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Fabricio Possebon

TÒ THAUMASTÓN:
O MARAVILHOSO.
Introdução ao pensamento
grego arcaico

Editora Universitária UFPB/Zarinha Centro de Cultura


João Pessoa
2008
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O maravilho nos poemas homéricos

Homero

As questões postas a respeito de Homero são muitas: teria ele existido


realmente, ou seja, seria um personagem histórico? Ou o seu nome é apenas um
rótulo a ser gravado no conjunto das obras, compiladas posteriormente, cuja
autoria é ignorada? A Ilíada e a Odisséia seriam obras do mesmo autor? Qual a
mais antiga? Quando viveu Homero, onde e de que maneira? Não há respostas
satisfatórias para tantas questões, pois os gregos da Antigüidade já não sabiam
muito acerca de Homero. Normalmente, são os aceitos os séculos VII ou VIII
antes de Cristo como o seu florescimento, na Jônia. Seria ele um bardo cego,
errante pelas cidades gregas, levando seus poemas e apresentando-os nos
palácios onde fosse acolhido. Segundo alguns, a Ilíada é obra da juventude e a
Odisséia a da maturidade.
De maneira geral, toda a poesia épica, tida como de valor e de autoria
desconhecida, era atribuída a Homero, assim sob o seu nome foram postos os
Hinos Homéricos, a Batracomiomaquia e muitos outros textos hoje perdidos,
conforme informa a Suda (verbete Homero de sua enciclopédia).
Em nosso apêndice, discutiremos a relação entre a épica e o maravilhoso,
por enquanto adotaremos o ponto de vista de que uma obra tal, como a Ilíada ou
a Odisséia, necessita de autor, ou seja, não é obra de caráter popular, composta
por muitos autores do povo, sendo continuamente aumentada. Assim, temos o
nome de Homero, conservado pela tradição, como o verdadeiro autor das
referidas obras.
No gênero épico, as obras homéricas são basilares de toda a tradição
ocidental. Logo foram assimiladas pelos romanos, cuja primeira obra literária é a
tradução da Odisséia, conhecida como Odussia, feita por Lívio Andronico (III
a.C). Virgílio apropria inteiramente dos poemas homéricos, ao escrever a sua
Eneida (I a.C.), o poema épico nacional latino. As demais grandes epopéias
latinas seguem os mesmos paradigmas: a Farsália de Lucano e a Tebaida de
Estácio. Paralelamente, na própria Grécia, temos as Argonáuticas de Apolônio
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Rodes, as Pós-homéricas de Quinto de Esmirna e as Dionisíacas de Nonno de


Panóplis, conhecido como o novo Homero. Já no âmbito das literaturas em
língua nacional, recordaremos a Divina Comédia de Dante Alighieri e os
Lusíadas de Luis de Camões. Todavia, de todas essas obras, nenhuma supera
Homero no uso do maravilhoso, ou seja, em nenhuma delas o extraordinário e o
irracional estão tão presentes, envolvendo os personagens, decidindo o curso dos
acontecimentos e propondo explicações. Homero é, em suma, o mais religioso de
todos os autores do gênero épico. A Ilíada e a Odisséia são, portanto, as obras
mais religiosas do gênero. Todavia, não vamos entender aqui religioso no sentido
moderno, como a Bíblia, uma obra que o fiel carrega consigo, quando vai ao
culto.
Sem pretendermos esgotar o assunto, analisaremos os seguintes elementos
maravilhosos, nos poemas homéricos: a invocação às Musas; o sacerdote, o
sacrifício e a intervenção divina; o adivinho; a interferência física dos deuses
(aparição do deus, Áte, Daímon), o encantamento, os objetos sagrados e a bebida
kykeón.

A invocação às Musas

Os proêmios épicos da tradição greco-latina seguem um modelo


normalmente constante. A invocação é feita por meio de um verbo, no
imperativo ou no subjuntivo, e um vocativo, dirigido às Musas (as nove filhas da
deusa Memória e de Zeus), ou dirigido às deusas (subentende-se, nesse caso,
serem as deusas Musas), ou a uma única deusa (uma das Musas: Calíope,
literalmente, a Bela Voz, a deusa das letras). O campo semântico do verbo em
questão gira em torno do narrar, dizer, cantar, recordar, e o objeto do mesmo
verbo é o assunto do poema, ou seja, a proposição. Observemos o proêmio da
Ilíada, I, v. 1-7:

A ira canta, ó deusa, de Aquiles, filho de Peleu,


destruidora, que levou imensas dores aos Aqueus,
e enviou ao Hades muitas e fortes almas
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de heróis, e os fez presas aos cães


5 e às aves todas - cumpriu-se a vontade de Zeus,
a partir de quando, primeiro, se separaram, após lutar,
o Atrida, rei dos homens, e o divino Aquiles.

Portanto, a invocação é feita pelo verbo „cantar‟ e pelo vocativo a uma


deusa não nomeada, provavelmente Calíope. Já o assunto da Ilíada, sua
proposição, é a ira destruidora. O proêmio ainda desenvolve as conseqüências da
ira. Conforme visto o exemplo de Hesíodo, sob a visão sacralizada de mundo, o
homem estava imerso no divino, de tal modo que o poeta era visto como um
escolhido pelos deuses para cantar o que eles mesmos lhe inspiravam. Não havia
o conceito de autoria, pois o aedo era uma espécie de medium dos deuses. Desse
modo estava garantida a veracidade do canto.

O sacerdote, o sacrifício e a intervenção divina

A narrativa da Ilíada principia com a chegada do sacerdote Crises ao


acampamento dos gregos, chefiados pelos filhos de Atreu, os Atridas. No ataque
que os gregos fizeram ao templo, eles capturaram Criseida, filha do sacerdote e
ela mesma sacerdotisa de Apolo. Na partilha do botim, coube a Agamêmnon a
posse de Criseida como seu quinhão, . Crises chega para resgatá-la
trazendo inúmeros presentes, o que agrada a todos os demais gregos, menos
evidentemente a Agamêmnon.
O chefe grego, enfurecido, expulsa Crises com ameaças. Retira-se o
sacerdote, que ora ao deus Apolo, recordando que fizera muitos sacrifícios (v. 39,
40 e 41: inclinando-se no templo e queimando gordas coxas de touros e cabras) e
agora pede vingança, pela afronta. A relação com a divindade é de troca.
Imediatamente, Apolo desce com seu arco de prata, disparando e matando tantos
os gregos quanto seus animais.
A administração dos templos estava a cargo de um sacerdote, e
com ele trabalhavam suas filhas e sobrinhas. Passava-se de geração a geração o
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cargo, todavia não havia uma estrutura hierárquica complexa que interligava os
diversos templos. Cada qual tinha sua vida independente, com seu calendário de
festividades e seus ritos. Toda a trama da Ilíada decorrerá do desrespeito ao
sacerdote e, conseqüentemente ao próprio deus Apolo. Portanto, é o maravilhoso
o ponto de partida de toda a narrativa.
A comunicação entre o plano divino e o humano, neste trecho, se dá pela
oração ou prece (v. 35 e 43, verbo ), feita não por qualquer indivíduo,
mas por aquele que está investido de tal poder, já que porta o cetro do deus.
Apolo, por sua vez, responde e intervém, todavia não é visto por ninguém.

Ilíada, 1, v. 8-52

Pois quem entre os deuses juntou-os a combater?


O filho de Leto e de Zeus; pois investiu contra o rei,
10 suscitou uma doença má ao exército, e homens foram mortos,
para que o Atrida honrasse o sacerdote Crises,
que veio às rápidas naus dos Aqueus
para livrar a filha, trazendo infinitas recompensas,
tendo nas mãos a coroa do longiflecheiro Apolo,
15 sobre o dourado cetro, e pedia a todos os Aqueus,
sobretudo aos dois Atridas, comandantes de homens:
“Atridas e demais Aqueus de belas cnêmides,
a vós os deuses, detentores do olímpico palácio, dêem
destruir a cidade de Príamo e bem voltar para casa.
20 Oxalá que soltais minha cara criança, ao aceitar o resgate,
honrando o filho de Zeus, o longiflecheiro Apolo”.
Então todos os demais Aqueus aprovaram
respeitar o sacerdote e receber a esplêndida recompensa,
mas não agradou ao coração do Atrida Agamêmnon,
25 que maldosamente o expulsou e lhe impôs violenta fala:
“Que eu não te encontre, velho, junto às côncavas naus
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ou agora atrasado ou depois de novo vindo,


de fato, não te será útil o cetro e a coroa do deus,
e não a libertarei; antes sobre ela a velhice avance
30 em nossa casa em Argos, longe da pátria,
ela movendo o tear e a meu leito vindo,
mas vá, não me irrites, para que partas mais seguro”.
Assim disse. Assustou-se o velho e acreditou na fala,
e foi silencioso à praia do murmurante mar.
35 Em seguida, muito longe indo, o velho orou
a Apolo rei - gerou-o Leto de belos cabelos:
“Ouve-me, ó do arco de prata, que proteges Crises
e a Cila divina, e fortemente dominas Tênedos,
ó Esminteo, se algum dia a ti, amável, inclinei-me no templo,
40 ou se algum dia a ti queimei gordas coxas
de touros ou de cabras, cumpra-me este desejo:
os Dânaos paguem minhas lágrimas com tuas flechas”.
Assim disse orando e a isso ouviu Febo Apolo,
e veio dos cumes do Olimpo, irado no coração,
45 tendo arcos nos ombros e uma aljava de duas tampas;
e então os dardos do irado retiniram sobre os ombros,
quando ele veio, e era semelhante à noite,
e sentou-se longe dos templos e arremessou uma seta
e terrível ruído surgiu do prateado arco,
50 e atacava primeiro as bestas e os cães velozes,
logo arremessando-lhes setas agudas lançou,
e sempre as piras de cadáveres queimavam freqüentes.

O adivinho

Segue a matança no exército grego até que Aquiles, inspirado pela deusa
Hera, convoca uma assembléia, e sugere que seja consultado um adivinho,
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, ou um sacerdote, , ou um intérprete de sonhos, ,


para saber como aplacar a ira de Apolo. Aquiles supõe que o deus sente falta de
prece, ou de sacrifício, , literalmente o sacrifício de cem
bois. Calcas é então chamado, pois foi ele quem então conduzira os gregos até
Tróia, com sua arte mágica, , sendo um conhecido intérprete do vôo

dos pássaros, . Instigado por Aquiles, Calcas revela o vaticínio,

que conhece.

Ilíada, 1, v. 53-100

Por nove dias lançou dardos divinos sobre o exército,


e, no décimo, Aquiles chamou a tropa à ágora,
55 A deusa de brancos braços Hera instigou seu ânimo,
preocupou-se com os Dânaos, que então via morrendo.
Eles logo foram reunidos e juntos ficaram,
e, entre eles, erguendo-se Aquiles de pés rápidos disse:
“Atrida, agora penso que nós, errantes,
60 devemos ir embora, se podemos fugir da morte,
e se a guerra e a peste forem vencer os Aqueus,
mas vamos, perguntemos a algum adivinho ou sacerdote,
ou oniromante, pois o sonho existe a partir de Zeus,
o qual dirá porque muito irou-se Febo Apolo,
65 se então ele reclama de prece ou de hecatombe,
se, ao receber o odor de banha de carneiros e de cabras perfeitas,
ele talvez queira afastar a morte de nós.”
Então, tendo dito isto, sentou-se. E entre eles ergueu-se
Calcas Testorides, de longe o melhor ornitomante,
70 que sabia as coisas presentes, as futuras e as passadas,
e conduziu os navios dos Aqueus para Ílion,
com sua arte divinatória, a qual lhe deu Febo Apolo.
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Bem pensando discursou e lhes disse:


“Ó Aquiles, filho de Zeus, exortas-me a narrar
75 a ira de Apolo longiflecheiro rei,
então eu direi e tu me observa e jura
ajudar-me cuidadosamente, com palavras e mãos,
pois penso que vou irritar o homem, que entre todos
os argivos é muito poderoso e os Aqueus lhe obedecem.
80 Mais potente é o rei, quando se enfurece contra inferior,
se então ele digerir a cólera no mesmo dia,
ou depois tiver rancor, até que a cumpra
no seu peito. Mas diz se me salvarás”.
Respondendo Aquiles de pés rápidos disse-lhe:
85 “Foste muito corajoso, diz a revelação que conheces,
não por Apolo, caro a Zeus, pelo qual tu, ó Calcas,
orando pelos Dânaos, fazes surgir revelações.
Ninguém, enquanto eu viver e existir sobre a terra,
junto às côncavas naus te porá pesadas mãos,
90 entre todos os Dânaos, e nem se disseres „Agamêmnon‟,
que agora muito declara ser o melhor no exército”.
Então o adivinho perfeito tomou coragem e pronunciou:
“Ele está insatisfeito não de prece, nem de hecatombe,
mas por causa do sacerdote, que Agamêmnon desonrou,
95 não liberou a filha e não recebeu os resgates,
por isso o Flecheiro deu dores e mais ainda dará,
não afastará antes a maligna peste dos Dânaos,
antes que se devolva a jovem olhos-girantes ao caro pai,
sem preço nem resgate, e se leve uma sagrada hecatombe
100 a Crises. Então propiciando poderemos persuadi-lo”.
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Interferência física dos deuses

Após as ríspidas palavras de Agamêmnon contra o adivinho Calcas,


decide-se seguir as suas recomendações: devolver a jovem Criseida a seu pai, o
sacerdote Crises, e oferecer uma hecatombe ao deus Apolo. Agamêmnon, então,
como ficaria sem sua parte no botim, decide tomar a parte de Aquiles, ou seja, a
jovem Briseida, irmã de Criseida. Aquiles se enfurece com a afronta e ameaça
abandonar o exército grego (esse é o tema de todo o poema, conforme vimos no
proêmio, a ira, de Aquiles). No auge da discussão, ele intenta sacar sua
espada e matar Agamêmnon, quando ocorre a aparição da deusa Atena e o
impede.
A deusa aparece somente a ele. Como representante de Hera, promete-lhe
presentes e ele mesmo reconhecer ser melhor obedecer aos deuses.
Diferentemente da intervenção acima vista de Apolo, aqui a deusa Atena torna-se
visível e entretém um diálogo com o herói – é o que denominamos intervenção
física, por meio de uma aparição.

Ilíada, 1, v. 193-222

Enquanto Aquiles suscitava tais na mente e no coração,


sacou da bainha uma grande espada, mas Atena veio
195 do céu. A deusa Hera, de brancos braços, a enviou;
a ambos igualmente, pelo coração, ela ama e cuida.
Pôs-se atrás dele, e segurou o Pelida pela cabeleira dourada,
somente a ele revelada. Dentre todos os demais ninguém a vê.
Maravilhou-se Aquiles, voltou-se, imediatamente percebeu
200 Palas Atena. Os olhos da deusa mostraram-se terríveis.
Tendo se dirigido a ela, pronunciou palavras aladas:
“Por que, então, filha de Zeus porta-égide, tu vieste?
Acaso para ver o excesso do Atrida Agamêmnon?
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Porém, eu te direi, e penso que isto há de ser cumprido,


205 por arrogância ele destruirá rapidamente seu coração”.
A deusa Atena de olhos refulgentes, então, lhe disse:
“Eu vim para deter o teu rancor, se tu te persuadires,
do céu, enviou-me a deusa Hera, de brancos braços,
a ambos igualmente, pelo coração, ela ama e cuida.
210 Eia, desiste da luta, não saques a espada, com a mão,
mas censura-o com palavras, assim certamente será,
assim direi, e isso será também cumprido.
Então a ti, três vezes, virão tão valiosos presentes,
por causa do excesso dele. Detenha-te e submete a nós”.
215 Respondendo, disse-lhe Aquiles de pés ligeiros:
“É necessário, ó deusa, obedecer à vossa palavra
aquele que está muito irritado no coração. Assim pois é melhor.
Quem obedece aos deuses, muito esses o ouvem”.
Então, sobre o argênteo cabo, ele levou a mão pesada,
220 e, na bainha, repôs a grande espada. Não desobedeceu
à palavra de Atena, que partiu ao olímpico
palácio de Zeus porta-égide, junto aos outros deuses.

A loucura

Quando o destino da guerra de Tróia está em franca desvantagem para os


gregos, Agamêmnon decide a reconciliação com o Pelida Aquiles, que havia
abandonado a luta. Todavia, o chefe grego não se sente culpado pela antiga
desavença, pois o seu momento de insanidade é explicado miticamente pela
presença de uma loucura, ou perdição, em grego áte, . A áte, também

personificada como uma filha de Zeus, é enviada, muitas vezes, como uma
punição àquele que comete um excesso, hýbris .
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Ilíada, 19, v. 83-94

Ao Pelida eu me dirigirei. Vós, os outros Argivos,


compreendei e bem conhecei a palavra, cada um.
85 Pois muitas vezes, os Aqueus me disseram essa palavra
e me repreenderam. Eu não sou o culpado,
mas Zeus, a Moira e as Erínias, que caminham na escuridão.
Eles, na assembléia, lançaram em meu coração uma selvagem loucura,
no dia em que eu mesmo roubei o quinhão de Aquiles.
90 Mas o que eu poderia fazer? Um deus tudo realiza.
A Loucura é a filha mais velha de Zeus, a qual a todos engana,
destruidora. Ela tem muitos pés. Não, pois, sobre o solo
caminha, mas pelas cabeças dos homens marcha,
prejudicando os homens. Ela captura cada um.

O Daímon

É amplo o conceito de daímon , termo que dará demônio, nas


línguas modernas. Designa, por oposição a theós, um determinado deus, muitas
vezes, manifesto a um ser humano. Segundo Walter Burkert (Burkert, 1993, p.
352 e seg.) daímon “não designa uma classe determinada de seres divinos, mas
sim um modo peculiar de agir”, é “um poder oculto, uma força que leva o
homem a fazer algo, mas para a qual não pode ser nomeada a origem”. Portanto o
daímon é como o destino para o homem.
Vejamos um exemplo. Ulisses recebe do deus Eolo um odre com todos os
ventos aprisionados, menos Zéfiro que o levará de volta a sua casa. Feita a
navegação e quando já avistavam a terra pátria, os companheiros de Ulisses
abrem o odre, enquanto esse dormia, e os ventos liberados levam a embarcação
de volta à ilha de Eolo. Ulisses novamente se apresenta a Eolo, que lhe diz
(Odisséia, 10, 63 e seg.):
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“Como vieste, ó Ulisses? Qual perverso demônio te feriste?


De fato, com solicitude, te enviamos, para que atingisses 65
tua pátria e palácio e onde te é querido.”

Novamente, tal qual ocorre com a áte, a responsabilidade de inépcia não é


de Ulisses, mas sim de um mal daímon que lhe inspira dormir em hora imprópria.

O encantamento

A ama Euricléia ao lavar os pés de Ulisses (Odisseu), disfarçado, o


reconhece por causa de uma cicatriz. Neste momento, o narrador descreve os
acontecimentos que provocaram o ferimento. Ulisses, quando jovem, tinha
visitado seu avô materno, Autólico. Lá, junto ao monte Parnasso, vai à caça.
Ulisses é atacado por um javali. Ao mesmo tempo em que Ulisses o mata, é
ferido na perna pela presa do animal.
São descritos dois procedimentos para socorrer o herói: primeiro atam o
ferimento e, segundo, entoam um canto mágico, . A fórmula mágica de
encantamento tem seus equivalentes em outras culturas: na Índia, trata-se do
mantra, em Roma chama-se carmen. O encantamento consiste em uma ou mais
palavras, cujo significado muitas vezes é incompreensível, que deve ser entoado
segundo um modo aprendido da tradição, ou seja, aprende-se como fazê-lo da
viva voz de um mestre. Há uma maneira “correta” de pronunciá-lo, sob o risco de
não ter validade ou provocar efeitos indesejáveis. O encantamento, muitas vezes,
é acompanhado de algum rito.

Odisséia, 19, v. 455-458

455 Os filhos queridos de Autólico o auxiliaram;


a ferida do irrepreensível Odisseu, semelhante a um deus,
ataram habilmente, e com um encanto o sangue negro
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estancaram. Logo chegaram à casa do querido pai.

Objetos sagrados

São muitos os objetos que podem adquirir um poder mágico, bem como
lugares específicos (rio, montanha, fonte, encruzilhada de estrada, caverna,
floresta, etc.) e momentos apropriados (início da primavera, entardecer,
amanhecer, etc.). Na passagem abaixo, o deus Hermes conduz ao inferno (Hades)
as almas dos pretendentes à mão de Penélope, mortos por Ulisses, por seu filho
Telêmaco e por Palas Atena. As almas caem sob o poder da vara mágica, .

Odisséia, 24, v. 1-5

Hermes Cilênio chamava as almas


dos homens pretendentes. E tinha uma vara mágica nas mãos,
bela, de ouro; com essa, ele encanta os olhos dos homens,
os quais ele quer, e, por outro lado, desperta os dormentes.
Com essa, ele os guiava e eles o seguiam gritando. 5

A bebida sagrada Kykeón,

As diversas culturas arcaicas possuíam bebidas sagradas para auxiliarem o


processo de alteração do estado de consciência, de modo a provocar o contato
com o sagrado, a hierofania. Os indianos do período védico conheciam o soma,
os índios da costa brasileira usavam o cauim (feito de caju), os índios andinos o
chá de folha de coca, os celtas antigos tomavam Uisge Beata1, ou seja, a “água de
vida”. Tal deve ter sido também a origem de bebidas como o vinho, a cerveja e o
áraque (etimologia: seiva da tamareira) dos árabes. Os gregos tinham uma bebida
chamada kykeón uma mistura de vinho de Pramnos, queijo de leite de
cabra e farinha branca (conforme a Ilíada, 11, v. 638 e seg.).
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O nome transformou-se em Usquebaugh, hoje Whisky ou Whiskey.
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Na Odisséia, 10, 233 e seg., a feiticeira Circe acrescenta ao kykeón mel e


algumas ervas para provocar o encantamento dos marujos, transformando-os em
porcos.

[Polita] os guiou e os fez sentar em cadeiras e tronos,


para eles queijo, farinha, pálido mel
e vinho de Pramnos preparou. Misturou nessa papa 235
drogas danosas, para que totalmente esquecessem da terra pátria.
Em seguida, deu-lhes e eles a beberam, logo
com uma vara mágica os tocou e em pocilgas os encerrou.
E de porcos tinham cabeças, voz, pêlos
e corpo, mas a inteligência estava ilesa, como antes. 240

Na modernidade, em nossas sociedades altamente dessacralizadas, as


bebidas são vistas como elementos da prática social, todavia convém recordar
que para os antigos não é clara a distinção entre o sagrado e o profano. Tudo, ou
quase tudo, é sagrado.

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