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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Instituto de Ciência da informação


Curso de Arquivologia

TAÍS DO VALE FIGUEIREDO MORAIS DOS SANTOS

A RUA CHILE VESTIDA DE ROXO: UMA LENDA REVIVIDA PELA


MEMÓRIA

Salvador
2018
TAIS DO VALE FIGUEIREDO MORAIS DOS SANTOS

A RUA CHILE VESTIDA DE ROXO: UMA LENDA REVIVIDA PELA


MEMÓRIA

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Instituto de Ciência da
Informação, da Universidade Federal da
Bahia, como requisito parcial à obtenção
do título de Bacharel em Arquivologia.

Orientadora: Profa. Dra. Alzira Gondim


Tude de Sá

Salvador
2018
B238h Morais, Taís do Vale Figueiredo. A Rua Chile vestida de roxo: Uma lenda
revivida pela memória / Taís do Vale Figueiredo Morais dos Santos – 2018.

49 f. : il.

Orientadora: Profa. Dra. Alzira Gondim Tude de Sá. Trabalho de Conclusão deCurso
(graduação) – Universidade Federal da Bahia. Instituto de Ciência da Informação,
Salvador, 2018.

1. Memória. 2. Fotografia. 3. Instituto de Ciência da Informação.


. I. Sá, Alzira Gondim Tude de. II. Universidade Federal
da Bahia. III. Título.

CDD - 23. ed.


TAÍS DO VALE FIGUEIREDO MORAIS DOS SANTOS

A Rua Chile vestida de roxo: Uma lenda revivida pela memória

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduaçãoem


Arquivologia, do Instituto de Ciência da Informação da Universidade Federal da
Bahia, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Arquivologia.

Aprovado em 21 de dezembro de 2018.

_____________________________________________________
Alzira Gondim Tude de Sá - ICI/UFBA
Doutora em Ciência da Informação pela UFBA
(Orientadora)

_______________________________________________________
Leyde Klébia Rodrigues da Silva - ICI/UFBA
Mestre em Ciência da Informação pela UFPB
(Avaliadora)

________________________________________________________
Ivana Lins
Doutora em Ciência da Informação pela UFBA
(Avaliadora)
DEDICATÓRIA

À Florinda (in Memoriam), a Mulher de Roxo, pela inspiração


Aos meus pais, pela força e educação.
Aos meus irmãos, pelo incentivo.
À minha orientadora, pelo encorajamento.
Ao meu Marido, pelo apoio incondicional.
À minha sogra, pela amizade e paciência.
Aos meus filhos e sobrinho, por serem minha motivação.
À minha Dinda e à minha avó, pela torcida.
À minha prima, amiga, comadre, parceira, confidente, irmã:
Renata Lee Maia de Sousa (in Memoriam), por todos os momentos.
AGRADECIMENTOS
Não tendo como fugir do clichê, agradeço, primeiramente à Deus, que guia os
meus passos e rege a minha vida. Aos meus pais, Sérgio e Lucimar, por acreditarem
nos meus sonhos. Aos meus irmãos Taiana e Tárcio, pela força e incentivo, algumas
vezes tendo participado mais ativamente desta jornada. A minha dinda, Rosa, o meu
dindo, Jurandir e a minha avó, Aída, pelas palavras de apoio, todas as vezes que
pensei em desistir. À minha sogra, Hilda, pela empatia e solidariedade.
Agradeço à Universidade Federal da Bahia, especificamente ao Instituto de
Ciências da Informação, pela oportunidade de adentrar as suas portas e inebriar-me
do conhecimento daqueles os quais abarca. À minha querida orientadora, mestra e
amiga, Alzira Gondim Tude de Sá, que acreditou neste trabalho quando ainda nem
era um projeto, desde o seu início, no primeiro semestre ainda, apenas um desejo,
uma vaga ideia.
Agradeço a todos os meus familiares: Tios e Tias, Cunhados e Cunhadas,
Sobrinhos e Sobrinhas, Primos e Primas, aqui representados na imagem de Maria
Gorete, que tanto contribuiu para finalização deste Projeto, algumas vezes como se
dela próprio.
Agradeço aos amigos de ontem, de hoje, de sempre. Aos da faculdade e aos
de fora dela. À Amiga Taty, que compreendeu todas as vezes que tive que furar um
encontro. À amiga Chiquinha que justo agora que meu Carocinho está chegando,
precisei me ausentar. À Marly, Aninha, Dri, amores que a UFBA trouxe para minha
vida. Guida e Gaby, que dividiram essa temporada comigo (três TCCs à seis mãos!).
Ainda aqueles que não foram citados, mas nem por isso esquecidos.
Por fim, e não menos importante, agradeço às três principais motivações para
que a cada passo para trás, buscasse força no meu interior para dar dois, três a
frente: Meus maiores Tesouros – Diogo Luís, Almerinda Letícia e Álvaro Levy, cada
momento de superação, foi porque vocês estavam presentes todo o tempo, ainda
que em pensamentos.
E para quem acha que esqueci, impossível! Agradeço principalmente ao meu
Marido (assim mesmo com m maiúsculo) pelas sacudidas, pelas palavras duras mas
necessárias, e também pelo carinho, pelo cafuné, pelo abraço nos momentos de
desespero e, acima de tudo, pelo suporte, amor, companheirismo e compreensão.
À todos vocês e a muito mais, os meus eternos agradecimentos!
Quando a lenda for mais interessante que a realidade,
Publique a lenda.

John Ford
MORAIS, Taís do Vale Figueiredo. A Rua Chile vestida de roxo: Uma lenda
revivida pela memória. 49 f. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) –
Instituto de Ciência da Informação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
.

RESUMO

O presente trabalho objetiva, fundamentado no tripé história, memória e identidade,


analisar a gênese e propagação de uma lenda urbana inspirada na vida de uma
mulher, cognominada de - A Mulher de Roxo, figura lendária do século XX, que
“residia” na Rua Chile, em Salvador. Para atingir o objetivo proposto, coletar as
informações necessárias, foi preciso que um levantamento bibliográfico fosse
realizado, bem como uma exaustiva pesquisa documental em jornais, mídias
televisivas, blogs, entre outros. A pesquisa quanto a sua natureza caracteriza-se
como, básica, e quanto aos seus objetivos como descritiva, haja vista seu escopo é
apresentar ao leitor, a Mulher de Roxo e sua passagem de segredos e mistérios que
povoa o imaginário dos soteropolitanos, ainda que mais de 20 anos depois da sua
morte. Assimila-se como um estudo de caso, no qual, como instrumento de
pesquisa, a entrevista foi utilizada na coleta da história oral realizada com pessoas
que tiveram a oportunidade de viver na mesma época ou de alguma outra forma,
terem tomado conhecimento da sua existência. O trabalho discorre sobre a vida a
Mulher de Roxo, traçando um percurso desde a sua origem, seu provável
aparecimento na Rua Chile, até sua morte no Hospital Santo Antônio das Obras
Assistenciais de Irmã Dulce. Contextualiza o seu habitat, ao narrar fatos históricos
sobre a Rua Chile, e ao enfatizar os textos e falas que sobre ela foram escritas e
ditas, busca as convergências e divergências construtoras desta lenda urbana,
encarnada pela Mulher de Roxo, que levam-nos a confirmação de que toda lenda
consiste em uma narrativa oral, popular, coletiva, anônima, dotada do senso de
verdade que perpetua no conhecimento público e na cultura informal.

Palavras-chaves:Memória, História, Identidade, Rua Chile, Mulher de Roxo


Morais, Tais do Vale Figueiredo. Chile streetdressed in purple: a
legendrevivedbymemory.49 f. 2018. WorkCompletionofCourse (graduation) -
InstituteofInformation Science, Federal Universityof Bahia, Salvador, 2018.

ABSTRACT

Keywords :Memory, History, Identity, Chile Street, WomanofPurple


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO
2 HISTÓRIA E MEMÓRIA: Reflexões
3 MEMÓRIA INDIVIDUAL E COOLETIVA COMO CONSTRUTORAS DE
IDENTIDADE
4 MULHER DE ROXO: CONTEXTO E HABITAT - A Rua Chile
5 TEXTOS E FALAS SOBRE UMA LENDA URBANA
5.1 Versões do passado
5.2 Os últimos passos de uma lenda
6 O CAMINHO PERCORRIDO: No encalço da Mulher de Roxo
7. RESTOS E FRAGMENTOS: Colhendo lembranças e recordações
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
Para que pudéssemos desenvolver este trabalho que pretende investigar
sobre a vida da Mulher de Roxo, uma mulher enigmática que elegeu como lugar de
morada uma das ruas mais frequentadas de Salvador, a rua Chile, buscamos
entender ou mesmo definir os conceitos de memória e em especial de memória
coletiva e identidade o seu funcionamento, na tentativa de compreender como esta
lenda urbana, como é considerada, povoou o imaginário de uma grande parcela da
cidade de Salvador.
Quando entrei na Academia tive informações, superficiais, sobre esta lenda.
De imediato surgiu em mim o desejo de aprofundar nos seus mistérios. Como aluna
de Arquivologia, eu não conseguia conceber a ideia de alguém sobreviver tanto
tempo na memória de um povo sem dela ter nada registrado, nada que a
identificasse, sua origem, sua vida, seu fim. Sem nenhum registro de quem é ou de
quem foi um dia. Tal como uma lenda, surgindo num dia qualquer, sem virtudes ou
pecados, sem rastros ou pegadas.
Através de um post de uma rede social, a curiosidade suscitada instigou-me
ao ponto de que, sem nem ao menos saber o que esperar do meu futuro acadêmico,
eu já havia escolhido o tema de minha investigação de final de curso. A partir de
então, debrucei-me a investigar: Como haveria ocorrido a propagação da lenda
Urbana Mulher de Roxo?
Na busca de respostas, procurei primeiramente entender as entrelinhas desta
história, questionava-me as formas que, mesmo sem nenhum registro que a
identificasse, como essa personagem conseguia sobreviver décadas, mesmo após a
sua morte? Oriundo desse questionamento, objetivamos analisar como perpetuou a
história de vida da Mulher de Roxo, geração pós geração. Como objetivos
específicos, estudaremos a relação entre memória e história, no tangente da
transmissão oral ememória individual e coletiva como formadores de identidade.
Para realização deste trabalho, elegemos a Rua Chile em Salvador, como
referencial e como recorte os frequentadores ou assíduos que, de alguma forma lhe
tiveram algum contato com o objeto desta pesquisa – A Mulher de roxo, seja visual
ou apenas por ouvir falar.
Por se tratar de uma pesquisa biográfica, seguimos alguns requisitos próprios
a esse tipo de pesquisa, segundo Delory-Momberger (2012, p.523):
O projeto fundador da pesquisa biográfica inscreve-se no quadro de
uma das questões centrais da antropologia social, que é a da
constituição individual: Como os indivíduos se tornam indivíduos?
Logo, essa questão convoca muitas outras concernentes ao
complexo de relações entre o indivíduo e suas inscrições e entornos
(históricos, sociais, culturais, linguísticos, econômicos, políticos);
entre o indivíduo e as representações que ele faz de si próprio e das
suas relações com os outros; entre o indivíduo e a dimensão
temporal de sua existência.

Para a autora, é fundamental na pesquisa biográfica situar o objeto ao seu


meio e ao tempo, como meio de dar forma a suas experiências e significado às
situações e acontecimentos nos quais estão inseridos. Uma espécie de abordagem
dos “estudos dos modos de constituição do indivíduo enquanto ser social e singular.
[...] Singularidade informada pelo social, no sentido em que o social lhe dá seu
quadro e seus materiais.” (DELORY-MOMBERGER, 2012 p. 524) Com base nisso,
trouxemos os elementos da Rua Chile, a fim de situar a Mulher de Roxo, no tempo e
espaço da sua existência.
Com a finalidade de remontar as peças da sua história, buscamos relatos da
sua passagem em vida nos livros, jornais e outras mídias, além de entrevistas com
pessoas que tiveram acesso à sua existência. Utilizamos o método de abordagem
descritiva para delinear os resultados encontrados, comum numa pesquisa
biográfica.
No presente trabalho, o primeiro capítulo constitui um referencial teórico sobre
história e memória, conceitos e associações, onde buscamos embasar as
considerações nas falas de autores que debruçaram-se sobre o tema. No segundo
capítulo, segundo a lógica do primeiro, fazemos uma ligação entre memória
individual e memória coletiva com a construção da identidade, seguindo o referencial
de Lira (2004) e a co-relação entre memória e identidade. Sequencialmente,
adentramos o nosso objeto, começando pelo recorte do espaço em que vivia, a Rua
Chile, e uma pequena apreciação histórica, vinculando, como já mencionado, o
nosso objeto no tempo e espaço é a abordagem do quarto capítulo deste trabalho.
Por conseguinte, no quinto capítulo, apresentamos o objeto ao leitor, traçamos os
caminhos trilhados pela Mulher de Roxo, seus hábitos e costumes, referenciado em
livros, jornais e depoimentos.
Ainda dentro deste capítulo, no subcapítulo cinco ponto um, apresentamos as
versões populares e da mídia da época sobre qual seria a sua origem, e, finalizamos
o capítulo, com o subcapítulo cinco ponto dois, retratando sua vida pós Rua Chile e
as circunstâncias da sua morte.
No Capítulo seis apresentamos a metodologia trabalhada, enquanto o
capítulo sete é um apanhado de materiais garimpados como suporte para
composição da pesquisa.
Nas considerações finais abordamos os resultados propostos que a pesquisa
nos proporcionou afirmar.

2. HISTÓRIA E MEMÓRIA: Reflexões

Para discorrer sobre o tema que nos propusemos discutir, memória e


memória coletiva, foi preciso que nos debruçássemos sobre a história e sobre
alguns conceitos que tentam explicitá-las.

Desde os gregos, que buscavam explicar o mundo através dos mitos e dos
deuses, que a memória ocupa um lugar significativo a qual recebe o nome de
Mnemosine, a mãe das Musas, protetora das artes e da história. Como acreditavam
que ao externar a memória ela enfraquecia e seria apagada,Kessel (200_) corrobora
que estes desenvolveram algumas técnicas que preservavam as lembranças sem
necessariamente deixar de externá-las.

Os romanos, que por sua vez, acreditavam na memória como objeto


indispensável à arte retórica, negava aos seus oradores o direito de recorrer aos
registros escritos. No período medieval a memória litúrgica era ligada aos santos.
Uma forma dos cristãos e judeus eternizarem sua fé era, através de datas que
homenageiam os seus feitos (milagres), nascimento e/ou morte. No judaísmo, tanto
quanto no Cristianismo, os acontecimentos e milagres eram rememorados através
de comemorações que louvavam os santos e mártires sendo reverenciados em
datas precisas e especiais.

Em tempos mais recentes, VonSimson (2006, p. 1) traduz a memória como “a


capacidade humana de reter fatos e experiências do passado e retransmiti-los às
novas gerações através de diferentes suportes empíricos (voz, música, imagem,
textos, etc.)”. Como uma área de estudo multidisciplinar, a memória vem sendo
tratada como um conjunto de vivências e experiências passadas e construídas no
presente. Por mais individual que seja a lembrança, ela sempre terá a influência do
coletivo, haja vista que o indivíduo sempre estar em contato com o meio em que
vive, o que lhe fomenta o sentimento de identidade, de pertencimento a um grupo.

Sobre história, Le Goff (1990, p.9) define que se trata de “[...] uma realidade
que não é nem construída, nem observada como na matemática, nas ciências da
natureza e nas ciências da vida, mas sobre a qual se ‘indaga’, ‘se testemunha’”. Na
perspectiva de Sá (2015, p. 262) história é como “uma prática científica, restrita a
especialistas e conduzida segundo regras institucionalizadas” e memória como “uma
prática social exercida por todos e quaisquer membros de uma dada sociedade
humana.” No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, memória é a “faculdade de
reter as ideias, impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente; Lembrança,
reminiscência; recordação; [...]; Vestígio, lembrança, sinal.”

Salientando que memória e história estão comumente interligadas num


mesmo ponto, Sá (2015, p. 262) ainda completa que, a interlocução destas duas
áreas necessita, de forma costumeira, da interferência de outras ciências sociais
como a sociologia e a psicologia para que, enfim, possam se corresponder.

Como uma área de estudo multidisciplinar, a memória vem sendo tratada


como um conjunto de vivências e experiências passadas e construídas no presente.
Por mais individual que seja a lembrança, ela sempre terá a influência do coletivo,
haja vista que o indivíduo sempre estar em contato com o meio em que vive, o que
lhe fomenta o sentimento de identidade, de pertencimento a um grupo.

De acordo com os estudos desenvolvidos por Kessel (200_, p. 3), esta


influência que afeta o homem, não advém exclusivamente do contato estabelecido
com o que lhe é externo, a memória também é construída pelo que chamamos de
influência interna e inconsciente que se manifesta através do afeto, censura ou
medo. Não se pode ausentar deste processo a linguagem que é uma das fontes da
memória coletiva que age como instrumento social aproximando tais vivências por
mais contrárias que sejam. Halbwachs (2004, p.26) elucida que:

Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um


acontecimento do passado para se obter uma lembrança; é
necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de
noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no
dos outros, porque elas passam incessantemente desses para
aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam
a fazer parte de uma mesma sociedade.

Os lugares também exercem um papel fundamental na construção da


memória/lembrança, ainda que não sejam considerados como necessários à sua
manutenção, explicita Barros e Neves (2009, p.58). Partindo deste pressuposto de
que há interatividade entre o coletivo e o individual na formação dessas lembranças,
podemos admitir que as nossas lembranças estariam, por assim dizer, subdivididas
em locais de atuação.

Exemplificando o que fora dito, remontemos à grupos nos quais estávamos


inseridos no tempo da escola primária. Dele é formado um apanhado de lembranças
daquele local, em específico, e que, não necessariamente, precisaríamos estar nele
(local) para que estas lembranças sejam rememoradas.

Desta forma, pode-se salientar que a memória individual e a memória


coletiva estão intrinsecamente coligadas, garantindo a coesão da existência e o
sentimento de integração dos participantes de determinados grupos. Elas
sobrevivem pela troca de experiências que se dá, não só através da oralidade, mas
também pelos registros dos acontecimentos que podem ser conhecidos, difundidos
e analisados permitindo assim que se possa estabelecer uma relação entre eles.
Este processo viabiliza que a realidade seja criada e recriada, ou seja que a
lembrança seja traduzida como uma linguagem, como afirma Maurice Halbwachs
(2004, p 14)

A rememoração pessoal situa-se na encruzilhada das malhas de


solidariedades múltiplas dentro das quais estamos engajados, nada
escapa à trama sincrônica da existência social atual, e é da
combinação destes diversos elementos que pode emergir esta forma
que chamamos de lembrança, porque a traduzimos em uma
linguagem. [...] Somos arrastados em múltiplas direções, como se a
lembrança fosse um ponto de referência que nos permitisse situar
em meio à variação contínua dos quadros sociais e da experiência
coletiva histórica.

Criar e recriar a realidade através dos registros escritos tem sido uma função
preponderante da História. Não só em períodos mais recentes, desde a mais alta
antiguidade - através da pintura rupestre, pergaminhos, códices, etc.– até os dias
atuais (por meios dos livros, blogs, redes sociais, entre outros) que estes registros
se constituem a base de toda a construção histórica das atividades humanas.

Mas, na perspectiva de Nora (1993, p. 9) a história se constitui na


“reconstrução sempre problemática e incompleta, do que não existe mais”, enquanto
a memória “é sempre suspeita para a história, cuja função é destruí-la”. Pollak
(1989, p 4) já sugeria uma análise de “como os fatos sociais tornam-se coisas, como
e por quem são solidificados dotados de duração e estabilidade”

Ainda de acordo com o pensamento de Nora (1993, p.13-14), cada memória,


ainda que a priori seja de cunho individual, é fruto de um fenômeno coletivo, não
tratando aqui a memória sob o prisma da memorização e sim como informações que
podem ser referenciadas, mantidas como atuais e sem lapso de tempo que
constroem relações com os chamados “lugares da memória.”

Nora (1993, p. 13 apud BARROS e NEVES, 2000 p. 58) ressalta que esses
lugares, bem como alguns eventos, são concebidos como marcos testemunhais de
outras eras, como museus, cemitérios, arquivos, coleções, festas, tratados,
processos verbais, monumentos, santuários, associações,...– que enfoca o
pressuposto de que a memória necessita ser trabalhada, estimulada, defendendo a
ideia de que a materialização desses lugares não limita a memória, ao contrário
fornece materiais inúmeros para, principalmente, a mudança de práticas sociais,
preservando o seu significado simbólico. O autor ainda salienta que os lugares de
memória representam e são “sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo
numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos idênticos” (NORA, 1993 p.
13).

Entende-se então que a comunicação entre os acontecimentos vividos e a


sua transmissão produz a memória e a história seria a forma de estudá-las e
aprofundá-las através das informações registradas. Neste contexto, inserem-se os
arquivos, como um lugar de memória e preservação.

O arquivo, segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística,


pode ser, entre outras coisas,

1. Conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma


entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou família, no
desempenho das suas atividades, independentemente da natureza
do suporte; 2. Instituições ou serviços que tem por finalidade a
custódia, o processamento técnico, a conservação e o acesso a
documentos; 3. Instalações onde funcionam arquivos; 4. Móveis
destinados à guarda de documentos.

A diversidade de significados para um único termo torna o seu


entendimento, por vezes, confuso. No entanto, estruturaremos nossa fala com base
nos significados 1 e 2.

Afirma-se que é através da análise de registros arquivísticos que se cria um


elo temporal e espacial, não permitindo que haja o esquecimento e possibilitando o
avanço do conhecimento, fomentando a história. Assim sendo, a compreensão da
realidade está relacionada ao poder de assimilar o passado, de ressignificar o
presente e projetar o futuro. Neste sentido, Nora (1993, p. 15) ressalva que:

Nenhuma época foi tão voluntariamente produtora de arquivos como


a nossa [...]: À medida que desaparece a memória tradicional, nos
sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios,
testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que
foi, como se esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se tornar
prova em não se sabe qual tribunal da história.

Quanto ao esquecimento, uma categoria ligada á memória, Paul Ricoeur


(2010, p. 427), o analisa partindo do pressuposto de que não existe, de forma
alguma, a memória plena e que as lembranças são parte coexistente deste
esquecimento em potencial. Para o autor:

De um lado, o esquecimento nos amedronta. Não estamos


condenados a esquecer tudo? De outro, saudamos com uma
pequena felicidade o retorno de um fragmento do passado
arrancado, como se diz, ao esquecimento. As duas leituras
prosseguem no decorrer de nossa vida – com a permissão do
cérebro (RICOEUR, 2010, p. 427).

Partindo do pressuposto de que a construção da identidade, não trata-se de


um fenômeno estável, Barros e Neves (2009, p. 55) salientam as “novas formas de
compreender” tais fenômenos sociais que compõe a identidade de um povo e a
maneira como ocorre o seu desenvolvimento. E quanto à preservação da memória,
as autoras destacam a importância do arquivo e como o mesmo tem a
responsabilidade social na formação da memória coletiva e individual, na sua
preservação e ligação com o meio social.

Ao considerarem que aspectos tecnológicos e científicos, incluindo as novas


técnicas de trabalhar com a própria memória, acabam por vislumbrar a sua relação
com os campos da Arquivologia e da Ciência da Informação, num contexto global,
as autoras afirmam que o avanço deste novo paradigma só foi possível por conta da
“necessidade do homem de externar de forma física os pensamentos, quando
passou a registrar seus feitos, eternizando informações que entendia como
memoráveis.” (BARROS e NEVES, 2009, p. 57), desde tempos imemoriais.

Para Landolini (1959, apud BARROS e NEVES, 2009 p.57), o ser humano
tem necessidade de ser lembrado e por isso registra seus feitos a fim de que estes
possam ser revistos e rememorados. Não se trata apenas de fatos passados e feitos
históricos. A postura que a sociedade atual tem adotado ante as redes e perfis
sociais expõe com clareza o comentário do autor.

Em suma, podemos caracterizar que a memória, quando retratada, está


diretamente relacionada ao conhecimento da história e que esta é o resultado de um
aglomerado de memórias dos mais diversos campos. Parte-se assim do pressuposto
de que tudo precisa ser lembrado, exposto e estudado. Esta necessidade e carência
é ressaltada pelos autores Yamashita e Paletta (2006, p.175 apud SILVA, et al.,2009
p. 3) quando se referem à história do Brasil:

O Brasil de Quinhentos Anos é jovem e seu acervo bibliográfico é


escasso. Grande parte da história do País se perdeu ora por estar
registrada apenas no intelecto dos que já se foram ora por constar de
documentos em precário estado de conservação.

Complementando, existe uma máxima africana, por nós apropriada e bastante


utilizada entre povos antigos, que diz: “Ao morrer um idoso é como se incendiasse
uma biblioteca”, uma máxima que nos remete á tradição oral e a preservação da
memória, seja ela individual ou coletiva, não restrita ao texto escrito.

3. MEMÓRIA INDIVIDUAL E COLETIVA COMO CONSTRUTORAS DA IDENTIDADE

Retomemos aqui alguns conceitos sobre memória e memória coletiva, agora


com o propósito de atrelá-las á construção da identidade do sujeito.

O termo memória, invariavelmente, nos remete ao passado, a algo que


deixamos para trás. Bergson (1999, p.247) afirma que memória é o que “prolonga o
passado no presente”. Em outra perspectiva, a memória é a recuperação das
informações das nossas vivências, com a finalidade de nos auxiliar com as
experiências atuais. Já Halbwachs (2003, p.29-30) defende que a memória individual
é parte constituída da lembrança coletiva, sendo um recorte desta. O autor define
que a memória individual é o primeiro testemunho ao qual recorremos, enquanto a
memória coletiva seria como se estivéssemos diante de vários testemunhos.

Por sua vez, Le Goff (1990, p.476) relaciona memória e identidade partindo
da conjectura de que a identidade, seja ela pessoal ou social – individual ou coletiva,
retalha a memória selecionando-as de acordo com as conveniências na composição
da sua formação, com base nos aspectos do passado. Na concepção do autor;

A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar


identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na
angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista é
também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades
cuja memória social é sobretudo oral ou que estão em vias de
constituir uma memória coletiva escrita que melhor permitem
compreender esta luta pela dominação da recordação e da
tradição(LE GOFF, 1990, p.476).

Ao analisarmos Lira (2004, p.76) quando este discorre que “A Memória forja a
identidade e a identidade também forja a memória”, “Uma não existe sem a outra”,
compreendemos que mesmo a memória individual está inserida num contexto
coletivo. Está relacionada a diversos fatores sociais, sendo a forma mais simples,
defini-la como uma abordagem individual de um enfoque coletivo. Halbwachs (2013,
p.72) refere-se a memória individual como algo que

[...] não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio
passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de
outras, e se transportar a pontos de referência que existem fora de si,
determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da
memória individual não é possível sem esses instrumentos que são
as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas toma
emprestado de seu ambiente (HALBWACHS, 2013, p 72)

Levando em conta que, para a disseminação de tais memórias, se necessita


de um agente propagador, Le Goff(1992, p.48), considera que são “[...] os
historiadores os principais intérpretes da opinião coletiva, procurando distinguir as
suas ideias pessoais da mentalidade coletiva”, pressupondo, haver uma divisão
entre as duas (ideias pessoais e mentalidade coletiva).

Quanto à formação da memória, Pollak (1992, p.202) estabelece três


elementos que lhes são fundamentais: os acontecimentos vividos, as pessoas
envolvidas e os lugares enredados, ressaltando que estes podem ser próprios ou
adaptados de outros eventos, fatos, pessoas e/ou lugares, através dos quais ele
denomina de transferências ou projeções. Esse tripé é capaz de estabelecer uma
relação entre o passado e o presente, ainda que o indivíduo não o tenha
presenciado de fato.

Estabelece ainda o autor, outros três elementos ditos essenciais, na


construção da memória, seja ela coletiva ou individual, e que são partes intrínsecas
do conceito de identidade: a unidade física, a continuidade dentro do tempo e o
sentimento de coerência, que funcionam como elos de ligação entre a memória
individual e a memória coletiva.

Na perspectiva de Gondar (2016 p 19),

A memória concebida enquanto produção do poder, destinada à


manutenção dos valores de um grupo, não é equivalente à memória
pensada enquanto componente ativo dos processos de
transformação social e de produção de um futuro.

Para o autor, a memória pode ser percebida como “instrumento privilegiado


de transformação social” (GONDAR, 2016 p. 24), baseada nas escolhas que
fazemos daquilo que deve ser lembrado e do que nos é conveniente esquecer. Esta
escolha nos leva a um comprometimento ético e político, numa escala a ser definida
pelo poder que ocupamos dentro da comunidade afetada. Outra característica da
memória, trazida por Polack ( 1992), é que ela é variável, mutante e, no entanto
apresenta elementos que são imutáveis e invariáveis, tanto tratando da memória
coletiva quanto da memória individual.

Quanto à noção de identidade, Batista e Martins Filho (2010, p. 1) a definiram


como aquilo que nos distingue da multidão e nos torna ser único. Definem a
formação da identidade como a “reconstrução das experiências que estabelecem os
elementos particulares a cada indivíduo: sua história de vida”, complementando com
o fato de que cada uma dessas experiências de vida é um pedaço da memória
coletiva.

De acordo com as influências exercidas na memória individual, por indivíduos


que, de alguma forma, atuaram diretamente sobre elas, Halbwachs (2006, p.30)
salienta que
[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são
lembranças pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos
quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos.
É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que
outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós:
porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de
pessoas que não se confundem.

Ao defender que “o sentido de continuidade e de permanência presente em


um indivíduo ou grupo social, ao longo do tempo, depende tanto do que é lembrado,
quanto o que é lembrado depende da identidade de quem o lembra”, Santos (1998
apud Lira 2004p. 76), ressalta a intrínseca relação entre a memória e a formação da
identidade E, de forma incisiva, Lira (2004, p.79) ressalta a sua influência social,
mesmo que de forma inconsciente, na formação da identidade individual, abordando
a extensão da memória coletiva através da internalização das vivências entre o
coletivo.

Apesar de pré-determinada pelos hábitos radicados pela nossa sociedade,


desde o momento do nosso surgimento como um ser social - o nascimento - a
formação da identidade, juntamente com o senso de pertencimento, não ocorrem de
maneira estática, haja vista, o indivíduo está constantemente interagindo com o
outro, fazendo escolhas, tomando decisões, podendo inclusive, ocorrer a quebra dos
valores sociais.

Exemplificando bem a dinamicidade da formação da identidade,Neto (2014,


p.4), reporta à imagem dos avós, no âmbito familiar, como transmissores de
experiências de forma que os demais possam reconstituir o contexto social vivido
em uma época remota, o que possibilita a compreensão do entrelaçamento entre a
memória transcrita nos livros e as lembranças do que foi vivido. Assim sendo,
compreendemos lembrança como “uma reconstrução do passado com a ajuda de
dados tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções
feitas em épocas anteriores [onde] a imagem de outrora já saiu bastante alterada”
(HALBWACHS, 2013 p.91).

Retomando à questão da identidade, Pollak (1992p.204) a define como a:

[...] imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma
pessoa adquire ao longo de sua vida referente a ela própria, a
imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, por
acreditar na sua própria representação, mas também para ser
percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros
Conceito este que Gondar (2016, p.33), além de concordar, estende a toda
comunidade social, enfatizando inclusive a necessidade do esquecimento no que
tange à manutenção da coerência da imagem a qual se quer apresentar. Apagar,
ocultar, esquecer os desacertos ou atitudes vergonhosas que, tecnicamente, são
opostas às imagens que definimos como identitária, é um recurso tanto da memória
individual quanto e principalmente, da memória coletiva. Na mesma perspectiva, o
autor acrescenta que “Uma sociedade pode se lembrar daquilo que ela representa
como injustiça do outro, mas não daquilo que ela representa como desonra, pois
nesse caso estaria comprometida a imagem que ela constrói para si própria.”
(GONDAR, 2016 p. 33)

Em suma, parafraseando Barros e Neves (2009, p.56), assim como o arquivo


e a memória possuem uma relação indissociável, estendamos essa relação ainda a
memória individual e a memória coletiva. Ambas atuam na formação da identidade
em qualquer que seja o foco (social, individual e cultural), não sendo possível
estabelecer uma linha limite sobre a atuação de uma ou outra, ou conjecturar a
importância que uma tem sobre a outra, haja vista tratar-se de uma relação bilateral.

Não podemos esquecer que são os indivíduos, na visão de Halbwachs (2004,


p.25), as primeiras testemunhas as quais recorremos nas rememorações do
passado, bem como salientamos e fundamentamos as nossas próprias lembranças
baseadas no contexto coletivo dos grupos aos quais pertencemos. Por assim dizer,
constituímos as nossas memórias, em comum com as memórias dos representantes
das comunidades as quais partilhamos e com as quais nos identificamos. Dessa
mesma forma, moldamos nossas personalidades e valores, centrados nos
resquícios dessas vivências que residem no nosso subconsciente, ou seja no
subconsciente do indivíduo.

O autor conjectura ainda que sem essa “chama latente” os testemunhos não
seriam suficientes para formar uma memória, tão pouco, não havendo uma
semelhança, dificilmente adotaríamos o jeito de pensar e agir dos grupos que nos
cercam, o que acontece facilmente quando há o sentimento de pertencimento, ao
forjarmos a nossa identidade. Halbwachs (1990, p.27) salienta que “esquecer um
período da vida é perder contato com aqueles que então nos rodeavam”. Tal
pensamento nos leva a crer que as nossas relações sociais interagem diretamente
com a nossa memória e, por conseguinte, com a nossa formação identitária, uma
vez que apagamos aquilo com o qual nos afastamos, seja por questões ocasionais
ou por vontade própria. E completa o autor:

Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, nãobasta que
eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não
tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante
pontos de contato entre uma e outra para que a lembrança que nos
recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum.
[Completando que] É necessário que esta reconstrução se opere a
partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no
nosso espírito como no dos outros, porque elas passam
incessantemente desses para aqueles e reciprocamente, o que só é
possível se fizerem e continuam a fazer parte de uma mesma
sociedade. Somente assim podemos compreender que uma
lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída
(HALBWACHS, 2004 p. 34)

Sobre a importância da linguagem na rememoração destas lembranças e a


coerção social na formação do indivíduo, Dias (2015) levanta questões: o fato de
não conseguirmos lembrar dos acontecimentos da época latente da nossa infância,
bem como às reproduções automáticas das regras sociais, ao nos rebelarmos contra
essas regras, percebemos a sua existência e o quanto elas são resistentes e difíceis
de serem contornadas e/ou quebradas. Alerta a autora para o que diz Halbwachs
(2004, p. 51-52):

[...] nós não percebemos que não somos senão um eco [...]. De uma
maneira ou de outra, cada grupo social empenha-se em manter uma
semelhante persuasão junto a seus membros [...]. de qualquer
maneira, na medida que cedemos sem resistência a uma sugestão
de fora, acreditamos pensar e sentir livremente. É assim que a
maioria das influências sociais que obedecemos com mais
frequência nos passam despercebida.

Ressalta-se que, em determinadas situações, a memória do sujeito se apossa


das lembranças de acontecimentos passados que não lhe pertencem. O mesmo
ocorre com os acontecimentos históricos de uma nação, onde mesmo que não o
tenhamos vivenciado, estabelecemos com eles uma espécie de apropriação e
sentimento de pertencimento. Estas são “lembranças emprestadas” que ainda com
base na teoria de Halbwachs (2004, p.72), nos são transferidas através de
depoimentos obtidos daqueles que vivenciaram os acontecimentos, tanto através
dos registros escritos quanto das narrativas orais.
Vale ressaltar aqui, modalidades e meios de transmissão da memória, tal qual
a tradição oral e história oral. Cruikshank (1994, apud FERREIRA e AMADO, 2006
p. 151), define a tradição oral como sendo um processo pelo qual a informação é
transmitida de uma geração a outra, enquanto a segunda, a história oral, seria uma
“expressão mais especializada.” A história oral seria um método de pesquisa
operacionalizado através de entrevistas gravadas acerca das experiências
adquiridas por uma testemunha ocular. O autor revela ainda o caráter popular da
tradição oral ao afirmar que

[...] as tradições orais revelam a capacidade dos seres humanos de


pensar simbolicamente seus problemas complexos. Avida real está
cheia de contradições, e os mitos nos dão meio de lidar com um
mundo crivado de tais contradições. [...]Em vez de atuarem como
reflexos de fato da sociedade, as narrativas orais podem inverter o
comportamento social, porque o proposito de tais narrativas é
resolver simbolicamente a questões que não podem
necessariamente ser resolvidas na esfera da atividade humana.
(CRUIKSHANK, 1994 apud FERREIRA e AMADO, 2006 p. 153)

Ainda assim, a tradição oral, tende a ser vista como um “sistema coerente e
aberto para construir e transmitir conhecimento” (CRUIKSHANK, 1994 apud
FERREIRA e AMADO, 2006 p. 155.), principalmente quando aliado a outras fontes
de pesquisa. Rezende (2017) caracteriza a história oral

pela coleta de depoimentos com pessoas que testemunharam


conjunturas, processos, acontecimentos, modos de ser e de estar
dentro de uma sociedade ou instituição. [podendo] estar dividida em
três gêneros distintos: a tradição oral, a história de vida e a história
oral temática.

A autora ainda explicita a distinção entre a tradição oral, a história de vida e a


história temática. A tradição oral, que seria caracterizada por meio da transmissão
oral dos testemunhos perpassado de uma geração à outra; a história de vida, que
seria um relato autobiográfico, sem a presença da escrita, “um relato pessoal”; e a
história oral temática, que se trata de um determinado evento vivenciado por um
grupo de pessoas, sobre o qual levantamos as perspectivas individuais dos sujeitos
inseridos num mesmo contexto.

Partindo do pressuposto de que a história oral temática se volta para


experiências vivenciadas por indivíduos ou grupos e nela são as perspectivas
individuais que são levantadas, aqui inserimos o nosso objeto, a Mulher de Roxo,
sobre a qual saímos em busca, através da memória individual e coletiva de um lugar
e de sujeitos, da sua identidade.

É preciso ressaltar que nossa busca não se restringe aos depoimentos orais.
Nós as estendemos às fontes escritas, imagéticas e áudio visuais as quais nos
possibilitou a reconstituição de fatos memorialísticos sobre ela, além de uma breve
pesquisa histórica sobre a Rua Chile, local o qual sua presença foi imortalizada.

Fig. 1 Matéria
4. A Rua Chile : Contexto e habitat da MULHER ROXO A Tarde Rua Chile

Inicialmente batizada por Rua dos Mercadores, em 1549, Rua Chile tal qual
conhecemos hoje em dia, só foi batizada, com este nome, em 1902, através da Lei
577 de 18 de julho de 1902, em homenagem à Marinha de Guerra Chilena, que
visitava o Brasil, sob o comando de Lorde Cochrane. Comando o qual assegurou-se
a independência do Chile e do Peru (1819 -10822), e mais tarde tendo o Lorde
Foto Nossa
Cochrane assumido a Esquadra Nacional, participou dos eventos que resultaram na
Independência do Brasil, em 1822. Por esse viés, políticos e população local,
acreditavam justa a homenagem (DOREA, 2006, p. 159-160).

Em sua tese para doutorado, Oliveira (2008, p. 84) analisa que a mudança de
nome da rua não ocorreu como um subterfugio de valorização, ao contrário, ocorreu
justamente por ser a Rua Chile, o centro pulsante da comunidade soteropolitana.
Cadena (2004, apud FONTES, 2004 p. 14 - 15) enfatiza a importância da rua ao
declará-la como o local onde brotavam as informações, “Entrevistadores e
entrevistados, jornalistas e suas fontes viviam a Chile, 24 horas por dia,
frequentavam os mesmos lugares, os mesmos ambientes.” Salienta o autor que 51
publicações tiveram suas oficinas ou redação localizadas na Rua Chile e entornos,
dentre 1830 e 1975. Caracteriza ainda a Rua
Chile como o centro político e intelectual da
Bahia, além de resguardar características
boemia, o que resvalava o respeito dos
soteropolitanos por essa rua.

Em 1995, o jornal A Tarde, traz na capa


do seu caderno de Atualidades (Caderno 2)
uma matéria denominada Rua Chique, retratando a Rua Chile dos anos 30 – 50,
onde o glamour pairava pelas suas esquinas. Época em que a elite e os intelectuais,
os estudantes e os políticos interagiam em suas ruas, onde moças e rapazes
buscavam “verem e serem vistos”.
Num misto de contradições, a Rua
Chile vai de “passarela da moda à
palco de passeatas e atos públicos.”
(ALBERNAZ, Jornal A Tarde, 1995).

No ápice da sua história era possível


apreciar o seu acervo arquitetônico,
infelizmente destruído aos poucos pela
sucessão de gestores interessados
mais no caráter financeiro que histórico

Fig.2 Rua Chile do lugar. Morais (2014) narra que tais


conjuntos eram tão grandiosos que
eram capazes de causar inveja às principais ruas das cidades de todo o país, o que
podemos constatar pelos resquícios que nos restaram desse conjunto.

A Rua Chile está limitada pelas Praças Castro Alves e Tomé de Souza (Praça
Municipal), nas suas mediações temos ainda a Rua da Ajuda, a Ladeira da Praça, a
Rua do Tira o Chapéu, Rua do Tesouro e Rua da Vassoura, além da Rua da
Misericórdia e da Praça da Sé.

Fig. 3 Mapa Rua Chile e mediaçõ es


Fonte: SkycraperCity

Fonte: TRANSALVADOR
Em 1912, no Governo de JJ Seabra, a Rua foi alargada e estendida até a
Praça Castro Alves. Para tanto fora necessário a derrubada dos prédios que
ocupavam o lado leste bem como da Igreja da Ajuda que na época situava-se à Rua
Chile, sendo reconstruída em 1923, desta vez, na rua de mesmo nome (G1 Bahia).

Fig.4 Rua Chile antes do alargamento Fig.5 Rua Chile depois do alargamento

Fonte: SOS Barra Fonte: Imagens Antigas de salvador (Facebook)


Fig.8 Antigo prédio A Tarde

Também em 1923, um incêndio pôs


fim ao Teatro São João, situado onde hoje
é a praça Castro Alves. Neste mesmo ano
o chafariz do Teatro foi substituído pela
estátua do poeta que hoje dá nome a
Foto: Amo Salvador (Facebook)
Praça. (VASCONCELOS, 2016 p. 353)

O prédio do jornal local, A Tarde, foi


inaugurado em 1930, segundo Vasconcelos
(2016, p.353), e como integrante do projeto
de verticalização da cidade, constava de 7 andares, no estilo art déco. No seu
térreo, foi inaugurado ainda o Cine Glória, mais tarde denominado Tamoio, que
funcionou até os anos 2000 quando, finalmente, bastante debilitado, fecharam-lhe as
portas.

Também neste ano fora inaugurada a sorveteria A Cubana, em frente ao


Elevador Lacerda e que fechava a noite da população soteropolitana, como conta
Vasconcelos (2016, p. 353 - 354) ou seja, que as pessoas iam assistir aos filmes
cujo a última sessão ocorria às 20horas, e depois dirigiam-se para tomar um sorvete.

Em 1933 ocorre a destruição da Igreja da Sé. O motivo alegado foi para a


passagem dos trilhos dos bondes, como ação de modernização, segundo
informação de Vasconcelos (2016 p. 354). Em 1936, segundo o mesmo autor, foi
inaugurado o prédio da Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio, hoje Palácio
dos Esportes, no lugar do antigo Teatro São João, em contraponto ao prédio d’A

Fig. 6 teatro Sã o Joã o e Fig. 7 Palá cio dos Esportes e


Fig. 9 Chafariz
Ladeira da Fig. 10 Ladeira da Praça depois do alargamento
DePraça
Cristóantes do alargamento
vã o Colombo Monumento á Castro Alves

Foto: Camilo Vedani Foto: internet


Foto: Heraldo Lago Ribeiro Foto: Djalma Ribas
Tarde. Entre 1938 e 1942, Vasconcelos (2016, p.354) acentua a duração das obras
de reforma de alargamento da Rua da Ajuda e da Ladeira da Praça.

A política pulsava nas entranhas da estreita Rua. Todo o poder político-


administrativo da cidade ali se encontra: O Palácio dos Governadores, A Câmara
Municipal e A Prefeitura. Ainda podemos incluir na lista a Secretaria Municipal da
Fazenda, O Ministério da Saúde, O Arquivo Público Municipal e o Palácio dos
Esportes.

Na década de 1950, desencadeia-se um novo ramo econômico, a Bahia que


até então mantinha o caráter agrônomo, entra para o campo petrolífero com a
descoberta do petróleo em algumas regiões de Salvador e a criação da Petrobrás, e
a sua exploração comercial. Como revela Oliveira (2008) toda negociação sobre o
assunto era discutida em mesas de bar, em sua boa parte, na Rua Chile.

Jorge Amado, um dos frequentadores mais fiel e que constantemente


retratava o cotidiano da Rua Chile e suas mediações, costumava chamá-la de
coração, órgão vital que faz a cidade pulsar. Era o cenário preferido para
manifestações sociais, culturais, religiosas e políticas. E para Oliveira (2008) ia mais
além que tudo isso. Era o local do flerte, dos encontros amorosos, dos namoricos de
fim de tarde, regados à milk-shakes e sorvetes. Era onde as mulheres afortunadas
iam exibir suas joias e suas vestes finas. Era o centro da moda.

Na Rua Chile encontrava-se lojas referenciais como a Adamastor,


especializada em vestuário masculino, ou a Clark, que vendia sapatos de altíssima
qualidade. A Duas Américas, uma loja de departamentos, primeira a instalar
escadas rolantes em Salvador e que contava ainda no seu andar superior com uma
confeitaria na qual se reuniam as damas da sociedade local, para descansar do
atribulado dia de compras ou apenas para trocar conversas. Tinha também a
Slooper que vendia de maquiagem á chapéus.

Na década de 70, a construção do primeiro shopping na cidade, o Iguatemi,


usurpa da Rua Chile esse glamour e, juntamente com a expansão do Centro
Administrativo da Bahia, para onde é transferida e centralizada uma parte do poder
administrativo da cidade, a Rua Chile começa a sua derrocada. Afastam-se a elite e
a boemia da cidade, aos quais era ofertando centros comerciais mais confortáveis e
climatizados e as lojas da Rua Chile, drasticamente, sofrem com essa
transformação.

Mas não importa se no seu auge ou na sua fase mais infeliz, havia alguém a
quem essa mudança não abalava. Alguém que não tivera sua rotina modificada ou
que se sentira atraída a trocar o calor da Rua Chile pelo gelado ar condicionado do
novo point da cidade. Ela que esteve lá quando a Rua Chile era a passarela da
moda, também se manteve nela, agora que não era mais que um reduto de
malandros e marginalizados. Até que seus pés lhe levassem, forçosamente, a outros
caminhos, Florinda, a Mulher de Roxo, permaneceria lá, na sua Rua, na Rua Chile.

5.TEXTOS E FALAS SOBRE UMA LENDA URBANA

Desde o meado dos anos de 1960 que ela fazia parte do cotidiano da Rua
Chile. Misturada com as pessoas que iam e viam, e ao mesmo tempo distinta e
afastada daquele meio, ao qual já não pertencia – se é que alguma vez pertencera,
– perambulava uma mulher. Florinda, Nair ou Doralice, eram nomes com os quais se
autodenominava e que dava aos curiosos que a indagavam, quando de bom humor.
Para muitos, para a grande maioria, ela era apenas a Mulher de Roxo.

Toda narrativa, que aqui é descrita, foi fruto de pesquisa em textos, nas mais
variadas fontes, bem como memórias e lembranças colhidas, por meio de entrevista
feitas com pessoas que de alguma forma, conheceram a sua história, ou viveram no
tempo em que a Mulher de Roxo, como uma lenda,povoava o imaginário da cidade,
basicamente dos transeuntes da Rua Chile
Autora da única obra biográfica referente a esta personagem, ou seria
personalidade baiana, Moura (2009 p.11) a descreve como

[...] mais que uma personagem fantástica, inesquecível. Lenda


urbana, mito, louca, subversiva, original, exótica. Reúne em si
mesma, várias mulheres: santa, Princesa, noiva abandonada e a
senhora solitária. Todas elas compõem a sua história e mostram a
sua personalidade.

Faz sentido, neste momento, que seja trazido o conceito de lenda urbana,
haja vista como identificamos o nosso objeto. Segundo Lopes (2008, p. 374), lenda
urbana seriam “histórias que envolvem elementos ou situações banais do cotidiano,
mas que por seu caráter inusitado, ou em muitos casos absurdos, provavelmente
não aconteceram.” Para Dion (2008, p. 3), no entanto, a lenda urbana consiste em
uma narrativa oral, popular, coletiva, anônima, dotada do senso de verdade que
perpetua no conhecimento público e na cultura informal.

Já na visão de Renard (1999, p. 6, apud DION, 2008 p.4) “longe de serem


historias insignificantes, essas anedotas são, ao contrário, historias significativas,
cheias de sentido que é útil estudar.” E, completa ainda o autor, que “o narrador e os
protagonistas da história são, no sentido próprio, contemporâneos. Os fatos
relatados se situam num passado recente.” (RENARD, 1999, p. 50 apud DION, 2008
p.4).

A expressão lenda urbana origina-se do inglês Urbanlegends e foi utilizada


para designar, segundo Campion-Vicent(2005 apud DION, 2008 p.4) as narrativas
fantasiosas ou exageradas da vida moderna, todavia, contadas como verdades.
Salienta Lopes (2008, p. 375), que questões como a crença na verdade de tais
narrativas, bem como a “inclusão do aspecto social da transmissão e da recepção
das lendas”,transformam tais histórias em objetos sociais, sobre o qual pondera
Dorson, (1968 apud LOPES, 2008 p. 375 - 376):

Uma vez que se propõem históricas e factuais, [as lendas] devem ser
associadas na mente da comunidade com algum indivíduo
conhecido, marco geográfico ou episódio particular. Todos ou muitos
dos membros de um dado grupo social terão ouvido falar da tradição
e podem se lembrar dela de forma breve ou elaborada. Esse é de
fato um dos principais testes da lenda: que ela seja conhecida por
um número de pessoas unidas em sua área de residência, ocupação,
nacionalidade ou crença.
Nosso objetivo ao abordar os aspectos da lenda urbana é mostrar como
foram trançadas as teias da história da Mulher de Roxo, história que perpetua não
apenas no imaginário daqueles que viveram no seu tempo, mas recontada, através
da transmissão oral, geração após geração.

De acordo com Félix (1995, p. 101) tal lenda surge por volta da década de 60,
num prostíbulo chamado Buraco Doce, que o autor o referencia como “o lugar onde
trabalhavam as mulheres mais liberadas e desprovidas de qualquer preconceito
sexual para época”. Moura (2009), ainda reafirma que o local onde ficava o
prostíbulo era de posse da Santa Casa da Misericórdia.

Nos relatos de Félix (1995), ela era uma moça bonita, com um porte elegante,
trajando roupas e jóias caras. Cabelos longos e negros, chamava a atenção dos
homens, não apenas os que frequentavam o local. Não ficou por muito tempo nesta
casa, não era característica sua misturar-se com qualquer tipo de pessoa,
principalmente com aquelas que viviam naquele ambiente. Ao descobrir as ruas do
Centro Histórico, decidiu entregar-se a elas por definitivo, surgindo daí a Mulher de
Roxo. A princípio dormia na rua e só depois recorreu ao acolhimento do Albergue na
Baixa dos Sapateiros, conforme nos conta Moura (2009, p.27,62).

A história de Florinda – nome pelo qual se convencionou chamá-la, por ser o


que ela mais empregava – a Mulher de Roxo, reveste-se de contradições. Para
alguns uma santa, para outros uma louca. Alguns a consideravam como uma mulher
de posse, de bons modos enquanto outros só enxergavam o caráter mendicante em
que vivia.

Fig. 11 – Crucifixo de madeira As roupas que trajava correspondiam à


sua personalidade, escondiam mais do que
revelavam seu corpo e sua própria história. A
atriz Selma Santos1que interpretou a Mulher
de Roxo, no teatro, e que a via transitando
pelas esquinas da Rua Chile, na entrevista
que com ela fizemos, descreve a sua

1
SELMA SANTOS, atriz, formada na escola de Teatro da UFBA, interpretou a Mulher de Roxo no teatro em 2013
e foi bastante aclamada pela crítica. Atualmente Selma trabalha como produtora Cultural.
vestimenta, caracterizando-a como vestes pesadas, volumosas, de corte reto e
simples, sem muitos adornos. Diz-nos a atriz:

Na época em que eu trabalhava no Banco Auxiliar, eu descia muito ali,


andava pela Rua Chile para pegar o Plano [Gonçalves] ou o Elevador [Lacerda],
então eu passava por ela. Eu a vi muitas vezes sentada na porta da Sloper 2, [...]. Me
chamava a atenção ver aquela mulher andando, com aquele calor insuportável e ela
com aquela roupa preta, geralmente eu a via de preto, na realidade. Uma roupa
pesada, bem volumosa, acho que era veludo, um corte reto e simples, depois eu
soube que era ela mesma quem costurava. E aquele crucifixo imenso no pescoço.
Sem brinco, pulseira ou colares. Somente o crucifixo.

Este adorno era um dos elementos que a caracterizava e que faz parte da
lembrança dos entrevistados. Não somente o imenso crucifixo, mas agregado a ele,
um manto grosso e roxo, que a cobria por completo, o que designava o apelido pelo
qual a conhecemos até hoje.

Para D. Hilda Morais, 78 anos, além de estranhar as vestes pesadas, o caráter


andarilho da Mulher de Roxo, e o fato de estar sempre falando sozinha, mais do que
estranheza, ela lhe causava medo. Apesar de nunca ter visto nada que a
caracterizasse como uma pessoa perigosa, ela estranhava a sua maneira de vestir,
como declara:

A maneira como se vestia, eu achava estranho. Me dava medo, eu achava que ela
era maluca. A via conversando com alguns vendedores, ou falando sozinha e depois
saia. Andava, andava, andava... Não
Fig. 12 – Mulher de Roxo caminhando (Freira)
tinha coragem de me aproximar.Não a
via fazer mal a ninguém. Sempre
andando tranquilamente. Ela era
muito fechada. Nunca a vi olhar
para trás.
Entre outras características,
Moura (2009) a descreve como uma

2
Sloper – Uma das primeiras lojas de departamento de Salvador, vendia desde perfumes, maquiagens e joias a
roupas, bolsas e chapéus. JORNAL CORREIO DA BAHIA (https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/que-
saudade-relembre-10-lugares-que-os-soteropolitanos-mais-sentem-falta/)
pessoa que, embora parecesse de fina estirpe, não apresentava nenhum sinal de
gosto ou interesse por jóias. Todavia, parecia gostar de anéis e usava uma aliança
(uma bijuteria) e um anel de pedra vermelha nos dedos anelares ou médios.

A imagem, de acordo com as lembranças de Cássia Menezes, 57 anos,


confere com a descrição de Moura (2009, p. 27), ou seja, na maior parte das vezes a
Mulher de Roxo se apresentava como uma freira, com um espesso véu cobrindo a
cabeça por onde escapavam alguns fios de cabelo, perceptivelmente grisalhos.
Sempre de roxo, com crucifixo enorme, como se fosse freira a perambular.

Em algumas situações, ainda descritas por Moura (2009), trocava o véu por
uma coroa feita de latão, possivelmente por ela mesma confeccionada, a qual
prendia à cabeça com a ajuda de dois pedaços de barbantes unidos por baixo do
queixo, sobre longa trança e um manto por cima dos ombros.

D. Edna Garcia, 78 anos, lembra-se dela como uma mulher vaidosa. Relata
que em algumas aparições, estava exageradamente maquiada, com a boca pintada
com batom vermelho e bastante rouge nas bochechas.

Era muito vaidosa, andava sempre com muita maquiagem. Tinha os lábios e a
bochecha bem vermelhas de maquiagem. E sempre muito fechada. Raramente a vi
sorrir.

Baseada ainda nas pesquisas desenvolvidas por Moura (2009, p.21), as


roupas da Mulher de Roxo, eram geralmente de cor escura mas, ela possuía um
único vestido de cor, um vestido vermelho. Quando aparecia com ele, apresentava-
se com a cabeça livre do manto, coroa ou guirlanda, assemelhando-se a uma
cigana.

Das lembranças do comerciante local, Sr. João Brandão, dono da Livraria


Sebo J. Brandão, situada na Rua da Ajuda, desde 1969, emerge o fato de que
muitos estavam acostumados com a presença dela nas portas das lojas, outros a
expulsavam com o pretexto de que a sua presença estaria afastando e intimidando
os fregueses. Conta-nos Brandão que: Fig 13 – Mulher de Roxo – bota Sete Léguas

Não eram todos que a aceitavam que ela


ficasse pelas portas não... Nós
estávamos acostumados com a presença
dela, mas tinha lugares que mandavam os seguranças expulsá-la. Não podia ficar
nem na calçada, quem dirá entrar na loja!

Comungando com a fala de João Brandão, Leviatã Pires, 87 anos, que


trabalhava no Palace Hotel, situado na Rua Chile, também testemunhou a rejeição
de muitos diante da presença da Mulher de Roxo, quando esta se postava diante de
alguns estabelecimentos de comércio.

Ela não fazia mal a ninguém mas as pessoas tinham muito medo dela. Às vezes
mandavam expulsar ela da porta do hotel porque os clientes não gostavam.

No livro de Moura (2009, p. 20) consta que ela andava descalça e que o
grosso asfalto, por vezes quente, não a incomodava, ao contrário, tornava-se o seu
bel-prazer, reinando na rua da qual se sentia dona – como costumava referir-se à
Rua Chile. Complementando o seu traje, algumas vezes dele fazia parte uma bota
Sete Léguas.3³

Fig 14. As vestes de noiva Apenas quando se trajava de noiva, conforme


descreve a entrevistada Rosa Maria, 54 anos,
parecia sentir-se confortável nos sapatos brancos de
ponta fina e salto baixo, adornado com uma fivela
prateada.

Certa feita estranhei ela não parecia a figura de


sempre. Vestia um vestido simples, mas era branco
e andava confortável, quase que saltitante, com um
sapato branco, tipo social.

Nestas ocasiões, ainda nos lembra Moura


(2009), usava meias e luvas brancas e carregava
apenas, uma flor que certamente era para simbolizar
o buquê.

3
Em 1961 a empresa paulista Alpargatas lança uma bota de borracha vulcanizada para uso diário daqueles que
trabalhavam na agricultura, agropecuária, construção civil e outras ocupações árduas, que exigiam excelente
proteção para os pés. Em 1970, foi lançado o primeiro produto em PVC, inicialmente preto, posteriormente
branca com o objetivo de atender trabalhadores de frigoríficos, indústrias alimentícias, laticínios, apiários,
entre outros segmentos. Em 1976, a marca (Sete Léguas) expandiu seus domínios ao ramo da moda,
Fonte: Arquivo Histórico
inicialmente tendoMunicipal de Salvador
como foco o público infanto-juvenil com a proposta de um calçado para os dias de chuva.
Fundação Gregório de Matos
(http://mundodasmarcas.blogspot.com/2009/10/sete-leguas.html)
Entre seus objetos pessoais, ainda segundo a autora, contabiliza uns óculos
escuros - que preferia carregar pendurado nas vestes; alguns terços – que levava
sempre enrolado nas mãos; uma bolsinha preta de nylon; um grande livro preto e
outros dois crucifixos, além do crucifixo gigante de madeira, já mencionado.

Fig15 – Crucifixo 1 Fig16. Crucifixo 2 Fig17. Crucifixo 3

Fonte: Jornal Tribuna Da Bahia Fonte: Arquivo Histórico Municipal Fonte: Arquivo Histórico Municipal
De Salvador - Fundação Gregório De Salvador - Fundação Gregório
De Matos De Matos

Vanessa Santos, 20 anos, conta que, segundo relatos da mãe, a Mulher de


Roxo era uma pessoa religiosa, e confirmando, Moura (2009, p. 77) afirma que as
pessoas costumavam ver nas suas vestes uma homenagem às santas de sua
devoção, sendo a veste marrom em homenagem a Santa Therezinha, a preta em
homenagem à Santa Rita e a vermelha a Santa Bárbara. Para a autora, tal
comportamento e escolha das vestes podem ser atribuídas, como indícios, a um
passado de sofrimento e abnegação. Recordando a fala da sua mãe, Vanessa
confessa: Minha mãe contava que ela era uma pessoa bastante religiosa. E que
gostava de ir à missa na Igreja da Misericórdia.

Essa veia religiosa pode ser constatada pela sua presença frequente nas
festas dedicadas à Santa Therezinha e à Santa Rita. Em ambas não faltava à missa,
durante a qual, punha-se, de pé, no fundo da igreja e, por não querer ser notada,
antes do seu término, retirava-se. Como testemunha de tal comportamento, Vanessa
Santos, relembra uma das histórias narradas por sua mãe:

Minha mãe era muito envolvida com festas religiosas e conta que ela entrou na
missa e não tinha mais lugar para sentar porque a igreja estava cheia. Minha mãe
então tentou levar ela mais para frente. Ela olhou para minha mãe e saiu da igreja.
Minha mãe disse que desde então, sempre que encontrava com ela numa igreja,
nunca falava com ela. Deixava ela quietinha no canto dela, porque se ela
percebesse que alguém estava percebendo a presença dela, ela ia embora.

Florinda, a Mulher de Roxo, para almoçar, comprar as maquiagens e tecidos,


pedia dinheiro aos clientes da loja Sloper ou aos frequentadores do Palace Hotel.
Das histórias contadas por Moura, no livro Mulher de Roxo – Retrato de um Mito
(2009), consta que ela não aceitava moedas. As cédulas de 1 cruzeiro (Cr$1) eram
bem vindas pelo fato de estamparem a esfinge de uma mulher que considerava
como se ali estivesse estampada a sua imagem.

Fig 7. Esmolas

Fonte: Museu da Moeda

Florinda, Nair ou Doralice, a Mulher de Roxo, como uma lenda urbana, como
todas as lendas, possui em sua história elementos envolvidos que emergem de um
passado, e instiga o presente daqueles que viveram no seu tempo, bem como
daqueles que, na contemporaneidade, buscam desvendá-lo. Como uma fonte
inesgotável de versões, alimenta o imaginário popular, gerando versões do passado
como lhes trago agora.

5.1. VERSÕES DO PASSADO

Toda história está passível de ser narrada das mais diversas formas, em
tempos e espaços diversos. Ressignificar o passado, presentificá-lo faz parte desta
construção. A história da Mulher de Roxo não está liberta, portanto de ter múltiplas
versões do seu passado.

A ausência de dados e informações que favoreçam a construção de uma


narrativa biográfica e histórica, a ausência de comunicação, o distanciamento social
vivido pela Mulher de Roxo, a falta de interação social e um passado desconhecido
alimentaram o imaginário daqueles que viverem no seu tempo, que freqüentavam o
seu habitat, a Rua Chile, se espraiando por outros tempos, como o que agora
vivemos. Tal fato vem dando margem à criação de narrativas, a versões do passado,
à lendas, ou seja, a “histórias que envolvem elementos ou situações banais do
cotidiano, mas que por seu caráter inusitado, ou em muitos casos absurdos,
provavelmente não aconteceram,” como as considera Lopes (2008, p. 374), quando
nos faz entender o que seja uma lenda urbana.

Este item se propõe a apresentar algumas versões, ou mesmo fragmentos de


memórias expostas e colhidas em fontes as mais variadas: livros, jornais, blogs na
internet e entrevistas.

Livros

Patrícia Sá Moura, Mulher de Roxo – A dona da Rua Chile4

Na biografia da Mulher de Roxo, escrita por Moura (2009), esta apresenta


algumas versões colhidas no decorrer da sua pesquisa para elaboração do livro.

Versão 01: Certas vezes alegara ser professora, formada em Ciências e


Letras, de família abastada que morara em Paripe e da qual recebera rígida
educação, e onde posteriormente passara a lecionar. Porém, como as aulas não
eram pagas, empobrecera sem ao menos ter condições de manter, se quer, a casa.
(p. 26)

Versão 02: Apresentava-se como uma jovem viúva de militar (não se sabe de
qual força armada), cujo marido, à serviço na 2ª Guerra Mundial, sumira sem que ela
tivesse nenhuma informação sobre seu paradeiro. (p.31)

Versão 03: Já se apresentou como uma freira, enclausurada pelos pais num
convento longe de Salvador a fim de afastá-la dos pretendentes gananciosos, mas
que ao envolver-se com um trabalhador do referido convento, fora expulsa pelas
freiras e ficara com vergonha de retornar para a casa dos pais. (p.27-28)

Versão 04: Alguns contam que fora dona de um bordel na Ladeira da


Montanha, de onde germinavam as mais belas flores, muitas até estrangeiras.
Nesse Bordel existia uma garota que seria as meninas dos olhos da Cafetina, uma
4
MOURA, Patrícia Sá – Mulher de Roxo: A dona da Rua Chile, 2ª Edição, Salvador: Assembleia Legislativa, 2009.
espécie de filha de criação. Acontece que um próspero senhor do interior do estado
propôs casamento a essa garota, e sendo rejeitado por predileção da garota a
suposta mãe, jurou vingança. Certa noite, quando a cafetina não se encontrava, o
preterido tocou fogo no casarão que, sendo de madeira, foi rapidamente consumido
pelas chamas. Uma pessoa morreu: a filha de coração. A mulher, enlouquecendo,
resolveu largar a vida de promiscuidade e adotou uma vida de privação e penitência.
(p.28-29)

Versão 05: Outra versão tenta justificar o porque de às vezes se vestir de


noiva.Contam que era uma moça rica, de boa família, filha de importante funcionário
da Fratelli Vita, estava de casamento marcado com noivo o qual tinha muita estima.
No dia do casamento, devidamente e elegantemente arrumada, chegara à igreja e
não encontrara o noivo. Dizem que aguardara por ele, durante horas na porta da
igreja. Vencida pelo cansaço, resolveu não mais voltar para casa. Nunca se
recuperara da desilusão, abandonando a família, a casa, a cidade e o passado.
(p.71)

Versão 06: Como anedota, também já se apresentara como nascida no


interior do Paraná, de onde viera a pé, parando nos postos de gasolina para
refeições e rápidos descansos. (p.27)

Neste ponto, abrimos um parêntese para uma situação oriunda de uma das
suas versões sobre sua origem, relatada nos escritos de Moura (2009). Por
questões das suas anedotas, Moura (2009, p.32) relata que certa feita fora parar em
São Sebastião do Passé, de onde contou ter vivido. Um dos médico do Albergue
onde pernoitava, ao ouvir a história, resolveu ajudá-la. Colocou-a num carro e a
deixou na referida cidade, com alguns trocados, intencionando que alguém a
reconhecesse ou que ela lembrasse de algo mais relevante e voltou a Salvador.

Nos seus relatos, Moura (2009, p.33) conta que poucos dias depois, ela
desembarcava na Rodoviária de Salvador, já nas proximidades do antigo shopping
Iguatemi, e de lá seguira em direção à Rua Chile, pois estava saudosa de casa.
Desde de então evitava qualquer comentário sobre sua origem principalmente na
presença do referido médico.
Anísio Félix, PeloPelourinho5

No livro, publicado em 2001, o autor dedica um capítulo à Mulher de Roxo,


chamando-a de Doralice. Nas suas pesquisas ele constata que Doralice tinha um
filho com quem não conviva mas, mantinha contatos. Aos 18 anos, o rapaz
ingressara na Marinha. Doralice haveria confidenciado o seu amor e adoração ao
filho, sempre mandando-lhe cartas e algum dinheiro. Nessa época, segundo o autor,
ela seria uma das garotas do Buraco Doce, fato que escondera do seu filho. Para
seu infortúnio, o rapaz descobrira o seu segredo, cortando todo vínculo que possuía
com a mãe. Após muitos esforços, sem êxito. Doralice resolveu abandonar a vida
que levava e junto com ela abnegou o seu passado. (p. 101-102)

Jornais

Jornal Alternativo Verbo Encantado6

No Jornal alternativo Verbo Encantado, Ano I, Número II, de 30 de Novembro


a 5 de dezembro de 1971, em uma rara entrevista que a Mulher de Roxo concedeu,
ela afirma ser professora e ter abandonado a profissão depois da morte do seu
marido, dando duas supostas pistas da sua origem.

Jornal Diário de Notícias7

Em matéria noticiada no dia 29 de novembro de 1975, página 16 do caderno


01, sob título de Uma Rainha passeia pelas Ruas: Mulher de Roxo, encontramos a
seguinte versão: “Contam que ela era muito rica e perdeu tudo. O amor também é
importante: O seu noivo morreu na guerra. Ela enlouqueceu.”

Jornal Correio da Bahia8


5
FÉLIX, Anísio. Pelo Pelourinho. Salvador, EGBA, 1995.

6
Idealizado por Álvaro Guimarães e Armindo Bião, o jornal circulou por Salvador em 22 edições entre Outubro
de 1971 e julho de 1972, Era uma espécie de jornalismo pautado no comportamento da contracultura, com
outra forma de fazer política. Com colaboradores como Nego Nízio, Marco Antonio Queiroz, Gumé Tavares,
Luciano Diniz e Luiz Café e a Nigrinha do Verbo.

7
Jornal baiano diário e vespertino fundado por Manuel da Silva Lopes Cardoso e lançado no dia 13 de março de
1875. Saiu de circulação em 1980. Integrava os Diários Associados, juntamente com a TV Itapoan (emissora
local da Rede Tupi de Televisão), a Rádio Sociedade da Bahia e a Itapoan FM.

8
Fundado há 30 anos, faz parte da Rede Bahia, composta por outras 14 empresas, sendo um grupo empresarial
que atua dentro e fora da Bahia, nos segmentos de Mídia, Conteúdo e Entretenimento, suas empresas de
Sob o Título de Quem sabe a história da Mulher de Roxo?, o jornal do dia 10
de Dezembro de 1980, conta com detalhes, como era o dia-a-dia de Florinda, na
presente época. Dentre outros detalhes, em uma entrevista exclusiva, e meio que a
contra-gosto, a Mulher de Roxo se apresenta como Florinda. Dodó para a família, e
formada em Ciências e Letras, estudando em casa sob orientação do professor
Mascarenhas, pois seus pais Lídia Bibano Caetano e João Bento Caetano eram
muito rigorosos. Ainda conta que seu pai trabalhava na Fratelli Vita 9 e que
costumava visitar uma família cujo o nome não soou nítido ao repórter e ela negou-
se a repetir, situada no endereço - Roma, 220. Dados que chegaram a considerá-la
como uma das integrantes da família Libânio, influente em Gandu, mas nada fora
comprovado.

Em especial do Caderno Correio Repórter, com várias reportagens e


entrevistas sobre a Mulher de Roxo, material riquíssimo inclusive sobre as
circunstâncias da sua morte, o redator elucida que a reportagem tentou seguir os
rastros desta história, contudo, não obteve sucesso. Os nomes que ela referenciava
eram trocados a depender do seu humor, a cada história que contava, o mesmo
acontecia com os locais que citava.

Jornal A Tarde10

Em matéria de capa especial sobre a Rua Chile, no caderno 2, do dia 17 de


setembro de 1995, os redatores a apresentam como Nair ou Florinda Grandwzester
e contam que a versão da sua história, contada por pessoas mais antigas, referem-
se a ela como uma frequentadora assídua dos chás na Confeitaria Chile, que
aconteciam nos fins da tarde. Relatam que se vestia bem e era bastante cortejada
devidoao seu charme e beleza, tendo enlouquecido por conta de um noivado mal
sucedido.

comunicação constituem o maior grupo do Norte e Nordeste

9
Seu ciclo de vida corresponde entre 1920 a 1972. Inicialmente uma fábrica de refrigerantes de frutas, famosa
pelas suas gasosas. Entre 1950 e 1960, iniciou-se em paralelo, a fabricação de cristais, que chegaram a ficar
reconhecidos internacionalmente pela sua qualidade e beleza. Em 1972, a Bhrama comprou a marca e o
prédio.
10
Fundado por Ernesto Simões Filho, é o mais antigo jornal impresso baiano em circulação e um dos mais
antigos do Brasil, Tendo iniciado suas atividades em 15 de outubro de 1912
Blogs

Blog do Gutemberg11 (http://blogdogutemberg.blogspot.com/)

Neste blog, o autor, narra todas essas versões já listadas, contudo, finaliza
seu texto sobre Florinda de forma lírica, que achamos plausível transcrevê-la:

A personagem lendária da Rua Chile hoje é só lembrança. Se em


vida foi famosa ou anônima, rainha ou plebéia, foi uma lenda urbana
de Salvador. Enclausurada em si mesma, ninguém conheceu sua
verdadeira história, de riqueza ou pobreza, de princesa abandonada
no altar ou professora. Talvez ela fosse tudo que sempre queria –
uma personagem lendária que sobrevive no imaginário popular.
Longa vida para essa dama/santa com sua aura de mistério.
Outras Mídias
Polo de Teledramaturgia da Bahia (POTE) – Doc-drama Mulher de Roxo 12

Em Especial transmitido pela TVE Bahia, em 2003, outro relato popular conta
a história de uma garota de família tradicional que, ainda criança, tendo a mãe
descoberto as traições do pai, e resolvido se vingar, atira no marido e em seguida,
desorientada, exterminar a própria vida, tragédia que foi presenciada pela criança. A
garota, então órfã e vivendo com familiares, jamais superou o que presenciara, e ao
completar maior idade, fugiu para esconder-se do seu próprio passado. Essa história
também consta na biografia escrita por Moura (2009, p. 29-30)

Entrevistas

Entrevistado 1: Sr. João Brandão


O Dono da Livraria SEBO J. Brandão, situada na Rua da Ajuda desde 1969,
afirma, com certeza absoluta, que a Mulher de Roxo era detentora de grande fortuna
e que possuía vários imóveis em seu nome.

Entrevistado 2:Sr. Leviatã Rocha

11
Gutemberg Cruz é Jornalista, formado pela escola de Biblioteconomia e Comunicação da UFBA em 1979.
Tendo atuado profissionalmente nos jornais Tribuna da Bahia, Diário de Notícias, Correio da Bahia, A tarde e
Bahia Hoje como repórter, redator e editor de cultura, além de outros meios de comunicação. Atualmente é
Coordenador de Comunicação na união dos Municípios da Bahia.

12
O Doc-drama Mulher de Roxo foi produzido pelo Polo de teledramaturgia da Bahia como componente de um
projeto que envolvem outros cinco curtas, sendo este o primeiro. Consta de 12 minutos e tem direção de
Fernando Guerreiro e José Américo Moreira da Silva, do seu elenco emergem nomes como Haydil Linhares,
Emanuelle Araújo e Verônica Macedo.
Senhor de 87 anos, conheceu a Mulher de Roxo quando era funcionário do
Palace Hotel. Ele afirma que Florinda, perdeu o juízo por que fora noiva de um dos
donos da Sloper e este a preteriu ao ter resolvido casar-se com sua sobrinha.

Entrevistado 03: Vanessa Santos

A História que a mãe de Vanessa, 20 anos, lhe contou foi outra.Ela teria
fugido do convento em que vivia e a família a deserdou, por esse motivo, o
namorado por quem deixara tudo, a abandonou. Sem dinheiro, sem família, sozinha,
fora viver nas ruas.

Entrevistado 04: Cássia Maria

Aos 62 anos, via a Mulher de Roxo caminhando pela Rua Chile. Ela abraça a
história de que Florinda era uma professora e ficou louca após ser abandonada no
altar.

Entrevista 05: Edna Costa

Com 77 anos, também foi uma testemunha ocular dos tempos em que
Florinda caminhava pela Chile. Ela afirma que, uma fonte segura prova que Florinda
tivera um romance que acabou por gerar uma vida, cuja família, tradicional,
conseguiu esconder. Quando a criança nasceufoi ela não teve acesso e a criança
lhe foi tirada do convívio, fato esse que lhe tirou a razão.

Entrevista 06: Lucimar Tavares

Com exatos 50 anos, Lucimar lembra que tinha muito medo da Mulher de Roxo. Seu
palpite é que ela tenha sido exilada em algum convento, provavelmente, pelo pai
autoritário, que queria afastá-la de seu grande amor. Com isso, ela adotou o roxo
numa forma de luto eterno. Um dia, conseguiu fugir, como não encontrou seu amor,
enlouqueceu e ficou a vagar pelas ruas onde se encontravam.
Se a sua origem é baseada em especulações, o mesmo não ocorreu com
seus últimos dias de vida. Pelas três décadas que transitava, sob chuva ou sol, a
sua ausência foi, se não sentida, ao menos percebida, por várias pessoas que
faziam da Chile o seu caminho diário, seja para labuta ou outros compromissos.
Dessa forma, alguns jornais se encarregaram de noticiar sobre os seus últimos
passos, até o seu último suspiro.

5.2. OS ÚLTIMOS PASSOS DE UMA LENDA

Não se sabe se fora mãe ou de quem fora filha, onde nascera, que tipo de
escola frequentara, se é que frequentou. Notava-se bons modos e postura austera,
conforme muitos dos relatos aqui descritos. Florinda foi internada no Hospital Santo
Antônio, das Obras Assistenciais de Irmã Dulce, em 1991, com os pés totalmente
ulcerados, resultantes da erisipela. O “esquecimento” se deu quando justamente a
doença começou a alastrar e a afastou dos seus passeios rotineiros.

Em Setembro de 1993, Florinda reaparece numa pequena nota do Jornal A


Tarde, ainda em tratamento e sob nítida melhora. Não nega sentir-se bem mas,
revela saudades do seu Lar, da sua rua.

Em Dezembro de 1995, Reaparece como uma das internas mais animadas da


Ala Geriátrica do referido Hospital, nos festejos natalinos, conforme matéria do
mesmo jornal.

Segundo relata Moura (2009) a nossa ilustre figura morreu em 1997,


exatamente como fora o registro da sua vida: solitária.

O Jornal A Tarde, de 06 de Abril de 1997, publicou uma nota comunicando o


seu falecimento: Tranquila, sentada. A notícia informava ainda o local e horário do
velório e do sepultamento, na esperança que surgisse algum parente em vida. Sem
sucesso.

O Correio da Bahia, publicou várias matérias sobre o tempo em que Florinda


era a Rainha soberana, dona da Rua Chile. O especial, do Caderno Correio
Repórter, do dia 29 de maio de 2005, traz vários depoimentos que informam sobre
os seus últimos dias nas Obras Assistenciais Irmã Dulce, e seu enterro na Ala de
indigentes do Campo Santo.

Dentre tantos outros, Hilda Moraes, lamenta a oportunidade perdida de poder


conviver com aquela que se tornaria a figura mais ilustre e símbolo da Rua Chile.
Gostaria de ter tido mais contato com ela, me aproximar mais para escutar as
coisas que ela falava. Queria ter tido mais coragem de me aproximar...
Enterrada como indigente, sem a presença de algum familiar, como cofessa
(MOURA, 2009), a dama da Rua Chile, viverá presente na memória soteropolitana,
enquanto houver quem a recorde e conte a sua História.

Mulher de Roxo, Florinda, seja ela quem for, gravada está no imaginário da
população de Salvador. Como uma personagem, como a considera Moura (2009,
pg11),

[...] Diferente de outros personagens, a Mulher de Roxo não fez nada


que a colocasse no hall da fama, não criou obra nenhuma, não
escreveu nenhum romance, não compôs nenhuma música, muito
menos fez história através de discursos e oratórias. Tudo que ela fez
foi estar presente nas ruas, todos os dias, durante 30 anos.

Como uma lenda urbana, longe de ser personagem de uma história


insignificante, consideramos ao contrário, uma história significativa e cheia de
sentido na qual mergulhamos com afinco. Mesmo depois de duas décadas da sua
morte, há quem a veja, a imagine, a recorde para cima e para baixo, encostada em
uma parede, parada em frente a uma loja ou simplesmente sentada numa escadaria.
Ela está bem ali, como na varanda da sua casa, dona do seu lar, rainha do seu
habitat, revivida pela memória construtora de suas identidades.

6. NO ENCALÇO DA MULHER DE ROXO: O caminho metodológico

Neste capítulo iremos informar quais métodos foram utilizados para realização
desta pesquisa, bem como os instrumentos para coleta de dados, o cenário e os
indivíduos participantes dessa investigação.
Optamos pela abordagem qualitativa, que segundo Minayo (2001, apud
SILVEIRA e CÓRDOVA, 2009, p.31)
Trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais
profundo das relações, dos processos e dos fenômenos, que não
podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.

Trabalhamos aqui com a ideia de que o nosso objeto não pode ser
contabilizado e muito menos transformado em estáticas. Analisamos os seus modos,
como vivia, como comportava-se com o meio e como o meio comportava-se com o
nosso objeto, desta forma a caracterizamos ainda como uma pesquisa descritiva,
haja vista, nos propusemos a delinear os passos da Mulher de Roxo, analisando as
formas como era vista pela sociedade da época e da atualidade, além de conjecturar
os motivos da sua fama inusitada.
Através de um levantamento documental e de narrativas colhidas por meio de
entrevistas e questionários, com cerca de 10 questões cada, definimos os
instrumentos de coleta de dados. Na elaboração das perguntas, focamos nas
lembranças guardadas ao evocar a Mulher de Roxo, os sentimentos e sensações
que ela ainda transmitia.
Distribuímos o questionário através das redes sociais, solicitando àqueles que
conheceram em vida ou que de alguma outra forma tiveram ciência da existência da
Mulher de Roxo, dedicasse um pouco do seu tempo à responde-lo. 21 pessoas
atenderam o nosso apelo. Além disso, fomos em busca da Atriz que interpretou a
Mulher de Roxo no Teatro – Selma Santos, da autora do livro “Mulher de Roxo” –
Patrícia Sá Moura e de pelo menos uma pessoa que tivesse trabalhado nas
mediações da Rua Chile quando a sua existência, por sorte, conseguimos conversar
com o Sr. João Brandão, comerciante local.
Para situarmos o trabalho na nossa área de atuação, foi necessário
embasarmos em conceitos de história, memória e identidade aos quais recorremos à
autores como Le Goff, Nora, Halbwachs, Pollack, Ricoeur, entre outros.

7. RESTOS E FRAGMENTOS: Colhendo lembranças e recordações


O filósofo Chinês, Confúcio ou Mestre Kung, mesmo antes de Cristo, sugeriu:
“Uma imagem vale mais que mil palavras.” Referindo-se ao poder de comunicação
através dos recursos visuais. Em contra partida, Vansina (2010, apud
BATTISTELLA, 2015 p2) define a tradição oral como um testemunho transmitido
verbalmente de uma geração para outra, muito além de um meio de comunicação, é
ainda um meio de preservação da sabedoria ancestral.

Neste trabalho, nos propomos a unir as duas linhas de pensamentos e montar


o quebra-cabeça da passagem pela Rua Chile, daquela a qual denominamos Lenda
Urbana, a Mulher de Roxo, e que alimenta a inspiração de diversos artistas.
Os enigmas que a cercam alimentam a inspiração de diversos artistas. A Mulher de
Roxo é hoje personagem de painéis na Assembleia Legislativa (CAB) por Carlos Bastos,
nos corredores do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira (Cabula) graffiti de Denissena e na
Ladeira da Praça (proximidade do Corpo de Bombeiros da Barroquinha) grafite de autoria
dos artistas Julio, Bigod, Prisk, Baga, Teles, Bones e Brão, filme documentário homônimo
(2003) de Fernando Guerreiro e José Américo Moreira da Silva, inspiração para
personagem fictício no filme “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969) de
Glauber Rocha, peça teatral homônima (2012) sob direção de Deolindo Checcucci e Selma
Santos no papel principal, capítulos de livros: Homem/Mulher; Caramuru; Lídia de Oxum;
Mulher de Roxo; O vendedor de joias (2004) de Ildásio Tavares e Pelo Pelourinho (1995) de
Anísio Felix; Livro Biográfico homônimo (2009) de Patrícia Sá Moura, Letra de música
(2015) por Pitty e Cascadura, além de inúmeras matérias jornalísticas e notas em blogs de
temas diversos.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

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