada semeiam
com as mãos nem aram a terra; mas tudo cresce
e dá fruto sem se arar ou plantar o solo:
trigo, cevada e as vinhas que dão o vinho a partir
dos grandes cachos que a chuva de Zeus faz crescer.
Para eles não há assembleias deliberativas nem leis;
mas vivem nos píncaros das altas montanhas
em grutas escavadas, e cada um dá as leis à mulher
e aos filhos. Ignoram-se uns aos outros.

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Chegámos rapidamente à gruta, mas não o encontrámos


lá dentro; é que apascentava no campo os gordos rebanhos.
Entrámos no antro e tudo mirámos, espantados.
Havia cestos cheios de queijos; e os currais estavam
apinhados de cordeiros e cabritos, todos separados,
cada um em seu sítio: os que tinham nascido primeiro;
os que vieram depois; e os recém-nascidos. Havia vasilhas
bem feitas, cheias de coalho; baldes e tigelas para a ordenha.
Antes de mais, suplicaram-me os companheiros para levarmos
alguns queijos e fugirmos, depois que rapidamente conduzíssemos
dos currais para as naus os cordeiros e os cabritos, para com eles
navegarmos sobre o mar salgado. Mas não me persuadiram
– mais proveitoso teria sido se o tivessem feito! – porque eu
queria vê-lo a ele, e dele receber os presentes da hospitalidade.

Mas quando ele apareceu, não foi amável para com os companheiros.

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Depois que se afadigara, desempenhando estas tarefas,
avivou o lume. Avistou-nos. E assim nos perguntou:

“Ó estrangeiros, quem sois? Donde navegastes por caminhos aquosos?


É com fito certo, ou vagueais à deriva pelo mar
como piratas, que põem as vidas em risco
e trazem desgraças para os homens de outras terras?”

Assim falou; e logo se nos despedaçou o coração,


com medo da voz profunda e do ser monstruoso.
Apesar disso respondi-lhe, proferindo estas palavras:

“Somos Aqueus que desde Troia andamos à deriva


sobre o grande abismo do mar, devido a toda a espécie de ventos.
Queremos voltar a casa, mas seguimos em vez disso
outro caminho. É Zeus, porventura, que assim o quer.
Declaramos ter feito parte do exército de Agamémnon,
filho de Atreu, cuja fama é agora a mais excelsa debaixo do céu,
pois saqueou uma grande cidade e matou muitos homens.
Mas nós chegamos junto de ti como suplicantes,
esperando que nos dês hospitalidade; ou que de outro modo
sejas generoso connosco: pois tal é a obrigação dos anfitriões.
Respeita, ó amigo, os deuses: somos teus suplicantes.
É Zeus que salvaguarda a honra de suplicantes e estrangeiros:
Zeus Hospitaleiro, que segue no encalço de hóspedes venerandos.”

Assim falei; e ele respondeu logo, com coração impiedoso:


“És tolo, estrangeiro, ou chegas aqui de muito longe,
se me dizes para recear ou honrar os deuses.
Nós, os Ciclopes, não queremos saber de Zeus, Detentor da Égide,
nem dos outros bem-aventurados, pois somos melhores que eles.
Nem eu alguma vez, só para evitar a ira de Zeus, te pouparia
a ti ou aos teus companheiros. Só se eu quisesse. (…)”
1.6. Eumeu (Homero, Odisseia, 14. 1-7; 29-34; 45-59; 72-81):

Porém Odisseu subiu do porto por caminhos agrestes,


através de um terreno arborizado por cima de serras,
até ao lugar onde lhe dissera Atena que encontraria
o divino porqueiro, que dentre os escravos que adquirira
o divino Odisseu era quem mais velava pelas suas propriedades.

Encontrou-o sentado à frente da casa, lá onde tinha


construído o recinto, num terreiro de larga vista,
belo e amplo a toda a volta; (…)

(………………………………………………………………)

De repente os cães ladradores avistaram Odisseu,


e atiraram-se a ele a ladrar; mas Odisseu, na sua argúcia,
sentou-se logo, deixando cair da mão o bastão que levava.
Ali, junto às pocilgas, teria sofrido dores desfiguradoras;
mas o porqueiro seguiu-os depressa com passos rápidos:
precipitou-se porta fora, deixando cair das mãos o cabedal.

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«(…) Mas anda, ancião; vamos agora para o casebre,


para depois de satisfazeres o desejo de comida e bebida
me contares donde és e as desgraças que sofreste.»

Assim falando, conduziu-o ao casebre o divino porqueiro,


fê-lo sentar-se, espalhando espessa caruma no chão
e por cima a pele de uma cabra selvagem e lanzuda,
em que dormia, grande e peluda; e Odisseu alegrou-se
pelo modo como fora recebido, e falando-lhe assim disse:
«Que Zeus e os outros deuses imortais te deem, estrangeiro,
tudo o que mais desejas, visto que com gentileza me acolheste.»
Foi então, ó porqueiro Eumeu, que lhe deste esta resposta:
«Estrangeiro, não tenho o direito (mesmo que um pior que tu
aqui viesse!) de desconsiderar um estrangeiro: pois de Zeus
vêm todos os estrangeiros e mendigos; e a nossa oferta,
embora pequena, é dada de bom grado. (…)»

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Assim dizendo, apanhou depressa a túnica com um cinto


e foi para as pocilgas, onde encurralara as famílias dos leitões.
De lá tirou dois leitões e ambos sacrificou;
chamuscou e cortou-os e pôs a carne em espetos.
Depois de tudo assado, trouxe a carne e pô-la diante de Odisseu,
ainda quente nos espetos, polvilhando com branca cevada.
Depois numa taça cinzelada com hera misturou o vinho doce.
Sentou-se defronte de Odisseu e disse para o encorajar:

«Come, estrangeiro, o que os escravos têm para oferecer,


carne de leitão; (…)»

1.7. Glauco e Diomedes (Homero, Ilíada, V. 212-236):

Assim falou; regozijou-se Diomedes, excelente em auxílio.


Espetou a lança na terra provedora de dons
e com doces palavras se dirigiu ao pastor do povo:

“Na verdade, és antigo amigo da casa de meu pai!


Outrora o divino Eneu recebeu o irrepreensível Belerofonte
no seu palácio, onde o reteve durante vinte dias!
E um ao outro ofereceram belos dons hospitaleiros:
Eneu presenteou-o com um cinturão brilhante de púrpura;
e Belerofonte deu-lhe uma taça dourada de asa dupla,
a qual, quando para aqui vim, eu deixei em minha casa.
De Tideu não me lembro, visto que me deixou ainda pequeno,
quando a hoste dos Aqueus pereceu em Tebas.
Por conseguinte, sou teu amigo e anfitrião em Argos;
tu és meu, na Lícia, se eu visitar a terra daquele povo.
Evitemos pois a lança um do outro por entre esta multidão.
Há muitos Troianos e seus famigerados aliados para eu matar:
aquele que o deus me proporcionar e que eu alcançar com os pés;
e há muitos Aqueus para tu matares – àquele que fores capaz.
Mas troquemos agora as nossas armaduras, para que até estes
aqui saibam que amigos paternos declaramos ser um do outro.”

Depois que assim falaram, ambos saltaram dos carros:


apertaram as mãos e juraram ser fiéis amigos.
Foi então que a Glauco tirou Zeus Crónida o siso;
ele que trocou com o Tidida Diomedes armas de ouro
por armas de bronze: o valor de cem bois pelo de nove.

2. Importância do suplicante

2.1. Apolo pune os Aqueus (Homero, Ilíada, I. 8-32):

Entre eles qual dos deuses provocou o conflito?


Apolo, filho de Leto e de Zeus. Enfurecera-se o deus
contra o rei e por isso espalhara entre o exército
uma doença terrível de que morriam as hostes,
porque o Atrida desconsiderara Crises, seu sacerdote.
Ora este tinha vindo até às naus velozes dos Aqueus
para resgatar a filha, trazendo incontáveis riquezas.
Segurando nas mãos as fitas de Apolo que acerta ao longe
e um ceptro dourado, suplicou a todos os Aqueus,
mas em especial aos dois Atridas, condutores de homens:

“Ó Atridas e vós, demais Aqueus de belas cnémides!


Que vos concedam os deuses, que o Olimpo detêm,
saquear a cidade de Príamo e regressar bem a vossas casas!
Mas libertai a minha filha amada e recebei o resgate,
por respeito para com o filho de Zeus, Apolo que acerta ao longe.”
Então todos os outros Aqueus aprovaram estas palavras:
que se venerasse o sacerdote e se recebesse o glorioso resgate.
Mas tal não agradou ao coração do Atrida Agamémnon;
e asperamente o mandou embora, com palavras desabridas:

“Que eu te não encontre, ó ancião, junto às côncavas naus,


demorando-te agora ou voltando nos tempos próximos,
pois de nada te servirá o ceptro e a fita do deus!
Não libertarei a tua filha. Antes disso a terá atingido a velhice
em minha casa, em Argos, longe da sua pátria,
enquanto se afadiga ao tear e dorme na minha cama.
Vai-te agora. Não me encolerizes: partirás mais salvo.”

2.2. Tétis e Zeus (Homero, Ilíada, I. 493-530):

Foi quando sobreveio a décima segunda aurora


que para o Olimpo regressaram os deuses que são para sempre,
todos juntos, e foi Zeus a liderá-los. Não olvidou Tétis
os pedidos de seu filho, mas emergiu de manhã cedo
da onda do mar e subiu ao rasgado céu, ao Olimpo.
Encontrou Zeus que vê ao longe sentado longe dos outros,
no píncaro mais elevado do Olimpo de muitos cumes.
Sentou-se junto dele e com a mão esquerda lhe agarrou
os joelhos, enquanto com a direita o segurava sob o queixo.
Em tom de súplica dirigiu a palavra a Zeus Crónida soberano:

“Zeus pai, se entre os imortais alguma vez te auxiliei


com palavras ou actos, faz que se cumpra esta minha prece:
honra o meu filho, aquele que acima de todos os outros
está destinado a vida curta. Pois agora Agamémnon, soberano
dos homens, o desonrou, tirando-lhe o prémio pela arrogância.
Mas mostra-lhe tu a recompensa, ó conselheiro Zeus Olímpio!
Concede a primazia aos Troianos, até que os Aqueus
Honrem o meu filho e lhe paguem com honraria devida.”
Assim falou; mas não lhe deu resposta Zeus que comanda as nuvens.
Ficou sentado durante muito tempo em silêncio. Mas Tétis, do modo
que lhe agarrara os joelhos, desse modo continuava sem o largar;
e novamente lhe falou, tomando a palavra pela segunda vez:

“Com verdade me promete o que te peço e inclina a cabeça;


ou então recusa (pois nada há que te cause receio), para que eu saiba
bem como de todos os deuses sou aquela que menos honras recebe.”

Indignado lhe respondeu então Zeus que comanda as nuvens:


“É triste o trabalho em que me lanças para entrar em conflito
com Hera, quando ela me provocar com palavras injuriosas.
Entre os deuses imortais está ela continuamente a censurar-me,
porque afirma querer eu beneficiar os Troianos na refrega.
Mas tu agora deverás de novo retirar-te, não vá Hera reparar
que aqui vieste. Reflectirei sobre como cumprir estas coisas.
Inclinarei agora a cabeça para ti, para que acredites:
pois da minha parte é esta a maior garantia entre os imortais.
Nenhuma palavra em relação à qual inclino a cabeça
é revogável, falsa, ou ficará sem cumprimento.”

Assim falou o Crónida, inclinando o sobrolho azul


Agitaram-se as madeixas da ambrósia na cabeça
do soberano imortal e o alto Olimpo tremeu.

2.3. Príamo e Aquiles (Homero, Ilíada, XXIV. 469-526):

Príamo saltou do carro para o chão


e ali deixou Ideu, que ficou a tomar conta
dos cavalos e das mulas. O ancião foi direito à casa
onde Aquiles, dilecto de Zeus, costumava estar sentado.
Aí o encontrou, mas os amigos sentavam-se à parte.
Eram só dois: o herói Automedonte e Álcimo, vergôntea de Ares,
que o serviam. Ele acabara há pouco a refeição, parara
de comer e beber. A mesa estava ainda ao seu lado.
Despercebido deles entrou o grande Príamo; acercou-se
e com as mãos agarrou os joelhos de Aquiles e beijou
as terríveis mãos assassinas, que tantos filhos lhe mataram.
Tal como quando sobrevem denso desvario ao homem
que na sua pátria mata outro e foge para casa de estrangeiros,
para casa de um homem rico, e o espanto domina quem o vê –
assim se espantou Aquiles ao ver Príamo divino.
Espantaram-se os demais e olhavam uns para os outros.
Suplicante lhe dirigiu então Príamo este discurso:

“Pensa no teu pai, ó Aquiles semelhante aos deuses!


Ele que tem a minha idade, na soleira da dolorosa velhice.
Decerto os que vivem à volta dele o tratam mal,
e não há ninguém que dele afaste o vexame e a humilhação.
Porém quando ouve dizer que tu estás vivo,
alegra-se no coração e todos os dias sente esperança
de ver o filho amado, regressado de Tróia.
Mas eu sou totalmente amaldiçoado, que gerei filhos excelentes
na ampla Tróia, mas afirmo que deles não me resta nenhum.
Eram cinquenta, quando chegaram os filhos dos Aqueus.
Dezanove nasceram no mesmo ventre materno;
os outros foram dados à luz por mulheres no palácio.
A estes, numerosos embora fossem, Ares furioso deslassou os joelhos.
E o único que me restava, ele que sozinho defendia a cidade e o povo,
esse tu mataste quando ele lutava para defender a pátria:
Heitor. Por causa dele venho às naus dos Aqueus
para te suplicar; e trago incontáveis riquezas.
Respeita os deuses, ó Aquiles, e tem pena de mim,
lembrando-te do teu pai. Eu sou mais desgraçado que ele,
e aguentei o que nenhum outro terrestre mortal aguentou,
pois levei à boca a mão do homem que me matou o filho.”

Assim falou; e em Aquiles provocou o desejo de chorar pelo pai.


Tocando-lhe com a mão, afastou calmamente o ancião.
E ambos se recordavam: um deles de Heitor matador de homens
e chorava amargamente, rojando-se aos pés de Aquiles;
porém Aquiles chorava pelo pai, mas também, por outro lado,
por Pátroclo. O som do seu pranto encheu toda a casa.
Mas depois que o divino Aquiles se saciou de chorar,
e o respectivo desejo lhe saíra do coração e dos membros,
imediatamente se levantou do trono e levantou o homem
com a mão, condoído de ver a cabeça e a barba grisalhas;
e falando proferiu palavras apetrechadas de asas:

“Ah, desgraçado, muitos males aguentaste no teu coração!


Como ousaste vir sozinho até às naus dos Aqueus,
para te pores diante dos olhos do homem que tantos
e valorosos filhos te matou? O teu coração é de ferro.
Mas agora senta-te num trono; nossas tristezas deixaremos
que jazam tranquilas no coração, por muito que soframos.
Pois não há proveito a tirar do frígido lamento.
Foi isto que fiaram os deuses para os pobres mortais:
que vivessem no sofrimento. (…)”

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