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TCC Final
TCC Final
Salvador
2018
TAIS DO VALE FIGUEIREDO MORAIS DOS SANTOS
Salvador
2018
B238h Morais, Taís do Vale Figueiredo. A Rua Chile vestida de roxo: Uma lenda
revivida pela memória / Taís do Vale Figueiredo Morais dos Santos – 2018.
49 f. : il.
Orientadora: Profa. Dra. Alzira Gondim Tude de Sá. Trabalho de Conclusão deCurso
(graduação) – Universidade Federal da Bahia. Instituto de Ciência da Informação,
Salvador, 2018.
_____________________________________________________
Alzira Gondim Tude de Sá - ICI/UFBA
Doutora em Ciência da Informação pela UFBA
(Orientadora)
_______________________________________________________
Leyde Klébia Rodrigues da Silva - ICI/UFBA
Mestre em Ciência da Informação pela UFPB
(Avaliadora)
________________________________________________________
Ivana Lins
Doutora em Ciência da Informação pela UFBA
(Avaliadora)
DEDICATÓRIA
John Ford
MORAIS, Taís do Vale Figueiredo. A Rua Chile vestida de roxo: Uma lenda
revivida pela memória. 49 f. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) –
Instituto de Ciência da Informação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
.
RESUMO
ABSTRACT
1 INTRODUÇÃO
2 HISTÓRIA E MEMÓRIA: Reflexões
3 MEMÓRIA INDIVIDUAL E COOLETIVA COMO CONSTRUTORAS DE
IDENTIDADE
4 MULHER DE ROXO: CONTEXTO E HABITAT - A Rua Chile
5 TEXTOS E FALAS SOBRE UMA LENDA URBANA
5.1 Versões do passado
5.2 Os últimos passos de uma lenda
6 O CAMINHO PERCORRIDO: No encalço da Mulher de Roxo
7. RESTOS E FRAGMENTOS: Colhendo lembranças e recordações
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
Para que pudéssemos desenvolver este trabalho que pretende investigar
sobre a vida da Mulher de Roxo, uma mulher enigmática que elegeu como lugar de
morada uma das ruas mais frequentadas de Salvador, a rua Chile, buscamos
entender ou mesmo definir os conceitos de memória e em especial de memória
coletiva e identidade o seu funcionamento, na tentativa de compreender como esta
lenda urbana, como é considerada, povoou o imaginário de uma grande parcela da
cidade de Salvador.
Quando entrei na Academia tive informações, superficiais, sobre esta lenda.
De imediato surgiu em mim o desejo de aprofundar nos seus mistérios. Como aluna
de Arquivologia, eu não conseguia conceber a ideia de alguém sobreviver tanto
tempo na memória de um povo sem dela ter nada registrado, nada que a
identificasse, sua origem, sua vida, seu fim. Sem nenhum registro de quem é ou de
quem foi um dia. Tal como uma lenda, surgindo num dia qualquer, sem virtudes ou
pecados, sem rastros ou pegadas.
Através de um post de uma rede social, a curiosidade suscitada instigou-me
ao ponto de que, sem nem ao menos saber o que esperar do meu futuro acadêmico,
eu já havia escolhido o tema de minha investigação de final de curso. A partir de
então, debrucei-me a investigar: Como haveria ocorrido a propagação da lenda
Urbana Mulher de Roxo?
Na busca de respostas, procurei primeiramente entender as entrelinhas desta
história, questionava-me as formas que, mesmo sem nenhum registro que a
identificasse, como essa personagem conseguia sobreviver décadas, mesmo após a
sua morte? Oriundo desse questionamento, objetivamos analisar como perpetuou a
história de vida da Mulher de Roxo, geração pós geração. Como objetivos
específicos, estudaremos a relação entre memória e história, no tangente da
transmissão oral ememória individual e coletiva como formadores de identidade.
Para realização deste trabalho, elegemos a Rua Chile em Salvador, como
referencial e como recorte os frequentadores ou assíduos que, de alguma forma lhe
tiveram algum contato com o objeto desta pesquisa – A Mulher de roxo, seja visual
ou apenas por ouvir falar.
Por se tratar de uma pesquisa biográfica, seguimos alguns requisitos próprios
a esse tipo de pesquisa, segundo Delory-Momberger (2012, p.523):
O projeto fundador da pesquisa biográfica inscreve-se no quadro de
uma das questões centrais da antropologia social, que é a da
constituição individual: Como os indivíduos se tornam indivíduos?
Logo, essa questão convoca muitas outras concernentes ao
complexo de relações entre o indivíduo e suas inscrições e entornos
(históricos, sociais, culturais, linguísticos, econômicos, políticos);
entre o indivíduo e as representações que ele faz de si próprio e das
suas relações com os outros; entre o indivíduo e a dimensão
temporal de sua existência.
Desde os gregos, que buscavam explicar o mundo através dos mitos e dos
deuses, que a memória ocupa um lugar significativo a qual recebe o nome de
Mnemosine, a mãe das Musas, protetora das artes e da história. Como acreditavam
que ao externar a memória ela enfraquecia e seria apagada,Kessel (200_) corrobora
que estes desenvolveram algumas técnicas que preservavam as lembranças sem
necessariamente deixar de externá-las.
Sobre história, Le Goff (1990, p.9) define que se trata de “[...] uma realidade
que não é nem construída, nem observada como na matemática, nas ciências da
natureza e nas ciências da vida, mas sobre a qual se ‘indaga’, ‘se testemunha’”. Na
perspectiva de Sá (2015, p. 262) história é como “uma prática científica, restrita a
especialistas e conduzida segundo regras institucionalizadas” e memória como “uma
prática social exercida por todos e quaisquer membros de uma dada sociedade
humana.” No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, memória é a “faculdade de
reter as ideias, impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente; Lembrança,
reminiscência; recordação; [...]; Vestígio, lembrança, sinal.”
Criar e recriar a realidade através dos registros escritos tem sido uma função
preponderante da História. Não só em períodos mais recentes, desde a mais alta
antiguidade - através da pintura rupestre, pergaminhos, códices, etc.– até os dias
atuais (por meios dos livros, blogs, redes sociais, entre outros) que estes registros
se constituem a base de toda a construção histórica das atividades humanas.
Nora (1993, p. 13 apud BARROS e NEVES, 2000 p. 58) ressalta que esses
lugares, bem como alguns eventos, são concebidos como marcos testemunhais de
outras eras, como museus, cemitérios, arquivos, coleções, festas, tratados,
processos verbais, monumentos, santuários, associações,...– que enfoca o
pressuposto de que a memória necessita ser trabalhada, estimulada, defendendo a
ideia de que a materialização desses lugares não limita a memória, ao contrário
fornece materiais inúmeros para, principalmente, a mudança de práticas sociais,
preservando o seu significado simbólico. O autor ainda salienta que os lugares de
memória representam e são “sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo
numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos idênticos” (NORA, 1993 p.
13).
Para Landolini (1959, apud BARROS e NEVES, 2009 p.57), o ser humano
tem necessidade de ser lembrado e por isso registra seus feitos a fim de que estes
possam ser revistos e rememorados. Não se trata apenas de fatos passados e feitos
históricos. A postura que a sociedade atual tem adotado ante as redes e perfis
sociais expõe com clareza o comentário do autor.
Por sua vez, Le Goff (1990, p.476) relaciona memória e identidade partindo
da conjectura de que a identidade, seja ela pessoal ou social – individual ou coletiva,
retalha a memória selecionando-as de acordo com as conveniências na composição
da sua formação, com base nos aspectos do passado. Na concepção do autor;
Ao analisarmos Lira (2004, p.76) quando este discorre que “A Memória forja a
identidade e a identidade também forja a memória”, “Uma não existe sem a outra”,
compreendemos que mesmo a memória individual está inserida num contexto
coletivo. Está relacionada a diversos fatores sociais, sendo a forma mais simples,
defini-la como uma abordagem individual de um enfoque coletivo. Halbwachs (2013,
p.72) refere-se a memória individual como algo que
[...] não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio
passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de
outras, e se transportar a pontos de referência que existem fora de si,
determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da
memória individual não é possível sem esses instrumentos que são
as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas toma
emprestado de seu ambiente (HALBWACHS, 2013, p 72)
[...] imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma
pessoa adquire ao longo de sua vida referente a ela própria, a
imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, por
acreditar na sua própria representação, mas também para ser
percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros
Conceito este que Gondar (2016, p.33), além de concordar, estende a toda
comunidade social, enfatizando inclusive a necessidade do esquecimento no que
tange à manutenção da coerência da imagem a qual se quer apresentar. Apagar,
ocultar, esquecer os desacertos ou atitudes vergonhosas que, tecnicamente, são
opostas às imagens que definimos como identitária, é um recurso tanto da memória
individual quanto e principalmente, da memória coletiva. Na mesma perspectiva, o
autor acrescenta que “Uma sociedade pode se lembrar daquilo que ela representa
como injustiça do outro, mas não daquilo que ela representa como desonra, pois
nesse caso estaria comprometida a imagem que ela constrói para si própria.”
(GONDAR, 2016 p. 33)
O autor conjectura ainda que sem essa “chama latente” os testemunhos não
seriam suficientes para formar uma memória, tão pouco, não havendo uma
semelhança, dificilmente adotaríamos o jeito de pensar e agir dos grupos que nos
cercam, o que acontece facilmente quando há o sentimento de pertencimento, ao
forjarmos a nossa identidade. Halbwachs (1990, p.27) salienta que “esquecer um
período da vida é perder contato com aqueles que então nos rodeavam”. Tal
pensamento nos leva a crer que as nossas relações sociais interagem diretamente
com a nossa memória e, por conseguinte, com a nossa formação identitária, uma
vez que apagamos aquilo com o qual nos afastamos, seja por questões ocasionais
ou por vontade própria. E completa o autor:
Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, nãobasta que
eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não
tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante
pontos de contato entre uma e outra para que a lembrança que nos
recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum.
[Completando que] É necessário que esta reconstrução se opere a
partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no
nosso espírito como no dos outros, porque elas passam
incessantemente desses para aqueles e reciprocamente, o que só é
possível se fizerem e continuam a fazer parte de uma mesma
sociedade. Somente assim podemos compreender que uma
lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída
(HALBWACHS, 2004 p. 34)
[...] nós não percebemos que não somos senão um eco [...]. De uma
maneira ou de outra, cada grupo social empenha-se em manter uma
semelhante persuasão junto a seus membros [...]. de qualquer
maneira, na medida que cedemos sem resistência a uma sugestão
de fora, acreditamos pensar e sentir livremente. É assim que a
maioria das influências sociais que obedecemos com mais
frequência nos passam despercebida.
Ainda assim, a tradição oral, tende a ser vista como um “sistema coerente e
aberto para construir e transmitir conhecimento” (CRUIKSHANK, 1994 apud
FERREIRA e AMADO, 2006 p. 155.), principalmente quando aliado a outras fontes
de pesquisa. Rezende (2017) caracteriza a história oral
É preciso ressaltar que nossa busca não se restringe aos depoimentos orais.
Nós as estendemos às fontes escritas, imagéticas e áudio visuais as quais nos
possibilitou a reconstituição de fatos memorialísticos sobre ela, além de uma breve
pesquisa histórica sobre a Rua Chile, local o qual sua presença foi imortalizada.
Fig. 1 Matéria
4. A Rua Chile : Contexto e habitat da MULHER ROXO A Tarde Rua Chile
Inicialmente batizada por Rua dos Mercadores, em 1549, Rua Chile tal qual
conhecemos hoje em dia, só foi batizada, com este nome, em 1902, através da Lei
577 de 18 de julho de 1902, em homenagem à Marinha de Guerra Chilena, que
visitava o Brasil, sob o comando de Lorde Cochrane. Comando o qual assegurou-se
a independência do Chile e do Peru (1819 -10822), e mais tarde tendo o Lorde
Foto Nossa
Cochrane assumido a Esquadra Nacional, participou dos eventos que resultaram na
Independência do Brasil, em 1822. Por esse viés, políticos e população local,
acreditavam justa a homenagem (DOREA, 2006, p. 159-160).
Em sua tese para doutorado, Oliveira (2008, p. 84) analisa que a mudança de
nome da rua não ocorreu como um subterfugio de valorização, ao contrário, ocorreu
justamente por ser a Rua Chile, o centro pulsante da comunidade soteropolitana.
Cadena (2004, apud FONTES, 2004 p. 14 - 15) enfatiza a importância da rua ao
declará-la como o local onde brotavam as informações, “Entrevistadores e
entrevistados, jornalistas e suas fontes viviam a Chile, 24 horas por dia,
frequentavam os mesmos lugares, os mesmos ambientes.” Salienta o autor que 51
publicações tiveram suas oficinas ou redação localizadas na Rua Chile e entornos,
dentre 1830 e 1975. Caracteriza ainda a Rua
Chile como o centro político e intelectual da
Bahia, além de resguardar características
boemia, o que resvalava o respeito dos
soteropolitanos por essa rua.
A Rua Chile está limitada pelas Praças Castro Alves e Tomé de Souza (Praça
Municipal), nas suas mediações temos ainda a Rua da Ajuda, a Ladeira da Praça, a
Rua do Tira o Chapéu, Rua do Tesouro e Rua da Vassoura, além da Rua da
Misericórdia e da Praça da Sé.
Fonte: TRANSALVADOR
Em 1912, no Governo de JJ Seabra, a Rua foi alargada e estendida até a
Praça Castro Alves. Para tanto fora necessário a derrubada dos prédios que
ocupavam o lado leste bem como da Igreja da Ajuda que na época situava-se à Rua
Chile, sendo reconstruída em 1923, desta vez, na rua de mesmo nome (G1 Bahia).
Fig.4 Rua Chile antes do alargamento Fig.5 Rua Chile depois do alargamento
Mas não importa se no seu auge ou na sua fase mais infeliz, havia alguém a
quem essa mudança não abalava. Alguém que não tivera sua rotina modificada ou
que se sentira atraída a trocar o calor da Rua Chile pelo gelado ar condicionado do
novo point da cidade. Ela que esteve lá quando a Rua Chile era a passarela da
moda, também se manteve nela, agora que não era mais que um reduto de
malandros e marginalizados. Até que seus pés lhe levassem, forçosamente, a outros
caminhos, Florinda, a Mulher de Roxo, permaneceria lá, na sua Rua, na Rua Chile.
Desde o meado dos anos de 1960 que ela fazia parte do cotidiano da Rua
Chile. Misturada com as pessoas que iam e viam, e ao mesmo tempo distinta e
afastada daquele meio, ao qual já não pertencia – se é que alguma vez pertencera,
– perambulava uma mulher. Florinda, Nair ou Doralice, eram nomes com os quais se
autodenominava e que dava aos curiosos que a indagavam, quando de bom humor.
Para muitos, para a grande maioria, ela era apenas a Mulher de Roxo.
Toda narrativa, que aqui é descrita, foi fruto de pesquisa em textos, nas mais
variadas fontes, bem como memórias e lembranças colhidas, por meio de entrevista
feitas com pessoas que de alguma forma, conheceram a sua história, ou viveram no
tempo em que a Mulher de Roxo, como uma lenda,povoava o imaginário da cidade,
basicamente dos transeuntes da Rua Chile
Autora da única obra biográfica referente a esta personagem, ou seria
personalidade baiana, Moura (2009 p.11) a descreve como
Faz sentido, neste momento, que seja trazido o conceito de lenda urbana,
haja vista como identificamos o nosso objeto. Segundo Lopes (2008, p. 374), lenda
urbana seriam “histórias que envolvem elementos ou situações banais do cotidiano,
mas que por seu caráter inusitado, ou em muitos casos absurdos, provavelmente
não aconteceram.” Para Dion (2008, p. 3), no entanto, a lenda urbana consiste em
uma narrativa oral, popular, coletiva, anônima, dotada do senso de verdade que
perpetua no conhecimento público e na cultura informal.
Uma vez que se propõem históricas e factuais, [as lendas] devem ser
associadas na mente da comunidade com algum indivíduo
conhecido, marco geográfico ou episódio particular. Todos ou muitos
dos membros de um dado grupo social terão ouvido falar da tradição
e podem se lembrar dela de forma breve ou elaborada. Esse é de
fato um dos principais testes da lenda: que ela seja conhecida por
um número de pessoas unidas em sua área de residência, ocupação,
nacionalidade ou crença.
Nosso objetivo ao abordar os aspectos da lenda urbana é mostrar como
foram trançadas as teias da história da Mulher de Roxo, história que perpetua não
apenas no imaginário daqueles que viveram no seu tempo, mas recontada, através
da transmissão oral, geração após geração.
De acordo com Félix (1995, p. 101) tal lenda surge por volta da década de 60,
num prostíbulo chamado Buraco Doce, que o autor o referencia como “o lugar onde
trabalhavam as mulheres mais liberadas e desprovidas de qualquer preconceito
sexual para época”. Moura (2009), ainda reafirma que o local onde ficava o
prostíbulo era de posse da Santa Casa da Misericórdia.
Nos relatos de Félix (1995), ela era uma moça bonita, com um porte elegante,
trajando roupas e jóias caras. Cabelos longos e negros, chamava a atenção dos
homens, não apenas os que frequentavam o local. Não ficou por muito tempo nesta
casa, não era característica sua misturar-se com qualquer tipo de pessoa,
principalmente com aquelas que viviam naquele ambiente. Ao descobrir as ruas do
Centro Histórico, decidiu entregar-se a elas por definitivo, surgindo daí a Mulher de
Roxo. A princípio dormia na rua e só depois recorreu ao acolhimento do Albergue na
Baixa dos Sapateiros, conforme nos conta Moura (2009, p.27,62).
1
SELMA SANTOS, atriz, formada na escola de Teatro da UFBA, interpretou a Mulher de Roxo no teatro em 2013
e foi bastante aclamada pela crítica. Atualmente Selma trabalha como produtora Cultural.
vestimenta, caracterizando-a como vestes pesadas, volumosas, de corte reto e
simples, sem muitos adornos. Diz-nos a atriz:
Este adorno era um dos elementos que a caracterizava e que faz parte da
lembrança dos entrevistados. Não somente o imenso crucifixo, mas agregado a ele,
um manto grosso e roxo, que a cobria por completo, o que designava o apelido pelo
qual a conhecemos até hoje.
A maneira como se vestia, eu achava estranho. Me dava medo, eu achava que ela
era maluca. A via conversando com alguns vendedores, ou falando sozinha e depois
saia. Andava, andava, andava... Não
Fig. 12 – Mulher de Roxo caminhando (Freira)
tinha coragem de me aproximar.Não a
via fazer mal a ninguém. Sempre
andando tranquilamente. Ela era
muito fechada. Nunca a vi olhar
para trás.
Entre outras características,
Moura (2009) a descreve como uma
2
Sloper – Uma das primeiras lojas de departamento de Salvador, vendia desde perfumes, maquiagens e joias a
roupas, bolsas e chapéus. JORNAL CORREIO DA BAHIA (https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/que-
saudade-relembre-10-lugares-que-os-soteropolitanos-mais-sentem-falta/)
pessoa que, embora parecesse de fina estirpe, não apresentava nenhum sinal de
gosto ou interesse por jóias. Todavia, parecia gostar de anéis e usava uma aliança
(uma bijuteria) e um anel de pedra vermelha nos dedos anelares ou médios.
Em algumas situações, ainda descritas por Moura (2009), trocava o véu por
uma coroa feita de latão, possivelmente por ela mesma confeccionada, a qual
prendia à cabeça com a ajuda de dois pedaços de barbantes unidos por baixo do
queixo, sobre longa trança e um manto por cima dos ombros.
D. Edna Garcia, 78 anos, lembra-se dela como uma mulher vaidosa. Relata
que em algumas aparições, estava exageradamente maquiada, com a boca pintada
com batom vermelho e bastante rouge nas bochechas.
Era muito vaidosa, andava sempre com muita maquiagem. Tinha os lábios e a
bochecha bem vermelhas de maquiagem. E sempre muito fechada. Raramente a vi
sorrir.
Ela não fazia mal a ninguém mas as pessoas tinham muito medo dela. Às vezes
mandavam expulsar ela da porta do hotel porque os clientes não gostavam.
No livro de Moura (2009, p. 20) consta que ela andava descalça e que o
grosso asfalto, por vezes quente, não a incomodava, ao contrário, tornava-se o seu
bel-prazer, reinando na rua da qual se sentia dona – como costumava referir-se à
Rua Chile. Complementando o seu traje, algumas vezes dele fazia parte uma bota
Sete Léguas.3³
3
Em 1961 a empresa paulista Alpargatas lança uma bota de borracha vulcanizada para uso diário daqueles que
trabalhavam na agricultura, agropecuária, construção civil e outras ocupações árduas, que exigiam excelente
proteção para os pés. Em 1970, foi lançado o primeiro produto em PVC, inicialmente preto, posteriormente
branca com o objetivo de atender trabalhadores de frigoríficos, indústrias alimentícias, laticínios, apiários,
entre outros segmentos. Em 1976, a marca (Sete Léguas) expandiu seus domínios ao ramo da moda,
Fonte: Arquivo Histórico
inicialmente tendoMunicipal de Salvador
como foco o público infanto-juvenil com a proposta de um calçado para os dias de chuva.
Fundação Gregório de Matos
(http://mundodasmarcas.blogspot.com/2009/10/sete-leguas.html)
Entre seus objetos pessoais, ainda segundo a autora, contabiliza uns óculos
escuros - que preferia carregar pendurado nas vestes; alguns terços – que levava
sempre enrolado nas mãos; uma bolsinha preta de nylon; um grande livro preto e
outros dois crucifixos, além do crucifixo gigante de madeira, já mencionado.
Fonte: Jornal Tribuna Da Bahia Fonte: Arquivo Histórico Municipal Fonte: Arquivo Histórico Municipal
De Salvador - Fundação Gregório De Salvador - Fundação Gregório
De Matos De Matos
Essa veia religiosa pode ser constatada pela sua presença frequente nas
festas dedicadas à Santa Therezinha e à Santa Rita. Em ambas não faltava à missa,
durante a qual, punha-se, de pé, no fundo da igreja e, por não querer ser notada,
antes do seu término, retirava-se. Como testemunha de tal comportamento, Vanessa
Santos, relembra uma das histórias narradas por sua mãe:
Minha mãe era muito envolvida com festas religiosas e conta que ela entrou na
missa e não tinha mais lugar para sentar porque a igreja estava cheia. Minha mãe
então tentou levar ela mais para frente. Ela olhou para minha mãe e saiu da igreja.
Minha mãe disse que desde então, sempre que encontrava com ela numa igreja,
nunca falava com ela. Deixava ela quietinha no canto dela, porque se ela
percebesse que alguém estava percebendo a presença dela, ela ia embora.
Fig 7. Esmolas
Florinda, Nair ou Doralice, a Mulher de Roxo, como uma lenda urbana, como
todas as lendas, possui em sua história elementos envolvidos que emergem de um
passado, e instiga o presente daqueles que viveram no seu tempo, bem como
daqueles que, na contemporaneidade, buscam desvendá-lo. Como uma fonte
inesgotável de versões, alimenta o imaginário popular, gerando versões do passado
como lhes trago agora.
Toda história está passível de ser narrada das mais diversas formas, em
tempos e espaços diversos. Ressignificar o passado, presentificá-lo faz parte desta
construção. A história da Mulher de Roxo não está liberta, portanto de ter múltiplas
versões do seu passado.
Livros
Versão 02: Apresentava-se como uma jovem viúva de militar (não se sabe de
qual força armada), cujo marido, à serviço na 2ª Guerra Mundial, sumira sem que ela
tivesse nenhuma informação sobre seu paradeiro. (p.31)
Versão 03: Já se apresentou como uma freira, enclausurada pelos pais num
convento longe de Salvador a fim de afastá-la dos pretendentes gananciosos, mas
que ao envolver-se com um trabalhador do referido convento, fora expulsa pelas
freiras e ficara com vergonha de retornar para a casa dos pais. (p.27-28)
Neste ponto, abrimos um parêntese para uma situação oriunda de uma das
suas versões sobre sua origem, relatada nos escritos de Moura (2009). Por
questões das suas anedotas, Moura (2009, p.32) relata que certa feita fora parar em
São Sebastião do Passé, de onde contou ter vivido. Um dos médico do Albergue
onde pernoitava, ao ouvir a história, resolveu ajudá-la. Colocou-a num carro e a
deixou na referida cidade, com alguns trocados, intencionando que alguém a
reconhecesse ou que ela lembrasse de algo mais relevante e voltou a Salvador.
Nos seus relatos, Moura (2009, p.33) conta que poucos dias depois, ela
desembarcava na Rodoviária de Salvador, já nas proximidades do antigo shopping
Iguatemi, e de lá seguira em direção à Rua Chile, pois estava saudosa de casa.
Desde de então evitava qualquer comentário sobre sua origem principalmente na
presença do referido médico.
Anísio Félix, PeloPelourinho5
Jornais
6
Idealizado por Álvaro Guimarães e Armindo Bião, o jornal circulou por Salvador em 22 edições entre Outubro
de 1971 e julho de 1972, Era uma espécie de jornalismo pautado no comportamento da contracultura, com
outra forma de fazer política. Com colaboradores como Nego Nízio, Marco Antonio Queiroz, Gumé Tavares,
Luciano Diniz e Luiz Café e a Nigrinha do Verbo.
7
Jornal baiano diário e vespertino fundado por Manuel da Silva Lopes Cardoso e lançado no dia 13 de março de
1875. Saiu de circulação em 1980. Integrava os Diários Associados, juntamente com a TV Itapoan (emissora
local da Rede Tupi de Televisão), a Rádio Sociedade da Bahia e a Itapoan FM.
8
Fundado há 30 anos, faz parte da Rede Bahia, composta por outras 14 empresas, sendo um grupo empresarial
que atua dentro e fora da Bahia, nos segmentos de Mídia, Conteúdo e Entretenimento, suas empresas de
Sob o Título de Quem sabe a história da Mulher de Roxo?, o jornal do dia 10
de Dezembro de 1980, conta com detalhes, como era o dia-a-dia de Florinda, na
presente época. Dentre outros detalhes, em uma entrevista exclusiva, e meio que a
contra-gosto, a Mulher de Roxo se apresenta como Florinda. Dodó para a família, e
formada em Ciências e Letras, estudando em casa sob orientação do professor
Mascarenhas, pois seus pais Lídia Bibano Caetano e João Bento Caetano eram
muito rigorosos. Ainda conta que seu pai trabalhava na Fratelli Vita 9 e que
costumava visitar uma família cujo o nome não soou nítido ao repórter e ela negou-
se a repetir, situada no endereço - Roma, 220. Dados que chegaram a considerá-la
como uma das integrantes da família Libânio, influente em Gandu, mas nada fora
comprovado.
Jornal A Tarde10
9
Seu ciclo de vida corresponde entre 1920 a 1972. Inicialmente uma fábrica de refrigerantes de frutas, famosa
pelas suas gasosas. Entre 1950 e 1960, iniciou-se em paralelo, a fabricação de cristais, que chegaram a ficar
reconhecidos internacionalmente pela sua qualidade e beleza. Em 1972, a Bhrama comprou a marca e o
prédio.
10
Fundado por Ernesto Simões Filho, é o mais antigo jornal impresso baiano em circulação e um dos mais
antigos do Brasil, Tendo iniciado suas atividades em 15 de outubro de 1912
Blogs
Neste blog, o autor, narra todas essas versões já listadas, contudo, finaliza
seu texto sobre Florinda de forma lírica, que achamos plausível transcrevê-la:
Em Especial transmitido pela TVE Bahia, em 2003, outro relato popular conta
a história de uma garota de família tradicional que, ainda criança, tendo a mãe
descoberto as traições do pai, e resolvido se vingar, atira no marido e em seguida,
desorientada, exterminar a própria vida, tragédia que foi presenciada pela criança. A
garota, então órfã e vivendo com familiares, jamais superou o que presenciara, e ao
completar maior idade, fugiu para esconder-se do seu próprio passado. Essa história
também consta na biografia escrita por Moura (2009, p. 29-30)
Entrevistas
11
Gutemberg Cruz é Jornalista, formado pela escola de Biblioteconomia e Comunicação da UFBA em 1979.
Tendo atuado profissionalmente nos jornais Tribuna da Bahia, Diário de Notícias, Correio da Bahia, A tarde e
Bahia Hoje como repórter, redator e editor de cultura, além de outros meios de comunicação. Atualmente é
Coordenador de Comunicação na união dos Municípios da Bahia.
12
O Doc-drama Mulher de Roxo foi produzido pelo Polo de teledramaturgia da Bahia como componente de um
projeto que envolvem outros cinco curtas, sendo este o primeiro. Consta de 12 minutos e tem direção de
Fernando Guerreiro e José Américo Moreira da Silva, do seu elenco emergem nomes como Haydil Linhares,
Emanuelle Araújo e Verônica Macedo.
Senhor de 87 anos, conheceu a Mulher de Roxo quando era funcionário do
Palace Hotel. Ele afirma que Florinda, perdeu o juízo por que fora noiva de um dos
donos da Sloper e este a preteriu ao ter resolvido casar-se com sua sobrinha.
A História que a mãe de Vanessa, 20 anos, lhe contou foi outra.Ela teria
fugido do convento em que vivia e a família a deserdou, por esse motivo, o
namorado por quem deixara tudo, a abandonou. Sem dinheiro, sem família, sozinha,
fora viver nas ruas.
Aos 62 anos, via a Mulher de Roxo caminhando pela Rua Chile. Ela abraça a
história de que Florinda era uma professora e ficou louca após ser abandonada no
altar.
Com 77 anos, também foi uma testemunha ocular dos tempos em que
Florinda caminhava pela Chile. Ela afirma que, uma fonte segura prova que Florinda
tivera um romance que acabou por gerar uma vida, cuja família, tradicional,
conseguiu esconder. Quando a criança nasceufoi ela não teve acesso e a criança
lhe foi tirada do convívio, fato esse que lhe tirou a razão.
Com exatos 50 anos, Lucimar lembra que tinha muito medo da Mulher de Roxo. Seu
palpite é que ela tenha sido exilada em algum convento, provavelmente, pelo pai
autoritário, que queria afastá-la de seu grande amor. Com isso, ela adotou o roxo
numa forma de luto eterno. Um dia, conseguiu fugir, como não encontrou seu amor,
enlouqueceu e ficou a vagar pelas ruas onde se encontravam.
Se a sua origem é baseada em especulações, o mesmo não ocorreu com
seus últimos dias de vida. Pelas três décadas que transitava, sob chuva ou sol, a
sua ausência foi, se não sentida, ao menos percebida, por várias pessoas que
faziam da Chile o seu caminho diário, seja para labuta ou outros compromissos.
Dessa forma, alguns jornais se encarregaram de noticiar sobre os seus últimos
passos, até o seu último suspiro.
Não se sabe se fora mãe ou de quem fora filha, onde nascera, que tipo de
escola frequentara, se é que frequentou. Notava-se bons modos e postura austera,
conforme muitos dos relatos aqui descritos. Florinda foi internada no Hospital Santo
Antônio, das Obras Assistenciais de Irmã Dulce, em 1991, com os pés totalmente
ulcerados, resultantes da erisipela. O “esquecimento” se deu quando justamente a
doença começou a alastrar e a afastou dos seus passeios rotineiros.
Mulher de Roxo, Florinda, seja ela quem for, gravada está no imaginário da
população de Salvador. Como uma personagem, como a considera Moura (2009,
pg11),
Neste capítulo iremos informar quais métodos foram utilizados para realização
desta pesquisa, bem como os instrumentos para coleta de dados, o cenário e os
indivíduos participantes dessa investigação.
Optamos pela abordagem qualitativa, que segundo Minayo (2001, apud
SILVEIRA e CÓRDOVA, 2009, p.31)
Trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais
profundo das relações, dos processos e dos fenômenos, que não
podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.
Trabalhamos aqui com a ideia de que o nosso objeto não pode ser
contabilizado e muito menos transformado em estáticas. Analisamos os seus modos,
como vivia, como comportava-se com o meio e como o meio comportava-se com o
nosso objeto, desta forma a caracterizamos ainda como uma pesquisa descritiva,
haja vista, nos propusemos a delinear os passos da Mulher de Roxo, analisando as
formas como era vista pela sociedade da época e da atualidade, além de conjecturar
os motivos da sua fama inusitada.
Através de um levantamento documental e de narrativas colhidas por meio de
entrevistas e questionários, com cerca de 10 questões cada, definimos os
instrumentos de coleta de dados. Na elaboração das perguntas, focamos nas
lembranças guardadas ao evocar a Mulher de Roxo, os sentimentos e sensações
que ela ainda transmitia.
Distribuímos o questionário através das redes sociais, solicitando àqueles que
conheceram em vida ou que de alguma outra forma tiveram ciência da existência da
Mulher de Roxo, dedicasse um pouco do seu tempo à responde-lo. 21 pessoas
atenderam o nosso apelo. Além disso, fomos em busca da Atriz que interpretou a
Mulher de Roxo no Teatro – Selma Santos, da autora do livro “Mulher de Roxo” –
Patrícia Sá Moura e de pelo menos uma pessoa que tivesse trabalhado nas
mediações da Rua Chile quando a sua existência, por sorte, conseguimos conversar
com o Sr. João Brandão, comerciante local.
Para situarmos o trabalho na nossa área de atuação, foi necessário
embasarmos em conceitos de história, memória e identidade aos quais recorremos à
autores como Le Goff, Nora, Halbwachs, Pollack, Ricoeur, entre outros.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS