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Benicio Targas

TRIPÁLIO
Benicio Targas

Conecta Brasil
São Paulo
2017
2 |Tripálio
Em caso de incêndio mental... Faça-me visitas!

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|Tripálio
No tempo em que vivemos os grandes campos de lavoura
foram substituídos, em sua maioria, pelos escritórios.
Não vemos agricultores nas metrópoles mas executivos,
analistas, técnicos e estagiários que lutam diariamente para
garantir mais um dia de sobrevivência.
A selva é de pedra e apesar das ruas, calçadas, edifícios
estarem sempre cheios de pessoas, a solidão predomina
Tripálio: em latim “Tripalium” em quase todos eles e o vazio se faz presente como um
souvenir de mau gosto.
Instrumento de tortura formado por um gancho de três
pontas aguçadas, usado pelo carrasco para subjugar os
escravos. Também utilizado na Inquisição.
Há rumores que o instrumento também era uma ferramenta
para os agricultores que o batiam nas espigas de trigo ou
de milho para rasgá-las.
Era utilizado como método de execução no período da
Inquisição; três pedaços de madeira fincados ao chão onde
os “hereges” eram pendurados para serem incendiados.
Curiosamente este termo possivelmente deu origem
no português, às palavras TRABALHO e TRABALHAR,
embora no sentido original o TRABALHADOR fosse um “eis um homem sozinho, sem alguém junto de si, nem filho,
carrasco, e não a VÍTIMA. nem irmão; trabalha sem parar, e, não obstante, seus olhos
não se fartam de riquezas. Para quem trabalho eu, privan-
do-me de todo bem-estar? Eis uma vaidade e um trabalho
ingrato.”
Eclesiastes 4:8

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SUMÁRIO
Insubstituível 9

O Murão 16

Lobotomia 19

Kiribati 20

Cachaça Mineira Envelhecida 24

Os Olhos 27

O Porteiro, Linda... e Cliver 35

Adieu à Trois 41

Am(D)or 44

181 46

King Kong Company 48

Marciano 49

O Corretor 52

A Calça Jeans 62

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INSUBSTITUÍVEL

Apenas mais um dia no mundo corporativo. É possível


escutar algumas boas risadas da minha mesa. Grãos de café
são moídos constantemente, acompanhados de anseios que
desconheço. Belas moças cruzam o corredor. Emito sempre
o meu melhor sorriso. Homens de negócios dividem piadas
corriqueiras e penso comigo mesmo: “Um dia chegarei
nesse patamar, basta continuar seguindo o roteiro.”
Almocei com alguns chegados. Contei-lhes como fora a
semana. Após meio período de trabalho, discuti com o
meu chefe o futuro da carreira e estou sempre ponderando
o que realmente penso. Ordem e progresso. Sempre em
frente. O bem maior acima de todos.
Em casa o tempo é cada dia mais curto. Eu mal
consigo me alimentar e quando penso em fazer algo
em prol da minha vida social, o sono vem em forma de
avalanche deixando-me sem chance alguma de resistência.
O despertador toca. Banho-me. Escovo os dentes.
Passo a roupa e ganho uma leve queimadura por minha
inexperiência. Tomo café, começa mais um episódio das
minhas aventuras assalariadas.
Dia do pagamento. Estou mais eufórico. Dia de pagar a
doação. Dia de marcar para beber com os amigos. Dia de
reclamar da vida. Dia de gastar o pouco que tenho.
Subindo o elevador eu parei para verificar o recibo da
doação que tinha feito há poucos instantes, entregando a
quantia para um mensageiro qualquer na recepção.
− Sr. Bruno Conti, obrigado por sua colaboração de
R$10,00 ao Instituto Criança Poeta.

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Nunca me certifiquei se esta instituição de fato existe, conseguia eram dedicadas a atos gélidos e infrutíferos que
mas eu continuo doando esta mísera quantia, independente eram mais uma prisão que eu oferecia como passatempo
de para onde vai esse dinheiro. Isto definitivamente me faz para o meu corpo.
sentir um pouco mais vivo. Lembrar que sou um ser hu- − Estamos trilhando corretamente, não desista!
mano. A propósito, flertar com a jovem que me liga todas Essas frases feitas me ajudavam a continuar durante o dia
às vezes para confirmar à quantia, tem sido cada vez mais e às noites, o álcool me fortalecia. O processo da evolu-
produtivo. Rasguei o recibo e voltei a trabalhar. Satisfeito. ção. Estou subindo os degraus no trabalho. Está valendo a
Fiz minha boa ação do mês. pena esse sacrifício. Ainda não é o ápice onde posso chegar.
Promessas vagas me assombram: Preciso subir ainda mais. Eu, um jovem a mercê dos velhos
− Em breve será promovido, está no caminho certo! homens letrados.
Escuto alguns dos velhos que lideram essa corporação. Não escuto o despertador desta vez. Há uma linda garota
Sentia-me com estabilidade. Autonomia pulsava em minhas no ônibus, eu a vejo toda vez que me atraso e são poucas
veias. Fui moldado aos caprichos dos gestores. Era a mario- vezes. Apenas observo, não tenho coragem de lançar um
nete exemplar. Sem reclamar e ainda entregando o melhor! olhar malicioso, isso estragaria a essência de sua simplici-
Às vezes eu tinha alucinações onde podia jurar que en- dade. Magra com leves curvas. Um pouco alta, porém, um
xergava ao longe do escritório minha primeira gestora, rosto angelical. Vislumbrá-la me dava uma pequena injeção
possuía olhos verdes intensos e esbugalhados que intimida- de ânimo.
vam qualquer homem e ela gritava: Mais tarde na copa do café eu estava tomando uma água
− Bruno! Entenda uma coisa. Pessoas são substituíveis! e encontrei um velho conhecido perdido no meu andar me
Como se tentasse cravar essa ideia num prego com perguntando:
marteladas violentas em minha cabeça. Procuro um extintor − Tem notícias do Pedro?
de incêndio, porém está muito bem lacrado. Não sei como − Não tenho. − respondi.
apagar esse incêndio mental. Ela foi uma das peças que não − Já faz um tempinho hein Carlos! − Acrescentei, dando
servia mais por aqui e ainda assim continuava importunando uma leve fungada.
minha mente. − Resfriado? − ele perguntou.
− Continue na linha − eu dizia para mim mesmo. − Sim! − respondi.
Distraía-me certas vezes com uma bela moça de olhos Engatando, Carlos continuou:
castanhos com lindas curvas que sentava ao meu lado. Tro-
cávamos confidências, nada além da amizade. − Na verdade você sempre tá gripado!
Discursos de engajamento ecoavam pelos andares. Eram Despedindo-me voltei para minha mesa balbuciando:
apenas palavras. Os rostos demonstravam uma vida curta − Sempre.
e infeliz. Tudo se resumia ao trabalho. As escapadas que eu Outra vez me assusto ao ver a velha gestora, dessa vez

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ela está olhando friamente para mim e apontando o dedo − Se fodeu!
indicador que poderia facilmente ser confundido com lin- Quase não consegui disfarçar as alucinações, meu chefe
guiças toscanas e dizendo: olhou um pouco curioso para minha expressão facial, mas
− Nós estamos fazendo o que estamos e não quer dizer logo retomou seu foco. Eu estava insano.
que isto significa o que você é! − Sabe o quanto você é um recurso valioso para a com-
Já ouvi esse contexto em algum lugar, mas não consegui panhia?
parar de pensar sobre. Ignorei-a por completo e continuei Meu chefe começou com esse discurso, o que já me
o meu trabalho. causou um grande desconforto. Deve existir algum livro
Percebo que não tenho apenas um laço neste mundo feroz chamado “Protocolos Empresariais”. Enquanto ele falava
capitalista, estou totalmente acorrentado com cadeados inúmeras babaquices, meus pensamentos se perdiam com
intransponíveis, e não vejo uma única saída de emergência. assuntos triviais até que ele disse:
Começo a enxergar toda a sujeira que sempre esteve na − Precisamos dos seus conhecimentos em um projeto!
minha frente, mas continuo ocupado demais me iludindo É um trabalho específico, muito urgente. A companhia en-
com as promessas do amanhã. tende que esse é o melhor no nosso cenário atual!
Ainda assim continuava firme e pensava no meu pote de Fui tomado pelo desespero, vi meus castelos de cartas
ouro. Estou fazendo tudo certinho. Não havia com o que começarem a cair e por impulso respondi:
me preocupar. − Eu tô saindo da área? É isso?
O tempo passava e a solidão vinha sendo minha fiel Minha mente não acompanhava o raciocínio dividido co-
companheira. Tudo era como tinha que ser. Ordem e migo naquela sala. Pensava apenas em tudo que sacrifiquei
progresso. Continue seguindo a linha férrea da vida. até aquele momento e estava sendo obrigado a recuar al-
Escrevendo alguns e-mails eu fui interrompido pela voz guns degraus por mero capricho dos interesses dos velhos
irritante do meu chefe com perguntas retóricas que somos letrados. Para mim estava fora de cogitação. Que se foda
obrigados a responder: meus interesses. Esse era o lema!
− Você tem um minutinho pra falarmos? Pensando no pior, a demissão seria uma fatalidade mais
− Claro que sim −, respondi com o melhor sorriso falso. frustrante.
Ao levantar da mesa em direção a uma salinha de reunião Fico na dúvida: ser desligado ou optarem por onde devo
pude ver mais uma vez aqueles olhos esbugalhados verdes trilhar?
juntamente com um forte reflexo vindo da sua enorme Minha vitalidade se esgotou rapidamente, uma névoa den-
testa; ela vestia um traje típico de funcionário bancário com sa cobriu meus olhos, não conseguia sentir completamente
um tom azul bem escuro, seus cabelos estavam jogados minhas pernas. Eu estava totalmente sem chão! Numa que-
para trás com uma oleosidade que distrairia qualquer um e da livre que não teria fim.
dessa vez gritava enfurecida:

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Atrasado com mais frequência e nem o rosto angelical Não tenho visto mais a velha gestora. Minha cabeça está
da garota do ônibus me animaria. Meu desempenho esta- melhorando.
va vergonhoso. A velha gestora sentava ao meu lado pelas O primeiro passo é a aceitação.Ao passar o sentimento de
tardes me oferecendo uma caneta, acariciando com aquela revolta e uma ira incontrolável, a reflexão surge clareando
mão asquerosa a minha cabeça e pondo na minha mesa meus raciocínios. Tudo talvez tenha um propósito, vou
uma carta de demissão sussurrando: descobrir o meu algum dia. Uma coisa que jamais abrirei
− Pessoas são substituíveis! mão e podem tentar até lobotomia… É me convencer que
Eu surtaria em breve se não tomasse nenhuma provi- somos substituíveis. O capitalismo nos trata como seres
dência e para tornar meu purgatório um incômodo ainda acinzentados e sem vida.
maior, não sabiam quando eu começaria o novo projeto. O Eu acredito que somos únicos. Somos obrigados a parti-
que garantiram é que a mudança estava definida. A espera cipar do rebanho certas vezes, mas isso não me desanima.
é algo enlouquecedor. Enquanto não saía o veredito eu es- Faz parte das dificuldades para um objetivo maior. Os de-
tava apodrecendo, decompondo-me dia após dia. feitos, práticas, pensamentos e sentimentos formam algo
Até que meu diretor me chamou para um bate-papo, tal- único. Não posso me contentar com tão pouco. Somos infi-
vez ainda haja alguma esperança, pensei comigo − incrível nitamente complexos. Sei que não vai demorar muito para
como somos esperançosos nas situações difíceis. Tentei ar- eu ver a velha gestora novamente. E quando isso acontecer
gumentar, mas só escutava palavras de pura politicagem. Na eu gritarei insanamente para ela:
medida em que eu explicava meu ponto de vista, apenas − Cala a boca sua escrota! Eu sou insubstituível!
alguns elementos selecionados chegavam aos seus ouvidos
o que tornou tudo mais frustrante.
Eu estava sendo utilizado como uma peça descartável.
Tentei ser mais que um número nesses anos, mas ainda
assim a maré me impulsionou para um caminho contrário.
No fundo eu sempre soube que era assim. O esquema. Não
deveria me abalar, mas ainda assim fiquei furioso. Pensei em
todo o sacrifício que fiz, que meus serviços foram similares
aos de uma prostituta, que todas as noites dá por horas
e é muito mal paga, além dos custos do cafetão, quarto e
bebidas. Costumo associar com os impostos que pagamos.
A escravidão do sistema é assim, temos o direito de ficar
incomodados, mas não podemos mudar o curso.
− Pessoas são substituíveis −, ela me dizia.

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− Fumando igual uma caipora, você nunca vai conseguir!
O MURÃO – Amélia respondeu com risos.
− Olha só quem fala… Você nunca tá sem um maço
Amélia! – retrucou com deboche.
Todos os dias funcionários de telemarketing da Rua Di- − Mas eu sou realista, é o que me resta.
reita passam no horário de almoço pelo extenso muro do − Quem tá reclamando é você, eu apenas estou sonhan-
colégio particular para crianças de pais ricos. O murão se do.
localiza logo ao lado de onde todos eles lutam diariamente − Foda!
por um salário mínimo.
− Foda é cagar um coco! – Jaqueline respondeu rapida-
Não havia um que não fizesse algo além de reclamar na- mente.
quela empresa e Amélia era um deles, porém pontual e fiel
Vícios precisam ser alimentados, era o mínimo que elas
a sua rotina, reclamava assertivamente de sua coordena-
julgavam merecer nesta vida assalariada e desgastante;
dora com as colegas de trabalho enquanto passava pelo
Jaqueline era viciada em sonhos e nicotina, já Amélia, apenas
murão em direção ao restaurante de prato feito do final
nicotina.
da rua. Economizava assiduamente o seu vale refeição com
apenas um objetivo: comprar seus maços de cigarros. Marina também havia descido para fumar logo em seguida
das duas. Completara uma semana naquele exato dia desde
O escritório era denso, os telefones não podiam ficar
que começara e ainda estava tentando se enturmar com as
desligados um segundo qualquer, era preciso vender. Falar.
colegas, então se aproximou dizendo bem humorada:
Ligar. Mentir. Esbravejar. Relevar. Ludibriar. Não ceder.
Tolerar. Não era permitido parar. Era o lema da empresa se − Conversando com o Diabo meninas?
quisesse manter o emprego. − Tá louca? – Amélia respondeu, ríspida.
Tudo que é muito rígido acaba rachando um dia, sendo − Calma! É que minha vó sempre dizia que o fumo era a
assim, se permitiam por quinze míseros minutos da carga ficha para uma ligação direta com o cão, mas nunca acredi-
horária para conversas fiadas e alguns tragos encostados tei. – explicou ponderadamente.
no murão. − Credo menina! Isso é coisa de se falar? – Jaqueline afir-
Jaqueline sempre acompanhava Amélia nestas escapadas. mou receosa.
− Quem mandou nascer pobre né amiga? − Você é doida mesmo novata, mas gostei dessa compara-
Amélia acendia um cigarro e a luz do sol dava vasão nos ção. – Amélia disse com um sorriso discreto.
seus cabelos ruivos, então ela lamentou: − O clima no escritório é pesado né?
− Cansei dessa vida Jaque.Todo santo dia é a mesma coisa! − Vai se acostumando novata. Se não consegue coisa me-
− Ai amiga… Um dia eu vou abrir meu salão de beleza. lhor, é o que tem pra hoje!

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−Você tem razão, Amélia – Jaqueline concordou, enquanto
acendia outro cigarro: − Isso aqui é quase um inferno. LOBOTOMIA
− É cada um que liga aqui… Sério! Não são deste planeta!
Deve ser tudo coisa do Diabo mesmo. – Amélia concluiu
tossindo violentamente. Eu me sentia destroçado, preso na teia em cadeia da so-
− Cuidado com essa tosse aí – advertiu Jaqueline. – Lem- ciedade. Eu ia surtar. Liguei para ela:
bra do Marco? Começou assim! − Amor, meu trabalho está cada vez mais difícil.
− O que aconteceu com ele? − Marina perguntou curiosa. − Faz parte benhê, vai dar tudo certo.
− Câncer. − Tá bom.
Pairou um silêncio no ar. Desliguei, pois infelizmente há tempos ela já tinha aceita-
− Vou fumar só mais um, podem ir subindo se quiser, me- do a nossa realidade.
ninas. – Amélia falou. Não é justo culpá-la por pensar assim.
Naquele último trago da tarde, havia ressentimentos. Pa- Queria tanto ouvi-la dizer:
lavra não dita. Palavra mal(dita).
− Você não merece essa humilhação, nós vamos dar um
Em cada tosse, cada escora no murão era repleta de ar- jeito amor.
rependimentos.
Seria tão bom escutar a sua doce voz dizendo tais pala-
Doía saber que era preciso retornar para sua mesa, colo- vras.
car o headset e atender centenas de ligações enquanto sua
Eu sei que a vida não funciona assim, também sei das in-
coordenadora a chamava de inútil. Parecia não haver esco-
justiças com aqueles que lutam por mais um dia de sobre-
lhas. Reclamar foi o que restara. Quando avistava ao longe
vivência.
os carros luxuosos que chegavam para buscar as crianças,
Amélia sentia tristeza e uma fisgada de injustiça. Sentindo esse vácuo eu não vejo alternativa.
O que será que o murão teria para dizer caso respirasse? Percebo que não nasci para aguentar essa carga psíquica
chamada realidade.
Após aquele último trago, ela apagou sua bituca no murão
e notou as marcas de cinzas que já haviam sido deixadas Fujo para o canto mais escuro da minha mente e acordo
por outros naquela parede. Suspirou lentamente buscando no dia seguinte para mais um dia de trabalho. Ao meu lado
algum conforto e retornou ao trabalho contando quantos há um punhado de latas vazias e um maço amassado, res-
cigarros ainda lhe restavam. tando ainda um cigarro.

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