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pg 144 Sumário
pg 155
APRESENTAÇÃO
Apresentação / Editorial: CRÍTICAS RADICAIS AO PODER DE PUNIR: como
pensar abolicionismos em tempos de expansão punitiva?
Revista Direito e Práxis, Laboratório de Críticas e Alternativas à Prisão 1-15
ARTIGOS
GÊNESE ANTICOLONIAL DO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
Carlos Frederico Marés de Souza Filhov PRÁXIS EM VÍDEO 16-47
DOSSIÊ
THEY’RE TALKING ABOUT PENAL ABOLITION: The urgency of re-imagining
different paths as alternatives to the criminal justice system
Jehanne Hulsman, Diogo Justino 444-471
TRADUÇÕES
AS FISSURAS E A CRISE DO TRABALHO ABSTRATO
John Holloway 687-706
RESENHA
UNA NUEVA TEORÍA SOCIAL PARA AMÉRICA LATINA
Santiago Martín Roggerone 734-741
Apresentação
Março 2021
Iniciamos 2021 com nova energia, mas ainda tendo que enfrentar velhos desafios. A
pandemia do vírus Covid completa um ano e ainda não temos em nosso horizonte
previsões tão auspiciosas como desejaríamos sobre o fim da crise sanitária mundial. Nos
últimos anos, lidamos, nós brasileiras e brasileiros, com uma onde de crescente
autoritarismo político e polarização social. Múltiplas crises se relacionam no nosso
cotidiano deixando, em muitos casos, a arena jurídica como um espaço de lutas por
alternativas e tentativas de mudanças dessa realidade. Munidos desse potencial,
apresentamos o novo e primeiro número de 2021 da Revista Direito e Práxis (Vol 12, N. 1,
2021 – dez-mar).
Comunicamos, com essa nova edição, uma mudança em nosso editorial. A partir
desse número, a seção geral de artigos contará com quatorze artigos ao invés de doze,
com o objetivo de dar mais espaço aos muitos e excelentes artigos recebidos e avaliados
para nosso periódico. Se há algo que o desafiador ano de 2020 nos mostrou, é que a
produção científica brasileira, também no campo dos estudos sócio-jurídicos de perfil
crítico, não perdeu qualidade. Muito pelo contrário, observamos sua multiplicação. Nessa
edição, trazemos artigos que tratam dos desafios regulatórios relacionados com a
pandemia, com especial destaque para os artigos de Deisy de Freitas Lima Ventura,
Fernando Mussa Abujamra Aith, Danielle Hanna Rached, “A emergência do novo
coronavírus e a “lei de quarentena” no Brasil” e de Rafael Da Cás Maffini, “COVID-19 e
Distribuição Constitucional de Competências”. Além disso, essa edição apresenta textos
no campo dos estudos decolonais, teoria da reprodução social, direito internacional dos
regugiados, direitos das pessoas com deficiência, justiça de transição e teoria do direito.
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Boa Leitura!
Equipe Direito e Práxis
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Membros:
Ana Luisa Barreto, State University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil. E-mail:
analuisalabarreto@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3358-8843;
Bruna Portella, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Brazil. E-mail: brunaportella@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2906-6161;
Diogo Justino, Vale do Cricaré College, São Mateus, Espírito Santo, Brazil. E-mail:
diogopjs@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0313-2482;
Fernanda Ferreira Pradal, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brazil. E-mail: fernandapradal@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3184-
552X;
João Guilherme Roorda, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Brazil. E-mail: joaolroorda@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5525-8186;
Lucas Vianna Matos, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
E-mail: lucasviannamatos@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5880-7673;
Renata Saggioro Davis, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brazil. E-mail: renatasdavis@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1076-500X;
Tamires Maria Alves, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brazil. E-mail:
tamiresmalves@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2608-7015;
Thayla Fernandes da Conceição, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brazil.
E-mail: thaylafc@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8477-879X.
1MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão: Uma história de Wall Street. Tradução de Irene Hirsch.
São Paulo: Cosac Naify, 2005.
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4RUSCHE, Georg. Labour market and penal sanction: thoughts on the sociology of criminal justice
(1933). Tradução de Gerda Dinwiddie. Crime and social justice, n. 10, p 2-8, 1978.
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5 FLAUZINA, Ana Luiza. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado
brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
6 BATISTA, Vera Malaguti. Crime e guerra no Brasil contemporâneo, 2019.
7 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & ensaios, n. 32, 2016.
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correlatas, desejo que hoje aqui se materializa, nesta parceria com a Revista Direito e
Práxis.
Assim sendo, o presente dossiê “Críticas radicais ao poder de punir: Como
pensar abolicionismos em tempos de expansão punitiva?” busca traduzir um pouco da
multiplicidade das perspectivas abolicionistas, bem como de seus tensionamentos, e
reafirmar sua necessidade para além dos freios e contrapesos impostos pela conjuntura
ou, talvez, justamente pela existência deles. O convite surge do desafio e compromisso
de formular críticas radicais ao poder de punir e reflexões sobre as pautas abolicionistas,
tarefas especialmente relevantes na conjuntura atual. Estas perspectivas confrontam o
acúmulo de violências que fundam e realimentam a formação social brasileira, nos seus
âmbitos institucionais-estatais, mas também privados, partem das violências estruturais
no âmbito do poder punitivo em suas dimensões de raça, gênero, sexualidade e/ou
territorialidade e, também, enveredam-se pelas pautas abolicionistas da pena, da prisão
e da polícia, a partir da conjuntura atual.
Abrimos o deque de manuscritos com o artigo de Jehanne Hulsman e Diogo
Justino “They´re talking about penal abolition: The rise of authoritarianism and the
urgency of reimagining different paths as alternatives to the criminal justice system”.
Neste, os autores, a partir de uma elaboração que apresenta dilemas globais atuais e
históricos com relação à ascensão do autoritarismo (considerando, em especial, Europa
central e América Latina), reacendem elementos centrais a perspectivas abolicionistas
diversas, ressaltada a de Louk Hulsman, referência das mais fundamentais para todos nós
e homenageado, tanto quanto sua filha (co-autora do artigo), nas entrelinhas do evento
mencionado e deste consequente dossiê.
O artigo seguinte, “Prisión global: las dicotomias del encierro em la actualidad”
também se trata de uma contribuição de autoria estrangeira. Diana Rastrepo Rodriguéz,
pesquisadora e professora da Universidad de San Buenaventura Cali na Colômbia, traz o
debate a respeito dos elementos dicotômicos que existem no encarceramento na
contemporaneidade. Na sua argumentação destaca como o castigo continua se
comportando como ferramenta para o controle social seletivo enquanto dissocia os
sujeitos entre bons e maus. A autora revela como a difusão do castigo pedagógico permite
que essas práticas violentas possam se manter vigentes na contemporaneidade, sendo
capazes inclusive de criar novos espaços segregacionistas como a ideia de uma prisão
global.
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violência”. Neste artigo, a preocupação central é com as mediações raciais feitas pelos
estudos sobre violência no Brasil, e com as contradições legitimantes presentes inclusive
em estudos que se propõem críticos com relação à problematização racial. Os autores
desvelam matrizes brancas neste campo de discussão, mobilizam conceitos tais como
“cidadania negra” e elegem violências praticadas por agentes do Estado brasileiro no
contexto da pandemia como eventos condutores da reflexão proposta.
No artigo “Para além do “Mundo jurídico”: um diálogo com as equipes
multidisciplinares de Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica”, as autoras Marília
Mello, Carolina Salazar e Fernanda Rosenblatt do Grupo Asa Branca de Criminologia
(Pernambuco) discutem sobre alternativas viáveis ao sistema punitivo para os autores de
violência doméstica, em sete capitais brasileiras. A proposta do trabalho é a de mapear
nos espaços especializados - inaugurados há pouco mais de uma década - quais
transformações foram desenvolvidas pelo Sistema de Justiça Criminal para lidar com os
que praticaram violência doméstica. O intuito dessa reflexão se edifica na análise das
conversas tidas a partir dos grupos de pesquisa empírica e também das percepções
extraídas de entrevistas com magistrados que atuam na área.
O dossiê encerra suas contribuições com o artigo de autoria da professora Ellen
Rodrigues da Universidade Federal de Juiz de Fora intitulado como “Os 30 anos do
Estatuto da Criança e do Adolescente e os horizontes possíveis a partir da Justiça”.
Destaca-se a contribuição da autora nas reflexões sobre a Justiça Juvenil brasileira a partir
da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. A análise realizada pela
autora se sustenta tanto de forma empírica, através dos grupos NEPCrim e Além da Culpa,
quanto através da utilização de bibliografia especializada sobre Justiça Restaurativa. As
considerações do trabalho versam sobre os desafios, as contribuições e as perspectivas
futuras da aplicação da JR a fim de promulgar práticas libertárias avessas ao punitivismo
político implementado do Brasil-colônia à contemporaneidade.
Com estas provocações, percebemos que a particularidade de se desenvolver
posturas abolicionistas é perceber não apenas o cárcere e a justiça penal, mas sim, todo
o sistema punitivo, sociabilidades incluídas, como “situações-problema” desdobráveis em
níveis macro/estrutural e micro/relacional. A relação com a lógica hegemônica e seu
caldeirão de dispositivos não é de desconsideração inconsequente, mas sim, de
complexificação, de críticas, revelações e tensionamentos. É importante destacar,
também a partir da energia deixada por este conjunto de trabalhos, que não há uma
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Editores:
Dr. José Ricardo Cunha, UERJ, Brasil
Dra. Carolina Alves Vestena, Universität Kassel, Alemanha
Editora executiva
Bruna Mariz Bataglia Ferreira, PUC-Rio, Brasil
Comissão Executiva
Caroline Targino, UERJ, Brasil
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Conselho Editorial
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Dr. Alexandre Garrido da Silva, Universidade de Uberlândia, Brasil
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Dra. Bethania Assy, UERJ, Brasil
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Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal
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Dr. Luigi Pastore, Università degli Studi "Aldo Moro" di Bari, Itália
Dr. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, UFMG, Brasil
Dr. Paulo Abrão, PUC-Rs e UCB, Brasília, Brasil
Dra. Rosa Maria Zaia Borges, PUC-RS, Brasil
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Avaliadores
Adamo Dias Alves, UFJF, Brasil; Dr. Alejandro Manzo, Universidade de Córdoba,
Argentina; Alexandra Bechtum, Universidade de Kassel, Alemanha; Dr. Alexandre Costa
Araújo, UNB, Brasil; Dr. Alexandre Mendes, UERJ, Brasil; Dr. Alexandre Veronese, UNB,
Brasil; Alice Resadori, UFRGS, Brasil; Dr. Alvaro Pereira, USP, Brasil; Dra. Ana Carolina
Chasin, UNIFESP, Brasil; Dra. Ana Lia Vanderlei Almeida, UFPB, GPLutas - Grupo de
Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Socias; Dra. Ana Paula Antunes Martins, UnB, Brasil;
Antonio Dias Oliveira Neto, Universidade de Coimbra, Portugal; Assis da Costa Oliveira,
UFPA Brasil; Dra. Bianca Tavolari, USP, Brasil; Bruno Cava, UERJ, Brasil; Bruno Alberto
Paracampo Mileo, Universidade Federal do Oeste do Pará, Brasil; Bryan Devos, FURG,
Brasil; Dra. Camila Baraldi, USP, Brasil; Dra. Camila Cardoso de Mello Prando, UnB, Brasil;
Dra. Camilla Magalhães, UnB, Brasil; Dra. Carolina Costa Ferreira, IDP, Brasil; Dra. Carla
Benitez Martins, UFG, Brasil; Dra. Carolina Medeiros Bahia, UFSC, Brasil; Dra. Cecilia Lois
(in memoriam), UFRJ, Brasil; Dr. Cesar Baldi, UnB, Brasil; Dr. Cesar Cerbena, UFPR, Brasil;
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Internacionais – USP, Brasil; Diana Pereira Melo, UNB, Brasil; Diego Alberto dos Santos,
UFRGS, Brasil; Dr. Diego Augusto Diehl, UNB, Brasil; Dr. Diego Werneck Arguelhes, FGV
DIREITO RIO, Brasil; Dr. Diogo Coutinho, USP, Brasil; Dr. Eduardo Magrani, EIC, Alemanha;
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Socha, USP, Brasil; Eduardo Raphael Venturi, UFPR, Brasil; Eloísa Dias Gonçalves,
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Universidad Católica Argentina, Argentina; Dr. Emiliano Maldonado, UFSC, Brasil; Dra.
Fabiana Luci de Oliveira, UFSCAR, Brasil; Dra. Fabiana Severi, USP, Brasil; Fábio Balestro
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UniLavras, Brasil; Felipo Pereira Bona, UFPE, Brasil; Fernando Perazzoli, Universidade de
Coimbra, Portugal; Dra. Fiammetta Bonfligli, Universidade Lasalle, Brasil; Dr. Flávia
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Positivo, Brasil; Dr. Flávio Prol, USP, Brasil; Dr. Gabriel Gualano de Godoy, UERJ, Brasil;
Dra. Giovanna Milano, UNIFESP, Brasil, Dr. Giovanne Schiavon, PUC-PR, Brasil; Dr.
Giscard Farias Agra, UFPE, Brasil; Dra. Gisele Mascarelli Salgado, Faculdade de Direito de
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São Bernardo do Campo - FDSBC, Brasil, Dr. Gladstone Leonel da Silva Júnior, UNB, Brasil;
Dr. Gustavo César Machado Cabral, UFC, Brasil, Dr. Gustavo Sampaio de Abreu Ribeiro,
Harvard Law School, USA; Dr. Gustavo Seferian Scheffer Machado, Universidade Federal
de Minas Gerais, Brasil; Gustavo Capela, UNB, Brasil; Dr. Hector Cury Soares, UNIPAMPA,
Brasil; Dr. Henrique Botelho Frota, Centro Universitário Christus, Brasil; Hugo Belarmino
de Morais, UFPB, Brasil; Dr. Hugo Pena, UnB, Brasil; Dr. Iagê Zendron Miola, UNIFESP,
Brasil; Ivan Baraldi, Universidade de Coimbra, Iran Guerrero Andrade, Flacso/México,
México; Jailton Macena, UFPB, Brasil; Dra. Jane Felipe Beltrão, UFPA, Brasil, Joanna
Noronha, Universidade de Harvard, USA; Dr. João Andrade Neto, Hamburg Universität,
Alemanha; Dr. João Paulo Allain Teixeira, UFPE, Brasil; Dr. João Paulo Bachur, IDP, Brasil;
João Telésforo de Medeiros Filho, UNB, Brasil; Dr. Jorge Foa Torres, Universidad Nacional
Villa María, Argentina; Dr. José de Magalhães Campos Ambrósio, UFU, Brasil; Dr. José
Carlos Moreira da Silva Filho, PUCRS, Brasil; Dr. José Renato Gaziero Cella, IMED, Brasil;
Dr. José Heder Benatti, UFPA, Brasil; Dr. José Renato Gaziero Cella, Faculdade Meridional
- IMED, Brasil; Dr. José Rodrigo Rodriguez, Unisinos, Brasil; Dr. Josué Mastrodi, PUC-
Campinas, Brasil; Juliana Cesario Alvim Gomes, UERJ, Brasil; Dra. Juliane Bento, UFRGS,
Brasil; Lara Freire Bezerra de Santanna, Universidade de Coimbra, Portugal; Dra. Laura
Madrid Sartoretto, UFRGS, Brasil; Dr. Leonardo Figueiredo Barbosa, UNIFESO, Brasil;
Leticia Paes, Birkbeck, University of London; Ligia Fabris Campos, Humbolt Universität zu
Berlin, Alemanha; Dra. Lívia Gimenez, UNB, Brasil; Dr. Lucas Machado Fagundes, UNESC,
Brasil; Dr. Lucas Pizzolatto Konzen, UFRGS, Brasil; Dra. Lucero Ibarra Rojas, Centro de
Investigación y Docencia Económicas, México; Dra. Luciana Reis, UFU, Brasil; Dra. Luciana
de Oliveira Ramos, USP, Brasil; Dra. Luciana Silva Garcia, IDP, Brasil; Dr. Luciano Da Ros,
UFRGS, Brasil; Dr. Luiz Caetano de Salles, UFU, Brasil; Dr. Luiz Otávio Ribas, UERJ, Brasil;
Manuela Abath Valença, UFPE, Brasil; Marcela Diorio, USP, Brasil; Dr. Marcelo Eibs
Cafrune, UNB, Brasil; Marcelo Mayora, UFJF, Brasil; Dr. Marcelo Torelly, UNB, Brasil; Dra.
Marília Denardin Budó, UFSM, Brasil; Dr. Marxo Alexandre de Souza Serra, Puc-PR,
Brasil; Dr. Marcos Vinício Chein Feres, UFJF, Brasil; Dra. Maria Lúcia Barbosa, UFPE,
Brasil; Dra. Maria Paula Meneses, Universidade de Coimbra, Portugal; Dr. Mariana Anahi
Manzo, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina; Mariana Chies Santiago Santos,
UFRGS, Brasil; Dra. Mariana Trotta, UFRJ, Brasil; Dra. Mariana Teixeira, FU-Berlim,
Alemanha; Dra. Melisa Deciancio, FLACSO, Argentina; Dra. Marisa N. Fassi, Università
degli Studi di Milano, Itália; Dra. Marta Rodriguez de Assis Machado, Fundação Getúlio
Vargas - Direito GV São Paulo, Brasil; Mayra Cotta, The New School for Social Research,
USA; Dr. Miguel Gualano Godoy, UFPR, Brasil; Monique Falcão Lima, UERJ, Brasil; Dr.
Moisés Alves Soares, UFPR, Brasil; Nadine Borges, UFF, Brasil; Natacha Guala,
Universidade de Coimbra, Portugal; Dr. Orlando Aragon, México; Dr. Orlando Villas Bôas
Filho, USP e Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil; Dr. Pablo Malheiros Frota,
UFGo, Brasil; Paulo Eduardo Berni, Universidade Ritter dos Reis, Brasil; Dr. Paulo
MacDonald, UFRGS, Brasil; Dr. Paulo Eduardo Alves da Silva, USP, Brasil; Pedro Augusto
Domingues Miranda Brandão, UNB, Brasil; Dr. Pedro de Paula, São Judas Tadeu, Brasil;
Dr. Philippe Oliveira de Almeida, UFRJ, Brasil; Dr. Rafael Lamera Giesta Cabral, UFERSA,
Brasil; Dr. Rafael Schincariol, USP, Brasil; Dr. Rafael Vieira, UFRJ, Brasil; Dra. Raffaella
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Porciuncula Pallamolla, Universidade Lassalle, Brasil; Dr. Ramaís de Castro Silveira, UnB,
Brasil; Dra. Raquel Lima Scalcon, UFRGS, Brasil; Renan Bernardi Kalil, USP, Brasil; Dr.
Renan Quinalha, USP, Brasil; Dra. Renata Ribeiro Rolim, UFPB; Dr. Renato Cesar Cardoso,
UFMG, Brasil; Dr. Ricardo Prestes Pazello, UFPR, Brasil; Dra. Roberta Baggio, UFRGS,
Brasil; Dr. Roberto Bueno Pinto, UFU, Minas Gerais; Dr. Roberto Efrem Filho, UFPB, Brasil;
Rodrigo Faria Gonçalves Iacovini, USP, Brasil; Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo,
PUCRS, Brasil; Dr. Rodolfo Liberato de Noronha, UNIRIO, Brasil; Rodrigo Kreher, UFRGS,
Brasil; Dr. Roger Raupp Rios, Uniritter, Brasil; Dr. Samuel Barbosa, USP, Brasil; Dr. Saulo
Matos, UFPA, Brasil; Dra. Shirley Silveira Andrade, UFES, Brasil; Dra. Simone Andrea
Schwinn, UNISC, Brasil; Talita Tatiana Dias Rampin, UNB, Brasil; Tatyane Guimarães
Oliveira, UFPB, Brasil; Thiago Arruda, UFERSA, Brasil; Dr. Thiago Reis e Souza, Escola de
Direito Fundação Getúlio Vargas - São Paulo, Brasil; Dr. Thomaz Henrique Junqueira de
Andrade Pereira, Escola de Direito Fundação Getúlio Vargas – Rio de Janeiro, Brasil; Dr.
Tiago de Garcia Nunes, UFPel, Brasil; Dra. Valéria Pinheiro, UFPB, Brasil; Dra. Verônica
Gonçalves, UNB, Brasil; Dr. Vinícius Gomes Casalino, PUC-Campinas, Brasil; Dr. Vinicius
Gomes de Vasconcellos, USP/PUCRS, Brasil; Dr. Vitor Bartoletti Sartori, UFMG, Brasil; Dr.
Wagner Felouniuk, UFRGS, Brasil.
Tradutores que atuaram nessa edição: Deisy de Freitas Lima Ventura, Fernando Mussa
Abujamra Aith, Danielle Hanna Rached, João Zanine Barroso, Gustavo Moura de Oliveira,
Paula Monique Kunzler Schneider, Carla da Silveira Teixeira.
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This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
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Carlos Frederico Marés de Souza Filho
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Resumo
Este artigo analisa o constitucionalismo latino-americano e seu caráter anticolonial no
nascedouro dos Estados Nacionais do continente. Para tanto, busca descrever as
contradições sociais existentes no momento das independências, no começo do século
XIX. Estuda o caráter do constitucionalismo latino-americano, utilizando exemplos das
repúblicas do Haiti e do Paraguai e conclui com as dificuldades de sua implantação, que
se mantém até hoje.
Palavras-chave: Constitucionalismo latino-americano; Haiti; Paraguai; Anticolonialismo.
Abstract
This article analyze Latin American constitutionalism and its anticolonial character in the
birth of the continent's national states. For that seek to describe the existing social
contradictions at the time of independence, the early nineteenth century. Article studies
the character of Latin American constitutionalism using examples from the Republics of
Haiti and Paraguay and conclude with the difficulties of its implementation, which
continues to this day.
Keywords: Latin American constitutionalism; Haiti; Paraguay; Anticolonialism.
Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 16-47.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho
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1VICIANO PASTOR, Roberto. Estudios sobre el nuevo constitucionalismo latinoamericano. Valencia, Espanha:
Tirant Lo Blanch. 2012.
Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 16-47.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho
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2HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução Gilmar Mendes. Porto Alegre: SAFabris. 2010.
3 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A essência socioambiental do constitucionalismo latino-americano.
Revista da Faculdade de Direito da UFG. Goiânia, vol. 41, n. 1, p. 197-215. jan/jul. 2017.
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4 FITZMAURICE, Andrew. Sovereignty, property and Empire: 1500-2000. Cambridge: University Press. 2014.
360 p.
5 SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de terras de 1850. Campinas: Ed. da
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UNICAMP, 1996.
6 No Brasil do começo do século XIX houve discussões, com José Bonifácio, para incluir na Constituição a
distribuição de terras para todos, o fim da escravidão e o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas.
Porém o Imperador promulgou uma Constituição típica da colonialidade.
7 SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de terras de 1850. Campinas: UNICAMP,
1996.
8 YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. Pluralismo jurídico, derecho indígena y jurisdición especial en los países
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9 CLAVERO, Bartolomé. Derechos indígenas y cultura constitucional en América. México: Siglo XXI. 1994.
10 VICIANO PASTOR, Roberto. Estudios sobre el nuevo constitucionalismo latinoamericano. Valencia, Espanha:
Tirant Lo Blanch. 2012
11 DALMAU, Rubén Martínez. Los Nuevos paradigmas constitucionales de Ecuador y Bolivia. La Tendencia –
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Na época da chegada das primeiras caravelas ibéricas, passagem dos séculos XV para XVI,
a população do continente era, em cálculos moderados, de 70 milhões de pessoas,
distribuídas em milhares de povos organizados em pequenos grupos ou em grandes
impérios15. A população na América em 1500 era maior do que a europeia. Grondin e
Viezzer anotam que a população americana era de 67 milhões em 1500 e no processo
colonial foram mortos 61 milhões 16. Os cronistas da época relatam esses genocídios; Frei
Bartolomé de Las Casas, em sua vasta obra, conta o assassinato sem causa de milhões de
pessoas em poucos anos17. Segundo as Nações Unidas, hoje vivem na América Latina 45
milhões de indígenas18. Esses números, não sendo um estudo demográfico, indicam que
a colonização nas Américas foi de uma violência ímpar amplificada com a tragédia dos
africanos sequestrados e trazidos em condições sub-humanas. O historiador da
University of London, Kenneth Morgan, estima que aportaram nas Américas mais de 12
milhões de pessoas19 nos quatro séculos de tráfico de escravizados africanos. O autor
explica a dificuldade de acertar estas contas porque o tráfico, especialmente no século
15 STANNARD, David. American Holocaust: the conquest of new word. New York: Oxford University Press.
1992. 391 p.
16 GRONDIN, Marcelo e VIEZZER, Moema. O maior genocídio da história da humanidade. Toledo: Gráfica e
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XIX, era clandestino. Esse número, somado aos europeus, asiáticos e norte-africanos que
chegaram ao continente, oferece uma dimensão do que foi a substituição de população,
com graves consequências culturais. Por um lado, o genocídio indígena, por outro, a
imigração forçada e a miscigenação abalaram as sociedades locais a ponto de destruir os
impérios existentes e exterminar povos livres. É possível dizer que nem os chegantes
nem os substituídos se mantiveram incólumes às mutações culturais. Alguns, como os
africanos negros e os indígenas atraídos, foram perversamente obrigados a esquecer ou
esconder suas origens culturais, sua língua, sua religiosidade e sua arte 20. Outros
simplesmente passaram a viver de maneira diferente do que viviam em seus países e
seus filhos aprenderam coisas impensáveis no país de seus pais.
Mas não só as gentes passaram por este processo de mutação e substituição. A
natureza, os não humanos, também. A economia colonial foi perversamente extrativista
ou agrícola; as minas de ouro, prata e outros metais fundamentais para a formação da
riqueza das metrópoles e a formação do capitalismo foram devastadoras da natureza e a
maior parte do trabalho, escravizado ou servil, era indígena, o que impôs mudanças nas
suas ordens sociais. A outra parte da economia colonial, a agricultura de exportação,
destruiu a natureza local da mesma forma. As grandes lavouras, nas terras baixas e
férteis, ocuparam mão de obra escrava africana, tanto para extrair minérios como para a
produção agrícola em larga escala. Portanto, as consequências foram perversas com a
natureza, o que impôs um rígido regime de controle sobre as terras para garantir acesso
somente aos grandes latifundiários. Por outro lado, as metrópoles se apropriaram rápida
e violentamente dos conhecimentos dos nativos para a localização das minas e para uso
das plantas domesticadas que vieram compor a culinária europeia e literalmente matar a
fome do continente, como batata, milho, tomate, e acrescentar glamour em suas festas
e teatros, como tabaco e cacau.
Dessa forma, como colônia, é possível dizer que a América sofreu uma
transformação das gentes e da natureza, e até mesmo esta separação entre gente e
natureza foi uma concepção trazida da Europa. Quem não sucumbiu ao colonialismo,
quem dele se esquivou, fugiu ou se escondeu, continuou a viver em harmonia, como os
indígenas, os chamados escravos fugidos e outros povos que foram se retirando para o
interior, misturando, plantando e colhendo os frutos generosos da natureza, aprendendo
20MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. 2ªed. São Paulo: Editora Anita Garibaldi. 214. 336 p.
especialmente pg. 233-273.
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21 A tradução do termo quilombola para as línguas utilizadas na América Latina não é simples, mas podem
ser chamados de palenques, marrons, cimarrón, jíbaros etc.
22 MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. 3ªed. São Paulo LECH, 1981. 282 p.
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23 RAMOS, Jorge Abelardo. História da Nação Latino-americana. Trad. Marcelo Hipólito López et alii. 3ª ed.
Florianópolis: Insular. 2014. 584 p.
24 RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação Latino-americana. Trad. Marcelo Hipólito López et al. 3ª ed.
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25 HUMBOLDT, Alexander de. Political essay on the Kingdom of New Spain. v. 4. London: Longman. 1814. 374
p. p. 97. “In affairs of commerce, as well as in politics, the word freedom expresses merely a relative idea”.
elivro grátis. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=tu0MAAAAIAAJ&printsec=frontcover&dq=humboldt&hl=pt-
BR&sa=X&ved=0ahUKEwjPtKih_97hAhV4HbkGHeR6BdEQ6AEITzAF#v=onepage&q=humboldt&f>
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sociedades originárias e pela tentativa de expulsão dos invasores, quer dizer, também
contra os crioulos, diretamente identificados com a colonização e os estrangeiros. Um
dos grandes exemplos desta resistência indígena foi a chamada rebelião de Tupac Amaru
e Tupac Katari, no Alto Peru, que manteve por um período a independência de La Paz26,
no século XVIII.
Durante os três séculos que antecederam as independências, portanto, foi se
formando uma sociedade peculiar. Enquanto na Europa a sociedade se organizava com
base no individualismo, racionalismo, liberdade e igualdade, na América se aprofundava
e institucionalizava concepções racistas contra negros e indígenas, ampliando a
escravidão. Esta formação social colonial que tinha como base trabalho escravo e
administração exógena gerou fontes de descontentamento que moldaram diferentes
reações. Cada ator social reagia de forma diferente, mas com certa padronização em
toda América Latina.
No começo do século XIX, os líderes das elites crioulas formados na ilustração
europeia reclamavam a independência para continuar e desenvolver seus negócios
livremente. Houve fortes divisões internas, mas todos defendiam a necessidade de
organizar Estados Nacionais com garantias formais de direitos civis e estruturação de
poderes. Entre estes líderes havia os que imaginavam que podiam associar-se aos
europeus, com as antigas ou novas metrópoles e os que preferiam uma independência
profunda e sem laços coloniais, pelo menos num primeiro momento. 27 Essas forças,
comandadas por extraordinários generais e líderes, como Bolívar, San Martín e Artigas,
impulsionaram as guerras de independência na América espanhola e propuseram
constituições que pudessem se parecer com os povos que organizavam, mas
enfrentaram oposição interna de outros membros da elite que, de forma sistemática, os
afastaram do poder nos novos Estados criados assim que o exército espanhol foi
derrotado. O constitucionalismo anticolonial latino-americano serviu para derrotar a
metrópole, mas não era implantado pela elite crioula no poder que reaviva a
colonialidade, com a manutenção de controle antipopular da terra, escravidão,
submissão aos povos indígenas e dependência de mercados externos.
A Teoria de Estado forjada a partir do iluminismo destes líderes, especialmente
pg.
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“… la colonia de Saint Domingue, fue, por lejos, la colônia más rica que haya tenido
jamás em parte alguna una potencia colonial”30. Saint Domingue conheceu a maior
guerra negra das Américas. Os haitianos enfrentaram as três potências europeias da
época, França, Espanha e Inglaterra e atemorizaram o mundo americano alertando para
o risco da sublevação negra, inspirando Hegel a escrever a dialética do amo e o escravo,
segundo Buck-Morss31. Pelo menos dois grandes romances latino-americanos do século
XX contam esta história, El reino de este mundo, do cubano Alejo Carpentier e La isla
bajo el mar, da chilena Isabel Allende. A longa guerra travada na ilha (1791-1804) foi
integralmente promovida pelos africanos e seus descendentes não mulatos, foi a mais
autêntica e precisa guerra pela liberdade: guerra de escravizados contra amos32. A
maioria absoluta da população era escravizada, os poucos fugitivos viviam nas
cordilheiras, os marrons, e eram perseguidos e mortos impiedosamente pela
administração francesa. A elite crioula formada por alguns poucos brancos e mulatos
serviam aos interesses dos proprietários latifundiários franceses que raramente viviam
na América e mantinham poder econômico na Metrópole.
Um dia, no final do século XVIII, liderados por Toussaint L’Overture o Haiti
amanheceu rompendo grilhões, declarando o fim da escravidão porque todos os
homens eram livres como sempre deveriam ter sido, repetindo o que estava escrito na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Faziam coro aos cidadãos de Paris e se
consideravam cidadãos franceses. De fato, L'Overture havia descoberto que na
Metrópole o povo havia feito uma revolução, e que a sociedade era livre, igual e fraterna.
Hasteou a bandeira da Revolução e enfrentou quem resistia. Os proprietários de terras e
gentes fugiram ou morreram, os mulatos livres e a elite branca, capatazes, burocratas,
seguiram os fugitivos ou aderiram reticentes e temerosos aos revolucionários.
Estava iniciada a guerra que tornaria Saint Domingue na República do Haiti,
independente, soberana e latino-americana. Mas não era bem assim que imaginava
30 GRUNER, Eduardo. Haití: la única revolución de esclavos triunfante. IN: PINEAU, Marisa. Huellas y legados
de la esclavitud en las Américas: proyecto Unesco La ruta del Esclavo. Saenz Peña, Argentina: Universidad
Nacional de Três de Febrero. 2012. 239 p. pag. 223.
31 BUCK-MORSS, Susan. Hegel y Haití: la dialéctica amo-esclavo, una interpretación revolucionaria. Trad.
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Toussaint L'Overture que estava maravilhado com a revolução francesa e não cansava de
repetir sua consigna. Para ele liberdade, igualdade e fraternidade era tudo o que
poderiam desejar os africanos escravizados em toda América. Imaginava que Saint
Domingue continuaria sendo um pedaço da França revolucionária, livre e fraterna. Não
havia nenhuma razão para ser um território independente, seria uma parte da França
livre, mesmo porque sabia já da avidez da Espanha e da Inglaterra e como território
francês seria muito mais forte. Por várias vezes tentou fazer acordo com a França, mas
recebia como resposta que não havia sido abolida a escravidão. A França ilustrada, livre
e revolucionária, se debatia entre declarar o fim da escravidão e alterar o regime das
colônias que lhe garantiam altos ingressos ou manter a escravidão e abrir uma profunda
contradição interna. Afinal venceu a economia, mas politicamente continuou oscilando
entre ser explícita na negativa da liberdade ou justificar a hostilidade contra L’Overture
por outras razões. L'Overture foi enganado, preso e morto na França, por Napoleão. 33
Os homens e as mulheres livres não tinham como voltar à África e a terra que
lhes fizeram adotar à força, Saint Domingue, sempre conheceram como parte da França
e poderia continuar sendo desde que todos fossem livres. Possivelmente seria diferente
se o exército de L'Overture fosse formado por indígenas e tratassem os franceses como
invasores. A luta dos negros era contra a escravidão e os franceses haviam feito uma
sangrenta revolução pela liberdade. Tudo isso se encaixava na lógica do General ex-
escravizado. É claro que estava irmanado com o povo francês, mas não contava que o
racismo construído para manter a ética da escravidão tinha calado tão fundo na Europa
que não poderia admitir uma parte dela dirigidas por negros.
Em 1793, afinal, foi proclamada a abolição da escravidão e poderia ter encerrado
a Guerra Negra. As hostilidades, entretanto, continuaram. L'Overture se fez proclamar
Comandante em Chefe da Colônia, mas a França não aceitou. A Inglaterra e a Espanha
mantiveram as hostilidades, também. Era inaceitável um Estado Nacional negro, já não
era a independência que pesava, mas o sistêmico racismo colonial. Para encerrar as
disputas internacionais em 1801, L'Overture chamou uma Assembleia Constituinte com
representantes de toda ilha e promulgou a Constituição haitiana de 1801 34.
33 JAMES, Cyril Lionel Robert. Los jacobinos negros: Toussaint L’Overture y la Revolución de Haití. Traducción
de Rosa López Oceguera. Título original: Black Jacobins: Toussaint L’Overture and the San Domingo
Revolution. Buenos Ayres: RyR, 2013. 525 p.
34 DUARTE, Evandro Charles Piza & QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. A Revolução Haitiana e o Atlântico
Negro: o Constitucionalismo em face do Lado Oculto da Modernidade. Direito, Estado e Sociedade n.49 p.
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10 a 42 jul/dez 2016.
35 No original: “Saint-Domingue dans toute son étendue, et Samana, la Tortue, la Gonâve, les Cayemites, l'Ile-
à-Vaches, la Saône et autres îles adjacentes, forment le territoire d'une seule colonie, qui fait partie de
l'Empire français, mais qui est soumis à des lois particulières”. Disponível em: <http://mjp.univ-
perp.fr/constit/ht1801.htm>. Acesso em: 14 mai. de 2019
36 JAMES, Cyril Lionel Robert. Los jacobinos negros: Toussaint L’Overture y la Revolución de Haití. Traducción
de Rosa López Oceguera. Título original: Black Jacobins: Toussaint L’Overture and the San Domingo
Revolution. Buenos Ayres: RyR, 2013. 525 p.
37 Idem.
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38 Haiti escreveu constituições em 1801, 1805, 1806, 1807, 1811, 1816, 1843, 1846, 1849, 1867, 1874, 1879,
1888, 1889, 1918, 1932, 1935, 1946, 1950, 1957, 1964, 1983, 1987, além de algumas revisões, sendo a
última em 2011. Todos os textos utilizados neste artigo são da Digithèque MJP: http://mjp.univ-
perp.fr/mjp.htm , acessado múltiplas vezes, sendo a última em 15 de maio de 2019.
39 LYNCH, John. Simón Bolívar. Traducción castellana de Alejandra Chaparro. Barcelona: Crítica. 2010. 478 p.
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40 HUMBOLDT, Alexander Freiherr von. Ensayo político sobre la isla de Cuba, (Introd. por Fernando Ortiz;
correcciones, notas y apéndices por Francisco Arango y Parrreño, J. S. Thrasher). La Habana: Cultural, 1960, p.
323.
41 GRAFENSTEIN, Johanna von. Haiti en el siglo XIX: desde la Revolución de esclavos hasta la ocupación norte
americana (1791-1915).Istor, Revista de Historia Internacional, CIDE, Año XII, número 46. Otoño de 2011, pp.
3- 32, ISSN 1665-1715.
42 Idem. p. 9.
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O Paraguai e o constitucionalismo
Muito longe das Antilhas, no coração da América do Sul, outro país se alçava em
independência anticolonial e também pagaria caro a ousadia.
A Província do Paraguai, subordinada ao Vice-Reinado do Prata, estava a meio
caminho das ricas minas de Potosi, no Alto Peru, e o porto exportador, Buenos Aires.
Localizado entre os rios Paraná e Paraguai, era um vastíssimo território ocupado por
muitos povos indígenas independentes, principalmente o povo Guarani que estendia
seus domínios desde as bases da cordilheira, para além do Chaco, até próximo do litoral
atlântico e o Rio Uruguai ao sul. A região e o povo Guarani foram o centro das
experiências jesuíticas de uma colonização sem colonos, na expressão de Meliá 43,
chamada de Missões. O povo Guarani, formado por hábeis agricultores, desenvolveu
entre outras muitas coisas o cultivo da erva-mate, amendoim, milho, mandioca44. Nas
reduções jesuíticas das Missões, desenvolveu habilidades de fundição, criação de gado,
cerâmica, construção civil, fiação de tecidos de algodão que seriam extremamente úteis
durante a independência.45
A reação política ocorrida na Espanha quando Napoleão, em 1808, entregou a
coroa espanhola a seu irmão Luís ante a abdicação dos Reis Carlos IV e Fernando VII em
Baiona, repetiu-se em todas as colônias. As elites de Buenos Aires tomaram diferentes
posições, ora em defesa de Fernando VII, que se dizia enganado, ora em defesa da Corte
de Cádis e, em alguns casos, com propostas independentistas anticoloniais. Na região,
duas outras potências ajudavam a complicar o quadro político: Portugal que tinha
interesse na região cisplatina e a Inglaterra, inimiga da França e da Espanha, tencionava
43 Barlomeu MELIÁ é um dos mais importantes etnólogos do povo Guarani e estudioso das Missões. Utilizou
o apropriado termo em conferência proferida em Curitiba, na PUC/PR, em 2016.
44 SUSNIK, Branislava. Una visión socio-antropologica del Paraguay: XVI-½XVII. Asunción: Museo
nacional durante la Dictadura perpetua de José Gaspar Rodríguez de Francia. San Luis Potosí/México:
CENEJUS. 2015. 241 p.
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46 O’DONNELL, Pacho. Artigas: la versión popular de la revolución de mayo. 1ª ed. Buenos Aires: Aguilar.
2012. 256 p.
47 RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação latino-americana. Trad. Marcelo Hipólito López et alii. 3ª ed.
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50GUERRA VILABOY, Sergio. El Paraguay de Doctor Francia. Crítica & Utopia. Nº 5. Dictadura y Dictadores.
Buenos Aires. Setiembre de 1981.
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em 1.° de março de 1914 (Resolución Consular) que atacou diretamente a elite crioula
formada pela oligarquia comercial de Assunção e espanhóis residentes, chamados de
peninsulares.51 A Lei, cujo preâmbulo dizia ser “medida necessária para facilitar o
progresso da sagrada causa da liberdade da República contra as maquinações de seus
inimigos”, proibia o casamento entre homem europeu e mulher “americana conocida y
reputada como española”, branca, portanto, desautorizando os casamentos entre
europeus e permitindo apenas que se casassem com “con indias de los pueblos, mulatas
conocidas y negras”. Política inversa ao branqueamento da população praticada sem
sucesso efetivo, mas intensificador do racismo em outros países como o Brasil. A partir
daí o cerco contra os estrangeiros, espanhóis e outros europeus foi apertando de tal
forma que em pouco tempo a maior parte tinha se mudado para Argentina e Brasil, onde
em geral mantinham interesses econômicos e apoiavam a colonialidade.
Em 3 de outubro de 1814, outro Congresso com mil deputados, altamente
representativo da Nação, com grande participação de camponeses, determinou novas
formas de governo acabando o Consulado e designando Dr. Francia o Ditador Supremo
da República por cinco anos, pela expressiva margem de mais de 85% dos votos52.
O descontentamento das elites era visível e Francia, com o apoio renovado do
Congresso e das classes populares, continuou investindo contra os interesses
econômicos e eclesiásticos. Necessitando manter a política de construir a nação, Francia
seria, cinco anos depois e por unanimidade, eleito pelo Congresso Ditador Perpétuo da
República.
Os dois termos, Cônsul e Ditador, não têm a mesma conotação que se lhe
empresta no século XXI, são termos tirados diretamente da Roma antiga. 53 Deste modo,
os títulos provavelmente foram determinados pela erudição do Dr. Francia, cuja
personalidade e cultura está expressa numa das mais importantes obras de ficção da
literatura latino-americana, Yo, el Supremo, do paraguaio Roa Bastos. A ideia de
mandatário perpétuo, em geral não hereditário, se repetiu nos países que foram sendo
criados após as independências, como no Haiti, no Paraguai e, depois, na Constituição de
51 Texto do Decreto disponível em: <https://nacaomestica.org/blog4/?p=18345 > Acesso em: mai. 2019.
52 ARECES, Nidia R. De la independencia a la guerra de la Tróplice Alianza (1811-1870). In: TELESCA, Ignacio.
Historia del Paraguay. Asunción: Taurus Historia. 2010. 443 p. p. 157.
53 O Hino do Paraguai, que terminou de ser escrito apenas em 1846, afirma no verso segundo: Nueva Roma,
la Patria ostentará/ dos caudillos de nombre y valer,/ que rivales —cual Rómulo y Remo—/ dividieron
gobierno y poder./ Largos años —cual Febo entre nubes—/ viose oculta la perla del Sud./Hoy un héroe
grandioso aparece/ realzando su gloria y virtud...
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Chuquisaca de inspiração bolivariana. A ideia foi defendida por Bolívar em suas cartas e
outros escritos 54 , principalmente para a América do Sul, por desconfiança dos
libertadores nas elites locais que poderiam retornar à colônia ou fazer acordos com
novas metrópoles contra os interesses do povo. Esse também era o temor de Francia,
que tinha o absoluto apoio do povo, quer seja por seu despojamento de bens materiais,
quer seja por sua dedicação em efetivamente resolver os problemas do país. General
José de San Martín, o outro libertador, criador de repúblicas, como a do Chile, no final
das lutas quando voltou à Argentina e finalmente teve que exilar-se na Espanha,
considerava que os Estados Nacionais latino-americanos deveriam restaurar as
monarquias,55 com dinastias americanas, caso contrário os interesses das elites crioulas
locais fariam acordos neocoloniais contra seus povos e a favor de que antigas ou novas
metrópoles voltassem a comandar os novos países, como, de fato, aconteceu.
O Paraguai ficava cada vez mais isolado e sofrendo hostilidades dos vizinhos.
Com domínio sobre a terra e a produção, Francia foi orientando o trabalho e
organizando o povo para suprir as necessidades e garantir a defesa contra eventuais
ataques. O país rapidamente se tornou autossuficiente em algodão, gado e cereais e
iniciou uma indústria baseada na fundição, tecelagem e cerâmica. As experiências
missioneiras estavam sendo utilizadas. Em longo ofício datado de 25 de dezembro de
1820, Francia se dirige ao Comandante Fernando Acosta para que ele reclame às
autoridades brasileiras que reconheçam Paraguai como República independente e
parem de incentivar roubos de gado e outros bens em prejuízo da alimentação do
povo.56 Este ofício demonstra as hostilidades dos vizinhos para com a prosperidade do
Paraguai independente, ficando claro que havia sido encontrado um caminho latino-
americano para o desenvolvimento que não dependia das metrópoles europeias.
A legislação implementada por Francia tinha um caráter latino-americano
contrário a qualquer colonialismo e tendia a proteger a independência das hostilidades
constantes dos vizinhos. Há pouco conhecimento na América Latina desta vitoriosa
experiência que transformou um país isolado, sem saída para o mar senão atravessando
54 BOLIVAR, Simón. Obra politica y constitucional. Prólogo, antología y notas de Eduardo Rozo Acuña. Madrid:
Tecnos. 2007. 203 p.
55 LYNCH, John. San Martín: soldado argentino, héroe americano. Traducción Alejandra Chaparro. Barcelona:
corrigida de la colección Doroteo Barrero del Archivo Nacional de Asunción. Asunción: 2009. 1771 pg. p. 700.
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57 ARECES, Nidia R. De la independencia a la guerra de la Tróplice Alianza (1811-1870). In: TELESCA, Ignacio.
Historia del Paraguay. Asunción: Taurus Historia. 2010. 443 p. pg. 159.
58 idem. pg. 193.
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necessária “una guerra implacable y abrumadora”59. Até hoje a história dessa Guerra
Grande é mal contada na América Latina exatamente porque ela destruiu um modelo de
desenvolvimento diferente do colonialismo e da colonialidade posterior, e a forma de
constituir o Estado Nacional, discutido e criado junto com o povo. Isso explica a
importância de entender este processo no estudo do constitucionalismo latino-
americano e a razão de ser inserido em gênese.
Com o Paraguai destruído e diminuído em seu território, em 1870 foi sancionado
o primeiro documento jurídico com o nome de Constituição, a Constitución de la
República del Paraguay. Estava destruída por uma guerra implacable a rica experiência
da independência marcadamente anticolonial e popular da América Latina. A nova
Constituição seguia a tradição constitucionalista europeia, muito parecida com a
argentina e a espanhola, já não havia novidade nem ameaça, o Paraguai estava destruído.
Considerações Finais
As independências do Paraguai e do Haiti foram exemplos da derrota colonial e
da elite proprietária e neocolonial. As duas independências jamais foram assimiladas
pelas novas potências. Há, porém, diferenças profundas entre elas. Haiti é africano,
Paraguai indígena. Haiti nasceu de uma longa guerra contra os impérios e foi destruído
pelo estrangulamento econômico e racismo da colonialidade, Paraguai nasceu do
desprezo da colonialidade, não sem resistência e luta, e foi destruído 60 anos depois por
uma guerra de extermínio que envergonha os vencedores. 60 Nos dois processos está
presente a guerra de destruição, nos dois o cerco econômico. Neste sentido, estas duas
formações sociais estatais expressam em seus inícios a tentativa de pôr em prática uma
profunda e clara proposta de constituir Estados latino-americano, isto é, de constituir um
Estado Nacional popular, anticolonial e no qual a terra sirva a todos.
L’Overture adotou o constitucionalismo com Constituição à moda francesa, como
se viu, Dr. Francia optou por organizar o Estado paraguaio sem necessidade de redigir
uma constituição. Se partirmos do princípio puramente formal que constituição é uma
lei que leva o nome de Constituição e que estabelece a organização do Estado e a
garantia de direitos individuais, então o Paraguai não foi constituído por uma
Constituição e sim por um Regulamento de Governo ditado inovadoramente por Francia.
59 TRIAS, Vívian. El Paraguay de Francia, el Supremo, y la guerra de la tríplice aliança. Buenos Aires: Crisis.
1975. p. 79
60 TRIAS, Vívian. El Paraguay de Francia, el Supremo, y la guerra de la tríplice aliança. Buenos Aires: Crisis.
1975.
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Sobre o autor
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Resumo
O processo de justiça transicional brasileiro é constantemente desafiado por discursos
contrários capazes de simbolizar a chamada “teoria dos dois demônios”, criada na
Argentina após o fim do regime de 1976-1983. A pesquisa problematizou de qual
maneira o uso discursivo desta teoria foi distinto nas experiências de transição da
Argentina e do Brasil. O trabalho utilizou-se de fontes bibliográficas e documentais,
especialmente analisando-se os discursos políticos veiculados por meio de jornais e de
registros do Congresso Nacional brasileiro. Concluiu-se pela aproximação no uso da
teoria dos dois demônios em ambos os países, embora isso tenha ocorrido em períodos
diferentes e com fins distintos.
Palavras-chave: Justiça de transição; Anistia; Teoria dos dois demônios.
Abstract
The Brazilian transitional justice process is constantly challenged by opposing speeches
capable of symbolizing the so-called “theory of the two demons”, created in Argentina
after the end of the 1976-1983 regime. This research questioned how the use of this
theory was different in the transition experiences of Argentina and Brazil. The work used
bibliographic and documentary sources, especially analyzing the political speeches
broadcast through newspapers and records of the Brazilian National Congress. It was
concluded that there was an approximation in the use of the theory of the two demons
in both countries, although this occurred at different times and with different ends.
Keywords: Transitional justice; Amnesty; Theory of the two demons.
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1. Introdução
A forma como Estados democráticos saídos de períodos ditatoriais enfrenta seu legado
autoritário diz muito sobre como uma sociedade enxerga a si própria e desenha o seu
caminho para o futuro. Situações não (ou mal) resolvidas com o passado, seja distante
ou recente, costumam deixar feridas abertas que inflamam em períodos de maior
instabilidade política. O Brasil, que tem sua história enquanto país independente
marcada por conflitos e intervenções responsáveis por excluir a população do
direcionamento das ações governamentais, tem uma tradição de não lidar diretamente
com todas as consequências dos traumas causados por violações aos direitos humanos.
Essa experiência não é diferente com o tratamento do legado autoritário decorrente da
ditadura civil-militar de 1964-1985.
A tônica da recente transição da ditadura para a democracia foi permeada, no
campo jurídico-político, por disputas acerca de como tratar os responsáveis pelos crimes
de direitos humanos praticados por agentes de Estado em desfavor de movimentos de
resistência ao governo. Nenhuma dessas controvérsias pôde furtar-se à análise da Lei n.
6.683/1979, chamada “Lei de Anistia”, que, ao mesmo tempo em que foi responsável
por extinguir a punibilidade dos crimes cometidos pelos funcionários do governo e pelos
membros da resistência armada, abriu caminho para uma futura política de reparações
a serem concedidas pelo Estado em favor das vítimas do regime e dos seus familiares. A
título de exemplo, podem-se citar a Lei n. 9.140/1995, que criou a Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e reconheceu como mortas pessoas
desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades
políticas, no período de 02/09/1961 a 15/08/1979; a Lei n. 10.559/2002, que criou a
Comissão da Anistia e regulamentou o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias a fim de instituir o regime do anistiado político; e a Lei n. 12.528/2011, que
criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV).
A criação desse último órgão não passou imune à atenção de setores
interessados em impedir a rediscussão do passado ditatorial brasileiro. Em 2010, ao fim
do governo Lula (PT) (2003-2010), quando da elaboração do decreto que instituiu um
grupo de trabalho para desenhar normativamente a futura Comissão Nacional da
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Verdade, Nelson Jobim1 e os comandantes militares criticaram seu teor por não ter sido
inclusa a investigação de excessos praticados por grupos da esquerda armada (G1,
2012a). É importante mencionar que, de acordo com o art. 1º de sua lei constitutiva, a
CNV visava justamente efetivar os direitos à memória e à verdade histórica dos fatos
ocorridos no período ditatorial. Após a polêmica, o governo publicou um novo decreto,
construído em acordo com o Ministério da Defesa e a Secretaria de Direitos Humanos,
em que a expressão “violação dos direitos humanos” não era associada à repressão
política. Safatle se manifestou sobre tal fato afirmando que declarações dessa natureza
se baseiam na teoria dos dois demônios, um “malabarismo retórico de quem acredita
que excessos foram cometidos dos dois lados e que, por isso, melhor seria deixar o
passado no passado”. Tal opinião foi veiculada por meio de coluna no jornal Folha de
São Paulo (2011) e serve de mola propulsora para essa investigação
Esse trabalho tem por objetivo demonstrar como os discursos políticos do
entorno da disputa pelos direitos à memória e à verdade fizeram uso da teoria dos dois
demônios no contexto brasileiro. A partir da análise de seu surgimento e de sua
utilização após o período ditatorial argentino de 1976-1983, problematizou-se: em que
medida se aproxima o uso discursivo da teoria dos dois demônios nas experiências de
justiça transicional da Argentina e do Brasil? Buscou-se averiguar os eventuais pontos de
consonância e dissonância presentes entre os conjuntos de discursos travados nas
realidades geográficas mencionadas.
Utilizou-se para tanto o método dedutivo, com análise de fontes bibliográficas
e documentais. Fizeram parte do acervo pesquisado, além da legislação que regeu as
experiências transicionais, autores que problematizaram tal fenômeno e discursos de
autoridades políticas e membros da sociedade civil que buscaram influenciar na
construção dos sentidos que performaram as disputas em torno das anistias e das
responsabilizações por crimes de direitos humanos. As fontes documentais, em todas as
subseções, foram trabalhadas de maneira contextualizada com a literatura sobre justiça
transicional e sobre a teoria dos dois demônios.
1 Nelson Azevedo Jobim, natural de Santa Maria/RS, é uma das figuras políticas mais importantes da história
constitucional brasileira no cenário pós-Constituição Federal de 1988. Além de ter sido Deputado Federal
pelo Rio Grande do Sul, ele exerceu os cargos de Ministro de Estado da Justiça, nomeado pelo ex-Presidente
Fernando Henrique Cardoso (PSDB), de Ministro do Supremo Tribunal Federal (nomeado pelo mesmo
Presidente da República) e de Ministro de Estado da Defesa, dessa vez nomeado pelo ex-Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) e mantido pela ex-Presidenta Dilma Roussef (PT).
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2 Para ficar apenas num dos vários votos que seguiram essa linha (Eros Grau, Gilmar Mendes etc.), a
Ministra Ellen Gracie afirmou que “o pedido alternativo de interpretação conforme que retirasse do âmbito
de abrangência da lei os atos praticados pelos agentes de repressão tampouco podem ser atendidos. Anistia
é, em sua acepção grega, esquecimento, oblívio, desconsideração intencional ou perdão de ofensas
passadas. É superação do passado com vistas a reconciliação de uma sociedade. E é, por isso mesmo,
necessariamente mútua. É o objetivo da pacificação social e política que confere a anistia seu caráter
bilateral. A esse respeito, Plutarco dizia: ‘uma lei que determina que nenhum homem será interrogado ou
perturbado por coisas passadas é chamada Anistia, ou lei do esquecimento’”.
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3No livro “Justiça de Transição no Brasil”, os autores se restringem a discutir e, em alguns momentos, de
maneira extremamente positivista e tradicional, a dificuldade de construir critérios externos para superação
da legalidade da Lei de Anistia, especificamente a extinção da punibilidade dos agentes de Estado, omitindo,
por exemplo, os aspectos de reparação que constam também na Lei n. 6.683/1979. Cf. DIMOULIS;
SWENSSON JÚNIOR; MARTINS, 2010.
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caso brasileiro reafirma parte das críticas feitas à justiça de transição no sentido de,
conforme aponta Quinalha (2012), veicular uma pretensão de universalidade extremada
em demasia, utilizar indiscriminadamente, para situações marcadamente distintas entre
si e para localidades que vivem momentos históricos diferentes, os mesmos
regramentos, e impingir uma normatividade ao desenvolvimento histórico que precisa
necessariamente ser observada e discutida.
Percebe-se, então, que a anistia, tradicionalmente vista como esquecimento e
perdão, passam a ser percebidas, pela colocação de uma nova memória que disputa
espaço com a oficial, pela assunção da responsabilidade estatal e pelo pedido de perdão
pelos erros cometidos no passado, como uma lei que repara as vítimas e realiza vários
eixos da justiça de transição. No caso brasileiro, a anistia não é vista apenas como
“esquecimento” (uma memória que não repercute penalmente), mas também como
ações que disputam essa memória, que reparam moral e civilmente, colaborando com a
solidificação das instituições democráticas. Deste modo, afirmam Payne, Abrão e Torelly
(2011), mesmo tendo sido concebida pelo regime como uma lei de amnésia, a Lei de
Anistia se transmutou no tempo, ao ponto de ser a Comissão de Anistia, 30 anos depois,
polo difusor de memória.
A teoria dos dois demônios, segundo Franco (2014, pp. 23), não existe como construção
propriamente teórica, epistemológica, mas como um “conjunto de representações
coletivas de ampla circulação, cujas formulações mais óbvias cristalizaram-se em alguns
enunciados públicos nos primeiros anos pós-ditatoriais”. Ainda segundo a autora (2014,
pp. 22), “a teoria dos dois demônios nunca foi enunciada como tal, nem em termos
positivos sob essa denominação; não existe como um corpus de ideias e nenhum grupo
se reconhece como autor ou promotor dela”.
A “teoria dos dois demônios” tem sua origem na Argentina, nos anos 1970 e
1980. Segundo Quinalha (2013), não há uma fonte única na criação do termo, uma vez
que vários atores colaboraram na sua delimitação. Nesse sentido, são fontes que
ajudaram a cunhar o termo: o escritor Ernesto Sábato, que presidiu a Comisión Nacional
sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) e que formulou o conhecido relatório
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Essa fala, além de revelar, de acordo com a versão oficial do momento, que a
esquerda havia excedido a legalidade, buscava, segundo Franco (2014), denunciar a
ação militar que violava os direitos humanos. Em 1983, já era de conhecimento de
Alfonsín, como membro da APDH, as graves violações que o Estado argentino havia
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de atuação para que a etapa mais sensível da justiça de transição na Argentina pudesse
seguir adiante, situação similar à ocorrida em outros países da região (Chile, Uruguai
etc.), mas que não teve o mesmo desfecho no Brasil 4.
No Brasil, também percebemos, por parte de alguns setores civis e militares, a utilização
da teoria dos dois demônios, principalmente (mas não somente) a partir da implantação
da CNV. Nos debates legislativos, em 1979, por uma anistia ampla, geral e recíproca,
aparecem, por exemplo, mesmo que incipientemente, elementos da teoria dos dois
demônios. O fato, no entanto, é que o uso de tal teoria, nos dois momentos (passado e
atual), difere quanto à finalidade buscada.
Com a apresentação do projeto do que viria a se tornar a Lei n. 6.683/1979
pelo ex-Presidente João Figueiredo, o debate resumiu-se aos dois parágrafos do seu
primeiro artigo. O primeiro considerava conexos aos crimes políticos os delitos de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação
política; o segundo excetuava do benefício da anistia os condenados pela prática de
crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal 5. Dos dois parágrafos, o
segundo atraiu ainda mais atenção que o primeiro, uma vez que, conforme sustenta Fico
(2010), os parlamentares do MDB apresentaram, de um total de 305, 209 emendas ao
projeto. Dentre essas, o partido submeteu 65 propostas de alteração do art. 1º, aí
incluídas nove substitutivas que ofereciam um novo projeto na íntegra. Dessas 65,
apenas 11 propunham a exclusão do perdão aos responsáveis pela repressão, 45
mantinham o benefício previsto no projeto de lei e 09 eram irresolutas.
Percebemos, nesses debates e propostas de emendas, os dois lados afirmando
que houve excessos por parte dos opositores, um afirmando que terroristas cometeram
crimes de sangue – como o fez o deputado Cantidio Sampaio (ARENA), em 23 de agosto
de 1979 (BRASIL, 2019) – e o outro dizendo que torturadores não poderiam ser
anistiados – como fizeram os deputados Marcos Cunha (MDB) e Elquisson Soares (MDB),
4 Em obra seminal na qual analisou os comportamentos das instituições jurisdicionais da Argentina, do Chile
e do Brasil em seus respectivos períodos ditatoriais na segunda metade do século XX, Pereira (2010) discute
as consequências dessa atuação para a conformação das etapas da justiça de transição após as
redemocratizações.
5 Tais propostas foram aprovadas sem modificações e constam na atual legislação.
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em 22 e agosto de 1979 (BRASIL, 2019a). Não obstante, só isso não traz a lume a figura
dos dois demônios, como exposto anteriormente.
Outros trechos dos debates deixam a figura dos dois demônios mais incipiente.
Por exemplo, quando Teotônio Vilela (ARENA), em 23 de agosto de 1979, afirmou que:
[...] é bom acabar com essa exploração do crime de sangue atribuído
exclusivamente aos que combateram contra a situação de poder dominante,
como se num estado de beligerância ou num estado de guerra como quer a
doutrina da Escola Superior de Guerra [...] só houve morte de quem morreu
de um lado e do outro não. Parece-me que Vladmir Herzog, os que caíram
no Araguaia, nas ruas, em tantos cárceres – não eram desprovidos da
condição humana. Ou eram de outro planeta. [...] Dizer que o Movimento
de 31 de março de 1964, como todos os seus similares no passado, decorreu
de forma incruenta é escarnecer dos mortos. E se houve morte de parte a
parte, houve sangue de parte a parte (BRASIL, 2019b, pp. 1663).
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6 Trata-se de uma organização não governamental internacional que fiscaliza violações de direitos humanos
nos mais variados temas, além de propor medidas para a sua contenção. Para uma consulta sobre suas
atividades, cf. https://www.hrw.org/pt/americas/brasil. Acesso em: 10 set. 2019.
7 Gilson Dipp foi ministro do Superior Tribunal de Justiça de 29/06/1998 a 25/09/2014, nomeado pelo ex-
Presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Foi o primeiro Coordenador da CNV, mas não
chegou a encerrar os trabalhos, afastando-se por motivos de saúde.
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deveriam ser investigados (G1, 2012b). Segundo esse último, a comissão é fruto de uma
lei que reconheceu que o Estado brasileiro violou direitos humanos por meio de
servidores públicos. Sabemos que a última opinião foi a que prosperou, mas isso não
encerrou os debates que contemplam a teoria dos dois demônios.
Buscando afastar qualquer dúvida sobe o papel da Comissão Nacional da
Verdade, foi editada a Resolução n. 02/2012. O art. 1º da resolução esclareceu que à
“Comissão Nacional da Verdade cabe examinar e esclarecer as graves violações de
direitos humanos praticadas, no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou
no interesse do Estado”. Ainda assim, não faltou, ao final do CNV, principalmente por
setores ligados às Forças Armadas, quem chamasse a comissão de “comissão da
inverdade”, “comissão do revanchismo” etc. Situamos, então, nesse período, a inserção,
a fixação e a multiplicação, por civis e militares, da teoria dos dois demônios no debate
sobre a responsabilização de militares que ultrapassaram o limite legal do regime de
1964. Nesse instante, passa a teoria a ser utilizada com a finalidade de embaraçar e
impedir, por meio da retórica da violência de lado a lado, a possibilidade de os ex-
agentes de Estado serem investigados e responsabilizados pelos crimes de direitos
humanos praticados.
Mais recentemente, já em 2019, em resposta ao ato do Presidente da
República, Jair Messias Bolsonaro (sem partido), que decidiu comemorar o Golpe Civil-
Militar de 1964 nos estabelecimentos castrenses, o Min. Gilmar Mendes, em decisão no
Mandado de Segurança 36.380/DF, ressaltou que, durante o regime de exceção:
A contraposição ideológica permitiu a realização de diversas agressões, que
se constituíram em fatos típicos criminais, praticados, de um lado, pelo
Estado forte e monopolizador do aparelho organizatório e, de outro, por
núcleos de cidadãos ideologicamente contrários. Não obstante o desnível de
potencialidade ofensiva exercida durante os tempos de beligerância é
preciso observar que tanto houve agressões praticadas pelo Estado – por
meio de seus agentes repressores – quanto por intermédio de cidadãos
organizados politicamente, em derredor de um direcionamento político.
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Para Mendes, é notório que, em muitos casos, “os autores desses tipos de
crimes violentos pretendiam estabelecer sistema de governo totalitário, inclusive com
apoio, financiamento e treinamento concedidos por ditaduras estrangeiras”.
Apesar de afirmar que havia desproporção entre os atos do Estado e dos
opositores do regime de exceção, Mendes iguala os motivos dos dois grupos ao afirmar
que ambos “pretendiam estabelecer sistema de governo totalitário, inclusive com apoio,
financiamento e treinamento concedidos por ditaduras estrangeiras”. Ele também
equipara ambos os lados ao pontuar que “é certo que muitos dos que recorreram a estes
delitos não buscavam a normalidade democrática”. Entendemos que há aí uma
percepção de que ambos os lados erraram e isso justifica o seu tratamento isonômico.
Não haveria culpa por parte dos agentes do Estado, do próprio Estado e de sua
desproporcional máquina de violência, mas reação, defesa, lei e ordem.
Percebemos também que a utilização da teoria busca por em equiparação a
violência realizada por ambos os lados, equivalendo as suas forças, não se discutindo
quem foi mais violento ou quem iniciou tais atos. Os discursos sobre erros dos dois lados
ressoaram muito além dos agentes estatais e dos membros da Comissão Nacional da
Verdade. A teoria dos dois demônios circula há um tempo entre alguns setores da
sociedade e ganha espaço na disputa pela memória sobre o regime civil-militar de 1964-
1985.
O que percebemos com o uso da teoria dos dois demônios no Brasil é a
estratégia de tentar estabelecer um parâmetro entre as ações do Estado (agentes de
Estado) e dos que a ele resistiam. Defende-se a existência de “dois lados” em confronto
na época, ambos com certa legitimidade histórica para suas ações, mas com excessos
que seriam condenáveis e, portanto, puníveis (QUINALHA, 2013). Deste modo, se grupos
contra o regime de exceção violaram a lei para resistir e depô-lo, nenhum torturador
pode ser punido. Se há um demônio cá, ninguém exorciza o diabo de lá! Nessas últimas
análises, a teoria dos dois demônios está bem alinhada com a teoria argentina e o que
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percebemos é que, no Brasil, ela foi/é posta como um escudo de impunidade para os
agentes do Estado que exorbitaram os limites da lei.
É importante ressaltar que a “teoria dos dois demônios” e sua derivação – o
fato de que, se forem processar os militares, deverão também punir os que se opuseram
à ditadura – não deve ter guarida. De acordo com Quinalha (2013): primeiro, porque foi
justamente o golpe civil-militar que forçou uma atuação clandestina e armada de grupos
de esquerda; segundo, porque não havia a prática sistemática, por parte das
organizações opositoras da ditadura, de táticas de guerrilha ou atos de terrorismo;
terceiro, por não ser razoável colocar no mesmo lado quem agiu fora da lei (agentes do
Estado) e quem resistiu a esse arbítrio, como sustenta Safatle (2011). Por fim, ressalte-
se que o argumento de que, se forem punir os militares, também devem punir quem se
opôs à ditadura civil-militar, não deve prosperar, posto que os indivíduos que se
opuseram ao regime de exceção foram processados e julgados ainda durante o
momento ditatorial, sendo exorbitante o número de processos de “subversivos” no
período8.
A defesa de setores de dentro do governo e da sociedade civil por uma
verdade, digamos, mais ampla, apresentando fatos não revelados por ambos os lados,
pelos agentes do Estado e por quem se opôs à ditadura de 1964-1985, pode justificar-se
na tentativa de lastrear sua fala em um porto legítimo, pois ficaria numa posição
“neutra” da disputa por essa memória ao apresentar também os abusos do lado da
oposição política. Entretanto, ao tomar essa postura, pode-se estar legitimando
justamente o argumento de que a violência dos agentes do Estado foi uma resposta à
violência dos opositores do regime de exceção, que as violências eram equiparadas e
esquecer que os agentes do Estado deveriam proteger, conforme a Constituição do
regime de exceção, a integridade física de qualquer cidadão.
8 Isso sem falar nas recentes descobertas sobre a farta parcialidade dos julgamentos protagonizados pelas
cortes militares em desfavor de “subversivos” no período 1964-1985. Uma recente reportagem da Revista
Época (2017) evidenciou, com base no acesso a gravações inéditas dos julgamentos de presos políticos no
período ditatorial, como os ministros do Superior Tribunal Militar flexibilizavam a interpretação normativa
em prol da condenação de presos políticos submetidos a torturas, maus tratos e privações das mais
diversas.
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5. Conclusão
Esquecimento e memória não são dados naturais, mas construções sociais que
caminham juntas. As discussões de justiça de transição levam em consideração esses
pressupostos, pois tanto a anistia quanto o direito à memória como seleção do que deve
ser lembrado como memória oficial construída pelo Estado estão em constante disputa.
Assim, qualquer seleção de esquecimento ou memória é uma decisão político-
ideológica.
Os institutos jurídicos não se encontram estáveis ao ponto de podermos
extrair deles uma natureza jurídica. Percebemo-los sempre tensionados por interesses
das mais diversas ordens. A anistia política é um bom exemplo, pois, a despeito de seu
julgamento pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 153/DF, a disputa pela determinação do seu sentido continua em
desenvolvimento dentro e fora do Estado 9. Observamos posicionamentos que buscam
ampliar a anistia e outros que buscam restringir seu alcance, a saber: as decisões dos
casos Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) v. Brasil (2010) e Herzog e Outros
v. Brasil (2018), os julgamentos da Comissão de Anistia, o relatório da Comissão
Nacional da Verdade, os posicionamentos do Ministério da Defesa sobre os anistiados,
grupos civis organizados etc.
As memórias se alinham a outro tipo de anistia, pois, ao lado da anistia como
“esquecimento” do Direito Penal, há a anistia como reparação. Ao se anistiar, busca-se
apaziguar a sociedade, afiançando que determinados fatos serão “esquecidos” e que
algumas pessoas terão direito a reparações de modo a restituir-lhes, na maior medida
possível, sua condição anterior ao dano. Se anistia fosse apenas esquecimento dos fatos,
seu aspecto reparador findaria destituído de sentido e eficácia, tornando-se
contraditório determinar o esquecimento de determinado fato e, ao mesmo tempo,
reparar suas consequências. Assim, pelo eixo da reparação, trazem-se à tona as
memórias suprimidas que passam, a partir daí, a disputar espaço com a memória oficial
imposta como verdade histórica.
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Sobre os autores
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David F. L. Gomes¹
¹ Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail:
davidflg@ufmg.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0948-5860.
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Resumo
Este artigo pretende discutir lacunas teóricas e conceituais na obra de Boaventura Santos
a partir de sua vinculação ao Grupo Modernidade/Colonialidade, especialmente no que
se refere ao direito. Para tanto, inicialmente são apresentadas, em linhas gerais, a história
desse grupo e suas características fundamentais. Na sequência, são debatidas as
similaridades e as possíveis divergências entre as concepções de B. Santos e o
pensamento decolonial, mesmo antes de sua vinculação oficial. Em seguida, os principais
desenvolvimentos teóricos e conceituais na obra de B. Santos a partir dessa vinculação
são debatidos. Finalmente, as lacunas mencionadas são diretamente abordadas.
Palavras-chave: Boaventura Santos; Giro Decolonial; Direito; Emancipação.
Abstract
This paper aims at discussing the theoretical and conceptual shortcomings in Boaventura
Santos' work from his linking to the Modernity/Coloniality Group, especially with regard
to the law. To do so, it first presents, in general terms, the history of that group and its
fundamental features. After that, it debates the similarities as well as possible divergences
between B. Santos' conceptions and the decolonial thinking, even before their official
linking. Next, it approaches the main theoretical and conceptual developments in the
work of Boaventura Santos from his linking to the decolonial thinking. Finally, the
aforementioned theoretical and conceptual shortcomings are directly adressed.
Keywords: Boaventura Santos; Decolonial Turn; Law; Emancipation.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.77-101.
David F. L. Gomes e Rayann K. Massahud de Carvalho
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1. Introdução
Nos últimos anos, tem aumentado a influência de um movimento intelectual cujo objetivo
declarado é a renovação da crítica latino-americana (BALESTRIN, 2013, p. 89). Esse
movimento, conhecido em geral como pensamento decolonial ou giro decolonial,
organizou-se inicialmente em torno do Grupo Modernidade/Colonialidade, que coloca
sua ênfase no conceito de colonialidade compreendida como a face violenta e oculta da
modernidade (MIGNOLO, 2017, p. 13).
Embora ancore sua crítica na categoria da colonialidade, esse movimento busca
distinguir-se de outras vertentes que, também dedicadas à crítica das relações coloniais
e de seus efeitos para além do desfazimento dos vínculos coloniais formais, poderiam ser
englobadas como “pós-coloniais”. Duas características podem ser apontadas como
centrais para a origem dessa distinção: a busca, internamente ao pensamento decolonial,
por uma separação definitiva em face de autores eurocêntricos (BALLESTRIN, 2013, p. 94-
95) – ou pelo menos daqueles ligados mais diretamente ao pós-estruturalismo francês –
e uma maior preocupação em garantir que as especificidades da América Latina não
permanecessem desconsideradas no debate (BALLESTRIN, 2013, p. 95-96).
Apesar de não haver participado da origem do movimento, um autor conhecido
e relevante já há algumas décadas para a crítica teórica e prática no Brasil veio a
aproximar-se do pensamento decolonial: Boaventura de Sousa Santos (CASTRO-GOMEZ;
GROSFOGUEL, 2007, p. 11), (MIGNOLO, 2010, p. 7), (BALLESTRIN, 2013, p. 97), (BELLO,
2015, p. 51).
B. Santos sempre dedicou atenção especial ao Brasil em suas pesquisas 1 e
influenciou, como ainda influencia, as universidades e os movimentos sociais brasileiros.
Entretanto, apesar da sua relevância e de sua relação próxima com o Brasil, há
pouquíssimos estudos sistematizados no país sobre sua vasta obra, estudos de fôlego
dedicados a explicitar seus principais conceitos, as mudanças que sofreram ao longo das
décadas e as tensões que daí emergem.2
1É válido citar, a título meramente exemplificativo, a tese de doutorado defendida em 1973, na Universidade
de Yale (EUA), publicada no Brasil com o título “O direito dos oprimidos” (SANTOS, 2014), e o projeto
“Reinventar a emancipação social a partir do Sul”, em que o Brasil é um dos seis países abrangidos (SANTOS,
2007b, p. 21).
2 Os pouquíssimos exemplos disponíveis desses estudos em regra não abrangem toda a obra, em seus
múltiplos aspectos, mas destacam uns ou outros de seus elementos. Conferir, por exemplo: CARVALHO, 2019.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.77-101.
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3 Um excelente panorama dessa reflexão pode ser encontrado em SANTOS, 2003, bem como no dossiê
organizado pela Revista Direito e Práxis, intitulado “Revisitando 'Poderá o Direito ser emancipatório?'”,
organizado pelos professores Boaventura de Sousa Santos e Orlando Aragón Andrade (SANTOS; ANDRADE,
2015)
4 Isso não quer dizer que não haja produções relevantes. Por exemplo, PAZELLO, 2014.
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82
5 Por causa da pluralidade interna ao pensamento decolonial, esse afastamento em relação à influência pós-
moderna, mais especificamente em relação ao pós-estruturalismo francês, não pode ser tomada como uma
característica geral que permanece inalterada para além do momento de fundação do Grupo
Modernidade/Colonialidade. A obra de um autor como Santiago Castro-Gómez, por exemplo, não mantém
esse afastamento.
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Essa transição não seria apenas entre modos de produção econômicos, como
era pensada na chave do marxismo mais ortodoxo, mas entre formas de sociabilidade,
incluindo a dimensão social, cultural, política e econômica (SANTOS, 2011, p. 168).
Não é difícil vislumbrar aqui uma similaridade com a crítica pós-moderna à
modernidade, crítica que, respeitadas as divergências internas entre tantas e tantos
autores distintos, é também compartilhada pelos estudos pós-coloniais.
Como dito acima, o Grupo Modernidade/Colonialidade terá como um dos
motivos fundamentais de seu surgimento a busca por afastar-se do pós-colonialismo,
busca justificada exatamente pela influência que nele se fazia sentir de autores e de
autoras ligados aos argumentos e aos afetos da pós-modernidade (PAZELLO, 2014, p. 89-
90).
A posição de Enrique Dussel quanto ao tema é exemplar quanto à relevância
que esse afastamento possui para o pensamento decolonial. Segundo ele, as correntes
pós-modernas, diferentemente dos estudos decoloniais, acabariam caindo em um
reducionismo vulgar tão grande quanto aqueles levados a cabo pela modernidade
eurocêntrica mesma. Pois, segundo o filósofo argentino radicado no México, nos estudos
pós-modernos
Se critica uma certa unilateralidade com outra de sentido contrário, e se cai
naquilo que se critica. Desde uma crítica panóptica pós-moderna repete-se a
pretensão universal da Modernidade; ou seja, “a pós-modernidade – nos diz
Eduardo Mendieta – perpetua a intenção hegemônica da modernidade e da
Cristandade ao negar-lhe a outros povos a possibilidade de nomear a sua
própria história e de articular seu próprio discurso autorreflexivo” (DUSSEL,
2017, p. 3237-3238).
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novo e radical que separa a natureza da sociedade, o corpo da razão; que não
sabe o que fazer com a questão da totalidade, negando-a simplesmente,
como o velho empirismo ou o novo pós-modernismo, ou entendendo-a só
de modo organicista ou sistêmico, convertendo-a assim numa perspectiva
distorcedora, impossível de ser usada salvo para o erro (QUIJANO, 2014, p.
157, destaques nossos).
6 O próprio Enrique Dussel chega a utilizar, na década de 1970, a nomenclatura pós-moderna para definir o
seu projeto teórico, projeto que hoje assume o nome de transmodernidade. Conferir: DUSSEL, 1977; DUSSEL,
2015.
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pensamento crítico que nela havia sido inaugurado. Para esse pós-modernismo, a crítica
à modernidade acabava “paradoxalmente na celebração da sociedade que ela tinha
conformado” (SANTOS, 2004, p. 4-5). Por conseguinte, à sua concepção de pós-
modernidade, em contraposição ao pós-modernismo celebratório típico dos Estados
Unidos e da Europa, B. Santos optou por chamar de “pós-modernismo de oposição”
(SANTOS, 2004, p. 4-5).
Da perspectiva de B. Santos, haveria uma relação entre o pós-modernismo
celebratório e o pós-colonialismo dominante, sendo que o primeiro exerce influência
sobre o segundo, o que levaria a um eurocentrismo, ou melhor, a um etnocentrismo dos
estudos pós-coloniais (SANTOS, 2004, p. 11-12). Assim, sem negar totalmente o mérito
das concepções pós-modernas e pós-estruturalistas na emergência dos estudos pós-
coloniais, essas concepções não seriam capazes de corresponder às aspirações éticas e
políticas subjacentes ao pós-colonialismo (SANTOS, 2004, p. 13). Essa crítica, porém, não
se aplicaria ao pós-modernismo de oposição (SANTOS, 2004, p. 13), pois este compreende
a superação da modernidade desde uma perspectiva tanto pós-colonial quanto pós-
imperial, situando-se nas margens mais extremas da modernidade nortecentrada para, a
partir desse lugar epistêmico, lançar sobre ela um olhar crítico (SANTOS, 2004, p. 18-19).
Estabelecida a diferença entre “pós-modernismo celebratório” e “pós-
modernismo de oposição”, não é difícil perceber o quanto a proposta de B. Santos já
guardava afinidades eletivas com as bases fundamentais do Grupo
Modernidade/Colonialidade antes da efetiva aproximação entre eles7. Quanto à tarefa de
superação da modernidade/colonialidade, por exemplo, ela consiste para W. Mignolo em
[...] contar as histórias não apenas a partir do interior do mundo “moderno”,
mas também a partir das fronteiras. A partir de histórias “[...] esquecidas
que trazem para o primeiro plano [...] uma nova dimensão epistemológica:
uma epistemologia da, e a partir da margem do sistema mundial
colonial/moderno”. (MIGNOLO, 2002, p. 83, destaques nossos)
7 Para críticas algo semelhantes ao pós-modernismo, conferir, por exemplo: DUSSEL, 2017; QUIJANO, 2014;
MIGNOLO, 2017.
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8 Voltando ao tema da influência de autores e de autoras ligadas ao pós-estruturalismo nos estudos pós-
coloniais, ela também foi identificada por W. Mignolo, sendo um dos motivos determinantes para o
afastamento dos autores e das autoras decoloniais em relação aos estudos pós-coloniais. Conferir: MIGNOLO,
2008. Ver, porém, nota 5 acima.
9 Por exemplo, no texto “Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e de outro”, B. Santos debate
com o movimento pós-colonial. No entanto, no próprio texto, ele responde a uma crítica realizada por W.
Mignolo em relação ao fato de sua teoria manter-se “demasiadamente dentro da modernidade” (SANTOS,
2004, p. 20). Nesse mesmo texto, B. Santos discorda da concepção de A. Quijano quanto à derivação das
formas de dominação na modernidade (SANTOS, 2004, p. 27). Ao mesmo tempo, no texto “Entre próspero e
Calibã: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade”, texto também destinado ao tema, ele cita “Homi
Bhabha”, “Gayatri Spivak”, “Renajit Guha”, entre outros (SANTOS, 2007, p. 234), como sendo integrantes do
“movimento pós-colonial”.
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Por tudo o que foi dito na seção anterior, não demoraria para que a aproximação entre
Boaventura Santos e o Grupo Modernidade/Colonialidade ocorresse, vindo aquele a
tornar-se membro deste.
Porém, a posição de Boaventura Santos também diante de autores e autoras
decoloniais não é uma posição de compartilhamento pleno de pressupostos e conclusões.
Como desdobramento de sua aproximação ao pensamento decolonial, e ao mesmo
tempo em contraste com o pensamento decolonial, B. Santos cunha a expressão “pós-
colonialismo de oposição” (SANTOS, 2004, p. 22).
Não fica exatamente claro a que se referiria esse pós-colonialismo de oposição
e o que ele traria de novidade em face do giro decolonial e do Grupo
Modernidade/Colonialidade. Mesmo não ficando completamente claro, todavia, parece
que dois aspectos são relevantes para compreender-se a singularidade que B. Santos
reivindica para si. O primeiro refere-se a uma maior ênfase na crítica ao capitalismo, que,
segundo Boaventura Santos, receberia, em regra, pouca atenção do movimento pós-
colonial dominante em comparação com a atenção dada à modernidade e ao colonialismo
(SANTOS, 2004, p. 28)10.
O segundo aspecto trata da consideração da especificidade da colonização,
sobretudo as relações Portugal/colônias e Portugal/mundo (SANTOS, 2004, p. 43-
44)(SANTOS, 2006, p. 244), que acabaria ofuscada na compreensão homogeneizante da
colonização latino-americana junto ao Grupo Modernidade/Colonialidade.
Esse segundo aspecto é particularmente interessante na medida em que aponta
para uma contradição interna ao Grupo Modernidade/Colonialidade, pois, ao mesmo
tempo em que o grupo criticara a homogeneização dos processos de colonização e de
colonialidade que acabava por ofuscar as singularidades latino-americanas, acabara por
homogeneizar as relações coloniais e de colonialidade na América Latina, ao tratar a
América Latina como um todo uniforme (SANTOS, 2006, p. 243-244).
Para B. Santos, da mesma maneira que há diferenças internas ao colonialismo
inglês e entre este e o colonialismo ibérico, há peculiaridades no colonialismo ibérico, pois
há especificidades do colonialismo português em relação ao espanhol, derivadas tanto da
posição específica – semiperiférica – de Portugal no mundo quanto do modo específico
de sua relação com suas antigas colônias (SANTOS, 2006, p. 244). Essas distinções não
10 Essa crítica dificilmente se sustenta em face da obra de E. Dussel e A. Quijano. Conferir: DUSSEL, 2007;
QUIJANO, 2010; 2014.
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5. O sul global
Datado de 2010, “Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una
epistemología del Sur” (SANTOS, 2010), é um texto que condensa provavelmente a maior
e mais desenvolvida parte desses desenvolvimentos que os estudos e escritos de B. Santos
seguirão desde sua vinculação ao Grupo Modernidade/Colonialidade.
Segundo o autor, há dois grandes sistemas de dominação do mundo inscritos na
modernidade, o capitalismo e o colonialismo, ao mesmo tempo diferentes e inseparáveis
(SANTOS, 2010, p. 60-61). Portanto, haveria três grandes desafios para o pensamento
crítico na América Latina: o pós-colonialismo, o pós-capitalismo e a articulação entre eles
(SANTOS, 2010, p. 29).
O colonialismo seria, então, uma das principais dificuldades a serem enfrentadas
pela “imaginação política”, ao lado do capitalismo. Pois, enquanto os governos oficiais
pensam, quando muito, um pós-capitalismo a partir do capitalismo e os movimentos
indígenas a partir do pré-capitalismo, nem um dos dois logra imaginar “o capitalismo sem
o colonialismo interno” (SANTOS, 2010, p. 26). Para Boaventura Santos,
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12 Da mesma forma, no texto “Para além do pensamento abissal: das linhas abissais globais a uma ecologia
dos saberes”: “[...] Sul global não-imperial, concebido como metáfora do sofrimento humano sistêmico e
injusto provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo (SANTOS, 2009, p. 37).
13 Naquele contexto, a modernidade era compreendida como ancorada fundamentalmente na tensão entre
dois pilares, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. O pilar da regulação seria composto pelo princípio
do Estado, pelo princípio do mercado e pelo princípio da comunidade. O pilar da emancipação seria
constituído pela racionalidade estético-expressiva, pela racionalidade cognitivo-instrumental e pela
racionalidade moral-prática. Contudo, no transcurso da modernidade, teria vindo a ocorrer um desequilíbrio
internamente aos referidos pilares e entre eles: no pilar da emancipação houve a colonização das diferentes
racionalidades pela racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, e as potencialidades da emancipação
passaram a estar concentradas na ciência e na técnica; no pilar da regulação, por sua vez, houve o
desenvolvimento excessivo do mercado (SANTOS, 2011, p. 49-57); a consequência foi a absorção do pilar da
emancipação pelo pilar da regulação. Em outros termos, a “[...] redução da emancipação moderna à
racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, e a redução da regulação moderna ao princípio do mercado,
incentivadas pela conversão da ciência na principal força produtiva, constituem as condições determinantes
do processo histórico que levou a emancipação moderna a render-se à regulação moderna” (SANTOS, 2011,
p. 57).
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Nessa chave de leitura, passa a ser entendida como uma das marcas da
modernidade o caráter abissal do pensamento dominante nela produzido. Dividindo o
mundo em dois, entre Norte e Sul global, esse pensamento abissal consiste em distinções
visíveis e invisíveis, sendo que estas fundamentam aquelas ao dividir o mundo entre o
lado de cá e o lado de lá da linha – das linhas abissais. Essa cisão opera de tal maneira que
o outro lado da linha é invisibilizado, é tornado inexistente e, como existência tornada
inexistente pelo traçar mesmo das linhas abissais, sofre a exclusão radical, não se
encaixando sequer naquilo que a concepção dominante do “mesmo” aceita como sendo
o “outro” (SANTOS, 2009, p. 23-24).
Duas seriam as principais manifestações do pensamento abissal – não por acaso,
as duas categorias que melhor elucidavam, anteriormente em seu pensamento, a tensão
moderna entre emancipação e regulação: o direito moderno e o conhecimento moderno.
Em relação a este, o que estaria em jogo, “deste lado da linha” é a pretensão da ciência
moderna quanto ao monopólio do critério da verdade, em detrimento de formas outras
de conhecimento, como a filosofia e a teologia; ao mesmo tempo, “do outro lado da
linha”, formas variadas de conhecimentos populares não são sequer reconhecidas como
conhecimento, estando para além da própria distinção verdadeiro/falso (SANTOS, 2009,
p. 24-25).
Já no que tange ao direito, no “lado de cá da linha” – isto é, no Norte –, ele é
determinado pelo que se compreende como legal ou ilegal, a partir do direito oficial
estatal e internacional, sendo essa distinção entre legal e ilegal a única relevante e
tomada, por isso mesmo, como universal. Logo, é desconsiderado todo um conjunto de
relações perante as quais essa clivagem legal/ilegal em termos oficiais não faz sentido
(SANTOS, 2009, p. 26). Do “lado de lá da linha”, entretanto, não é nem mesmo a distinção
legal/ilegal que opera, ainda que gerando problemas quanto a relações não captáveis
adequadamente por ela: no Sul, as relações sociais são tomadas como situadas para além
de uma compreensão de mundo passível de ser organizada em torno da distinção entre
legal e ilegal – trata-se do simplesmente “sem lei” que repete em tom menos alegórico a
velha máxima segundo a qual não há pecado para além da linha do Equador (SANTOS,
2009, p. 28).
As linhas abissais assim traçadas dividem o mundo entre Norte e Sul negando a
possibilidade da co-presença, da presença comum entre formas de saber e de viver
distintas, e, na medida em que essa negação da co-presença se dá por meio de uma
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negação ativa da existência válida daquilo que está para além das linhas, produz-se um
desperdício de experiências, vivências, experimentações da realidade. Também aqui não
é difícil ouvir os ecos da velha crítica de Boaventura Santos aos desperdícios de uma
“razão indolente” (SANTOS, 2011), mas essa velha crítica aparece agora talhada em uma
linguagem claramente influenciada pelo pensamento decolonial.
Ao mesmo tempo, é também aqui que a continuidade entre seus estudos
anteriores e suas novas perspectivas recebe uma forte suspeita de não se sustentar sem
reformulações mais profundas do que prevalecera até então. Devido à separação em dois
universos distintos, entre metrópole e territórios coloniais, entre Norte e Sul, a tensão
que fundamenta a modernidade, assim como seus conflitos, entre emancipação e
regulação só se aplica nas sociedades metropolitanas, ou seja, no Norte global, não
fazendo sentido perante as sociedades coloniais. Nestas, a dicotomia presente é a da
apropriação/violência (SANTOS, 2009, p. 24), que se manifesta de formas distintas no que
tange às linhas abissais epistemológica e jurídica – mas se manifesta em ambas.
A existência dessa outra tensão, do “outro lado da linha”, no Sul global,
diferentemente da tensão entre regulação e emancipação, coloca, em princípio, o caráter
universal desta última dicotomia em xeque. Com ela, naquilo que interessa mais de perto
ao presente artigo, ameaça ruir também a defesa de B. Santos de que o direito poderia,
sim, ser emancipatório, a depender dos usos que se deem a ele (SANTOS, 2003).
Para tentar lidar com esses riscos que emergem diante de ambas as formulações
– a de uma dicotomia regulação/emancipação organizando uma modernidade que, a um
só tempo, é cindida por linhas abissais que fazem com que aquela dicotomia tenha de
conviver globalmente com outra, a da apropriação/violência –, é necessário
compreender-se toda a complexidade da articulação possível entre elas.
Dentro dessa proposta, pode-se afirmar que as linhas abissais globais
historicamente se deslocaram, sofreram “abalos tectônicos”, sendo o primeiro deles
referente aos processos de independência e às lutas anticoloniais das antigas colônias,
em que o “lado de lá da linha” voltou-se em atuações concentradas e concertadas contra
a exclusão e os povos que “haviam sido sujeitos ao paradigma da apropriação/violência
se organizaram e reclamaram o direito à inclusão no paradigma da
regulação/emancipação” (SANTOS, 2009, p. 32).
O segundo abalo tectônico, por sua vez, vem ocorrendo desde 1970 e 1980.
Nele, as linhas abissais globais movimentam-se no sentido de que o Sul parece estar a
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pluralismo jurídico, contribui ou não para a redução das desigualdades e para a inclusão.
Se o fizer, aí sim está-se diante de um direito não-hegemônico e contra-hegemônico, uma
“pluralidade jurídica cosmopolita” (SANTOS, 2003, p. 39).
Por outro lado, porém, o direito hegemônico não é totalmente excluído do
cosmopolitismo subalterno. Em primeiro lugar, porque é possível o uso não-hegemônico
de ferramentas jurídicas hegemônicas: isto é, “a legalista cosmopolita perfilha uma visão
não-essencialista do direito estatal e dos direitos” (SANTOS, 2003, p. 37), de modo que o
que torna esse direito um direito hegemônico é o uso que classes e grupos dominantes
dão a ele, não sendo uma questão de um direito que seria, desde sempre e para sempre,
ontologicamente hegemônico. Em segundo lugar, contudo, nem mesmo um uso
hegemônico do direito estatal e dos direitos individualistas que o caracterizam – a
“legalidade demoliberal” – estão descartados: “as lutas cosmopolitas podem aliar com
proveito estratégias jurídicas cosmopolitas e estratégias demoliberais, originando assim
híbridos político-jurídicos de vários tipos” (SANTOS, 2003, p. 41). Um bom exemplo desses
híbridos seriam as lutas pelos direitos humanos15.
Em face de toda essa dinâmica complexa envolvida na legalidade cosmopolita
subalterna, B. Santos concluiu que o “direito não pode ser nem emancipatório, nem não-
emancipatório, porque emancipatórios e não-emancipatórios são os movimentos, as
organizações e os grupos cosmopolitas subalternos que recorrem à lei para levar as suas
lutas por diante” (SANTOS, 2003, p. 71). O que, em outras palavras, significa concluir tanto
pela possibilidade da emancipação em nível global quanto pela utilização emancipatória
do direito nas lutas subalterno-cosmopolitas contra a globalização hegemônica.
Todavia, essa clareza de conclusão abre-se a ser questionada no momento em
que a reflexão sobre o direito passa a ser atravessada pela clivagem colonial, pela
centralidade recebida pela distinção Norte/Sul e pela correlata dicotomia
apropriação/violência.
Em termos gerais, se a tensão regulação/emancipação é situada “do lado de cá
da linha”, como ainda seria possível pensar a emancipação “do lado de lá da linha”, isto
é, no Sul Global, onde precisamente se situam as situações e experiências que mais
clamam por justiça social? O modo topográfico – ou, para usar seus próprios termos,
cartográfico – como B. Santos lida com as duas dicotomias parece enredar sua obra em
15 É válido mencionar que A. Quijano também atribui uma relevância significativa aos direitos humanos.
Conferir: QUIJANO, 2001.
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onde mais se necessita que ele o seja: no Sul Global, como um instrumento a mais de suas
lutas contra as ameaças crescentes de uma globalização hegemônica. Enfim, poderá o
direito, em seus usos emancipatórios, ser também uma ferramenta de uso decolonial?
7. Referências bibliográficas
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Sobre os autores
David F. L. Gomes
Professor efetivo da Faculdade de Direito da UFMG. Doutor, mestre e bacharel em
Direito pela UFMG. E-mail: davidflg@ufmg.br
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David F. L. Gomes e Rayann K. Massahud de Carvalho
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/43745| ISSN: 2179-8966
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ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8237-2470.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1971-9130.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 102-138.
Deisy de Freitas Lima Ventura, Fernando Mussa Abujamra Aith e Danielle Hanna Rached
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/49180| ISSN: 2179-8966
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Resumo
A Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, regula medidas de saúde pública relacionadas
à emergência do novo coronavírus com alto potencial restritivo de direitos
fundamentais, inclusive a quarentena e o isolamento. Esta análise crítica aborda a
dimensão internacional da emergência, além da tramitação casuística e antidemocrática
da lei brasileira. Com base na legislação epidemiológica em vigor, escrutina estas
medidas excepcionais e as salvaguardas à sua implementação.
Palavras-chave: Quarentena; Coronavírus; Emergência Internacional.
Abstract
Law no. 13,979, of February 6, 2020, regulates public health measures related to the
emergence of the new coronavirus with high potential to restrict fundamental rights,
including quarantine and isolation. This critical analysis addresses the international
dimension of the emergency, and the casuistic and anti-democratic procedure of the
Brazilian law. Based on the epidemiological legislation in force, it scrutinizes restrictive
measures and safeguards for its implementation.
Keywords: Quarantine; Coronavirus; International Emergency.
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Introdução
1 BRASIL. Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da
emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo
surto de 2019. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 7 fev. 2020.
2 Cf. artigo 1°§ 3° da lei de quarentena.
3 OMS. Statement on the second meeting of the International Health Regulations (2005) Emergency
Committee regarding the outbreak of novel coronavirus (2019-nCoV). Genebra, 30 jan. 2020. Disponível em
<https://www.who.int>. Acesso em 28 fev. 2020.
4 A primeira denominação adotada pela OMS foi “novo coronavirus 2019” (em inglês, “2019 novel
internacional de uma nova doença. No caso do novo coronavírus, porém, a declaração faz referência à
rapidez da propagação, ao número de casos graves e à insuficiência da resposta, cf. WHO Director-General's
opening remarks at the media briefing on COVID-19 - 11 March 2020. Genebra, 11 mar. 2020. Disponível em
<https://www.who.int>. Acesso em 11 mar. 2020.
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Rabolini. Instituto Humanitas Unisinos, 27 fev. 2020. Após a publicação do citado artigo, as medidas
excepcionais na Itália tornaram-se ainda mais extensas e drásticas, v. Itália. Conselho de Ministros. Decreto
del Presidente - Ulteriori disposizioni attuative del decreto-legge 23 febbraio 2020, n. 6, recante misure
urgenti in materia di contenimento e gestione dell'emergenza epidemiologica da COVID-19 (20A01522).
Diário Oficial, Serie Generale Roma, n.59, 08 mar. 2020.
9 ALONGE, Guillaume; GUARNIERI, Francesca. Le patient italien ou la vie au temps do Coronavirus. AOC -
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12 GOSTIN, Lawrence et al. “The legal determinants of health: harnessing the power of law for global health
and sustainable development”. The Lancet, v. 393, n. 10183, pp. 1857-1910.
13 OMS. Constituição (1946). In: BRASIL. Decreto n. 26.042, de 17 de dezembro de 1948. Promulga os Atos
firmados em Nova York a 22 de julho de 1946, por ocasião da Conferência Internacional de Saúde. Diário
Oficial da União (DOU), Rio de Janeiro, RJ, 25 jan. 1949, especialmente artigos 2° e 21 a 23.
14 BRASIL. Decreto n. 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto revisado do RSI, acordado na 58 a
Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 30 jan. 2020, retif. em 31 jan. 2020.
15 Principal órgão deliberativo da OMS, a Assembleia Mundial da Saúde reúne-se anualmente em Genebra,
sede da organização. Adota o sistema de votação por maioria, tendo cada Estado-membro direito a um voto.
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2. Poliomelite 4. Associação
5. Ebola 6. Coronavírus
1. Gripe A (H1N1) 3. Ebola entre zika vírus e
(em curso) malformações (em curso) (em curso)
Salta aos olhos que, das três ESPIIs atualmente em curso, apenas a relacionada
ao novo coronavírus alcança repercussão expressiva no plano global. Tanto a ESPII
referente ao poliovírus, que está por completar seis anos, como a recente ESPII que
corresponde ao ebola na República Democrática do Congo são raramente referidas
pelos meios de comunicação.
A análise da figura n. 1 demonstra, ainda, que a letalidade da ameaça em
questão; o número ou a gravidade dos casos; os impactos sobre as populações atingidas,
ou ainda a eventual ineficiência dos Estados onde ocorrem os surtos não são os fatores
que determinam a declaração de uma ESPII. Os elementos decisivos, de acordo com o já
citado conceito previsto no RSI, são: o caráter extraordinário do evento; o potencial de
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Os 196 Estados Partes do RSI têm Cabe ao Diretor-Geral da OMS OMS emite recomendações
obrigação de notificar a existência declarar seu início e fim (art.12) temporárias (art.15)
de eventos extraordinários (art. 6°)
• mas OMS não depende de • depois de ouvido um Comitê de • Estados podem adotar medidas
notificação, nem do Emergências composto por adicionais às recomendadas, mas
consentimento do Estado onde especialistas (arts.48-49) devem justificá-las junto à OMS
ocorre um surto para declarar que mantém um mecanismo de
uma ESPII (art.12) controle sem poder de sanção
(art.43)
16 A pertinência deste conceito é tema recorrente da literatura crítica sobre a saúde global. Experiências
recentes de ampliação do conceito de emergência em saúde são descritas pela literatura, v. SUNSHINE,
Gregory et al. “Emergency Declarations for Public Health Issues: Expanding Our Definition of Emergency”.
The Journal of Law, Medicine & Ethics, v. 47, n. 2_suppl, 2019, pp. 95–99.
17 Quando da declaração da primeira ESPII, relativa à gripe A(H1N1), a OMS só divulgou a identidade dos
Health Emergency of International Concern for the Ebola Outbreak in the Democratic Republic of the
Congo”. Asian Journal of WTO & Int. Health Law and Policy, V.14, N. 2, Set. 2019, pp. 287-330.
19 Sobre as negociações do RSI, seu alcance jurídico e uma síntese das críticas a ele destinadas ver VENTURA,
Deisy. Direito e saúde global - o caso da pandemia de gripe A(H1N1). São Paulo: Expressão Popular/Dobra
Editorial, 2013, part. capítulos 3 e 4.
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Elaborada em menos de uma semana, com dois dias de tramitação entre as duas casas
do Congresso Nacional, a Lei n. 13.979/2020 resultou de estreita coordenação entre o
Poder Executivo e as lideranças do Poder Legislativo.
O correspondente Projeto de Lei (PL) n. 23/2020, de iniciativa do governo
federal, não foi submetido ao debate democrático, exceto durante escassas horas de
discussão no plenário da Câmara dos Deputados, premidas pela tramitação do texto em
regime de urgência20, solicitado pela própria casa legislativa21. Modificado pela Câmara
dos Deputados, o PL n. 23/2020 foi convertido em lei após sua aprovação integral pelo
Senado Federal, recebendo a seguir uma sanção presidencial plena.
Embora à época o Brasil não tivesse casos confirmados de coronavírus e
contasse um reduzido número de casos suspeitos, a urgência na tramitação da lei foi
uma condição imposta pelo Poder Executivo para repatriar os brasileiros que se
encontravam em Wuhan, China, então o epicentro da ESPII. De início, o líder de extrema
direita Jair Bolsonaro, Presidente da República, havia afastado a possibilidade de
repatriação por dois motivos: o elevado custo financeiro da operação, considerando as
condições especiais de traslado de potenciais pacientes; e a suposta ausência de
legislação aplicável ao caso, que ensejaria o risco de suspensão de medidas restritivas de
20 Em virtude do art. 152 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, “Urgência é a dispensa de
exigências, interstícios ou formalidades regimentais, salvo as referidas no § 1º deste artigo [publicação e
distribuição, em avulsos ou por cópia, da proposição principal e, se houver, das acessórias; pareceres das
Comissões ou de Relator designado; e quórum para deliberação], para que determinada proposição (...) seja
de logo considerada, até sua decisão final”, cf. BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados.
Regimento interno da Câmara dos Deputados. 9. ed. Brasília: Edições Câmara, 2011.
21 Em 04/02/2020, pelo Deputado Aguinaldo Ribeiro, na condição de Líder da Maioria, com base no art. 155
do já citado Regimento Interno da Câmara dos Deputados, segundo o qual “Poderá ser incluída
automaticamente na Ordem do Dia para discussão e votação imediata, ainda que iniciada a sessão em que
for apresentada, proposição que verse sobre matéria de relevante e inadiável interesse nacional, a
requerimento da maioria absoluta da composição da Câmara, ou de Líderes que representem esse número,
aprovado pela maioria absoluta dos Deputados (...)”, Ibid.
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direitos por meio de ações judiciais22. Assim, como reconhece o Parecer do Senado
Federal que recomendou a aprovação do já citado PL, “a edição de uma nova lei é
necessária para dar segurança jurídica à repatriação de brasileiros que estão em Wuhan,
cidade chinesa que é o epicentro do surto, e ao regime de quarentena ao qual eles
deverão ser submetidos no retorno ao País”23.
Foi deflagrada então a “Operação Regresso à Pátria Amada Brasil” 24, que
compreendeu o chamado “resgate” de 34 brasileiros que se encontravam em Wuhan
por intermédio de dois aviões da Força Aérea Brasileira (FAB), e sua subsequente
submissão à quarentena, juntamente com 24 profissionais que acompanharam a missão,
na Base Aérea de Anápolis (GO), durante 14 dias 25.
Trata-se de um velho dilema: “um enfoque imperialista da saúde pública conduz
a um questionamento ou a uma limitação inaceitável das liberdades fundamentais, mas
uma concepção minimalista pode provocar dramas humanos de gravidade
excepcional”26. Logo, as medidas de saúde pública podem, de fato, “invadir a esfera da
liberdade individual de forma bastante agressiva”, invasão que, “no âmbito do Estado
Democrático de Direito, será sempre permitida quando feita nos termos da lei e em
defesa do interesse público, no caso, a proteção da saúde pública contra riscos à saúde
identificados na sociedade”, com base em “amplo debate social” sobre as regras e os
procedimentos que o Estado deve adotar”27. Os programas de imunização, cada vez
22 “Ao trazer brasileiros pra cá, é nossa ideia colocar em um local para quarentena, mas qualquer ação
judicial tira de lá”, declarou o Presidente, cf. G1, TV GLOBO. “Bolsonaro diz que não traz brasileiros da China
porque 'custa caro' e não há lei de quarentena”. Globo.com, Brasília, 31 jan. 2020. Disponível em
<https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/31/bolsonaro-reune-ministros-para-avaliar-risco-do-
coronavirus-e-situacao-de-brasileiros-na-china.ghtml>. Acesso em 28 fev. 2020.
23 BRASIL. SENADO FEDERAL. Parecer n. 1/2020. De Plenário, em substituição à Comissão de Assuntos
Sociais sobre PL n. 23, de 2020, do Poder Executivo, que dispõe sobre as medidas sanitárias para
enfrentamento da ESPII decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Relator: Senador
Nelsinho Trad. Brasília, 5 fev. 2020.
24 Ação interministerial que envolveu o Ministério da Defesa (em especial por meio da Força Aérea Brasileira,
FAB), o Ministério da Saúde, o Ministério das Relações Exteriores e a Agência Brasileira de Vigilância
Sanitária (ANVISA), para a qual foi criado um site oficial próprio, disponível em
<http://www.fab.mil.br/operacaoregresso/>. Acesso em 28 fev. 2020.
25 AGÊNCIA BRASIL. “Coronavírus: todos os protocolos foram cumpridos, diz ministro”. EBC, Brasília, 23 fev.
XXI e a necessidade de criação de um sistema nacional de vigilância em saúde. Revista de Direito Sanitário,
São Paulo v. 10, n. 2, Jul.-Out. 2009, p.121.
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30 OMS. Règlement Sanitaire International 1969. 3. ed. anotada. Genebra: OMS, 1983. Em 1981, a
Assembleia Mundial da Saúde excluiu a varíola do alcance do RSI, tendo em conta a sua erradicação. Ibid.
31 Nos termos do RSI, “vigilância” significa a coleta, compilação e a análise contínua e sistemática de dados,
para fins de saúde pública, e a disseminação oportuna de informações de saúde pública, para fins de
avaliação e resposta em saúde pública, conforme necessário (art. 1° do RSI).
32 AITH, Fernando; DALLARI, Sueli. Vigilância em saúde no Brasil: os desafios dos riscos sanitários do século
XXI e a necessidade de criação de um sistema nacional de vigilância em saúde. Revista de Direito Sanitário,
São Paulo v. 10, n. 2 p. 94-125 Jul.-Out. 2009.
33 BRASIL. Lei n. 6.259, de 30 de outubro de 1975. Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância
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Saúde (CIEVS) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS)35, definido como ponto focal
brasileiro do RSI junto à OMS. Ainda em 2005, um Grupo Executivo Interministerial (GEI),
composto por diferentes órgãos do governo federal e coordenado pelo Ministério da
Saúde, foi criado como elemento da resposta brasileira a uma possível pandemia de
influenza36. A partir de 2009, ano em que a OMS declarou a ESPII relativa à gripe
A(H1N1), o CIEVS passou a liderar uma rede de centros de vigilância estaduais, de
capitais brasileiras e de outros municípios considerados estratégicos37. Houve grande
mobilização do governo federal para o enfrentamento daquela pandemia38, deixando
significativo legado à vigilância em saúde brasileira, inclusive no plano regulamentar39, e
em matéria de emergências.
Com efeito, em 2011, a Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011, busca adaptar
as terminologias utilizadas na legislação brasileira ao léxico do RSI40. No mesmo ano, por
meio do Decreto n. 7.616, de 17 de novembro de 2011 41, regulamentado pela Portaria n.
2.952 42 , foi instituída a categoria jurídica da Emergência em Saúde Pública de
Importância Nacional (ESPIN). Embora se trate claramente de uma transposição da
categoria da ESPII ao ordenamento jurídico pátrio, os institutos são independentes entre
si43. Até o momento, duas ESPINs foram declaradas no Brasil: a relativa à Síndrome
35 Teixeira, Maria Glória et al. “Vigilância em Saúde no SUS - construção, efeitos e perspectivas”. Ciênc.
saúde colet. 23 (6) Jun 2018, pp.1811-1818.
36 BRASIL. Presidência da República. Decreto de 24 de outubro de 2005 (s/n). Institui o Grupo Executivo
Interministerial para os fins que especifica e dá outras providências. D.O.U., Brasília, DF, 25 out. 2005.
Modificado em duas oportunidades, e revogado em dezembro de 2010, v. BRASIL. Presidência da República.
Decreto de 6 de dezembro de 2010 (s/n). DOU, Brasília, DF, 7 dez. 2010.
37 Temporão, José Gomes. “O enfrentamento do Brasil diante do risco de uma pandemia de influenza pelo
polêmica à época, ver DOSHI, P. “The elusive definition of pandemic influenza”. Bull World Health Organ.
2011 Jul 1;89(7):532-8.
39 COSTA, Ligia; MERCHAN-HAMANN, Edgar. Pandemias de influenza e a estrutura sanitária brasileira: breve
histórico e caracterização dos cenários. Rev Pan-Amaz Saude, Ananindeua , v. 7, n. 1, mar. 2016, pp. 11-25.
40 Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as
terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no RSI 2005, a relação de doenças,
agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelece
fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. DOU, Brasília, p. 37-8,
26 de jan. 2011.
41 Brasil. Presidência da República. Decreto Nº 7.616, de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a
declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional - ESPIN e institui a Força Nacional do
Sistema Único de Saúde - FN-SUS. DOU, 18 nov. 2011.
42 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.952, de 14 de dezembro de 2011. Regulamenta, no âmbito do
SUS, o Decreto no 7.616, de 17 de novembro de 2011, que dispõe sobre a declaração de ESPIN e institui a
FN-SUS. DOU, Brasília, DF, 15 dez. 2011.
43 Segundo o citado Decreto, a declaração de ESPIN ocorrerá em situações que demandem o emprego
urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública (art. 2º),
em virtude da ocorrência de situações epidemiológicas (os surtos ou epidemias que apresentem risco de
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Congênita associada à infecção pelo vírus zika (SCZ), entre 2015 e 2017; e a relativa ao
novo coronavírus, como será visto a seguir.
Além da resposta à pandemia de gripe A(H1N1), tal evolução normativa está
relacionada à grande mobilização do Estado brasileiro para acolher, entre 2007 e 2016,
importantes eventos de massa internacionais, entre eles os Jogos Panamericanos (2007),
a Copa das Confederações (2013) e a Copa do Mundo (2014), a Jornada Mundial da
Juventude (2013) e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos (2016) 44. Em 2013, uma regulação
específica sobre ações de vigilância e assistência à saúde nos eventos de massa foi
adotada, mas ela não faz referência direta às medidas de saúde pública45.
Em 2015, apesar de seu subfinanciamento crônico e incontáveis mazelas, o SUS
revelou para o mundo a Síndrome Congênita associada à infecção pelo vírus zika (SCZ),
graças aos notáveis profissionais de saúde que atuam no sertão nordestino 46 e aos
institutos públicos de pesquisa que resistem aos ataques brutais à ciência brasileira
recentemente intensificados. Em meio a uma grave crise política e econômica, inclusive
o processo de impeachment da Presidente Dilma Roussef, o Brasil conseguiu, graças ao
SUS, organizar uma resposta de grande amplitude47. Em 11 de novembro de 2015, o
Ministério da Saúde declarou a ESPIN48; em 1° fevereiro de 2016, a OMS declarou a
ESPII49. É importante ressaltar que o objeto da emergência, tanto no plano nacional
como no internacional, não era o surto da doença do vírus zika, e sim a associação entre
a infecção e a microcefalia e outras malformações.
disseminação nacional; sejam produzidos por agentes infecciosos inesperados; representem a reintrodução
de doença erradicada; apresentem gravidade elevada; ou extrapolem a capacidade de resposta da direção
estadual do SUS); de desastres; ou de desassistência à população (art. 3º). O mesmo decreto institui a Força
Nacional do SUS (FN-SUS) como programa de cooperação voltado à execução de medidas de prevenção,
assistência e repressão a situações epidemiológicas, de desastres ou de desassistência à população (art. 12).
44 Teixeira, Maria Glória et al. “Vigilância em Saúde no SUS - construção, efeitos e perspectivas”. Ciênc.
de Saúde (SUS), as responsabilidades das esferas de gestão e estabelece as Diretrizes Nacionais para
Planejamento, Execução e Avaliação das Ações de Vigilância e Assistência à Saúde em Eventos de Massa.
DOU, Brasília, DF. 10 jun. 2013.
46 Sobre o início da associação entre o vírus zika, a microcefalia e outras malformações, v. DINIZ, Debora.
Zika: do sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
47 V. BRASIL. Ministério da Saúde. SVS. Vírus Zika no Brasil: a resposta do SUS. Brasília: MS, 2017. Disponível
Emergency Committee on Zika virus and observed increase in neurological disorders and neonatal
malformations, Genebra, 01 fev. 2016.
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decorrentes]
Medida Provisória nº Abre crédito extraordinário, em favor dos Ministérios da
716, de 11 de março Ciência, Tecnologia e Inovação, da Defesa e do
de 2016 Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no valor de
R$ 420.000.000,00, para os fins que especifica [combate à
Convertida na Lei nº microcefalia e ao mosquito Aedes]
13.310, de 7 de julho
de 2016
Portaria Institui, no âmbito do SUS e do Sistema Único de Assistência
Interministerial Social (SUAS), a Estratégia de Ação Rápida para o
MS/Ministério do Fortalecimento da Atenção à Saúde e da Proteção Social de
Desenvolvimento Crianças com Microcefalia
Social e Agrário (MDS) - Prorrogada pela Portaria Interministerial MS/MDS n. 1.115
nº 405 de 15 de março em 3 de junho de 2016
de 2016
Portaria MDS nº 58, de Dispõe sobre ações articuladas das redes de Assistência
3 de junho de 2016 Social e Previdência Social na atenção às crianças com
microcefalia para o acesso ao Benefício de Prestação
Continuada da Assistência Social – BPC
Portaria Ministério das Dá nova redação ao Manual de Instruções para seleções de
Cidades nº 321, de 14 beneficiários no âmbito do Programa Minha Casa, Minha
de julho de 2016 Vida [dispensa do sorteio para o programa as famílias que
possuam membro com microcefalia]
Portaria MS nº 1.682, Declara o encerramento da ESPIN por alteração do padrão de
de 30 de julho de 2017 ocorrência de microcefalias no Brasil e desativa o Centro de
Operações de Emergências em Saúde Pública (COES)
50 BRASIL. Lei n. 13.301, de 27 de junho de 2016. Dispõe sobre a adoção de medidas de vigilância em saúde
quando verificada situação de iminente perigo à saúde pública pela presença do mosquito transmissor do
vírus da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika ; e altera a Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977.
DOU, Brasília, DF, 28 jun. 2016.
51 Número de casos por 100 mil habitantes.
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130 mil de chikungunya, com maior número de casos e maior incidência no Sudeste; e
mais de 10 mil de zika, com maior número de casos e maior incidência no Nordeste52.
Nota-se, portanto, que as doenças endêmicas transmitidas por vetor, contrariando
antigos estigmas infelizmente reflorescidos, não estão concentradas nas regiões
Nordeste e Norte do país.
Deve ser ressaltado, ainda, que apesar de sua importância, a emergência
relacionada à SCZ não foi suficiente para ensejar a elaboração de uma nova lei de
vigilância epidemiológica de caráter geral.
Diferentemente da SCZ, em que a declaração de ESPIN antecedeu à ESPII – o
que se explica por ter sido o Brasil o epicentro da emergência e ter o SUS detectado o
objeto da mesma – , a resposta brasileira ao novo coronavírus acompanhou a
declaração de emergência no plano internacional, como se deduz do Quadro n. 2.
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Note-se que o governo federal fez questão de promulgar o RSI, já aprovado pelo
Congresso Nacional por decreto legislativo53, com a ressalva de que seu objeto havia
entrado em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, em 15 de junho de 2007, nos
termos do artigo 59 do próprio RSI. Embora à luz do direito internacional, pela natureza
dos regulamentos da OMS, a sua incorporação não seja necessária (e, a rigor, sequer
cabível)54, é evidente que esta promulgação visa eludir todo e qualquer questionamento
a respeito da vigência do RSI na ordem jurídica brasileira.
Como também revela o Quadro n. 2, em 3 de fevereiro de 2020, o Ministério da
Saúde declarou uma emergência de saúde pública no plano nacional (ESPIN). Entre as
justificativas contidas nos considerandos da declaração encontra-se a necessidade de
estabelecer uma estratégia de acompanhamento dos nacionais e estrangeiros que
ingressarem no país e que se enquadrarem nas definições casos de suspeitos e
confirmados. Também em 3 de fevereiro, a mesma pasta encaminhou à Presidência da
República o anteprojeto hoje convertido em lei.
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transporte ou mercadorias
suspeitos de contaminação, de
maneira a evitar a possível
contaminação ou a
propagação do coronavírus
(art. 2.2 Lei 13.979/2020)
III - a) Exames médicos Avaliação preliminar de uma - MS
Determinaç pessoa por um profissional de - Gestores locais de
ão da saúde autorizado ou por uma saúde
realização pessoa sob a supervisão direta
compulsóri da autoridade competente, a
a de fim de determinar o estado de
saúde da pessoa e seu
potencial de risco para a saúde
pública para terceiros,
podendo incluir o exame
minucioso de documentos
sanitários, bem como um
exame físico quando as
circunstâncias do caso assim o
justificarem (art. 1° RSI)
b) Testes Não há
laboratoriais
c) Coleta de
amostras clínicas
d) Vacinação e
outras medidas
profiláticas
e) Tratamentos
médicos
específicos
IV - Estudo ou investigação Não há - MS
epidemiológica - Gestores locais de
saúde
V - Exumação, necropsia, cremação e Não há MS e gestores locais
manejo de cadáver de saúde, desde que
autorizados pelo MS
VI - Restrição excepcional e “Saída” significa, no caso de - Deve ser regulada
temporária de entrada e saída do pessoas, bagagens, carga, por ato conjunto do
País, conforme recomendação meios de transporte ou Ministros de Estado
técnica e fundamentada da Agência mercadorias, o ato de deixar da Saúde e do
Nacional de Vigilância Sanitária um território; “porto” significa Ministro de Estado
(Anvisa), por rodovias, portos ou um porto marítimo ou em da Justiça e
aeroportos águas interiores, onde chegam Segurança Pública
e saem embarcações em - Pode ser aplicada
viagens internacionais; pelo MS e por
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59SANTOS, Iris; NASCIMENTO, Wanderson. As medidas de quarentena humana na saúde pública: aspectos
bioéticos. Revista Bioethikos, São Paulo, v. 8, n. 2, 2014, pp. 174-85.
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60 VENTURA, Deisy; HOLZHACKER, Vivian. Saúde Global e Direitos Humanos: o primeiro caso suspeito de
ebola no Brasil. Lua Nova, São Paulo, n. 98, 2016, p. 107-140.
61 CERBINO NETO, J. Questões éticas no manejo de pacientes com doença pelo vírus Ebola. Cadernos de
do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da
emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19). DOU,
Brasília, DF, 12 mar. 2020.
63 Antes que a regulamentação da lei fosse adotada, o Poder Judiciário do Rio de Janeiro teria determinado,
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64 BRASIL. Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977. Configura infrações à legislação sanitária federal,
estabelece as sanções respectivas, e dá outras providências. DOU, Brasília, DF, 24 ago. 1977.
65 BRASIL. Lei n. 13.730, de 8 de novembro de 2018. Altera o art. 14 da Lei nº 6.259, de 30 de outubro de
1975, para considerar infração sanitária a inobservância das obrigações nela estabelecidas. DOU, Brasília, DF,
24 ago. 1977. A justificativa desta alteração seria configurar claramente a ausência de notificação de
doenças pelos profissionais de saúde como infração sanitária, em decorrência de constatação feita pela
Subcomissão Especial destinada a investigar o uso dos agrotóxicos e as suas consequências para a saúde
(2011) de que havia subnotificação de enfermidades, inclusive de notificação compulsória, cf. CÂMARA DOS
DEPUTADOS. Comissão de Seguridade Social e Família. PL n. 1.068, DE 2015. Parecer do Relator. Deputado
Adelmo Carneiro Leão. Brasília, 27 out. 2015. Vale recordar que a omissão de notificação de doença de
notificação compulsória por um médico constitui crime punível con detenção, de seis meses a dois anos, e
multa, conforme artigo 269 do Código Penal em vigor.
66 SOUZA, André. Após internação forçada, Saúde criará regra para quarentena de turistas com sintomas de
ou imprudência, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos).
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multa68. O Ministro da Saúde declarou: “senti no episódio dos franceses uma falta de
clareza, talvez”, embora tenha reconhecido as boas intenções de todos os envolvidos 69.
Cabe, ainda, suscitar a questão da compatibilidade das medidas previstas na lei
com o RSI. Em princípio, os Estados Partes não podem impor aos viajantes70 nenhum
exame médico, vacinação, medida profilática ou medida de saúde de sem seu prévio
consentimento expresso e informado, ou de seus pais ou tutores legais, (art.31.1). No
entanto, quando existem evidências de risco iminente para a saúde pública, o Estado
Parte poderá, na medida necessária para controlar tal risco, obrigar o viajante a se
submeter a exames médicos, que permitam alcançar o objetivo de saúde pública visado
da forma menos invasiva 71 e intrusiva 72 possível; à vacinação ou a outra medida
profilática; ou a medidas como isolamento e quarentena (art.31.2).
Por outro lado, a restrição excepcional e temporária de entrada e saída do país
(art. 3°, VI), ainda que condicionada à recomendação técnica e fundamentada da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), também pode ensejar
incompatibilidade com o RSI quando não há recomendação da OMS, baseada em
evidências científicas, de restrição da circulação internacional de pessoas. Em virtude
do artigo 43.1 do RSI, medidas adicionais às recomendadas pela OMS podem ser
adotadas não deverão ser mais restritivas ao tráfego internacional, nem mais invasivas
ou intrusivas em relação às pessoas. Este tipo de medida restritiva é potencialmente
danosa aos direitos humanos porque dificulta a circulação internacional de recursos
humanos necessários à resposta, além de favorecer o estigma e a discriminação de
viajantes, migrantes e refugiados em razão de sua origem.
Sabe-se que a OMS até o momento não recomendou restrições à circulação
internacional de pessoas no caso da ESPII em curso. As recomendações da OMS rumam
68 Segundo o parágrafo único do mesmo artigo, a pena é aumentada de um terço se o agente é funcionário
da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
69 SOUZA, André. Após internação forçada, Saúde criará regra para quarentena de turistas com sintomas de
estranha no corpo, ou o exame de uma cavidade corporal. São considerados como não invasivos o exame
médico de ouvido, nariz e boca, a verificação de temperatura por meio de termômetro auricular, oral ou
cutâneo, ou imagem térmica; a inspeção médica; a ausculta; a palpação externa; a retinoscopia; a coleta
externa de amostras de saliva, urina ou fezes; a aferição externa da pressão arterial; e a eletrocardiografia
(art. 1° RSI).
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em sentido oposto, podendo ser sintetizadas em sete eixos, como demonstra a figura
n.3.
Viagens e comércio
internacional não devem ser
Acelerar o desenvolvimento
restritos, e eventuais Cooperar com Estados cujos Combater a propagação de
de vacinas, tratamentos e
medidas restritivas devem sistemas de saúde são frágeis rumores e informações falsas
diagnósticos
ser baseadas em evidências
científicas
73 Elaboração própria com base em OMS. Director-General’s statement on IHR Emergency Committee on
Novel Coronavirus (2019-nCoV). Portal da OMS. Genebra, 30 jan. 2020. Disponível em
<https://www.who.int>. Acesso em 28 fev. 2020.
74 No âmbito do mecanismo de controle instituído pelo artigo 43 do RSI.
75 OMS. COVID-19 Situation Report n. 39. Genebra, OMS, 28 fev. 2020, p.2.
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76 VENTURA, Deisy. Impacto das crises sanitárias internacionais sobre os direitos dos migrantes. Sur - Revista
Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, Conectas Direitos Humanos, v. 13, n. 23, p. 61-75, 2016.
77 HABIBI et al. “Do not violate the International Health Regulations during the COVID-19 outbreak”, The
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78Elaboração própria com base em BRASIL. SENADO FEDERAL. Parecer n. 1/2020. De Plenário, em
substituição à Comissão de Assuntos Sociais sobre o PL n. 23, de 2020, do Poder Executivo, que dispõe sobre
as medidas sanitárias para enfrentamento da ESPII decorrente do coronavírus responsável pelo surto de
2019. Relator: Senador Nelsinho Trad. Brasília, 5 fev. 2020.
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Não resta dúvida sobre a importância das salvaguardas instituídas pela Câmara
dos Deputados, em que pese o exíguo tempo de tramitação do PL, tanto no que atine à
proteção das pessoas afetadas (adoção da garantia de dignidade, direitos e liberdades
mais ampla prevista pelo RSI) e à assistência às respectivas famílias (embora dependa de
regulamento), como na imposição ao Estado de uma limitação temporal mais clara (por
meio de vínculo da duração da ESPIN à duração da ESPII, ou seja, vedação da
possibilidade de prorrogar indefinidamente a vigência de medidas excepcionais com
base nesta lei) e de garantias de transparência (quanto à dispensa de licitação e aos
dados relativos à emergência) 79.
É digno de nota ainda o redimensionamento da obrigação resultante do artigo
5º, que passa de um “dever de comunicação imediata às autoridades” de contato
possível com o vírus, inclusive de sintomas característicos como previsto no PL, ao
dispositivo finalmente vigente que exclui a referência aos sintomas e estipula, de forma
79O mero direito à informação, por si só, não torna a lei um modelo de mecanismo de accountability, o que
seria ideal neste caso. Mecanismos de accountability funcionam como uma ferramenta de controle do
processo de tomada de decisões e, consequentemente, como um limite à autonomia do agente com
autoridade para decidir. Para uma elaboração conceitual mais detalhada v. RACHED, Danielle Hanna. The
Concept(s) of Accountability: Form in Search of Substance. Leiden Journal of International Law, v. 29, p 317-
342, 2016.
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mais branda, que toda pessoa colaborará com as autoridades sanitárias na comunicação
imediata de possíveis contatos com agentes infecciosos do coronavírus; e da circulação
em áreas consideradas como regiões de contaminação pelo coronavírus. A nova redação
pode contribuir para prevenir estigmatizações, além de tornar menos promissoras
eventuais tentações de, pela via infra-legal, tornar obrigatória a delação de casos por
meio do estabelecimento de sanções à suposta violação de um dever de comunicação.
Está ausente da lei, porém, uma referência explícita ao tratamento que deve ser
dispensado aos viajantes nos termos do RSI. Além da garantia geral prevista no já citado
artigo 3° do RSI, e contemplada na lei de quarentena brasileira graças à atuação da
Câmara dos Deputados, em virtude do artigo 32 do RS os Estados Partes tem a
obrigação de minimizar “qualquer incômodo ou angústia associado a medidas
restritivas”, tratando todos os viajantes com cortesia e respeito; levando em
consideração o gênero e as preocupações socioculturais, étnicas ou religiosas dos
viajantes; providenciando alimentação e água adequadas, acomodações e roupas
apropriadas, proteção para bagagens e outros bens, tratamento médico apropriado,
meios de comunicação necessários, “se possível em idioma que possam compreender”;
e outra assistência apropriada a viajantes que se encontrem em quarentena, isolados ou
sujeitos a outros procedimentos para fins de saúde pública.
Se a ausência de referência explícita ao artigo 32 do RSI pode ser eventualmente
compensada pela invocação judicial do próprio regulamento, considerando sua
indiscutível vigência no país, a falta de outras salvaguardas não contempladas no RSI dá
margem a violações de direitos humanos. Vale mencionar ao menos quatro delas.
Em primeiro lugar, a autoridade sanitária que determina medidas sanitárias
restritivas de liberdade individual deveria ser obrigada a comunicar sua decisão ao órgão
do Ministério Público competente ou a algum órgão de controle externo e popular, no
prazo máximo de 24 horas, devendo estes órgãos de controle verificar se estão
preenchidos os requisitos legais e formais para a adoção da medida e tomar as medidas
judiciais cabíveis80.
Em segundo lugar, no que se refere a nacionais de outros Estados, caso a pessoa
atingida por estas medidas não domine a língua portuguesa, deveria haver a
obrigatoriedade de tradução para idioma compreensível, condição indispensável ao
80AITH, Fernando; DALLARI, Sueli. Vigilância em saúde no Brasil: os desafios dos riscos sanitários do século
XXI e a necessidade de criação de um sistema nacional de vigilância em saúde. Revista de Direito Sanitário,
São Paulo v. 10, n. 2, Jul.-Out. 2009, p.121.
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exercício do direito à informação sobre o próprio estado de saúde que foi previsto pela
lei, e não apenas “na medida do possível” como preconiza o já citado artigo 32 do RSI. A
submissão de uma pessoa a medidas como exames e tratamentos compulsórios, além
de isolamento ou quarentena, quando associada à impossibilidade de comunicar-se com
os profissionais de saúde e outros envolvidos no atendimento em questão, constitui
tratamento desumano e degradante, de todo incompatível com a ordem constitucional
e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de direitos
humanos.
Em terceiro lugar, a atual legislação não apresenta soluções jurídicas para as
pesadas consequências que uma quarentena, um tratamento compulsório ou um
isolamento podem ter para as relações de trabalho. A atual legislação limita-se a
considerar falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de
ausência decorrente destas medidas (art. 3° § 3º). Certamente seria bem-vinda uma
regulação que protegesse o trabalhador, de forma mais ampla, de riscos econômicos.
Finalmente, na eventualidade de serem determinadas restrições relacionadas ao
sepultamento de pessoas, a fim de impedir aglomerações, ou ainda sepultamentos
coletivos, fica pendente a regulação do exercício dos direitos inalienáveis de velar e de
se despedir dos mortos.
Conclusões
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81 Ver BUSS, Paulo. “Cooperação internacional em saúde do Brasil na era do SUS”. Ciência & Saúde
Coletiva, 23(6), 2018, p.1881-1890.
82 CRISTINA, Paula. [Luiz Henrique Mandetta] “Ainda bem que temos o SUS”. Isto É Dinheiro, s/l, 28 fev.
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Sobre os autores
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Eduardo C. B. Bittar¹
¹ Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: edubittar@uol.com.br.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4693-8403.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
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Resumo
Este artigo contém uma reflexão comparada entre modelos de Realismo Jurídico, no
campo da Teoria do Direito, considerando-se as concepções do Realismo Jurídico
Metodológico (Riccardo Guastini), no âmbito da teoria italiana, e da Teoria do
Humanismo Realista (Eduardo C. B. Bittar), no âmbito da teoria brasileira. Assim, este
artigo se ocupa de demonstrar as conexões aproximativas e distintivas entre as duas
concepções de Realismos Jurídicos, dando-se destaque aos temas da indeterminação da
linguagem, dos textos jurídicos e do papel central que a interpretação desempenha para
os debates contemporâneos em Teoria do Direito.
Palavras-chave: Realismo Jurídico; Linguagem Jurídica; Interpretação Jurídica.
Abstract
This paper is a comparative reflection on the models of Legal Realism, in the Theory of
Law, considering the conceptions of the Methodological Legal Realism (Riccardo
Guastini), in the Italian perspective, and of the Theory of Realistic Humanism (Eduardo C.
B. Bittar), in the Brazilian perspective. Therefore, this article shows the similarities and
disconnections between the two conceptions of Legal Realisms, especially considering
the domain of the indetermination of language, the legal texts and the central role of
the legal interpretation to the contemporary Theory of Law.
Keywords: Legal Realism; Legal Discourse; Legal Interpretation.
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1“...sisono sviluppati nel solco della ‘rivolta contro il formalismo’ nella prima metà del secolo scorso,
presentando forti affinità accanto a rilevanti differenze”; “se desdenvolveram no sulco da revolta contra o
formalismo na primeira metade do século passado, apresentando fortes afinidades e também relevantes
diferenças entre si” (tradução livre) (Faralli, Le grandi correnti della filosofia del diritto: dai Greci ad Hart,
2011, p. 77).
2Consulte-se, a este respeito, Tarello, El realismo jurídico americano, 2017, p. 45.
3Cf. Tarello, Diritti, enunciati, usi: storia di teoria i metateoria del diritto, 1974, ps. 54-75.
4“Por otra parte, debemos recordar que el Realismo jurídico contiene una serie de diferentes matices.
Algunas de sus formas americanas extremas niegan, en general, la ‘existencia’ de las normas jurídicas”
(Aarnio, Lo racional como razonable: un tratado sobre la justificación jurídica, 2016, p. 93). No caso da
posição teórica de Alf Ross, consulte-se Ross, Direito e justiça, 2000, p. 41.
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segundo o qual o Direito Posto na forma da norma jurídica é suficiente para criar
segurança jurídica em sociedade.
Este é o ponto de discordância que dá alento ao desenvolvimento das diversas
posições teóricas mais sedimentadas e conhecidas no campo dos realismos jurídicos,
que, num mapeamento mínimo e, em perspectiva mundial, nos revela um imenso
campo de linhas de análise, momentos históricos e contextos de debates teóricos muito
diferentes entre si, e que se podem agrupar da seguinte forma: (i) o Realismo jurídico
escandinavo (Axel Hägerström; Anders Sandöe Örsted; Karl Olivecrona; Wilhelm
Lundstedt; Alf Ross); (ii) o Realismo jurídico italiano (Enrico Pattaro, Bologna; Giovanni
Tarello; Riccardo Guastini; Paolo Comanducci, Gênova); (iii) o Realismo jurídico francês
(Michel Troper); (iv) o Realismo jurídico norte-americano (Karl N. Llewellyn; Jerome
Frank; Carl Sustein; H. Oliphant; Roscoe Pound; Oliver Holmes; Roberto M. Unger).5 Com
relação a estas quatro (iv) grandes linhas de expressão do realismo jurídico, se pode
acrescentar uma nova perspectiva realista, formulada recentemente no Brasil (2018), e
derivada da Teoria Crítica da Frankfurter Schule,6 e que se desenvolve sob o título de
Teoria do Humanismo Realista (v).7 O que há de comum entre as teorias mais
sedimentadas, e esta nova concepção, surgida no contexto latino-americano, é o
incômodo inicial que movimentou a formulação das diversas concepções de realismos
jurídicos, em face da Teoria Tradicional, ou seja, em face dos mandamentos centrais
oriundos da tradição do positivismo jurídico.
Por isso, não obstante se reconhecer a enorme diversidade de concepções
realistas, este artigo faz a opção por um estudo mais restrito e localizado, pontual e
circunscrito, para fins de delimitação de sua abrangência. No âmbito deste estudo, as
teorias realistas abordadas serão: i) o realismo jurídico italiano de Riccardo Guastini, o
Realismo Metodológico, também chamado de realismo jurídico italiano, ou genovês; ii)
e, o realismo jurídico brasileiro, o Realismo Emancipatório, contido nas premissas da
chamada Teoria do Humanismo Realista. A escolha de ambas as perspectivas teóricas
não somente repousa na originalidade deste estudo, quanto se destaca a aposta em dois
fatores centrais: ambas as concepções correspondem a visões de realismo jurídico
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8A este respeito, consulte-se Adeodato, Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo, 2011,
p. 18.
9Este estudo estará dedicado à Escola de Gênova, dando-se destaque ao papel que tem o Istituto Tarello per
la Filosofia Del Diritto da Università degli Studi di Genova, no sentido de produzir a catalisação das
contribuições atuais de seus colaboradores, em especial a de Riccardo Guastini. O realismo jurídico italiano,
no entanto, tem outros protagonistas, a exemplo de: Enrico Pattaro, em Bologna (CIRSFID), e de Giovanni
Tarello, Riccardo Guastini, e Paolo Comanducci, em Gênova (IstitutoTarello). A este respeito, consulte-se
Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, jul./dez., 13,
2016, p. 187.
10Guastini, Das fontes às normas, 2005.
11Guastini, Interpretare e argumentare, 2011.
12Bittar, O direito na pós-modernidade, 2014; Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e
justiça, 2.ed., 2019; Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito, 7. ed., 2017.
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Por fim, cabe destacar a importância dos estudos comparados entre autores
latino-americanos e europeus, sabendo-se que a Teoria do Direito de Riccardo Guastini
vem recebendo uma recepção paulatina e adequada13 no Brasil contemporâneo. 14
Assim, fortalecer este campo de aproximações representa uma contribuição reflexiva ao
linguistic turn, há muitos anos consolidado na literatura jurídica brasileira. 15 Assim, ao
longo do artigo, se procurará abordar o Realismo Jurídico Metodológico, numa primeira
parte (itens 2, 2.1, 2.2. e 2.3), para, em seguida, poder-se abordar a Teoria do Realismo
Humanista, numa segunda parte (itens 3, 3.1., 3.2, 3.3), e, ao final, poder-se desdobrar a
conexão entre as duas concepções (itens 4, 4.1., 4.2, 4.3), considerando-se o campo
temático da linguagem jurídica, dos textos jurídicos e da interpretação jurídica o ponto
de ancoragem das mais relevantes aproximações teóricas.
13A este respeito, o estudo introdutório de Tôrres, Apresentação, In Das fontes às normas (Guastini,
Riccardo), 2005, ps. 15-19.
14A exemplo do estudo crítico de Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira
fornire alla scienza e alla filosofia un linguaggio rigoroso”; “A análise da linguagem é colocada como um dos
seus principais objetivos no âmbito jurídico, aquele de fornecer à ciência e à filosofia uma linguagem
rigorosa” (traduçãolivre) (Pérez Luño, La storia della filosofia del diritto e il suo significato attuale, In Rivista
di Filosofia del Diritto, n. 1, 2016, p. 176).
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18“Por realismo se entiende comúnmente el punto de vista según el cual el Derecho es el conjunto de las
normas efetivamente usadas por los órganos de aplicación en la justificación de sus decisiones (...)”
(Guastini, Algunos aspectos de la metateoría de Principia Iuris, in DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho,
n. 31, 2008, p. 260).
19Cf. Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos,
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impede que as soluções das normas para as decisões sejam unívocas, e se transfiram
como que por processos lógico-subsuntivos.24
Nesta fase inicial da teoria do jurista italiano Riccardo Guastini, o ceticismo com
relação à linguagem é radical, e recai até mesmo sobre o sentido do termo ‘Direito’,25
que sofre desta indeterminação e variação,26 fazendo com que o seu conceito se
confunda com o próprio conceito de ‘cultura’, como se constata nos estudos de
Giovanni Tarello.27 Inclusive, Riccardo Guastini chega a mencionar que estes
qualificadores podem ser aplicados aos próprios termos que nomeiam as teorias como
‘positivistas’, ou como ‘realistas’, não estando a teoria isenta dos mesmos
questionamentos de linguagem.28
É desta forma que este ceticismo leva a consequências importantes para todo o
desenho da teoria, na medida em que, no lugar de oferecer uma linguagem formal,
técnica e objetiva, o Direito acaba por se ver constituído - seguindo-se a análise de
Mauro Barberis -,29 por uma linguagem aberta, imprecisa, vaga, ambígua e equívoca, de
modo que somente o seu uso cotidiano pode delimitar o sentido das palavras. A partir
da obra de 2011, Interpretare e argumentare,30 Riccardo Guastini irá esmaecer este
ceticismo radical da primeira fase, para começar a admitir uma relativa cognoscibilidade
nos conteúdos normativos, caminhando em direção a um ceticismo moderado. Mas,
mesmo atualmente, as questões de linguagem não devem deixar de ser o centro das
preocupações dos juristas, quando se trata de resolver problemas concretos.
24Cf. Catania, Manuale di teoria generale del diritto, 2.ed., 2010, p. 179.
25“I testi normativi – ‘il diritto’, dunque, in uno dei sensi di questa parola – soffrono di una molteplice forma
di indeterminatezza”; “Os textos normativos – ‘o Direito’, então, num dos sentidos desta palavra – sofrem
de uma multíplice forma de indeterminação” (tradução livre) (Guastini, Il realismo giuridico ridefinito, in
Revus, 13, 2013, p. 98).
26A este respeito, vide Guastini, Algunos aspectos de la meta teoría de Principia Iuris. DOXA: Cuadernos de
non vicine”; “Por esta razão o designatum Direito é variável, e variável tem sido também em épocas
históricas não próximas” (tradução livre) (Tarello, Diritti, enunciati, usi: storia di teoria i metateoria del
diritto, 1974, p. 10).
28A este respeito, vide Guastini, Algunos aspectos de la metateoría de Principia Iuris, DOXA: Cuadernos de
istanza, solo dal loro uso...”; “A indeterminação dos termos depende do fato que o significado de todas as
palavras é fixado, em última instância, somente por seu uso...” (tradução livre) (Barberis, Introduzione allo
studio del diritto, 2014, p. 64).
30Cf. Guastini, Interpretare e argumentare, 2011.
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Se a linguagem está no centro das preocupações dos juristas, fica claro que o
texto jurídico tem um papel decisivo na teoria de Riccardo Guastini. As diversas fontes
do Direito, e não apenas as normas jurídicas, irão se expressar pelo uso da linguagem,
de modo que o sistema jurídico será compreendido como um conjunto de textos
jurídicos,31 e não como um conjunto de normas jurídicas, como pretendia Hans Kelsen,
na Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre, 1934).32 Assim, Riccardo Guastini se coloca
numa posição crítica ao normativismo positivista, para realçar na indeterminação da
linguagem a inexistência do Direito (in abstracto), até que haja uma decisão jurídica que
defina em concreto qual o direito que será efetivado na prática e de acordo com as
variações das situações concretas (in concreto). Isso implica, ainda, admitir que o
sistema jurídico não é completo, mas lacunoso (inclusive, reconhecendo-se a existência
das lacunas axiológicas), e que o sistema possibilita a construção de normas implícitas e
o reconhecimento da defettibilità das normas jurídicas.33
É isto que permite a Riccardo Guastini compreender as normas jurídicas,
observando-as em dupla distinção, seja como disposizione, seja como norma - valendo-
se da distinção operada por Vezio Crisafulli -,34 para entendê-las como produtos da
interpretação.35 Nessa percepção realista, as normas jurídicas não existem in abstracto,
e não formam um sistema per se, pois ainda aguardam as atividades de interpretação
que farão de seus intérpretes os responsáveis pelos atos de discurso que tornam
existentes as decisões sobre conteúdos, estes que serão, ao final dos processos de
avaliação, ponderação e interpretação, relevantes, vinculantes e decisórios por parte
das instituições dotadas de força vinculante e imperatividade. Aqui, não se diferencia se
o texto é claro ou escuro, para lhe impor interpretação, pois para o realismo genovês de
Riccardo Guastini, sempre há interpretação, inclusive como atividade de percepção da
clareza e da obscuridade dos textos jurídicos.36 Daí, a importância do raciocínio jurídico,
31Cf. Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos,
jul./dez., 13, 2016, p. 206.
32Cf.Guastini Das fontes às normas, 2005, p. 87. Sobre este ponto, é de se destacar a leitura crítica
elaborada por Presa, Teoría y doctrina de la interpretación en la propuesta de Riccardo Guastini, In DOXA,
23, 2000, p. 697.
33Vide Guastini, Defettibilità, lacune assiologiche, e interpretazione, in Revus [Online], 2010.
34Cf.Guastini Das fontes às normas, 2005, p. 30.
35Cf. Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos,
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seja diante da opacità definitoria (legislador), seja diante da opacità sopravvenuta (juiz),
como se destaca da análise de Damiano Canale.37 Daí, não sobrar dúvida de que os
textos jurídicos reclamam atividade constante de interpretação jurídica, para entrarem
em circulação, e produzirem efeitos, encadeando-se a decisões do sistema jurídico.
Se, para que os conteúdos jurídicos sejam decididos, são relevantes os atos de
linguagem que lhes atribuem sentidos, é aqui que a questão da interpretação jurídica
ganha relevância. Para Riccardo Guastini, o que a interpretação jurídica faz é tradução, 38
da norma ao caso concreto, ou seja, a atividade de interpretação é uma atribuição de
sentido39 acerca das fontes do Direito. 40 E, exatamente por isso, implica em decisões
sobre o sentido jurídico, a partir do uso e da prática.41 Essas decisões são sempre
relativas, circunstanciais e mutáveis.42 Com isso, o realismo genovês de Riccardo
Guastini se coloca na dimensão crítica do cognitivismo interpretativo, a exemplo da
posição de H. L. A. Hart, que já critica em Dalle fonti alle norme (1990),43 e a quem volta
a criticar em estudo mais recente, no artigo Releyendo a Hart (2014).44
Com essa posição teórico-analítica, Riccardo Guastini se afasta da concepção
tradicional - a do formalismo jurídico - segundo a qual a interpretação jurídica consiste
na descoberta da verdade semântica.45 Ao contrário, Riccardo Guastini quer enfatizar
que a interpretação é atividade criativa, e não descritiva de conteúdos, o que conduz à
37Canale, Norme opache: il ruolo degli esperti nel ragionamento giuridico, Rivista di Filosofia del Diritto,
2015, p. 111.
38“... a interpretação e a tradução são congêneres” (Guastini, Das fontes às normas, 2005, p. 26); além disso,
leia-se: “...interpretar sólo puede ser entendido como la actividad dirigida a reformular el texto legislativo,
traduciéndolo” (Presa, Teoría y doctrina de la interpretación em la propuesta de Riccardo Guastini, In DOXA,
23, 2000, p. 694).
39Cf. Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos,
2005, p. 27).
41“Interpretar es decidir el significado de las disposiciones normativas” (Presa, Teoría y doctrina de la
vista, los problemas de interpretación son exclusivamente (ya que no menciona otros) problemas de
subsunción de casos concretos – los ‘casos difíciles’ - en las clases de casos determinados en el antecedente
de las reglas” (Guastini, Releyendo a Hart, in DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 37, 2014, p. 106).
45Cf. Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos,
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pues, un enunciado del lenguaje de los intérpretes” (Guastini, Distinguendo: estúdios de teoria y metateoría
del Derecho, 2016, p. 101).
49A este respeito, vide Barberis, Introduzione allo studio del diritto, 2014, p. 225.
50Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4.ed., 1976.
51Cf. Ross, Direito e justiça, 2000, p. 100.
52“Le norme – realtà intrapsichiche – possono essere espresse, e vengono espresse, in enunciati linguistici
(...)”; “As normas – realidade intrapsíquica – podem ser expressas, e vêm expressas, em enunciados
lingüísticos” (tradução livre) (Pattaro, Opinio Iuris, 2011, p. 29).
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53Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2.ed., 2003, ps. 105-115.
54Cf. Honneth, O direito da liberdade, 2015, p. 36.
55Ferrari, Diritto e società, 11.ed., 2012, p. 37.
56Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2.ed., 2003, ps. 110-111.
57Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, ps. 61-86.
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Direito costuma ser tratada como uma teoria recursivamente voltada sobre si mesma,
considerando os horizontes do universo interno do Direito. Assim, a Teoria do
Humanismo Realista traz seu contributo, ao abrir a Teoria do Direito, para além dos
horizontes regulatórios, a horizontes realistas (i) e humanistas (ii).58
Na dimensão de horizontes realistas (i), abre a concepção de Direito para a
compreensão dos desafios sociais, concretos, reais e empíricos, para demonstrar que a
subcidadania59é uma categoria com a qual o Direito tem de conviver, especialmente no
Brasil (e, de forma geral, na América Latina), para que, ao conhecer o fenômeno social,
se possa superá-lo em direção à cidadania plena de todos(as) o(a)s cidadãos(ãs). Assim,
não há a plena realização dos direitos individuais sem o alcance de justiça social.60 Nesta
medida, a compreensão da realidade social, econômica, política e cultural é
determinante para a compreensão do papel que o Direito tem a desempenhar em
sociedade. Especialmente, no universo da modernidade periférica, o Estado
Democrático de Direito se encontra em pleno processo de construção, não se podendo
olvidar os seus desafios reais e concretos, bem como os obstáculos a serem superados.
Na dimensão de horizontes humanistas (ii), se afirma que a Teoria do Direito não
pode avançar no conhecimento da realidade social a qual procura regular através de
regras jurídicas, sem métodos interdisciplinares e críticos, e, sobretudo, sem a
colaboração com os resultados dos estudos dos campos da História,61 da Sociologia,62 da
Ciência Política e da Economia,63 da Antropologia64 e da Semiótica.65 Aliás, no campo da
Filosofia do Direito e do Direito Constitucional esta fusão de horizontes já se processou
com clareza, no Brasil.66 E são exatamente estes estudos que têm procurado acentuar a
relevância de pensar e tratar, empiricamente, os dados mais centrais e decisivos,
quando os temas considerados são os temas da justiça, da cidadania, do acesso aos
direitos, das violências, da pobreza e das exclusões sociais. Este tipo de conexão com a
realidade latino-americana torna o Direito uma forma de saber muito mais capaz de
58Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, ps. 43-59.
59“Em sociedades periféricas como a brasileira, o habitus precário – que implica a existência de redes
invisíveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e
subcidadãos (...) é um fenômeno em massa (...)” (Souza, Subcidadania brasileira, 2018, p. 252).
60Cf. Honneth, O direito da liberdade, 2015, p. 36.
61Na historiografia, vide Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 21.ed., 2016.
62Na sociologia, a respeito deste conceito, vide Souza, Subcidadania brasileira, 2018.
63Na economia, vide Bresser-Pereira,A construção política do Brasil, 2.ed., 2015.
64Na antropologia, vide Damatta, O que faz o Brasil, Brasil?, 1986.
65“El objeto de la semiótica, dijimos, es la significación” (Landowski, La sociedad figurada: ensayos de
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responder aos desafios práticos aos quais é exposto, pelo fato de lidar com conflitos
sociais inseridos numa realidade sócio-político-econômica específica.
67“Assim, querem-se assinalar quatro principais modalidades de discurso jurídico, a saber, o normativo, o
burocrático, o decisório e o científico, cada uma destas constituindo uma microssemiótica em particular da
textura jurídica” (Bittar, Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito, 7. ed., 2017, p. 182).
68“...o sistema jurídico é um sistema de textos em troca intersemiótica, encadeados por práticas
‘istituzione’ si può intendere un complesso normativo di qualunque genere che struttura durevolmente un
campo d´azione sociale”; “Tal elemento comum, como se recordará, pode ser expresso dizendo que por
‘instituição’ se pode compreender um complexo normativo de qualquer gênero que estrutura duravelmente
um campo de ‘ação social’ ” (tradução livre) (Ferrari, Diritto e società, 11.ed., 2012, p. 98).
71Cf. Romano, O ordenamento jurídico, 2008, p. 83.
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E isso porque não são apenas decisões judiciais que atribuem direitos e deveres,
mas também as decisões administrativas, a atuação dos órgãos de prevenção, e,
sobretudo, a tarefa da comunicação dos conteúdos normativos 72 e da educação para a
cidadania, que podem criar um estado social de pacificação, prevenção, cumprimento e
punição de acordo com as regras jurídicas vigentes. Assim, um estado de justiça em
sociedade é sempre carente da atividade concreta de efetivação discursiva e
institucional do Direito previsto em documentos legais (law in books), sendo a prática
discursiva (law in action) - a que se refere Roscoe Pound -,73 uma etapa de decisão
discursiva acerca das previsões legais.
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79Para o registro dos dados concretos: “O número de homicídios no Brasil, em 2015, ficou estável na mesma
ordem de grandeza dos dois anos anteriores. Segundo o Ministério da Saúde, nesse ano houve 59.080
mortes. Trata-se de um número exorbitante (...)” (IPEA; FSPB, Atlas da Violência 2017, 2017, p. 55).
80ONU Brasil, 2017.
81Para o registro dos dados concretos: “Os homicídios pela polícia continuaram numerosos e, em alguns
estados, aumentaram. No estado do Rio de Janeiro, 811 pessoas foram mortas pela polícia entre janeiro e
novembro. Houve relatos de diversas operações policiais que resultaram em mortes, a maioria delas em
favelas. Algumas poucas medidas foram adotadas para frear a violência policial no Rio, mas ainda não
produziram resultados” (Anistia Internacional, O estado dos direitos humanos no mundo 2016-2017, In
https://anistia.org.br, Acesso em 27/12/2017, 2017, p. 84).
82Cf. Direitos Humanos, 3º. Relatório Nacional do Estado Brasileiro ao Mecanismo de Revisão Periódica
Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – 2017, 2017, p. 03.
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direção ao papel dos atores jurídicos e dos intérpretes. 88 O que se procurará fazer nas
seções seguintes será apresentar o conjunto de pontos de convergência e divergência,
considerando-se este pano de fundo comum.
88“En otros términos, las reglas del sistema controlan los casos claros, pero no los de la penumbra” (Carrió,
Notas sobre Derecho y Lenguaje, 5.ed., 2011, p. 72).
89Guastini, Das fontes às normas, 2005.
90Em 1999, defendida como Tese de Doutorado pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil); posteriormente, publicada em forma
de livro. A este respeito, consulte-se Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito, 7. ed., 2017.
91Vide Landowski, La sociedade figurada: ensayos de sociosemiótica, 1993, ps. 76-77.
92Cf. Cornu, Linguistique juridique, 1990; Dubouchet, Sémiotique juridique: introduction à une Science du
Droit, 1990.
93“Le signe est une unité du plan de la manifestation, constituée par la fonction sémiotique, cest-à-dire par
la relation de présupposition reciproque quis´établit entre deux grandeurs du plan de l’expression (ou
signifiant) et du plan du contenu (ou signifié), lors de l’acte de langage”; “O signo é uma unidade do plano
da manifestação, constituído pela função semiótica, ou seja, pela relação de pressuposição recíproca que se
estabelece entre duas grandezas do plano da expressão (ou significante) e do plano do conteúdo (ou
significado), no âmbito do ato de linguagem” (tradução livre) (Greimas, Courtés, Sémiotique: dictionnaire
raisonné de la théorie du langage, 1993, p. 349).
94Vide Bittar, Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito, 7. ed., 2017, p. 115.
95Cf. Eco, Os limites da interpretação, 1995, p. 219.
96Greimas, Courtés, Sémiotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage, 1993.
97Eco, Tratado geral de semiótica, 2. ed., 1991; Eco, Os limites da interpretação, 1995.
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290-299; Unger, In The Critical Legal Studies Movement: another time, a greater task, 2015; Unger, The
Critical Legal Studies Movement, in Harvard Law Review, 96, 3, 1983, ps. 561-675.
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101“...laTeoria del Derecho concebida como análisis del derecho desde el punto de vista ‘formal’ y/o
‘estructural’ ” (Guastini, Distinguendo: estúdios de teoria y metateoría del Derecho, 2016, p. 23).
102“A relação entre estudo semiótico e estudo da interpretação é de implicação...” (Bittar, Linguagem
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104Guastini, Interpretare e argumentare, 2011. Vide, também, Gazzolo, Lingua del diritto/ diritto della lingua,
in Rivista di Filosofia del Diritto, 2016, p. 162.
105“... as unidades internas do sistema jurídico são (...) os textos” (Bittar, Introdução ao estudo do direito:
pensano chel´interpretazione sia il problema fondamentale della teoria del diritto”; “Hoje muitos pensam
que a interpretação seja o problema fundamental da teoria do Direito” (tradução livre) (Barberis,
Introduzione allo studio del diritto, 2014, p. 187).
108Mauro Barberis está de acordo com as críticas de Riccardo Guastini ao formalismo jurídico. A este
respeito, vide Barberis, Introduzione allo studio del diritto, 2014, p. 197.
109“a interpretação jurídica é atividade produtora de sentido...” (Bittar, Introdução ao estudo do direito:
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mas não é condição única para a produção do sentido jurídico, que demanda a atividade
de outros atores jurídicos. 110 O legislador-actante produz um discurso, o discurso
normativo, que carece de ser complementado pelas práticas provenientes dos discursos
decisório, burocrático e doutrinário. 111 Ou melhor, a norma jurídica existe apenas em
parte no discurso normativo.
Dentro da visão da Teoria do Humanismo Realista - que assimila as contribuições
da Semiótica do Direito para o interior dos debates da Teoria do Direito - a norma
jurídica pode ser entendida como sendo um projeto-de-sentido,112 ainda carente de ser
invocado, concretizado, aplicado através de práticas discursivas levadas adiante pelos
atores jurídicos. No nível do discurso normativo, a norma jurídica ainda não existe, pois
a incompletude é a sua característica, sendo sua completude não-semântica, mas sim
pragmático-discursiva e decisória, dependente da cadeia de relações institucionais e
interpretativas que seguirão ao ato de criação da norma jurídica. Dentro da visão do
realismo metodológico de Riccardo Guastini é enfatizado que isto demanda dos
intérpretes das normas jurídicas um conjunto de decisões sobre os sentidos das
mesmas, e, por isso, alcança-se a afirmação de que as normas jurídicas são o produto da
interpretação, como o faz no artigo Dos concepciones de las normas,113 ou ainda, de que
a norma jurídica é uma “...disposição reformulada pelo intérprete”, como em
Distinguendo.114
É neste ponto, também, que a concepção da Teoria do Humanismo Realista
acaba por desembocar nas mesmas percepções céticas, hermenêuticas e decisórias do
realismo genovês de Riccardo Guastini, ao afirmar que a decisão jurídica é, sobretudo,
uma decisão sobre os sentidos possíveis das regras jurídicas, querendo-se com isso dizer
que as decisões são criadoras de Direito - e, complexas, porque resultantes do
entrecruzamento de vários textos jurídicos,115 aí incluído o problema dos testemunhos,
esboço-de-solução” (Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019,
p. 493).
113“Una norma no es otra cosa que el significado de un enunciado, o bien un enunciado interpretado, o, si se
pues, un enunciado del lenguaje de los intérpretes” (Guastini, Distinguendo, 2016, p. 101).
115“... a decisão jurídica é vista como um ponto de confluência de várias decisões, formando uma
supratextualidade que opera com outros textos...” (Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo,
democracia e justiça, 2.ed., 2019, p. 511).
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que ampliam a opacidade do Direito -,116 e não miméticas de regras, o que não significa
nem subjetivismo decisório,117e, muito menos ainda, objetividade regulatória,118 mas sim
uma posição intermediária que deixa margem para as adequadas, fundamentadas,
dialógicas e racionais justificações sobre saídas institucionais aos conflitos sociais e aos
reclamos por justiça.
116Canale, Norme opache: il ruolo degli esperti nel ragionamento giuridico, in Rivista di Filosofia del Diritto,
2015, ps. 93-124.
117“...a interpretação não é algo arbitrário, ou ainda, sem-limites, pois obedece a certos cânones...” (Bittar,
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distantes ficam os realismos jurídicos; (ii) quanto mais próximo se está da dimensão
hermenêutica, mais próximos ficam os realismos jurídicos. É isto que faz com que,
possuindo pontos de convergência e de divergência, o realismo genovês e o realismo
brasileiro, dentro de suas tradições e desafios locais, representem alternativas ao
positivismo jurídico, movimentando o olhar do jurista para além dos limites internos da
norma jurídica.
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Sobre o autor
Eduardo C. B. Bittar
É Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É Doutor (1999) e Livre-Docente
(2003) pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. Foi Secretário-Executivo (2007-2009) e
Presidente (2009-2010) da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP). Foi
2º. Vice-Presidente da Associação Brasileira de Filosofia do Direito (ABRAFI – IVR/
Brasil, 2009-2016). Foi Visiting Professor da Università di Bologna (Bologna, Itália,
2017) e, também, da Université Paris-Nanterre (França, Paris, 2018) e do Collège de
France (França, Paris, 2019). É Membro Titular do Grupo de Pesquisas Direitos
Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo – IEA/ USP. É Associate Editor do International Journal for
the Semiotics of Law (IJSL). É Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail:
edubittar@uol.com.br
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Rosilandy Carina Candido Lapa
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Resumo
Nessa pesquisa estudou-se o atual desequilíbrio entre as necessidades apresentadas no
âmbito das migrações forçadas e a resposta coletiva internacional para aliviar os Estados
de primeiro asilo que concentram a maior parte das solicitações de refúgio. Por meio do
método dialético-descritivo, de caráter transdisciplinar, foram analisadas duas vertentes
teóricas que concebem a solidariedade ou o interesse dos Estados como força motriz
para a cooperação ao longo da formação e manutenção do Regime Internacional dos
Refugiados.
Palavras-chave: Cooperação; Refúgio; Solidariedade; Non-refoulement.
Abstract
This research examines the current imbalance between the needs presented in the
context of forced migration and the collective international response to alleviate the
states of the first asylum, which concentrate most of the requests for refuge. Through
the dialectical-descriptive method, of a transdisciplinary character, two theoretical
aspects are analyzed that conceive the solidarity or the interest of the States as a driving
force for cooperation throughout the formation and maintenance of the International
Refugee Regime.
Keywords: Refugees; Cooperation; Solidarity; Non-refoulement.
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Introdução1
A busca por refúgio faz parte da história da civilização. Por diferentes motivos, há
sempre indivíduos isolados ou grupos que deixam a terra de origem para fixar-se em
outro lugar. No primeiro momento, enquanto deslocados internos, eles buscam o
recomeço dentro de suas próprias fronteiras. Depois, na condição de imigrantes
forçados, transpõem fronteiras e tentam superar as barreiras da distância e da
adaptação ao meio e aos grupos locais.
A construção do Regime Internacional dos Refugiados é fruto de ação de
governança voltada à proteção de pessoas que deixaram seu Estado de Origem. No
entanto, o tema da cooperação não apareceu no texto da Convenção de 1951, apenas
no seu preâmbulo, indicando que a mesma seria essencial para “reduzir os encargos
indevidamente pesados para certos Países”2. Nesse sentido, cooperação, no âmbito do
regime dos refugiados, significa o apoio da “comunidade internacional” aos Estados que
recebem os fluxos massivos de refugiados, denominados Estados de primeiro asilo. Esse
apoio está relacionado aos demais Estados, oferecendo cotas de reassentamento para
“reduzir os encargos indevidamente pesados” que recebem os Estados de primeiro asilo.
Quase sete décadas se passaram desde a normatização da proteção aos
refugiados. Contudo, houve aumento no desequilíbrio entre as necessidades
apresentadas, afluência de refugiados e a insuficiência da resposta coletiva
internacionalna forma de apoio aos Estados de primeiro asilo, bem como oferta de cotas
suficientes para reassentamento. Por exemplo, há, aproximadamente, 25,4 milhões de
refugiados no mundo,entretantoos Estados reassentaram, em 2016, cerca de 190 mil
refugiados, com destaque para os EUA (96,8 mil), o Canadá (46,7) e a Austrália (27,6 mil)
(UNHCR, 2017, n.p).
1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001/This study was financed in part by the Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
2 “Parágrafo 4°: Considerando que da concessão do direito de asilo podem resultar encargos indevidamente
pesados para certos países e que a solução satisfatória dos problemas cujo alcance e natureza
internacionais a Organização da Nações Unidas reconheceu, não pode, portanto, ser obtida sem
cooperação internacional. [...] Parágrafo 6°: Notando que o Alto Comissário das Nações Unidas para os
Refugiados tem a incumbência de zelar pela aplicação das convenções internacionais que assegurem a
proteção dos refugiados, e reconhecendo que a coordenação efetiva das medidas tomadas para
resolver este problema dependerá da cooperação dos Estados com o Alto Comissário, convieram nas
seguintes disposições” . Disponível
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BDL/Convencao_ relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados&view. Acesso em: 04 mai. 2018.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 168-196.
Rosilandy Carina Candido Lapa
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3“No método dialético, os processos não são observados como fixos, tampouco isolados ou destacados. Os
fenômenos da natureza e sociedade são compreendidos como interligados, condicionando-se de forma
recíproca, conforme observado na obra Fundamentos da Metodologia Científica: em resumo, todos os
aspectos da realidade (da natureza ou da sociedade) prendem-se por laços necessários e recíprocos. Essa lei
leva à necessidade de avaliar uma situação, um acontecimento, uma tarefa, uma coisa, do ponto de vista
das condições que os determinam e, assim, os explicam”(PESCUMA; LAKATOS, 2003, p.102).
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4Cf.,por exemplo, as estatísticas do Alto Comissariado das Nações Unidas sobre refugiados desde a criação
da agência. Dados disponíveis em: <http://popstats.unhcr.org/en/overview>. Acesso em: 10 fev. 2018.
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social ou opiniões políticas, e que estão fora do seu Estado de Origem” (ACNUR, 1951,
Art. 1°). A Convenção consagrou também o non-refoulement que pode ser concebido
como uma garantia de não expulsão pelo Estado de asilo que deve acolher o solicitante
de refúgio durante o devido processo legal para o seu reconhecimento (UNHCR,
1977).Tal direito já constava do regime internacional de proteção aos refugiados desde a
época de atuação da Liga das Nações, tendo sido adotado pela mencionada Convenção
de 19335 e consagrado novamente na Convenção de 1951.
Em seu preâmbulo, A Convenção de 1951 reconhece o caráter social e
humanitário do problema dos refugiados e declara que apenas a cooperação
internacional pode reduzir os encargos indevidamente pesados dos Estados de primeiro
asilo, ressaltando que os Estados devem “fazer tudo que estiver ao seu alcance para
evitar a tensão”(ACNUR, 1951, preâmbulo).
O conceito de refugiado na Convenção de 1951 foi criado com duas limitações:
uma geográfica (aos refugiados na Europa) e outro temporal (aos acontecimentos
ocorridos antes de janeiro de 1951). A fim de sanar tal limitação, houve a revisão da
abrangência na Convenção de 1951, ocorrida em 1967, com a criação do Protocolo
sobre o Status dos Refugiados, indicando em seu preâmbulo que “todos os refugiados
abrangidos na definição da Convenção, independentemente do prazo de 1° de janeiro
de 1951, possam gozar de igual estatuto”, ou seja, removendo a reserva temporal
prevista na Convenção de 1951 e, consequentemente, ampliando a proteção (ACNUR,
1967, Art. 1°).
Tal extensão da proteção continuou com iniciativas regionais, a exemplo da
Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos (1969) que
inseriu a “grave perturbação da ordem pública” (Art. 1°) como fundamento para conferir
proteção e a Declaração de Cartagena (1984) que incluiu a “violência generalizada ou
violação maciça dos Direitos Humanos” (III conclusão). Esses conceitos foram acrescidos
ao conceito universal estabelecido pela Convenção de 1951, revisada pelo Protocolo de
1967, apenas tornando mais ampla a proteção.
5Cf. Art. 3°: Each of the Contracting Parties undertakes not to remove or keep from its territory by
application of police measures, such as expulsions or non-admittance at the frontier (refoulement), refugees
who have been authorized to reside there regularly, unless the said measures are dictated by reasons of
national security or public order. It undertakes in any case not to refuse entry to refugees at the frontier of
their countries of origin.
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6As pessoas que não se enquadrarem não devem ser reconhecidas como refugiados; assim como as
submetidas às cláusulas de exclusão Convenção de 51 que impedem que, ainda que a pessoa se enquadre
nos critérios conceituais de refugiado, seja a mesma reconhecida como tal (art. 1, F).
7A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 foi ratificada por 145 Estados, enquanto o
Protocolo Adicional de 1967 foi ratificado por 146 Estados. No total, 142 Estados ratificaram ambos os
documentos. Para mais informações, consultar: http://www.unhcr.org/protection/basic/3b73b0d63/states-
parties-1951-convention-its-1967-protocol.html.
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O leite, quando ferve na leiteira, derrama. Não sei, e nunca quis saber, por
que isto acontece; se me pressionarem, provavelmente atribuiria o
fenômeno a uma propensão do leite para derramar quando ferve, o que é
verdade mais nada explica (CARR, 1982, p. 102).
Nesse subtópico, tem-se como objetivo ir além das razões óbvias para explicar
por que o “leite derrama quando ferve”, ou seja, estudar o conceito de solidariedade e
cooperação para compreender sua relação com as dificuldades enfrentadas pelo Regime
dos Refugiados, explicitadas no texto. Com suporte teórico transdisciplinar, pesquisou-
se as diferenças entre solidariedade, interesse e cooperação no Regime dos Refugiados.
Os termos solidariedade e cooperação são comumente utilizados nos
instrumentos normativos da Organização das Nações Unidas, em especial naqueles
relacionados aos Direitos Humanos. Entretanto, não há uma definição clara em relação
às diferenças entre ambos ou como devem ser interpretados nesses documentos,
restando compreensão abstrata sobre seus significados.
Embora sejam de algum modo dependentes, como ver-se-á adiante,
solidariedade e cooperação não são iguais. Aliás, não há consenso teórico que atribua
significado perpétuo, mas interpretações aplicadas de maneira geral ou específica.
Assim, espera-se compreender o sentido e o alcance desses conceitos como parte dos
instrumentos internacionais de proteção aos refugiados.
A compreensão sobre o termo solidariedade apresentou metamorfose,
conforme o contexto no qual foi aplicada ao longo dos séculos. Nessa pesquisa,
empregou-se a divisão do termo realizada pelo sociólogo Hauke Brunkhorst (2001),
conforme a Tabela 1:
Tabela 1 – Níveis de solidariedade
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IVaEurocêntrica/Estatal
IVb Global?
Fonte: Retirado de Brunkhorst (2001, p. 108).
Inicialmente ligada à filosofia grega, a solidariedade era concebida como uma
relação de amizade (philia) e concordância (concórdia), prevendo que a amizade entre
muitos Estados geraria dificuldades, tornando impossível uma relação perfeita.
Entretanto, Aristóteles (384 a.c- 322 a.c) reconhece que poderia existir redes entre
amizades variadas sobrepostas, cuja estreita interconexão tornava a faixa de concórdia
duradoura (ARISTÓTELES, 1999).
Em seguida, emergiu o conceito romano-legal in solidum (solidariamente)
referente à obrigação pelo conjunto, responsabilidade solidária e dívida comum, para
depois adotar contornos relacionados à caridade (caritas) e à amizade (Philia), ao longo
da expansão da filosofia eclesiástica antiga8. Essa noção de caridade, contudo, aplicava-
se de maneira universal apenas no âmbito celestial, enquanto na terra a solidariedade
era hierarquizada e empregada de acordo com a posição social dos indivíduos.
Após a Revolução Francesa (1789), o termo solidariedade assume o significado
generalista (solidariedade igualitária) utilizado até os dias atuais, relacionadoà
fraternidade (fraternité) e à igualdade (égalité). Ao mesmo tempo, o termo é
normatizado na estrutura dos Estados e seus relacionamentos em diferentes áreas,
como a economia, o direito e a política que, juntos, formam os chamados sistemas
funcionais (BRUNKHORST, 2001). Nesse último nível, deu-se a transformação dos
indivíduos em massa por meio da produtividade sistêmica e dependência do mercado. O
modelo capitalista que se reproduz em territórios e culturas com significativas
diferenças econômicas e sociais.
8Tomás de Aquino (1225-1274) e Agostinho de Hipona (354-430) são exemplos de filósofos eclesiásticos
(1225-1274) que buscaram referenciar conceitos da filosofia grega clássica nos princípios da igreja católica,
em especial a ética e teoria política.
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9Busca de termo com o filtro “ALL ODS”, banco de dados “UNITED NATIONS SEARCH Powered by UNITE”.
Results 31 - 40 of 36,635 for solidarity. Search took 3.01 seconds. Disponível em:
https://search.un.org/results.php. Acesso em: 08 out. 2018.
10Do original: There is hardly a single subsequent resolution of the General Assembly relating to the work of
my Office which does not contain some reference to the importance of international solidarity in seeking
solutions to the refugee problem. International solidarity has indeed acted as mainspring for all action
undertaken by my office in favour of refugees.
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11Artigo 55: Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e
amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da
autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a. níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e
condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b. a solução dos problemas internacionais
econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c.
o respeito universal e efetivo raça, sexo, língua ou religião.
12Artigo 56: Para a realização dos propósitos enumerados no artigo 55, todos os membros da Organização se
Estados cooperarão na promoção do respeito universal e observância dos direitos humanos e liberdades
fundamentais para todos e na eliminação de todas as formas de discriminação racial e de todas as formas de
intolerância religiosa; c)Os Estados conduzirão suas relações internacionais nos campos econômico, social,
cultural, técnico e comercial, de acordo com os princípios de igualdade e não-intervenção
soberana;d)Estados Membros das Nações Unidas têm o dever de tomar ações conjuntas e separadas em
cooperação com as Nações Unidas, de acordo com as disposições pertinentes da Carta.
14Art. 35 - Cooperação das autoridades nacionais com as Nações Unidas. Os Estados Contratantes se
comprometem a cooperar com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ou qualquer
outra instituição das Nações Unidas que lhe suceda, no exercício das suas funções e em particular para
facilitar a sua tarefa de supervisionar a
aplicação das disposições desta Convenção. 2. A fim de permitir ao Alto Comissariado ou a qualquer outra
instituiçãodas Nações Unidas que lhe suceda apresentar relatório aos órgãos competentes das Nações
Unidas, os Estados Contratantes se comprometem a fornecer-lhes, pela forma apropriada, as informações e
dados estatísticos pedidos relativos: a) ao estatuto dos refugiados, b) à execução desta Convenção, e c) às
leis, regulamentos e decretos que estão ou entrarão em vigor que concerne aos refugiados.
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citados pelos autores. A própria Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951)
tem cláusula específica para denúncia (retirada), a saber:
Art. 44 – Denúncia
1. Qualquer Estado Contratante poderá denunciar a Convenção a qualquer
momento por notificação dirigida ao Secretário-Geral das Nações Unidas. 2.
A denúncia entrará em vigor para o Estado interessado um ano depois da
data na qual houver sido recebida pelo Secretário-Geral das Nações Unidas.
3. Qualquer Estado que houver feito uma declaração ou notificação
conforme o art. 40 poderá notificar ulteriormente ao Secretário-Geral das
Nações Unidas que a Convenção cessará de se aplicar a todo o território
designado na notificação. A Convenção cessará, então, de se aplicar ao
território em questão um ano depois da data na qual o Secretário-Geral
houver recebido essa notificação.
Os Estados podem, inclusive, aderir aos instrumentos com ressalvas à certos
artigos. Este comportamento não pode ser replicado no direito interno, pois
não há opção de retirada ou ressalva aos seus sujeitos. Um cidadão não
pode optar por deixar de seguir as regras de trânsito em razão de não
concordar com seus pressupostos, tampouco cumpri-las com ressalvas
(ACNUR, 1951, Art. 44).
Nem todas as leis ou mais propriamente “regras” pressupõem obrigação como
elemento essencial, como as regras procedimentais e burocráticas que regem as
relações públicas e privadas e, no caso internacional, os tratados que constituem as
Organizações Internacionais e aqueles que regem questões técnicas. As regras no
Direito não são apenas construções intelectuais, mas têm eficácia social na medida em
que apresentam alguns aspectos centrais, como a legitimidade ou aceitação “aos olhos
das pessoas ou grupos a quem são aplicadas” e que “sendo legitimadas, não dependem
de sanções para que se tornem efetivas”(HART, 1994, p. 217).
Os Estados obedecem às regras impotentes porque são atraídos para o
cumprimento por considerações de legitimidade e justiça distributiva. Assim, o Regime
pode ser efetivo, mesmo sem ferramentas de coerção enquanto atender aos interesses
dos Estados (KOH, 1995).
A adoção de mecanismos de coerção, nesse caso, pode enfraquecer as bases
do Regime, pois a aderência aos instrumentos internacionais depende, em sua essência,
do interesse dos Estados, enquanto, no direito interno, todos os códigos legais vigentes
incorporam-se automaticamente a partir do nascimento do sujeito, sem possibilidade de
escolha. Sendo assim, entende-se que o direito internacional deve ter status legal a
partir de outros meios, como a própria legitimidade ou ações provenientes do direito
que não estão necessariamente impostas a partir da coerção ou da execução da força
em caso de não conformidade.
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15A reunião foi intitulada de “International Cooperation to ShareBurden and Responsabilities: Expert
Meeting in Amman, Jordan” e resultou no documento que pode ser consultado pelo endereço:
http://www.unhcr.org/events/conferences/4ef332d29/expert-meeting-international-cooperation-share-
burden-responsibilities.html.
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Atores Ações
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16 Do original: The vocational training school at Hirtenberg continues to provide excellent facilities to new
Hungarian refugee apprentices. The number of beneficiaries increased during 1960 by 118 cases bringing
the total as of 31 December 1960 to 282 cases (185 from camps). As of 1 January 1961, 110 new Hungarian
refugee youth were undergoing training in the school. Both the results of the examinations of apprentices
graduating from the training school at Hirtenberg and the chances of finding well-paid employment on
leaving the school remain excellent. Disponível em:
http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/AC.96/112.
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17 Do original: Austria had not only been relieved physically but also financially. The expenditures it incurred
by the end of 1957, estimated to amount to 12,200,000 USD, were fully covered by contributions from other
governments through the Secretary-General, UNHCR or directly. Disponível em:
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1481596.
18 Do original: However, after the turn of the year, as the advance of production continued and spread
outward, jobs expanded swiftly. Between the last quarters of 1954 and 1955, employment increased by
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over 3 million. Meanwhile, unemployment declined despite the tremendous numbers, especially of women
and young people, who were attracted into the labor market by high wages and widening opportunities. By
mid-1955 unemployment at large was well below 4 percent of the labor force. The unemployment rate
among married men living with their families, who form the hard core of the labor force, fell below 2
percent. Disponível em: http://www.presidency.ucsb.edu/economic_reports/1956.pdf.
19 As Leis Jim Crow eram um conjunto de normas estaduais e municipais formuladas no Sul dos Estados
Unidos com o intuito de segregar os negros. Para mais informações a respeito, consultar:
https://www2.gwu.edu/~erpapers/teachinger/glossary/jim-crow-laws.cfm.
20Do original: dear Mr. vice president: all persons of goodwill were impressed with your deep concern for
the suffering of the Hungarian people which expressed itself in your trip to Austria, your report to the
president and to the American people. we urge you to make such a fact-finding trip to troubled areas of the
south in order to report to the president and to the American people the intensity and extent of the
economic boycotts, reprisals, the bombings and violence directed against the persons and homes of negroes
who attempt to assert their rights under the united states constitution. To be specific, within the last year
thousands of negroes have fled Mississippi. they have received no moral or financial assistance from the
federal government. if you were to make the trip into the south to explore the facts, and to talk with victims
of racial oppression, you could then recommend to the president and the American people a course of
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action that might be as effective as your efforts on behalf of Hungarian refugees. Para consultar a carta,
utilizar o link: https://kinginstitute.stanford.edu/king-papers/documents/richard-m-nixon-4.
21 Do original: One observer estimated that some 38% of the refugees were inadequately or wrongly placed,
citing "the lawyer who washes dishes; the former secretary who works on a sewing machine in the factory;
the architect in the foundry; the auto mechanic who is a butcher's helper." However, the same critic noted
that only 9% of the refugees were unemployed at the end of a year's time, and that over 50% of them were
at least adequately placed in their areas.
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22 Do original: The screening process then in effect guaranteed that the refugees would present "no
significant risk of internal subversion in this country." Rather than assuming a liability, I feel that the United
States or any other nation which accepted these people would be gaining "a valuable national asset” Para
visualizart odo o relatório, consultar: http://archivum.retorki.hu/upload/2015/10/254.pdf.
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Conclusão
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Sobre a autora
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 197-236.
Ernani Salles da Costa Junior e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
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Resumo
O problema que orienta essa investigação pode ser formulado da seguinte maneira: em
que medida a crise constitucional, evidenciada nas reformas recentes contra o núcleo
inclusivo da Constituição brasileira que compõem o programa “Uma Ponte para o
Futuro”, seria também uma crise temporal? A partir de um estudo teórico-conceitual
embasado em pesquisa bibliográfica e análise documental, a hipótese defendida aqui é
a de que o pano de fundo dessa crise está relacionado com um discurso que
instrumentaliza o “tempo histórico” e o “futuro” em si para gerar adesão social a partir
da defesa aberta da aceleração, a defesa de um futuro que deve chegar mais rápido. Tal
categoria é analisada a partir de uma leitura específica que esse artigo propõe da obra
de Hartmut Rosa, no quadro de uma crítica à aceleração que submete os
comprometimentos públicos de longa duração da Constituição à tutela da acumulação
da riqueza privada e à velocidade do tempo do mercado e da competitividade.
Palavras-chave: Constituição; Tempo; Aceleração Social.
Abstract
The problem that guides the investigation can be formulated as follows: to what extent
is the constitutional crisis, evidenced in the recent reforms against the inclusive nucleus
of the Brazilian Constitution that make up the program “A Bridge to the Future”, would
be also a temporal crisis? Based on a theoretical-conceptual study based on
bibliographic research and documentary analysis, the hypothesis defended here is that
the background of this crisis is related to a discourse that instrumentalizes “historical
time” and “future” itself for to generate social adhesion from the open defense of
acceleration, the defense of a future that must come faster. This category is analyzed
based on a specific reading that this article proposes from the work of Hartmut Rosa,
within the framework of a criticism to the acceleration that submits the long-term public
commitments of the Constitution to the tutelage of the accumulation of private wealth
and the speed of market and. Competitiveness time.
Keywords: Constitution; Time; Social acceleration.
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Ao menos no Brasil, a palavra crise é uma daquelas utilizadas de forma corrente por
figuras públicas e pela impressa para traduzir um estado de turbulências e de
instabilidade, por vezes corriqueiros, no cenário vigente. Concebido dessa forma, o
termo já perdeu muito de seu componente de excepcionalidade: a gradativa
normalização do conceito – fala-se a todo o momento em crise política, crise econômica,
crise de valores, crise da civilização – tem duas consequências: uma espécie de
banalização da ideia de crise e uma certa opacidade do conceito (PAIXÃO, 2018).
Considerando seu significado mais preciso ou pelo menos mais restrito, aquele
proveniente dos dicionários de língua portuguesa 1, tem-se que crise indica “mudança
súbita ou agravamento que sobrevém no curso de uma doença aguda” ou “conjuntura
ou momento perigoso” ou mesmo “desacordo que obriga instituição ou organismo a
recompor-se ou a demitir-se”. Remete, portanto, a uma anormalidade que conduz à
ideia de um momento de transição ou ruptura.
Significado semelhante foi atribuído por Koselleck (1999, p. 145) que,
remetendo a Rousseau, afirma que, no sentido político, crise consistiria num
desdobramento do sentido médico a partir da metáfora do Estado enquanto corpo
político. A partir daí, poderia se chegar a, pelo menos três sentidos, segundo ele, da
palavra crise: transformação no curso de uma doença, ponto decisivo no tempo e
situação alarmante (KOSELLECK, 2006, p. p. 357-400). Ela representaria um processo
crítico que não acarreta apenas um período de insegurança cujo fim seria imprevisível,
mas um momento de transição que demanda decisão e escolhas. No mesmo sentido e
em leitura de suas reflexões, Ricoeur confirmaria esse significado do termo: “en
pénétrant dans la sphère politique, la crise dramatise la critique; elle apporte avec elle sa
connotation médicale: son pouvoir révélateur à l'égard d'un mal profond et surtout son
effet de décision entre l'aggravation ou l'amélioration” (RICOEUR, 1988, p.4).
Partindo dessa noção tecnicamente mais afinada do termo, há razões para
enxergar, mesmo sob uma aparente normalidade institucional, traços de uma
verdadeira “crise constitucional” na conjuntura político-jurídica brasileira de nossos
tempos, exposta pelo menos desde o “impeachment” da Ex Presidente Dilma Rousseff,
sem correr o risco de uma banalização ou instrumentalização ideológica do termo.
1 Disponível em <https://dicionariodoaurelio.com/crises>
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2 Posição distinta daquela assumida no presente artigo é a de Henrique Meirelles (2016), na época Ministro
da Fazenda e do Planejamento, segundo a qual a reforma busca estabelecer “regras que contenham a
pressão por expansão do gasto além da capacidade de pagamento do governo” e “recobrar o equilíbrio
fiscal com visão de longo prazo”. Para ele (2016), “solucionar a crise e voltar a crescer é a mais importante
política social que precisamos colocar em prática para recuperar emprego e renda”. Argumentos como esse
são reforçados em Veloso (2016), Pessoa (2017) e Mendes (2016) que insistem, como se buscará aqui
demonstrar, a submeter a Constituição a uma variável puramente econômica (como a taxa de inflação),
impondo uma política permanente de redução e precarização do gasto público (e social).
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3 O economicismo é uma das ideologias contra a qual a hipótese da pesquisa em questão se coloca. Por
economicismo, entende-se, no mesmo sentido de Kwak (2017) ou de Souza (2013), a invocação do discurso
econômico como chave de explicação de todos os fenômenos sociais, numa espécie de determinismo que
ignora distintos olhares e fatores da sociedade e reduz a realidade a simples modelos abstratos. “É uma
visão empobrecida e amesquinhada da realidade, como se fosse ‘toda’ a realidade social” (SOUZA, 2013, p.
p.132). De certo modo, não se confunde com a ciência econômica cuja importância é irrefutável, trata-se, na
verdade, de uma forma de ver o mundo dominante, reproduzida, de forma irrefletida, pela grande mídia e
por políticos (e até mesmo por acadêmicos) que contribui para a dominação da política pela riqueza privada,
ao construir uma arquitetura interpretativa que justifica as políticas elitistas e a desigualdade por elas
geradas, por meio da distorção da visão de mundo, que passa a ser pautada em uma caricatura do
conhecimento econômico.
(KWAK, 2017, p. 187).
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discurso constitucional como legado das jornadas de junho. Em seguida, essa categoria
da síndrome da urgência será aprofundada, a partir de sua aproximação a outra
categoria, a aceleração social, desenvolvendo-a através das contribuições de Hartmut
Rosa. Na sequência, será examinado, de modo exemplificativo, o programa “Uma ponte
para o futuro”, apresentado pelo ex-presidente Michel Temer como base de seu projeto
de contrarreforma a partir da análise do próprio documento lançado pelo PMDB
juntamente com a Fundação Ulysses Guimarães (FUG) a fim de se depurar suas
intenções e ideias à luz da teoria crítica da aceleração social. Por fim, buscar-se-á
mostrar as consequências da Emenda Constitucional 95, como um projeto de aceleração
social, para o tempo do Direito e da Constituição.
Cabe ainda destacar, em termos metodológicos, que a pesquisa em questão
não se trata de estudo de caso do programa “Uma Ponte para o futuro”, mas sim um
estudo teórico-conceitual, de perfil exploratório e de análise bibliográfica e documental
que toma esse programa como exemplo. A proposta é, pois, demonstrar que “Uma
ponte para o futuro” é parte integrante de um projeto (contra) normativo maior de
desestruturação da Constituição que tem se operado a partir de uma aceleração social
em face do núcleo inclusivo da Constituição. Uma das mais importantes contribuições
desse artigo é oferecer aporte teórico para examinar esse fenômeno com sua devida
complexidade e suas consequências, hoje, para o discurso constitucional.
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4 A primeira tentativa de aproximação entre tempo e Constituição para um dos autores ocorreu em sua
dissertação de mestrado (ver Costa Junior, 2011). Algumas das conclusões tiradas ali foram posteriormente
publicadas no artigo “Constituição, tempo e narrativa” (ver Costa Junior, 2013).
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seja, não se limita, na ordem jurídica vigente, nem pelo Congresso, nem pelo Judiciário,
nem tampouco, pelo Executivo; exclusiva, pois eleita estritamente para cumprir essa
tarefa e depois se dissolve; e temática, pois se limita a fazer a reforma política apenas
(MAGALHÃES, 2014a). A proposta não é nova 5, mas reflete bem o sentimento de junho
de 2013 e a tentativa de uma resposta estatal para responder à crise de
representatividade e ao mal-estar generalizado contra a política nacional.
Em torno da necessidade de se alterar o sistema político tal como regulado
hoje pela Constituição de 1988 somado a um discurso majoritário de combate à
corrupção, a instauração de uma Constituinte Exclusiva é apresentada como solução
fatídica e necessária de ruptura.
Ainda que não seja nossa intenção aqui elaborar uma crítica pormenorizada
desse projeto como foi realizada em outro momento (COSTA JUNIOR, 2017), cabe
destacar como uma resposta de exceção configurou-se ali como a suposta solução da
crise política e como nela mesma já se encontram elementos importantes de uma crise
constitucional. A proposta de uma Assembleia Constituinte alternativa e soberana como
solução dos problemas inscritos no âmago da tradição política brasileira (vista sempre
na ótica patrimonialista de uma história de fracassos) traduz a ideia de rompimento com
as formas de dominação política do passado e do presente e abertura, sem mediação
com as regras da Constituição vigente, a um futuro sem precedentes. A reforma política
capaz de combater a corrupção endêmica e a própria lógica privatista em que operam
políticos e partidos – o que deturpa o cerne da representação –, só seria factível a partir
de uma solução salvacionista fora do procedimento constitucional em vigor: apenas uma
nova Assembleia, investida de soberania popular, poderia, em uma certa leitura
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e síndrome da urgência, mais uma vez, são articulados e mobilizados contra o discurso
constitucional. É esse processo que reivindica a aceleração em face do tempo do Direito
frente à ideia de uma satisfação imediata do desejo que será desenvolvido de forma
específica na sequência.
Ao enfatizar que uma nova consciência histórica tem sido desenvolvida desde junho de
2013 em torno da recepção do passado – de uma história mesma contada
predominantemente sob a perspectiva unilateral do fracasso constitucional – e da
projeção do futuro – reivindicado violentamente no presente como aceleração do
tempo do Direito – se pretendeu mostrar até aqui a perspectiva localizada de um
fenômeno que, no entanto, não se circunscreve na esfera nacional. Ainda que adquira
aqui cores específicas, a síndrome da urgência é um fenômeno social mais amplo, que
vai muito além do campo jurídico, sendo intrínseco ao modo como o tempo é percebido
hodiernamente nas sociedades ocidentais. As estruturas temporais conectam os níveis
micro e macro da sociedade; por exemplo, nossas ações e orientações se coordenam e
se fazem compatíveis com os “imperativos sistêmicos” das modernas sociedades
capitalistas (ainda que perifericamente modernas) através de normas, prazos e
regulamentos temporais (ROSA, 2016, p.9). Uma análise que agregue, pois, a
perspectiva temporal do contemporâneo tem especial relevância, na medida em que
não existe um tempo social independente da estrutura social, da cultura, do Direito, da
política. Se essa hipótese estiver certa, a aceleração está entrelaçada com as “dimensões
materiais da sociedade e não pode ser claramente separada delas em termos
fenomenológicos” (ROSA, 2011, p.12), o que, por sua vez, exige uma teoria crítica que dê
conta de seu funcionamento e do que é capaz de produzir em termos de “mal-estar”
numa tensão entre local e global.
Segundo David Harvey, um dos traços mais importantes das últimas décadas é
a noção da compressão do tempo e do espaço. A dinâmica nascente no contexto da
globalização é a da superação das distâncias, no sentido de que as transformações
técnicas e tecnológicas foram capazes de acelerar os fenômenos sociais e os níveis de
produção econômica e integração política. Essa observação de Harvey não está isolada.
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aponta, em sua perspectiva, que a sociedade moderna pode manter sua própria
estrutura apenas através da aceleração, crescimento e inovação, o que significa que o
mundo como um todo, em sua materialidade, é posto sob pressão para dinamizar-se:
pessoas, dinheiro, bens e matérias primas são postos em movimento. Basicamente, é
possível, para Rosa, separar esse fenômeno em três categorias analíticas e
empiricamente distintas.
A primeira e mais aparente forma de aceleração é a tecnológica, que pode ser
definida em relação aos processos intencionais e dirigidos a um objetivo, o que pode ser
visto nas transformações que passaram o transporte, a comunicação e a produção. Na
idade da globalização e da “utopicalidade” da internet, cada vez mais se concebe o
tempo como capaz de comprimir ou mesmo aniquilar o espaço: o espaço se contrai
virtualmente em razão da velocidade do transporte e da comunicação (ROSA, 2016,
p.23). Em muitos aspectos, hoje, o espaço perde seu significado no que se refere à
orientação no mundo.
A segunda categoria refere-se à aceleração da própria sociedade. Tanto as
atitudes e os valores como a moda, as instituições e os estilos de vida, as relações sociais
e as obrigações, assim como os grupos ou classes, as linguagens sociais e também as
práticas e os hábitos mudam a um ritmo cada vez maior6 (ROSA, 2011, p. 16). Segundo
Hermann Lubbe (2009), as sociedades ocidentais experimentam uma constante
contração do presente como consequência da velocidade acelerada das inovações
culturais e sociais. A sociedade moderna seria, nesse contexto, uma sociedade marcada
por processos dinâmicos em que haveria uma perda da capacidade de se transmitir o
conhecimento teórico e prático do passado, a perda da experiência como noção apta a
orientar as ações no presente. Essa “contração do presente” encontra apoio na noção de
presente tal como concebida por Koselleck (2006) que se articula num jogo de tensões
que só se realiza no presente entre duas categorias meta-históricas – e, portanto
formais – que são o “espaço de experiência”, entendido como um conjunto de heranças
e o modo como percebemos, consciente ou inconscientemente, as vivências e como
organizamos, narrativamente, as visões do passado, e o “horizonte de expectativa”,
6 Diferentemente do que ocorre com as taxas de aceleração tecnológicas, as taxas de mudança social são
difíceis de se medir empiricamente. Segundo Rosa (2011), há pouco consenso na sociologia a respeito de
quais são os indicadores relevantes de mudança e quando as alterações ou variações realmente constituem
uma mudança social significativa ou pouco relevante. Aqui a sociologia precisaria complementar-se com as
contribuições da filosofia social.
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7 Para demonstrar essa aceleração, Rosa afirma: “Por el momento quiero sugerir que el cambio en esos dos
ámbitos –trabajo y familia– se há acelerado de un ritmo intergeneracional en la sociedad moderna
temprana a um ritmo generacional en la ‘modernidad clásica’ y a un ritmo intrageneracional en la
modernidad tardía. Por eso, la típica estructura familiar ideal de las sociedades agrarias tendió a
permanecer estable a lo largo de los siglos, con una renovación generacional, dejando las estructuras
básicas intactas. En la modernidad clásica, esta estructura se construyó para durar por sólo una generación:
se organizaba em torno a una pareja y tendía a desaparecer con la muerte de la pareja. En la modernidad
tardía existe uma tendencia creciente de los ciclos de vida familiar a durarmenos que la duración de la vida
de un individuo: tasas crecientes de divorcio y segundos matrimonios son la prueba más obvia de esto”
(ROSA, 2011, p.17).
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8 “E eu acredito que isso começou a mudar realmente por volta do ano 1990, pois os processos de
aceleração social ocorrem em movimentos ondulares, e é justamente nesse período que pelo menos três
ondas de aceleração se manifestaram. Uma delas foram as revoluções políticas que levaram à queda do
Muro de Berlim e do bloco comunista. A Europa do Leste e a Eurásia possuíam uma temporalidade distinta,
e a confrontação entre os blocos funcionava como uma barreira de velocidade. Dessa forma, as revoluções
políticas significaram a abertura de uma vastidão de terras e populações à lógica da aceleração. Uma
segunda onda teve a ver com a reforma dos mercados financeiros no sentido de desregulação e
privatização, o que costumamos chamar de neoliberalismo – o que está relacionado em grande medida com
a transformação do modo de produção fordista. E, por fim, obviamente, a revolução digital e o advento da
internet” (ROSA, 2017, p. 371).
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A principal força, conforme Rosa (2016, 2011), que impulsiona esses ciclos de aceleração
social nas sociedades ocidentais é, por suposto, o capitalismo. O funcionamento do
sistema capitalista está baseado na circulação acelerada de bens e capital frente a uma
sociedade orientada pelo crescimento. O tempo do trabalho deve ser muito bem
aproveitado de modo a gerar um acúmulo de lucro cada vez maior. Do mesmo modo,
novas tecnologias são empregadas para diminuir o custo da produção e estimular a
competição. Também, o círculo de produção, distribuição e consumo deve ser
estimulado e acelerado constantemente. Para usar a famosa expressão de Benjamin
Franklin: “tempo é dinheiro”.
Portanto, a lógica do capitalismo conecta crescimento com aceleração na
necessidade de desenvolver a produção e também a produtividade – que pode ser
entendida como produção por unidade de tempo (ROSA, 2011, p. 22). Com Marx, Rosa
(2017, p.373) entende que o sujeito de movimento da sociedade capitalista é o próprio
capital, o que torna a competição uma das chaves do sistema e uma das forças motoras
da aceleração social, na medida em que seu critério de medida, sua mensuração é o
número de efetivações por unidade de tempo. Mas diferentemente de Marx, a lógica da
competição não pode ser circunscrita apenas ao capitalismo, não se trata apenas de
efeito do sistema. Há competição em diversas esferas da vida social que não a
econômica9. Como consequência, onde quer que exista competição, existe escassez de
tempo.
aquele que possui esse ou aquele status, ou pertence a essa ou aquela classe. O mesmo ocorre no campo da
política, ou no âmbito das relações amorosas”. (ROSA, 2017, p.373)
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10 Sobre uma análise mais profunda sobre a relação entre tempo e Constituição em Luhmann, ver Costa
Junior (2012).
11 Hartmut Rosa não teoriza especificamente sobre o papel da Constituição na modernidade, mas sua
reflexão sobre a política caminha num sentido bem próximo. O projeto político da modernidade e a ideia
que a funda de uma organização democrática dos modos de vida coletivos – tal como pensado por Rosa
(2010, p. 307) –estruturou-se, fundamentalmente, por meio das Constituições normativas a partir das
revoluções do séc. XVIII, o que justifica a nossa leitura.
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privada sem fins lucrativos sediada em Brasília. O documento (PMDB, 2015) tem
profundas ligações com outro, elaborado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI),
intitulado como “Propostas da Indústria para as Eleições 2014” (CNI, 2014), em diversas
dimensões.
Em ambos, é apresentada a necessidade de se reformular o regime fiscal
nacional, a partir da redução de gastos públicos, a expansão dos processos de
privatização e terceirização e a redução de custos tributários e trabalhistas para as
empresas ligadas ao comércio, indústria e agronegócio, dentre outras pautas de
ideologia manifestamente neoliberal. A modernização do Brasil, nessa perspectiva,
deveria se impor como um imperativo econômico de desenvolvimento e expansão
pautado na autovalorização do capital, sujeito, para Rosa (2016), da aceleração nas
sociedades modernas. Questões como incremento da competitividade e expansão de
mercado passam a ser apropriados de forma independente de processos normativos de
desenvolvimento social e de erradicação da pobreza, delineados na Constituição de
1988.
Segundo o próprio documento apresentado pelo ex presidente Michel Temer,
“voltado para o crescimento e não para o impasse e a estagnação” (PMDB, 2015, p. 9),
“este programa destina-se a preservar a economia brasileira e tornar viável o seu
desenvolvimento” (PMDB, 2015, p. 2).
O discurso, contido na proposta apresentada, prenuncia uma lógica de
crescimento para o Brasil que se assemelha com a da aceleração: um crescimento
enquanto movimento de expansão inevitável que se justifica por si mesmo e cujo
sentido é predominantemente (ou até mesmo unilateralmente) econômico. Esse mesmo
significado de crescimento é reforçado em outros trechos como: “crescer a economia
não é uma escolha que podemos fazer, ou não. É um imperativo de justiça” (PMDB,
2015, p. 8); os “motores esgotaram-se e um novo ciclo de crescimento deverá apoiar-se
no investimento privado e nos ganhos de competitividade do setor externo, tanto do
agronegócio, quanto do setor industrial” (PMDB, 2015, p. 17); “recriar um ambiente
econômico estimulante para o setor privado deve ser a orientação de uma política
correta de crescimento” (PMDB, 2015, p. 17); “devemos nos preparar rapidamente para
uma abertura comercial que torne nosso setor produtivo mais competitivo” (PMDB,
2015, p. 17).
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Com base nessa narrativa que prioriza o sentido pejorativo das experiências do
Estado Brasileiro, o caminho que se propõe é o da via única, imprescindível e urgente. A
ponte que se deve edificar para o futuro contém uma dimensão de inexorabilidade
frente a uma história contada de uma vez por todas, intocável e com o sentido
necessário, absoluto, definitivo:
Todas as iniciativas aqui expostas constituem uma necessidade, e quase um
consenso, no país. A inércia e a imobilidade política têm impedido que elas
se concretizem. A presente crise fiscal e, principalmente econômica, com
retração do PIB, alta inflação, juros muito elevados, desemprego crescente,
paralisação dos investimentos produtivos e a completa ausência de
horizontes estão obrigando a sociedade a encarar de frente o seu destino
(PMDB, 2015, p. 2, grifo nosso).
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alimenta os prognósticos cada vez mais sombrios sobre o futuro das nossas
contas públicas (PMDB, 2015, p.8).
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12 “Ao longo dos anos, com o teto sufocando cada vez mais as demandas da sociedade e com a lenta
retomada econômica, decorrente inclusive dessa escolha de política fiscal de austeridade, o governo tem
que realizar cortes orçamentários. Como o governo tem dificuldade em cortar as despesas com serviços
públicos, por serem em sua maioria obrigatórias, a tesoura recai sobre as despesas com investimento, estas
discricionárias, ou seja, o governo não tem obrigação de executar. O resultado disso é que o investimento
público chegou em 2017 ao menor nível em quase 50 anos, de acordo com Orair e Gobetti. União, estados e
municípios investiram apenas 1,17% do PIB – valor sequer suficiente para garantir a conservação da
infraestrutura já existente” Disponível https://www.inesc.org.br/para-manter-teto-dos-gastos-governo-
burla-constituicao-na-ldo-2019/.
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O gráfico 1 permite ainda extrair uma conclusão adicional relevante: nesses três
anos analisados, o Brasil experimentou expressiva transferência de recursos públicos de
programas sociais relevantes para os serviços da dívida pública, o que traduz uma
significativa redistribuição inversa dos recursos públicos, das populações vulneráveis
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para as mais ricas13 (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018, P.10). Isso ainda pode ser
reforçado a partir do gráfico 2, extraído dos mesmos dados levantados. Ele revela que,
entre os anos de 2015 e 2016, a proporção do orçamento gasto com despesas
financeiras (serviços da dívida) cresceu 2% em termos reais, o que implicou igual perda
para as despesas primárias (programas sociais) (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018,
P.10):
60%
0%
2014 2015 2016 Sep 2017
13No sentido contrário do que temos demonstrado, em novembro de 2016, o assessor especial do Ministro
da Fazenda, Marcos Mendes, em audiência pública conjunta da Comissão de Constituição e Justiça e da
Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal buscou desconstruir o que ele chamava de mito em
torno do teto dos gastos públicos, alegando que a reforma “vai beneficiar os mais pobres e a despesa com
juros vai cair” (MENDES, 2016). A partir dos dados aqui apresentados, se confirma a falta de embasamento
dos seus argumentos.
14 Esse horizonte normativo do projeto constituinte de 1988 pode ser extraído de pelo menos dois
princípios. O primeiro e mais óbvio é o princípio do uso máximo dos recursos disponíveis, ancorado no art. 2
do Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais, do qual o Brasil é signatário desde
1992, que estabelece que “Cada Estado-Parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto
por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos
econômico e técnico, até no máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar,
progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente
Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas” (PIDESC, 1966). Sobre tal princípio, ver
Oliveira (2007), O segundo princípio é o da vedação do retrocesso social que em seu sentido mais amplo
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possui duas dimensões, uma negativa e a outra positiva: a negativa refere-se à obrigação da não supressão
de direitos sociais nem mesmo redução de seu sentido normativo; a positiva refere-se à exigência do Estado
de implementar programas que possibilitem o avanço na concretização de direitos sociais de modo a reduzir
as desigualdades sociais. Sobre tal princípio, ver Sarlet (2015).
15 Os 10% mais ricos recebem mais da metade de toda a renda nacional18. A concentração de renda do 1%
dos brasileiros no topo é a maior do mundo19, com os seis maiores bilionários do país possuindo riqueza
equivalente ao patrimônio dos 100 milhões de brasileiros mais pobres, metade da população
16 A título de exemplo desse processo de desaceleração, anteriormente às medidas de austeridade, mais de
um terço dos beneficiários só podiam acessar os medicamentos em farmácias públicas que tinham objetivo
de ampliar o acesso da população aos medicamentos considerados essenciais, disponibilizados a um baixo
custo. Em 2017, o Ministério da Saúde decidiu fechar 314 farmácias públicas, deixando apenas 53 em
funcionamento hoje (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018).
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7. Conclusão
Ao longo do nosso percurso, constatou-se que o programa “Uma ponte para o futuro”,
especialmente na sua expressão máxima, a Emenda n. 95, expõe uma nova consciência
histórica – que já vem sendo desenvolvida pelo menos desde as jornadas de junho –
como pano de fundo da atual crise constitucional cujo passado é percebido como um
espaço em que a experiência constitucional é encurtada e rechaçada e o futuro como
horizonte desprovido de legado e de projeção, o que resulta um processo de aceleração
social contra a Constituição.
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17 Disponível em <https://extra.globo.com/noticias/economia/equipe-de-transicao-estuda-desvinculacao-
para-respeitar-teto-dos-gastos-diz-guedes-23268644.html>
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Sobre os autores
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 197-236.
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Joana Stelzer1
¹ Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail:
joana.stelzer@ufsc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9503-4080.
Gabriela M. Kyrillos2
² Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:
gabrielakyrillos@furg.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7237-4210.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
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Resumo
O estudo aborda o conceito de interseccionalidade das opressões ou desigualdades
interseccionais – cunhado em 1989, por Kimberlé Crenshaw – e seu potencial analítico
para a concretização do acesso das mulheres aos Direitos Humanos. Por meio de revisão
bibliográfica e documental, de aplicação do método hipotético-dedutivo, a pesquisa
possui caráter descritivo e explicativo. Conclui-se que as discriminações de gênero
interagem com outras categorias estruturais, como raça, produzindo processos de
exclusão particulares que são barreiras no acesso a direitos, sendo a interseccionalidade
uma ferramenta com grande potencial para melhor compreender esses processos e
minimizá-los.
Palavras-chave: Interseccionalidade; Feminismo Interseccional; Direitos Humanos.
Abstract
The research is about the study of the concept of intersectionality of oppression or
intersectional inequality - coined in 1989, by Kimberlé Crenshaw – and its analytical
potential for the realization of women's access to Human Rights. Through bibliographical
and documentary review, and the application of the hypothetical-deductive method, the
research has a descriptive and explanatory character. It is concluded that gender
discrimination interacts with other structural categories, such as race, producing
particular exclusion processes that are barriers in accessing rights, with intersectionality
being a tool with great potential to better understand these processes and minimize
them.
Keywords: Intersectionality; Intersectional Feminism; Human Rights
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1. Introdução
A busca pela eficácia dos Direitos Humanos nasce na mesma ocasião em que se
estipulam alguns direitos como sendo fundamentais e inalienáveis a todos os seres
humanos. A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949), em um cenário
marcado pelas atrocidades cometidas durante as duas Grandes Guerras Mundiais, o
discurso dos Direitos Humanos passa a ser incluído em grande parte dos ordenamentos
jurídicos ocidentais. Junto com o aparecimento de tal discurso, emerge a busca por
estratégias e ferramentas capazes de colocar em prática as garantias fundamentais que
tais documentos pretendem assegurar.
A presente pesquisa surge, portanto, da necessidade constante de reflexão
sobre as formas e estratégias para a efetivação dos Direitos Humanos, para isso
perpassa algumas Convenções sobre Direitos Humanos dedicadas à proteção de grupos
específicos como meninas e mulheres e pessoas negras. Desse modo, a investigação
demonstra o potencial da categoria interseccionalidade, pois reconhece que existe na
atualidade um complexo de estruturas de opressão (múltiplas e simultâneas) que
precisam ser analisadas como um sistema de desempoderamento.
Isso posto, tem-se como problema de pesquisa identificar como o conceito da
interseccionalidade pode contribuir ao debate sobre o acesso aos Direitos Humanos e
de que modo isso tem se desenvolvido no cenário internacional. Assim, tem-se como
objetivo principal demonstrar a relevância do conceito de interseccionalidade para a
construção teórica e prática de mecanismos de superação de desigualdades partindo do
reconhecimento da interseccionalidade das opressões (CRENSHAW, 1991).
Quanto à natureza, trata-se de pesquisa pura, com abordagem do problema e
avaliação de dados de maneira qualitativa. O método de abordagem utilizado foi o
hipotético-dedutivo, conforme Marconi e Lakatos (2003). Os meios foram bibliográficos
e documentais, com destaque para as obras de relevantes teóricos (as) e os textos da
Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(CEDAW) e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (ICERD), bem como, as Recomendações que os respectivos Comitês
produzem. A interpretação foi predominantemente teleológica. Quanto aos fins, a
pesquisa apresentou-se de cunho descritivo e explicativo. Afinal, foi possível reconhecer
que a interseccionalidade traz grandes contribuições para maior compreensão da
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O conceito de Raça, por sua vez, não deve ser entendido como foi utilizado do
século XVI ao XIX, para reproduzir ideias da colonialidade moderna que compreendiam a
existência de uma hierarquia racial. Nesta pesquisa, assim como ocorre quando o
conceito raça é utilizado nos Movimentos Negros e por alguns intelectuais das Ciências
Sociais na atualidade, está se partindo de uma nova interpretação, tal qual apresentado
por Nilma Lino Gomes (2005, p. 45), que se baseia na dimensão social e política do
conceito de raça. A utilização do termo raça é uma escolha política adequada para o
Brasil posto que a forma como se dá a discriminação racial no país, desenvolve-se não
apenas a partir de elementos da identidade étnica de determinado grupo, mas, também
em razão dos aspectos físicos possíveis de serem observados na estética corporal dos
membros desse grupo (GOMES, 2005, p. 45). Ou seja, “raça ainda é o termo que
consegue dar a dimensão mais próxima da verdadeira discriminação contra os negros,
ou melhor, do que é o racismo que afeta as pessoas negras da nossa sociedade.”
(GOMES, 2005, p. 45).
Interseccionalidade surge, portanto, da necessidade de construir uma
ferramenta analítica adequada para as pesquisas que envolviam gênero e raça, bem
como outras categorias que interagem e criam o que a Kimberlé Crenshaw denomina
como rede de desempoderamento. Para melhor compreender a interseccionalidade faz-
se imperativo entender o contexto no qual ela emergiu.
Para abordar a história da interseccionalidade é preciso iniciar antes mesmo
do conceito ser nomeado por Kimberlé Crenshaw. Esse é o entendimento de Patricia Hill
Collins e Sirma Bilge (2016), assim como de Anna Carastathis (2016), para quem a
interseccionalidade deve ser entendida como representando uma síntese entre os
movimentos sociais e o conhecimento acadêmico crítico. É comum, no entanto, que os
estudos históricos sobre a interseccionalidade ignorem que tal conceito se originou nos
Estados Unidos, a partir da luta dos Movimentos Sociais, em especial, daqueles que
tinham como protagonistas mulheres negras 1.
Minimizar tal origem tende a diminuir o potencial transformador e crítico da
própria interseccionalidade2. Mesmo no campo acadêmico, é preciso destacar que
1 Sobre isso ver: “Uma Análise Crítica sobre os Antecedentes da Interseccionalidade” de Gabriela M. Kyrillos
(2020).
2 No livro intitulado ‘Intersectionality’ (2016) de autoria das sociólogas Patricia Hill Collins e Sirma Bilge
(ainda sem tradução para o português), as autoras demonstram como a ausência sobre os movimentos
sociais nos históricos sobre interseccionalidade não é apenas uma falha na contextualização do conceito
mas, sobretudo, um equívoco ao assumir que a interseccionalidade se resume a mais um campo acadêmico
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(COLLINS; BILGE, 2016, p. 64), ignorando que a interseccionalidade parte da sinergia entre a pesquisa crítica
(critical inquiry) e a práxis crítica (critical praxis). Enquanto o primeiro diz respeito ao desenvolvimento da
interseccionalidade na academia, como ferramenta analítica para a construção de pesquisas e análises
críticas; o segundo refere-se à forma como as pessoas, seja individualmente, seja enquanto coletivos,
produzem e usam a estrutura da interseccionalidade no seu dia-a-dia (COLLINS; BILGE, 2016, p. 32). Um
exemplo válido de como as discussões que articulam raça e gênero são muito anteriores ao surgimento do
conceito da interseccionalidade e se desenvolveu fora do campo acadêmico é o discurso de Sojourner Truth
‘Não sou uma mulher?’.
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nos ‘campos de forças’.” (SCOTT, 1995, p.78). Na busca por definir o conceito, Scott
elucida que: “[...] o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas
diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as
relações de poder.” (SCOTT, 1995, p. 81)
Portanto, o que se produz como interpretação sobre o sexo ou o gênero, em
outras palavras, as distinções tidas como verdadeiras entre homens e mulheres são
frutos de relações de saber e poder. Nesse sentido, Michel Foucault é um dos mais
relevantes autores que articulou saber, poder e corpo, em especial nos três volumes da
série História da Sexualidade (2014a; 2014b; 2014c). O filósofo e teórico social francês,
tornou-se conhecido por sua compreensão fragmentada e difusa de poder. Para, além
disso, tornou o corpo o local privilegiado das relações de poder e saber – razão pela qual
é uma referência importante para Joan Scott e outras (os) estudiosas (os) de gênero.
O entendimento de Michel Foucault (2014a) a respeito do corpo e da
sexualidade compreende que o poder não está associado exclusivamente ou
prioritariamente com as fontes clássicas de poder como o Estado-nação ou o Direito.
Poder é compreendido como algo difuso, múltiplo e complexo. Por essa razão, Foucault
irá propor uma nova forma de análise das relações de poder, de modo histórico e sem
apego às clássicas fontes do poder que por muito tempo foi o ponto de partida para
esses estudos. Perceber como o autor trata essa temática é reconhecer que todo poder
que se exerce por diferentes e difusos instrumentos e mecanismos tem um corpo, razão
pela qual, a história dos corpos que ele produz, busca revelar como o corpo se torna
percebido e valorizado na história (CIRINO, 2007, p. 79).
Na medida em que o poder se exerce sobre o corpo, distintos aspectos que
formam essa corporalidade tornam-se relevantes. O gênero e a raça são alguns desses
elementos que fazem com que as experiências não sejam idênticas em uma sociedade
na qual o poder é difuso. Nesse sentido, as obras de Michel Foucault são de grande
relevância para os estudos de gênero por destacar o caráter difuso do poder que se
exerce sobre os corpos e sobre as sexualidades.
As teorizações de Foucault, em particular da sua coleção sobre história da
sexualidade, ocorrem em momento no qual há uma diversidade de trabalhos, em
distintas áreas do conhecimento, que buscam a dissolução da concepção de sujeito
universal, priorizam a questão da linguagem e do discurso como práticas que interagem
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3Sobre isso, ver Angela Davis (2016) e sua abordagem sobre as disputas em torno do direito das mulheres
ao voto nos Estados Unidos.
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pela categoria mulheres, ou ao menos, compreendida como categoria que abarca ampla
gama de diversidade. Como bem sintetiza a indiana, feminista e militante do movimento
antirracista Avtar Brah:
Nosso gênero é constituído e representado de maneira diferente segundo
nossa localização dentro de relações globais de poder. Nossa inserção
nessas relações globais de poder se realiza através de uma miríade de
processos econômicos, políticos e ideológicos. Dentro dessas estruturas de
relações sociais não existimos simplesmente como mulheres, mas como
categorias diferenciadas, tais como “mulheres da classe trabalhadora”,
“mulheres camponesas” ou “mulheres imigrantes”. Cada descrição está
referida a uma condição social específica. Vidas reais são forjadas a partir de
articulações complexas dessas dimensões. É agora axiomático na teoria e
prática feministas que “mulher” não é uma categoria unitária. (BRAH, 2006,
p.341)
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possuem os mesmos backgrounds – de classe e raça, são limitadas na busca por ajudar
mulheres que enfrentam obstáculos diferentes.
Para demonstrar isso, ela utiliza o exemplo da lei de imigração que definiu que
para obter a cidadania estadunidense é necessário, não apenas, casar-se com um (a)
cidadão ou cidadã, mas, também, que as pessoas permaneçam casadas por pelo menos
dois anos. Diante de tal regra, muitas mulheres migrantes suportavam diversas formas
de violência doméstica e agressões física, com medo de serem deportadas. Para coibir
esse tipo de violência, a lei foi alterada e passou a permitir exceção à regra dos dois
anos, caso se possa apresentar alguns documentos tais como boletim de ocorrência ou
laudos médicos que atestem a violência sofrida pela mulher. Contudo, o que o legislador
não percebeu é que para muitas dessas mulheres há dificuldades culturais e linguísticas
que tornam extremamente difícil conseguir a documentação solicitada:
Tina Shum, uma conselheira familiar em uma agência de serviço social,
aponta que "esta lei soa tão fácil de aplicar, mas existem complicações
culturais na comunidade asiática que fazem com que até mesmo esses
requerimentos sejam difíceis... Simplesmente encontrar a coragem e a
oportunidade para nos ligar é uma realização para muitas." A esposa
imigrante típica, ela sugere, talvez viva "em uma família estendida onde
várias gerações vivem juntas, talvez sem nenhuma privacidade para usar o
telefone, nenhuma oportunidade de sair da casa e nenhum conhecimento
sobre telefones públicos." Como consequência, muitas mulheres imigrantes
são completamente dependentes de seus maridos para adquirir
informações concernentes ao seu status legal. Muitas mulheres que agora já
são residentes permanentes continuam a sofrer abusos de seus maridos sob
ameaça de deportação. Mesmo que as ameaças sejam infundadas, mulheres
que não tem acesso independente a informações continuarão a se sentir
intimidas por tais ameaças. [...] Barreiras linguísticas apresentam outro
problema estrutural que frequentemente limita as oportunidades que
mulheres não falantes de inglês têm para tirar vantagem dos serviços de
apoio existentes. Tais barreiras não apenas limitam o acesso a informações a
respeito de abrigos, mas também limitam o acesso a segurança que os
abrigos oferecem. Alguns abrigos rejeitam mulheres não falantes de inglês
por falta de pessoal bilíngue e de recursos. (CRENSHAW, 1991, p.1248-1249)
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4 O termo "pessoas de cor" possui uma conotação antirracista em inglês, por contraposição ao termo
"colored". Isso faz parte de uma tendência mais geral dos movimentos sociais em países anglófonos de
empregar algo que costuma ser chamado de "people-first language" (da mesma forma, prefere-se "pessoa
com deficiência" a "deficiente" por exemplo). É importante destacar este ponto, pois a expressão "pessoas
de cor" pode parecer racista a leitores e leitoras lusófonos.
5 "Nossa subordinação" refere-se à subordinação das mulheres negras. Esta é uma das muitas ocasiões em
que Crenshaw desafia a norma formal que aconselha o não-uso da primeira pessoa. Essa não é uma mera
idiossincrasia do texto, mas uma escolha deliberada, haja vista a importância da questão do lugar de fala
quando se discutem questões relativas à interseccionalidade das opressões.
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Um dos textos de Kimberlé Crenshaw mais popularizados no Brasil foi aquele destinado
à Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias
Correlatas, que ocorreu em Durban, África do Sul, em 2001. Sua popularização no país,
em grande medida, ocorreu por ter sido traduzido para o português em 2002 pelo
importante periódico da Revista Estudos Feministas. Além disso, esse ainda é um dos
poucos materiais de Crenshaw com tradução para o português. Esse texto de Crenshaw
é também um marco no que diz respeito à inclusão da interseccionalidade no âmbito
internacional dos Direitos Humanos.
Como muito bem identificaram Collins e Bilge (2016) a partir do convite do
Comitê de preparação para a Conferência a Crenshaw e a apresentação de seu position
paper, as referências ao conceito da interseccionalidade (mesmo que com outras
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nomenclaturas) tornou-se cada vez mais comum no âmbito internacional dos Direitos
Humanos. Em sentido semelhante, Maylei Blackwell e Nadine Naber (2002) destacam
como a interseccionalidade influenciou a referida Conferência e como a compreensão
da existência de “intolerâncias correlatas” passou a integrar as análises sobre os
processos discriminatórios que experienciam as diversas mulheres no mundo.
Nesse sentido, a compreensão de Carla Akotirene em diálogo com a definição
apresentada por Crenshaw reforça que “a interseccionalidade é, antes de tudo, lente
analítica sobre interação estrutural em seus efeitos políticos e legais.” (AKOTIRENE,
2018, p. 58). Portanto, a aproximação do conceito com o campo dos Direitos Humanos
tem se expandido em distintos espaços.
Aqui optou-se por analisar, em particular, as questões de gênero e para isso,
vale iniciar com a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra a Mulher – CEDAW (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1979). Ela tem como
principal objetivo sistematizar os direitos humanos destinados às mulheres – rompendo
com a visão pretensamente universalista dos direitos do homem, que, ao acenar com a
falsa promessa de que o termo era neutro com relação a sexo e gênero, expurgava a
possibilidade de se discutir sobre os direitos das mulheres. A Convenção foi promulgada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979 e ratificada pelo Brasil em 1984.
A partir disso, há o compromisso do Brasil de realizar relatórios acerca da
implementação das diretrizes da Convenção no país, assim como a respeito dos avanços
e retrocessos no acesso das mulheres aos Direitos Humanos. O Comitê da CEDAW
analisa, então, os relatórios e produz sugestões diretamente ao país, bem como,
recomendações gerais para todos os Estados signatários. A perspectiva de gênero
incorporada ao discurso dos Direitos Humanos, que se fortaleceu com o surgimento da
CEDAW, está relacionada com o período recente da história dos direitos humanos.
Ao longo da última década, em consequência do ativismo das mulheres,
tanto em várias conferências mundiais como no campo das organizações de
direitos humanos, desenvolveu-se um consenso de que os direitos humanos
das mulheres não deveriam ser limitados apenas às situações nas quais seus
problemas, suas dificuldades e vulnerabilidades se assemelhassem aos
sofridos pelos homens. A ampliação dos direitos humanos das mulheres
nunca esteve tão evidente como nas determinações referentes à
incorporação da perspectiva de gênero (gender mainstreaming) das
conferências mundiais de Viena e de Beijing. [...] Assim, enquanto no
passado a diferença entre mulheres e homens serviu como justificativa para
marginalizar os direitos das mulheres e, de forma mais geral, para justificar a
desigualdade de gênero, atualmente a diferença das mulheres indica a
responsabilidade que qualquer instituição de direitos humanos tem de
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Por essa razão, vale retomar a crítica apresentada por Collins e Bilge (2016, p.
86), segundo a qual as interpretações existentes na academia sobre interseccionalidade,
após sua institucionalização, minou parte do potencial crítico do conceito. Anna
Carastathis também identifica esse mesmo problema na forma como a
interseccionalidade foi incorporada pela academia e no campo político:
Inicialmente, a interseccionalidade objetivava explicitamente contestar
essas dinâmicas representativas, discursivas e intersubjetivas dentro dos
movimentos antirracistas e feministas que buscavam transformar as
relações sociais. No entanto, muito do que a análise de Crenshaw revelou
sobre identidades, opressões e luta política foi esquecida – alguns dizem
sistematicamente (Bilge 2013) – à medida que a interseção tornou-se
integrada como um projeto intelectual institucionalizado. Embora a
interseccionalidade tenha se tornado um axioma da teoria e da pesquisa
feministas e tenha sido "institucionalizada" (Nash 2008) em discursos
acadêmicos e, cada vez mais, em discursos sobre direitos humanos e na
estrutura política, abundantes ou vagas referências à "interseccionalidade"
se proliferaram e podem obscurecer uma crítica sólida dos hábitos
cognitivos profundamente enraizados que informam o pensamento
feminista e antirracista sobre opressão e privilégio. Em outras palavras,
paradoxalmente, o sucesso da interseccionalidade pode marcar seu
fracasso, a ampla viagem do conceito se dá por sua apreensão superficial.
(CARASTATHIS, 2016, p. 42).
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5. Conclusão
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tm>. Acesso em: 30 out. 2018.
MARCONI, Marina de Andrade. LAKATOS, Eva Maria. Metodologia Científica. São Paulo:
Editora Atlas, 2003.
Sobre as autoras
Joana Stelzer
Doutora e Mestre em Direito, na área de Relações Internacionais (UFSC). Pós Doutora
em Direito (USP). Professora Associada I na UFSC. Professora credenciada no
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina
(PPGD/CCJ/UFSC) para Mestrado e Doutorado. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa
Centro de Estudos Jurídico-Econômicos e de Gestão do Desenvolvimento – CEJEGD. E-
mail: joana.stelzer@ufsc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9503-4080.
Gabriela M. Kyrillos
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós Doutora
em Direito e Justiça Social na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora
Adjunta do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande
(FURG). Líder do Grupo de Pesquisa Interseccionalidades e Decolonialidade nas
Relações Internacionais – INDERI. E-mail: gabrielakyrillos@furg.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-7237-4210.
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Resumo
O conceito de ressignificação desenvolvido por Butler designa a inversão política de um
termo depreciativo por aqueles que dele fazem uso e que passam a lhe atribuir um
sentido positivo, afirmativo. Essa concepção, porém, permanece refém da teoria dos
atos de fala de matriz fonocêntrica. O artigo faz uma crítica da categoria da
ressignificação e sugere ampliá-la sociologicamente incorporando a mobilização coletiva
(Bourdieu) e a produção documental (Latour) como dimensões indispensáveis para
conferir materialidade aos processos históricos de ressignificação.
Palavras-chave: Teoria do discurso; Atos de fala; Ressignificação; Materialidade.
Abstract
Butler’s theory of ressignification addresses the political reversion of a depreciative
word by those who deploy it, using the originally prejudicial word in an affirmative way.
However, this conception remains attached to traditional speech act theories in its
phonocentric aspect. The paper submits Butler’s concept of ressignification to critic and
suggests a sociological expansion of ressignification by combining it with collective
political action (Bourdieu) and inscription processes (Latour). These two approaches
provide materiality to historical processes of ressignification.
Keywords: Discourse theory; Speech acts; Resignification; Materiality.
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Introdução
Judith Butler é uma das principais filósofas da atualidade e muitos de seus insights
reverberam para além das fronteiras dos estudos de gênero. É o caso do conceito de
ressignificação: desenvolvido no quadro de uma teoria performativa da política que
parte da discussão jurídica dos discursos de ódio nos Estados Unidos (Butler 1997a),
trata-se de categoria promissora para o aprofundamento da teoria sociológica, cujo
potencial analítico ainda está longe de se esgotar. A partir da teoria dos atos de fala de
Austin e da crítica de Derrida a ela, tem-se um processo de ressignificação quando um
termo tradicionalmente usado em sentido pejorativo ou depreciativo (e.g., “gay”,
“negro”, “lésbica” etc.) é politicamente invertido por aqueles que dele fazem uso e que
passam a lhe atribuir um sentido positivo, tornando-o afirmativo. O discurso se torna,
definitivamente, um campo de batalha em que signos e significados – e com eles
também a história – são disputados politicamente. Esse é um ganho incontestável da
teoria do discurso de Butler.
O problema, porém, é que essa concepção de ressignificação parece ainda
refém da teoria dos atos de fala de matriz fonocêntrica, o que limita seu alcance teórico.
Com efeito, quando é possível dizer, do ponto de vista da sociedade, que um termo foi
efetivamente ressignificado? A rigor, na esteira de Derrida, a linguagem (mas também a
consciência, a percepção etc.) só é possível como iterabilidade – uma repetição sem
origem no bojo da qual algo de novo é produzido, ainda que esse algo novo seja um
efeito de continuidade – de forma que todo uso linguístico é, em alguma medida, uma
espécie de ressignificação de usos linguísticos pretéritos (Derrida 1972). Isso nos coloca
outra questão: ressignificação ocorre a todo e qualquer momento? Ou é uma
condensação histórica de sentido? Como aferir, sociologicamente, a mudança de
sentido de um termo para além da intenção dos participantes no discurso? Do ponto de
vista da construção dessa categoria teórica, tem de ser possível apreendê-la
sociologicamente, isto é, observá-la e descrevê-la como um fenômeno social (i.e., da
sociedade, e não de seus indivíduos). Além disso, ressignificação pode ocorrer de forma
conservadora e reacionária – ou não? Como categoria linguística, nada há que, de saída,
lhe imponha um sentido político pré-determinado e necessariamente progressista ou
emancipatório, por assim dizer.
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momento do país, nada melhor do que levar Butler realmente a sério do ponto de vista
de sua construção teórica1.
1Em recente passagem pelo Brasil, Butler foi alvo de protestos (veja-se a matéria da Folha de S. Paulo de
7.11.2017: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/11/1933437-manifestantes-pro-e-contra-judith-
butler-protestam-no-sesc-pompeia.shtml).
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Butler faz uma tradução exclusivamente empírica da iterabilidade.2 Se, do ponto de vista
da filosofia acadêmica esse movimento poderia ser considerado tecnicamente
questionável, trata-se, do ponto de vista sociológico, de insight extremamente
produtivo, pois Butler combina a contingência do processo de subjetivação com a
codificação social pré-existente, que o condiciona sem conseguir determiná-lo
totalmente. Por essa razão, a teoria de gênero de Butler é performativa: o gênero se
constrói pela iteração de atos por meio dos quais estruturas sociais são incorporadas,
rejeitadas, transformadas, apreendidas, distorcidas, reincorporadas e assim
indefinidamente, sem origem e sem um final teleológico:
O sujeito não é determinado pelas regras através das quais ele é gerado
porque significação não é um ato fundante, mas um processo regulado de
repetição que ao mesmo tempo se invisibiliza e impõe suas regras
justamente por meio da produção de efeitos essencialistas (Butler 1990, p.
145, trad. Livre, grifos originais); Performatividade não é, assim, um ‘ato’
singular, pois requer-se sempre a iteração de uma norma ou de um
conjunto de normas. E, à medida que esse processo adquire o status de fato
[“an act-like status”] no presente, ele obscurece ou dissimula as convenções
que regulam sua repetição (Butler 1993, p. 12, trad. livre).
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3Afastando-se assim de uma leitura inicial meramente retórica de Austin – Butler, 1993, p. 224: “A
centralidade da cerimônia de casamento nos exemplos de J. L. Austin para atos performativos sugere que a
heterossexualização do vínculo social é a forma paradigmática pela qual os atos de fala executam aquilo que
enunciam”. Como se vê, trata-se de apreensão muito pouco técnica da teoria dos atos de fala de Austin.
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4 Butler tem um ponto: Bourdieu se aproxima excessivamente da concepção do ato de fala como “acte
d’institution” de Benveniste e, com isso, neutraliza o elemento mais interessante da teoria da
performatividade de Austin – mas há um aspecto crítico na teoria do discurso de Bourdieu que
abordaremos na seção III.
5 Ao que seria possível redarguir que Derrida não desenvolveu, ele mesmo, uma filosofia acadêmica estrita.
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Até aqui, vimos como a categoria da ressignificação foi construída do ponto de vista
teórico. Agora é preciso passar aos aspectos críticos dessa construção. Antes de
qualquer outra consideração, é preciso reconhecer que Butler não desenvolve
conceitualmente a formulação de uma “iterabilidade socialmente sedimentada”, a partir
de sua leitura de Derrida. Ao contrario, ela recorre a um exemplo: ela se reporta a Black
Atlantic, de Paul Gilroy, para explicar que a narrativa iluminista tem claramente um
avesso, um lado perverso que permitiu acomodar a escravidão negra do outro lado do
Atlântico; mas reforça que justamente essa narrativa subterrânea não está encerrada
em si mesmo – pode ser resgatada e apropriada em sua força crítica, como forma de
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6 Todos esses fatos são hoje amplamente conhecidos. Vejam-se os respectivos links com notícias extraídas
de jornais de circulação nacional:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/30/politica/1527703161_738090.html;
https://g1.globo.com/politica/blog/cristiana-lobo/post/general-vilas-boas-militares-precisam-ter-garantia-
para-agir-sem-o-risco-de-surgir-uma-nova-comissao-da-verdade.ghtml; https://www1.folha.uol.com.br/fsp/
opiniao/fz1702200901.htm; https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/nomeacao-de-general-por-
toffoli-e-alvo-de-questionamentos.shtml e https://www.jota.info/stf/do-supremo/toffoli-golpe-64-
movimento-01102018?utm_source=JOTA+Full+List&utm_campaign=5afbf6893a-
EMAIL_CAMPAIGN_2018_10_02_09_41 &utm_medium=email&utm_term=0_5e71fd639b-5afbf6893a-
380467909, respectivamente (consultados em 10 de outubro de 2018).
7 Este artigo foi concluído entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial de 2018.
8 Especialmente nos trópicos – nossa crise institucional é tão grave que é possível identificar inúmeros
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9 A frase é truncada mesmo no original: “It makes sense to remember that the ‘force’ of the speech act [...]
has everything to do with the status of speech as a bodily act. That speech is not the same as writing seems
clear, not because the body is present in speech in a way that it is not in writing, but because the oblique
relation of the body to speech is itself performed by the utterance, deflected and carried by the
performance itself. To argue that the body is equally absent in speech and writing is true only to the extent
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Ora, com isso, uma das mais reputadas seguidoras de Derrida refaz o gesto
metafísico pelo qual a escrita é extirpada de uma relação privilegiada estabelecida entre
o corpo e a fala. A escrita é exterior, mera técnica rude; a fala e o corpo estão co-
presentes para si mesmos de maneira diferenciada. Ainda que Butler pretenda destacar
o excesso de sentido proporcionado pelo corpo e nunca inteiramente transmitido pela
fala, porque irredutível à semiose do discurso; e ainda que ela reconheça o corpo como
exterioridade tanto para a fala quanto para a escrita, ela confere ao corpo, na fala, um
status diferenciado. O resultado disso é reiterar uma relação privilegiada entre o corpo e
a fala. E o problema não é a escrita entendida como ato solipsista e monológico, mas a
escrita como prática institucional necessariamente coletiva: decisões de tribunais,
aprovação de leis e decretos, preparação de documentos empresariais (atas, balanços
contábeis, estatutos) etc.; enfim, todas as organizações da sociedade – organizações não
governamentais e partidos políticos, bancos e empresas, hospitais, escolas,
universidades, instituições governamentais, parlamentares e judiciais – se estruturam
pela escrita e o trabalho por elas realizado é institucionalmente regrado e coletivamente
produzido. Inscrições, nesse sentido, são trabalho congelado (Bachur 2017).
Retoma-se assim a crítica já endereçada a Butler: como ressignificar uma
decisão judicial sem recorrer a alguma forma de linguagem documental? Apesar de
Butler apresentar a sugestiva formulação de uma “iterabilidade socialmente
sedimentada”, ela não investiga as instâncias sociais e institucionais encarregadas de
estabilizar o discurso (e, com isso, bloquear ou viabilizar processos de ressignificação). A
não ser que ressignificação seja compreendida como ato de fala em sentido estrito (à la
Searle), portanto, como uma operação da consciência, e não da sociedade. Ora, é isso,
com efeito, que Butler expressamente apresenta ao exemplificar o que seria a
ressignificação:
Eu me lembro de uma vez, andando por uma rua de Berkeley, quando uma
criança apareceu numa janela e perguntou ‘Você é lésbica?‘. Simples assim.
Eu respondi ‘Sim, eu sou lésbica‘. Eu devolve a injúria em uma versão
afirmativa. Foi um momento totalmente impulsivo. Uma interpelação do
nada. Na medida em que eu fui capaz, muito rápido, de voltar e dizer ‘Sim,
eu sou lésbica‘, o poder de meu inquiridor se perdeu (Butler 2000, p.
759/760 – grifos originais, trad. livre).
that neither speech nor writing makes the body immediately present. But the way in which the body
obliquely appears in speech is, of necessity, different from the way it appears in writing”.
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Bourdieu, em O que falar quer dizer (Bourdieu, 1982), critica tanto a linguística
estrutural de Saussure quanto a teoria dos atos de fala de Austin. Na leitura de
Bourdieu, a teoria da linguagem ignora todo o contexto social e institucional em que os
usos linguísticos ocorrem, abstraindo as relações de poder que conformam o habitus
linguístico. Recuperando-as, temos uma sociologia da linguagem em que o uso da fala é
respaldado por posições de poder e dominação. Os falantes são porta-vozes de suas
posições de poder subjacentes.
Sem prejuízo da crítica que Butler faz a Bourdieu, já que a força da linguagem –
a ilocução; isto é, o caráter performativo da linguagem conforme o qual um dizer é
simultaneamente um fazer – perde sua autonomia para o contexto não-linguístico das
relações fáticas de poder, há um mérito em reconhecer que as diversas teorias da
linguagem não conseguem apreender a materialidade da produção de sentido. A crítica
de Butler a Bourdieu é correta, pois Bourdieu reproduz de fato um mecanicismo social
ao derivar toda produção de sentido de posições de poder pré-linguísticas. Mas
Bourdieu tem um ponto ao ressaltar que os aspectos extra-linguísticos participam da
formação do sentido. A linguagem ordinária, ponto de partida da filosofia da linguagem,
nunca funcionou com atos de fala depurados do contexto, como pretende Searle.
Contudo, Bourdieu não é tão determinista quanto pretende Butler. A parte final
de O que falar quer dizer é dedicada ao que Bourdieu designa por “discurso herege”: a
contestação discursiva de visões de mundo, classificações e distinções de grupo que
estruturam o campo político (Bourdieu 1982, ps. 149 e ss.). Isso porque o campo político
tem uma dimensão cognitiva anterior – a estruturação de grupos, classes sociais e
regras de distinção pressupõe uma leitura do mundo, que tem de ocorrer
necessariamente pela estruturação do discurso. Segundo Bourdieu, essa dimensão
cognitiva precede a luta política. Sempre há, portanto, em Bourdieu, espaço para a
utopia:
A subversão herética explora a possibilidade de mudar o mundo social
mudando a representação desse mundo, a qual contribui para sua própria
realidade, ou, mais precisamente, opondo uma pré-visão paradoxal, uma
utopia, um projeto, um programa, à visão ordinária que apreende o mundo
social como mundo natural: enunciado performativo, a pré-visão política é,
por si mesma, uma pré-dição que visa a fazer advir aquilo que ela enuncia
(Bourdieu 1982, p. 150 – grifos originais).
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Nota-se assim que Bourdieu não fecha o discurso sobre si mesmo com base nas
posições de poder. Remanesce um componente crítico que pode ser mobilizado para
introduzir a contingência que as narrativas hegemônicas pretendem suprimir ao
enunciar o mundo social como mundo dado, natural. Esse ponto não é, de maneira
alguma, discrepante da forma pela qual Butler apresenta o discurso como arena do
conflito. O discurso herege explora a possibilidade de mudar o mundo social mudando a
representação semântica desse mundo, opondo-o a utopias e programas ainda não
realizados e que contestam a afirmação do mundo tal como ele é. Essa é a dimensão
performativa do discurso herético: ele pré-forma o mundo pretendido e, com isso,
deslegitima o mundo fático.
É claro que o status quo reage com ortodoxia. É por isso que Bourdieu fala em
um trabalho de enunciação (“travail d’énonciation”): a necessidade de que o discurso
herético se estruture socialmente como prática voltada a desmistificar o caráter natural,
dado, imutável que as narrativas hegemônicas atribuem ao mundo que elas ajudam a
criar. Ao fim e ao cabo, tem-se aqui uma releitura discursiva altamente sofisticada da
teoria da ideologia – com a vantagem de apresentar os aspectos (improváveis, mas
possíveis) pelos quais a ideologia pode ser combatida nos mesmos termos em que ela é
produzida.
Por isso, processos discursivos não estão mecanicamente fechados sobre si
mesmos, são sempre contingentes. E, para que o discurso herege tenha alguma chance
de sucesso, ele depende diretamente de mobilização coletiva:
A luta em que o conhecimento do mundo social está em jogo não teria
jamais objeto se cada agente encontrasse em si mesmo o princípio de um
conhecimento infalível da verdade de sua condição e de sua posição no
espaço social e se esses mesmos agentes não pudessem se reconhecer no
discurso e em classificações diferentes (Bourdieu, 1982, p. 156).
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resumiria ao exemplo que Butler oferece para ressignificação, como algo que o falante
opera unilateralmente. É, ao contrário, o resultado imprevisível de uma luta. Essa
dimensão coletiva da linguagem é incontornável.
Em um de seus livros mais recentes, Butler procura preencher essa lacuna
oferecendo uma teoria performativa da assembleia: trata-se de uma aplicação de sua
teoria performativa da política aos fenômenos de agremiação política:
agir em concordância pode ser uma forma corporizada de colocar em
questão as dimensões incipientes e poderosas das noções reinantes da
política. O caráter corpóreo desse questionamento opera ao menos de dois
modos: por um lado, contestações são representadas por assembleias,
greves, vigílias e ocupações de espaços púbicos; por outro, esses corpos são
o objeto de muitas das manifestações que tomam a condição precária como
sua condição estimulante. Afinal de contas, existe uma forca indexical do
corpo que chega com outros corposo a uma zona visível para a cobertura da
mídia: é esse corpo e esses corpos, que exigem emprego, moradia,
assistência médica e comida, bem como um sentido de futuro que não seja
o futuro das dívidas impagáveis (Butler 2018, ps. 15/16 – grifos originais).
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10Curiosamente, o melhor diagnóstico dessa dialética entre revolta e resignação ainda parece ser o
oferecido por Luhmann – cf. Luhmann 1997 e Luhmann & Hellmann 1996. Os movimentos de junho de 2013
no Brasil em torno do passe livre estudantil e a greve dos caminhoneiros de 2018 ilustram precisamente
essa dinâmica: o país para por um momento, obstruído pelo protesto; o sistema político reage inicialmente
rejeitando a pauta, mas é forçado a reconhecê-la, em geral concedendo a reivindicação – e a vida retoma
então seu curso.
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O recurso a Bourdieu foi importante para mostrar que ressignificação não pode ocorrer
conforme a vontade subjetiva de um único indivíduo, mas tem de estar inserida em uma
mobilização, em uma ação política coletiva. Se símbolos e significantes não tiverem seu
conteúdo transformado para uma determinada coletividade, parece difícil sustentar a
ocorrência de um processo social e histórico de ressignificação. A sociedade precisa, em
alguma medida, incorporar a mudança semântico-linguística em seus processos de
reprodução simbólica, isto é, nas operações de autodescrição que faz de si mesma nas
esferas científica, política, jurídica, nos meios de comunicação de massa, nas
universidades, nas interações cotidianas das pessoas etc. Isso não elimina o caráter
conflituoso da ressignificação. Mas alguma base fática consistente para seu uso precisa
estar estabelecida11. Agora é importante juntar a segunda materialidade indispensável a
uma sociologia da ressignificação, qual seja, a prática documental. Para tanto,
recorreremos à teoria das inscrições de Bruno Latour.
Latour (dentre outros, como Michel Callon e John Law) se apresenta como
expoente da teoria do ator-rede, iniciativa que ampliou significativamente o horizonte
da teoria social advogando uma simetria radical entre a natureza, a sociedade e a
técnica (Latour 1991; Latour 2005). Partindo dos chamados Science and Technology
Studies, Latour argumenta que distinções simples tais como “sujeito/objeto” ou
“natureza/cultura” são inadequadas para compreender a situação em que nos
encontramos hoje. Somente quando observarmos humanos e não-humanos de maneira
rigorosamente simétrica é que entenderemos o entrelaçamento entre fenômenos,
naturais, sociais, discursivos e técnicos, marca distintiva da modernidade – não obstante
o discurso oficial do Iluminismo insista em uma retórica de purificação (Latour 1991).
Apoiado na semiótica de Julien Greimas, na etnografia de Harold Garfinkel, na
filosofia de Gilles Deleuze e na sociologia de Gabriel Tarde, Latour desenvolveu um
11Pensemos, por exemplo, no escândalo político do primeiro mandato do governo Lula, cujo julgamento
ocupou a cúpula do judiciário brasileiro por anos: o conflito semântico se estabeleceu inicialmente entre
atores que empregavam o termo “mensalão” e atores que se referiam à “ação penal 470” (veja-se o link:
https://direitosp.fgv.br/ap470, consultado em 19/09/2018). Hoje, a sociedade parece ter pacificado um
determinado uso semântico para o termo “mensalão”, tendo inclusive derivado outros usos tais como
“mensalão mineiro” (por exemplo: https://tudo-sobre.estadao.com.br/mensalao-mineiro, consulta em
19/09/2018) ou “mensalão tucano” (em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mensal%C3%A3o_tucano, consulta
em 19/09/2018). Mas o uso da palavra “mensalão” para designar o escândalo de corrupção no primeiro
mandato do governo Lula parece ter deixado de ser problematizado.
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sofisticado vocabulário conceitual que tem sido objeto de intenso debate. Não é o caso
de apresentar ou problematizar a construção teórica de Latour neste ensaio (para tanto
veja-se Bachur 2016); interessa-nos um aspecto específico de sua teoria social: a rica
descrição que Latour faz dos processos de inscrição. Partindo de estudos etnográficos
(Latour & Woolgar 1979, Latour 2002), Latour observa o papel crucial das inscrições em
moldar o mundo em que nos movemos. É por meio delas que a ciência constrói sua
verdade, é por meio delas que o direito estabelece responsabilidades, obrigações e
culpabilidades em seus vereditos. Essas operações práticas da sociedade só encontram
seu objetivo final quando são materializadas documentalmente.
Tal como Butler, Latour contesta aspectos cruciais da teoria dos atos de fala de
Austin, oferecendo uma espécie de “teoria material do discurso”, segundo a qual
cadeias discursivas são sustentadas por um trabalho coletivo que mantém determinados
enunciados (“statements”) circulando como verdadeiros. Não é possível entrar aqui em
todos os pormenores da teoria da inscrição de Latour, basta dizer que ela nos permite
romper com alguns dos postulados ortodoxos da teoria da linguagem ao apoiar a
performatividade da linguagem não na fala, mas nas escrita – mais ainda, na escrita
como processo de inscrição coletivo e estabilizado institucionalmente.
Inscrições são “móveis imutáveis”: traduzem em uma superfície bidimensional
operações concretas que, nessa tradução, ganham relativa autonomia para serem
inseridas em outras operações e em outras inscrições, mantendo, contudo, seu caráter
imutável (Latour 1986). Uma inscrição se permite definir da seguinte maneira:
Um termo geral que se refere a todos os tipos de transformações pelas
quais uma entidade se torna materializada em um signo, um arquivo, um
documento, um pedaço de papel, um vestígio [“a trace”]. Usualmente, mas
não sempre, inscrições são bidimensionais, combináveis e passíveis de
superposição. Elas são sempre móveis, isto é, elas permitem traduções e
articulações ao mesmo tempo em que mantêm alguns tipos de relações
intactas. Daí serem chamadas também de ‘móveis imutáveis‘ (Latour 1999,
ps. 306/307, grifos originais, trad. livre).
Uma inscrição é imutável porque não é possível alterá-la sem corrompê-la, mas
é ao mesmo tempo móvel, isto é, combinável com outras inscrições e manuseável
praticamente, inclusive incorporando-a em uma nova inscrição. Nesse encadeamento,
seu sentido pode se alterar à luz de novas inscrições, mas ela permanece imutável. Isso
porque ela é o registro documental – ou uma tradução bidimensional – de práticas
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sociais. Latour, como Butler, identifica o universo discursivo como uma “situação
agonística”: versões de um evento “lutarão” entre si pelo estabelecimento “da
verdade”. Um tema qualquer que esteja em disputa cinde o universo discursivo e
permite que se formem coalizões argumentativas cujo resultado é o estabelecimento de
uma versão que será tomada daí em diante como “verdade”, i.e., como ponto de partida
para novas argumentações:
Quem irá vencer no encontro agonístico entre dois autores, e entre eles e
todos os outros necessários para construir um enunciado? Resposta: aquele
capaz de gerenciar o maior número de aliados fiéis e alinhados. [...] Meu
ponto é que escrever e construir imagens não podem por si mesmas
explicar as mudanças em nossas sociedades científicas, a não ser na medida
em que ajudem a tornar essa situação agonística mais favorável. [...] Nós
precisamos, em outras palavras, olhar as formas pelas quais alguém
convence alguém a aceitar um enunciado e passá-lo adiante, tornando-o
mais próximo de um fato, e reconhecer a propriedade e originalidade
primária do autor (Latour 1986, p. 5, trad. livre).
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aberto, está também sempre em disputa. E, mais ainda: que essa disputa se processa
pelas balizas institucionais da sociedade.
Luhmann e Koselleck, por exemplo, definem alterações na semântica social
como processos mais ou menos congruentes com as alterações estruturais da
sociedade. Haveria, nessas versões, uma convergência básica entre a estrutura social e
sua semântica (apesar dessa convergência não configurar um bloco monolítico perfeito
e, ao contrário, estar suscetível a descompassos e contradições). Mas, para eles, tais
fórmulas semânticas não são objeto de disputa. Elas antecipam ou retardam alterações
estruturais, mas não são vistas como um campo de batalha em que o sentido dos
processos históricos está inserido concretamente, em uma disputa por definição.
Compreendida como prática documental coletiva, a ressignificação ganha potencial
crítico para descrever formas de contestação e resistência, mas também de defesa e
afirmação da sociedade vigente.
Por um lado, abandonamos definitivamente a visão excessivamente subjetivista
de Butler. Afinal, não é possível estabilizar socialmente um processo de ressignificação
sem respaldo na mobilização coletiva e na documentação. Documentação designa aqui
não apenas a produção de textos oficiais (leis, decisões judiciais, decretos etc.), mas
também a produção de textos jornalísticos, científicos, políticos e de outra ordem, que
documentam alguma operação de autodescrição da sociedade. Reitere-se: é claro que
ressignificação não implica consenso, nos termos de Habermas. Mas é preciso que uma
determinada formulação semântica (“socialismo”, “liberalismo”, “democracia”,
“ditadura”, “petismo”, “anti-petismo”, “revolução de 64”, “golpe de 64” etc.) seja
empregada pela sociedade – em sentido positivo ou negativo – para descrever um
determinado evento histórico concreto.
A perspectiva construída neste ensaio, e que não equivale às visões de Butler,
Bourdieu ou Latour isoladamente consideradas, vê, nas narrativas cristalizadas
historicamente, um campo de disputa marcado por relações de poder e hegemonia.
Relações de dominação não podem abrir mão dessa dimensão simbólica – pois, como
visto, ela é também material: ancorada documentalmente nas instituições da sociedade.
Com uma sociologia da ressignificação, abandonamos a visão mecanicista de um
“aparato ideológico” inerte, instrumentalizável por uma classe dominante e tornamos
também essa esfera palco de luta. Com efeito, estratégias para quebrar narrativas
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V. Conclusões
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alguma forma de análise empírica do discurso. Não obstante, a indicação desses dois
aportes de materialidade – ação política coletiva e produção de inscrições – são
fundamentais para tornar a categoria da ressignificação produtiva em termos
sociológicos, contribuindo assim para o desenvolvimento de uma teoria do discurso
como prática material.
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ZIVI, Karen, “Rights and the Politics of Performativity”, in Judith Butler’s Precarious
Politics: Critical Encounters, in Terrell Carver & Samuel A. Chambers (orgs.). London &
New York: Routledge, 2008, S. 157–169.
Sobre o autor
Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021 p. 263-295.
João Paulo Bachur
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Resumo
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) estabeleceu o marco
para a alteração do tratamento das questões relacionadas às pessoas com deficiência com
repercussão em mais de cento e setenta países signatários do documento. O instrumento
internacional obriga os Estados a assegurarem a promoção e a proteção do pleno
exercício dos direitos e interesses fundamentais das pessoas com deficiência a partir do
reconhecimento da plena capacidade jurídica em igualdade de condições com as demais.
Desde então, foram noticiadas várias medidas legais adotadas por diversos países na
busca da realização do escopo da Convenção. Tendo em vista que o intercâmbio de
modelos e experiências pode contribuir para o aperfeiçoamento do modelo social de
abordagem da deficiência que caracteriza a CDPD, analisam-se as alterações inseridas nos
ordenamentos jurídicos brasileiro, português e peruano, com enfoque no
reconhecimento da plena capacidade estabelecido pelo documento internacional.
Palavras-chave: Direitos; Deficiência; Capacidade; Sistema; Brasil; Acompanhado;
Portugal; Peru.
Abstract
The Convention on the Rights of Persons with Disabilities (CRPD) has set the framework
for changing the treatment of disability issues with repercussions in over one hundred
and seventy signatory countries. The international instrument obliges States to ensure
the promotion and protection of the full exercise of the fundamental rights and interests
of persons with disabilities on the basis of the recognition of full legal capacity on equal
terms. Since then, several legal measures adopted by several countries have been
reported in the pursuit of the scope of the Convention. Given that the exchange of models
and experiences can contribute to the improvement of the social model of approach to
disability that characterizes the CRPD, we analyze the changes introduced in the Brazilian,
Portuguese and Peruvian legal systems, focusing on the recognition of full capacity
established by the international document.
Keywords: Rights of Person; Legal capacity; System in Brazil; Accompanied; Portugal;
Restricted; Peru.
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1. Introdução
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1 Artigo 12 Reconhecimento igual perante a lei 1.Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência
têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei. 2.Os Estados Partes
reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as
demais pessoas em todos os aspectos da vida. 3.Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover
o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal. 4.Os
Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam
salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos
direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal
respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de
influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período
mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente,
independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os
direitos e interesses da pessoa. 5. Os Estados Partes, sujeitos ao disposto neste Artigo, tomarão todas as
medidas apropriadas e efetivas para assegurar às pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou herdar
bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras
formas de crédito financeiro, e assegurarão que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente
destituídas de seus bens.
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medular que impõe uma ruptura paradigmática para a maioria dos Estados signatários.
Com essa dramática alteração no regime das incapacidades, a CDPD impactou
intensamente nos diversos institutos do direito civil dos países signatários e gerou
inúmeras polêmicas, inclusive quanto à sua adequação à tutela das pessoas com
deficiência.
Ao longo do século XX, muitos juristas, incluindo-se os civilistas, opuseram críticas
ao regime das incapacidades previsto nas codificações civis, denunciando a sua
impropriedade para o trato de questões existenciais que estavam em franca ascensão,
graças à expansão dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Observaram que a
titularidade dos direitos personalíssimos não poderia se separar ou cindir-se da
capacidade de exercício, fosse por sua intransmissibilidade, fosse por sua inerência à
determinada pessoa,2 sob pena de importar no esvaziamento do próprio direito. 3
(MACHADO, 2013).
Outro argumento, transcendente à discussão em torno da estrutura e das
características dos direitos personalíssimos, tem sede na filosofia dos direitos humanos e
propõe o realinhamento de conceitos como dignidade, autonomia e capacidade para
favorecer a tutela das pessoas, sobretudo, aquelas que encontravam dificuldades
persistentes para o gozo dos seus direitos, em virtude de uma deficiência (ROIG, 2007).
Nessa direção, entende-se que o sujeito moral a quem se reconhece a dignidade é todo
ser humano a quem também se garante a liberdade de eleição e, consequentemente, a
possibilidade de realização do seu próprio plano de vida (PECES-BARBA, 2003).
Sob uma perspectiva formal, a liberdade de eleição não se restringe à aptidão
para realizar escolhas concretas (PECES-BARBA, 2003, p. 35). Apresenta-se como um
atributo inerente a todo ser humano igualitariamente, constituindo sua própria
integridade moral, sem a qual se verá transformado em simples objeto (nem que seja de
proteção).
2Na locução de Antônio Menezes Cordeiro (2011, p. 108-109), há uma inerência dos direitos de personalidade
à pessoa do titular e ao objeto tutelado. Assim, “nos direitos de personalidade uma primeira vertente de
inerência é constituída pela intransmissibilidade da sua posição ativa. O direito de personalidade nasce na
esfera de um titular e ficará aí até a sua extinção (…) O direito de personalidade está, ainda,
indissociavelmente ligado ao seu objeto. Ele reporta-se a um bem de personalidade, atingindo-o onde quer
que ele se encontre. Na hipótese de uma circulação indevida de escritos ou de imagens que se devam
considerar tutelados pelo regime da personalidade, o titular poderá agir onde quer que eles se encontrem.”
3Conforme Díez-Picazo (2003, p. 346), “Como es lógico, la titularidad del derecho corresponde a la persona y,
en princípio, solo seguramente, a ella. Es además, en línea de principio, un derecho de caráter personalísimo
que solo el titular puede ejercer.”.
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4CC/1916, Art. 5o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
(...)
II. Os loucos de todo o gênero.
III. Os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade.
5CC/1916, “Art. 6o São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:(…)
II. Os pródigos.”
CC/2002, Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (… V - os pródigos.
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6CC/2002, Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: (...)
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática
desses atos;
7CC/2002, Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (...)
II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento
reduzido;
III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
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Estados signatários não poderão usar a deficiência de um modo direto ou indireto para
restringir a capacidade.
É certo que, durante as tratativas para a elaboração da CDPD, a aprovação do
inteiro teor do art. 12 foi precedida de árduas discussões. Houve, inclusive, a proposta de
se ressalvar, em nota de rodapé, que a capacidade legal ali consignada restringia-se
apenas à capacidade de gozo ou capacidade de direito. Mas essa proposta não logrou
êxito. Ao cabo e ao fim, o dispositivo acabou realizando uma virada copernicana,
rompendo dados da tradição jurídica ancestral. Com isso, enfrentou e enfrenta muita
resistência e diversos questionamentos.
Brasil, Portugal e Peru não chegaram a oferecer uma resistência formal ao teor
da CDPD, muito embora seu inteiro teor não houvesse sido efetivamente incorporado
pelos atores do mundo jurídico. Outros países, porém, foram mais incisivos nessa
resistência. Sustentaram inicialmente que a capacidade jurídica seria matéria atinente
apenas ao direito interno, escapando da esfera de interesse de um tratado internacional.
Como o argumento não prosperou nas sessões realizadas para elaboração e votação dos
dispositivos, alguns países opuseram-lhe reservas8 ou declarações interpretativas (não
importa o nome utilizado), no momento da assinatura, visando excluir ou modificar os
efeitos jurídicos de algumas de suas disposições quando de sua aplicação a esse Estado.
Tais reservas ou declarações interpretativas foram agrupadas por Francisco
Bariffi (2014, p. 414) em três grupos distintos, designados, respectivamente, como
modelo restringido, modelo moderado e modelo de efeitos indiretos. O modelo
restringido conjugou as reservas ou declarações do Egito, dos países árabes, da Estônia,
da Venezuela e da Polônia, caracterizadas pela oposição frontal à interpretação da
capacidade jurídica, prevista no art. 12 da CDPD, como a conjugação da capacidade de
gozo e de exercício. Não admitiam que o art. 12 da CDPD viesse a gerar efeitos sobre o
8Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009, que promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Art. 2º, item 1, alínea d). reserva
significa uma declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado ao
assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o
efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado;
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de apoio.9
A considerar o art. 46 da CDPD, não há como se permitir quaisquer reservas que
sejam incompatíveis com o objeto e o propósito convencionais. Assim, é importante
considerar que se o teor das reservas realizadas pelos países signatários da CDPD
incorrerem nesse infortúnio, não serão acolhidas. Relembrando a Convenção de Viena
sobre Tratados Internacionais, especialmente o art. 27, vê-se que o Estado parte não
poderá invocar as disposições do direito interno para justificar o descumprimento do
tratado de que é signatário. Portanto, as reservas que integram o chamado modelo
restritivo não têm sustentação.
9No relato de Bariffi (2014, p. 423), “Finalmente, el 21 de diciembre de 2011 el Reino Unido retiró esta
declaración par- ticular sobre el artículo 12(4), aunque, como destacan TROMMEL y DEVANDAS, no parece
haber intención por parte de este Estado de “sustituir el modelo de sustitución en la capacidad de actuar por
un sistema de apoyo”.
10Trata-se do PLS nº 757/2015, apresentado originariamente pelos senadores Paulo Paim (PT-RS) e Antonio
Carlos Valadares (PSB-SE), mas uma versão substitutiva, subscrita pelo Senador Telmário Mota (PDT-RO) foi
enviada à Comissão de Direitos Humanos da Casa, por meio de mensagem eletrônica datada de 10 de maio
de 2016, logrando aprovação junto à Comissão de Constituição e Justiça.
11“Estranha-se, porém, que o segmento diretamente afetado não haja participado ativamente até essa
presente fase do processo legislativo. O PLS já está sob exame da Comissão de Constituição e Justiça do
Senado Federal e ainda não houve uma só audiência pública para discutir seus dispositivos. Uma vez que a
palavra de ordem do movimento internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência é “Nada sobre
nós, sem nós”, então, como justificar que as alterações conduzidas por esse PLS exaram seu “melhor
interesse”? Ademais, é oportuno mencionar que, no âmbito do VII Congresso Brasileiro sobre Síndrome de
Down, realizado nos dias 15 a 17 de outubro de 2015, em Curitiba, o Comitê Jurídico da Federação e a
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Importa destacar recente orientação legal das Organizações das Nações Unidas,
pelo Comitê sobre Direitos da Pessoa com Deficiência, reforçando a necessidade de
garantir a participação das pessoas com deficiências e de suas organizações
representativas nos processos públicos de tomada de decisões sobre seus próprios
direitos humanos.12
Mesmo quando o Brasil foi visitado pelo Comitê da ONU, foi alvo de severas
críticas, inclusive, quanto às propostas carreadas no projeto que se converteria
posteriormente no EPD. Por duas vezes, o Comitê da ONU visitou o Brasil, produzindo dois
relatórios, que foram publicados em 2012 e 2015. O último relatório denuncia muitos
pontos negativos, nos quais se destaca a insistência do país em aplicar o sistema de
substituição de vontade, tão repudiado pelo inteiro teor da CDPD. In verbis,
24. Preocupa al Comité que algunas leyes del Estado parte sigan
contemplando, en ciertas circunstancias, la sustitución en la adopción de
decisiones, que es contraria al artículo 12 de la Convención, tal como se
Associação Nacional de Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com
Deficiência – AMPID compuseram a IV OFICINA DE REVISÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO para discutir sobre
os direitos da pessoa com deficiência à luz da Constituição Federal, da Convenção da ONU sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, das Recomendações do Comitê da ONU acerca da citada Convenção e do EPD.
Como síntese das discussões realizadas, lavraram a CARTA DE CURITIBA na qual não se acham críticas às
mudanças operadas pelo Estatuto ao Código Civil tampouco eventual necessidade de sua alteração. Não
houve qualquer menção ao PLS nº 757/2015 ou mesmo à intenção do legislador em alterar o EPD, o que
demonstra a baixa divulgação desse projeto modificativo.” (MENEZES, Joyceane Bezerra de. O risco do
retrocesso: uma análise sobre a proposta de harmonização dos dispositivos do Código Civil, do CPC, do EPD e
da CDPD a partir da alteração da Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Revista Brasileira de Direito Civil –
RBDCivil, Belo Horizonte, v. 12, p. 137-171, abr./ jun. 2017).
12 Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad Observación general núm. 7 (2018). “1. Las
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25. El Comité insta al Estado parte a que derogue todas las disposiciones
legales que perpetúen el sistema de la sustitución en la adopción de
decisiones. También le recomienda que adopte, en consulta con las
organizaciones de personas con discapacidad y otros proveedores de
servicios, medidas concretas para reemplazar el sistema basado en la
adopción de decisiones sustitutiva por otro basado en el apoyo a la adopción
de decisiones que privilegie la autonomía, la voluntad y las preferencias de
las personas con discapacidad, en plena conformidad con el artículo 12 de la
Convención. Le recomienda además que mantenga debidamente informadas
sobre el nuevo marco legal a todas las personas con discapacidad que se
encuentren bajo custodia, y que garantice en todos los casos el ejercicio del
derecho al apoyo para la adopción de decisiones. 13
Portugal e Peru também não opuseram reservas, mas ambos os países foram
bastante criticados pelo Comitê da ONU quando visitados para averiguação da adoção das
medidas exigidas pela Convenção.
Por meio da Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 7 de maio,
Portugal aprova a CDPD, ratificando-a pelo Decreto do Presidente da República n.º
71/2009, de 30 de julho. O Protocolo Opcional, por sua vez, foi aprovado pela Resolução
da Assembleia da República n.º 57/2009, também em 7 de maio, havendo sido ratificado
pelo Decreto do Presidente da República n.º 72/2009, de 30 de julho.
Por ocasião do Relatório divulgado em 2016, o Comitê observou que o Estado
português não havia realizado uma completa revisão de sua legislação para o fim de
harmonização com a Convenção e que, em razão disto, ainda mantinha leis,
regulamentos, usos e práticas perpetuando discriminação contra as pessoas com
deficiência.14
Até então, o Código Civil português, por exemplo, aplicava a deficiência como
critério para balizamento da incapacidade civil, e, consequentemente, o direito protetivo
pautado na incapacitação (interdição), como também não autorizava o casamento à
13 Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observaciones finales sobre el informe inicial
del Brasil. Disponível em:
https://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/arquivos/%5Bfield_generico_imagens-
filefield-description%5D_174.pdf. Acesso em: 30 abr. 2019.
14Comissão sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Observações finais sobre o relatório inicial de
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15Comissão sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Observações finais sobre o relatório inicial do Peru
Disponível em:
https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CRPD/C/PER/CO/1
&Lang=Sp. Acesso em: 29 abr. 2019.
16O relatório da ONU foi produzido no período entre 16 a 20 de abril do ano de 2012. A Lei Geral da Pessoa
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interdicción judicial y revise las leyes que permiten la tutela y la curatela con
objeto de garantizar su plena conformidad con el artículo 12 de la
Convención. Le recomienda también que adopte medidas para cambiar el
modelo de sustitución en la toma de decisiones por uno de apoyo o asistencia
a las personas con discapacidad en esa toma de decisiones que respete su
autonomía, voluntad y preferencias.
26. Preocupa al Comité que el Código Civil del Estado parte no reconozca la
capacidad para ejercer el derecho a contraer matrimonio de las personas
sordomudas, sordociegas y ciegomudas, así como de las personas con
discapacidad mental o que sufren deterioro mental.
27. El Comité insta al Estado parte a que modifique el Código Civil con el fin
de garantizar adecuadamente a todas las personas con discapacidad el
ejercicio de sus derechos civiles, en particular el derecho a contraer
matrimonio.
Observa-se que as críticas apontadas pela ONU aos três países não distam
muito, notadamente no que diz respeito à capacidade jurídica e ao acesso ao exercício
dos direitos civis, em geral. Pois bem, o que houve depois de então? Quais as principais
mudanças havidas na legislação desses três países até o dia de hoje? Sem realizar uma
análise pormenorizada, apontam-se as mudanças havidas no plano da capacidade jurídica
que, por longos anos, funcionou como barreira de acesso a certos direitos cujo gozo não
se dissocia do exercício.
Sem a pretensão de traçar um esboço comparativo entre as soluções propostas por cada
um desses países para atender ao imperativo do art. 12 da CDPD, é o propósito do
presente artigo apresentar a capacidade jurídica da pessoa com deficiência psíquica e
intelectual a partir da Lei nº 13.146/2015 (EPD), no Brasil; da Lei do Maior Acompanhado
(Lei nº 49/2018), em Portugal; e, da Lei Geral da Pessoa com Deficiência (Lei nº
29.973/2012) e do Decreto Legislativo nº 1384/2018, que alteraram o Código Civil, no
Peru.
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17 Art. 114. A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar com as seguintes
alterações:
“Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16
(dezesseis) anos.
I - (Revogado);
II - (Revogado);
III - (Revogado).” (NR)
“Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:
.....................................................................................
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
......................................................................................
18Sobre a matéria, sugerem-se dois textos: Menezes (2018, p. 1-13) e Menezes; Teixeira (2016, p. 1-31). 2019.
19Lei nº 13.146/2015, Art. 5º A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência,
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E é bem isso: não há como considerar uma pessoa humana incapaz, sem esvaziar
a sua condição de sujeito digno. Até mesmo relativamente às crianças esse conceito pode
vir a mudar em um breve espaço de tempo. Isso não implica lançar a pessoa com
deficiência a um vazio protetivo, mas a redelinear um sistema apto a lhes assegurar
capacidade plena com um apoio integrativo, livrando-a da condição de mero objeto de
proteção.
20Art.1.767. Estão sujeitos a curatela: I - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem
exprimir sua vontade;
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Por meio da Lei nº 49/2018, a alteração se fez, e como alternativa aos institutos
da interdição e da inabilitação, instituiu-se o regime jurídico do maior acompanhado. De
comentários e sugestões tidos por convenientes sobre o projeto de Proposta de Lei que visa alterar os artigos
138.º a 156.º, 1601.º, 1850.º, 1913.º e 2189.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de
Novembro de 1966. [Em linha] [Consult. 19 de nov. de 2017] Disponível em:
http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=1&idsc=135578&ida=143149#_ftn1. Acesso
em: 22 abr. 2019.
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imediato, pode-se verificar que os artigos 138º e 139º foram sensivelmente alterados, de
sorte que a pessoa maior com alguma limitação mental já não será chamada incapaz.
O acompanhamento, previsto no artigo 138º, 23 visa a um apoio em geral – de
uma intensidade mais branda a mais intensa, sempre primando pela vontade do sujeito,
em sintonia com as orientações internacionais (BARBOSA, 2018, p. 49). Nessa toada, o
acompanhamento rege-se pelo princípio da necessariedade – de sorte a incidir na medida
da demanda pessoal do acompanhado. Assim, de um mero apoio, como pode ocorrer na
decisão apoiada brasileira, o acompanhamento poderá chegar à assistência ou à
representação (art. 145º, b, do Código Civil Português). 24 De igual modo, pode ser
estabelecido em um especial domínio da vida do beneficiário ou sobre faixas mais
alargadas, desde que detalhadamente assentadas na decisão que confere o
acompanhamento.
Resta apenas destacar que a capacidade de exercício do acompanhado
permanece hígida, mesmo quando sob representação do acompanhante. A seguir a
afirmativa de Barbosa, “no quadro do regime do acompanhamento, parte-se da ideia de
que o acompanhado mantém a sua capacidade de exercício” (BARBOSA, 2018, p. 62).
Significa isto, continua, que em determinadas situações, “o regime do
acompanhamento pode redundar na limitação (mas não na exclusão) da capacidade de
exercício do indivíduo.” (BARBOSA, 2018, p. 63). E assim afirma por dois motivos: o
acompanhamento que se fizer por representação não poderá ser fixado em termos
genéricos em face do princípio da necessariedade e do respeito à autonomia; para além
dos limites do acompanhamento fixado por representação, a pessoa continuaria livre para
praticar os demais atos da vida corrente e aqueles pertinentes ao direito pessoal (art.
147).25 Acrescente-se, ainda, uma terceira razão: aquela representação, se assim for
23 Artigo 138º – Acompanhamento: O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu
comportamento, de exercer, plena e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir
os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.
24Artigo 145º – Âmbito e conteúdo do acompanhamento. 1. O acompanhamento limita-se ao necessário. 2.
Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao
acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes: a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos
meios de as suprir, conforme as circunstâncias; b) Representação geral ou representação especial com
indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária; c) Administração total ou
parcial de bens; d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos; e)
Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
25Artigo 147. Direitos pessoais e negócios da vida corrente. 1. O exercício pelo acompanhado de direitos
pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em
contrário. 2. São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar,
de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher a profissão, de se
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fixada, não poderá ser feita por substituição da vontade, mas em atenção à vontade e às
preferências da pessoa.
Chama-se atenção para três dispositivos do Código Civil Português: os art.
1.601º, art. 1850º e art. 2.189º trazem possibilidade de mitigação à capacidade de gozo.
São hipóteses em que o exercício também não se poderia fazer por terceiro.
Segundo o art. 1.601º, constitui impedimento dirimente absoluto ao
casamento: “a demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a decisão de
acompanhamento, quando a sentença respectiva assim o determine”.26 Problemático
seria identificar o que o legislador português considerou demência notória, e os efeitos
que a expressão pode causar para a vida das pessoas, em geral, com um juízo mal
realizado da autoridade que celebra o casamento. Admitindo tratar-se de uma pessoa
com deficiência psíquica grave ou situação de absoluta impossibilidade de manifestação
volitiva, como aquele que está em coma, seria razoável. Mas mesmo assim, o importante
seria saber se há ou não vontade jurígena para aquele ato em concreto. Por outro lado,
ninguém poderia decidir essa matéria pela pessoa – tampouco o seu acompanhante.
Tocante à perfilhação, prevista no art. 1.850º, também há uma restrição: o
maior acompanhado somente poderá perfilhar se não houver restrição aos direitos
pessoais, fixada em sentença. Também não poderá fazê-lo se, no momento da
perfilhação, estiver afetado por “notória” perturbação mental.27
O último dispositivo, art. 2.189º, diz respeito ao direito de testar. Diz o
dispositivo que são “incapazes de testar: b) os maiores acompanhados, apenas nos casos
em que a sentença de acompanhamento assim o determine”.
Anteriormente à Lei nº 49/2018, a pessoa com deficiência psíquica ou interdita
já não poderia casar-se, testar ou perfilhar.
deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, de estabelecer relações com quem
entender e de testar.
26A redação anterior declarava nulo o casamento. Artigo 1601º (Impedimentos dirimentes absolutos) São
impedimentos dirimentes, obstando ao casamento da pessoa a quem respeitam com qualquer outra: (…) b)
A demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a interdição ou inabilitação por anomalia
psíquica;
27Anteriormente à Lei nº 49/2018, inexistia a possibilidade de perfilhacão por pessoa interditada. “Artigo
1850º (Capacidade) 1. Têm capacidade para perfilhar os indivíduos com mais de dezesseis anos, se não
estiverem interditos por anomalia psíquica ou não forem notoriamente dementes no momento da
perfilhação. 2. Os menores, os interditos não compreendidos no número anterior e os inabilitados não
necessitam, para perfilhar, de autorização dos pais, tutores ou curadores. (Redação do Dec.-Lei 496/77, de
25-11).
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4.3. Peru e o marco legal estabelecido pela Lei Geral da Pessoa com Deficiência e pelo
Decreto Legislativo nº 1384/2018
28Revogou-se,por exemplo, a previsão de incapacidade absoluta dos surdos mudos, cegos mudos e cegos
surdos que não podiam externar sua vontade inequivocamente (art. 43).
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havia previsão para a capacidade de gozo (reconhecida a todos com as exceções da lei) e
para a capacidade de exercício (alcançada aos dezoito anos de idade, mas afastada nos
casos de incapacidade absoluta29 ou relativa30) em artigos diferentes e com hipóteses de
verificação fundadas, por vezes, na deficiência.
O decreto unificou o conceito de capacidade jurídica, estabelecendo que a todos
é reconhecida a capacidade jurídica de gozo e de exercício de seus direitos (art. 3º),
indicando, pois, que a titularidade de direitos não pode estar apartada da possibilidade
de exercício desses mesmos direitos ou interesses. Prevê a possibilidade de restrição (e
não de supressão) à capacidade de exercício apenas por força de lei. Declara, no mesmo
dispositivo, que as pessoas com deficiência têm capacidade de exercício em igualdade de
condições em todos os aspectos da vida, em uma clara ratificação da regra disposta no
artigo 12 da CDPD.
As principais alterações foram feitas nos artigos 42 31, 4332 e 44,33 que tratavam,
respectivamente, da capacidade de exercício, da incapacidade absoluta e da incapacidade
relativa. Com a nova redação, tem-se:
Artículo 42.- Capacidad de ejercicio plena
Toda persona mayor de dieciocho años tiene plena capacidad de ejercicio.
Esto incluye a todas las personas con discapacidad, en igualdad de
condiciones con las demás y en todos los aspectos de la vida,
independientemente de si usan o requieren de ajustes razonables o apoyos
1.- Los menores de dieciséis años, salvo para aquellos actos determinados por la ley.
2.- Los que por cualquier causa se encuentren privados de discernimiento.
33Artículo 44º.- Son relativamente incapaces:
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34Artículo 141.- Manifestación de voluntad.: La manifestación de voluntad puede ser expresa o tácita. Es
expresa cuando se realiza en forma oral, escrita, a través de cualquier medio directo, manual, mecánico,
digital, electrónico, mediante la lengua de señas o algún medio alternativo de comunicación, incluyendo el uso
de ajustes razonables o de los apoyos requeridos por la persona. Es tácita cuando la voluntad se infiere
indubitablemente de una actitud o conductas reiteradas en la historia de vida que revelan su existencia. No
puede considerarse que existe manifestación tácita cuando la ley exige declaración expresa o cuando el agente
formula reserva o declaración en contrario.
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incapacidade no Brasil.
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patrimônio.
Assim como no Brasil, as mudanças não foram recebidas com entusiasmo pela
unanimidade da doutrina. Há críticas tanto ao modelo social adotado pela CDPD, como à
reforma da previsão da plena capacidade de exercício para as pessoas com deficiência.
Um dos questionamentos dá-se com o confronto entre a incapacidade absoluta do menor
de 16 anos e a plena capacidade de quem tem “deficiência mental severa irreversível”, o
que, para parte da doutrina, não é razoável (ODAR, 2019).
Em que pesem as opiniões contrárias, entende-se que a alteração legislativa
peruana atende às diretrizes traçadas pela Convenção dos Direitos das Pessoas com
Deficiência da ONU, que, também no Peru, é preceito normativo e com caráter vinculante
(VIVAS TÉSON, 2010, p. 565).
5. Considerações Finais
Para garantir a inclusão de toda pessoa com deficiência - seja ela de origem psíquica,
intelectual, física ou sensorial - em igualdade de condições com as demais, a CDPD
implementou uma mudança significativa no regime de incapacidades, de modo que os
direitos civis, políticos, culturais, econômicos e sociais devem seguir o modelo social de
abordagem na sua elaboração.
Ao assegurar a toda pessoa com deficiência a íntegra capacidade legal, o art. 12
da CDPD impactou intensamente nos diversos institutos do direito civil dos países
signatários, impondo-lhes a alteração no regime das incapacidades.
Embora a CDPD não tenha revogado os sistemas de substituição de vontade,
não permite que a deficiência seja o critério utilizado para a sua aplicação. Assim, eventual
medida restritiva da capacidade deve ser justificada na situação específica do sujeito e
não no critério da deficiência, de modo que a interpretação do artigo 12 de forma a
garantir todos os direitos em vez de restringi-los é essencial para que os demais artigos
da Convenção façam sentido e possam ser implementados.
Cada país signatário da Convenção se obrigou a instituir os mecanismos de apoio
necessários às tomadas de decisão das pessoas com deficiência, protegendo-as de
ameaças ou lesão, delimitado tal apoio de acordo com caso concreto, podendo ser mais
brando ou mais intenso – mas nunca significando uma substituição de vontade,
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lembrando sempre que a proteção que se almeja garantir à pessoa com deficiência é
aquela que lhe permite realizar-se como protagonista de uma vida independente na maior
medida possível.
As críticas apontadas pela ONU ao Brasil, a Portugal e ao Peru não distam muito,
notadamente no que diz respeito à capacidade jurídica e ao acesso ao exercício dos
direitos civis, em geral. Coube ao EPD alterar os arts. 3º e 4º do Código Civil brasileiro,
excluindo qualquer referência à deficiência para mitigação da capacidade civil. Por meio
da Lei Brasileira de Inclusão, implementou-se sistema para suporte aos que necessitam
de apoio e salvaguarda (a tomada de decisão apoiada), como forma de auxiliar sem a
mitigar a capacidade jurídica.
Para atender aos imperativos da Convenção, Portugal fez profundas alterações
no Código Civil, a partir da Lei nº 49, de 2018, abolindo os institutos da interdição e da
inabilitação e instituindo o regime jurídico do maior acompanhado, cuja capacidade
permanece incólume, mesmo quando sob representação do acompanhante.
No Peru, o Decreto 1384, de agosto de 2018, estabeleceu que a todos é
reconhecida a capacidade jurídica de gozo e de exercício de seus direitos, indicando, pois,
que a titularidade de direitos não pode estar apartada da possibilidade de exercício desses
mesmos direitos ou interesses. Prevê a possibilidade de restrição (e não de supressão) à
capacidade de exercício apenas por força de lei. Merece destaque também a inovação
peruana no que toca ao respeito da vontade tácita, construída mediante vontade
biográfica da pessoa. A consideração da declaração da vontade por outros meios
diferentes dos tradicionais concretiza o melhor interesse da pessoa com deficiência,
revelado pela interpretação da vontade e das preferências da vida real de quem esteja
sob apoio.
Para além de todas as modificações ou adaptações nos ordenamentos jurídicos
mundo afora, insista-se que a sociedade é quem deve se adequar para garantir a inclusão
da pessoa com deficiência em igualdade de condições, reconhecendo-lhe a sua
personalidade jurídica, sua autonomia e sua plena capacidade jurídica. É necessário se
redesenhar uma construção social que promova e proteja, na máxima medida, as
vontades e os interesses da pessoa com deficiência, resguardando, permitindo e
facilitando o seu desenvolvimento e o exercício de seus direitos de maneira plena.
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6. Referências Bibliográficas
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perfis da curatela. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
CORDEIRO, Antônio Menezes. Tratado de Direito Civil, Vol. IV, Parte Geral: Pessoas.
Coimbra: Amedina, 2011.
GONZÁLES, Carlos Antonio Agurto; DÍAZ, María Pía Guadalupe Díaz. Capacidad Jurídica: el
histórico problema de uma categoria fundamental em el derecho. A propósito de las
modificaciones introducidas por el Decreto Legislativo nº 1384 em el Libro de derechos
de las personas del Código Civil peruano. R.E.D.S., n. 13, p. 238-264, jul./dec., 2018.
MENEZES, Joyceane Bezerra de. A capacidade jurídica pela Convenção sobre os Direitos
da Pessoa com Deficiência e a insuficiência dos critérios do status, do resultado da
conduta e da funcionalidade. Pensar - Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 23, n. 2,
p. 1-13, 2018. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/7990.
Acesso em: 21 abr. 2019.
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ROIG, Rafael Asís. Derechos humanos y discapacidad. Algunas reflexiones derivadas del
análisis de la discapacidad desde la teoría de los derechos. Disponível em: https://e-
archivo.uc3m.es/bitstream/handle/10016/9401/derechos_asis_2007.pdf?sequence=1.
Acesso em: 26 mar. 2018.
Sobre as autoras
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Resumo
Este artigo apresenta uma abordagem sociojurídica para análise da institucionalização
dos mercados. Sugere-se a importância da dimensão jurídica para análise das
instituições e das disputas políticas em mercados, além de delinear um framework para
futuras pesquisas. Metodologicamente, trata-se de um exercício de organizar – de modo
crítico, mas articulado – trabalhos da sociologia dos mercados e da sociologia do direito
e da economia.
Palavras-chave: Sociologia econômica; Sociologia jurídica; Instituições; Direito;
Mercados.
Abstract
This paper presents a socio-legal approach to analyze the institutionalization of markets.
The paper suggests the relevance of the legal dimension for the analyses of markets
institutions and political struggles, as well as outlines a framework for future research.
Methodologically, the paper aims to bridge different insights through a – critical but
constructive – dialogue of workson the sociology of markets and the sociology of law
and the economy.
Keywords: Economic sociology; Sociology of law; Institutions; Law; Markets.
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1. Introdução1
1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Agradeço aos coordenadores e participantes do
Grupo de Trabalho em “Sociologia Econômica”, do 19º Congresso Brasileiro de Sociologia com quem debati
uma primeira versão deste trabalho. Agradeço também às/aos revisoras/res às cegasdesta revista pelos
comentários e sugestões. Erros remanescentes são, obviamente, de minha exclusiva responsabilidade.
2 Uso o termo sugerido por Edelman e Stryker (2004) que me parece sintetizar melhor os esforços nesse
campo.
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se diversificaram na análise social dos mercados. Esta parte apresenta ainda críticas que
lhes têm sido endereçadas por estudos recentes. A terceira seção apresenta a
abordagem aqui sugerida, a partir de uma literatura sociojurídica, indicando as
propriedades do direito que o tornam uma variável relevante no processo de
institucionalização de mercados. A quarta seção apresenta considerações finais.
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visão econômica mainstream. Sua crítica aos pressupostos da economia clássica e sua
visão alargada do fenômeno econômico o tornaram, aliás, uma das principais
referências no campo dos estudos sociais da economia.
Para Polanyi (2001: 3-4), a ideia de um mercado autorregulado como único
padrão institucional organizador da produção e distribuição de riqueza em sociedade,
cujo auge se dava no século XIX, implicava em uma absoluta utopia. Uma instituição
como essa, quando posta em vigência – o que, paradoxalmente, de fato, ocorreu
naquele século –, denunciava Polanyi, destruiria a substância humana e natural da
sociedade. O argumento já é conhecido: certos elementos simplesmente não são
produzidos para serem vendidos em mercado e tratá-los como se mercadorias fossem
acarreta perigos para a sociedade.
Trabalho, terra e dinheiro são apenas denominações alternativas para seres
humanos, natureza e medida do poder de compra, respectivamente. São elementos,
portanto, conectados à constituição e ao funcionamento da sociedade em múltiplas
dimensões e não apenas a econômica. Mas em uma economia de mercado, em que
tudo deve ser posto à venda por um preço, trabalho, terra e dinheiro se tornam
mercadorias fictícias. Os efeitos dessa operação, contudo, são severamente danosos à
sociedade: os caprichos do mercado criam insuportável instabilidade às relações
humanas, põem em cheque a segurança física e alimentar humana, exaurem recursos
naturais, e podem prejudicar até a própria produção capitalista.3 Como reação
espontânea e pragmática, diversos segmentos da sociedade procuram meios para
defender sua existência em uma ambiente tão antissocial.4
Uma análise histórica, demonstra Polanyi (2001: cap. 5), desmente as
pretensões universalistas do pensamento econômico. Segundo o autor, a antropologia
histórica revela que diferentes princípios e padrões institucionais têm organizado as
economias dos mais diversos povos e civilizações. Seu principal argumento é que a
economia humana, em regra, é submersa em suas relações sociais e atende aos mais
diferentes propósitos. Princípios da redistribuição, da reciprocidade e da domesticidade
foram motivações para ações econômicas mais comuns, ao longo da história, do que o
princípio do lucro. Aliás, cada princípio tornava-se efetivo a partir de um padrão
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5Para uma análise sobre o achado de Polanyi sobre a “economia sempre enraizada”, ver Block (2003). Para
uma versão crítica e alternativa sobre o conceito de embeddedness, ver Krippner (2017).
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6Segundo o autor, existem ao menos três grandes vertentes: o institucionalismo da escolha racional, mais
ligada às abordagens econômicas; o institucionalismo das organizações, mais ligada às abordagens
sociológicas; e o institucionalismo histórico, ligado às análises da ciência política e da economia política. Não
faz parte do escopo deste artigo esmiuçar cada uma das vertentes.
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pelas diferenças entre as tradições nacionais. Em sua análise identifica paralelo entre as
instituições que organizaram a vida econômica desses países e aquelas que regeram sua
dinâmica política.
Por exemplo, a tradição política americana de conferir autonomia política a
governos locais, sob um sistema federativo dominado por cortes, guarda afinidade com
uma política industrial descentralizada, baseada na noção de que mercados livres e
competitivos induziriam eficiência a toda a economia. Já a tradição francesa de situar a
soberania no governo central como força central de integração nacional possui paralelo
com uma política industrial igualmente centralizada, conduzida por um grupo de experts
capazes de guiar a economia. A tradição britânica, por sua vez, de situar a soberania
política em indivíduos da elite, protegendo-os de seus vizinhos, da coroa e da burocracia
estatal, mantém curioso paralelo com uma política que promoveu, primeiro, o laissez-
faire e depois ativamente protegeu empresas individuais contra intrusões de mercado,
favorecendo seus empreendedores.
Como argumento central Dobbin (1994: 20-21) indica que instituições estatais,
ao formatarem tradições culturais, influenciariam visões e estratégias econômicas.
Primeiro,determinando quais seriam os problemas a serem enfrentados; segundo,
estabelecendo os “princípios de causalidade” usados por atores públicos e privados para
a solução de tais problemas. Novos problemas (políticos e econômicos), o autor conclui,
tenderiam a ser enfrentados com as tradicionais concepções e ferramentas, o que
explica a existência e permanência de distintos padrões de organização econômica entre
países. Apresenta, assim, uma explicação frontalmente diversa das visões eficientistas
que previam a tendência de convergência institucional.
Fligstein (1996, 2001), por sua vez, desenvolve uma abordagem política-cultural
da arquitetura institucional de mercados. Seu argumento central é que estruturas sociais
de mercado e organização interna das empresas são mais bem vistas como tentativas de
mitigar efeitos da competição entre empresas, que tenderiam a conduzir os mercados à
estabilidade. A construção de estruturas estáveis de mercado seria um projeto
essencialmente político-cultural, motivo pelo qual se vale da metáfora de markets as
politics.
Duas dimensões inscrevem-se na metáfora do autor. A primeira é que a
formação de mercados deve ser vista como parte do state-building. Estados modernos
têm sido construídos a partir de sua interação com o desenvolvimento de suas
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7Bruce Carruthers (2015) argumenta em sentido semelhante ao dizer que as mudanças na organização dos
mercados financeiros em diversos países, que culminaram no processo conhecido como financeirização,
envolveram alteração de suas “pré-condições institucionais”. O autor demonstra a existência de quatro
elementos institucionais nesses mercados, relativos: (i) ao desenho dos direitos de propriedade; (ii) à
estruturação das informações entre participantes e reguladores; (iii) ao funcionamento de sua regulação;
(iv) aos mecanismos a serem usados nos casos de falha de algum participante. Sugere que o novo padrão de
mercado foi estruturado pela emergência de novas formas de propriedades e controle, de gerenciamento
de informações em mercado, de regulação dos mercados, e de regramento de falência e insolvências
empresariais.
8 Entre importantes análises institucionalista de mercados, que, vale dizer, também dialogam com a
economia política, estão os trabalhos de Fligstein (1996, 2001), Dobbin (1993, 1994, 2004), Carruthers e
Stinchcombe (1999), Halliday (2012), Riain (2000) e Maillet (2015).
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9 Por exemplo, Fligstein (2001: 84), argumenta explicitamente nesse sentido ao dizer que: “I propose an
exogenous theory of market transformation that views the basic cause of changes in market structure as
resulting from forces outside the control of producers, due either to shifts in demand, invasion by other firms,
or actions of the state”.
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10Pardi analisa o setor automotivo britânico sob o governo Thatcher como estudo de caso, e toma como
fontes documentos do Department of Industry (DoI) e do Department of Trade (DoT), além das negociações
sindicais de 1981 e planos corporativos de grandes empresas do setor.
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Apesar de estar por toda parte da vida econômica, o direito permanece marginal na
sociologia econômica. Ao menos é essa a conclusão de trabalhos relativamente recentes
que procuram superar a ausência teórica e empírica das conexões entre direito,
sociedade e economia. De fato, essa é uma empreitada que não se restringe à sociologia
econômica. Partindo de tradições intelectuais distintas (ainda que em sua maioria
institucionalistas), como da economia política institucional (COUTINHO, 2014, 2016;
DEAKIN et al., 2015) e dos estudos institucionais sobre organizações (SUCHMAN, 1995;
EDELMAN; SUCHMAN, 1996; 1997), autores têm enfrentado o desafio de explicitar o que
há propriamente de jurídico na organização política e social da economia.11
O chamado de Swedberg (2003) para a necessidade de se desenvolver “uma
análise sociológica do papel do direito na vida econômica” sintetiza os esforços que vêm
sendo feito por diversos estudos (EDELMAN; STRYKER, 2004; STRYKER, 2003; EDELMAN
et al., 1999; EDELMAN, 2004; CARRUTHERS; HALLIDAY, 2007; FRERICHS, 2009, 2012;
BLOCK, 2013; COTTERRELL, 2013; KOTISWARAN, 2014; PERRY-KESSARIS, 2015). Nas
diferentes versões, um ponto interessante tem sido o esforço de identificar conexões
mais ou menos explícitas entre tradições da sociologia do direito e da sociologia
econômica. A mais evidente é: da mesma maneira que a última se empenha em revelar a
dimensão política e institucionaldos mercados, a primeira descreve o direito operando
em seu contexto social mais abrangente (FRERICHS, 2009). O diálogo entre as literaturas
11 Há ainda uma diversificada literatura de estudos jurídicos da regulação econômica que pode contribuir
com essas reflexões, mas que não se inserem no escopo deste artigo, que procura apenas organizar os
trabalhos que explicitamente articulam as literaturas de sociologia jurídica e de sociologia econômica.
Apenas como exemplos (potencialmente divergentes) de trabalhos que, ao tratar da regulação jurídica de
mercados, sugerem papéis do estado e do direito em sua construção, podem ser citados: Sunstein (1990,
1997); Lothian; Unger (2011); Sabel (2007); Piccioto (2017).
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indica, em suma, que as interações entre direito, economia e sociedade são mais
relevantes do que usualmente se reconhece.
Meu argumento é que uma abordagem sociojurídica dos mercados pode
oferecer uma lente capaz de detalhar os processos de institucionalização de mercados e
ser profundamente esclarecedoras de dimensões vistas usualmente como opacas. Ao
endogeneizar a criação, interpretação e aplicação do direito à ação e à organização
econômica esse tipo de abordagem pode especificar como mercados são concretamente
construídos a partir de regras jurídicas, acordos políticos, ideias econômicas e culturais.
Uma análise dos processos sociais de mercados exige um tratamento mais
realista também do próprio direito. Como estudos sociojurídicos argumentam há
tempos, por direito não se pode tomar apenas os textos de leis, regulamentos, decretos
formais, mas também o modo como estes são aplicados em situações concretas, além de
considerar ideias, princípios e rituais relacionados ao direito que permeiam atores
privados. “Direito em ação” torna-se o foco desse tipo de análise. Pesquisas passam a
vasculhar como o direito é interpretado, mobilizado, ignorado e/ou implementado por
indivíduos em situações concretas. Chamarei de “produção do direito” esse amplo
processo de criação e implementação de normas jurídicas.
Como argumentam Halliday e Carruthers (2007: 1141-1142), é necessário, no
entanto, ir além da abordagem tradicional da literatura em Law and Society que
majoritariamente enfoca o fenômeno jurídico pela – importante, mas limitada –
separação entre o estabelecido pelo direito formal (law in the books) e o direito em sua
prática concreta (law in action). Segundo os autores, tanto a criação do direito quanto a
interação dinâmica entre criação e implementação, a partir de diversas instâncias,
devem voltar ao radar dos sociólogos e sociólogas do direito. Somente assim é possível
voltar a explorar a economia política da produção jurídica, dando tratamento mais
realista às conexões entre direito, disputas políticas e organização da economia.
Meu argumento central é que quatro principais propriedades do direito o
tornam parte crucial do processo de institucionalização de um mercado – em sua criação
ou transformação, vale dizer. 12 O interesse está em identificar como a “produção do
12Pistor (2013) também argumenta em sentido semelhante ao afirmar que mercados (financeiros,
especificamente) são construídos por meio de instrumentos, contratos e regulação jurídicos. Transações
nesses mercados dependem da existência de compromissos contratuais críveis e enforceable juridicamente,
além de regulações que estabeleçam os parâmetros de atuação em mercado. Nesse sentido, em tais
mercados, o direito é o responsável por desenhar as obrigações, repartir riscos e ônus, distribuir
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direito” evolui ao longo do tempo e o que esse processo diz sobre a institucionalidade e
sobre a conformação política de um dado mercado. Com essas lentes é possível iluminar
atores relevantes, ideias econômicas, agendas e acordos políticos contingentes, ou seja,
a economia política subjacente à institucionalização de um mercado. 13 Deve-se, para
tanto, partir das propriedades que indico na sequência.
A primeira propriedade liga-se ao fato de que o direito confere legitimidade à
ação estatal, sendo parte central de qualquer projeto político. O fenômeno jurídico está,
portanto, intimamente ligado às disputas políticas de uma sociedade. Sua relação com
poder, contudo, vai além de sua “aura de autoridade”, como parece sugerir Pistor
(2019). O processo de criação, interpretação e implementação do direito é, de fato,
altamente politizado, no sentido de que estabelece o desenho jurídico prevalente, bem
como os ganhadores e perdedores de uma nova arquitetura institucional. Conforme
Edelman e Stryker (2004: 531-535), formulando a abordagem de “sociologia do direito e
da economia”, as controvérsias sobre a interpretação do direito estão entrelaçadas a
disputas políticas.
A dinâmica política molda quais construções do direito são produzidas e se
tornam institucionalizadas, bem como quem delas se beneficia. A institucionalização de
um mercado passa justamente pelo processo de disputar e estabilizar certa conformação
jurídico-institucional. Nesse sentido, Stryker (2003) diz que os campos jurídico e
econômico se conectam muitas vezes a partir da dimensão política.14 Assim, a forma e o
conteúdo do direito são ativamente construídos e mobilizados como recursos de poder
político, tornando-se tanto o meio, quanto o resultado do embate político (EDELMAN;
STRYKER, 2004: 533).15Por um lado, como sugere Stryker (2003: 351), o valor do direito
competências, viabilizar o uso do poder regulador e garantir o cumprimento da teia contratual e regulatória.
O direito é visto como elemento interno ao mercado e, portanto, parte constitutiva de seu funcionamento.
A abordagem que delineio neste artigo, contudo, diverge em pontos importantes da Legal Theory of Finance
de Pistor, sobretudo quanto a relação entre direito e política. Para Pistor, na dinâmica dos mercados
financeiros, há uma relação diferencial entre o poder vinculante que seria produzido pelo direito e o poder
discricionário que seria especificamente político. Nesses termos, direito e política conectam-se como vasos
comunicantes, ocupando funções distintas no exercício do poder. Na abordagem aqui apresentada, direito e
política constituem-se mutuamente e não devem ser analisados como elementos externos.
13 Identificar a diferença entre law in the books e law in actioné apenas uma parte dessa história.
14Stryker (2003) define política de maneira ampla como a mobilização e contra mobilização de recursos em
existência ou não de uma política explícita de preços – estabelecida juridicamente – produz imediatos
efeitos distributivos deste mercado na sociedade (concentradores ou redistributivos). Sendo assim,
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como recurso político não deriva automaticamente de normas formais, mas é construído
socialmente por interpretação e disputas políticas. Por outro, contudo, deve-se ficar
claro que a forma jurídica não é irrelevante. Como argumentam Carruthers e Halliday
(2007: 1143), o fato de o direito ser primeiramente estabelecido como dispositivo
constitucional, como lei, como regulamento, como inovação jurisprudencial, ou qualquer
outra forma, determina como será implementado e compreendido, quais agentes o
mobilizarão, e quais as suas potenciais funções. Além disso, as características formais do
direito influenciam sua legitimidade, visto que diferentes formas jurídicas se conectam a
diferentes instâncias de poder.16
A segunda propriedade do direito é ser, frequentemente, taken for granted (ou
tomado como um dado, em tradução livre) e dessa forma naturalizar algumas formas
institucionais que deveriam ser vistas como contingentes. Nesse processo, o direito se
torna um pressuposto da ação política e econômica e torna natural o uso de certos
conceitos e interpretações relevantes para a organização de um mercado. Edelman e
Stryker (2004), chamam esse processo de “institucional”,17 que envolve a produção e
aceitação de construções particulares do direito e seu compliance. Essa propriedade do
direito explica a sedimentação e incorporação de certas estruturas que, de tão
pressupostas, parecem naturais e racionais.
Uma vez que certas ideias e práticas jurídicas “são construídas, interpretadas e
institucionalizadas por atores econômicos (...), o direito tende tanto a influenciar ideias
conjuntamente a argumentos econômicos e políticos para se criar ou não tal política e como fazê-la, atores
sociais elaboram e disputam argumentos jurídicos sobre competências, vedações, objetivos da regulação e
assim por diante. Essa dinâmica, contudo, pode ser visto em outros tipos de mercado. Por exemplo, novas
empresas de base tecnológica que procuram criar mercados ou ingressar em mercados consolidados têm
ativamente construído interpretações jurídicas para contornar normas trabalhistas, regulatórias, tributárias,
e outras, de forma a viabilizar um novo modelo de negócios. A reação a isso, de cunho político, tem sido
formulada também pela linguagem jurídica. É nesse sentido que divergências políticas sobre o desenho do
mercado não acontecem fora do direito em um ambiente a-institucional, mas a partir dele.
16 Sobre este ponto, pode-se pensar na disputa jurídica em torno da interpretação do parágrafo 3º do art.
192 da Constituição Federal brasileira, que estabelecia um teto de 12% para as taxas de “juros reais” e que,
se produzisse efeitos, afetaria severamente o modelo de negócios bancários no país. Além da justificativa
econômica e do arranjo político para barrar a vigência do texto constitucional, foi necessária uma
interpretação jurídica criativa pelo, então, Consultor Geral da República, Saulo Ramos, feita em parecer, de
que o dispositivo constitucional não seria autoaplicável. A interpretação foi chancelada pelo Supremo
Tribunal Federal, de modo que o parágrafo do texto constitucional não foi, de fato, aplicado até a sua
revogação. Enfim, o tipo normativo em disputa, neste caso, determinou as instituições e os atores
mobilizados na disputa, que, ao cabo, foi crucial para o funcionamento do mercado bancário brasileiro de
1988 em diante. Sobre o episódio veja Veiga da Rocha (2004).
17Evito o termo, uma vez que todos os processos que descrevo são parte da construção institucional
promovida pelo direito. As autoras evidenciaram a dimensão estabilizadora das instituições e o termo se
justifica na chave analítica em que debatem. Para os propósitos do presente artigo, será substituído pela
propriedade do direito de ser “tomado com um dado”.
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18Miola (2016), por exemplo, argumenta que ideias econômicas neoliberais podem se tornar concretas
também a partir da interpretação e implementação de categorias e dispositivos jurídicos da regulação
concorrencial. No caso brasileiro, a aplicação do direito da concorrência serviu, desde meados nos anos
1990, para legitimar a concentração de poder em mercado, o que convergia com certos interesses políticos
e econômicos em detrimento de outros.
19Por exemplo, Major (2012) e Underhill e Zhang (2008) argumentam que a arquitetura do sistema
financeiro internacional caminhou no sentido justamente de conferir maiores poderes a atores privados
para interpretarem e implementarem dispositivos regulatórios a que deveriam se submeter. A aplicação de
novos padrões da regulação bancária centrou-se basicamente em análises e modelos internos aos bancos
sobre nível de capital e risco de seus ativos, o que serviu para empoderá-los diante de reguladores públicos.
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que o lobby corporativo usualmente obtém sucesso em suavizar a regulação que afronta
seus interesses, produzindo assim mandatos mais amplos e vagos ao regulador. Nessas
condições, "organizações participam ativamente construindo o sentido de compliance".
A própria noção do que seria uma “resposta” racional a certa regra jurídica é, na
verdade, construída socialmente. Edelman (2004) conclui que a própria noção de
“racionalidade” econômica, tomada como natural por economistas, é construída, por
meio de interação social, conjuntamente à racionalidade jurídica.
Nesse sentido, empresas, organizações e indivíduos ao mesmo tempo em que
respondem a uma norma jurídica (isto é, procuram se adequar a suas prescrições da
forma mais adequada segundo seus interesses contextuais), constroem essa mesma
norma que os regula (isto é, avançam um caminho específico para interpretação do
direito). De outro ângulo, a prevalência de certas interpretações entre atores privados as
torna mais aptas à chancela pelo judiciário ou outro poder do estado, conferindo maior
legitimidade e mesmo ganhos materiais aos agentes privados que as especificaram
(EDELMAN et al., 1999: 411). Essa relação de mão dupla torna a produção do direito
público-privada, híbrida.20A quarta propriedade do direito pode ser descrita pelo
processo de recursividade, descrito por Carruthers e Halliday (1998, 2007). A produção
do direito não está circunscrita às fronteiras nacionais, mas depende da atuação de
entidades internacionais ou transnacionais. Sobretudo em mercados criados ou
transformados a partir do processo de globalização, o contexto global é crítico, uma vez
que padrões normativos globais – que contribuirão para sua institucionalização –
crescentemente influenciam processos jurídicos domésticos.
Os autores argumentam que instituições globais, como o FMI, o Banco Mundial,
as Nações Unidas, entre outras, têm construído “uma arquitetura financeira global,
tendo o direito como sua principal fundação” (2007: 1136). Essa empreitada global vem
20 Edelman (2004) ilustra esse ponto analisando a criação de procedimentos internos em empresas nos
Estados Unidos para registro de queixas sobre violações de direitos, que se deu inicialmente como
interpretação privada de normas e princípios de direitos civis naquele país. Posteriormente, os
procedimentos empresariais foram chancelados pelo judiciário como boas práticas, conferindo legitimidade
e vantagem econômica de mercado para as empresas pioneiras. Em um momento seguinte, argumenta a
autora, tais procedimentos foram normalizados como as “práticas mais eficientes” de organização
empresarial em mercado, pois reduziriam o número de casos judiciais e seriam provas (em eventual caso
judicial) do tratamento não discriminatório dado pela empresa aos funcionários. Com efeito, neste caso,
noções de eficiência e boas práticas que influenciaram o funcionamento do mercado passaram também por
uma construção jurídica do que era legítimo, o que foi feito a partir da produção público-privado das
categorias e práticas do direito.
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21 Os autores, obviamente, não apresentam uma lista de temas jurídicos afetados, mas dão exemplos das
mais diversas áreas como, por exemplo, falência, contratos privados, regulação financeira, contratos de
concessão, direito internacional privado.
22 O ponto é ilustrado pelos autores, como estudo de caso, pela incorporação por países de regras e
coisas, a influência de atores jurídicos no processo de implementação criativa do direito, além do papel de
múltiplas instituições (nacionais e internacionais) que moldam, a partir de sua atuação, o funcionamento do
direito. Nesse sentido, sua abordagem não está distante da noção de “endogeneidade do direito”, de
Edelman et al. (1999) e Edelman (2004), apesar de apontar para outras dimensões da produção do direito.
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24Shaffer (2009) apresenta o que chamo de “arenas” como “interações institucionais” pelas quais o direito
seria moldado pelas atividades de empresas. Essa divisão é esclarecedora para análises interessadas na
construção de mercados, pois situa os âmbitos de produção do direito, ainda que vejam a relação entre
direito e empresas (ou mercados) como de influência recíproca.
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4. Considerações finais
A institucionalização dos mercados deve ser escrutinada como processo social dinâmico
e contingente. Olhando para como o direito é produzido, esse é o argumento central, é
possível endogeneizar o policymaking à análise da construção de mercados, como sugere
Pardi (2015).
Apesar de parecer mais evidente para alguns mercados – mercados regulados ou
que impliquem em conflitos distributivos mais agudos, como mercado financeiro,
mercado de derivados do petróleo, mercado de energia elétrica, e assim por diante –
entendo que a abordagem aqui apresentada seja esclarecedora para muitos outros
mercados. Isso porque o direito não apenas facilita e regula, mas estrutura relações em
mercados. Isto é, cria categorias elementares para a atividade econômica e torna
possível a estabilização de expectativas futuras em torno de acordos privados.
Processos de naturalização de sentidos normativos e de disputa conflitiva entre
ideias, agendas políticas e interesses acontecem também por meio do direito. A
institucionalidade é o resultado não da espontaneidade de atores racionais e egoístas,
mas da somatória das relações sociais conflitivas que se dão a partir de tais processos.
Uma abordagem sociojurídica ilumina os meandros dos mecanismos sociais que
sustentam que um mercado tenha certo desenho e não outros possíveis. Descrevê-los é
parte da tarefa crítica de desnaturalizar estruturas dadas como etéreas.
Além disso, essa abordagem ilumina a fragmentação das interações entre
estados e mercados e a multiplicidade de processos que as moldam. O estado não é um
ente monolítico e sua atuação em mercados deve ser percebida como parte da
construção (igualmente fragmentada) de seu poder e legitimidade, sendo o direito parte
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Sobre o autor
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Pedro Salomon Bezerra Mouallem
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Rafael Maffini1
1 UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-
mail: rafael.maffini@rmmgadvogados.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
7349-2411.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
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Resumo
O COVID-19 produzirá consequências ainda incalculáveis, em face da quais o Direito
precisará apresentar soluções satisfatórias para um momento de crise como este. O
Brasil, na linha do que vem ocorrendo numa série de outros países, está adotando
medidas de enfrentamento ao surto de coronavírus, de acordo com a distribuição de
competências legislativas e administrativas (materiais) prevista na Constituição Federal.
O presente artigo busca, de um lado, apresentar a sistematização de tais competências
constitucionais e, de outro, analisar criticamente se tal arranjo constitucional de funções
legislativas e administrativas é satisfatório ao enfrentamento da crise causada pelo
COVID-19.
Palavras-chave: COVID-19; Competências; Restrições.
Abstract
COVID-19 shall have unprecedented consequences. The Law needs to be able to present
satisfactory solutions for a moment of crisis like this. Brazil, similar to what has been
happening in several other countries, has been adopting measures to deal with the
coronavirus outbreak, observing the constitutional division of legislative and
administrative powers. On the one hand, this article aims to present the power
distribution of such constitutional competences and, on the other hand, to critically
analyze whether such a constitutional arrangement of legislative and administrative
functions is satisfactory in coping with the crisis caused by COVID-19.
Keywords: COVID-19; Competences; Restrictive Measures.
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1. Introdução
1 CARVALHO, Guilherme; MAFFINI, Rafael. Coronavírus e o "Direito Administrativo da crise". Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2020-mar-24/carvalho-maffini-coronavirus-direito-administrativo-crise. Acesso
em: 28 mar. 2020.
2 Vide, por exemplo, o art. 4º da Lei 13.979/2020, com a redação da pela Medida Provisória 926/2020, sem
prejuízo dos demais casos de contratação sem prévia licitação existentes na legislação ordinária (v.g. arts. 24
e 25, da Lei 8.666/1993; arts. 28, § 3º, 29 e 30, da Lei 13.303/2016).
3 Certamente serão muitas e muito complexas as situações ensejadoras de pedidos de equilíbrio econômico-
efeito, o art. 23, § 2º, da Lei Complementar nº 101/2000 prevê que no caso de ente público exceder o limite
com despesas de pessoal, “é facultada a redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos
vencimentos à nova carga horária”. Tal preceito legal, contudo, encontra-se suspenso por medida cautelar
deferida na ADI 2.238. Em sede de julgamento de mérito, a composição plenária do STF já formou maioria
para a declaração de inconstitucionalidade de tal preceito, em razão da irredutibilidade vencimental,
insculpida no art. 37, XV, da CF. Contudo, não é incogitável que o STF dê à questão nova leitura, neste ou em
outro processo, no tocante aos problemas fiscais e orçamentários que serão inevitavelmente causados pelo
COVID-19.
5 Aqui, calha recordar o disposto no art. 22, da LINDB, com a redação dada pela Lei 13.655/2018, pelo qual
“Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais
do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.
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6 O texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização
Mundial de Saúde foi promulgado através do Decreto 10.212, também de 30 de janeiro de 2020.
7 Para o aprofundamento de tal relato, vide: VENTURA, Deisy de Freitas Lima; AITH, Fernando Mussa
Abujamra; RACHED, Danielle Hanna. “A emergência do novo coronavírus e a “lei de quarentena” no Brasil”.
Revista Direito e Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/49180/32876. Acesso em 19/03/2020. DOI:
10.1590/2179-8966/2020/49180.
8 Quarentena é o instrumento jurídico previsto no art. 3º, II, da Lei 13.979/2020, cuja definição é prevista no
art. 2º, II, da Lei 13.979/2020, como sendo toda e qualquer “restrição de atividades ou separação de pessoas
suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais,
meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação
ou a propagação do coronavírus”.
9 Em alguma medida, tal disparidade decorre do fato de que a Lei 13.949/2020, ao indicar as autoridades
competentes para a imposição de quarentena, indicou o Ministério da Saúde (art. 3º, § 7º, I) bem como os
gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde (art. 3º, § 7º, II), tendo sido tal
autorização dada pelo art. 4º, § 1º, da Portaria nº 356/GM/MS, de 11 de março de 2020 (“a medida de
quarentena será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser
editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde
ou superiores em cada nível de gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios de
comunicação”).
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13.979/2020, o art. 3º, § 9º, segundo o qual os serviços públicos e as atividades essenciais
deveriam ser objeto de decreto presidencial 10.
Ocorre que, apesar de o art. 3º, § 1º, da Lei 13.979/2020 determinar que as
medidas de enfrentamento ao coronavírus “somente poderão ser determinadas com base
em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e
deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à
preservação da saúde pública”, já se percebe uma tensão de interesses, inclusive no plano
ideológico, que polarizam, de um lado, o apoio à adoção de medidas mais restritivas,
propagado normalmente pelos integrantes dos setores médicos público e privado; de
outro, situa-se o apoio à flexibilização das restrições estatais, normalmente capitaneado
pelo setor produtivo e por alguns segmentos do Estado brasileiro 11.
Diante de tal tensão, a qual já produz contradições entre as posturas decisórias
dos mais diversos entes federativos (União, Estados, Município e Distrito Federal) é
necessário analisar a distribuição constitucional de competências em matéria de saúde,
para que se compreendam os limites de cada um dos protagonistas das medidas estatais
que já foram e ainda estão sendo adotadas no enfrentamento do coronavírus. O
desenvolvimento de tal tema tratará, num primeiro momento, da questão da
competência legislativa em matéria de saúde e, num segundo momento, serão analisadas
as competências administrativas ou materiais relacionados com a proteção da saúde. A
par de da compreensão da distribuição de competências legislativas e materiais, o
presente artigo analisará criticamente se tal arranjo constitucional de funções legislativas
e administrativas é satisfatório ao enfrentamento da crise causada pelo COVID-19. Isso
porque, se de um lado, a Constituição, como será a seguir melhor desenvolvido, assegura
a competência legislativa da União para a edição de normas gerais em matéria de saúde,
ela reconhece a competência administrativa (ou material) concorrente de todos os entes
federativos. A partir deste aparente paradoxo, é que se analisará criticamente se a
10 Editou-se, no mesmo dia 20/03/2020, o Decreto 10.282, já alterado pelo Decreto 10.292, de 25/03/2020,
o qual indicou um rol exemplificativos de serviços públicos e atividades essenciais, que haveriam de ter seu
exercício e funcionamento resguardados. Editou-se, também, o Decreto 10.288, de 22/03/2020, que
reconheceu como essenciais as atividades relacionadas com a imprensa.
11 A decisão sobre qual dos interesses merece maior proteção não é singela, inclusive porquanto pressupõe
dados estatísticos ainda desconhecidos quanto ao COVID-19. Se de um lado, as medidas mais restritivas
importarão em atraso na proliferação do surto, dando à sociedade brasileira mais tempo para se preparar e
ampliar sua rede de atendimento médico, de outro, os efeitos da recessão causada por medidas mais
restritivas poderão ser também catastróficos. Ou seja, a parêmia proposta pelo médico renascentista
Paracelso, no sentido de que “a diferença entre remédio e veneno está na dose de prescrição”, afigura-se
plenamente subsumível ao momento que estamos vivenciando.
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12 Da conjugação de tais quadrantes, somado ao fato de que a União ora legisla em âmbito federal, ora em
âmbito nacional, exsurgem, portanto, as seguintes combinações: a) competências legislativas privativas da
União, de âmbito nacional, ou seja, quando suas normas são aplicáveis a todos os entes federativos (ex. art.
22, I, da CF); b) competências legislativas privativas da União, de âmbito federal, quando suas normas são
aplicáveis somente no plano federal; c) competências legislativas privativas dos Estados-membros; d)
competências legislativas privativas do Distrito Federal; e) competências legislativas privativas dos
Municípios; f) competências legislativas concorrentes da União, estados-membros, Distrito Federal e
Municípios (com diferentes arranjos de concorrência legislativa); g) competências administrativas da União;
h) competências administrativas dos Estados-membros; i) competências administrativas do Distrito Federal;
j) competências administrativas dos Municípios; k) competências administrativas concorrentes da União,
Estados-membros, Distrito Federal e Municípios (com diferentes arranjos de concorrência material).
13 Neste sentido, MAFFINI, Rafael. Elementos de Direito Administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2016, p. 27-30.
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Distrito Federal, em razão do disposto no art. 30, II, da CF, quanto à concorrência
legislativa a que se refere o art. 2414, conforme será a seguir pormenorizado.
Desta forma, para a legislação sobre os temas tratados pelo art. 24, da CF, todos
os entes federativos possuem competência para a produção de normas legais,
observados, todavia, os seguintes parâmetros: a) a União terá competência para a edição
de normas gerais (art. 24, § 1º, da CF); b) existindo normas gerais editadas pela União, os
demais entes federativos preservarão sua competência suplementar (art. 24, § 2º e art.
30, II, da CF); c) na falta de normas gerais estabelecidas por lei da União, os demais entes
federativos possuirão competência legislativa plena, visando a atender às suas respectivas
peculiaridades (art. 24, § 3º e art. 30, I, da CF); d) no caso de edição superveniente de
normas gerais federais, restará suspensa a eficácia da legislação dos demais entes
federativos, no que lhe for contrário (art. 24, § 4º, da CF)15.
Inclui-se no rol de temas objeto da competência legislativa concorrente a que
se refere o art. 24 da CF, a defesa da saúde (art. 24, XII, da CF). Desta forma, em matéria
de saúde, mostra-se evidente a competência da União para a edição de normas gerais,
como são as contidas na Lei 13.979/2020, que trazem consigo uma política pública
nacional de combate ao coronavírus16.
Daí porque merece destaque a posição propagada por Dalmo de Abreu Dallari,
para quem:
No sistema constitucional brasileiro foi dada competência à União para
fixar normas gerais sobre saúde. Essas normas, que devem manter-se nos
limites de "gerais" ou "principiológicas" são obrigatórias para a União, os
Estados, os Municípios e o Distrito Federal, devendo ser observadas como
parâmetros e limites para os legisladores ordinários federais, estaduais e
municipais, assim como para os respectivos agentes administrativos.
Entretanto, carecem de eficácia jurídica e, portanto, não deverão ser
14 Os Municípios também participam de tal concorrência legislativa em razão do disposto no art. 30, II, da CF
(“compete aos Municípios [...] suplementar a legislação federal e a estadual no que couber). Neste sentido,
Fernanda Dias Menezes de Almeida assevera, a propósito da competência legislativa concorrente, que “se
mostra válido entender que aos Municípios também se conferiu participação na produção normativa
concorrente, em virtude do disposto no art. 30, II, que lhes dá competência para suplementar a legislação
federal e estadual no que couber” (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Comentários ao Art. 24. In:
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (coord).
Comentários à Constituição do Brasil. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 810).
15 Sobre o tema, vide SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI; Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
legislativas, a lição de Raul Machado Horta, para quem “A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma
moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado,
mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às
peculiaridades locais" (HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte,
1995, p. 419-420).
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17 DALLARI, Dalmo de Abreu. Normas gerais sobre saúde: cabimento e limitações. Disponível em
http://www.saude.mppr.mp.br/pagina-359.html. Acesso em: 28 mar. 2020.
18 Neste sentido, lembre-se da advertência feita por Alexandre de Moraes, para quem “compete à União
legislar sobre normas gerais protetivas da saúde pública, enquanto aos Estados e Distrito Federal compete a
complementação dessas normas. Nem os Estados/Distrito Federal poderão invadir a disciplina sobre normas
gerais nem a União poderá editar normas por demais específicas, sob pena de inconstitucionalidade por
desrespeito à divisão de competências concorrentes feita pela Constituição Federal” (MORAES, Alexandre.
Competências administrativas e legislativas para vigilância sanitária de alimentos. Disponível em
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista53/competencias.htm. Acesso em: 28 mar.
2020.
19 Definição contida no Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da
Organização Mundial de Saúde, o qual foi promulgado no Brasil através do Decreto 10.212, também de 30 de
janeiro de 2020.
20 Isso, sem prejuízo de eventual competência de que, no exercício das competências administrativas haja
alguma customização das medidas nacionais de enfrentamento às respectivas realidades regionais ou locais
de cada ente federativo, conforme será demostrado no item a seguir.
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21 Sobre o fenômeno do bloqueio de competências, lembre-se da lição de Vasco Della Giustina, pelo qual a
existência d e normas gerais editadas pela União “serve, apenas para provar ou demonstrar que o Estado e o
Município estão impedidos ou bloqueados de editar normas a respeito da matéria” (DELLA GIUSTINA, Vasco.
Controle de Constitucionalidade das Leis. 2ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 163).
22 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988, 6. ed. São Paulo: Atlas, 2013,
p. 141.
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23 CF, art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre […].
24 Neste sentido, destaca-se o seguinte precedente do STF: LEIS 10.927/91 E 11.262 DO MUNICÍPIO DE SÃO
PAULO. SEGURO OBRIGATÓRIO CONTRA FURTO E ROUBO DE AUTOMÓVEIS. SHOPPING CENTERS, LOJAS DE
DEPARTAMENTO, SUPERMERCADOS E EMPRESAS COM ESTACIONAMENTO PARA MAIS DE CINQÜENTA
VEÍCULOS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. O Município de São Paulo, ao editar as Leis l0.927/91 e 11.362/93,
que instituíram a obrigatoriedade, no âmbito daquele Município, de cobertura de seguro contra furto e roubo
de automóveis, para as empresas que operam área ou local destinados a estacionamentos, com número de
vagas superior a cinqüenta veículos, ou que deles disponham, invadiu a competência para legislar sobre
seguros, que é privativa da União, como dispõe o art. 22, VII, da Constituição Federal. 2. A competência
constitucional dos Municípios de legislar sobre interesse local não tem o alcance de estabelecer normas que
a própria Constituição, na repartição das competências, atribui à União ou aos Estados. O legislador
constituinte, em matéria de legislação sobre seguros, sequer conferiu competência comum ou concorrente
aos Estados ou aos Municípios. 3. Recurso provido (RE 313060, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda
Turma, julgado em 29/11/2005, DJ 24-02-2006 PP-00051 EMENT VOL-02222-03 PP-00538 LEXSTF v. 28, n.
327, 2006, p. 226-230 RT v. 95, n. 851, 2006, p. 128-130).
25 Quanto ao ponto, Ana Paula de Barcellos ensina que “os Municípios não são mencionados no caput do art.
24, mas o art. 30, II, prevê que compete a eles suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.
Assim, da conjugação do art. 24 com o art. 30, II, tem-se que as competências legislativas concorrentes podem
incluir todos os entes federativos: à União cabe estabelecer normas gerais, aos Estados compete a edição de
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terão eficácia jurídica suspensa também as regras municipais editadas antes da Lei
13.979/2020, que com ela conflitem.
Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet afirma que “tendo em conta o caráter
suplementar da legislação municipal, em caso de conflito deve prevalecer a legislação
federal ou estadual, de tal sorte que a superveniência de lei estadual ou federal contrária
à lei municipal suspende a eficácia da última”26. Do mesmo modo, a lição de Gilmar
Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, para quem a competência atribuída aos
Municípios pelo art. 30, II, da CF há de respeitar as normas federais e estaduais existentes,
de modo que “não é dado ao Municípios dispor em sentido que frustre o objetivo buscado
pelas leis editadas no plano federal ou estadual. A superveniência de lei federal ou
estadual contrária à municipal suspende a eficácia desta”27.
Por fim, como será demonstrado no item a seguir, o fenômeno do bloqueio de
competências causado pelas normas gerais editadas pela União, incide tão somente sobre
a competência legislativa dos demais entes federativos, não se lhes retirando a
competência, em comum com a União, no tocante às funções administrativas de proteção
da saúde.
Assim, a título de conclusão deste tópico, tem-se que: a) a União possui
competência para legislar em matéria de defesa da saúde (art. 24, XII, da CF); b) embora
persistam as competências legislativas dos demais entes federativos (Estados-membros,
Distrito Federal e Municípios) para a adaptação de suas normas às normas gerais
federais/nacionais (art. 24, § 2º e art. 30, II), estas têm em relação àquelas uma função de
bloqueio, no sentido de que as normas anteriores que lhe forem conflitantes serão
suspensas (art. 24, § 4º) e de que as normas supervenientes que lhe contrariarem serão
inconstitucionais; c) as normas contidas na Lei 13.979/2020 são normas gerais de defesa
da saúde a que se refere o art. 24, XII, da CF, de cunho nacional e de obediência obrigatória
por Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, sem prejuízo das suas competências
administrativas a seguir analisadas.
normas suplementares, e os Municípios poderão ainda suplementar esses dois conjuntos normativos federal
e estadual, no que couber” (BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de Direito Constitucional, 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019, p. 252).
26 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI; Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional, 8.
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razão pela qual foi deferida a medida acauteladora tão somente “para tornar explícita, no
campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente”.
Tal decisão, alinha-se bem ao que dispõe a Constituição Federal, eis que ressalva
a competência legislativa da União para a edição de normas gerais, ao mesmo tempo em
que reconhece a competência administrativa (ou material) concorrente de todos os entes
federativos.
Partindo-se de tais premissas, absolutamente consentâneas com a Constituição
Federal, como já referido, surgem algumas questões merecedoras de destaque.
Primeiramente, é óbvio que o exercício das competências administrativas (ou materiais),
de cada um dos entes federativos haverá de observar os ditames veiculados por normas
gerais editadas pela União.
Disso resulta, pois, que as competências administrativas de competência de
todos os entes federativos para o enfrentamento do COVID-19 sujeitam-se aos ditames
da Lei 13.979/2020. Ou seja, evidentemente trata-se de competências administrativas
que não podem se desgarrar dos instrumentos de enfrentamento previstos no artigo 3º,
da referida lei30.
Aliás, lembre-se que, em razão do acima referido, nem mesmo lei estadual,
distrital ou municipal poderiam ampliar, ou mesmo restringir as medidas contempladas
na Lei 13.979/2020. Contudo, desde que observados tais limites contidos nas normas
gerais editadas pela União, os entes federativos poderiam, no exercício de
regulamentação do exercício do poder de polícia administrativa31, editar suas respectivas
30 Lei Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente
do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes
medidas: I - isolamento; II - quarentena; III - determinação de realização compulsória de: a) exames médicos;
b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou e)
tratamentos médicos específicos; IV - estudo ou investigação epidemiológica; V - exumação, necropsia,
cremação e manejo de cadáver; VI - restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme
recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias,
portos ou aeroportos; VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e
fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada
e saída do País; e b) locomoção interestadual e intermunicipal; VII - requisição de bens e serviços de pessoas
naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e VIII -
autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem
registro na Anvisa, desde que: a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e b) previstos em ato do
Ministério da Saúde.
31 Aliás, quanto ao poder de polícia administrativa (ordenação administrativa), importante destacar que o art.
3º, § 4º, da Lei 13.979/2020, estabelece que “As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas
previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei”.
Demais disso, em 17/03/2020, restou editada a Portaria Interministerial 5/2020, dos Ministros da Saúde e da
Justiça e da Segurança Pública, a qual ressalta a compulsoriedade das medidas impostas, com a conseguinte
responsabilização civil, penal e administrativa pelo descumprimento das medidas. Especificamente quanto ao
poder de polícia administrativa, o art. 8º, da respectiva portaria dispõe que “visando a evitar a propagação do
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normas legais ou infralegais. Daí porque o sem número de decretos editados por Estados-
membros, pelo Distrito Federal ou por Municípios nos últimos dias.
Digno de destaque que a própria Lei 13.979/2020 possui norma que propõe uma
divisão de competências administrativas, no seu art. 3º, § 7º. Considerado o fato de que
se trata de divisão de competências contidas em norma geral de competência da União
(art. 24, XII, da CF), é possível a conclusão de que a referida distribuição de competências
materiais constante da Lei 13.979/2020 não viola ao disposto no art. 23, II, também da
CF.
De acordo com tal distribuição de atribuições referida no art. 3º, § 7º, da Lei
13.979/2020, todas as medidas referidas no art. 3º poderiam ser promovidas pelo
Ministério da Saúde.
Outras das restrições poderiam ser levadas a efeitos pelos gestores locais de
saúde, desde que haja autorização do Ministério da Saúde32, por exemplo: isolamento;
quarentena; exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; restrição excepcional
e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e
fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou
aeroportos; e autorização excepcional e temporária para a importação de produtos
sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que registrados por autoridade
sanitária estrangeira e previstos em ato do Ministério da Saúde.
Por fim, há medidas que podem ser promovidas pelos gestores locais de saúde,
independentemente de autorização do Ministério da Saúde, como determinação de
realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras
clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas, ou tratamentos médicos específicos;
estudo ou investigação epidemiológica; requisição de bens e serviços de pessoas naturais
e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa.
COVID-19 e no exercício do poder de polícia administrativa, a autoridade policial poderá encaminhar o agente
à sua residência ou estabelecimento hospitalar para cumprimento das medidas estabelecidas no art. 3º da
Lei nº 13.979, de 2020, conforme determinação das autoridades sanitárias”. De qualquer modo, para o
aprofundamento do tema, vide BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação –
transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do Direito Administrativo Ordenador. Belo
Horizonte: Fórum, 2017 e SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. 1º ed. 2ª tir. São Paulo:
Malheiros, 1997.
32 Quanto à quarentena, a autorização foi dada pelo art. 4º, § 1º, da Portaria nº 356/GM/MS, de 11 de março
de 2020 (“a medida de quarentena será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente
motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou
Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente
divulgada pelos meios de comunicação”).
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Embora não seja possível realizar, neste momento, uma análise aprofundada de
todas as medidas referidas, duas delas serão aqui tratadas com um pouco mais de
atenção.
A primeira delas diz com a requisição administrativa referida no art. 3º, VII, da
Lei 13.979/2020, segundo a qual o Ministério da Saúde ou os gestores locais de saúde
podem determinar a “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas,
hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”. Ora, tal
medida possui estatura e expressa previsão constitucional (art. 5º, XXV33), além de restar
prevista no a art. 1.228, § 3º, do Código Civil34, consiste no uso ou na subtração
temporária, unilateral e autoexecutória de certos bens e serviços, em caso de perigo
público iminente. Quanto a tal instituto jurídico, trata-se de conduta administrativa que
pode ser muito útil no combate do COVID-19. Contudo, duas patologias sistêmicas podem
ocasionar, inclusive, desabastecimento de produtos imprescindíveis ao combate do
COVID-19. Primeiramente – e aí uma crítica ao disposto no art. 3º, § 7º, III, da Lei
13.979/2020 –, ao se ter atribuído tal competência a todos os gestores locais da saúde,
sem necessidade de autorização do Ministério da Saúde, viabiliza-se que milhares de
entes federativos imponham requisições administrativas de modo desarticulado,
podendo produzir, de um lado, o desabastecimento de produtos essenciais ao combate
do coronavírus e, de outro, o desvirtuamento de uma política pública que há de ser
nacionalmente articulada. Numa situação extrema, imagine-se uma requisição
administrativa de equipamentos médicos, promovida por um só Município que acabe por
comprometer o abastecimento a todo os demais Municípios de um Estado-membro.
Parece que medida tão importante haveria de ser articulada nacionalmente de modo que
o ideal é que, de lege ferenda, o art. 3º, VII, fosse “transferido” do art. 3º, § 7º, III para o
art. 3º, § 7º, I ou para o art. 3º, § 7º, II, para fins de que as requisições administrativas
fossem, respectivamente, ou de competência privativa do Ministério da Saúde ou que ao
menos fosse necessária a autorização deste para que os gestores locais da saúde
pudessem promovê-las.
A segunda questão relativa à requisição administrativa diz com a previsão de
posterior indenização, contemplada tanto no art. 5º, XXV, da CF, quanto no art. 3º, VII, da
33 CF, Art. 5º, XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade
particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.
34 CC, Art. 1.228 § 3º - O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade
ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
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Lei 13.979/2020. Ora, a ratio da regra pela qual a indenização seja posterior diz com o
próprio fundamento da requisição administrativa, qual seja, a situação de perigo público
iminente, a justificar que a medida administrativa possa ser tomada antes mesmo de
discussões sobre os valores devidos pela subtração ou pela privação dos bens e serviços.
Num paralelo com a desapropriação, cuja indenização há de ser justa e prévia (art. 5º,
XXIV, da CF), a requisição administração mostra-se mais urgente e, portanto, relega para
um momento posterior eventuais controvérsias sobre a indenização devida. No entanto,
uma advertência aqui se impõe, especialmente se levada em consideração a realidade da
grande maioria dos fabricantes ou importadores de bens relacionados com a saúde e,
portanto, agentes econômicos imprescindíveis ao combate do COVID-19. Isso porque se
as requisições administrativas forem realizadas sem que as indenizações ocorram num
momento imediatamente posterior, em poucos dias, elas poderão descapitalizar toda a
cadeia produtiva de tais produtos a ponto de se comprometer todo o abastecimento e
um setor tão relevante e, ao mesmo tempo, sensível neste momento.
A outra medida administrativa aqui destacada é quarentena, consistente no
instrumento mais amplo de combate ao coronavírus, entre os conhecidos até o momento,
porquanto ensejador de restrições de atividades e pessoas, visando a minimizar ou
mesmo retardar a proliferação do surto. Tal medida, certamente a mais polêmica em
razão do potencial conflito de interesses econômicos e sanitários 35, suscita uma questão
muito relevante: a compatibilização das medidas administrativas perpetradas pelos
variados entes federativos (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), a
partir das normas contidas na Lei 13.979/2020. Como já apontado nas notas introdutórios
deste estudo, a partir da Lei 13.979/2020 e a partir da autorização dada pelo art. 4º, § 1º,
da Portaria nº 356/GM/MS, de 11 de março de 2020, tal medida, além de poder ser
determinada pelo próprio Ministério da Saúde,
mediante ato administrativo formal e devidamente motivado [...] deverá
ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito
Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de
gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios
de comunicação.
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36 Sobre o tema, vide: SCHWIND, Rafael Wallbach. Reflexões sobre a lei 13.979/20 e o decreto 10.282/20:
descabimento de restrições a serviços essenciais sem prévia articulação com o poder concedente e a agência
reguladora. Disponível em: https://m.migalhas.com.br/depeso/322804/reflexoes-sobre-a-lei-13979-20-e-o-
decreto-10282-20-descabimento-de-restricoes-a-servicos-essenciais-sem-previa-articulacao-com-o-poder-
concedente-e-a-agencia-reguladora. Acesso em: 28 mar. 2020.
37 Também disposto no art. 3º, § 6º, do Decreto 10.282/2020.
38 Também disposto no art. 3º, § 3º, do Decreto 10.282/2020.
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39 Decreto 10.282/2020, art. 3º, § 1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao
atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos,
colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como: I - assistência à saúde,
incluídos os serviços médicos e hospitalares; II - assistência social e atendimento à população em estado de
vulnerabilidade; III - atividades de segurança pública e privada, incluídas a vigilância, a guarda e a custódia de
presos; IV - atividades de defesa nacional e de defesa civil; V - transporte intermunicipal, interestadual e
internacional de passageiros e o transporte de passageiros por táxi ou aplicativo; VI - telecomunicações e
internet; VII - serviço de call center; VIII - captação, tratamento e distribuição de água; IX - captação e
tratamento de esgoto e lixo; X - geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, incluído o
fornecimento de suprimentos para o funcionamento e a manutenção das centrais geradoras e dos sistemas
de transmissão e distribuição de energia, além de produção, transporte e distribuição de gás natural; XI -
iluminação pública; XII - produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por
meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, higiene, alimentos e bebidas; XIII - serviços funerários;
XIV - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, de equipamentos e de materiais nucleares; XV -
vigilância e certificações sanitárias e fitossanitárias; XVI - prevenção, controle e erradicação de pragas dos
vegetais e de doença dos animais; XVII - inspeção de alimentos, produtos e derivados de origem animal e
vegetal; XVIII - vigilância agropecuária internacional; XIX - controle de tráfego aéreo, aquático ou terrestre;
XX - serviços de pagamento, de crédito e de saque e aporte prestados pelas instituições supervisionadas pelo
Banco Central do Brasil; XXI - serviços postais; XXII - transporte e entrega de cargas em geral; XXIII - serviço
relacionados à tecnologia da informação e de processamento de dados (data center) para suporte de outras
atividades previstas neste Decreto; XXIV - fiscalização tributária e aduaneira; XXV - produção e distribuição de
numerário à população e manutenção da infraestrutura tecnológica do Sistema Financeiro Nacional e do
Sistema de Pagamentos Brasileiro; XXVI - fiscalização ambiental; XXVII - produção de petróleo e produção,
distribuição e comercialização de combustíveis, gás liquefeito de petróleo e demais derivados de petróleo;
XXVIII - monitoramento de construções e barragens que possam acarretar risco à segurança; XXIX -
levantamento e análise de dados geológicos com vistas à garantia da segurança coletiva, notadamente por
meio de alerta de riscos naturais e de cheias e inundações; XXX - mercado de capitais e seguros; XXXI -
cuidados com animais em cativeiro; XXXII - atividade de assessoramento em resposta às demandas que
continuem em andamento e às urgentes; XXXIII - atividades médico-periciais relacionadas com a seguridade
social, compreendidas no art. 194 da Constituição; XXXIV - atividades médico-periciais relacionadas com a
caracterização do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial da pessoa com deficiência, por meio
da integração de equipes multiprofissionais e interdisciplinares, para fins de reconhecimento de direitos
previstos em lei, em especial na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência;
XXXV - outras prestações médico-periciais da carreira de Perito Médico Federal indispensáveis ao
atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade; XXXVI - fiscalização do trabalho; XXXVII - atividades
de pesquisa, científicas, laboratoriais ou similares relacionadas com a pandemia de que trata este Decreto;
XXXVIII - atividades de representação judicial e extrajudicial, assessoria e consultoria jurídicas exercidas pelas
advocacias públicas, relacionadas à prestação regular e tempestiva dos serviços públicos; XXXIX - atividades
religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde; e XL - unidades
lotéricas.
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40 Estes é o objeto da ADPF 666, cujo pedido cautelar ainda pende de apreciação, diante de restrições à
locação de veículos por parte de alguns Estados-membros e Municípios.
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41 Neste sentido, lembre-se do disposto no art. 30, da LINDB, com a redação dada pela Lei 13.655/2018, pelo
qual “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas,
inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”. Daí porque se impõe
concordar com Egon Bockmann Moreira e Paula Pessoa Pereira, para quem “por meio do art. 30, torna-se
patente o dever de incrementar a segurança jurídica por meio de atos regulamentares e não regulamentares,
formalizando a segurança e a estabilidade indispensáveis para o Estado de Direito. Demais disso, é celebrada
a Administração autovinculante – em verdadeira proibição do venire contra factum proprium – e se confere
legitimidade reforçada às suas decisões” (MOREIRA, Egon Bockmann; PEREIRA, Paula Pessoa. Art. 30 da LINDB
- O dever público de incrementar a segurança jurídica. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição
Especial - Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - LINDB (Lei nº 13.655/2018),
p. 243-274, nov. 2018, p. 270).
42 Aqui, pressuposto o fato de que os decretos presidenciais se valeram adequadamente dos critérios
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43 Pode-se indicar, quanto ao ponto, um exemplo real: o Decreto Estadual 55.154, de 1º de abril de 2020, do
Estado do Rio Grande do Sul não cria vedação à construção civil (ainda eu proibido o atendimento ao público
que importe aglomeração ou grande fluxo de clientes), ao passo que o Decreto Municipal 20.534, de 31 de
março de 2020, do Município de Porto Alegre, proíbe a atividade de construção civil ressalvadas somente as
obras realizadas para fins de saúde, segurança e educação.
44 Quanto ao ponto, vide matéria jornalística que evidencia comportamentos bastante diversos do Presidente
da República e Governadores do Distrito Federal e dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/03/21/interna_politica,835720/pandemi
a-de-covid-19-agrava-a-crise-politica-entre-bolsonaro-e-governa.shtml
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Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública. 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
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4. Considerações finais
O Mundo passa por uma grave crise, causada pela pandemia do COVID-19. Ainda não é
possível compreender os impactos que tal surto ocasionará, embora já se possa cogitar
de que as soluções aos inúmeros problemas advindos da pandemia dependerão de
intepretações jurídicas que revisitarão inclusive institutos já aparentemente
sedimentados.
Neste artigo, tratou-se da questão que diz com a distribuição constitucional de
competências legislativas e administrativas (ou materiais).
Buscou-se demonstrar que a competência da União para editar normas gerais
em matéria de saúde (art. 24, XII, CF) deve ser devidamente articulada com a competência
administrativa comum de todos os entes federados (art. 23, II, da CF). No exercício das
competências administrativas, os entes federativos devem primar por uma atuação
cooperada, mas havendo divergências entre as medidas empregadas, sobretudo as
medidas de quarentena, devem predominar aquelas que estiverem mais bem
fundamentadas em critérios científicos, atendando-se para as respectivas realidades
regionais ou locais sobre as quais incidem, minimizando, pois, interferências pessoais e
ideológicas.
Porto Alegre, RS, 02 de abril de 2020 (em quarentena).
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5. Referências bibliográficas
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Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/49180>. Acesso em:
19/03/2020.
Sober o autor
Rafael Maffini
Doutor e Mestre em Direito pela UFRGS, Professor Adjunto na UFRGS, Porto Alegre,
RS, Brasil. Advogado. E-mail: rafael.maffini@rmmgadvogados.com.br
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 353-378.
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Rhaysa Ruas¹
¹ Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
rhaysaruas@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1726-4363.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2020, p.379-415.
Rhaysa Ruas
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/46086| ISSN: 2179-8966
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Resumo
O presente artigo visa discutir os traços distintivos da Teoria da Reprodução Social (TRS).
Argumento que, ao resgatar a noção marxiana de totalidade social, a TRS avança em
relação à formulações anteriores da perspectiva unitária no sentido de desenvolver uma
compreensão da dinâmica que envolve a produção capitalista e a reprodução da vida
cotidiana da classe trabalhadora, i.e., as relações de opressão, exploração, expropriação
e alienação nas sociedades contemporâneas. Trata-se de importante e distinta chave de
análise das interações entre classe, raça, gênero e sexualidade no capitalismo.
Palavras-chave: Teoria da Reprodução Social; Gênero; Raça; Totalidade Social.
Abstract
This paper aims to discuss the distinctive aspects of Social Reproduction Theory (SRT). I
argue that by recovering Marx’s notion of social totality, SRT moves forward from
previous formulations from the unitary perspective in order to develop a understanding
of the dynamics surrounding capitalist production and the reproduction of the daily life
of the working class, i.e., the relations of oppression, exploitation, expropriation and
alienation in contemporary societies. This could be an important interpretative key for
the comprehension of class, race, gender and sexuality interactions in capitalism.
Keywords: Social Reproduction Theory; Gender; Race; Social Totality.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2020, p.379-415.
Rhaysa Ruas
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Introdução
A Teoria da Reprodução Social (TRS) é fruto de um acúmulo histórico de debates que, tão
antigos quanto o próprio capitalismo, foram retomados no interior de movimentos
feministas-socialistas1 e antirracistas após as lutas por emancipação e reconhecimento
das décadas de 1950 e 1960 nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa ocidental.
Em um primeiro momento2, a nascente perspectiva da reprodução social buscou
desenvolver um problema antigo colocado diante da teoria marxista do valor-trabalho:
incluir uma compreensão sobre as formas não-remuneradas de trabalho e responder qual
seria a base material da opressão das mulheres no capitalismo (VOGEL, 2013 [1983]).
Entretanto, tal perspectiva se diferenciava de outras elaborações teóricas que,
contemporâneas a ela, buscaram explicar a opressão de gênero no capitalismo. Isto
porque ao invés de partir de uma concepção dualista sobre a realidade social (i.e.,
considerar a persistência de um sistema patriarcal pré-capitalista independente e
transhistórico que em uma determinada fase de seu desenvolvimento se combinaria com
o sistema capitalista), suas raízes podem ser encontradas na busca por uma explicação
unitária e sistêmica para este fenômeno (YOUNG, 1981; VOGEL, 2013 [1983]).
1 Diante das dificuldades em desenhar uma linha divisória clara entre o feminismo-socialista e o feminismo-
marxista, neste trabalho, sigo a proposta de Ferguson e McNally (2017 [2013], p. 27), e me refiro ao
feminismo-marxista para designar a tradição que se identifica, do ponto de vista teórico, explicitamente com
o materialismo histórico dialético e com a crítica da economia política. O feminismo-socialista designa,
portanto, um campo mais amplo e diverso. Neste sentido, ver também Vogel (2013 [1983], p. 183).
2 Este primeiro momento pode ser identificado ainda no final do século XIX, através do ativismo e teorização
de mulheres socialistas. O debate central levantado por elas sobre o trabalho doméstico e o caráter da
opressão feminina – foi retomado, décadas mais tarde no bojo do Debate sobre o Trabalho Doméstico,
iniciado em 1969 com a publicação do artigo The Political Economy of Women’s Liberation [A economia
política da libertação das mulheres] de Margaret Benston nos EUA. Este debate tomou a forma de uma série
de artigos divulgados e discutidos por intelectuais feministas-socialistas, em um esforço internacional que,
embora concentrado no Norte Global, procurou levar as experiências das mulheres – até então
epistemologicamente marginalizadas – ao coração da teoria marxista sobre o capitalismo (MORTON, 1970;
DALLA COSTA; JAMES, 1971, SECCOMBE, 1974). Inconcluso, este debate se ocupou de duas questões centrais:
1. se o trabalho doméstico produzia valor ou mais-valia (e, portanto, se era produtivo ou improdutivo); e 2.
se trabalho doméstico constituía um modo de produção em si mesmo, distinto ou análogo ao modo de
produção capitalista. Vogel (2013 [1983]) considera a primeira questão já superada pelas feministas-marxistas
que a precederam, tais como Benston (1969) e Young (1981): o trabalho doméstico produz apenas valor de
uso, não valor de troca e, portanto, não produz diretamente mais-valia. Essa é a principal diferença entre a
perspectiva da reprodução social tal como defendida pela TRS e a de Silvia Federici. No que tange à segunda
questão, grande parte das autoras envolvidas no debate concluíram que “possivelmente”, o trabalho
doméstico seria um modo de produção próprio, que opera de acordo com uma lógica distinta, pré- ou não-
capitalista (VOGEL, 2013 [1983], p. 28-29). Para Vogel, entretanto, esta conclusão indica que nenhuma autora
do debate sobre o trabalho doméstico foi capaz de superar completamente a perspectiva dualista, deixando
o caráter dessa relação inexplicado (VOGEL, 2013 [1983], p. 134-135).
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uma teoria unitária seria fundamental para estabelecer uma alternativa viável à
totalidade das relações sociais de desigualdade que compõem o mundo em que vivemos.
Entretanto, historicamente, este projeto foi mais bem postulado do que de fato realizado.
Em diversas elaborações feministas-marxistas, atingia-se apenas uma visão parcial da
realidade e recorrentemente a análise das relações raciais ficava de fora, sintoma
decorrente da universalização da categoria “mulher” à luz da experiência das mulheres
brancas nos Estados de Bem-Estar Social europeus e norte-americanos. Estes projetos
negligenciavam a totalidade das relações de gênero, sexualidade, raça e classe, ora
hierarquizando-as, ora invisibilizando algumas dessas dimensões, recaindo nas mesmas
análises dualistas que eram objeto de sua crítica.
A construção de uma teoria unitária das relações sociais no capitalismo,
portanto, continua em aberto. Forjada por formulações contemporâneas que buscaram
superar as limitações históricas da construção desta perspectiva, a TRS se reaproximou
da noção marxiana de totalidade social, recuperando-a explicitamente em contribuições
mais recentes como, por exemplo, as obras de Bhattacharya (2017b) e McNally (2017).
Este artigo busca apresentar os principais traços distintivos da TRS, que surge como
reação prático-teórica às três décadas de acumulação neoliberal e traduz uma importante
possibilidade de renovação da teoria marxista no século XXI. Para tanto, no primeiro item
faço uma reconstrução da noção marxiana de totalidade social, que deve servir de chave
para a compreensão da proposta unitária tal como apreendida hoje pela TRS. Em seguida,
passo à uma breve exposição da obra de Vogel (2013 [1983]), primeira sistematização da
teoria unitária a reconceitualizar a crítica marxiana do capital a partir da perspectiva da
reprodução social e ponto de partida da TRS. Meu argumento central é que embora Vogel
esboce preocupação com a noção de totalidade ao localizar a dinâmica político-
econômica da relação entre produção de mercadorias e reprodução da vida, e nesse
sentido, avance em relação às perspectivas que lhe eram contemporâneas, sua
interpretação reflete os desafios de se elaborar uma teoria unitária, o que se evidencia,
dentre outras coisas, por sua teorização cega à raça. No terceiro item, reconstruo
brevemente o cenário de crise do marxismo que dominou o debate acadêmico na década
de 1980, coincidindo com a publicação de Vogel e contribuindo para que esta
permanecesse no ostracismo, para, em seguida, contextualizar o surgimento da TRS. Por
fim, demonstro de que formas a TRS tem resgatado a noção marxiana de totalidade social
para recentralizar classe nos debates sobre as relações de opressão que constituem o
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mundo em que vivemos. Faço isso através da apresentação do que considero suas
principais contribuições para este debate hoje.
3Aqui, enquanto o termo “identidade” refere-se à equivalência formal entre trabalhadores e capitalistas no
momento da troca de mercadorias, o termo “diferença” refere-se estritamente à desigualdade material
resultante do processo contínuo de separação dos produtores dos meios de produção e subsistência (meios
de existência).
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dos meios de produção e de força de trabalho – é apenas uma visão parcial e idealizada
da realidade, uma aparência da sociedade burguesa. Tal relação social aparece, para estes
autores, como ponto de partida natural da história. A partir do ponto de vista daqueles
que são constantemente expropriados e explorados pelo capital, Marx propõe uma
investigação histórico-dialética que é capaz de demonstrar como o indivíduo produtor,
em verdade, é membro de um todo social maior, que o coloca em uma relação desigual
com aquele que compra sua força de trabalho. Assim, Marx se contrapõe à perspectiva
sustentada pelos liberais, e afirma que por trás dessa igualdade aparente há também
desigualdade, diferença, não-identidade. Do ponto de vista dos expropriados, essa
sociedade é, na verdade, o seu oposto. A troca de equivalentes é também uma relação
extremamente desigual e violenta: a acumulação de capital é um processo histórico de
pilhagem, de roubo, e colonização.
Marx (ibidem, p. 41) demonstra esse duplo caráter da sociedade capitalista
através da análise da produção e da relação geral existente entre esta e as esferas da
distribuição, circulação e consumo nessas sociedades. Ele destaca que, embora toda a
produção seja específica de um determinado momento social, todas as épocas históricas
da produção têm certas características em comum, determinações em comum, que
decorrem do fato de que o sujeito e o objeto da investigação são os mesmos: a
humanidade e a natureza. A produção em geral, então, seria uma abstração razoável, na
medida em que destaca e fixa este elemento comum, um universal. Este universal, por
sua vez, quando isolado por comparação histórica, “é ele próprio algo multiplamente
articulado, cindido em diferentes determinações” (ibidem, p. 41). Ele contém também
uma diferença, e é precisamente esta diferença o que constitui seu desenvolvimento e
não pode ser esquecida.
Isto porque o foco nas determinações comuns e o esquecimento da diferença
implicariam, necessariamente, em uma perspectiva deturpada da realidade social. Como
exemplo, o autor demonstra que nenhuma produção é possível sem um instrumento de
produção, e que este instrumento é ele mesmo trabalho passado, acumulado (ainda que
o instrumento seja a mão de quem produz, o trabalho passado seria a habilidade
concentrada nesta mão para produzir). A produção, portanto, é sempre um ramo
particular da produção geral, isto é, um momento da totalidade. Enquanto momento, ela
é em si também uma totalidade na medida em que ela “é sempre um certo corpo social,
um sujeito social em atividade em uma totalidade maior ou menor de ramos de produção”
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4 Marx exemplifica essa questão de forma bastante didática: “A produção medeia o consumo, cujo material
cria, consumo sem o qual faltaria-lhe o objeto. Mas o consumo também medeia a produção ao criar para os
produtos o sujeito para o qual são produtos. Somente no consumo o produto recebe o seu último
acabamento. Uma estrada de ferro não trafegada, que, portanto, não é usada, consumida, é uma estrada de
ferro apenas potencialmente, não efetivamente. Sem produção, nenhum consumo; mas, também, sem
consumo, nenhuma produção, pois nesse caso a produção seria inútil. (...) O consumo cria o estímulo da
produção; cria também o objeto que funciona na produção como determinante da finalidade. Se é claro que
a produção oferece exteriormente o objeto do consumo, é igualmente claro que o consumo põe idealmente
o objeto da produção como imagem interior, como necessidade, como impulso e como finalidade. (ibidem,
p. 46-47; grifos meus; itálico do autor)
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capitalismo necessita desenvolver suas contradições, algo que Marx capta com a noção
de formas sociais necessárias à reprodução social do capital. Consequentemente, é a
figura da mediação social a responsável por amalgamar as diferenças sociais, criando com
isso uma unidade social indispensável à construção da (instável) ordem social moderna.
Ora, se Marx está bastante consciente de que aquilo que é também traz em si
sua negação, é necessária uma forma particular de compreender essa realidade. Mais
importante ainda, é indispensável uma ferramenta que permita expor as contradições
constituintes do capitalismo. Mas como apresentar um objeto contraditório? Como
demonstrar aquilo que o ser é, mas também aquilo que ele não é?
A resposta às questões acima passa necessariamente pela compreensão do
método dialético, exposto por Marx nos Grundrisse, enquanto método de investigação.
Ele é fundamental para compreender o método de exposição nos livros que compõem O
Capital. Se o primeiro livro de O Capital aparece como “o processo de produção do
capital”, o segundo como “o processo de circulação do capital” e o terceiro como “as
formações do processo como um todo”, isso não deveria levar à interpretação de que há
uma separação analítica entre produção, circulação e distribuição. Não se pode perder de
vista que aquilo que amalgama esses componentes – e isso é fundamental em um
trabalho atento à exposição dialética categorial do sistema conceitual marxiano – é o
movimento contraditório do capital. É ele que é produzido, circulado e distribuído e que,
por isso mesmo, está presente em todos os livros em um movimento dialético5.
Por isso mesmo, a categoria da totalidade social – em sua representação
conceitual tal qual elaborada por Marx – é fruto de um movimento dialético. Se o objeto
analisado é contraditório, então é indispensável apresentar sua contraditoriedade. Por
5 É neste sentido que se constitui o itinerário de investigação de O Capital: Marx recompõe o capital, a partir
de seu movimento real, como totalidade, isto é, como a unidade complexa (livro III) entre seu processo de
produção (livro I) e de sua circulação (livro II). O método de exposição de cada momento se inicia nas suas
formas mais abstratas e gerais e se dirige em direção à suas determinações mais concretas e aparentes. Por
exemplo, no livro I, o autor parte da mercadoria enquanto forma aparente mais geral e abstrata (mais
facilmente apreensível na realidade imediata) para chegar à realidade mais profunda – e, portanto, não-
aparente – da relação social que a compõe: a expropriação dos trabalhadores (separação de seus meios de
produção da vida) e sua exploração no processo de produção capitalista (GONÇALVES, 2018, p. 101-104).
Marx demonstra, assim, que a mercadoria não é apenas o produto que se vê e que satisfaz uma necessidade
humana imediata; ela contém em si esta relação social de exploração e expropriação, trabalho humano vivo
passado, cristalizado. Ao mesmo tempo, se observarmos o livro I em relação ao livro III, no primeiro, o capital
aparece em sua forma abstrata, genérica, enquanto no segundo, ele aparece como a relação contraditória
entre os diversos capitais individuais, ou seja, em sua forma mais complexa. Entretanto, não podemos perder
de vista que o conceito de capital – que só se põe de forma completa no Livro III, quando o “capital em geral”
é situado na “pluralidade dos capitais” – está essencialmente formulado já no Livro I. Neste último, embora
não esteja posto, o capital está pressuposto; a sua gênese já está compreendida: a valorização do valor
mediante a extração da mais-valia (exploração), o que pressupõe a expropriação contínua das massas.
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isso o significado das categorias iniciais possui o que Fausto denomina “zonas de sombra”
(FAUSTO, 1983, p. 35). Ou seja, não é possível obter um esclarecimento conceitual total
logo no início de uma exposição dialética categorial. Se se compreende a obscuridade
inicial como “intenções não preenchidas”, então a tentativa de preenchê-las “não ilumina
as significações, mas as destrói” (FAUSTO, 1987, p. 149). Dessa perspectiva, é possível
afirmar que cada categoria ganha sentido sistemático apenas por meio de seu
posicionamento com respeito às outras categorias e ao todo.
Consequentemente, a chave do argumento marxiano está em considerar o
avanço das categorias como um impulso derivado de suas próprias insuficiências para
reconstruir a totalidade social. A crítica da economia política é uma exposição dialética
das categorias que desconstroem não só a escola clássica, mas a ciência que a embasava.
Essas categorias possuem uma estruturação lógica interna que se desdobra para
reconstruir a totalidade de objeto contraditório e, simultaneamente, desvelar
gradativamente sua aparência mistificadora, o reino da liberdade e igualdade da
sociedade burguesa. Daí a fundamental ideia de que a crítica de Marx se constitui
enquanto crítica social imanente. O arsenal teórico de Marx não avança pela sequência
de modelos cada vez mais complexos, mas por uma reconstrução progressiva – a
exposição dialética categorial – das formas do mesmo objeto contraditório cuja exposição
denuncia a exploração essencial que subjaz à sua aparência (FAUSTO, 1987, p. 293-294).
Essa reconstrução progressiva das formas está relacionada à particularidade que
reveste a totalidade social capitalista, em que capital e trabalho se encontram em uma
situação assimétrica. Ou seja, na contradição entre capital e trabalho, o trabalho está
subordinado ao capital, que, como um vampiro, “vive apenas da sucção de trabalho vivo,
e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga” (MARX, 2013, p. 307). Na sociedade
capitalista, os meios de produção (capital constante, i.e., trabalho morto/trabalho vivo
passado cristalizado) são a encarnação do capital que, assim, permitem que ele se
apresente ao mesmo tempo como parte e totalidade de seu processo de valorização.
Isso significa que embora o trabalho esteja subordinado ao capital, inserido em
seu processo de valorização, ao mesmo tempo o capital não consegue por ele mesmo se
pôr enquanto totalidade, já que sua substância não provém dele. Daí ser possível dizer
que “essa assimetria na relação entre capital e trabalho assalariado é a forma assumida
pela contradição na dialética materialista” (GRESPAN, 2002, p. 41). Por isso mesmo, na
crítica marxiana à economia política é impossível compreender o processo de acumulação
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do capital como algo equilibrado. O capital tem sempre um “impulso cego e desmedido”
(MARX, 2013, p. 337), pois sempre será inadequado à “substância”, já que ela consiste
não nele mesmo, mas em “seu outro” (GRESPAN, 2002, p. 43). Consequentemente, a
contradição tal como posicionada por Marx jamais pode se resolver num fundamento
positivo, precisamente porque a “inadequação crônica” entre forma (capital) e conteúdo
(trabalho) repousa na “inversão da posição lógica da identidade e da diferença”
(GRESPAN, 2002, p. 44).
Por isso mesmo, em Marx a totalidade social jamais pode ser vista como um
resultado da soma das suas diferentes partes. Ela necessariamente é um processo de
apreensão dialética da realidade aparente sensível como concreto no pensamento, isto
é, um processo de entendimento e questionamento da dimensão de sentido que aparece
para nós. Deste modo, a abordagem teórica marxiana é um movimento que, na tentativa
de uma maior apreensão da totalidade, parte das determinações mais simples, gerais,
abstratas para recompor, no pensamento, o real como materialidade complexa, concreta,
“não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas
determinações e relações” (MARX, 2011 [1857-1858], p.54). Assim sendo, a totalidade
não é o real-imediato, mas a sua unidade como concreto concebido pelo pensamento e,
por isso, vivo e determinado. Não é apenas o que está exposto, mas também o que está
pressuposto nas relações sociais (FAUSTO, 1987).
Por todo o exposto, Marx demonstra que agir sobre o nosso mundo com base
em um conhecimento empírico ou factual da realidade, ou seja, apenas com base em
nossa percepção imediata, envolve necessariamente um erro. Entretanto, como vimos, a
realidade não fica à disposição, esperando ser descoberta. Sua revelação depende de
investigação científica. No mesmo sentido, não é todo o tipo de investigação científica
que nos leva à sua revelação; ao contrário, é necessário uma investigação dialética cujo
ponto de vista específico para que esta possa ser revelada é o ponto de vista do
proletariado6, o sujeito histórico capaz de dirimir, através de sua organização política, a
contradição existente entre capital e trabalho.
6 Aqui, não considero o proletariado no sentido vulgarmente apropriado por parte da tradição marxista,
segundo o qual este se restringiria à uma classe trabalhadora urbana e assalariada. Ao contrário, para uma
concepção expandida desta categoria, considero os escritos tardios de Marx e as contribuições
contemporâneas da teoria da reprodução social (BHATTACHARYA, 2017), como será exposto mais adiante.
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Embora não tenha sido a primeira tentativa feminista-marxista de elaborar uma teoria
unitária sobre a opressão das mulheres no capitalismo, o livro Marxism and the
Oppression of Women: Toward a Unitary Theory7, de Lise Vogel, publicado em 1983 nos
EUA, foi o primeiro a tentar fazê-lo no mesmo nível de abstração de O Capital e se
propondo a reconsiderar suas principais categorias lógicas. Ao partir de uma perspectiva
que privilegiava a análise das dinâmicas sócio-históricas da produção da força de trabalho,
esta seria uma fonte central para a elaboração da Teoria da Reprodução Social cerca de
trinta anos mais tarde.
No início da década de 1980 – mesmo após a ebulição de lutas sociais
protagonizadas pelos povos subalternizados no Sul Global e do exaustivo debate
feminista-socialista que compusera os movimentos de libertação das mulheres até ali – o
campo marxista permanecia, em sua maior parte, hostil à ideia de revisão teórica. Até
uma teoria como a da dependência, que vivenciou seu auge nos anos 1960/70 e buscava
uma ampliação da definição ortodoxa de trabalho e capitalismo, pouco influenciava o
núcleo duro dos debates marxistas sobre o valor.
Ao contrário, a dinâmica da acumulação capitalista era frequentemente
reduzida à exploração do trabalho assalariado, o que restringia a noção marxiana de
totalidade social. As relações “de classe” eram compreendidas como aquelas que se
desenvolviam no espaço exclusivo da produção, i.e., no local de trabalho. Da categoria
“classe” eram abstraídos os componentes de raça, gênero e sexualidade, de modo que
prevalecia a indiferença de parte considerável do campo marxista quanto às
especificidades locais e configurações sociais no interior da classe trabalhadora. A
categoria proletariado, portadora da subjetividade revolucionária, era ligada, de forma
idealista, ao típico trabalhador formal do Estado de Bem-Estar Social europeu: homem,
branco e provedor. Prevalecia, ainda, uma concepção funcionalista e determinista, que
tendia a ver as relações sociais como uma superestrutura determinada pela base
econômica, em uma relação de causa e consequência na qual cada uma teria seu papel
específico para o funcionamento do modo de produção capitalista.8
7Marxismo e a Opressão das Mulheres: Por uma Teoria Unitária, ainda não traduzido no Brasil.
8A metáfora da “base” (ou infraestrutura) e “superestrutura”, popularizada pelo Prefácio à Contribuição à
Crítica da Economia Política, aparece raras vezes na obra de Marx. Ela guarda a ideia de que a realidade social
é composta por diferentes “esferas”: uma base, a economia, e uma superestrutura, que reuniria política,
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direito, cultura, ideologia, etc. Estas duas esferas manteriam uma relação externa entre si e a esfera
econômica determinaria a superestrutura. Como aponta Wood (2011 [1995], p. 51-72), nesta concepção, a
esfera econômica seria praticamente sinônimo de “forças técnicas de produção”, i.e., compreenderia o
processo e as relações de produção e estaria separada da política e da cultura. Esta noção se tornou
hegemônica durante décadas no marxismo ocidental, sobretudo através da obra de Louis Althusser. Porém,
diversos autores como E.P. Thompson (1987) se dedicaram a demonstrar que esta constituía uma metáfora
equivocada da realidade social.
9 Embora em um primeiro momento localize o trabalho doméstico no interior da categoria “trabalho
necessário", posteriormente Vogel (2013 [2000], p. 192-193) admite que talvez essa não seja a melhor forma
de conceituar a questão, deixando claro, por outro lado, que isto não altera o cerne de sua argumentação.
Para ela, o trabalho doméstico não produz valor, embora desempenhe um papel fundamental no processo
de apropriação de mais-valor. O trabalho doméstico é, assim, socialmente necessário para o capital. Ela afirma
que “aprisionados na realização do trabalho necessário, o trabalho social e seu novo companheiro, o trabalho
doméstico, formam um casal estranho nunca antes encontrado na teoria marxista” (VOGEL, ibid., p. 193). Esta
passagem é considerada por alguns autores (FERGUSON; MCNALLY, 2017 [2013], p. 46-47) como uma
importante autocrítica de Vogel, embora a autora nunca tenha apresentado outra formulação conceitual da
questão.
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10 Aqui, assim como Vogel, não diferencio o trabalho doméstico-assalariado do não-assalariado; para a autora,
neste nível de abstração, ambas as formas correspondem ao componente do trabalho necessário com o qual
Marx não contou: a porção de trabalho performada “fora” da esfera da produção capitalista da qual depende
a reprodução da força de trabalho. A autora define “trabalho doméstico” da seguinte forma: “O trabalho
doméstico é a porção do trabalho necessário que é realizado fora da esfera da produção capitalista. Para a
reprodução da força de trabalho acontecer, tanto o componente doméstico como o componente social do
trabalho necessário são exigidos. Ou seja, os salários podem permitir que um trabalhador compre
mercadorias, mas um trabalho adicional - o trabalho doméstico - deve ser geralmente realizado antes que
elas sejam consumidas. Além disso, muitos dos processos de trabalho associados à substituição geracional da
força de trabalho são realizados como parte do trabalho doméstico”. (VOGEL, 2013 [1983], p. 159, tradução
minha).
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11 Segundo Vogel (2013 [1983], p. 161-162, tradução minha): “Como um componente do trabalho necessário,
o trabalho doméstico potencialmente é extraído do compromisso que os trabalhadores possuem para a
realização do trabalho excedente através da participação no trabalho assalariado. Objetivamente, então, ele
compete com o impulso do capital pela acumulação. Se uma pessoa tende a cultivar a própria horta, cortar a
sua própria lenha, cozinhar suas próprias refeições, e caminhar seis milhas para trabalhar, a quantidade de
tempo e energia disponível para o trabalho assalariado é menor do que se ela comprar comida em um
supermercado, viver em um prédio de apartamentos com aquecimento central, comer em restaurantes e
utilizar o transporte público para ir para o trabalho”.
12 Vogel demonstra que este fenômeno pode incluir uma série de medidas que inclusive ultrapassam as
relações familiares. Ela pode se dar tanto através da automação (introdução de máquinas de lavar roupa, por
exemplo), quanto através da socialização das tarefas domésticas (quando o Estado as assume, através da
educação e da rede de saúde pública, por exemplo) e/ou transferência destas para o setor de serviços (por
exemplo, lavanderias, lojas de roupas prontas e redes de fast-food). A autora destaca ainda que o trabalho
reprodutivo total de uma sociedade também pode ser reduzido empregando-se populações
institucionalizadas (trabalho prisional, trabalho militar) e atraindo trabalhadores migrantes de outros países.
(VOGEL, 2013 [1983], p. 162).
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13 Vogel (ibid., p. 177) percebe que a dupla e específica dinâmica da opressão das mulheres no capitalismo
também imprime uma característica específica sobre o caráter da família neste modo de produção. Uma vez
que o trabalho doméstico tem sido historicamente realizado principalmente por mulheres em um contexto
de supremacia masculina, a família da classe trabalhadora poderia se tornar um repositório altamente
institucionalizado da opressão das mulheres. Mas, assim como o trabalho reprodutivo, a família poderia
assumir diversas formas, não necessariamente opressoras.
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14 Neste momento, Vogel retoma o argumento de que a localização diferencial de mulheres e homens em
relação à reprodução social varia de acordo com a classe, e ressalta outra contradição: enquanto apenas
algumas mulheres realizam trabalho doméstico na sociedade capitalista – ou seja, mulheres da classe
trabalhadora, cujos esforços mantêm e renovam a força de trabalho explorável –, todas as mulheres sofrem
com a falta de igualdade no capitalismo (ibid., p. 174). Em consequência, as mulheres de todas as classes
passam então a lutar juntas contra a desigualdade de gênero.
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Tanto as conclusões quanto o método utilizado por Vogel foram alvo de críticas e de
desenvolvimentos posteriores, e hoje configuram o ponto de partida da TRS. Dentre as
críticas sofridas por Vogel, uma é especialmente importante para o estudo das opressões.
Apesar da dimensão unitária proposta pela autora e de sua aproximação com a noção
marxiana de totalidade social no que tange a dinâmica que envolve a unidade
contraditória entre produção e reprodução e entre a aparência e a essência dos
fenômenos sociais, a autora reproduzia uma concepção metodológica hiper abstrata, de
matriz althusseriana, que mantinha uma separação entre base e superestrutura
(BRENNER, 1984). A pior consequência desta concepção era que ela não rompia nem com
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15Como exemplo recente de algumas dessas manifestações, podemos citar o movimento Black Lives Matter
e destacar as mobilizações feministas como a Marcha das Mulheres em 21 de janeiro de 2017 nos EUA, cuja
pauta incluía uma oposição ao controle de direitos sexuais e reprodutivos e as leis anti-imigração de Donald
Trump. Estas prepararam o terreno para a Greve Internacional de Mulheres em 8 de março de 2017,
mobilização massiva de mulheres em mais de 50 países, seguida da publicação do manifesto que ficou
conhecido como Manifesto Feminismo para os 99% , liderado por feministas-marxistas da reprodução social.
Em 2018, na Argentina, o movimento Ni Una a Menos levou milhões de pessoas às ruas na luta pela legalização
do aborto, em pautas que problematizavam a desigualdade do acesso ao procedimento – bem como à
educação e à saúde de qualidade – entre as diferentes classes sociais. No Brasil, é possível perceber um
movimento similar. O ressurgimento do movimento de mulheres no contexto de resistência ao neoliberalismo
têm tido forte protagonismo de mulheres negras que, com intensa produção teórica, e mantendo diálogo
direto com ativistas de diversos países da diáspora africana, em 2015 marcharam por todo o país ocupando a
capital, Brasília, em um movimento que reuniu mais de 50 mil mulheres pelo fim do genocídio da população
negra e por melhores condições de vida, na Primeira Marcha Nacional De Mulheres Negras: Contra o Racismo,
a Violência e o Bem-Viver. Parte das mulheres que marcharam em 2015 se somaram também nas mobilizações
da Greve Internacional de Mulheres de 2017.
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16 Esse movimento de convergência pode ser percebido no volume editado por Bhattacharya (2017) e que
marca o estabelecimento desta teoria no século XXI. O volume recebe a contribuição de dez autores com
trajetórias intelectuais distintas e que se engajam nesse sentido ao analisar diversos temas à luz dessa
possibilidade teórica que se convencionou chamar de Teoria da Reprodução Social. Cabe ressaltar que entre
1983 e 2017, diversas teóricas feministas-marxista, sobretudo ligadas à tradição da Economia Política
Feminista Canadense, desenvolveram e atualizaram a perspectiva da reprodução social. Essa produção é uma
referência fundamental para as autoras que hoje defendem a construção da TRS, constituindo “o parente
teórico mais próximo” desse projeto (BHATTACHARYA, 2017). Para mais sobre essa perspectiva da reprodução
social, conferir BEZANSON; LUXTON, 2006.
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17Para uma maior compreensão destas “vantagens sociais”, inclusive das origens do que se convencionou
chamar amplamente hoje de “privilégios” da branquitude, cf. Roediger, 2007 [1991].
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É algo maior e mais sistemático que uma mera soma aditiva. (…) Uma
totalidade concreta alcança a concretude (“determinação”) através das
diferenças que a compõem. Ao mesmo tempo, cada uma dessas diferentes
partes carrega o todo dentro dela; como elementos da vida, sua reprodução
é impossível fora do todo vivo.
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dessa abstração para nomear a lógica social que informa a unidade existente,
concreta, dessas relações.
Neste mesmo sentido, McNally (2017, p. 106) destaca ainda que as totalidades
ou universais não são abstrações da diversidade concreta e da multiplicidade de coisas
para Hegel e Marx. Pelo contrário, as totalidades são constituídas na e pela diversidade e
dinamismo dos processos da vida real. Uma relação social só pode ser apreendida em
relação às outras relações sociais que compõem o todo social em seu processo contínuo
de transformação.
Portanto, por mais que as origens do patriarcado, da supremacia branca, da
família, possam remontar à períodos históricos nos quais o capitalismo não estivesse
ainda mundialmente consolidado, fato é que o capitalismo, em sua gênese e
universalização, reestrutura hierarquias sociais anteriores e se beneficia delas na mesma
medida em que elas o constituem enquanto sistema19. Autores como Almeida (2018) têm
lido esse fenômeno sob a chave das relações estruturais, como o racismo estrutural: uma
relação social que estrutura a sociedade ao mesmo tempo em que é estruturada por ela,
mas que foge aos indivíduos. Essa é uma compreensão fundamental, mas que se encarada
apartada de uma perspectiva dialética que considere a noção de totalidade recai
facilmente em explicações dualistas e não-dialéticas sobre as relações de opressão e o
capitalismo. Neste sentido, como destaca Ferguson (2017 [2016], p. 15), a TRS se distingue
das demais teorias porque ao retornar ao quadro conceitual marxiano, retoma a
“compreensão ampla e complexa do trabalho como uma ‘unidade concreta’, uma
categoria ontológica que captura – e uma experiência vivida que medeia e produz – uma
totalidade contraditória, histórica e ricamente diferenciada”. É essa
multidimensionalidade da atividade humana, onde o trabalho enquanto atividade
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Como vimos até aqui, a renovação da perspectiva unitária da reprodução social no século
XXI ressurge como uma reação prático-teórica de intelectuais críticos, marxistas e ativistas
de esquerda às três décadas de reestruturação neoliberal, que, com o aprofundamento
de sua crise estrutural desencadeada a partir de 2007-2008, avança através da
intensificação das formas de expropriação e exploração, e do despertar do autoritarismo
em escala global (GONÇALVES; MACHADO, 2018). A precarização das relações de trabalho
e o rebaixamento das condições de vida dos trabalhadores, conduzidas através da
comodificação, financeirização e militarização das relações sociais, marcam a presente
conjuntura. Diante deste cenário, uma reconfiguração contemporânea da teoria unitária
exige a reconstrução de pontes transnacionais de solidariedade que possibilitem à classe
trabalhadora uma compreensão universal da condição humana e ofereçam alternativas
concretas de emancipação.
Tal reconstrução depende diretamente tanto da consideração das múltiplas
relações de opressão que constituem o capitalismo quanto da capacidade de recentrar
nossa compreensão das relações de classe, reelaborando a conceitualização sobre quem
é a classe trabalhadora, e, portanto, quais seriam os “sujeitos revolucionários” em cada
conjuntura e realidade social específica. Esta conceitualização passa por uma reflexão
sobre sob quais mediações sociais as frações desta classe estão enredadas e quais seriam
os mecanismos materiais que possibilitariam a sua união. A TRS traz reflexões
fundamentais neste sentido. Dentre suas muitas contribuições, destaco seis que,
diretamente ligadas à perspectiva marxiana da totalidade social, considero as mais
relevantes para recentralizar o debate sobre classe e assim fazer avançar alguns embates
práticos e teóricos que enfrentamos hoje também no Brasil.
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destaca a relação oculta entre trabalho reprodutivo e produtivo. A TRS revela que a
dicotomia entre produção e reprodução social, sendo a primeira ligada à esfera pública,
econômica, ao local de trabalho, e a segunda ligada à esfera privada, social, identificada
com o lar, é uma forma histórica de aparência específica do capitalismo, na qual o capital
se põe enquanto processo. Para a TRS, o trabalho realizado nas duas esferas deve ser
teorizado de maneira integrada: a relação contraditória-porém-necessária entre ambas
revela que o trabalho não-remunerado realizado pelas mulheres é o pressuposto da
produção capitalista e, portanto, está na base desse sistema. Romper com as dicotomias
que surgem da reificação dualista das duas esferas nos permite: a) enxergar que esta
relação sustenta a permanência da opressão das mulheres sob o capitalismo (FERGUSON,
2017 [2016], p. 25); b) e reinterpretar as relações existentes entre outras formas de
produção e de propriedade dos meios de existência, reconsiderando as realidades de
resistência anticolonial (HALL, 2016, passim).
A terceira contribuição trazida pela TRS é a noção de que embora as atividades
de reprodução ocorram de uma forma ou de outra em todas as sociedades, nas
sociedades capitalistas elas estão, especificamente, subordinadas ao capital. Há um
impulso que subordina a vida à produção do lucro, ao mesmo tempo que exige que o
trabalho reprodutivo produza e substitua o seu oposto, a “força de trabalho”. Essa relação
é um desdobramento da contradição fundamental entre capital e trabalho. O trabalho
reprodutivo é então determinado e constrangido pela própria produção capitalista:
enquanto, de um lado, a reprodução social é a condição da acumulação sustentada de
capital; por outro lado, a compressão dela é um meio de aumentar a mais-valia extraída.
Assim, para produzir cada vez mais valor, o capital tende a precarizar as condições de
reprodução da vida, restringindo, progressivamente o acesso dos trabalhadores aos
meios necessários à sua subsistência (FRASER, 2017, p. 22). Há uma tendência ao
empobrecimento da classe trabalhadora e à crise do cuidado, a partir de uma pressão
constante para que a esfera da reprodução social seja cada vez mais reduzida pelos
proprietários do capital e através do Estado. Assim, o capitalismo gera um cenário no qual
duas relações opostas são contraditoriamente unificadas (BHATTACHARYA, 2017, p.11).
Há uma permanente crise reprodutiva-social (FRASER, 2017).
A percepção desta dinâmica nos leva à quarta contribuição da TRS: o ponto da
reprodução social é um local privilegiado do conflito de classe. Ao abordar a contradição
entre produção e reprodução, Bhattacharya (2017b, p.73, et seq.) destaca que o padrão
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capital como um todo, deve ser considerado um aspecto da luta de classes” (ibid., p. 85-
86). Assim, lutas por melhores condições de vida, pelo bem-viver, por recursos naturais,
por direitos humanos, por moradia, pelo meio-ambiente, contra as medidas de
austeridade, carga tributária injusta/regressiva e contra a violência policial, por exemplo,
devem ser consideradas aspectos da luta de classes. Esta pode assumir diversas formas
(ibid., p. 86-88).
Tal compreensão nos leva à quinta contribuição fundamental da TRS: a
reconstrução do significado da categoria “classe trabalhadora” ou “proletariado”. Para a
TRS “é essencial reconhecer que os trabalhadores têm uma existência para além do local
de trabalho. O desafio teórico reside, portanto, na compreensão da relação entre essa
existência e a de suas vidas sob o domínio direto do capitalista” (ibid., p. 69), o que
necessita uma investigação que leve em consideração as especificidades da concretude
de cada realidade a ser analisada. Dessa forma, compreender a complexidade da vida sob
o capitalismo depende da percepção e da consciência de que a classe trabalhadora é
produzida através de processos diferenciados. É preciso considerar que, concretamente,
as diversas frações da classe trabalhadora possuem diferentes níveis de acesso a aspectos
básicos para produção e reprodução de sua força de trabalho, o que molda diferentes
subjetividades e diferentes estratégias de resistência no interior dessa classe.
Historicamente, o acesso à infraestrutura básica, aos meios de subsistência e ao trabalho
foi diretamente regulado pelo Estado através das relações de raça, gênero, sexualidade e
classe.
Aqui, vale destacar que o objetivo da TRS é providenciar respostas a questões
concretas como “que tipos de processos permitem que os trabalhadores cheguem
diariamente em seu local de trabalho, prontos para produzir a riqueza da sociedade?”
(BHATTACHARYA, 2017, p. 2). O esforço de responder a tal pergunta, nos leva a uma
compreensão sobre quem compõe a classe trabalhadora global hoje em toda sua diversa
subjetividade, e a uma abordagem mais holística da relação entre exploração,
expropriação, dominação e opressão. Essa reflexão questiona não só que papel a
educação, os espaços de lazer, a segurança, a rede de transportes públicos, a qualidade
do café da manhã ou do sono possuem na reprodução cotidiana dos trabalhadores, mas
também nas consequências das diferenças de acesso a estas condições.
Segundo Bhattacharya (2017b, p. 89), devemos adotar uma concepção ampliada
de classe trabalhadora, para considerar como proletariado “todos os membros da classe
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produtora que tenham participado, durante algum momento de sua vida, da totalidade
da reprodução da sociedade – independentemente de o trabalho ter sido pago ou não
pelo capital”. Isso deve incluir todos aqueles despossuídos dos seus meios de produção e
subsistência, que compõem a força de trabalho ativa (formal e informal, na cidade e no
campo, remunerada ou não), e a superpopulação relativa, incluindo o exército industrial
de reserva. Esta reconsideração restaura um sentido de totalidade social à noção de
classe, e a partir daí reformula a percepção geral da classe trabalhadora sobre a arena da
luta de classes e sobre possíveis laços de solidariedade.
A última contribuição da TRS que quero ressaltar aqui consiste na
reconsideração teórica das relações de opressão exposta no item anterior. Ela oferece
uma chave interpretativa única para analisarmos a interrelação entre as múltiplas
relações sociais que constituem as sociedades capitalistas, na medida em que permite
considerar as relações econômicas e sociais como ontologicamente inseparáveis e
integradas, i.e., como diferentes momentos de uma mesma totalidade social. Assim, "a
participação econômica, o valor do trabalho, a participação social e política e o direito, a
marginalização ou a inclusão cultural, fazem todos parte desta formação social global"
(BANNERJI, 2005, p. 149). Como modos de mediação (MARX, 2011 [1857-1858], p. 177),
as relações sociais de gênero ou raça ajudam a produzir a constante desvalorização e
desumanização de certos grupos sociais e assim garantem a reprodução de formas
entrelaçadas de exploração e expropriação/despossessão; organizam as relações de
trabalho e propriedade; enquadram as formas concretas de competição e acumulação
capitalista; e estabelecem um código cultural para a sociedade como um todo que
compreende formas de consciência e de institucionalização (BANNERJI, 2005, p. 153). O
capitalismo é, então, racializado e generificado, na mesma medida em que gênero e raça
não são mais do que formas através das quais a classe é vivida (DAVIS, 1997). O mesmo
pode ser dito de todas as múltiplas relações de poder social. Estas relações,
historicamente constituídas, formam um todo social complexo, no qual “cada um dos
momentos individuais são essencialmente a totalidade do todo” 21 (MCNALLY, 2017, p.
107). A raça não pode ser desarticulada da classe, do gênero ou da sexualidade, porque
constituem, essencialmente, o mesmo fenômeno.
21 Aqui, McNally parafraseia expressamente a frase de Hegel em A Ciência da Lógica (HEGEL, Science of Logic,
p. 769 apud MCNALLY, 2017, p. 105): “in reproduction life is concrete and is vitality... Each of the individual
moments is essentially the totality of all; their difference constitutes the ideal form determinateness, which
is posited in reproduction as the concrete totality of the whole.”
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Considerações Finais
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Sobre a autora
Rhaysa Ruas
Doutoranda em Teoria e Filosofia do Direito no Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD/UERJ). Bolsista da CAPES.
E-mail: rhaysaruas@gmail.com
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Resumo
Esse artigo aborda a relação das políticas sociais britânicas com as contradições de gênero e
raça específicas do sistema capitalista e a maneira como este se desenvolveu naquela
formação social. A partir do arcabouço da Teoria da Reprodução Social, traçamos essa relação
desde a sua gênese, mostrando como a formulação e aplicação dessas políticas no começo
do século XX ajudaram a cristalizar materialmente determinadas relações de gênero e
concepções específicas de cidadania, nação e trabalho assalariado que na prática
consagravam divisões internas à classe trabalhadora como um todo, instituindo papeis sociais
hierarquizados entre os diferentes grupos subalternos.
Palavras-chave: Grã-Bretanha; políticas sociais; Teoria da Reprodução Social
Abstract
This article addresses the relationship of British social policies to the gender and race
contradictions specific to the capitalist system and how it developed in that social formation.
Based on the framework of the Social Reproduction Theory, we trace this relationship from
its genesis, showing how the formulation and implementation of these policies at the
beginning of the 20th century helped to materialize certain gender relations and specific
notions of citizenship, nation, and wage labour that in practice enshrined internal divisions
within the working class as a whole, establishing hierarchical social roles among different
subordinate groups.
Keywords: Great Britain; social policies; Social Reproduction Theory
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Introdução
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Uma definição clara e simples do que é a reprodução social pode ser encontrada no trabalho
Laslett e Brenner (1989, p. 382-383, tradução nossa): segundo as autoras,
feministas utilizam “reprodução social” para se referirem às atividades e atitudes,
comportamentos e emoções, responsabilidades e relacionamentos diretamente
envolvidos na manutenção da vida diariamente e “inter-geracionalmente”. (…)
Reprodução social deve então ser vista como incluindo vários tipos de trabalho –
mental, manual e emocional – no sentido de prover o tipo de cuidado definido
historicamente, socialmente e biologicamente, necessário para manter a vida
existente e reproduzir a próxima geração. E a organização da reprodução social
se refere a uma variedade de instituições no interior das quais esse trabalho [de
reprodução social] é realizado, as estratégias variáveis para cumprir tais tarefas,
e as diferentes ideologias que moldam e ao mesmo tempo são moldadas por ele.
3 “Trabalho” entendido aqui como qualquer atividade que contribua direta ou indiretamente para a acumulação
capitalista – definição que, ao incluir o trabalho reprodutivo descrito anteriormente, amplia de sobremaneira a
ideia de “classe trabalhadora” para além do assalariamento direto. Para uma importante e fundamental discussão
sobre tal ampliação,cf. Bhattacharya (org.), 2017, obra que lançou as bases teóricas da TRS.
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relação com o trabalho de reprodução. Vejamos como isso se deu na prática, tomando por
norte as sociedades do centro do capitalismo.
Na economia pré-industrial, cuja produção era basicamente doméstica, “lar e
comércio, reprodução social e produção, homens e mulheres, crianças e adultos, se
localizavam no mesmo mundo de experiência cotidiana” (LASLETT; BRENNER, 1989, p. 386,
tradução nossa). O avançar e a disseminação da Revolução Industrial aprofundou a retirada,
dos trabalhadores, dos seus meios de produção e subsistência, ao mesmo tempo em que,
consequentemente, lhes roubou o controle sobre o próprio processo de trabalho, agora
confinado entre as paredes das modernas fábricas e regulado pelo relógio do pátio em seu
novo ambiente de trabalho. Como afirmam Laslett e Brenner (1989, p. 389, tradução nossa),
“ao perder o controle sobre a propriedade produtiva e sobre o processo de trabalho para os
seus patrões capitalistas, as famílias perderam sua capacidade de coordenar tarefas
produtivas e reprodutivas”. A perda de tal capacidade significou a separação irrevogável entre
o trabalho de reprodução social e o que passou a ser conhecido como “trabalho produtivo”,
realizado de forma independente deste nas fábricas e minas. Ao mesmo tempo, a
preservação e a reprodução da força de trabalho cada vez mais se vinculava às relações de
mercado e se tornava ainda mais mediada pela forma-salário.
Essa separação tornou mais visível ainda as contradições que se instalariam entre o
que consideramos aqui a esfera doméstica e a esfera industrial da produção capitalista.
Comparando as sociedades industriais com suas predecessoras, E. P. Thompson (1998, p.
300), em um importante artigo, concluiu que “sociedades industriais maduras de todos os
tipos são marcadas pela administração do tempo e por uma clara demarcação entre o
‘trabalho’ e a ‘vida’”. Neste processo, a esfera da “vida” passou a ser identificada de forma
isolada, como uma esfera particular e privada localizada no lar, apartada da esfera pública do
trabalho remunerado. A reestruturação dessas esferas, ocorrida ao longo do século XIX,
correspondeu igualmente a uma reorganização da relação entre os gêneros. Como explica
Fraser (2017, p. 23, tradução nossa), “isolando o trabalho reprodutivo do universo maior das
atividades humanas, onde o trabalho das mulheres possuía anteriormente um lugar
reconhecido, relegou-se este a uma ‘esfera doméstica’ recentemente estabelecida, onde sua
importância social foi obscurecida”.
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A solução para tal problema, que ameaçava esgarçar o tecido social ultrapassando
limites incontornáveis, foi a criação de legislações específicas sobre o trabalho infantil e o
feminino, para assim “estabilizar a reprodução social” (ibid., p. 27, tradução nossa), limitando
o trabalho fabril de mulheres e crianças. Vosko (2010) mostra como, ao longo do século XIX,
os países centrais do capitalismo, sob a justificativa de “proteção” da mão-de-obra feminina,
impuseram limitações legais com relação ao trabalho noturno e ao manejo de substâncias
nocivas à sua saúde, além de estabelecerem salários mínimos menores para indústrias
predominantemente femininas e instituírem proteções à maternidade, regulando de forma
incisiva o trabalho fabril das mulheres. No entanto, como aponta a autora, os argumentos da
maioria dos grupos em prol dessa legislação
enfatizavam os deveres maternos de proteger aqueles por nascer e cumprir com
suas obrigações domésticas, a “preservação da nação”, e uma suposta aptidão
física e moral menor para tomar parte em certas formas de emprego e ocupação.
Em muitos casos, tais proteções não se aplicavam a categorias de trabalho
consideradas aceitáveis para mulheres, percebidas ou como intermitentes,
realizadas na esfera doméstica, ou como relacionadas ao trabalho de cuidado,
como no caso das empregadas domésticas, trabalhadoras rurais, trabalhadoras
casuais, trabalhadoras da família e trabalhadoras em pequenos locais de trabalho,
como garçonetes e enfermeiras (VOSKO, 2010, pp. 27-28, tradução nossa).
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as condições de felicidade do maior número possível de cidadãos, uma saída adequada para
os temores que a revolução industrial e a nascente “questão social” traziam. E para seus
adeptos entre boa parte das classes médias aburguesadas e da gentry vitoriana, um tipo
específico de família – formado por um homem que trabalhasse e sustentasse seus
dependentes, dentre os quais a mulher cuidadora da casa e dos filhos – era a pedra
fundamental para uma sociedade reformada e socialmente estável. Desta forma, ganhava
força a ideia do modelo homem-provedor/mulher dona de casa, a partir do qual “um elo foi
criado entre o lar privado separado do local de trabalho, uma mãe cuidando do marido e dos
filhos, um homem trabalhador e uma nação sadia” (idem, p. 20, tradução nossa).
Trazer a questão da nação para o centro do debate é essencial para o desenrolar da
discussão que viemos travando até aqui. Se o século XIX na Grã-Bretanha é o século das
reformas, ele é também, a partir da segunda metade, o século da expansão imperialista e da
consolidação do discurso racista e racializante em bases supostamente científicas sustentadas
pela biologia da época (LEWIS, 1998).4 Tal discurso se expandiu para diversas áreas de
conhecimento, tornando-se a principal lente de estudo, compreensão e interpretação da
realidade social, influenciando diretamente a consolidação e auto-representação desse
Estado nacional imperial britânico. Como explica Hall (1998, p. 15, tradução nossa), “a
linguagem da hierarquia racial e étnica se tornou uma maneira de diferenciar os Ingleses dos
‘outros’, fossem eles irlandeses católicos em Liverpool ou Birmingham, judeus em Londres,
indivíduos escravizados das Índias Ocidentais ou livres depois da emancipação, ou ‘hindus’
indianos”. Tal distinção e hierarquização em bases raciais valia tanto para o interior das ilhas
britânicas – onde o branco inglês anglo-saxão protestante assumia lugar de domínio sobre os
4Importante fazer a ressalva de que o termo “raça” e seus derivados serão usados nesse artigo com um sentido
específico e determinado, de construção social que se impõe aos indivíduos, que passama ser lidos sob esta ótica,
ou seja, que se tornam racializados. Conforme explica Banerji (2005, p. 148-149, tradução nossa), “o fenômeno
social a que me refiro como ‘raça’ não é uma distinção biológica que na realidade seja herdada pelas próprias
pessoas. É uma forma, e uma forma de poder inscrito, de ler ou estabelecer diferenças e encontrar formas
duradouras de reproduzir tais leituras, organização e prática. No geral é a isto que as pessoas sinalizam quando
dizem que "raça" é uma construção. A inexistência da ‘raça’ como uma entidade física tem sido observada por
darwinistas críticos (...), [buscando evitar] o perigo de o termo ser considerado como um fato real da natureza.
‘Raça’, portanto, é uma organização social ativa, uma constelação de práticas motivadas, consciente e
inconscientemente, por imperativos políticos ou de poder com formas culturais implícitas – imagens, símbolos,
metáforas, normas que vão desde o cotidiano até o institucional.”
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irlandeses celtas católicos e os galeses, por exemplo – como para o exterior, na ampla gama
de povos e etnias subjugados pelo império britânico. A partir de tal visão de mundo, as
práticas de melhoria da nação a partir da reformulação do lar e da família eram formuladas e
levadas a cabo, tomando “a particular forma de construção de uma fronteira a partir das
noções de diferença racial e/ou étnica” (idem, p. 29, tradução nossa).
Os paralelos entre a biologia e os estudos sociais faziam com que as propostas de
reforma legislativa do mundo do trabalho tivessem por intuito promover uma espécie de cura
do corpo social da nação. O caso dos irlandeses é explícito quanto a isso: vistos como raça
inferior e indesejável, parasitas que contaminavam o outrora saudável tecido inglês,
tornaram-se bode expiatório das primeiras políticas higienistas britânicas, que se limitavam a
tratar graves problemas sociais decorrentes da industrialização e urbanização desordenada a
que tal povo estava submetido como problemas morais inerentes a “raça celta”. De acordo
com esta visão, seria a pretensa imoralidade e o barbarismo dos irlandeses5 a grande causa
de sua pobreza e de suas doenças, como no caso do surto de cólera ocorrido em Manchester
– berço da Revolução Industrial e da imigração irlandesa – na década de 1830. Portanto, a
inadequação do lar e das famílias operárias frente ao modelo pretendido pelas classes
dominantes não era lida em termos de classe pura e simplesmente, mas em termos étnicos
cada vez mais racializados, construindo uma fronteira interna entre os nacionais anglo-saxões
e os celtas de fora, definindo os contornos simbólicos da nacionalidade inglesa ao mesmo
tempo em que reforçava a branquitude desse povo a partir dessas hierarquias, posto que
enquanto pregava-se reforma social para os nacionais com vistas a recuperar sua essência
inata e curá-los do “mal irlandês”, determinava-se que o problema que tal reforma buscava
curar tinha sua causa na presença de elementos de fora que deveriam ser excluídos – no caso,
os irlandeses. Criou-se dessa forma um potente nexo entre reforma social/reforma nacional,
lar/nação, mediado por redefinições de gênero e raça que atuavam diretamente na
consolidação de fronteiras tanto do lar como do próprio Estado-nação, o que em
5 Vistos como imorais justamente porque não se adaptavam às demandas que o ritmo industrial e o modelo de
família proposto por utilitaristas e evangélicos vitorianos exigiam. Quanto à ideia do seu barbarismo, esta se
relacionava ao fato deles não terem “acesso aos prazeres da ‘civilização’, que na mente dos economistas políticos
eram as mercadorias com que uma casa poderia ser mobiliada de forma apropriada, com uma dieta alimentar
nutritiva e variada, e o uso de roupas decentes. A ideia de ‘Civilização’ encorajava desejos que eram artificiais, e
era isso que distinguia o homem de uma fera selvagem. A barbárie nada mais era do que a vida sem as
mercadorias” (HALL, 1998, p. 33, tradução nossa).
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contrapartida teve consequências concretas para os acessos aos bens que propiciavam uma
ampliação da cidadania desses indivíduos, conforme veremos a partir da próxima seção.
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antes de caráter municipal), foram reunidas em legislação nacional no Children Act de 1908
(DAVIN, 1989).
O temor de uma “degeneração física da raça inglesa” – como era referido o
problema – gerou debates, relatórios e inquéritos parlamentares, e todos eles chegaram à
mesma conclusão: a queda de qualidade na “oferta de mão-de-obra e de soldados” para a
nação era causada pela situação de penúria da classe trabalhadora, mas principalmente pela
ignorância das mães dessa classe ao cuidarem do seu lar e criarem seus filhos (idem).
Chegava-se assim a um novo estágio na rota de disciplinamento e produção de novas
subjetividades no interior do lar operário. Uma gama de iniciativas buscou intervir nesse
quadro, desde o desenvolvimento da Educação Física nas escolas, aulas de higiene alimentar,
asseio e culinária para as colegiais e também para mulheres trabalhadoras, até a recusa de
licenças de casamento para casais considerados degenerados ou inaptos fisicamente para o
matrimônio e para a reprodução geracional de acordo com a ideologia dominante da época,
permeada de eugenismo (alcóolatras, tuberculosos, mendigos, e também os cronicamente
desempregados).
Nesse contexto, associações ideológicas e materiais entre classe, gênero e raça
ganharam corpo e espírito nas políticas públicas que caracterizaram o período. A associação
mais comum era aquela que igualava as classes trabalhadoras, o gênero feminino e os
africanos colonizados. A preocupação com relação à degeneração da raça inglesa, era lida de
forma ainda mais explícita nesses termos. Como sintetiza McClintock (2010, p. 76),
por volta da segunda metade do século XIX, a analogia entre degeneração de raça
e de gênero passou a exercer uma forma especificamente moderna de dominação
social, com o surgimento de uma intrincada dialética – entre a domesticação das
colônias e a racialização da metrópole. Na metrópole, a ideia do desvio racial era
evocada para policiar as classes "degeneradas" – a classe trabalhadora militante,
os irlandeses, os judeus, as feministas, os gays e as lésbicas, as prostitutas, os
criminosos, os alcoólatras e os loucos –, que eram vistas coletivamente como
desviantes raciais, atávicos em regressão a um momento primitivo na pré-história
humana.
Para tornar inteligível a hierarquização racial que cada vez mais definia o mercado
de trabalho e a forma de vida dos trabalhadores e trabalhadoras da Inglaterra vitoriana, criou-
se a complexa figura do “negro branco”. Essa analogia servia para se referir àqueles grupos
sociais cujo lar não se adequava aos modelos das classes dominantes e cuja raça se desviava
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6Aqui, a função da mulher e o seu comportamento no interior do lar era fundamental para esse julgamento.
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7Davin (1989) alerta para o fato de que, na maioria dos projetos de leis referentes a essas questões, partia-se do
pressuposto de que os recém-nascidos a quem essas políticas seriam voltadas eram todos do sexo masculino,
futuros cidadãos que guardariam a “virilidade” do Império. O “estoque racial” deveria ser melhorado, e dentro
dessa melhora incluía-se a “demanda” por mais indivíduos do sexo masculino.
8Trade Union Congress, principal central sindical britânica.
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PEDERSEN, 1989). Além disso, para as mesmas instituições, uma esposa trabalhando e sendo
paga por isso também acabaria por encorajar seu marido ao ócio, pois reduziria o impulso
masculino em procurar trabalho para sustentar sua família ou buscar melhorias salariais,
ameaçando, dessa forma, a própria instituição do casamento ao eliminar a dependência
econômica das mulheres com relação a seus maridos. Um trabalhador independente
garantindo a subsistência de si próprio e de sua família com a ajuda de seu sindicato, a partir
de seu próprio suor: esse era o ideal de “respeitabilidade” que inspirava os homens do
movimento trabalhista britânico.9 Como se vê, o ideal do salário-família e tudo o que ele
representava tinha valiosos defensores nas fileiras do movimento trabalhista, e o
questionamento desse ideal equivalia a atacar as próprias bases da masculinidade dos
trabalhadores. Como conclui Pedersen (idem, p. 99, tradução nossa), “a construção da
identidade masculina enquanto detentora natural de direitos econômicos sobre mulheres e
crianças foi uma das conquistas mais poderosas do movimento trabalhista, que
compreensivelmente a protegia com zelo”. Tal zelo acabava por reforçar a ideia de separação
de esferas por gênero tão cara ao capitalismo, como explicamos no ponto anterior.
Ao mesmo tempo, a visão do homem-provedor, hegemônica no movimento
trabalhista, possuía respaldo na ciência social da época. Na virada para o século XX, as
pesquisas sociológicas de Charles Booth (1902) e Seebohm Rowntree (1901; 1941) marcaram
época ao servirem de suporte científico para a construção das políticas sociais em torno do
salário-família, constituindo-se numa “representação da economia familiar da classe
trabalhadora que normalizava o modelo do homem-provedor, alçado agora ao nível de
‘verdade’ científica e aceito como única base razoável para a elaboração de políticas”
(PEDERSEN, 1989, p. 93, tradução nossa). Um dos apontamentos de Rowntree a partir dos
9 A relação do movimento trabalhista com os esquemas estatais de bem-estar social em seus primórdios não foi
unívoca, e na verdade reuniu diversos debates que, por falta de espaço e fuga do escopo deste artigo, não
abordaremos. Basta aqui mencionar que, para muitas sociedades de auxílio mútuo – que na virada do século XIX
para o XX possuíam mais membros do que os sindicatos –, era moralmente adequado e politicamente preferível
manter seus esquemas particulares e contributivos (e a independência que estes traziam) frente à “capitulação”
aos esquemas controlados por um Estado que, àquela altura, ainda não lhes garantia nem direito ao voto e que,
ainda assim, requisitava contribuições pecuniárias dos trabalhadores. Naquela correlação de forças, tais
sociedades defendiam o aumento de salários, que garantiria controle total dos trabalhadores das quantias e do
destino de suas contribuições e manteria sua independência de classe. Mas tais reivindicações, como estamos
argumentando, se mantinham no interior do arcabouço do modelo do homem-provedor e tinham por pilar a
reivindicação do salário-família. Para um relato mais detalhado de tais posicionamentos, ver a importante obra de
Thane (1996).
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estudos realizados no condado de York, no norte inglês (1941 apud LAND, 1980), foi de que
o salário dos homens representava 70% da renda familiar dos trabalhadores em um lar padrão
com cinco integrantes, o que significava a admissão de que as mulheres deveriam prover, à
sua maneira – e sem afetar suas tarefas prioritárias no lar –, os 30% restantes. Geralmente,
essa renda complementar feminina vinha através de trabalho fora de casa envolvendo
atividades de reprodução social que as mulheres já realizavam no lar, trabalhando como
faxineira, passadeira, babá, lavadeira ou cozinheira nos lares da classe média e da burguesia
vitoriana, como aponta Land (1980). No entanto, em um contexto em que o ideário do
homem-provedor cada vez mais se solidificava, a argumentação de Rowntree ia no sentido
da reivindicação do aumento dos salários masculinos, de modo que o trabalho assalariado
feminino fora do lar não fosse necessário. Nos casos em que não houvesse um homem na
família capaz desse provimento, Rowntree defendia a pensão para viúvas, para filhos de pais
inválidos e subsídio complementar para famílias com mais de cinco integrantes (a partir do
quarto filho).
As propostas de Rowntree serviram de base para as políticas institucionalizadas a
partir da primeira década do século XX, o que contribuiu para “deixar intocadas – na verdade,
agora codificadas – as duas condições que as feministas explicitamente combatiam: a
desigualdade salarial e a determinação das vidas das mulheres pelas mãos masculinas”
(PEDERSEN, 1989, p. 94, tradução nossa). Por outro lado, o apoio a essa configuração da
relação entre os gêneros, mediada pela forma específica que as políticas sociais tomaram e
pelos acordos coletivos buscados pelos sindicatos através do argumento do salário-família,
acabava por impor um limite às demandas salariais da classe trabalhadora como um todo,
rebaixando assim o nível de subsistência geral ao impedir que mulheres ganhassem salários
no mesmo nível que os homens e que lutassem a seu lado por amplas melhorias em suas
condições de existência. Sem falar na exclusão desse modelo do homem-provedor dos
trabalhadores não-ingleses, cujas condições de vida eram precarizadas, algo que, no conjunto
da classe trabalhadora, tinha o mesmo efeito que os baixos salários femininos. Tais
contradições surgiam e beneficiavam prioritariamente a burguesia, relação já apontada por
Marx (2014, pp. 275-276, grifos nossos) em um de seus pronunciamentos sobre a “Irlanda e
a classe trabalhadora inglesa” na I Internacional, em 1864:
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Como já ficou claro, a história das políticas sociais no Reino Unido não começou no pós-1945
e seguiu, na verdade, a evolução e as necessidades do regime capitalista naquela nação, além
de responder, de forma mediada, às demandas da classe trabalhadora organizada. O período
de 1870 a 1920 assistiu a mudanças significativas no sistema capitalista, com a intensificação
da competição internacional, a maximização da produção e da eficiência, o aumento dos
investimentos e da mecanização. Ao mesmo tempo em que esse processo ocorria, no Norte
global surgiram também os primeiros esquemas de bem-estar a cargo do Estado, tentativas
de implementação de educação e saúde públicas, mas também seguridade social e
provimentos de maternidade. As políticas de bem-estar introduzidas no Reino Unido na
primeira década do século XX, a partir do liberal National Insurance Act de 1911 – que reunia
aposentadorias, um incipiente seguro de saúde nacional, refeições escolares, supervisão de
pessoas portadoras de problemas de saúde mental, bem-estar de mães e crianças e habitação
pública em um único fundo orçamentário – eram parte das tentativas do Estado de disciplinar,
supervisionar e controlar uma classe trabalhadora cada vez mais militante, desde 1900
organizada no Partido Trabalhista, tomando para si a gerência do regime de reprodução social
que se estabelecia (THANE, 1996).
O desenvolvimento de benefícios de maternidade e serviços de bem-estar infantil a
partir de 1911 atendeu necessidades genuínas da classe trabalhadora, mas, ao mesmo tempo,
serviu para reforçar o lar como o lugar da mulher, já que seus salários continuavam muito
abaixo ao do nível dos homens, isso quando elas conseguiam de fato trabalhar. Além disso,
tais políticas deram um novo status à maternidade, posto que a intenção principal dessas
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medidas era “resguardar” – ou, melhor dizendo, limitar – o papel das mulheres à sua
capacidade reprodutiva: devia-se, fundamentalmente, proteger as reprodutoras dos novos
cidadãos, britânicos10 de nascimento. O atrelamento do papel da mulher na família ao
desenvolvimento da raça e da nação ganhava chancela do Estado a partir de suas políticas
públicas, que se consolidavam a partir do modelo do homem-provedor/mulher dona de casa
e do salário-família. Alguns exemplos, abordados a partir de uma visão comparativa de média
duração que abarca também o resultado de tais políticas no pós-Segunda Guerra, fazem-se
necessários, a fim de reforçar os argumentos até aqui apresentados.
O caso do auxílio-desemprego já deixa explícita tal configuração: além de ser
previsto apenas para trabalhadores em regime integral de trabalho e com tempo longo e
estável de contribuição – o que por si só excluía grande parte das mulheres casadas 11 –,
apenas famílias onde a mulher recebia menos da metade do salário médio para trabalhadores
não-especializados tinham direito ao auxílio. Assim, tal benefício agia como uma espécie de
incentivo para que as mulheres desistissem do trabalho assalariado caso seus maridos
ficassem desempregados, uma vez que apenas uma minoria de mulheres conseguia estar
empregada recebendo um salário alto ao ponto de garantir o sustento da família sem
qualquer outra renda complementar, nem mesmo do marido ou do seguro desemprego dele.
Do ponto de vista da renda total familiar, de fato era mais vantajoso que a esposa deixasse
de trabalhar e a família se apoiasse no auxílio-desemprego do marido, fato que mostra por si
só a desigualdade desse sistema. Mas mesmo se isso acontecesse, as tarefas do lar
continuavam nos ombros das mulheres, mesmo com os maridos desempregados. Dessa
forma, indiretamente, o sistema de seguridade acabava por manter inalterada a divisão de
trabalho no interior do lar mesmo quando o homem estava fora do mercado de trabalho e
dependia de benefícios estatais.
O caso do auxílio-doença – para trabalhadores incapacitados temporariamente de
trabalhar por motivo de saúde –, era ainda mais explícito. Com o já citado National Insurance
Act em 1911, 700 mil mulheres tornaram-se elegíveis ao sistema, o que aumentou
10 Leia-se: ingleses. Cada vez mais “o inglês” se confundia com “o britânico”, apagando da constituição da
“britanidade” o galês, o escocês e o irlandês.
11 Que costumeiramente interrompiam sua carreira profissional quando tinham filhos ou, nesse contexto, mesmo
ao se casarem, graças a existência, formal ou informal, das chamadas “cláusulas de solteirice”, que impediam
mulheres casadas de trabalharem.
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12 Royal Comission on the Taxation of Profits and Income 1951-5, Evidence, vol. 4, HMSO, Londres: 1953, p. 55,
citado por Land, 1978.
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morando com suas filhas casadas era três vezes maior do que os que moravam com os filhos
casados. Quando acontecia de morarem com esses últimos, a mesma pesquisa apontou a
importância do trabalho doméstico de suas noras para o seu cuidado. No caso de casais de
idosos sem filhos, geralmente as mulheres cuidavam mais dos maridos em casa do que o
contrário, o que fez com que idosas casadas e sem filhos fossem maioria nos asilos, que
recebem diminuta parcela de idosos na mesma situação. Tal questão se imbricava com a
questão do serviço domiciliar de cuidados para idosos, fornecido pelo Estado nas residências
dos segurados: quem recebia mais o serviço eram idosos morando sozinhos e longe de filhos.
E já que, quanto mais incapacitados os idosos, maior era a chance de eles morarem com suas
filhas (casadas ou não), o serviço domiciliar nem sempre ajudava os idosos mais
incapacitados, os mais necessitados de tal auxílio estatal, pois o cuidado desses ficava por
conta dessas filhas. Dentre os que recebiam o auxílio de tal serviço, a comparação da
qualidade da situação de homens e mulheres faz saltar aos olhos algumas características:
“89% dos homens conseguiam andar sozinhos na rua, contra 68% das mulheres; 29% dos
homens não tinham nenhuma dificuldade de mobilidade em tarefas pessoais, contra 8% das
mulheres” (idem, p. 268, tradução nossa). Ou seja: idosas, para conseguir o auxílio,
precisavam estar mais incapacitadas do que os idosos.
Os cuidados com os filhos pequenos também explicitavam os papeis sociais
reforçados pelas políticas sociais, e possuem resultados práticos importantes que explicitam
as contradições do que viemos apontando até aqui. Não espanta que, em 1975, 84% dos 4 ¼
milhões de empregados em meio período no Reino Unido eram mulheres, em sua grande
maioria casadas. Dessas, 2/5 afirmaram trabalhar em meio-período por causa da obrigação
do cuidado de filhos pequenos, e geralmente trabalhavam apenas na hora do expediente da
pré-escola. Outro 1/5 nomearam como justificativa o cuidado com parentes idosos ou
doentes. Ao mesmo tempo, 60% das mulheres que se encontravam totalmente excluídas do
mercado de trabalho, deram circunstâncias domésticas ou gravidez como motivo para se
demitirem do último emprego. A partir de tais dados, Land (1978) mostrou como o modelo
do homem-provedor interferiu diretamente na inserção das mulheres no mercado de
trabalho. Como só uma diminuta parcela – branca, protestante e inglesa – da classe
trabalhadora realmente tinha possibilidade de fazer jus ao modelo, em 1977, a maioria das
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mulheres casadas que possuíam empregos pagos recebiam salários que representavam
apenas ¼ da renda familiar total13. Tais exemplos – e poderíamos acrescentar ainda outros –
servem pra mostrar como, na própria concepção das diferentes políticas sociais, papeis de
gênero delimitados e hierarquizados inspiravam tais seguros e auxílios, reforçando
estereótipos infundados que serviam de base para determinada configuração das relações
tanto no interior do lar e das famílias, como fora dele, definindo o sentido da cidadania das
mulheres (donas de casa e mães) e dos homens (trabalhadores).
De forma até mais explícita, para além dos impulsos racistas que, como já vimos, motivavam
e na verdade forneciam aos reformadores sociais de fins do século XIX as estruturas
ideológicas para a sua visão de mundo, a questão da raça se fez presente nas políticas públicas
especialmente através das regras de elegibilidade, mecanismo extremamente útil para tal
intuito. Assim, a permissão para o acesso a certas formas de benefícios de bem-estar deveria
se relacionar, como não podia deixar de ser, com a nacionalidade/raça do requisitante,
beneficiando os indivíduos brancos cristãos e que tinham a língua inglesa como nativa.
Algumas políticas sociais conectavam de forma bem próxima provimento de bem-estar e
controle de imigração, sob duas formas principais: ameaçando de deportação os estrangeiros
(alien) que buscavam fundos públicos – partindo do princípio de que, para ter aceito o pedido
de permanência no país, os imigrantes deveriam comprovar que conseguiam, por seus
próprios meios e sem acesso aos programas de assistência pública, se manter
financeiramente no país; ou se relacionando com a teia de relações internacionais e de povos
no interior de seus impérios coloniais, que determinava diretamente quais nacionalidades
teriam direito a benefícios. Assim, por exemplo, o Aliens Act de 1905 na Grã-Bretanha marcou
o início do processo de controle de imigração mais restritivo e de maior delineação da
coletividade nacional-imperial ao impor restrições a imigrantes judeus da Rússia e do leste
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europeu, tendo apoio da maioria dos partidos e sindicatos do espectro político, inclusive dos
trabalhistas; o Pensions Act de 1908 negava aposentadoria a quem não fosse residente e
súdito britânico pelos últimos vinte anos – o que excluía imigrantes recentes e os que não
faziam parte do império britânico; e o já citado National Insurance Act de 1911 dava menos
benefícios aos cidadãos não-britânicos que fossem residentes no país há menos de cinco
anos. Como afirma Lewis (1998, p. 95), “a ‘raça’ pode ser identificada como ‘a nação’ para
produzir uma estrutura para excluir grupos de pessoas de entrar nas fronteiras da nação ou,
se ‘dentro’ dela, de ter acesso à gama completa [de benefícios de bem-estar]”.
Bonnett (1998) mostra como o imperialismo e as inéditas políticas sociais de
começo do século XX aqui descritas se fundiram num amálgama ideológico e material que
serviu de base de sustentação para os impulsos expansionistas e nacionalistas do império
britânico. Se antes do século XIX as menções às classes trabalhadoras na Inglaterra vitoriana
eram permeadas de argumentos e menções a “raças inferiores”, como já vimos aqui, – e se
antes, a burguesia se apresentava como a única representante autêntica dos ideais nacionais
e raciais ingleses –, com o avançar do imperialismo na virada para o século XX, principalmente
após o surto de nacionalismo popular advindo da Guerra dos Boeres e com a criação dos
primeiros programas e seguros sociais, há um deslocamento e expansão dessa chamada
“britanidade”, que passa a abarcar não apenas a burguesia, mas também as classes
trabalhadoras brancas inglesas. A relação cada vez mais tensa com os irlandeses, que
culminou na independência da República da Irlanda em 1922, agregou a minoria protestante
da porção norte da ilha, incluindo-a na nacionalidade britânica e lhes garantindo direitos de
cidadania na Irlanda do Norte, mas negando-os aos católicos do norte irlandês (WILLIAMS,
1995).
O sentido segregacionista das políticas de bem-estar torna-se cada vez mais
explícito, principalmente se for conjugado à hierarquização racial existente em outras áreas,
como o acesso à qualificação, moradia e a entrada no mercado de trabalho. Em um dos mais
importantes estudos sobre imigração na Grã-Bretanha, Ramdin (2017) mostra a dificuldade
encontrada pelos imigrantes caribenhos e do sudeste asiático no pós-1945 para serem
contemplados por benefícios de habitação e emprego – tradicionalmente e por motivos
óbvios, as áreas de política social mais demandadas por imigrantes recém-chegados. Os
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imigrantes acabavam sendo empurrados para guetos, tanto no que tangia aos bairros e
regiões que habitavam, como também nos setores de emprego que ocupariam de forma
precária ou rebaixada14. É conhecida, por exemplo, a importante participação de mulheres
provenientes das antigas colônias inglesas no Caribe (Jamaica, Barbados e Trinidad,
principalmente) no NHS, imigrando para trabalhar como enfermeiras. No caso de Barbados,
inclusive, um esquema de subvenção estatal foi desenvolvido entre o governo do país e a
administração do NHS para que o primeiro arcasse com os custos de viagem dessas
imigrantes. Ao desembarcarem na Inglaterra, essas mulheres eram direcionadas para os
postos mais baixos do trabalho de enfermeira nos hospitais públicos, mais insalubres e de
menor remuneração e rara possibilidade de promoção15. O caso das enfermeiras revela uma
característica específica da imigração feminina caribenha para a Inglaterra: devido ao fato de
a maioria emigrar sem os filhos em um primeiro momento, seu salário tinha duas justificativas
ideológicas para ser rebaixado com relação à média geral: o fato dela ser mulher e o fato de
não estar com os filhos. Como resume Lewis, “desenvolvimentos no interior da divisão sexual
do trabalho agiram de forma orquestrada com os desenvolvimentos da economia de uma
forma mais ampla, o que, junto da ideologia do racismo e da prática do racialismo determinou
o lugar das trabalhadoras negras na economia britânica”. 16
Além disso, essa posição subalterna de tais grupos com relação a habitação,
qualificação e mercado de trabalho não era amenizada pelos programas sociais – que
hierarquizavam e estratificavam os beneficiários através de múltiplos mecanismos e
justificativas contidas nas regras de elegibilidade – o que acabava por reforçar estereótipos
racistas e rebaixar sua forma de acesso aos bens de subsistência, acesso esse
comparativamente mais dificultado se comparado ao dos trabalhadores brancos ingleses que
agora faziam jus ao modelo do homem-provedor. Como explica Williams (1995, p. 134,
tradução nossa), baseando-se no exemplo britânico,
deveríamos examinar sob que medida as modificações do modelo do homem-
provedor no século XX foram racializadas e sofreram interferência das divisões de
14 Principalmente nos setores onde a demanda por mão-de-obra em um país reconstruindo-se da guerra era maior:
nos nascentes serviços públicos de transporte, na construção civil e no sistema de saúde pública recém-criado.
15 Para mais, ver McDowell (2013). Para relatos em primeira pessoa em um belo e inovador trabalho de história
oral, ver Bryan, Dadzie & Scafe (2018), obra considerada clássica do feminismo negro britânico.
16Disponível em: https://www.versobooks.com/blogs/3176-the-sexual-division-of-labour. Acesso em:
10/10/2019.
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classe. Assim, por exemplo, tal modelo no Estado de bem-estar social britânico no
pós-guerra teve aplicabilidade diferencial. Muitas mulheres afro-caribenhas que
migraram como trabalhadoras nos anos 1950 foram forçadas economicamente
para empregos de período integral – muitas vezes com horários fora do comum
(turnos irregulares e noturnos) – com vistas à auxiliar dependentes familiares na
Grã-Bretanha ou no Caribe. O fato de estas atividades não serem reconhecidas,
auxiliadas e nem legitimadas pelas provisões de bem-estar existentes reproduzia
o discurso racista acerca da natureza patológica das famílias negras.
Ao mesmo tempo, poderíamos especular sobre até que ponto a decisão de
governos do pós-guerra de usar migrantes ao invés de trabalho feminino local
para fazer frente à escassez de mão-de-obra dependia não apenas da sua
capacidade de fazê-lo (no caso da Grã-Bretanha, enquanto poder colonial) mas
também do seu comprometimento com a hegemonia do modelo do homem
branco provedor. Posto de forma franca e simplista, teria o trabalho migrante –
incluindo o trabalho migrante feminino – tornado possível o modo de vida do
trabalhador branco provedor?
Conclusões
Apenas uma análise histórica mais detida pode fornecer elementos para uma caracterização
mais correta e aproximada do que foi o fenômeno do bem-estar social na Europa ocidental
do pós-guerra, atentando para as especificidades do desenvolvimento histórico de cada
nação desde a criação dos primeiros esquemas de seguridade social no início do século e da
relação destes com as modificações por que passaram o Estado e a economia capitalistas no
pós-1945. Tal ressalva torna-se importante na medida em que ajuda a desmistificar parte das
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17Union Jack é como os britânicos se referem à bandeira do Reino Unido, que por sua vez é representativa do
império britânico.
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Sobre o autor
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Jehanne Hulsman1
¹ Hulsman Foundation, JR Dordrecht, Países Baixos. E-mail:
info@hulsmanfoundation.org. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4091-9797.
Diogo Justino2
² Faculdade Vale do Cricaré, São Mateus, Espírito Santo, Brasil. E-mail:
diogopjs@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0313-2482.
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Resumo
Este artigo pretende afirmar a centralidade dos temas da segurança pública e do
populismo penal para a compreensão da conjuntura política atual. A partir desta
premissa, mostraremos como estes temas são trabalhados por setores antagônicos da
sociedade. Então, a partir da crítica da pena de prisão e do controle, será possível
oferecer chaves para compreensão do momento em que vivemos e respostas que
rompam com o punitivismo.
Palavras-chave: Abolicionismo penal, populismo penal, segurança pública.
Abstract
This article affirms the centrality of the themes of public security and penal populism for
the understanding of the current political situation. From this premise, we will
demonstrate how these themes dealt with by antagonistic sectors of society. Then,
based on the criticism of the prison and control, it will be possible to offer keys for
understanding the moment in which we live and responses that oppose punitivism.
Keywords: Penal abolitionism, penal populism, public security.
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Introduction1
Last year an unpublished letter from Primo Levi went public. It had been written in 1945
and sent to his family in Brazil. Its content is impressive today: “fascism has shown to
have deep roots, changes its name, style and methods, but it is not dead, and the
material and moral ruin to which the people have led remains acute. (...) The war is over,
but there is still no peace”2. Levi thought about how the seeds of fascism were
germinating even in the countries to which the world owes the defeat of Nazifascism
(like Brazil and the USA) - each era has its fascism - says Levi when he recalls the Soviet
labor camps, Vietnam War, dictatorships and tortures in Latin America.
The concentration camp survivor pointed out to the world the existence of
prisons, juvenile institutions, psychiatric hospitals where, as in Auschwitz, the human
being loses his name and face, dignity and hope - “Above all, fascism did not die:
consolidated in some countries, cautiously awaiting retribution in others, has not
stopped promising the world a New Order”3. If Primo Levi is right, and we believe he is,
then the foundations that constitute today's neo-fascisms have always been present in
our societies, creating situations of violence, racism, xenophobia and various forms of
discrimination. It would be a case of unraveling these phenomena, which in the paper
presented here, are shown in the new and old speeches for public security and
incarceration of vulnerable sectors.
In recent times, we have seen the rise of authoritarian and neo-fascist ideas
and practices around the world. They are movements that are globally articulated and
affect each society differently, causing a series of tensions, debates and possibilities of
1 We thank Antonio Bastos, Renata Davis and Thayla Fernandes, for the review and suggestions to the
paper.
2 “Il fascismo ha dimostrato di avere radici profonde, cambia nome e stile e metodi ma non è morto, e
soprattutto sussiste acuta la rovina materiale e morale in cui esso ha indotto il popolo. Fa freddo, c’è poco
da mangiare, non si lavora; fiorisce il banditismo, e mentre si parla di democrazia sociale, crescono
mostruosi nuovi capitalismi nati dal traffico nero: è l’aristocrazia più antisociale. La guerra è finita, ma non
c’è ancora la pace.” LEVI, Primo. Non Eravamo piu uomini. Available at:
<https://www.agenziacomunica.net/2019/02/24/non-eravamo-piu-uomini/>. Acess on: 16 jan. 2021.
3 LEVI, Primo. Aos Jovens. Prefácio a É isto um homem?. In: A assimetria e a vida: artigos e sensaios (1955-
1987. (tradução: Ivone benedetti) São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 50.
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ruptures. Analyzing this moment is not an easy task, although it is essential. There are
many ways to look at each case, but demands for order, punishment, increased
penalties, security, personal weaponry and repression seem to underlie the rise of the
extreme right in the world - it is possible to perceive these speeches and practices of
penal populism4 from Brazil to the Philippines, passing through the US, Europe and many
other places where the Extreme-Right gains strength.
However, two premises must be stated: First, penal populist discourses are not
recent. Understanding the rise of authoritarianism means, first of all, understanding the
presence of authoritarianism in our societies for a long time. Second, if, on the one
hand, there is an increase in violent and anti-democratic discourses and practices in the
criminal justice system, on the other hand, it is also evident the rise of protest
movements, which are also not new, but which have publicly affirmed - with even
greater strength - the possibilities of alternatives to a justice system that historically
showed an extraordinary capacity to reproduce injustice, racism, xenophobia, sexism
and other forms of violence, without offering positive results with regard to its declared
functions.
These two premises guided the present work so that, from them, it is possible
to offer some paths in the complex political moment in which we live.
In the relative framework of this paper, it is not possible to go into all the reasons, all the
underlying work done by countless professionals in various interdisciplinary scientific
areas, as to why the legitimacy of the criminal justice system as a concept should be
questioned in all its functions and in its very existence.
History repeats itself is a well-known phrase. The significance of this phrase
seems to elude, time and again. There appears to be a form of collective oblivion, about
prior loss of humanity, known suffering and all the consequences thereof. South
America has an ancient and recent history of abuse of power by governments, so has
4 "Penal populism" or "punitive populism" is the discourse or political practice based on the idea that
various problems of public insecurity can be solved with more arrests, police and legislative changes that
toughen the criminal justice system. In general, they are speeches widely used by mass media outlets to get
more audiences and politicians to get more votes, showing that they are acting against criminals.
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Europe, in countries like Romania, Spain, Portugal and there is of course the lingering
knowledge of the period of occupation by the Nazi regime to all those living under
occupation, this not being a restricted summary. Even in periods of relative peace, there
will be an unequal balance of power, regarding vulnerabilities with people being less
recognized or less represented within a state or a society. The basic principle of
democracy, that it would protect the rights of minorities, has yet to be embodied and
fulfilled.
Donald Black made it abundantly clear that the basic system of law making and
the enforcement of law are direct consequence of the power balance of that particular
time and state:
The seriousness of an offence by a lower against a higher rank thus
increases with the difference of wealth between the parties, whereas the
seriousness of an offence by a higher rank against a lower rank decreases as
this difference increases. The wealthier thief is, for instance, the less serious
in his theft. Thus in modern America, department stores are less likely to
prosecute shoplifters who are middle class and white than those who are
lower class and black, and, in court, the same applies to the likelihood of
conviction, a jail sentence, and a sentence 30 days or more 5.
Politicians want tangible, direct results, when they are faced with a social
problem and the easy way to show their commitment is to give the solution in the form
of a criminal law, to be enforced by the criminal justice system. The intent, any idealism
that forms the basis for the desire to change the problematic situation perceived by
them, may even stem from integrity and a genuine wish to improve the situation
addressed. However, no evaluations of those criminal laws take place in regard to the
problematic situations addressed. Enforcement can pose a serious problem and
experience teaches that more often laws are used for another purpose, than the ones
they were supposedly designed for. The process compares to making a baby and leaving
it into the care of someone else without looking back. The other problem is, that in the
law making process, there appears to be only focus on the intended result. There is
during that process as far as known, no attention for any side effects of the law. In trying
to influence the behavior of people, unintended effects occur that are not registered,
because they were not intended. Thus laws often appear to have the effect of a canon
shot, to kill a fly: the fly might well die, but all around the fly everything is also dead or
5 BLACK, Donald. Behavior of law. New York: Academic Press Inc, 1976, p. 25.
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affected. Therefore, to rely on criminal laws and the criminal justice system, to ‘improve’
problematic situations in society, appears unrealistic and very idealistic.
The systemical language used6 legitimizes the institution by which it is used.
Viktor Klemperer has painfully described how the language of the Third Reich (Nazi
regime) could change the legitimacy of dehumanizing certain groups and people to the
point where they could be treated as objects and in great numbers could be killed. 7 Louk
Hulsman objects to the use of systemical language stating that you cannot escape from
the logic of the criminal justice system, if you do not also discard the use of wording
underlying this logic. Thus, Words as ‘crime’, ‘criminal’ and ‘criminal policy’, etcetera,
belong to the criminal dialect and they reflect the ‘a priori’ of the criminal justice
system.
An occurrence labeled as ‘crime’ will instantly be taken out of its context,
removed from the ligament of individual and collective interactions and
presupposes a guilty perpetrator. No longer has to be proven how
important the use of words is: everybody knows to which extend someone’s
inner status can change if not any longer called ‘maid’, but ‘housekeeper’, or
if someone is no longer ‘an unmarried mother’ but becomes ‘a single
parent’. It also goes without saying that also in a scientific indicated context,
terminology like, criminology, sociology of criminal behavior, crime sciences,
etcetera, are in a negative way connected to the discriminating notions of
the criminal justice system, that will be unconsciously adopted. 8
6 Many all over the world yet have memories of encounters with Louk Hulsman, heated discussions with
him. He has cautioned many to be extremely careful as to the wording and type of language they used in
those encounters. If in a seemingly innocent discussion, someone would for instance say, most people
would..., he most probably would stop that person in their tracks and ask what he meant, which ‘most
people’ was that person speaking about, how would he know that (if one could define the people that he
had in mind when he started talking) there was a majority of people involved and the final blow would
come, when he would say to that person, whatever would give him the idea that the fact that a majority
would have an opinion, would make that opinion more true.
7 KLEMPERER, Viktor. LTI: Notizbuch eines Philologen. Stuttgart: Philip Reclam jun, 2007.
8 HULSMAN, Louk & DE CELIS, Jacqueline Bernat. Afscheid van het strafrecht. Houten; Unieboek BV, 1986.
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if the reader would try to ‘translate’ any systemic language used in this article, to
imaginable actual problematic situations, and its actors, the involved persons, in the
hope of awareness of all who are part of those problematic situations, be it institutional,
be it representatives of minorities or vulnerable groups, or individuals.
2. Former and current developments, inequality and the use of the criminal justice
system
In the 60s, when the Black Panthers published their Ten-Point Program, there were
already several demands related to the justice system. Understanding that a racist
society would create a racist criminal justice system which, on its turn, would reflect
racist discrimination in its sentences, the movement asked, among other things: an
immediate end of police brutality and the killing of black people; liberty to all
incarcerated black people, because they never got a fair, impartial trial; that all black
people presented to trials should be judged in a jury formed by their peers or people
from their black communities. Meanwhile, in others parts of the world, a range of social
actors, activists, movements and academics set in motion theories and practices that
delegitimize penalty and prison, also entailed in antiprison struggles, in a movement
that has been academically consolidated in the fields denominated “critical criminology”
and “penal abolitionism”. This wary approach to the penal system produced several
movements of abolition or reform 9, not to mention academic research that put the
doctrine of punishment, its limits and functionalities, in its due historical place.
It is possible to say that current antifascist and antiracist struggles make part of
a tradition that for a long time points for the centrality of the criminal justice system in
promoting discrimination and injustice. From there, concrete demands of reform or
abolition of police and prisons have reappeared, reanimating the anti-punitive ideal. In
2013, during the great popular demonstrations in Brazil, a watchword was “it did not
end, it has to end, I want for the military police to end”, and today, after the brutal
9 There are many organizations and movements; among the most notorious we can mention: Copel (Spain),
Krum (Sweden), Krom (Norway), PROP (UK), Os Cangaceiros (France), Mothers Reclaiming Our Children
(USA), Coornhert-Liga (Netherlands), Krak (Germany), Liberarsi (Italy), Sasid (Argentina). See more: ALVES,
Tamires Maria. Enjaulados: escolha punitiva brasileira e perspectivas desencarceradoras. Curitiba: Appris,
2020, p. 160-161.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p. 444-471.
Jehanne Hulsman e Diogo Justino.
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/57285| ISSN: 2179-8966
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murder of João Alberto in a Carrefour supermarket, all the structure of public and
private security in the country is put in question. The same has happened in the USA
with demonstrations against police violence after several cases of racism. The
relationship between Black Lives Matter and the topic of public security and penal
abolitionism can be seen from a variety of perspectives10, but it seems to us that it can
be well summarized in the sentence “if black lives matter, we must abolish prisons” 11.
The penal abolitionist 12 struggle is a constant struggle, it was present in the
Black Panthers, it is present in the Black Lives Matter movement, and it will exist as long
as injustice is practiced in the justice systems; but it does not come from a moral opinion
over the inhumanity of prison, but from the scientific and social finding of its sounding
failure.
At the same time, conservative sectors in several countries are increasingly proposing
populist measures within the scope of the criminal justice system, expanding its scope,
punishments and violence. This event challenges us, because such proposals, although
innocuous, appear convincing for most people who still believe in the power of
legislation to change behavior. For politicians introducing or changing legislation is the
fastest and most easy solution, to problematic situations that through media attention
demand a political solution.
10 For two different and interesting perspectives, see: PORTER, Nicole. Expanding Public Safety in the Era of
Black Lives Matter. Available at: <https://www.sentencingproject.org/wp-
content/uploads/2016/05/Expanding-Public-Safety-in-the-Era-of-Black-Lives-Matter.pdf>. Acess on: 16 jan.
2021, and LAWRENCE III, Charles. The Fire This Time: Black Lives Matter, Abolitionist Pedagogy and the Law.
Journal of Legal Education, Volume 65, Number 2 (November 2015).
11 PRASHAR, Ashish. If Black Lives Matter, we must abolish prisons. Available at::
<https://www.theneweuropean.co.uk/brexit-news/if-black-lives-matter-we-must-abolish-prisons-86396>.
Acess on: 16 jan. 2021.
12 The terms "penal abolitionism" and "prison abolitionism" are common and may depend on certain
contexts and places. We prefer the term "penal abolitionism" because it is not limited to the prison space,
but it expands our scope of looking and analyzing other forms of control and incarceration. In the current
American movements the expression "prison abolition" has been more common, but it is possible to find
references to the expression "penal abolitionism" in English as well, such as in Ruth Morris. See: MORRIS,
Ruth. Penal Abolition, the Practical Choice : A Practical Manual on Penal Abolition. Toronto: Canadian
Scholars Press. 1995.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p. 444-471.
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In Europe, far-right parties also approach themes such as public security and
criminal justice in a populist and expanding way. The Alternative for Germany 13 has an
entire chapter in its program about Security and Justice, called “National Security and
Justice”, stating that the “national security is increasingly on the decline” and the police
force is “over-stretched”. They demand to lower the age of criminal responsibility, a
populist measure that is commonplace in this debate. Besides that, they demand a new
statutory offense to be instituted to punish attacks on officials and police officers; they
claim for no restrictions regarding personal firearms legislation, as to guarantee the
freedom for people to own and use their weapons; and they advocate for the
simplification of the processes of eviction of immigrants, considered to be the main
source of criminality in the country by them.
In Spain, the Vox14 party considers safety to be the first obligation of the
government, demonstrating its centrality in their discourse. As a means to obtain the
desired safety, this far-right party also demands measures of penal populism such as the
establishment of life imprisonment; the end of “penitentiary privileges” to incarcerated
illegal immigrants and general propositions of police improvement. In a document for
city electoral campaigns15, Vox advocates for camera surveillance and repression to the
okupas and islamic persons, clearly demonstrating who are the targets of potential
security policy.
Likewise, the program of the Portuguese party Chega!16 contains several
spanish Vox’s program copies. The far-right Portuguese party only bothered to translate
most of the Spanish party’s propositions, demonstrating that this is indeed about penal
populism, with generic demands that repeat themselves and are not based in local
conjuncture analysis, as to bring any effectiveness in terms of security of the citizens,
including vulnerable citizens. Among the propositions fully copied are, for example: the
suppression of any financing to radical feminist organizations and effective prosecution
13 AFD. Manifesto for Germany. The Political Programme of the Alternative for Germany. Available at::
<https://www.afd.de/wp-content/uploads/sites/111/2017/04/2017-04-12_afd-grundsatzprogramm-
englisch_web.pdf>. Acess on: 16 jan. 2021.
14 VOX. 100 medidas para la espana viva. Available at:
<https://www.voxespana.es/biblioteca/espana/2018m/gal_c2d72e181103013447.pdf>. Acess on: 16 jan.
2021.
15 VOX. Programa electoral para las elecciones municipales de 2019. Available at::
<https://www.voxespana.es/wp-content/uploads/2019/05/Programa-Municipales-2019-1.pdf>. Acess on:
16 jan. 2021.
16 CHEGA!. Programa político 2019. Available at: <https://partidochega.pt/programa-politico-2019>. Acess
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Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisões. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2021. In press.
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political debate in general), presenting the speeches of all the candidates on the subject
of public safety.
During the campaign, the inability of the far-right candidate to answer basic
questions about politics and everyday life (equal pay for men and women, investment in
basic education, economics) was redirected, leading everyone to the public security
debate. - "We will play hard on the issue of security, because without security there is
no economy", said the candidate while directing another debate to punitive populism. 19
Proposals to increase penalties, to allow citizens to carry weapons, to exclude the
illegality of the actions of the police, among other examples, were part of Bolsonaro's
vocabulary in any public intervention. According to the aforementioned research, the
themes "urban violence", "organized crime" and "fight against corruption" colonized the
Brazilian public debate even before the elections, being decisive for the electoral debate
on these issues to be conducted by the candidate from the extreme right, accompanied
by everyone else (from left to right). 20
The main reason for mass incarceration in Brazil is its drug policy21, that is, the
policy of repressing the retail trade of substances proclaimed illegal by the state. Rosa
del Olmo shows how it developed in Latin America - in the period of transitions to
democracy - the transformation from the internal "communist" enemy to the internal
"trafficker" enemy. In order to connect the two wars, two main enemies were spoken of
and terms such as narcoguerrilla, narcoterrorism, narcosubversion or narcoinsurgency
were spread out22. The war on drugs trade would then promote a re-militarization in
countries that were making a transition to democracy, allowing police advances,
relegitimation of executions and torture in exchange for combating the new internal
enemy.
19 ATHAYDE, Juliana; BARRETO, Ana Luisa. “A dança das direitas: a questão criminal reposicionando o
cenário político”. In: BARRETO, Ana Luisa et all (orgs). Política sob gatilho. A questão criminal nos discursos
eleitorais de 2018. Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisões. Rio de Janeiro: Editora
Revan, 2021. In press. p. 86.
20 The candidacy that collided with the others on this issue was that of the PSOL (Socialism and Liberdade
Party), which obtained only 0.58% of the votes. Despite the fact that this candidacy presented important
criticisms of the current logic of public security, it has not yet managed to completely break with the
criminalizing discourse. See: FERNANDES, Daniel & MATOS, Lucas. Encruzilhadas da punição: encontros e
desencontros da esquerda institucional brasileira. In: BARRETO, Ana Luisa et all (orgs). Política sob gatilho. A
questão criminal nos discursos eleitorais de 2018. Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e
Prisões. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2021. In press. p. 58, 62-63 y 68.
21 The same is true of many other countries in the world, including the USA as shown by Ruth Gilmore.
GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prisons, surplus, crisis, and opposition in globalizing. California,
University of Califórnia Press, 2007, p. 18.
22 DEL OLMO, Rosa. Geopolítica de las drogas. Revista Análisis. Vol. 2. Nº 1. Medellin. 1998, p. 61.
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In the same way, the use of the decrees of "Guarantee of Law and Order" has
been a constant in the Brazilian democratic period, whether by center-left or right-wing
presidents, such as Fernando Collor in the 1990s, and Michel Temer latter, which means
a continuity of militarized social control strategies, commonly directed at marginalized
communities23. This violent process permeated all democratic governments in Brazil and
the discourse culminated with the election of Bolsonaro in 2018.
The populist discourse of public security has a rhetoric of fear, of the
amplification of the police control apparatus over society, of repression, of mass
incarceration, of the hardening of criminal legislation and of criticism of human rights.
These ideas have not emerged now, but have always been latent in any society, that is
organized in inequality where its citizens are daily witness to structural conflicts and
structural violence.
4. Dealing with problematic situations, political selection of the criminal justice system
The world is vast and ancient. An indeterminable amount of peoples and territories have
preceded us, to get to the point we are now. In each place and time, humanity has
thought of different ways of dealing with problematic situations like conflict, unwanted
situations, violence and differences. These many ways have been communal or
individual, violent or appeasing, destructive or restorative. The juridical way, or penal
legal way, is somewhat recent 24, and, ever since it exists, its countercharge is well
known. There have always been voices contesting its goals and operability, and aiming
to expose its selectivity, brutality and inefficiency. In a more elaborate manner, the
critique of the prison dates back at least to the 18th century, with William Godwin.
The critique of the punitive models and the punishment culture grew
substantially in the 20th century, and hit in the 60s and 70s its peak in terms of
formulation and agglutination of ideas. From this movement has risen what we call
critical criminology and penal abolitionism. The Critical Criminology emerges from the
sociological criticism of etiological criminology’s (based on searching for the criminal
23 FERNANDES, Thayla. “O rio da secura deságua na guerra”: integração, comando, controle e Intervenção
militar no Rio de Janeiro contemporâneo. Revista de Estudos Empíricos em Direito. Vol. 7. n. 2, jun 2020.
24 Prisons, for example, were only disseminated in the XIX century.
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ethos). Thus, traditional criminology has searched for explanations of the motivations of
the offenses, the causes of criminality. The critical criminology’s25 reverse the object of
research, observing the processes of criminalization and social control, that is, why some
people or social groups are the targets of the penal system and others are not. This is
explained, greatly, by the selectivity of the penal system.
Every penal system is selective. The State proposes a criminalizing program
(primary criminalization) which itself cannot fulfill its intended goals because of the lack
of material conditions. Thus, many people who commit acts that are criminalized
(crimes) do not get the formal-state response. Those who are selected by the agencies
of the State (secondary criminalization) the process of enforcement, represent a
minority. The difference between the number of crimes committed and the number of
crimes that come to the knowledge of the State and receive formal treatment is called
dark (or hidden) figures of crime.
25 Amongst what is conventionally called critical criminology are heterogeneous theoretical movements, that
sometimes agree with each other and other times do not, having as paradigm the symbolic interactionism
and the idea of the selectivity of the penal system. The radical criminology, which has a marxist focus, can
be cited as an example.
26 GROS, Frederic. “Os quatro centros de sentido da pena”. In: Punir em democracia – e a Justiça será.
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theories that answer the question why punish?. They split into absolute and relative
theories. The absolute theories are those, which advocate retribution, which,
theoretically, would be an equal response. Historically, it arises in the model of primitive
vengeance in interpersonal and intrafamily relationships. Vengeance has always been
one of the ways of dealing with problems. And not necessarily was worse or more
violent than prison. For Klaus Gunther, the idea of an eye for an eye, a tooth for a tooth
was a limitation of vengeance 29. For a lost tooth, nothing more than another tooth.
There was an idea of proportionality in vengeance. The main risk was disproportionality
in the answer (retribution), which could cause an escalation of infinite retribution. Gros,
on the other hand, reminds us, from Verdier and Courtois’ studies, that the idea of
vengeance as the monstrous childhood of a pre-juridical and pre-social humanity is like
the state of nature: historically inapprehensible and coming from a modern conception
posterior to the State.30 Also in the words of Ignacio Anitua:
There was no public reaction to the damage caused, but the one who
claimed to have suffered it should indicate the person allegedly responsible
for it as an opponent. In any case, the group answered to the damage - and
to the complaint of the damage - with the loss of the offender’s
peacefulness, who was, accordingly, expelled from the community and at
the mercy of the victim’s or the victim’s family’s reaction. This did not
always mean that death would occur; in truth, the ones affected used to
demand compensation.31
The Talion principle, distorted by Kant32 to fit in the modern juridical reason,
appears in many ancient texts. From the Bible to the Quran, passing by the roman Law
of the Twelve Tables and the Code of Hammurabi. An universal law which, according to
François Ost, must be read with the separation of the vindicative system (blind desire of
vengeance) from the vindicatory system (that arises from the idea that the offense
involves a duty of reparation)33. Thus, the vengeance of the past may mean a
29 GUNTHER, Klaus. Teoria da responsabilidade no estado democrático de Direito. São Paulo: Saraiva, 2009.
p. 58.
30 GROS, Frederic. “Os quatro centros de sentido da pena”. In: Punir em democracia – e a Justiça será.
that the law which was violated ceases to have validity to the offender. If you steal, you cease to have the
right to property. See KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO,
2003. p. 175-176.
33 OST, François. O tempo do Direito. Lisboa: Instituto Piaget. 2001, p. 132.
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requirement of Justice, with a new temporality that carries meaning and hope34. Reyes
Mate seeks for an understanding similar to the category of resentment, beyond its
relation to vengeance.35 It would be understandable a desire of the executioner sharing
with the victim the feeling that the violence produced should not have happened.
The substantial change of this model happens after the Modern State takes to
itself the right to retribution 36: having in sight the insufficiency of private vengeance37,
the State must intervene through a serene, just, balanced and rational retribution. This
is a common thought and many authors talk about how the punitive power confiscated
the conflict from the victim (Foucault 38, Zaffaroni39, Batista40), withdrawing them from
the resolution of the problem and leaving them in a disadvantageous position 41. What is
at stake is not the conflict characterized by the damage to a person, but the offense, the
violation to the legal rule42. Thus teaches Zaffaroni:
During the 13th century, when, definitely, it ceased to be a trial of parties
with mediation of the authority to convert itself in an exercise of power in
which the authority suppressed one of the parties (the victim), and even
more so, since its modern reformulation from the 18th century on, the
penal-juridical discourse has always been based in fictions and metaphors,
that is, in made up elements or brought from outside, without ever
operating with concrete data from the social reality. 43
not apply to you anymore. In the example used by him; if you steal, you are deprived of your assets. Hegel,
in turn, thinks about this question in terms of value. If you remove a tooth, you deserve to have removed
from you something that has the same value of another tooth.
37 The thesis that affirms a penal system was originated in the vindicative system is, at the very least,
controversy. According to Mauss, the origin of the public penalty is sacred/religious. GROS, Frederic. “Os
quatro centros de sentido da pena”. In: Punir em democracia – e a Justiça será. Lisboa: Instituto Piaget.
2001. p. 16.
38 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3. Ed. Rio de Janeiro: NAU editora, 2002, p. 65-66.
39 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p 30-31.
40 Nilo Batista talks in terms of expropriation of the conflict. BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema
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The positive special prevention seeks the resocialization of the subject, while
the negative special prevention has an intimidating and/or neutralizing character. They
are both directed at the criminal. First, it is necessary to take into account the selectivity
of the penal system and the dark figures of crime, that is, that most people who commit
crimes are not the object of state intervention. This means that, despite the fact that
people selected by the penal system are considered criminals and, thus, should be
resocialized or neutralized, this assessment is false once it is measured up only to the
smallest part of the authors of actions considered crimes.
Even if this fact is not taken into account and the theories of special prevention
are analyzed, one can observe that they do not hold up: resocialization assumes that
there is an asymmetry among the incarcerated people and the common citizens, with
the prison being an instrument of improvement, that is, of construction of positive
values within the incarcerated person. Contrary to what the theory suggests, the prison
system can be seen increasingly more as a form of degradation of the subject, that ends
up desocialized. The rates of recidivism indicate that; which also rebuts the intimidating
character of the passage through prison. Equally, it would be ethically questionable that
part of the society imposed on another an education so that the latter lived according to
the imposed social morals. In that case, in practice, the subject ends up apprehending
the existing moral in prison.
The negative special prevention, with its neutralizing craving, is based on an
indemonstrable premise: that the subject, when free, be it after punishment or not, will
necessarily go back to committing crimes. If there really was any way to verify with
precision that someone will commit a crime, we would have, in fact, a form of
preventing crimes. With the absence of precision, the referred theory becomes a
justification to create penalties increasingly greater, that violates individual guarantees
and human rights, which will affect the usual targets of the penal system.
General prevention suggests an educational function of punishment, betting
on Criminal Law’s communicative capacity to strengthen positive values in the society,
so that other people do not repeat the convicted subject’s conduct. The negative side of
the prevention is the discourse of the fear of punishment, when the penalty would serve
to dissuade other people not to commit the same conduct of the one who was
convicted.
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In Zaffaroni, Nilo Batista, Alagia & Slokar, it is seen that negative general
prevention does not find grounds if compared to social reality and brings us to
consequences that are incompatible with the Rule of Law44, because (1) it works with a
market-rational-mechanic notion of men, that in all cases will evaluate the cost-benefit
of his conduct; (2) it does not have dissuasive capacity proved, the only experiences of
dissuasive effect of the punitive power capable of verification being those of the states
of terror, with cruel and indiscriminate penalties; and (3) it mistakes the power of Law in
general, of social ethics and culture with punitive power and it is not convenient for a
society that people stop engaging in problematic situations out of the fear of
punishment and not because they are conflicted acts, nor it would be possible to sustain
a society whose members performed only actions they know are not criminalized 45.
The notion of positive general prevention indicates (1) a reaffirmation of the
norm protective of legal goods that are important to reinforce the trust in the legal
order and (2) the promotion of socially important values; which brings us to the
question of whether the imposition of a harm is a valid instrument to promote desired
social values. The answer must also take into consideration the historical load of
oppression of the punishment, that has vicious effects of exclusion and selection46.
It has not been proven that the penal system prevents criminal attitudes from
people who have not committed crimes (from Hannah Arendt to Louk Hulsman) 47, since
the criminal statistics themselves are flawed on that subject. Normally, when criminality
statistics are discussed, in reality they are criminalization statistics, the actual criminality
being impossible to demonstrate. Hence criminology mentioning the dark or hidden
figures48.
Besides, we should take into account that the idea of general prevention
thoroughly demonstrates the negligence of Criminal Law towards the victim, since even
44 ZAFFARONI, E. Raul, BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro:
Primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan. 2003. p. 121.
45 ZAFFARONI, E. Raul, BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro:
Primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan. 2003. p. 118.
46 MARTINS, Antonio. “Sobre Direito, punição e verdade: reflexos acerca dos limites da argumentação
jurídica”. In: DIMOULIS, D. et al. Justiça de Transição no Brasil: Direito, Responsabilidade e Verdade. São
Paulo: Saraiva. 2010. p. 86.
47 “No punishment has ever possessed enough power of deterrence to prevent the commission of crimes.”
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das
letras. 1999. p. 296.
48 The difference between the crimes that were committed and the crimes that make it to social awareness,
normally through the penal system. Most crimes do not get known by the authorities and do not get
punished.
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if the penalty does not heal their wounds or repair the damages, it is necessary to
impose a harm to the author of the crime to promote social cohesion or consensus49.
There are also victimless criminalized behaviors like traffic offences or drug offences,
which are tended to be forgotten in those theories. The penalty is aimed at the public
opinion, which means that crimes that are not enforced by the penal systems will never
be seen as crimes, and the responses are directed at the executioners or possible
executioners for future victims, so that the victim’s suffering is not taken into
consideration. As for the result, the positive general prevention does not differ from the
negative general prevention, and the more quarrelsome is a society because of its
structural injustice, the less consensus there will be, and we will always need higher
forms of punishment.50
On the insufficiency of the theories that justify the punishment, Klaus Gunther
teaches us that both retribution and prevention do not resist a more detailed analysis,
leaving us the issue of non-official justifications, in a context of great confidence and
demand of punishment, a demand that would be beyond evidence and would still be
waiting for the arrival of enlightenment.51 Going further on punishment justifying
theories, Salo de Carvalho states that before asking “why punish?” we should ask
whether or not to punish, that is, do we need to punish? Here, penal abolitionism
appears as a negative answer52.
Penal abolitionism is a broad movement that escapes from dogmatism. There can be no
precise definition. Abolition of prison, of punishment and control culture, of punitive
power; these are common grounds of abolitionism criticism. A minimalism53 with an
49 ZAFFARONI, E. Raul, BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro:
Primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan. 2003. p. 121.
50 ZAFFARONI, E. Raul, BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro:
p. 57.
52 CARVALHO, Salo. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva. 2015. 243-44.
53 Maximum limitation to the punishing power and progressively diminishing criminal offenses as defined by
law.
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54 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói.
LUAM, 1993. p. 86-87.
55 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói.
1993. p. 73
57 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói.
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model, the reparatory model, the therapeutic model and the conciliatory model58. The
punitive solution simply excludes the other possibilities. 59
A ponderation about “the right” or “the need” to punish, that intends to be
situated on this level is, therefore, aberrant. Only in the closest contexts,
where concrete meanings can be attributed to the ideas of individual
responsibility and of “punishment”, is where it will eventually be possible to
resume such ponderation, be it at mezzo level of relations among individuals
and groups or institutions to whom they are close, be it at the micro level of
interpersonal relationships - there, where it is possible to recover what was
lived by the persons.60
58 ZAFFARONI, E. Raul & PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro – Parte Geral. 2004.
p. 59
59 ZAFFARONI, E. Raul & PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro – Parte Geral. São
1993. p. 88.
61 DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Barueri: Editora Manole. 2004, p. 308-
309.
62 DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Barueri: Editora Manole. 2004, p. 309-
310.
63 DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Barueri: Editora Manole. 2004, p. 310.
64 DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Barueri: Editora Manole. 2004, p. 311-
313.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p. 444-471.
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based on four principles: a) searching for and accepting the positive side of each conflict;
b) pacific manifestations in the interior of the community reduce the existing tensions
and increase the chances of finding a real solution; c) that the individual and the
community accept the responsibility of their own conflicts; and d) the voluntary solution
of a conflict is necessary and encourages a spirit of cooperation within the community.
According to Nils Christie, in the current model we are trapped by the
necessity of punishment, and we are not able to think of alternatives. For him, the
penalty may be an option, but it should not be the only one, nor the first one.
Punishment should be used in rare cases when the non-utilization ends up causing
greater damage65. To Matías Bailone, this possibility is incredibly rare, because, in the
best case scenario, the penalty leaves conflict as it is, and in the worst case, it worsens
the situation66. To the conflicts we do not know how to solve, but to which, as a false
solution, we attribute a criminal nature, Zaffaroni proposes answering with the so-called
grocer logic. Thus, if a person goes to the grocery looking for antibiotics, the grocer will
tell them to go to the pharmacy, because he only sells greens. Penalists would have a lot
to learn with the grocer67.
Christie mentions the case of a Nazi hanged at the door of a concentration
camp after the liberation of the inmates, and proposes a solution with attribution of
responsibility. There would be a judgment. Day after day, survivors would describe what
had happened and express their drama. The commander would be able to defend
himself, in front of the survivors and of who else would be judging. If the judge were
free, he could deliver the following sentence:
You have clearly done it. You have administered the death of more than a
million human beings. You are guilty. Your acts are morally repulsive to an
extent beyond what can be imagined. We have heard it. Everyone in the
civilized world will get to know about your horrible acts carried out at this
horrible place. No more can be said and done. Go away in shame.68
65 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan. 2011. p. 131.
66 BAILONE, Matías. Abolicionismo, o cómo destruir el arrogante imperio del poder punitivo. Available at:
<http://www.terragnijurista.com.ar/doctrina/abolicionismo.htm>. Access on: 16 jan. 2021.
67 The penalty is not the only form of state coercion. Batista and Zaffaroni indicate us that the state coercion
can be (1) the reparatory or restitutive, normally used in private law, where the State imposes by force the
fulfillment of a debt, by garnishment, for example; (2) the direct or police coercion, in cases where it is
necessary to deter an imminent injustice or one that is in course, the latter being the case of the
imprisonment of a person caught in the act; (3) finally, the penalty by which the state force imposes a
suffering because of a past act. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR,
Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 101.
68 CHRISTIE, Nils. A suitable amount of crime. New York: Routledge, 2004, p. 88.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p. 444-471.
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69 To Garapon, the reconstruction of the legal community weighs on the legal process, through the
acknowledging of the victims, honoring the memory, telling the story and preventing a war. GARAPON,
Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Piaget. 2004. p. 17.
70 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan. 2011. p. 147
71 GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Piaget. 2004. p. 240.
72 GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Piaget. 2004. p. 240-241.
73 GUNTHER, Klaus. Teoria da responsabilidade no estado democrático de Direito. São Paulo: Saraiva. 2009.
p. 61
74 TAVARES, Juarez. Os objetos simbólicos da proibição: o que se desvenda a partir da presunção de
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gravity76. He seeks ways of supporting victims, such as financial compensations from the
State, insurance systems, financial support in case of mourning, shelters and help
centers.
In this work, we affirm the centrality of the theme of public security and prison in the
current political scenario, whether from the demands of progressive movements in a
critical perspective or, on the other hand, in the populist-punitive proposals of
conservative sectors. This tension between dissonant ideas forces us to think of
solutions that break a punitive almost-consensus that we have observed for some time.
According to Angela Davis77, the most difficult and urgent challenge today is to
creatively explore new terrains of justice, where prison no longer serves as our major
anchor. Similarly, to Vera Malaguti Batista one of the challenges in the near future will
be formulating a radical critique of the penal system and its constituent functions: the
control of resistant ones and the maintenance of capital accumulation process’ order 78.
For that, it will be necessary to put before us the old dilemma between
abolition and reform. While there was no horizon for the abolition and production of
new ways to do justice to problematic situations, reforms were thought to improve the
system, making it less violent. Some of these proposals were made to emerge in
scenarios where the minimum dignity of prisoners was denied. Other reforms
contributed to increased control and increased incarceration.
We believe that an important key to thinking about this theme is the idea of
non-reformist reforms, expressed by Patrisse Cullors 79, one of the founders of the Black
Lives Matter movement. These are changes in the system that contribute to its decline,
not to its reorganization. Reforms that are going to get us closer to abolition.
76 MATHIESEN, Thomas. “A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?”. In: PASSETTI, Edson
& BAPTISTA, Roberto. (orgs.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade
punitiva. São Paulo, IBCcrim/PEPGCS-PUC/SP, 1997, p. 276.
77 DAVIS, Angela. Are prisons obsolete? New York: Seven Stories Press. 2003, p. 21.
78 BATISTA, Vera Malaguti. “Adesão subjetiva à barbárie”. In: Loic Wacquant e a questão penal no
prison-abolition-angela-davis-yara-shahidi.
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In this sense, there are requests for Defund the Police, which gained strength
in the USA and directly affect the police budget, redirecting them to communities and
other public policies. In the State of Rio de Janeiro, for example, the budget of the
Department of Public Security corresponds to the budgets of the Departments of Health
and Education combined.
The redirection of the police budget to the communities poses another way of
responding to conflicts diametrically opposed to the legal form, which individualizes the
problem and the supposed solutions. Because of this, critics of the criminal justice
system should look carefully at alternative proposals to the system that use an
individualizing logic, as can happen in restorative models or in civil responsibility. One of
the tasks of critics of the prison will be to think of other forms of accountability that go
beyond individual responsibility, to think in multi-disciplinarity.
One of the problems of the simplification that inevitably is a consequence of
using such a complex and vast system as the criminal justice system to address social
problematic situations, is that those situations are often not that clear cut. In public
space when young people challenge each other, it is not always the one injured that is
the victim, the person injured might even have started the fight. In domestic situations it
is not always easy to find out where the real problem lies, and who would be
responsible for that problem. In cases where society does not answer to the needs of
people that are excluded and without housing or enough means to feed themselves and
their children, could you really see them only as ‘breakers of the law’ and therefore
responsible or could you also see them as a victim of those shaping policies that exclude
and use people, taking their land and properties, abusing their labor potential for fast
profit at the expense of the health of the workers.
In the abolitionist struggle many tools are good. At the same time that it is
important to formulate radical criticisms of punitivism, denouncing its innocuous
violence and above all its dysfunctionality, it is also necessary to intervene politically to
create spaces for change that will move us towards the end of prisons.
The Breath Act 80, for example, presented at the US Congress, formulates
several policies of new, non-punitive, non-carceral approaches to community safety that
lead states to shrink their criminal-legal systems, with an abolitionist horizon. It is a
proposal for legislative change that not only changes the laws, but puts the public
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debate the way it should be put: in terms of overcoming the current criminal justice
system. In Brazil, several platforms against incarceration have been produced in the last
few years, with proposals for concrete measures, such as the Agenda Nacional pelo
Desencarceramento81, which claims fund suspension in order to stop new prisons’
construction and also the resumption of community autonomy for non-violent
resolution of conflicts; and pressure on politicians in national and municipal elections. It
would also be important for abolitionists to support and elect representatives who are
committed to this cause.
Furthermore, it is mainly important to conduct this debate honestly with the
general public; that is, clearly affirming penal abolitionism as an answer to what to do
about the events that we call "crimes". Otherwise, we will always be hostages to
populist agendas, always placed against a wall, formulating restraining responses, which
alleviate the problem or serve to reorganize and nurture the control and prison system.
Don’t you know? They’re talking about a revolution.
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Jehanne Hulsman
Journalist, Writer and Attorney. Director of the Hulsman Foundation. Board
Member of the Human Rights Foundation (2005 - 2010). Invited lecturer on
postgraduate courses in Dubrovnik (Croatia), in Johannesburg (South Africa), in New
Delhi (India), and in the European Group of Critical Criminology and at ICOPA
(International Conference on Penal Abolition). Guest Teacher at the Free University
in Berlin and in Kiel University. E-mail: info@hulsmanfoundation.org
Diogo Justino
Master and PhD in Theory and Philosophy of Law (State University of Rio de
Janeiro), with sandwich period at the Superior Council of Scientific Investigations
(CSIC - Spain). Coordinator of the Working Group on Law, Memory and Transitional
Justice at IPDMS (Institute for Research, Rights and Social Movements). Member of
the Laboratory of Critiques and Alternatives to Prison (LabCap). Master's Professor
at Vale do Cricaré University (FVC-ES). E-mail: diogopjs@gmail.com
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Jehanne Hulsman e Diogo Justino.
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Diana Restrepo Rodríguez
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Resumen
La cultura hegemónica de nuestra sociedad parte de las dicotomías, y entre ellas una
nuclear que permite la existencia del castigo y su uso como principal método de control
social: la división entre buenos y malos. Sin embargo, en la complejidad de esta
modernidad las dicotomías son muchas y entrelazadas. En este artículo se explora la
existencia de una prisión global que presenta múltiples rostros y que sirve como
diagnóstico y a la vez como pronóstico de los variados encierros del siglo XXI, y ojalá como
herramienta para su comprensión y futura abolición, en el marco del actual capitalismo
de la vigilancia.
Palabras Clave: Prisión; Abolicionismo; Capitalismo de la vigilancia; Pandemia.
Abstract
The hegemonic culture of our current globalized society is based on dichotomies and
among them a nuclear one that allows the existence of punishment and its use as the
main method of social control is: the division between good and evil. However, in the
complexity of this modernity the dichotomies are many and intertwined. This article
explores the existence of a global prison that presents multiple faces and serves as a
diagnosis and at the same time as a prognosis of the varied confinements of the 21st
century, and hopefully as a tool for understanding and abolish them in the future, in the
current surveillance capitalism.
Keywords: Prison; Abolitionism; Surveillance capitalism; Pandemy.
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La división entre buenos y malos, división fundamental que permite todo tipo de castigo
(HULSMAN e BERNAT DE CELIS, 1983) (GUAGLIARDO, 2013), junto con la jerarquización
social fruto de la organización patriarcal (GALINDO) (FEDERICI, 2010), y la imposición del
sistema cultural (de origen occidental) y total del capitalismo globalizado (MARINAS,
2012) (ZUBOFF, 2020) con sus mutaciones a lo largo del tiempo, han diseñado nuestro
mundo actual. Un mundo absolutamente castigador (GARLAND, 1999) (2012),
dicotómico, inequitativo, destructor y despreciador de la vida humana, animal, y de la
tierra en general (RADFORD RUETHER, 1990) y lleno de mentiras.
Una de esas mentiras es que necesitamos el castigo, en cualquiera de sus
formas, para generar personas responsables y posibilitar una convivencia respetuosa de
los derechos humanos. Dentro de ello, muy especialmente, encontramos la gran y popular
mentira de que las prisiones tienen que existir. En la academia ha sido ampliamente
demostrado que esto no es cierto, que la prisión en lugar de prevenir la criminalidad o
disminuirla, la aumenta (MATHIESEN, 2003) (FRANCÉS LECUMBERRI e RESTREPO
RODRÍGUEZ, 2019); y que sus funciones (para lo que sirve realmente) son otras muy
diferentes: controlar poblaciones marginalizadas (WACQUANT, 2001), continuar e
incrementar las divisiones sociales de clase (BARATTA, 2004), generar la ilusión de que los
gobiernos de cada Estado aún son quienes deciden y gobiernan, producir las riquezas que
se dejaron de producir con el “fin” de la esclavización de las personas negras (CHRISTIE,
1993) (DAVIS, 2003), generar tranquilidad y distraer a la población de las soluciones reales
a los problemas sociales.
Sin embargo, la prisión no solo sigue existiendo, sino que cada día crece más y
más, especialmente para las mujeres (METAAL e YOUNGERS, 2011) (ANITUA e PICCO,
2012) (INTER-AMERICAN COMMISSION OF WOMEN (CIM), 2014) en dimensiones antes
inconcebibles, y en nuevas formas también, algunas extramurales (por fuera de los muros
tradicionales de las penitenciarías y otros centros de encierro masivo).
En la base de todo está la idea que niega la unidad de todo, que separa, que
marca nuestra lógica dualista (CAVALLÉ CRUZ, 2008). De allí el poder de lo simple, porque
1Este artigo é o resultado de uma investigação do Grupo de pesquisa GIPCODEP da Universidad de San
Buenaventura Cali, Facultad de Derecho y Ciencias Políticas, Valle del Cauca, Cali, Dirección: Cra. 122 # 6 – 65,
Código Postal: 760008, Colômbia, onde a autora é professora pesquisadora.
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con solo lograr que cada persona no creyera que otra puede ser mala mientras ella es
buena, y por ende no pudiera juzgar y arrogarse el derecho de castigar, el ciclo destructor
del castigo se terminaría, y con él ese mundo dicotómico señalado. Pero, aunque con esta
esperanza, en este texto se quiere algo menos pretensioso: tratar de evidenciar las formas
que adquiere la prisión en la actualidad, en nuestra realidad atravesada por pandemias,
tecnologías sin par, sensaciones de libertad y de miedo que solo esconden mayores
opresiones, o como lo representa tan bien ZUBOFF (2020), en este capitalismo de la
vigilancia2.
2 “El capitalismo de la vigilancia no es una tecnología; es una lógica que impregna la tecnología y que la pone
en acción. (…) Es el capitalismo -no la tecnología- lo que pone precio a la subyugación y a la impotencia”
(ZUBOFF, 2020, p. 30).
3 Piénsese en las experiencias que narran las personas secuestradas por la guerrilla en las selvas colombianas,
(BETANCOURT, 2010) (ROJAS GONZÁLEZ, 2009) donde se observa la importancia de los premios, los castigos,
la ruptura de cualquier solidaridad entre quienes sufren el cautiverio.
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como espacio tangible sale de los paisajes cotidianos y sigue cerrando sus puertas a la
comunidad, facilitando su olvido y deformación en las mentes de las demás personas.
En una mirada global, podríamos pensar en las diferencias que hay entre una
prisión, con altos éxitos de reinserción y respeto por los derechos humanos como la de
Halden, en Noruega (¿Qué invadimos ahora?, 2015) (PRATT, 2008) (SELKE, 1993),
(JOHNSEN, GRANHEIM e HELGESEN, 2011) en donde no hay hacinamiento, los y las
funcionarias están al servicio de las personas presas para tratar de generar buenas
condiciones de vida, diálogo, reflexión y desarrollo humano. Se trata de prisiones que,
vistas desde la periferia, ofrecen mejores condiciones de vida (mucho mejores) que las
que tienen la mayor parte de la población en libertad en estas amplias regiones del
mundo. Pasando a otros escenarios, fuera de los países escandinavos, podríamos pensar
en las prisiones europeas, con las diferencias existentes entre aquellas suizas,
portuguesas, alemanas, españolas, italianas, etc., en las que, a pesar de haber grandes
problemas, se respetan medianamente los derechos humanos y las condiciones de vida
son ligeramente confortables.
La estratificación continuaría, quizá, con las prisiones asiáticas, las
latinoamericanas y africanas, en donde los derechos humanos son una ilusión, y las altas
tasas de hacinamiento, entre otros problemas estructurales, impiden las condiciones de
vida digna, e incluso, en muchas de ellas, la vida misma, por los insoportables problemas
de higiene, atención en salud, y los altos índices de violencia tanto por parte de quienes
garantizan la vigilancia como por riñas entre las personas privadas de la libertad. Podría
hacerse toda una clasificación de las prisiones del mundo, con sus cerca de once millones
de habitantes en contra de su voluntad (PRISON INSIDER, 2020) y un buen número de
vigilantes o guardias que también viven allí. Y aún así, en cada país, habría luego que hacer
una nueva clasificación, porque ningún estado tiene todas sus prisiones en el mismo nivel
(con las mismas condiciones de vida, programas, espacios, oportunidades, tasas de
violencia, etc.), no podrían funcionar, porque para gestionar la disciplina, generar acceso
a los programas más ventajosos, y en general para poder controlar a la población
encerrada, se requiere que haya “cárceles de castigo” con que presionar y continuar la
dinámica del control social del castigo: “compórtate como se te indique, porque siempre
habrá un lugar peor donde puedas ir”.
Tampoco cada patio, pabellón, módulo, o como se quiera llamar a los diferentes
espacios dentro de cada prisión puede ser igual, por los mismos motivos. Quizá vale la
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3. Prisión global
Michel FOUCAULT (2005) (2010) decía que la prisión solo terminaría cuando toda la
sociedad fuese una gran prisión. Y esa fue quizá la ilusión de varias personas, seguramente
de algunas privadas de la libertad y sus familias, cuando en los primeros días de la
cuarentena o aislamiento obligatorio frente al COVID-19 se empezó a ver cómo varios
países e incluso varios estados de USA empezaban liberaciones, y también increíblemente
el gobierno colombiano parecía interesado en que de la prisión salieran (no de sistema
penal, pero sí de las conocidas como medidas intramurales) unas 10.000 personas. Muy
poco, pero para este gobierno, en Colombia, mucho. Eso por supuesto desde la noche del
14 de abril se desmintió, cuando salió el tan esperado y vergonzoso Decreto 546 de 2020,
que no sirvió para prácticamente nada, pues sólo pudieron salir de las prisiones 4.000
personas, y se incrementó el hacinamiento, ya insoportable, en estaciones de policía y
centro de detención transitoria del país, cuando sólo para que no haya hacinamiento se
requeriría que salieran unas 40.000 personas.
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No quiero que se piense que digo que “el encierro” que vivimos las personas en
el confinamiento sea equiparable al encierro que viven las personas presas, pero sí creo
que la privación de libertad, no sólo física sino mental y emocional sí va avanzando a pasos
agigantados hacia una gran prisión global. Y la vigilancia se ha facilitado enormemente en
estos tiempos de pandemia, y para entender eso, estudiar más la prisión nos puede
ayudar mucho.
Y es que la prisión, al ser un reflejo de la sociedad, pero mucho más condensado
y crudo, es decir, al ser el espejo ampliado del resto de la sociedad, de sus desigualdades,
de sus lógicas, de sus miserias y de sus crueldades, nos ayuda a comprender, cuando nos
permitimos verla, no sólo lo que pasa adentro sino lo que pasa afuera.
Por eso ahora se hablará de la prisión premial. Pero antes recordemos lo que se
venía diciendo. Se supone que si el mundo es o se está volviendo una gran prisión global,
la prisión que veníamos conociendo hasta ahora debería desaparecer… Y desde ahora
diremos que esto no es así. No es así porque en la época de Foucault aún no se tenía tan
claro como hoy cómo iban a ser esas prisiones. Entendiendo la prisión actual, podemos
entender por qué, al contrario, cuando el mundo termine siendo una gran prisión, dentro
de ese proyecto de opresión y desigualdad global que consolida el sistema consumista, la
prisión “de siempre”, aunque con cambios, sigue teniendo un rol fundamental.
Esa transformación de la prisión es la que nos hace hablar de un Sistema
premial. Cuando uso la palabra sistema me refiero a eso, un sistema, no solo
penitenciario, sino un sistema de gestión de comportamientos, de control social, que se
basa en el premio. Porque el premio es una de las evoluciones actuales más importantes
en las lógicas del castigo.
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4 “El Fordismo empresarial (…) tiene que ver con la transformación del sistema fabril del capitalismo industrial
manchesteriano en una organización calculable y previsible de la producción mediante un sistema de
dominación jerárquica, es decir, con la conversión de las empresas en un sistema de comando. Para que esto
fuera posible, la influencia de la reproducción social y los factores individuales debían ser neutralizados en la
producción. El objetivo era realizar una producción planificada, llamada a alcanzar una posición dominante
sobre el mercado y el consumo, que deberían quedar subordinados a aquella. Para esto resultaba esencial
integrar la fuerza de trabajo en una rígida estructura de producción de carácter técnico-organizativo y en un
sistema de poder fuertemente jerarquizado. La estructura organizativa de la empresa se debía asemejar a
una organización militar cuyo principio es la renuncia a la propia voluntad, para hacer aquello que es
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mandado. Para ello había que establecer un sistema de comando y control, así como de penalización efectiva”
(ZAMORA, 2013, p. 154).
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esta fase del capitalismo, no se requiere más mano de obra que incremente la producción,
sino que se necesitan más consumidores, puesto que la industria y la tecnología ha ya
permitido que la oferta supere la demanda, y con ello se requiere crear falsas necesidades
que activen el consumismo (MARINAS, 2012).
Sin embargo, finalizando el siglo XX y en lo que va del siglo XXI, hacen su entrada
en las prisiones la fidelización (GARREAUD e MALVENTI, 2008), los sistemas penitenciarios
actuariales (RIVERA BEIRAS, 1998) (RIVERA BEIRAS, 2017) (GARCÍA BORÉS ESPÍ e RIVERA
BEIRAS, 2016) y el sistema premial que en mi opinión engloba a los dos anteriores. Todo
ello en el marco de lo que ZUBOFF (2020) ha denominado capitalismo de la vigilancia.
El capitalismo de la vigilancia que inicia Google se da cuando lo que era un
buscador que usaba datos de los usuarios para mejorar el servicio de búsqueda, se pone
al servicio de la publicidad dirigida: ante la crisis del 2000 se da este giro en la compañía
y se empieza a usar toda la inteligencia artificial que se venía desarrollando para que ya
no importara tanto la palabra clave de quien buscaba sino los datos sobre el usuario que
realiza la búsqueda. Así, a través de ese excedente conductual que eran los datos que
quedaban sobre los usuarios del motor de búsqueda de google (en su momento inicial,
pues las fuentes de extracción de datos en la actualidad son mucho más amplias y
sofisticadas), formando la UPI – información de perfil de usuario por sus siglas en inglés-,
que esta compañía pudo obtener rentabilidades sostenidas y exponenciales como las que
exigía el mercado (ZUBOFF, 2020, p. 102-110). En 2002 fue totalmente claro que la
vigilancia informática era asombrosamente lucrativa (ZUBOFF, 2020, p. 108-110): “…la
combinación de una inteligencia de máquinas en continuo aumento y de unas existencias
igualmente crecientes de excedente conductual se convertirían en la base sobre la que
fundar una lógica de la acumulación sin precedentes” (p. 111). Y la vigilancia se amplia, a
través de medios informáticos, no solo al ámbito virtual sino a la realidad: a través de
dispositivos económicos como cámaras, mapas, reconocimiento facial, etc. Todo ello,
además, bajo el manto de lo que la autora llama “…una división excluyente del aprendizaje
protegida por el secretismo, la indescifrabilidad y el saber experto” (p. 441) y en donde
“Los procesos automáticos realizados por máquinas reemplazan a las relaciones humanas
para que la certeza pueda sustituir a la confianza” (p. 471).
En esta actual fase del capitalismo según explica la autora, se da una apropiación
de las experiencias humanas, como materia prima, a través de la vigilancia, e incluso
mediante estrategias para que paguemos para que nos vigilen y se lucren también de ello.
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Todo esto dentro del nuevo “mercado de futuros conductuales” (p. 21). Así no solo se
busca conocer las conductas sino también moldear los comportamientos.
En esta fase de la evolución del capitalismo de la vigilancia, los medios de
producción están supeditados a unos cada vez más complejos y exhaustivos
“medios de modificación conductual”. De este modo, el capitalismo de la
vigilancia da a luz a una nueva especie de poder que yo llamo
instrumentarismo. El poder instrumentario conoce el comportamiento
humano y le da forma, orientándolo hacia los fines de otros. En vez de
desplegar armamentos y ejércitos, obra su voluntad a través del medio
ambiente automatizado conformado por una arquitectura informática cada
vez más ubicua de dispositivos “inteligentes”, cosas y espacios conectados en
red” (ZUBOFF, 2020, p. 22).
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importancia, sino también por múltiples convenios y acuerdos. Para señalar uno reciente y de gran
importancia para los temas penitenciarios, se puede señalar el proyecto para el apoyo de la reforma y
fortalecimiento del Sistema Carcelario, Penitenciario y de Resocialización de la República de Colombia, el cual
tiene una duración de 5 años, y fue firmado en 2017 entre el Gobierno de los Estados Unidos de América, el
Ministerio de Justicia y del Derecho y el Instituto Nacional Penitenciario y Carcelario – INPEC- para, entre otras
cosas, realizar procesos de acreditación para prisiones por parte de la ACA (Asociación Americana de
Prisiones) (PRESIDENCIA DE LA REPÚBLICA DE COLOMBIA, 2020, p. 42).
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8 En Colombia, actualmente, hay patios APAC aunque aún no prisiones completamente bajo el control de la
Confraternidad Carcelaria de Colombia, que sin embargo hacen importante presencia en muchas prisiones
del país. Al respecto vid (COLECTIVO ABOLICIONISTA CONTRA EL CASTIGO, 2012).
9 Claro, antes de la Pandemia, pues en Colombia las personas privadas de la libertad se han visto totalmente
privadas de sus visitas familiares e intimas, y también de sus abogados y abogadas desde marzo de 2020.
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compañeras de encierro (lo que rompe cualquier lazo de solidaridad entre prisioneros y
prisioneras10), y en general presentar un comportamiento dócil, en donde no hay lugar a
reclamaciones o disensos con la administración penitenciaria o las prácticas y estilos de
vida que se quieran imponer.
Estableciendo prisiones “privilegiadas”, o “módulos” privilegiados, o “patios
mejores”, ofreciendo allí todos esos tesoros para la vida de una persona privada de la
libertad y de otros derechos, el comportamiento se controla con relativa facilidad. Pero si
afuera de las prisiones ahora también el comportamiento se controla con el capitalismo
de la vigilancia, muy seguramente (como lo muestra la historia) éste se sirve de
experimentos realizados en prisión y a la vez empezará a aplicarse en estos espacios para
optimizar el control.
Ahora bien, nada de esto funcionaría si todas las prisiones, todos los patios
fueran así, porque el premio desaparecería y con él las posibilidades de controlar a través
de una “obediencia voluntaria”, mucho más económica y efectiva que la que se impone a
golpes, que en todo caso tiene que seguir existiendo, con todo su poder real (reducido a
pocos casos en la medida en que la presión funcione más) y sobre todo su gran poder
simbólico.
Podría decirse que se trata de un fractal social: así como la prisión tiene poder
simbólico en la sociedad, para que todo el engranaje del derecho y el Estado occidental,
y el soft law puedan funcionar, así mismo el castigo más brutal, su posibilidad, permite
que otras formas de castigo “más suaves” y aquellas en positivo puedan funcionar.
5. La mirada abolicionista
10 Algo usado también al interior de Google, el gran iniciador del capitalismo de la vigilancia: “En 2016, una
demanda interpuesta contra la compañía por un director de producto denunciaba la presunta existencia de
un programa de espionaje interno que pide que pide a los empleados que delaten a cualquier compañero de
trabajo que infrinja el acuerdo de confidencialidad de la empresa: se trata de una prohibición amplia que
impide divulgar nada a nadie acerca de la compañía” (ZUBOFF, 2020, p. 94) Además del uso de técnicas de
control muy sutiles (psicológicas), como las de las cárceles sin rejas, que se pueden observarse en el
documental: (Inside google, 2012).
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como por ejemplo, por mencionar uno muy importante: el National Council for
Incarcerated and Formerly Incarcerated Women and Girls (que traduce Consejo nacional
para mujeres y niñas encarceladas y previamente encarceladas) en Estados Unidos, o en
Colombia, la Corporación Mujeres Libres, y también el auge (en algunos lugares y no de
manera hegemónica) de algunas nuevas formas educativas que rechazan abiertamente el
castigo y acuden a prácticas restaurativas, así como las resistencias de algunos grupos
indígenas a conservar en sus derechos prácticas tradicionales de justicia no punitiva, etc.
En mi recorrido académico como penalista interesada en temas criminológicos,
sociológicos y de antropología jurídica, la única propuesta que encuentro responsable y
realista, a pesar de las acusaciones de utopía tan generalizadas, es el abolicionismo. En
concreto, un abolicionismo de la cultura del castigo (FRANCÉS LECUMBERRI e RESTREPO
RODRÍGUEZ, 2016) que por supuesto busca eliminar las prisiones (FRANCÉS LECUMBERRI
e RESTREPO RODRÍGUEZ, 2019), pero también todo el engranaje y lógicas del sistema
penal, a través del avance hacia un cambio cultural que permita entender cómo el castigo
no sirve para que las personas asuman responsabilidades ni las sociedades puedan
encontrar sistemas de convivencia pacífica (RESTREPO RODRÍGUEZ, 2015). La justicia
restaurativa, la justicia transformativa, la justicia consensual (RESTREPO RODRÍGUEZ,
2018) y en general el enfoque restaurativo que en las herramientas que estas miradas
ofrecen se encuentra, pueden ayudarnos a construir desde ahora las respuestas a las
violencias y los conflictos que se requieren para perder ese miedo (MALAGUTI BATISTA,
2003) que sustenta la existencia de las prisiones y del castigo en las personas que no se
benefician económica o políticamente de su mantenimiento (es decir, la mayoría de
quienes habitan este mundo).
En el libro que escribiera con Paz Francés (FRANCÉS LECUMBERRI e RESTREPO
RODRÍGUEZ, 2019) se exponen en detalle los pasos que proponemos para avanzar de
manera realista hacia la abolición de las prisiones y del castigo, y donde básicamente se
habla de tres tipos de cambios que deben empezarse a adelantar, y que se pueden
complementar en la actual pandemia:
Los cambios hacia adentro, dejando de juzgar a otras personas y al propio ser,
renunciando también a la culpa y dejando entonces de creer que existen monstruos, para
empezar a construir relaciones que no se funden en el poder, sino en el respeto y en los
vínculos afectivos donde no se asigne a nadie un papel expiatorio. Durante los encierros
de la pandemia, tratar de mantener buenas relaciones familiares en el confinamiento, y
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en el estrés que a muchas personas les genera la situación. Tratar bien a quienes tenemos
cerca, y generar solidaridad también con quienes mantenemos contacto: ¿cómo están?
¿Cómo podemos ayudar a que estemos mejor? Tratar de recuperar algo del tejido social
que ha arruinado el capitalismo.
Los cambios hacia afuera parten de la conciencia crítica frente a cualquier forma
de castigo y premio, así como buscar una transformación del sistema económico y social
que tenemos, a través de políticas de decrecimiento (PICAZO CASARIEGO, 2017) y del
fomento de las llamadas economías de subsistencia. También debe verse la familia, la
escuela y el cuidado de personas con sufrimiento mental como espacios de acción
abolicionista, además de las prisiones. Frente a estas últimas, hay que aceptar la idea de
que no tiene que esperarse a que tengamos una sociedad perfecta para que dejen de
existir, al contrario: abolir la prisión es necesario para que esa nueva sociedad se pueda
realizar. En la pandemia, hay que tratar de evitar la total desconexión de las personas
privadas de la libertad con sus familias y presionar para que sean atendidas en salud y
puedan acceder a medidas extramurales que mermen el contagio.
Los cambios en el modelo de justicia, para abandonar el modelo punitivo o
retributivo y pasar a uno de enfoque restaurativo (RESTREPO RODRÍGUEZ, 2015), con una
idea de la justicia propia de los modelos del Chtonic Law (GLENN, 2004), sin medidas
impositivas, donde lo justo se construya colectivamente, a partir del reconocimiento de
los puntos comunes y diferentes.
En el contexto descrito del avance de la prisión global en el capitalismo de la
vigilancia, hay una nueva tarea que surge para el abolicionismo y que es importante
vislumbrar: la lucha por la recuperación u obtención (pareciendo absurdo, en este
momento histórico, hablar de mantenimiento11) de la privacidad en todos los ámbitos12.
Por supuesto, este es un derecho perdido hace mucho en las prisiones, donde
ni siquiera para defecar se cuenta con tal posibilidad (al menos no en las prisiones del
tercer mundo), donde la vigilancia (pensemos en la tradicional idea del panóptico, citada
también por ZUBOFF (2020, p. 624), lejos de ser algo propio del siglo XXI se presentó como
piedra angular desde el nacimiento mismo de la prisión moderna, y solo ha ido
perfeccionándose.
11 A pesar de que en la Unión Europea, por ejemplo, se intente esto a través del Reglamento General de
Protección de Datos (RGPD) de 2018.
12 Queda pendiente un trabajo que desarrolle el tema de la privacidad dentro y fuera de las prisiones, de cara
al accionar abolicionista.
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7. A modo de conclusión
13 ZUBOFF habla en su libro (2020) sobre la modificación conductual que se adelanta en el capitalismo de la
vigilancia a todas las personas que acceden a diferentes medios informáticos, desde buscadores hasta redes
sociales, pasando por mapas y correos electrónicos, pero también menciona (p. 435) experimentos previos
de modificación conductual adelantados en espacios no virtuales en Estados Unidos, y llevados a cabo de
manera masiva e involuntaria en personas recluidas en prisiones e instituciones mentales.
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14“A medida que la competencia se intensifica, los capitalistas de la vigilancia aprenden que no basta con
extraer experiencia humana. Las existencias de materia prima más predictivas de todas son las que proceden
de intervenir en nuestra experiencia para moldear nuestro comportamiento de tal modo que favorezca los
resultados comerciales pretendidos por los capitalistas de la vigilancia” (ZUBOFF, 2020, p. 36).
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A todas las mujeres libres que están en prisión y las que han sobrevivido al encierro
estatal, y a todas sus familiares y amigas, mis compañeras, así como a todas las personas
abolicionistas de la prisión y del castigo en el mundo.
Sobre la autora
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This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p.497-523.
Vitória de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno e Rômulo Fonseca Moraes.
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Resumo
Este trabalho tem como objetivo explorar a epistemologia do abolicionismo penal como
um campo fértil para pensar os sentidos da violência, especialmente, no tocante ao
contexto e permanências das violências coloniais. Assim, partindo de uma linguagem-
percurso para imaginar novas sociabilidades que não se pautem em uma única saída para
as situações-problema.
Palavras-chave: Abolicionismo penal; Violência; Colonialismo.
Abstract
This article aims to explore the epistemology of penal abolitionism as a fertile field for
thinking about the meanings of violence, especially with regard to the context and
permanence of colonial violence. Thus, starting from a language-route to imagine new
sociability that is not based on a single solution to the problematic situations.
Keywords: Abolicionism; Violence; Colonialism.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p.497-523.
Vitória de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno e Rômulo Fonseca Moraes.
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Introdução
A violência é uma categoria-senha para leitura do mundo, mas também para leitura de
fissuras possíveis desse mesmo mundo. Pensar o abolicionismo penal, suas perspectivas
e estratégias nos localiza e endereça a partir da margem, da borda, da beira.1 A
epistemologia desta teoria consiste em um fértil campo de pesquisa, especialmente no
tocante aos seus estudos sobre o que se entende por sociabilidade autoritária.
Essa chave nos permite pensar como a questão da autoridade e da hierarquia
permeia as formas de enfrentamento e de imaginação de novos mundos possíveis. Isto se
dá em razão desta categoria atravessar diretamente a problemática ligada aos discursos
e sentidos da violência. Ademais, para que o abolicionismo penal proponha a abolição da
pena, do poder punitivo e da lógica de castigo, é necessário que ele trave uma discussão
ainda mais fundamental: a linguagem do sistema penal.
Assim sendo, o artigo se propõe a questionar: quais as potencialidades e os
limites da epistemologia do abolicionismo penal na compreensão sobre esses sentidos da
violência na linguagem do sistema penal?
Nesse sentido, o busca-se, em primeiro lugar, tratar sobre como se dá essa
sociabilidade centralizada na autoridade2, onde as relações sociais se dão a partir de uma
educação baseada na ideia de castigo, os discursos em torno do que seria ou não violência
se tornam um forte campo de disputa ideológica. Nesse limiar, reside a potência de
imaginarmos as estratégias para além das conformidades de um reformismo ou
minimalismo, pois nessa margem é onde mais se recrudesce, é onde mais se empilha
corpos, e onde se acentua os efeitos da tônica estatal de vidas matáveis. Isto posto,
destacamos o problema da linguagem do sistema penal para situar essa disputa ideológica
sobre os sentidos da violência.
Posteriormente, analisamos como a violência colonial se coloca como um
contexto importante para situar os debates do abolicionismo penal no Brasil, tanto
quanto à urgente necessidade de estremecer as categorias e discursos forjados no
1 O debate presente neste artigo foi travado a partir de reflexões nas reuniões e produções científicas do
Grupo Cabano de Criminologia, criado em 2015, o qual tem como premissas de atuação: a) a reverberação
das raízes movidas por um espírito de subversão, protesto e contestação da ordem, o que entendemos como
inegociável para a construção de um saber criminológico comprometido com uma prática libertária; e b)
destacar a perspectiva da “margem da margem” a partir do nosso chão, marcando geopoliticamente a
construção do saber criminológico na região amazônica e no norte, em relação à centralidade e status quo
dado ao sul e sudeste.
2AUGUSTO, Acácio. Abolicionismo penal como ação direta. Verve, 21, 2012. p. 154-171.
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4 Considerando que o artigo parte da realidade amazônica na qual são mobilizadas categorias como
afroamazonidas, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, além de outras populações tradicionais, esta
nomenclatura foi empregada para abarcar a pluralidade do nosso contexto.
5 PASSETTI, Edson. op.cit., loc. cit.
6DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pál Perbart. São Paulo: Editora 34, 2013.
7 AUGUSTO, Acácio. Para além da prisão-prédio: as periferias como campos de concentração a céu aberto. In:
ABRAMOVAY, Pedro Vieira; BATISTA, Vera Malaguti. (org.) Depois do Grande Encarceramento. Rio de Janeiro:
Revan, 2010.
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linguagem própria do sistema penal, a qual sedimenta uma busca pela verdade através
da punição. Verificamos que a lógica do castigo se sustenta enquanto práticas edificadas
e naturalizadas, utilizando-se de fronteiras de saberes arbitrários, voltados à existência de
uma autoridade e hierarquia8. Entretanto, em que pese essa linguagem da punição seja
mobilizada nos discursos oficiais do sistema de justiça criminal, ele não se trata de um
sistema destinado a punir propriamente.
O sistema penal se utiliza dessa linguagem com a finalidade de esconder os reais
processos em curso, produzindo um consenso a partir de uma apresentação ilusória. A
punição é uma “forma de interação humana em diversas práticas sociais: na família, na
escola, no trabalho, no esporte”, o que é diferente das finalidades reais do poder
punitivo9. Essa linguagem produz e reproduz uma sociabilidade autoritária, que atravessa
as relações sociais a partir de uma pedagogia do castigo e assujeita através da obediência
às hierarquias em um contexto legitimador de mentiras necessárias10.
Assim, o abolicionismo penal, enquanto um movimento que finaliza romper com
a essa sociabilidade, é um percurso construído com a participação tanto de intelectuais
das universidades quanto dos envolvidos na situação-problema, em que aqueles não
assumem mais uma posição de superioridade na formulação dessas novas respostas11. Na
medida em que, para a abolição do direito penal, é necessária uma abdicação da
universalidade da lei e da uniformidade dos modelos, a construção de uma linguagem
distinta é um elemento essencial para a construção dessas novas práticas.
O lema de defesa da sociedade é, na real incidência do sistema penal, defesa
dos interesses dos dominantes, de forma que as suas políticas são estruturalmente
seletivas. A grande maioria da população encarcerada é negra e empobrecida, de forma
que verificamos como o poder punitivo vulnerabiliza, estigmatiza e criminaliza populações
específicas, havendo um estereótipo penal para tanto.
Isso significa que a linguagem oficial, ou seja, a do discurso público, esconde a
realidade das situações-problema(crimes), assim como dos próprios processos de
criminalização. É por esta razão que refletir sobre as alternativas à justiça criminal é
8 OLIVEIRA, Salete. Linguagem-Fronteira e linguagem-percurso. In: PASSETTI, Edson (coord.). Curso Livre de
abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan. 2004.
9 HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In: PASSETTI, Edson (coord.). Curso Livre de abolicionismo
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12 DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2018
13 PASSETTI, Edson. Op.cit. 2006.
14Ibid.
15 OLIVEIRA, Salete. Op.cit.
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segue operando numa dinâmica em que se tem a violência como prerrogativa do racismo
e a vitimização como privilégio da branquitude”19.
O processo de racionalização do poder punitivo e do direito penal no Brasil
consistiu nessa criação de espaços de reprodução de racismo, sedimentando a
criminalização e o extermínio da população negra. Assim, é possível verificar que o direito
e a justiça criminal não são um mero aparato que apresentam características racistas,
visto que são em si estruturados para cumprirem essa função de discriminação racial,
perpetuando as estratégias de apartamento sedimentadas no contexto colonial.
Vimos no subtópico anterior como os processos de criminalização se sustentam
em torno de significados conferidos às finalidades do sistema penal, considerando que o
poder punitivo se sedimenta em naturalizações no tocante ao castigo, punição e
processos de criminalização, de forma que temos uma linguagem própria com esse
objetivo.
Assim, para romper com essa lógica de silenciamento e negação da violência
praticada pelo sistema penal contra determinados segmentos sociais, é essencial
partirmos daquilo que nos ensina Slavoj Zizek20 no tocante à necessidade de se destacar
a violência fundamental do Estado, ou seja, aquela que garante o seu funcionamento.
Para isso, deve-se criticar as distorções ideológicas que são mobilizadas para naturalizar
certas formas de violência em detrimento de outras, as quais são tidas como naturais na
linguagem que é construída pelo sistema penal.
É nessa mobilização ideológica que o poder punitivo garante que determinados
conceitos, como justiça penal, sejam edificados enquanto práticas naturalizadas em nossa
sociabilidade, o que só esconde as relações raciais discriminatórias e violentas do sistema
penal, principalmente em territórios colonizados.
Na incidência do poder punitivo pelas instituições de repressão criminal, é clara
a narrativa de que a punição vem para pacificar uma situação problemática violenta,
recobrando o sentido de justiça, o que reforça uma perspectiva maniqueísta. Contudo,
para compreender o funcionamento estrutural do poder punitivo, é necessário, antes de
tudo, “resistir ao fascínio da violência subjetiva, da violência exercida por agentes sociais,
indivíduos disciplinados e multidões fanáticas”.21
19Ibid. p. 59.
20 ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.
21Ibid.,p. 25.
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Para nós do campo criminológico que pretendemos com a construção dessa nova
linguagem abrir fissuras nas estruturas de poder/saber para alargar as margens do
abolicionismo penal, pensar a partir da “hipótese colonial”24 é imprescindível. Esse
pressuposto nos obriga a problematizar concepções, discursos, práticas e instituições da
modernidade que foram construídas e implicadas com o processo de colonização. Isso nos
leva não só a apreender as estratégias de dominação do colonialismo, com seu papel
decisivo na (re)produção do racismo estrutural, mas também da relação entre os sistemas
penais e os povos colonizados.
É a partir dessa chave de leitura que Evandro Duarte, Marcos Queiroz e Pedro
Costa25, nas sendas de autores como Fanon e W. E. B. Du Bois, nos instigam a perceber
que o colonialismo, enquanto dominação política e econômica sobre um território
habitado por raças e povos de culturas diferentes, está implicado com “[...] a construção
da criminologia como uma ciência social a serviço do imperialismo e com repercussões
profundas nas realidades pós coloniais”. Para eles, a omissão da pesquisa criminológica
contemporânea, ainda que auto-intitulada crítica, “faz parte das permanências e
continuidades do modelo colonial na produção do conhecimento.”26
Isso reflete não só nos desdobramentos mortíferos da atuação do sistema penal
em nossa margem periférica, já que os saberes hegemônicos atuam racionalizando e
legitimando suas práticas, como também atua como barreira epistêmica contra os
24 DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos V. Lustosa; COSTA, Pedro Argolo. A Hipótese Colonial, um diálogo
com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema penal.
Universitas JUS. v. 27, n. 2, 2016, p. 05.
25 Idem.
26 Idem.
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saberes insurgentes que visam romper com a linguagem e a forma de gestão de conflitos,
os quais se amparam numa sociabilidade autoritária em que impera as ideias de castigo e
punição.
Para superação dessas barreiras, é imprescindível saber quais os alicerces e os
discursos das estruturas que sustentam o que visamos romper e combater. As concepções
de Estado, Direito Penal, Criminologia e Poder Punitivo precisam ser problematizadas
enquanto saberes e práticas implicados ou explicitamente comprometidos com a
dominação colonial.
Nesse sentido, é urgente pensar essas instituições, saberes e práticas visando
alargar as margens do imaginário criminológico, mas também trazer à tona que os
abolicionismos penais pensados a partir do nosso contexto periférico só podem emergir
com a ruptura promovida pelo saber decolonial. Ou seja, um estremecer dos alicerces que
sustentam o colonialismo por meio dos sistemas penais contemporâneos.
Se pensarmos o processo de colonização como uma acumulação de corpos em
um território, aos moldes de uma “gigantesca instituição de sequestro”27, veremos que a
lógica colonial e seu projeto de dominação se assentou na objetificação e
desterritorialização de seres humanos. O “despedaçamento cognitivo e identitário”28,
como parte desse processo de objetificação provocado pela escravidão, é acompanhado
de um deslocamento não só geográfico desses corpos, mas também em direção a um não-
lugar em termos de humanidade. É nesse sentido que o colonialismo vai se edificar em
detrimento ou como negação daquilo que ele objetifica e considera como o outro: negros
e indígenas.
Para levar a cabo esse processo, a agenda colonial, segundo Luiz Antônio Simas e
Luiz Rufino29, vai trabalhar na descredibilização das inúmeras formas de existência e de
saber, produzindo, assim, a morte física desses corpos, através do extermínio, e a morte
simbólica através do que eles irão chamar de “desvio existencial”, que contribui para a
aniquilação de outros modos de ser, viver e sentir a vida.
27 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad.
Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 77-78.
28 SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Editora Mórula, 1ª
30 Idem.
31 Ver: BATISTA, Vera Malaguti. Positivismo como cultura. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/revistapassagens/artigos/v8n2a52016.pdf>. Acesso em: 9 mar. 2017.
32RODRIGUES, Raimundo Nina. As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil. Salvador, Livraria
Progresso, 1957.
33 BATISTA, Vera Malaguti. Positivismo como cultura. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em:
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35 BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc. Polít., Brasília , n. 11, p. 89-
117, Aug. 2013 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
33522013000200004&lng=en&nrm=iso>. access on 27 Nov. 2020.
36 QUEIROZ, Vinicius Lustosa; GUIMARÃES, Jonhatan R. F. Frantz Fanon e criminologia crítica: pensar o estado,
o direito e a punição desde a colonialidade. Revista brasileira de ciências criminais, ISSN 1415-5400, Nº. 135,
2017.
37 SIQUEIRA, Carlos Henrique R. de. A alegoria patriarcal: escravidão, raça e nação nos Estados Unidos e no
Brasil. Tese de Doutorado. Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas da Universidade de Brasília.
2007.
38 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
39 ZAFFARONI, Eugenio. Descolonización y poder punitivo. Texto de la Lectio Doctoralis em ocasión de recibir
el grado de Doutor honoris causa por la Universidad Real, Mayor y Pontificia de San Javier de Chuquisaca, em
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40 Idem.
41 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad.
Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 77-78.
42 QUEIROZ, Vinicius Lustosa; GUIMARÃES, Jonhatan R. F. Frantz Fanon e criminologia crítica: pensar o estado,
o direito e a punição desde a colonialidade. Revista brasileira de ciências criminais, ISSN 1415-5400, Nº. 135,
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43 QUEIROZ, Vinicius Lustosa; GUIMARÃES, Jonhatan R. F. Frantz Fanon e criminologia crítica: pensar o estado,
o direito e a punição desde a colonialidade. Revista brasileira de ciências criminais, ISSN 1415-5400, Nº. 135,
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44 BATISTA, Vera Malaguti. Positivismo como cultura. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/revistapassagens/artigos/v8n2a52016.pdf>. Acesso em: 9 mar. 2017.
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45 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora: Civilização Brasileira, 1968.
46 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora: Civilização Brasileira, 1968, p.26.
47 Ibidem, p. 27.
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57 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia Radical e Utopia: inapropriabilidade, an-arquia, a-nomia.
80-111, 2003.
61MATHIESEN, op. cit. p.95-96
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62 TAVARES, Gonçalo M. Atlas do corpo e da imaginação. Lisboa: Editorial Caminho, 2013. p. 379
63 FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. São Paulo: Edições n-1,
2013
64 MATHIESEN, op. cit. p.82.
65 AUGUSTO, Acácio. Abolicionismo penal como ação direta. Verve, 21, 2012. p.157-158
66 SCHEERER, Sebastian Apud MATHIESEN.“Towards abolitionism” in Contemporary Crisis, 1986, p. 7.
67 ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 2011.
68 ZIZEK, op.cit., p.12
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69 "Esse real é impossível no sentido de que é o impossível da ordem social existente, ou seja, seu antagonismo
constitutivo – que, entretanto, de modo algum implica que não se possa tratar diretamente com esse
real/impossível e transformá-lo radicalmente num ato “maluco”, que muda as coordenadas
“transcendentais” básicas de um campo social." ZIZEK, op. cit. , p.13
70 AUGUSTO, op. cit.
71MATHIESEN, op. cit., p.84
72 FOUCAULT, op. cit.
73 FOUCAULT, op. cit., p.30
74 CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.p.61
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4. Considerações finais
Assumir a urgência de uma práxis abolicionista não se confunde com propor uma
docilidade perante os abusos e reiterações de um sistema de justiça criminal que opera
sobre o absurdo. Contudo, para essa contribuição, é preciso olhar a violência nos termos
abordados por Frantz Fanon como algo essencial à práxis. Não só no sentido de violência
revolucionária, mas como algo presente enquanto motor transformador, enquanto
possibilidade, de forma que não seja visto como errado ou desprovido de razão, como é
comum no discurso liberal.
Analisamos como a epistemologia do abolicionismo penal sugere um contínuo
percurso experimental, ou seja, hábil a abarcar discussões que possam romper com velhas
fantasias sobre a violência, pois são elas que alicerçam a construção do conceito de
“crime” como algo natural. Ademais, não são só as violências revolucionárias que são
objeto desses misticismos e ilusões, as próprias violências estruturais/institucionais
decorrentes da lógica colonial são colocadas em um lugar de consequências “naturais” de
um processo civilizatório que a todo custo nega o sofrimento de populações
marginalizadas.
Neste sentido, os abolicionistas penais precisam estar munidos de saberes que
dêem conta de permanências históricas e contextos sociais para pensar as produções e
reproduções das relações de dominação colonial pelo sistema punitivo. O poder punitivo
incide a partir dessas mobilizações ideológicas em torno da violência, seja para justificar
a incidência brutalizada dos aparelhos de repressão criminal, seja para negar o sofrimento
de determinados segmentos sociais.
Portanto, sendo feitas essas ressalvas necessárias, em que se insere a
epistemologia do abolicionismo penal a um contexto de relações de dominação, vemos
como a transformação do real se coloca como consequência das movimentações de
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revolta, o que nos apresenta novas formas de solução das situações problemáticas para
além do mito da universalização da pena.
5. Referências Bibliográficas
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ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.
______________. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 2011.
Sobre os autores
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p.497-523.
Vitória de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno e Rômulo Fonseca Moraes.
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Resumo
O objetivo deste artigo é contribuir para a produção e promoção de propostas
abolicionistas que se dediquem às especificidades das lutas no Brasil contemporâneo.
Para tanto será discutida a formação socioespacial brasileira em sua relação com a
democracia e os argumentos legitimadores da expansão punitiva. Por fim, serão trazidos
exemplos de lutas empreendidas por mulheres negras que podem colaborar com
objetivo inicial.
Palavras-Chave: Formação socioespacial; Racismo; Resistência.
Abstract
The aim of the present article is to contribute to the production and promotion of
abolitionist proposals that consider the specificities of the struggles in contemporary
Brazil. For this purpose, the Brazilian socio-spatial formation will be discussed in its
relationship to democracy and to the legitimizing arguments of punitive expansion.
Finally, examples of struggles undertaken by black women who can collaborate with this
purpose will be pointed out.
Keywords: Socio-spatial formation; Racism; Resistance.
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Introdução
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obscurecimento das relações sociais no Brasil, promovendo por outro lado análises de
país distorcido1 (Santos, 2002).
Esse texto pretende ser um chamado à reflexão crítica com vistas a elaboração
de propostas abolicionistas, entendendo-as como antirracistas e feministas em
contraponto às práticas racistas, militarizadas, masculinistas e heterossexistas
apresentadas pela sociedade burguesa como a solução para os conflitos sociais. Nesse
contexto, a militarização também nos interessa; podemos conceituá-la como algo mais
amplo que a ideologia militarizada do funcionamento das forças policiais e militares
como conhecemos e que está marcada pelo espraiamento das práticas, símbolos,
narrativas e tecnologias, que tem na força bélica seu aspecto principal (Barros, 2018),
justificando o exercício do poder de matar, não somente a tiro, mas de maneira lenta e
gradual com o encarceramento e o adoecimento (das pessoas presas e suas familiares),
que são processos genocidas que atravessam nossa história desde antes da existência
do Estado brasileiro.
Ainda segundo Milton Santos (1982, p.88): [...] os modos de produção escrevem
a História no tempo, as formas sociais escrevem-na no espaço. [...], por isso reconhecer
nossas particularidades parece ser um caminho necessário à produção de qualquer
proposta que vise transformar a realidade. Em um primeiro momento, busco discutir as
bases raciais, heterossexistas, militarizadas e cristãs da sociedade brasileira que
promovem a existência do que venho chamando de Estado-Colonial-Penal (Cruz, 2021a,
no prelo).
Em seguida, tenho por objetivo relacionar essas bases de nossa sociabilidade a
alguns elementos que considero relevantes da história do Brasil e que se relacionam
com a forma como a expansão punitiva ganha corpo na contemporaneidade,
especialmente na relação “crime vs segurança” que atravessou os processos de
reabertura democrática e transformaram o período pós-1988 no que o movimento de
1 Para Ribeiro (apud Santos, 2002, p.8): [...] O país distorcido resultado de um olhar distorcido, fruto da
assimilação acrítica de temas de pesquisa impostos de fora. [...]. Um olhar distorcido, então, porque se
recusa a adentrar o território para conhecer a gente que nele vive, bem como suas condições de vida e
necessidades. Um olhar distorcido que enlaça o país e seus recursos naturais em uma teia de relações sociais
complexas – ditas “globais” – e que afirma um único padrão de inserção internacional para o Brasil sem
levar em conta a nossa formação socioespacial, categoria que o próprio Milton criou. Um olhar de quem tem
“preguiça intelectual”, como dizia à boca pequena o geógrafo baiano, e não quer ousar buscar o novo para
si e para o Brasil.
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Mães e Familiares contra o Terrorismo de Estado chama de Era das Chacinas (Mães de
Maio, 2012).
Por fim, abordo brevemente o que parece ser um caminho interessante trilhado
por movimentos sociais com os quais tenho interagido nos últimos 10 anos de ativismo
antiprisional e de alguns paradoxos que precisarão ser aprofundados em oportunidades
futuras, para que pensemos como o questionamento radical que é realizado por esses
movimentos podem ser colocados a favor de um maior compartilhamento de propostas
abolicionistas, que como sabemos ainda estão restritas a pequenos grupos que buscam
difundir propostas eurocentradas de transformação da realidade.
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criminal, a ser exercida por pessoas que ele nomeasse: um magistrado superior (ouvidor)
e outros funcionários da justiça: escrivães, tabeliães e meirinhos.
Ainda que existam muitas relações complexas quando tratamos do punitivismo
à brasileira em seu desenvolvimento histórico, é fato que o sistema de justiça constitui
seu maior expoente. Nele podemos articular tanto as instituições que o compõe como
as legislações criminais, o exercício do poder de polícia, os instrumentos, narrativas e
moralidades que o alimentam como principal forma de solução dos conflitos na
contemporaneidade.
Esse sistema iniciado nos primeiros anos da colonização ficou marcado no
tempo como um espaço ocupado majoritariamente por homens brancos e proprietários
de terras e seus filhos. Ao longo dos primeiros cem anos do empreendimento colonial
foram instituídas práticas que atravessam os séculos e que mantém a estrutura de
poder econômico e social no país. Schwartz (2011) nos apresenta um amplíssimo
panorama que demonstra como o sistema de justiça no Brasil se constituiu e se mantém
e como práticas de amizade, compadrio e nepotismo garantiram (e garantem) privilégios
que se naturalizaram como mérito, talento, distinção (Santos apud Munhoz, 2020, p.1)
Esse poder não se constituiu e se manteve sem que uma maquinaria estatal
fosse mobilizada inicialmente com a necessidade de manter as terras “descobertas”
ocupadas e a partir do uso da ciência e instituições diversas que promoveram
conhecimentos e narrativas raciais que instituíram sobre o corpo das pessoas indígenas
e negras estereótipos utilizados até os nossos dias2. Estereótipos citados em reuniões
2Em agosto de 2020 em uma sentença condenatória a juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de
Curitiba (PR) escreveu que o réu, o homem negro, era “Seguramente integrante do grupo criminoso, em
função de sua raça, agia de forma extremamente discreta...”. Para mais ver:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/12/sentenca-de-cunho-racista.htm. Acesso
em: 04 Jan. 2021.
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3 Em palestra proferida em 2018 o atual vice-presidente Hamilton Mourão expôs todo seu racismo – que se
ressalte não diz respeito apenas ao vice do governo de Jair Messias Bolsonaro – ao dizer que ainda existe o
complexo de vira-lata aqui dentro do nosso país e nós temos que superar isso, e isso, está aí essa crise,
política, econômica e psicossocial. Nós temos uma herança cultural; uma herança que tem muita gente que
gosta do privilégio, não é [...] mas existe uma tendencia do camarada querer aquele privilégio pra ele. E não
pode ser assim. Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência
que vem da cultura indígena, e eu sou indígena, presidente, meu pai era amazonense, e a malandragem,
Edson Rosa, nada contra, mas a malandragem que é oriunda do africano. Então essa (sic) é o nosso cadinho
cultural. Infelizmente gostamos de mártires, de líderes populistas, e dos macunaímas [...]. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=uPqNLiFHxXo. Acesso em: 30 Dez.2020.
4 A declaração foi feita durante uma palestra no Clube Hebraica no Rio de Janeiro em 2017, na mesma Jair
Messias Bolsonaro expôs além de seu racismo e a misoginia característica de suas falas quando afirmou que
a viagem que fez a Israel com quatro filhos dos cinco filhos. Ele disse que tem um quinto [filho], e no quinto
eu dei uma fraquejada né, foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada foi uma mulher [...].
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fpmq8wRyyXg. Acesso em 30 Dez.2020.
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https://www.aclu.org/news/immigrants-rights/immigration-detention-and-coerced-sterilization-history-
tragically-repeats-itself/. Acesso em: 09 Jan. 2021.
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8Para mais sobre o “crime de vadiagem”. Cf.:Camila Cardoso de Mello Prando. A contravenção penal de
vadiagem no Rio de Janeiro (1900-1940): legalismo e prevencionismo nas decisões penais. Disponível em:
http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=df05dec7f743ab80. Acesso em: 09 Jan. 2021.
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9Entre os anos de 2017 e 2019 as polícias brasileiras assassinaram mais de 2.215 crianças e adolescentes de
acordo com o levantamento encomendado pela Folha de S. Paulo ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Ressalte-se que nem todas as unidades federativas possuíam a idade das vítimas. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/12/em-tres-anos-policiais-mataram-ao-menos-2215-
criancas-e-adolescentes-no-pais.shtml. Acesso em: 09 Jan. 2020. Por outro lado é importante ainda chamar
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atenção para os casos em que as testemunhas acusam policiais de terem assassinado crianças, mas que
houve a impossibilidade por ação ou omissão na investigação e que levaram os casos a serem arquivados
sem solução como o caso do menino Maicon de Souza, morto aos dois anos de idade na favela de Acari em
1996, e do menino Eduardo de Jesus, morto aos 10 anos de idade na porta de casa na localidade Areal no
Complexo do Alemão em 2015, ambas favelas no Rio de Janeiro. Os casos foram citados por mim na
dissertação de mestrado já referenciada (Cruz, 2020).
10 Os desaparecimentos forçados de pessoas moradoras da Baixada Fluminense (RJ) é um assunto conhecido
das pessoas que vivem naqueles municípios há décadas. Alvo de estudos pontuais, mas muito consistentes,
passaram mais recentemente a ser assunto nas redes sociais a partir da atuação dos movimentos de Mães e
Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado e de organizações que vem documentando e denunciando os
casos. Para mais ver Iniciativa Negra Direito à Memória e Justiça Racial. Disponível em:
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na mão dos militares levados ao poder por complexas redes políticas e passaram a ser
usadas também contra as classes médias 11.
Desde a promulgação da Constituição de 1988 temos experimentado o
aprofundamento e a sofisticação das formas punitivas de solução dos conflitos sociais e
o uso prático e discursivo do Estado Policial-Penal (Wacquant, 2001; 2007), que
reverberam na segunda década do século XXI, em uma população carcerária de 759 mil
pessoas e outras tantas envolvidas nas malhas do sistema. São trabalhadores e
trabalhadoras, visitantes de pessoas privadas de liberdade, profissionais que atuam nas
ruas, juízes, defensoras e defensores públicos, promotores e promotoras que,
reproduzindo determinadas ideologias, mantém vivos estereótipos racistas e
heterossexistas que retroalimentam o punitivismo em nossa sociedade contra as
mesmas pessoas “de sempre”. Por isso não parece possível esquecer o caráter colonial
dessas punições.
O discurso que coloca o “crime” em oposição direta à “segurança” está marcado
na contemporaneidade, especialmente, nas narrativas sobre o “tráfico de drogas” e as
atividades relacionadas pelo senso comum (assaltos, tortura, homicídios, que são outros
tipos penais). Além disso, há ainda a hediondez do tráfico como um fator que colabora
para que varejistas sejam punidos duramente tanto em relação à pena propriamente
dita, como em relação às violências exercidas nos territórios negros, ao contrário do que
acontece nos bairros brancos e/ou ricos, onde os varejistas são “estudantes / jovens que
vendem drogas”, ou dos “empresários” encontrados com drogas.
A capilarizada narrativa das violências urbanas promovidas por criminosos tem
sido a pedra de toque das campanhas político-eleitorais desde pelo menos o final dos
anos 1980, e incluem a atuação de grupos de extermínio e “justiceiros”. Já na década de
1990, a narrativa era a ocupação territorial das favelas por “criminosos” e a
transformação da “venda de tóxico” em “tráfico de drogas”12.
As eleições de 2018 são um bom exemplo da capilaridade dessa falsa dicotomia
(crime vs Segurança) e de seu uso eleitoral. Aquele pleito foi marcado pela eleição para a
naquele momento a “questão do tráfico de drogas” avançava na América Latina e não só no Brasil. Cf.:
Castro, L. A. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC,2005.
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brutalmente assassinada em 14 de março de 2018. Nascida e criada em uma das favelas do Conjunto de
Favelas da Maré, socióloga, mestre em Administração Pública, defensora de direitos humanos, negra, mãe e
lésbica. A vida, o corpo e a memória de Marielle são a representação viva do que aqueles políticos homens
brancos heterossexistas cristãos – que implementaram o golpe contra a única presidenta de nossa história –
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governador eleito que afirmava que a polícia “tem que atirar na cabecinha”, que
também fora eleito com votação massiva.
Esses elementos são importantes ao passo que explicitam as determinações
raciais e de gênero no que diz respeito a quem são as pessoas usuárias de drogas e
quem são as traficantes, fator diretamente relacionado aos seus locais de moradia. Uns
majoritariamente brancos, os outros majoritariamente negros15, os primeiros a serem
protegidos e os segundos a serem controlados.
Nessa dicotomia principal localizamos o elemento essencial que nos interessa
como proposta: aquelas mulheres que se organizam para atuar contra o genocídio
(Nascimento, 2016; Flauzina, 2008; 2014) tornando-se sujeitas e promovendo
questionamentos à ordem imposta que encarcera, adoece e mata através do terrorismo
promovido pelo Estado (Cruz, 2020) sob a face da chamada guerra às drogas.
A guerra às drogas, que se configura como uma guerra contra pessoas negras, é
responsável pelo encarceramento seletivo em massa, especialmente de mulheres. Nas
últimas décadas a taxa de encarceramento feminino cresceu vertiginosamente,
fundamentalmente por crimes relacionados à lei de drogas. Além disso, a atuação de
forças militarizadas (públicas e privadas) em regiões empobrecidas das cidades é o que
gera milhares de mortes violentas todos os anos entre massacres, chacinas e homicídios
cerca de 60 mil pessoas são assassinadas anualmente no país 16.
apresentavam como “risco”, ou seja, o avanço no tocante à garantia de direitos das pessoas consideradas
por eles, como “os outros”.
15 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentou em 2019 uma publicação ressaltando as
principais desigualdades raciais no Brasil que determinam as condições de moradia, acesso a emprego,
renda, saneamento básico, água potável entre outras informações que colaboram para demonstrar como o
racismo se estrutura e se mantém a partir da vulnerabilização sistemática das pessoas negras e seus
descendentes. Cf.: Desigualdades sociais por raça ou cor no Brasil. Disponível
em:https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101681. Acesso em:
22 Dez.2020.
16 Essa é uma informação de conhecimento público e notório, contudo, sugere-se, para informações
estatísticas os Atlas da violência, produzidos anualmente pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas
(IPEA), e as pesquisas produzidas por organizações da sociedade civil como o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública e os núcleos especializados das universidades públicas. Há ainda importantes pesquisas realizadas
pelas Defensorias Públicas Estaduais e Ministérios Públicos Estaduais.
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17Tristemente ocorreram tantas chacinas que não caberiam todas neste artigo, mas destaco algumas:
Chacina de Acari-RJ (26/07/1990), Massacre do Carandiru-SP (02/10/1992), Chacina da Candelária-RJ
(23/07/1993), Chacina de Vigário Geral-RJ (29/08/1993), Massacre de Eldorado dos Carajás-PA
(17/04/1996), Massacre do Presídio Urso Branco -RO (02/01/2002), Chacina do Borel-RJ (02/04/2003),
Chacina do Amarelinho-RJ (28/06/2003), Chacina do Caju-RJ (06/01/2004), Chacina da Baixada-RJ
(31/03/2005), Crimes de Maio-SP (12/05/2006), Chacina do Pan-RJ (27/06/2007), Massacre de Pedrinhas-
MA (01/11/2010), Chacina de Costa Barros-RJ (28/11/2015), Massacre do Compaj-AM (01/01/2017),
Chacina do Fallet-RJ (06/02/2019), Chacina de Manaus-AM (30/10/2019), Chacina do Alemão-RJ
(15/05/2020).
18 O nome é escrito em letras minúsculas de acordo com o desejo da própria autora. Para mais informações
ver: Mar de Histórias. bell hooks: uma grande mulher em letras minúsculas. Disponível em:
https://mardehistorias.wordpress.com/2009/03/07/bell-hooks-uma-grande-mulher-em-letras-minusculas/.
Acesso em: 09 Dez.2019.
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19Trabalha-se a categoria como uma categoria complexa que identifica as mulheres articuladas nos
movimentos, não somente as mães, mas outras mulheres que ali se junta à luta, tias, irmãs, amigas,
companheiras e às vezes, os pais.
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4. Considerações finais
A proposta deste artigo, mais do que apresentar saídas para a expansão punitiva, é
colaborar para uma reflexão que nos leve a produzir e promover coletivamente
propostas de transformação radical da sociedade. A punição penal, as violências, a
militarização estão na base da nossa sociabilidade, fundaram o Estado brasileiro
promovem muito mais problemas que soluções para as questões propagadas como seu
alvo.
As violências produzidas, promovidas ou exercidas pelo Estado brasileiro se
sofisticaram ao longo dos séculos como se buscou demonstrar. Contudo, aqui interessa
o que passa a haver na sociedade brasileira entre o final dos anos 1980 e início dos anos
1990. Fatalmente, nestas análises, se notará um hiato entre as políticas higienistas dos
anos 192020, as políticas eugenistas implementadas a partir dos anos 1930 21,
brevemente citadas anteriormente, assim como as ditaduras pelas quais passamos 22.
Analisar um país distorcido nos impede de reconhecer as cidadanias mutiladas
que deixam vulnerável a maior parte da população brasileira, que é alvo de um sistema
20Para análises sobre esse período, especialmente em relação ao Rio de Janeiro Cf.: Chalhoub (2016; 2017);
Mattos (2011; 2012).
21Cf.: GÓES, W. L. Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato
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punitivo complexo desde que se repartiram as terras durante a invasão colonial. Ou seja,
análises que tem por base apenas teorias eurocêntricas que não dialogam com a nossa
realidade nos levam a erros que nos impedem de avançar rumo a uma sociedade sem
prisões e sem polícias que promova práticas e valores anticapitalistas.
A racionalidade colonial e moderna que se utiliza de maniqueísmos de base
cristã para determinar falsas dicotomias como o bem e o mal, novo e o velho, que
promovem como afirma Bispo (2019) formas de organização baseadas no monoteísmo,
desterritorializado, exclusivista, vertical e/ou linear são a base das sociabilidades que
somente enxerga “isso ou aquilo” como solução para os conflitos sociais. Em nossos
termos, poderíamos chamar atenção para outro bordão racista e conservador: cadeia ou
caixão como únicas saídas para as pessoas que não se adequem ao contrato social.
Por outro lado, não esqueçamos: este mesmo contrato social que fundou o
Estado brasileiro excluiu da humanidade pessoas não-brancas, que de uma maneira ou
outra serão consideradas “desviantes” do caminho linear de desenvolvimento e que na
lógica moderna deve ser traçado por aqueles ou aquelas que querem sobreviver.
Processos de contra-colonização (Bispo, 2019) devem ser iniciados, continuados
e mantidos em todas as propostas que tenham por ambição transformar a sociedade.
Essa cosmovisão que tende a ser hierarquizada e que coloca o gênero masculino e
branco como universal deve ser questionada e nossas propostas devem buscar formas
de organização que foram apagadas dos nossos espaços de letramento. Há um longo
caminho ainda a ser traçado para enfrentar o genocídio antinegro e indígena que se
mantém no tempo. Como nos ensina Angela Davis (2018a): a liberdade é uma luta
constante e as mulheres negras são aquelas que, segundo Lélia Gonzalez (2018),
carregam a sua chama.
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Resumo
O artigo, tomando o repertório teórico da economia política da pena, parte de leitura
histórico-estrutural da função do controle penal nas diferentes etapas de acumulação no
capitalismo brasileiro com vistas a expor a ausência de rupturas experimentadas nas
políticas criminais e de segurança pública durante os governos social-liberais do Partido
dos Trabalhadores (2003-2016).
Palavras-chave: Política criminal; Segurança pública; Social-liberalismo; Partido dos
Trabalhadores.
Abstract
The article, taking the theoretical repertoire of the political economy of punishment,
starts from a historical-structural reading of the function of penal control in the different
stages of capital accumulation in Brazilian capitalism viewing to expose the absence of
disruptions experienced in criminal and public security policies during social-liberal
governments of the Partido dos Trabalhadores (Workers' Party) (2003-2016).
Keywords: Criminal policy; Public security; Social-liberalism; Partido dos Trabalhadores
(Workers’ Party).
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Introdução1
1 Não poderíamos deixar de registrar nosso profundo agradecimento (e admiração) ao Gustavo Seferian,
quem nos auxiliou na compilação deste artigo que tanto significado apresenta pessoalmente, enquanto
síntese da trajetória teórica e política até aqui. Obrigada pelo incentivo de todos os dias.
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Não nos parece ocioso, ainda que em ousado vôo panorâmico, iniciar nossa exposição
com um diagnóstico de nação acerca de nosso país, base social e histórica que serve de
redução concreta de nossa problemática.
O nosso território foi tornado “Brasil” não como um projeto de nação, mas sim
como um projeto mercantil que deveria cumprir uma promessa de imensa lucratividade.
Se, no decorrer do processo histórico, forjamo-nos enquanto povo, isso ocorre, de acordo
com palavras de Darcy Ribeiro (1978, p.19), “como uma espécie de subproduto
indesejado e surpreendente de um empreendimento colonial, cujo propósito era produzir
açúcar, ouro ou café e, sobretudo, gerar lucros exportáveis”.
Assumindo que não há possibilidade de pensar nossa história ou de buscar
compreender nossas instituições de controle social sem olhar para a escravidão no país,
tomamos como base reflexiva as elaborações de maior maturidade de Clóvis Moura
(1994). Este desenvolve uma tipificação que comporta dois momentos históricos: o do
escravismo pleno (até 1850) e o do escravismo tardio. As transformações entre estas duas
etapas decorrem de elementos estruturais, de esgotamento de modelo econômico, mas
também, imbricadamente, dos conflitos entre as classes, exigindo uma negação da ideia
difundida pela historiografia de passividade e aceitação dos escravos.
Quanto aos elementos econômicos e extraeconômicos que garantiam esta
sociabilidade escravista, Clovis Moura descreve tanto valores sociais e instrumentos de
controle social por parte dos senhores, tais como os instrumentos de tortura, a
prostituição forçada, a cristianização imposta, como também as múltiplas formas de
reação e resistência negra, concluindo que são esses dois conjuntos de comportamentos,
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diferencial, o que faz com que a dependência externa apenas se agudize, mais e mais. A
nossa indústria pesada, importante passo, não foi garantida autonomamente em relação
ao capital internacional. O nosso sentido de colonização (PRADO JÚNIOR, 2000) se
mantinha mesmo com essas mudanças tão significativas (CAMPOS, 2017, p.257).
O período imediatamente anterior ao golpe empresarial-militar significou a
possibilidade de inflexão de um sentido de uma revolução brasileira. Segundo Fábio
Campos (2017, p. 267), tínhamos dois possíveis destinos, um era o aprofundamento do
atrelamento dependente, com o complexo multinacional garantindo “rentabilidade por
meio da extração de mais-valor à custa da superexploração da força de trabalho e dos
benefícios do padrão de consumo elitizado”, o outro era a guinada nacionalista e
democrática que um grupo de intelectuais e ativistas reivindicavam, exigindo, “por meio
de um complexo nacional popular, reformas estruturais capazes de domesticar o
capitalismo para o bem-estar da maior parte da coletividade brasileira”. A década de 1960
apresenta uma cada vez mais nítida divisão social do trabalho e maior delimitação de
classes e de seus opostos interesses, com o fortalecimento da classe trabalhadora e a
forte repressão a ela dirigida durante as próximas décadas perdidas. Instaura-se uma nova
relação de forças para que seja permitida maior acumulação.
O Golpe de 1964 foi o enterrar da possibilidade de uma alternativa.
Podemos dizer, portanto, que os caminhos trilhados em nosso específico
processo de industrialização pavimentaram nossa sina dependente, sendo “sob a
aceleração do crescimento econômico, portanto, sob a ‘integração do mercado interno’
e o industrialismo, que ela iria mostrar o que significa dependência sob o capitalismo
monopolista e o imperialismo total” (FERNANDES, 2008, p. 33). Assim, para Florestan, o
nosso desenvolvimento adquire a feição de capitalismo dependente nas últimas décadas
do século XIX, quando a dominação externa atinge a etapa imperialista, com maior
concentração industrial e criação de monopólios, concomitante a um domínio cada vez
mais forte do capital financeiro. Esta classificação é usada por este autor - e por nós aqui
compartilhada – como definição de nosso desenvolvimento a partir deste momento e não
como característica per si, associando-se, como em um laço de continuidade, com a
periodização de escravismo pleno – escravismo tardio de Clóvis Moura.
A hipótese complementar para a percepção da dependência em nosso país que
aqui lançamos é a de que o momento de inflexão das escolhas políticas e econômicas que
determinaria a ruptura ou não para um caminho autônomo de desenvolvimento também
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Esta descrição de Abdias nos é muito cara por demonstrar a perfeita utilidade
do mito da democracia racial para tornar impotente a vocalização do racismo vivido,
sendo este silenciamento o próprio mecanismo de sua intensificação e perpetuação. Do
mesmo modo, o mito serviu para criar uma possibilidade de falsear uma identidade
nacional a ser vendida, inclusive servindo de modelo para outros países. O mito precisava
ser sustentado justamente porque o racismo nosso continha (contém) a mesma força
destrutiva dos outros países-símbolo, porém sem a explicitação, pois, como afirma
Florestan Fernandes (2007a, p. 67), aqui “se confundem padrões de tolerância
estritamente imperativos na esfera do decoro social com igualdade racial propriamente
dita”.
Assim, podemos afirmar que o desenrolar da trajetória industrializante
demonstrou, mais do que nunca, que o desenvolvimento capitalista em países como o
Brasil ocorre de maneira diferenciada dos países capitalistas centrais e a sua classe
dominante não assumirá para si a realização das possíveis tarefas de uma democracia
burguesa, como a reforma agrária, urbana, dentre outras. Florestan Fernandes explica
que o caráter conservador é inerente à classe burguesa em si, não se tratando de uma
peculiaridade brasileira, porém, diferentemente do período de ascensão fundado no lema
da “igualdade, liberdade e fraternidade”, nos países colonizados apresenta suas vestes
apropriadas a seu momento de consolidação, não assumindo qualquer caráter
revolucionário.
Desta maneira, compreender as especificidades da nossa formação burguesa é
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E daí em diante muitas outras medidas seguiram este caminho, sendo algumas
delas: i. pagamento do serviço da dívida ultrapassando 8% do PIB, ao mesmo tempo em
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que se repetia que não havia recursos para outros investimentos públicos; ii.
transformação do sistema previdenciário brasileiro, abrindo espaço para as previdências
privadas; iii. aprovação da lei de falências, atendendo, especialmente, aos interesses dos
credores; iv. defesa da independência do banco central; v. ausência de uma reforma
tributária que altere a desproporcionalidade da incidência de tributos entre ricos e
pobres, inalterando a Lei de Responsabilidade Fiscal; vi. privatizações de rodovias, portos,
hidrelétricas, bem como as sofisticadas privatizações indiretas da saúde, educação,
cultura e outras áreas sociais via administração terceirizada por organizações sociais e
fundações; v. defesa e sustentação do agronegócio, com a aprovação da Lei de
Biossegurança, autorizando a comercialização dos transgênicos; entre outros pontos.
Para além da independência do Banco Central e sua presidência por Henrique
Meirelles, anteriormente vinculado ao BankBoston e que havia sido eleito deputado
federal pelo PSDB, Plinio de Arruda Sampaio Júnior. (2017, p. 69) complementa que “os
cargos estratégicos do Ministério da Fazenda responsáveis pela formulação da política
macroeconômica, a Secretaria do Tesouro e a Secretaria da Receita, foram entregues a
técnicos da confiança do FMI, totalmente desconhecidos do PT e do ministro Palocci”.
E então podemos nos perguntar qual é a função e o impacto das políticas
públicas de combate ao pauperismo, ampliadas significativamente a partir deste primeiro
mandato. Sem negar a relevância destas políticas, faz-se importante perceber que
impactam os efeitos dos problemas sociais gerados por essa escolha histórica (e não
rompida) de desenvolvimento do país, não tocando em suas causas.
O que se concretiza é uma política pautada no “melhorismo”, pois atende a
redução dos efeitos provocados pela própria perpetuação de um modelo e desde uma
combinação individual e pelo consumo, distanciando-se das reivindicações coletivas de
direitos e, principalmente, das mudanças nos processos de produção e trabalho. E não é
apenas o instrumento partidário que se burocratiza, mas também o sindical, perdendo
sua radicalidade e se rendendo ao papel negocial limitado.
Esta conjuntura econômica favorável e a implementação deste pacote
econômico apoiado na ideologia social-liberal explicam como a crise política de 2005, com
a investigação e processamento dos casos de corrupção do Mensalão, não chegaram a
atingir profundamente a popularidade de Lula. Faz-se interessante observar que, neste
momento, a estabilidade do governo foi também respaldada pelos grupos financeiros que
articularam a queda de Dilma alguns anos depois, destacando-se a Fiesp.
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precisamente, brasileiro.
Tratam-se de “estudos que descrevem o papel exercido pelos sistemas punitivos
na afirmação histórica das relações de produção capitalista” (DE GIORGI, 2006, p. 34) e o
primeiro deles, muito antes da consolidação da criminologia crítica no campo intelectual
(que se deu apenas na década de 1970), foi o de George Rusche e Otto Kirchheimer, com
sua primeira versão em 1933, que se propõe a analisar o surgimento da pena de prisão
como pena por excelência e a consolidação do capitalismo, a fim de perceber a relação
codeterminada entre ambas. Este estudo, acompanhado de Evgeni Pachukanis (1988) e
depois Michel Foucault (1987) tiveram importante função na inauguração do debate
sobre a violência estrutural e a função não declarada da pena de prisão, imbuída de
objetivos políticos, peça importante no controle social do capital.
Muitas questões necessariamente se complexificaram do final do século XIX,
início do século XX para cá e existe uma discussão se o constructo teórico da economia
política da pena estaria ultrapassado. Para nós, a grande questão para que se possa
pensar a pertinência e atualidade deste tipo de enfoque de pesquisa criminológica é
delinear o que se entende por economia, por controle social e por controle penal. Estamos
a tratar de uma relação mecanicista entre cárcere e fábrica? Entre encarceramento e
desemprego? Entre economia e pena? Trata-se da relação entre modelos de produção (e
as intrínsecas metamorfoses no mundo do trabalho e, evidentemente, nas subjetividades
das e dos trabalhadores) e controle penal?
Os estudos que rotulamos realizar uma “economia política da pena” procuraram
detectar no início da história da pena de prisão sua relação, na Europa, com a
domesticação e docilização da nova classe trabalhadora. Em um segundo momento, com
o desenvolvimento mais orgânico das correntes críticas do pensamento criminológico e
com as oscilações nas taxas de encarceramento nos Estados Unidos e em alguns países da
Europa, a depender do momento econômico, houve estudos que buscavam “medir” a
relação entre desemprego e encarceramento. Com a passagem para o período de maior
domínio tecnológico, financeirização da economia e flexibilização e precarização das
relações de trabalho, alguns afirmarão que a relação entre essas principais instituições de
controle social com a “fábrica” está de algum modo perdida ou se teria tornado obsoleta.
Para De Giorgi (2006, p. 56), a análise não deve ser pautada na relação entre
desemprego e encarceramento, mas sim entre economia e dispositivos de controle,
levando-se em conta as transformações dos processos de produção e de exploração do
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trabalho.
Tal leitura se aproxima, com especificidades, do que pretendemos definir aqui
como leitura histórico-estrutural do sistema penal no capitalismo, uma continuidade
atualizada e aperfeiçoada dos intentos de George Rusche e Otto Kirchheimer.
Parece-nos que, mais do que nunca, é preciso que se estabeleça um olhar
teórico de longa duração sobre os padrões estruturais do controle penal, pois em um
período histórico no qual o hiperencarceramento se apresenta como um fenômeno
mundial, independentemente de um aumento real dos índices de criminalidade e, além
disso, gerido por governos desde os de extrema direita aos ditos progressistas, há, de fato,
algo de tendencial e estrutural neste processo.
Desde uma leitura consolidada de que os padrões de acumulação capitalista e
as relações do tripé capital-trabalho-Estado no século XX tiveram um grande giro a partir
de 1970, criminólogos como Alessandro De Giorgi afirmariam que viveríamos nesta etapa
de acumulação capitalista da pós-grande indústria (por ele denominada como pós-
fordismo) uma sociedade do controle ou sociedade da vigilância, sendo superado o
regime disciplinar a partir do esgotamento da estrutura produtiva fordista.
Na sociedade disciplinar teria sido superada a ideia de suplícios e mortes e se
instaurado a ordem da recuperação, disciplinamento e docilização dos corpos, “passíveis
de constituir uma massa que as nascentes tecnologias da disciplina podem forjar, plasmar,
transformar em sujeitos úteis, isto é, em força de trabalho” (DE GIORGI, 2006, p. 27).
Entretanto, da transição da década de setenta em diante teria havido o desfalecimento
deste projeto disciplinar da modernidade. O processo de essencialização necessário para
a construção de inimigos opera-se por instituições que não possuem mais a disciplina
como objetivo primeiro, mas sim a neutralização, seja pelas múltiplas formas de vigilância,
seja pela guetização ou pelo encarceramento.
O novo internamento se configura mais do que qualquer outra coisa como uma
tentativa de definir um espaço de contenção, de traçar um perímetro material ou
imaterial em torno das populações que são 'excedentes', seja a nível global, seja a nível
metropolitano, em relação ao sistema de produção vigente (DE GIORGI, 2006, p. 28).
Dessa maneira, para ele, viveríamos a transição da sociedade disciplinar à sociedade de
controle, sendo que a “biopolítica do poder global” garantiria mecanismos sofisticados de
regulação da mão de obra útil e descartável em um espaço tornado imperial.
Nesse sentido, cabe-nos colocar algumas ponderações importantes acerca do
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caráter dúbio, contraditório e desigual dessas mudanças tendenciais, bem como reforçar
a continuidade, ainda que mais sofisticada, da alienação do trabalho no capital.
Assim, compreender o esfacelamento dos laços sociais, os processos de
essencialização do outro, a fragmentação das lutas, o hiperconsumismo, o surgimento de
novos sujeitos históricos, a intensidade e os mecanismos de controle de grupos sociais se
traduz como a ressignificação qualitativa do sociometabolismo do capital. As
especificidades da subsunção do trabalho ao capital nesse período exigem um
compromisso integral da e do trabalhador(a), um “vestir a camisa” da empresa, o que
causa impactos incalculáveis na sofisticação dos níveis de sua exploração e na produção
de sua subjetividade. Do mesmo modo, há a concomitância, de um lado, da alta
tecnologização da produção, permeada pela aparente lógica colaborativa e cooperativa
da e do trabalhador(a), de outro, uma acumulação flexível, que demanda terceirizações e
flexibilizações das relações laborais, bem como a intensificação dos processos de
desenvolvimento desigual entre setores de produção e entre regiões geográficas.
Portanto, há concomitâncias de processos, na velha dicotomia do arcaico e do moderno,
que sustenta ainda mais as possibilidades de expansão do capital nesta era.
É nesse contexto de transformações que De Giorgi (2006, p. 89) busca responder
“quais tecnologias de controles e formas de racionalidade do domínio se constituem a
partir do esgotamento do fordismo, do encerramento do ciclo industrial do capitalismo e
da transformação da força de trabalho pós-fordista em multidão”.
A reflexão passa pela noção de que os mecanismos de controle não são
individualizados, mas operam por grupos denominados “de risco”, não são a partir do
conflito, mas sim em uma afirmação de periculosidade e em um exercício de antecipação
do provável crime a ser cometido por determinado indivíduo, componente de um
determinado grupo social. Ou seja, um processo de essencialização, no qual eles se
tornam em si o risco, independentemente de sua conduta. Como afirma De Giorgi (2006,
p. 91), “esta condição de não-saber qualifica os dispositivos de controle e os orienta para
uma função de supervisão, de limitação do acesso, de neutralização e de contenção do
excesso” . O que passa a acontecer é que a força de trabalho excedente começa a ser
controlada menos por mecanismos assistenciais e mais por “instituições penais de gestão
da pobreza”, sob novas técnicas e objetivos, bem como por monitoramentos eletrônicos
que estabelecem novas dinâmicas nas grandes cidades. Daí que, para De Giorgi (2006, p.
104) “o controle se materializa numa arquitetura que não regula o encontro, mas o
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impede, não governa a interação, mas cria obstáculos a ela, não disciplina as presenças,
mas as torna invisíveis”.
A realidade brasileira sempre foi particular e essa mudança paradigmática não
se aplica de maneira absoluta. O que não quer dizer que não sintamos os impactos da
lógica gerencial na política criminal brasileira, mas, primeiro, não vivenciamos uma
sociedade disciplinar tal como nas realidades europeia e estadunidense e, segundo, tal
lógica é necessariamente híbrida com técnicas da máxima modernidade de cárcere e
fábrica e, sobretudo, pelo histórico e constitutivo autoritarismo escravagista e patriarcal
que funda nossa nação fraturada. Por aqui, o sistema penal sempre foi alicerce
fundamental de uma política autoritária, conservadora, de repressão crua à classe
trabalhadora e sustentação de privilégios da classe dominante, de naturalização de
instrumentos de tortura e outras crueldades.
Os “anos dourados” do capitalismo foram viáveis também pela ampliação do
consumo massivo nos países de economia dependente. Como tratamos no primeiro
tópico, enquanto os Estados de Bem-Estar Social se desenvolviam em outras realidades
do globo, por aqui se forjavam gestões desenvolvimentistas de Estado, com uma
industrialização que importava a tecnologia descartada dos países que já abriam suas
portas para a revolução tecnológica e cujo crescimento aqui dependia de empréstimos
cada vez maiores dos bancos internacionais; até que a crise fiscal e social consolidada na
década de 1970 impõe saídas e respostas ainda mais duras para os países
latinoamericanos.
Sendo assim, na América Latina o funcionamento dos órgãos repressivos e
punitivistas sempre operaram em outro patamar qualitativo. Além de cumprirem um
papel político de contenção violenta dos grupos populares desde sempre, também
podemos perceber que a divisão estanque, paradigmática entre mecanismos de controle
penal disciplinar e de gestão dos riscos (neutralização) não se apresenta aqui. O que não
significa que em tempos neoliberais não sintamos, e muito, o impacto da incorporação da
política criminal eficientista, seja nas alterações legais quanto a organizações criminosas,
típicas de um direito penal do inimigo; seja pela execução penal com incorporações
assumidamente neutralizadoras; seja com alterações no processo penal de cunho
negocial e restritivas de garantias fundamentais; seja pela própria violência policial; pelo
cada vez maior encarceramento; pelas taxas de homicídio de jovens negros das periferias;
pela explosão e desproporcional porcentagem de mulheres em situação de prisão, etc.
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Ainda que as linhas desta contribuição textual não nos permitam alongar no
desenvolvimento, a continuidade desta função estrutural do sistema penal brasileiro se
complexifica ao notarmos, desde o marco de 1940 e o Código Penal da República, a
consolidação da racionalidade penal iluminista atrelada a uma prática genocida
subterrânea que, combinadas, configuram aspecto fulcral do mito da democracia racial
no país. Este é importante elemento da caracterização genocida do Estado brasileiro,
agudizado com o aprimoramento autoritário nos anos de ditadura empresarial-militar e
sofisticado na Nova República, conforme detalharemos a seguir.
3. Política criminal e política se segurança nos anos de gestão federal pelo Partido dos
Trabalhadores
Apresenta-se como aparente paradoxo uma suposta gestão do Estado mais social e
redistributiva pelo Partido dos Trabalhadores e que, ao mesmo tempo, mais encarcerou
e recrudesceu penalmente em nossa história, verificando ser uma disruptiva da máxima
Estado Penal máximo-Estado Social mínimo. Desde esta indagação e entrando mais
diretamente no objeto delimitado deste escrito, como poderíamos fazer uma análise dos
13 anos do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República se falar em política
criminal e política de segurança significa tratar de esferas do executivo, do legislativo, do
judiciário, da mídia e de outros mecanismos de controle social informal, bem como tratar
destes poderes em competência federal, estadual, municipal e local?
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estrutural?
Para além de buscar captar elementos de tais perguntas, nossa maior
interrogante está na caracterização do projeto de sociedade buscado nestas quatro
gestões (ou melhor, três e parte de uma quarta interrompida por um golpe jurídico-
midiático-parlamentar em abril de 2016), o quanto ele estava atrelado a mudanças mais
ou menos impactantes no campo econômico e da organização da produção e do trabalho
e, consequentemente, na mudança radical de uma cultura política e social brasileira. O
nosso objetivo é perceber o que este projeto de governo tem a ver com o funcionamento
de mecanismos de controle penal aprofundados neste período. Temos que analisar as
peças, mas também, e principalmente, as regras do jogo, a composição do tabuleiro. Esta
é a difícil, mas necessária, tarefa que aqui nos propomos e que sabemos que nos limites
de um artigo apenas apresentaremos possibilidades de análise e compreensão do
problema.
Desde meados dos anos noventa, aprofunda-se no Brasil um novo papel da
União como mediadora da política de segurança pública. Momento histórico no qual o
holofote do “inimigo social” se desloca do lutador político para o traficante. A Guerra às
Drogas torna-se o cerne do processo repressivo. Foi neste cenário que o programa e a
política de segurança pública da Nova República se estabelecem, especialmente e de
maneira mais sistematizada a partir dos anos de governo de Fernando Henrique Cardoso,
oscilando entre: i. a manutenção das estruturas policiais, o fortalecimento dos serviços
de segurança privada e uma concepção de Lei e Ordem norteadora das práticas e
discursos, ii. um maior enraizamento de uma política de direitos humanos
institucionalizada.
Ao ser eleito, em 2003, Lula herda o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP)
e o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), bem como o Programa Nacional de
Direitos Humanos (I e II – 1996 e 2002). Em seu primeiro mandato lança um novo Plano
Nacional, em alguma medida dando continuidade às diretrizes anteriores, com forte
discurso de controle de armas, combate ao crime organizado e
qualificação/fortalecimento das polícias, especialmente a Polícia Federal. Como afirma
Mello (2015, p.72), o Plano “consistia num conjunto articulado, sistêmico e intersetorial
de propostas de reforma das polícias, do sistema penitenciário e de implantação de
políticas preventivas”.
Luiz Eduardo Soares, antropólogo com vasto acúmulo teórico e experiência na
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área, esteve como Secretário Nacional de Segurança Pública entre janeiro e outubro de
2003, porém foi desligado neste momento e a interpretação consolidada é de que seria
“por pressões de grupos ligados aos órgãos de segurança pública, notadamente da Polícia
Federal, interessada em manter seu papel central na articulação das políticas na área”
(AZEVEDO; CIFALI, 2017, p. 43).
Tarso Genro, já no primeiro ano do segundo mandato, em 2007, apresentou o
Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI). A proposta era de
uma articulação de política pública para que os membros federados (estados e
municípios) pudessem “desenvolver ações de prevenção à violência adaptadas à sua
realidade local e com o aporte de recursos da União” (MADEIRA, RODRIGUES, 2015, p.
12).
Rodrigo Azevedo e Ana Cláudia Cefali (2017, p. 44) classificam dois grandes eixos
do Programa: um composto de medidas de caráter estrutural, como aquelas relacionadas
às condições do sistema penitenciário e das instituições policiais e outro permeado por
medidas territorializadas, de caráter eminentemente preventivo, com o objetivo de
proporcionar “a garantia do acesso à justiça e a recuperação dos espaços públicos, por
meio de medidas de revitalização e urbanização” (AZEVEDO, CEFALI, 2017, p. 44).
O PRONASCI, nesta medida, seguiria as diretrizes da segurança cidadã por
conceber o fenômeno da violência individual de maneira multifatorial e integrante de
uma realidade estruturante de violência. Desde esta concepção, as “soluções” só
poderiam partir de uma priorização de medidas de caráter preventivo, garantidas com
políticas públicas especializadas. O Programa se traduzia como a combinação entre
investimento nas polícias, em sua estrutura, mas especialmente em sua formação;
melhoria das condições do sistema prisional, passando centralmente pela sua ampliação;
combate ao crime organizado e ao tráfico de drogas; e garantia de efetivação de uma
série de projetos de acesso a direitos e melhorias das condições de vida nos territórios
cujas vidas se encontram em maior condição de vulnerabilidade. Este combo resultava
em um maior protagonismo do governo federal na condução das políticas, sendo uma
espécie de mediador, envolvendo as localidades na construção de suas específicas
respostas, desde o poder público municipal até membros das comunidades e
organizações sociais, mas sendo o gerenciador dos processos.
Deste breve panorama nos questionamos: Seria a reunião de tais perspectivas
díspares compatível com a intencionalidade de ruptura de paradigmas? Até que ponto
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Nacional Antidrogas teria aumentado cerca de 500% entre 2011 e 2013. Neste terceiro
mandato abandonou-se o eixo de reforma das estruturas policiais e mais ainda o de
participação popular na gestão da segurança. O foco estava naquilo que se compra desde
o campo da aparência, ou seja, o que pode ser permeado por discursos sensacionalistas
das “teorias de todos os dias” e gerar votos, bem como o que pode ser vendido para fora,
em busca de uma performance internacional do país.
Essas mudanças de enfoque também foram acompanhadas de um
fortalecimento e maior protagonismo das Forças Armadas. Para Eduardo Granzotto Mello
(2015, p.81) não se trataria de um fenômeno exclusivamente calcado em interesses
eleitoreiros ou coisa semelhante, mas sim na corroboração para que se edifique no país
um novo paradigma bélico de segurança, constituído desde a “relativização dos limites
entre defesa nacional e segurança pública, inimigo interno e inimigo externo,
normalidade e crise, em plena sintonia com o conceito de emergência que marca
historicamente o sistema penal”.
Para ele, no período dos governos Lula e Dilma – analisados em seu trabalho de
2003 a 2014 – verificou-se a formação de um “subsistema penal federal”, como um
fortalecimento deste novo padrão de segurança – bélico – e, mais que tudo, como
elemento componente de um novo lugar geopolítico almejado pelo país, de dominação e
exploração regional. Para além de perceber as novas funções atribuídas às Forças
Armadas, Eduardo Granzotto Mello (2015, p. 80) também destaca a criação da Força
Nacional de Segurança Pública, bem como a implementação do Sistema Penitenciário
Federal.
Neste espaço do artigo, pudemos apresentar brevemente alguns elementos de
política criminal e de segurança mais diretamente bancados pelo governo federal, sendo
marcados pela dubiedade. Outro passo importante é perceber o contexto criminalizador
mais geral no período, capturando suas relações. Desde os principais elementos de
inchaço de processos de criminalização primária – com novas leis e novas incriminações,
bem como mudanças na execução penal e no processo penal, tendentes a uma mais
profunda caracterização neoinquisitória.
O encarceramento em massa brasileiro, por exemplo, só pode ser
compreendido pela conjunção de processos expansionistas. De um lado, uma expansão
quantitativa do controle, com novos tipos penais e penas mais longas. De outro, uma
expansão qualitativa, com sofisticação de métodos, dispositivos e tecnologias de seleção
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penal. No recheio, naquilo que de fora não se vê, uma expansão dos braços penais, com
institutos aparentemente mais brandos, porém que possibilitam tratamento penal ou sua
mais efetiva intervenção em conflitos dantes solucionados de outras maneiras. Nas
bordas, situações de criminalização do cotidiano por meio de mecanismos de controle
informal, que escapam o sistema penal propriamente dito – os elementos que envolvem
a militarização dos territórios e das vidas de seus pertencentes, por exemplo. O que
envolve todos estes elementos, como embalagem, é a Guerra às Drogas, enquanto veículo
impulsionador de uma cadeia de excepcionalidades e ampliações de interferências. Como
guerra, construída desde discursos alarmistas e rotulantes, imprimindo-se também em
leis.
Em um exercício dialético de compreensão da realidade, precisamos perceber a
ausência de uma política criminal e de segurança anti-neoliberal nos anos de gestão do
executivo federal pelo Partido dos Trabalhadores observando tendências da atuação mais
diretamente responsável desta instância, bem como observando os outros atores e os
outros elementos determinantes da onda punitiva deste período histórico e, mais ainda,
conectando a leitura sobre o perfil do controle social do capital e a ausência de rupturas
profundas sob a gestão social-liberal petista e as determinações do controle penal
propriamente neste período. Foi essa a acrobacia que se intencionou ensaiar neste artigo,
como um primeiro movimento para sua captação, a ser aperfeiçoado.
Considerações finais
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mas o estudo científico realizado aponta que ela ganhou marcas muito fortes neste
período estudado, se aprofundou e abriu porteiras para a barbárie permanente e
escancarada após o golpe de 2016 e ainda mais com a eleição de Jair Bolsonaro.
Ainda que combinada, em um primeiro momento, com uma política voltada a
construir outro parâmetro de segurança, não se dispôs ou não teve forças para tocar nos
elementos determinantes, sendo, paulatinamente, conforme a crise econômica avançava
e a subalternização internacional brasileira se aguçava, abandonada. Para nós, uma
política dualista que desmoronou.
Perceber tais contradições e o quanto, ao contrário da construção de bases de
uma política criminal e de segurança anti-neoliberal é importante para que tenhamos as
melhores ferramentas críticas e de transcendência para o abismo que se abriu diante de
nós a partir de 2016. Perceber os erros e limites do social-liberalismo petista no que tange
aos mecanismos de controle sociopenal é fundamental para fazermos o melhor combate
ao que vivenciamos depois dele.
O que buscamos evidenciar ao longo deste artigo é que o autoritarismo é
estruturante do sistema penal brasileiro e se operacionaliza, desde os seus primórdios, de
maneira não-oficial. O sistema penal brasileiro é constitutivamente uma instituição de
extermínio justamente porque esta qualificação só se dá pela não-dito, pela razão racista
que veicula ações de segregação e morte. Ocorre que, na atual etapa, elas passam a se
imiscuir com o discurso oficial – não através de seu conteúdo racista propriamente dito,
mas sim pelo combate incessante ao criminoso, especialmente o organizado – tornando-
se, nas palavras de Salo de Carvalho, “absolutamente preocupante quando as funções
reais (genocidas) passam a ser defendidas como base de um novo discurso oficial (funções
declaradas), pois a transferência da programação real do direito penal do terror ao nível
enunciativo potencializa o incremento da violência na nova realidade que se deseja criar”
(CARVALHO, 2006, p. 255).
Todo o desenvolvimento prévio nos aponta a complexidade que é pensar o
papel político, econômico e social das instâncias formais e informais que compõe os
mecanismos de controle penal. Ao mesmo tempo, negamos a impossibilidade de reversão
dos processos barbarizantes da realidade social. Nós nos negamos a acreditar que este
seja o único caminho possível.
Por isso, admitimos a possibilidade de construção de uma política criminal
“utópica”, que só se realiza enquanto parte do processo próprio de superação desta
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ordem social (im)posta, portanto, inserida em um projeto mais amplo de alteração radical
da realidade. Isso significa dizer que só é possível resistir à etapa de emergência
punitivista neoliberal com um projeto de ruptura do sentido dependente brasileiro.
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Sobre a autora
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Resumo
O presente artigo busca, de um lado, analisar discursos e práticas racistas na agenda do
governo brasileiro – sobretudo dos últimos anos e a partir das ADPF 635 e 742 – e, de
outro, refletir sobre as respostas que os estudos sobre violência têm sido capazes de
articular. Para isso, acionamos a ideia de cidadania negra para observar as mediações que
o negro elabora sobre si para ser sujeito de direito, e, consequentemente, para
sobreviver.
Palavras-chave: Cidadania negra; Crítica afrodiaspórica; Discursos e prática de violência.
Abstract
On one hand, this work aims to analyse racist discourses and practices present in the
agenda of the Brazilian government – particularly in these last two years and taking the
ADPF 635 and 742 as parameters. On the other, it aims to reflect about the responses
articulated by the studies on Violence. To do so, we explore the idea of black citizenship
to observe the mediations Black people elaborate about themselves to become a Subject
of Rights and, as a consequence, to survive.
Keywords: Black citizenship; Afrodiasporic critique; Discourses and practices on violence.
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Introdução1
1 Este artigo sistematiza reflexões empreendidas coletivamente no Maré – Núcleo de Estudos em Cultura
Jurídica e Atlântico Negro (FD/UnB), grupo de pesquisas integrado pelos autores.
2 SATRIANO, Nicolás. Emily e Rebecca: laudos indicam que tiros atingiram fígado, coração e cabeça. Disponível
em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/10/emily-e-rebecca-laudos-indicam-que-tiros-
atingiram-figado-coracao-e-cabeca.ghtml. Acesso em: 14 dez. 2020.
3 CONAQ. Nota de Pesar. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/nota-de-pesar/. Acesso em: 14 dez.
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4Exemplo disso foram os últimos encontros do Grupo Brasileiro de Criminologia Crítica e a última edição do
Grupo de Mulheres das Ciências Criminais. Mais do que encontros pontuais, é importante mencionar também
a ampliação da discussão dentro das próprias universidades, especialmente após a implementação de cotas
raciais nos cursos de graduação e, mais recentemente, em alguns cursos de pós-graduação.
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Talvez seja elementar observar que este abandono simbólico tem efeitos
concretos no cotidiano dos negros. Como destacado por Ana Flauzina e Felipe Freitas
(2017: 65), mesmo a condição de vítima no Brasil obedece a um regime de poder e
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branquitude. Largados ao terror, sem que sua dor gere sensibilização nem acione
mecanismos de reparação, os negros vivem o aprofundamento do genocídio no âmbito
penal, assim como o reforço de representações sociais racistas que os aprisionam na
imagem do mal e da brutalidade. Imagens estas que, ao fim e ao cabo, serão acionadas
para a produção de mais violência e invisibilidade social.
Limitar, portanto, a compreensão do protesto negro ao reforço do sistema penal
implica ignorar a crítica mais profunda que se faz à violência produzida pelo próprio
Estado ou legitimada por ele. Conforme abordaremos no próximo tópico, o movimento
negro não tem centrado suas lutas numa demanda simplista por mais criminalização,
como se, nessa panaceia, fosse possível barrar o avanço do genocídio. Tem, na verdade,
destacado como o enfrentamento à violência passa pela mudança na distribuição do
poder e pela defesa de outras formas de vida. Interpela-se o Estado criticamente,
compreendendo que não nos é dado viver “fora” dele e que seu silêncio, tanto quanto
sua ação, impactam diretamente nossas vidas. O diálogo com o sistema penal, nesse
sentido, é muito mais complexo.
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5 VEJA. Wilson Witzel: ‘A polícia vai mirar na cabecinha e… fogo’. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/politica/wilson-witzel-a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo/. Acesso em: 14 dez.
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6 HABITAT. Tanta gente sem casa, tanta casa sem gente. Disponível em:
https://habitatbrasil.org.br/impacto/nossa-causa/. Acesso em: 16 dez. 2020.
7 RAMALHOSO, Wellington. Alicerce: Pandemia escancara crise de moradia no Brasil, mas produzir casa
https://coronavirus.ufes.br/conteudo/pesquisa-revela-que-pardos-e-negros-morrem-mais-por-covid-19.
Acesso em: 16 dez. 2020.
9 QUILOMBOS SEM COVID. Observatório da Covid-19 nos Quilombos. Disponível em:
https://quilombosemcovid19.org/. Acesso em: 16 dez. 2020.
10 TRINDADE, Naira; GULLINO, Daniel. Governo prepara campanha com slogan 'O Brasil Não Pode Parar'
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2.1. O agenciamento das favelas frente à violência policial a partir da ADPF 635
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11Experiências de midiativismo têm se multiplicado pelas favelas do país, como se vê nas seguintes notícias:
VADAKATTU, Sharonya. Midiativismo de Favela: Contrapúblicos para Direitos Humanos no Brasil. Disponível
em: https://rioonwatch.org.br/?p=35418. Acesso em: 15 dez. 2020. CISCATI, Rafael; ALBINO, Airan. Papo reto
quer criar uma "nova narrativa sobre a favela". Disponível em:
https://www.brasildedireitos.org.br/noticias/506-papo-reto-quer-criar-uma-nova-narrativa-sobre-a-favela.
Acesso em: 15 dez. 2020. COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA. Coletivo Força Tururu fortalece vozes comunitária
e popular em Recife. Disponível em: http://www.midiacidada2012.unb.br/referencias/estudo-de-caso/140-
coletivo-forca-tururu-fortalece-vozes-comunitaria-e-popular-em-recife.html. Acesso em: 15 dez. 2020.
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2.2. O enfrentamento da violência de Estado nos quilombos: entre a ADPF 742 e a luta
pelos territórios
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA).
QUILOMBOS SEM COVID. Observatório da Covid-19 nos Quilombos. Disponível em:
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monitoramento registra 170 óbitos entre quilombolas. A situação se agrava, pois até o
momento a ação não foi julgada14 e não há, por parte do governo federal, tomada de
medidas de contingenciamento da Covid-19 nos territórios quilombolas. Na ação foram
destacadas como cruciais para o estado de precariedade dos quilombos as ações e
omissões do governo federal. Por isso, no corpo da ação foram apresentados estudos
sobre as vulnerabilidades quilombolas no âmbito territorial, socioeconômico, sanitário e
de saúde, decorrentes da postura institucional de abandono.
Para compreender o cenário das mortes nos quilombos, destacamos os dados
sistematizados pelo Centro de Documentação Quilombola Ivo Fonseca (Universidade de
Brasília) no documento “Vulnerabilidade Quilombola na Covid-19 – um estudo na base de
informações do IBGE” (CDIF, 2020). O estudo mobiliza insumos de órgãos da
administração federal, que evidenciam o seguinte cenário: i) apenas 5,34% das
localidades quilombolas identificadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) têm assegurado o direito territorial nos termos do art. 68 do ADCT (CDIF, 2020: 46);
ii) o rendimento médio mensal per capita nos municípios com localidades quilombolas é
23% inferior ao dos municípios sem localidades quilombolas – a diferença é ampliada para
44% quando considerada a média mensal per capita dos municípios com 30 ou mais
localidades quilombolas, conforme do IBGE de 2010 (CDIF, 2020: 51); iii) no quesito
saneamento básico, os municípios com localidades quilombolas têm 23,6% dos domicílios
em condições inadequadas e 44,4% semiadequadas – a situação é aprofundada nos
municípios com 30 ou mais localidades quilombolas, contando com 32,8% dos domicílios
inadequados e 56,3% semiadequadas, a partir de dados do demográficos de 2010 do IBGE
(CDIF, 2020: 57); iv) dados do DataSUS a respeito da estrutura de saúde (verificada em
agosto deste ano) indicam que, entre os 1.672 municípios com localidades quilombolas,
46 não possuem médicos do SUS, 1.465 não possuem leitos de UTI do SUS e 948 não
dispõem de respiradores do SUS (CDIF, 2020: 58-63).
O contexto acima, apresentado na ADPF 742, por meio de outras pesquisas,
notas técnicas e informações oficiais, denota que as vulnerabilidades quilombolas
decorrem de práticas institucionais protagonizadas pelo Estado brasileiro, violador de
direitos e garantias fundamentais dos quilombos. O ponto central da inviabilização da vida
14 Por decisão do relator Min. Marco Aurélio, proferida em 17 de setembro, a ADPF foi submetida para decisão
do colegiado, mas sem qualquer deliberação sobre as medidas cautelares incluídas dentre os pedidos da ação.
Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6001379. Acesso em: 13 dez. 2020.
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quilombola é a política pública territorial, pois como medida transversal garante o acesso
aos programas públicos de saúde, educação e crédito fundiário, assim como protege o
patrimônio cultural, ambiental e memorial dos territórios.
Partindo da centralidade do território para vida negra, integra o estado de
genocídio sobre os quilombos o controle social a partir da gestão territorial. O
crescimento da violência no campo é revelador também dessa interdição sobre os direitos
quilombolas, especialmente as garantias constitucionais para concretizar os modos de
fazer, criar e viver do quilombo. Assim, além das práticas omissivas quanto à
implementação de políticas públicas, temos na agenda institucional do governo a
promoção de conflitos socioambientais15.
Não há informações precisas sobre a violência nos quilombos nos anos de 2019
e 2020, mas duas produções recentes indicam o aumento do número de conflitos no
campo e assassinatos de quilombolas. Assim, antes mesmo de uma agenda contra os
quilombos institucionalizada pelo governo Bolsonaro, já temos um contexto de
aprofundamento da violência, controle social e morte nestes territórios. Os dados sobre
violência no campo no ano de 2019, apresentado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT),
através do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, indicam um pico de 1.254
ocorrências de conflitos, o maior índice em toda a série registrada pelo (2020: 101) desde
1985. Surpreende que o aumento de 12% das ocorrências do ano de 2019 na comparação
com o ano de 2018, foi observado no período de menor índice de retomadas, ocupações
e acampamentos que a série histórica já registrou (CDDTB, 2020: 101).
Em muitas ocorrências, o território quilombola foi cerne do conflito. Nos
auxiliando nesta análise, acionamos um segundo estudo, o dossiê “Racismo e Violência
contra Quilombos no Brasil”16 que apresenta as ocorrências de assassinatos de
quilombolas entre 2008 e 2017 (CONAQ, Terra de Direitos, 2018: 29). Enquanto no ano
15 No ano de 2019 o Presidente Jair Bolsonaro institucionalizou o imperativo de violência no campo: “não
pode continuar assim. 61% do Brasil você não pode fazer nada. Tem locais aqui que você, para produzir uma
coisa, você não vai produzir porque você não pode em uma linha reta para exportar, tem que fazer uma curva
enorme para desviar de um quilombola, uma terra indígena, uma área de preservação ambiental. Estão
acabando com o Brasil. Se eu fosse fazendeiro, eu não vou falar o que eu faria, não, mas eu deixaria de ter
dor de cabeça”. GULLINO, Daniel. 'Estão acabando com o Brasil', diz Bolsonaro sobre restrições da preservação
ambientalDisponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/estao-acabando-com-brasil-diz-bolsonaro-
sobre-restricoes-da-preservacao-ambiental-23881657. Acesso em: 14 dez. 2020.
16 Estudo realizado pela CONAQ e Terra de Direitos (2018) com o apoio de organizações da sociedade civil,
contribuindo com o levantamento de dados sobre a violência nos territórios quilombolas foram caracterizadas
as principais formas de violência; a intersecção entre violência raça e gênero no contexto dos territórios
quilombolas; as situações de agravamento da violência contra quilombolas (CONAQ, Terra de Direitos, 2018:
35).
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de 2016 foram registrados pela CONAQ 4 assassinatos, a maior taxa do período mapeado,
no ano seguinte o Brasil registrou o assassinato de 18 quilombolas, um aumento de 350%
que equivale quase à metade de todo o período sistematizado.
Constitui-se, assim, um cenário favorável para violência gratuita (VARGAS, 2017:
91), violação de direitos fundamentais e desterritorialização. Todos os mecanismos da
morte nos quilombos que remontam ao arcabouço colonial se encontram hoje presentes
no cotidiano quilombola. Esse projeto de mortes já em curso é atualizado na pandemia
com a omissão do governo federal na promoção de medidas emergenciais, especialmente
diante das condições de vulnerabilidade apresentadas, incluindo a ausência de
monitoramento epidemiológico para formular ações estruturais de saúde e sanitária nos
territórios.
Aqui temos um aspecto importante na compreensão da estrutura de violência
nos territórios negros, a inviabilização material da vida negra. Essa condição é observada
nos territórios quilombolas e decorre da fragilização de seu estatuto jurídico-político, o
que é substancial na forma colonial-racista de desumanização, pois se volta à
desidentificação dos quilombolas como sujeitos de direitos (GOMES, 2020).
O conteúdo dessa operação encontra respaldo no contínuo restabelecimento
de imagens e representações de controle sobre os quilombos (COLLINS, 2019). Vale
destacar o seu aprisionamento como experiência restrita ao passado escravista, uma
redução de sua complexidade que encontra repercussão na afirmação e negação de seus
direitos no presente. O problema de reduzir o quilombo a “mera” oposição da escravidão,
revela um equívoco analítico apresentado pela historiadora Beatriz Nascimento (2018:
72) quando interpela o signo pejorativo produzido sobre o mecanismo da fuga.
A intelectual pontua que a valoração negativa da fuga tomava como
pressuposto um sentido de liberdade desenvolvido a partir da experiência de matriz
branca, que usufruía dessa condição, intrínseca ao sujeito moderno, em sua plenitude,
tendo em vista a integridade do seu patrimônio jurídico-político. A colonização-escravidão
fratura essa condição perante os sujeitos negros, pois a subjugação opera tanto legal –
quando se institui a objetificação – quanto politicamente, por naturalizar a
hierarquização. Desse modo, para viabilizar as experiências de liberdade e igualdade, a
fuga foi fundamental, pois significava o desmantelamento desta estrutura jurídico-política
e viabilizava a reconstrução autônoma da vida negra (NASCIMENTO, 2018; GOMES, 2020).
Portanto, o signo pejorativo da designação constante aos quilombos como “negro fujão”,
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17TERRA DE DIREITOS. Organizações sociais acionam Comissão Interamericana para garantir direitos básicos
à quilombolas do Amapá. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/organizacoes-
sociais-acionam-comissao-interamericana-para-garantir-direitos-basicos-a-quilombolas-do-amapa/23509.
Acesso em: 14 dez. 2020.
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18 BRASIL. Lei n. 14.021, de 7 de julho de 2020. Dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do
contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas; cria o Plano Emergencial para
Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas; estipula medidas de apoio às comunidades quilombolas,
aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19;
e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a fim de assegurar aporte de recursos adicionais nas
situações emergenciais e de calamidade pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 de agosto de 2020.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L14021.htm. Acesso em: 14
dez. 2020.
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19 CONAQ. Líder quilombola em Simões Filho é o 9º assassinado este ano na Bahia. Disponível em:
http://conaq.org.br/noticias/lider-quilombola-em-simoes-filho-e-o-9o-assassinado-este-ano-na-bahia/.
Acesso em: 16 dez. 2020.
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que, mesmo no Rio, nos meses que se sucederam à decisão liminar, outras mortes
demonstraram que a decisão não havia sido cumprida plenamente. As primas Emily
Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7, foram mortas a tiros
em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense20. Moradores relataram que não havia
tiroteio ou operações policiais na região, porém, que viram o carro da polícia passando
no bairro.
Um mês antes, desta vez no bairro Curuzu, em Salvador, no dia 08 de novembro,
cena semelhante se observou. Railan Santos da Silva, de 7 anos, morreu após ser baleado
quando assistia uma partida de futebol amador. As testemunhas afirmaram que “ninguém
sabia o que estava acontecendo. A polícia entrou atirando. Não foi para o alto, foi para
matar”21. A dimensão estrutural é recordada pelo Sr. Roberto, avô de Railan: "Ele era um
menino inocente, autista. Sempre a polícia chega lá e faz isso, já chega atirando. Nós
queremos justiça. Ele não é o primeiro, tem vários. Quero ver qual a providência vai ser
tomada"22
Analisando o cenário de extermínio, João Vargas (2016) estabelece como
proposta o deslocamento da base ontológica sobre a qual analisamos as relações sociais
brasileiras. A partir da ideia de presença ausente – referência da negação da negritude –
(VARGAS, 2017: 95), mobiliza a filosofia fanoniana para tomar a antinegritude como um
anteparo das estruturas modernas do saber-poder. Por esse pressuposto, temos que a
reconstrução da cidadania fora do espectro em que foi estabelecida inicia com
reconhecimento de que o seu sentido normativo é a negação da população negra.
O autor coloca lado a lado as dessemelhanças entre os mundos não-negro e
negro. Se no mundo não-negro, as experiências passam pelas ideias do “Trabalhador/a”,
do “Estado-Império” e da “Cidadania”, no mundo negro seus correspondentes são
“Escravo/a”, “Não lugar” e “Morte social”. Dessa maneira, “[...] ser negro significa ser,
desde sempre, excluído das esferas de cidadania, do consumo, de pertencimento político.
20 SATRIANO, Nicolás. Emily e Rebecca: laudos indicam que tiros atingiram fígado, coração e cabeça.
Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/10/emily-e-rebecca-laudos-indicam-
que-tiros-atingiram-figado-coracao-e-cabeca.ghtml. Acesso em: 16 dez. 2020.
21 CORREIO. 'Como tiram a vida de uma criança especial?', diz mãe de garoto autista baleado no Curuzu.
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De humanidade. Ser negro significa não ser; significa ser, desde sempre, socialmente
morto” (VARGAS, 2017: 92).
Diante de um quadro tão cruel, o arcabouço teórico e político fanoniano é
substancial para sintetizar a equação na qual negritude é igual à morte:
Em Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon estabelece que a pessoa negra é
negra sempre e somente em relação à pessoa branca. Ou seja, a ontologia
negra depende e deriva da ontologia branca. A ontologia branca, então, é
base de toda e qualquer ontologia. Ser negro é ser não branco. É importante
lembrar que, de acordo com Fanon, a recíproca nunca é verdadeira. O ser da
pessoa branca, diz ele, não depende da pessoa negra porque a pessoa negra,
por ser uma derivação, um subproduto, “não apresenta resistência
ontológica” aos olhos da pessoa branca (VARGAS, 2017: 94-95).
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mortes sequer seriam quantificadas. Nesse sentido, vê-se que a autoinscrição das
resistências é um instrumento que desloca a constatação da violência com discursos de
inferiorização para enfrentamento da violência pelo reconhecimento da cidadania.
Pelos registros das comunidades e familiares temos a denúncia da violência,
mas, também, a reivindicação da humanidade, pois foi a interdição desse atributo que
produziu a perda. Assim, o luto pelos projetos de vida que sucumbiram é um direito pelo
qual se luta a partir da memória. Por isso, é um mecanismo que opera contra violência
que ultrapassa o sentido físico, atuando no âmbito subjetivo e político; reconstruindo
sentidos afetivos e simbólicos de sociabilidade e poder, que são articulados na
solidaridade do território negro afetado.
Essa dimensão está latente no testemunho de Maria Bernadete Pacífico: “os
nossos filhos deixaram uma história, deixaram um legado e isso é que incomodou”.
Bernadete é mãe da liderança da comunidade Pitanga dos Palmares, Flavio Gabriel
Pacifico dos Santos (Binho do Quilombo) 23, assassinado no dia 19 de setembro de 2017,
na frente da escola do território quilombola, localizado no município de Simões Filho (BA).
A sua oralidade é um registro dessa memória de resistência que ela recorda ter
historicidade, “só em dizer que eu sou quilombola, a resistência está aqui” e segue:
“Meu filho lutava muito pelos direitos do quilombo, ai foi recebendo
ameaças, ameaças, e outras ameaças dentro do quilombo veio a acontecer
isso. Mas ele derramou sangue, esse sangue de quilombola, sangue de vitória,
mesmo sangue que Zumbi dos Palmares largo pelo povo dele. Ser quilombola
faz parte da nossa ancestralidade, da nossa cultura... E nós queremos nossa
liberdade, nossos direitos e dai por diante ter paz nas nossas comunidades
quilombolas. Que Deus e Xangô, que é o homem da justiça, eles peguem na
caneta e respeite a nossa ancestralidade. Muita resistência pra hoje eu ta
aqui, com essa cara aqui olhando pra todos vocês, pedindo força a Deus... É
muita resistência”24.
23 CONAQ. Mãe de Marielle Franco une forças com mãe Binho do Quilombo. Disponível em:
http://conaq.org.br/noticias/mae-de-marielle-franco-une-forcas-com-mae-binho-do-quilombo/. Acesso em:
16 dez. 2020.
24 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Ouça as #VozesDoQuilombo! - Maria Bernadete Moreira. Disponível em:
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periferias do Brasil. Em setembro de 2019, ela foi vítima de um tiro efetuado por um
agente do estado, como comprovou o laudo pericial25. O discurso de seu avô, Airton Félix,
durante o velório e o enterro, aciona novamente as relações entre memória, cidadania e
resistência à violência:
“Sabe qual era a arma que tinha dentro da mochila da minha neta? Lápis,
caderno, apontador, livro. Tinha um simulado que ela fez nessa semana e
tirou 7! Essas eram as armas que a Ágatha gostava de usar. Ela tinha um
futuro, ia crescer e entrar na faculdade. Mas o estado não quer isso. E se
continuar dessa forma, o que vai acontecer?”26
Conclusão
Esse artigo é uma discussão inicial sobre violência, cidadania e (sobre)vivências. Partindo
do pressuposto de que a geografia do extermínio atua tanto na cidade como no campo,
observou-se a intensidade da máquina racista que a cada dia amplia o perfil de suas
vítimas, comprovando o racismo estrutural e estruturante mantido historicamente pelo
governo brasileiro em discursos e práticas diversas. A delimitação da violência antinegra
ao espaço urbano fragmenta a compreensão de práticas de controle social que se
desenvolvem como um continuum campo-cidade.
Além disso, o cenário de agudização da violência antinegra provocou reflexões
sobre os estudos da violência e sobre como tem sido trabalhada a dimensão racial no
25 BARBON, Júlia. Investigação conclui que PM atirou na menina Ágatha no Rio. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/investigacao-conclui-que-pm-atirou-na-menina-agatha-
no-rio.shtml. Acesso em: 12 dez. 2020.
26 ZARUR, Camila; OUSHANA, Giselle. 'A arma que ela gostava de usar era lápis, caderno, redação nota 10', diz
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Brasil. Em geral, sujeitos e sujeitas de territórios negros como favelas e quilombos, assim
como suas demandas, não estão no cerne do debate. Desse modo, a redução das
demandas da população negra, contra e a favor do Estado, aos problemas da punição,
oculta projetos de vida, liberdade e igualdade, ou seja, cidadania, agenciados contra a
violência colonial-racial. Entendemos ser urgente e fundamental que o racismo deixe de
ser preterido para que produções acadêmicas possam, enfim, dar conta de todo espectro
de horror que essas populações têm vivido.
Outro ponto importante é o entendimento entre movimento negro e sistema
penal. Conscientes da relevância da contemporaneidade, citamos experiências de favelas
e quilombos que, no contexto da pandemia de Covid-19, denotam as agências da
população negra na política de justiça, bem como o alinhamento das demandas por
direitos à redução do controle social e violência. Estas experiências informam que,
independentemente da forma político-jurídica adotada nos pactos sociais, a conservação
da vida negra requer a sustação da ordem antinegra. Nesse sentido, as Ações de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 e 742 foram estratégias para
garantir – minimamente – a manutenção da vida nos territórios negros. As ações
evidenciam também a legitimação, por parte do Estado, das violência contra a população
negra, enquanto mecanismo de interdição de sua cidadania.
Por fim, concentramos esforços na disputa de narrativa que a população negra
tem produzido sobre si e as relações raciais no Brasil. Por exemplo, o agenciamento da
memória afetivas e da resistência para contrapor as imagens e representações racistas
que fragmentam a humanidade e desqualificam a subjetividade. Um dos aspectos
enfrentados nessa memória da diáspora africana é a vinculação da experiência negra à
política de um tempo passado que reafirma discursos de controle social e reduz a
experiência social vivida pela população negra à violência, dor e morte.
Essas contribuições constituem possibilidades de uma cidadania radical no
Brasil, em que seja possível enfrentar verdadeiramente a violência racial. Apesar de
pretensos avanços com instrumentos como “Constituição cidadã”, a existência negra
segue definida pela morte física e política. E se ser negro e negra é um processo muito
mais de (sobre)vivência do que de vivência, não resta outro caminho do que revindicar
outras vozes e saberes para que a experiência negra não seja um esforço, mas uma
totalidade.
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Sobre os autores
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 580-607.
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.608-641.
Marilia Montenegro Pessoa de Mello, Fernanda Cruz da Fonseca Rosenblatt e Carolina Salazar
l’Armée Queiroga de Medeiros
DOI:10.1590/2179-8966/2020/57098| ISSN: 2179-8966
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Resumo
O presente artigo tem como objetivo entender o funcionamento das equipes
multidisciplinares atuantes em Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher. Buscamos identificar e compreender as possíveis modificações
desenvolvidas nesses espaços especializados, inaugurados há mais de uma década, na
direção de novas respostas, desafiadoras daquelas tradicionalmente oferecidas pelo
Sistema de Justiça Criminal. Para tanto, e tendo por base pesquisa empírica realizada em
sete capitais brasileiras, utilizaremos de falas e reflexões extraídas dos grupos focais
realizados com as equipes multidisciplinares estudadas, bem como das percepções
extraídas de entrevistas com magistrados que atuam na violência doméstica e vítimas
desse tipo de conflito. Ao final, propomos o reconhecimento da importância das equipes
multidisciplinares na busca de novas saídas à violência doméstica contra a mulher no
Brasil, bem como a necessidade de enxergar/admitir as rígidas fronteiras do nosso
“mundo jurídico”.
Palavras-chave: Violência Doméstica contra a Mulher; Equipes Multidisciplinares; Lei
Maria da Penha.
Abstract
This article aims to understand the workings of multidisciplinary teams in Domestic
Violence Courts in Brazil. We seek to identify and understand the possible changes
developed in these specialised spaces, which now exist for over a decade, that are turned
to new responses capable of challenging the traditional way of doing things in the
country’s Criminal Justice System. For that purpose and based on empirical research
carried out in seven Brazilian capital cities, we will highlight some of the reflections
extracted from focus groups carried out with the aforementioned multidisciplinary teams,
as well as draw on the perceptions extracted from interviews with magistrates who work
with domestic violence and victims of this type of conflict. In the end, we highlight the
need for recognition of the importance of multidisciplinary teams when searching for new
“ways out” in the domestic violence against women arena, as well as the need to
see/admit the rigid borders of our “legal world”.
Keywords: Domestic Violence against Women; Multidisciplinary Teams; The Maria da
Penha Act (Brazil’s Domestic Violence Law)
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.608-641.
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1. Introdução
1 Optamos por apresentar a pesquisa de campo e seus resultados na primeira pessoa considerando o papel
tão direto e íntimo que tem o pesquisador, tanto na coleta como na análise de dados (ROSENBLATT, 2015a).
2 O referido projeto foi contemplado na 2ª Edição da Série “Justiça Pesquisa”, do Departamento de Pesquisas
Judiciárias (DPJ), em 2016, tendo sido financiando, portanto, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). As
autoras declaram não haver conflito de interesses que comprometa a cientificidade do trabalho apresentado.
3 Reconhecemos a maior pertinência da expressão “mulheres em situação de violência”, por acreditarmos
que ela remete à possibilidade de modificação da realidade sociocultural da violência doméstica e familiar
contra a mulher (PASINATO, 2015) e, também, por entendermos que a expressão “mulher vítima” engessa a
mulher numa situação única de vulnerabilidade, o que faz com que o complexo problema da violência
doméstica e familiar contra a mulher seja interpretado a partir de uma causalidade unilateral e simplista, cuja
compreensão precisa ultrapassar “os limites de uma leitura bidimensional, fundamentada em categorias fixas
como ‘mulher-vítima’ e ‘homem-agressor’” (SOARES, 2012: 191). No entanto, para efeitos deste artigo,
utilizaremos com frequência o termo “vítimas” por ser conciso, por estar na Lei Maria da Penha e
corresponder à linguagem jurídico-penal e também porque o objetivo deste trabalho não está focado nas
discussões em torno da terminologia mais apropriada. Do mesmo modo e por razões semelhantes,
utilizaremos o termo “agressor” com frequência, apesar de entendermos que se trata de referência
estigmatizante marcadora de uma identidade – e não de uma prática social, tal como compreendemos se
tratar a violência contra a mulher (MEDRADO; MÉLLO, 2008; SOARES, 2012).
4 O componente qualitativo da pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Católica de
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que as integram. Para tanto, vamos destacar não só a atividade de campo desenvolvida
com as equipes multidisciplinares, mas também as reflexões extraídas das entrevistas
com as vítimas e com a magistratura.
Cabe pontuar, desde já, que, apesar de as esquipes multidisciplinares terem sido
celebradas por sua previsão no bojo da Lei Maria da Penha – tanto a fim de conferir um
atendimento holístico às mulheres em situação de violência e a sua família, mas também
para a produção de pareceres técnicos subsidiadores das tomadas de decisão pelos
magistrados (DE KATO, 2016) –,durante a realização da pesquisa, nos chamou atenção a
atuação periférica das esquipes multidisciplinares nos Juizados (ou Varas), ao menos em
termos de aproveitamento e interferência das atividades realizadas no procedimento
penal. A “ausência” das equipes multidisciplinares inicialmente se evidenciou na fase
quantitativa da pesquisa, ou seja, no momento da análise dos processos criminais e se
confirmou nos grupos focais com as equipes – o que não significa, entretanto, que as
equipes têm pouco trabalho, mas que os seus esforços não se exprimem nos processos.
Neles, inclusive naqueles em que se teve acesso ao inteiro teor, não encontramos
qualquer menção à existência de encontros com a equipe multidisciplinar – seja pela
vítima, seja pelo acusado –, tampouco houve menção ao trabalho da equipe nas
sentenças. A ausência desse dado nos processos analisados na pesquisa torna a
importância do presente artigo ainda maior, pois muitas vezes a dimensão dos trabalhos
das equipes multidisciplinares, bem como o seu potencial transformador, não cabe (nem
é recepcionado) na ritualística do processo penal e nem pode ser captada em números.
Dividiremos o artigo em três momentos distintos, apesar de entrelaçados:
começaremos apresentando uma fotografia das equipes multidisciplinares à época da
pesquisa; num segundo momento, destacaremos falas e reflexões extraídas dos grupos
focais e entrevistas realizados que trazem alguns pontos que consideramos importantes
para, na última etapa do artigo, projetarmos outras saídas – para além da lógica
retributivo-punitiva – aos conflitos domésticos. Esse caminho nos levará a uma reflexão
acerca do protagonismo das equipes multidisciplinares dentro das estruturas já
União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das
causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”. Embora a nomenclatura
dada pelo legislador seja Juizado alguns Tribunais de Justiça alteraram a expressão Juizado para Vara de
Violência Doméstica, assim optamos por utilizar, durante o presente texto, o seguinte formato: Juizado (ou
Vara), para contemplarmos as nomenclaturas utilizadas em todas as cidades pesquisadas.
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6 Todos os dados que iremos apresentar se referem a informações coletadas no ano de 2017 e é possível que
tenham ocorrido mudanças nessas equipes ou no funcionamento dos Juizados (ou Varas) pesquisados. Dito
isso, qualquer mudança que possa ter ocorrido não afeta, de nenhuma forma, as propostas de reflexões do
presente artigo.
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7Para a tomada dessas decisões, acataram-se as sugestões de como melhor conduzir entrevistas de grupo
focal propostas por autores das ciências sociais, inclusive, e especificamente, da Criminologia, tais como
Arksey e Knight (1999), Kvale (1996) e Noaks e Wincup (2004).
8 Para uma explicação detalhada acerca dos critérios de seleção dessas cidades, consultar o Relatório Final da
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cinco assistentes sociais, além de duas estagiárias na área de psicologia. Todas são
concursadas do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) e começaram a atuar nas Varas entre
os anos de 2007 e 2013, quando as mais novas ingressaram. A escolha das pessoas para
atuarem nas Varas do Juizado é realizada de modo aleatória pelo Tribunal de Justiça.
Na cidade de João Pessoa/PB, existe apenas um Juizado de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher e a equipe era formada exclusivamente por mulheres, sendo
quatro psicólogas e duas assistentes sociais. Elas trabalhavam em esquema de
revezamento entre o turno da manhã e da tarde, de modo que em cada turno havia uma
equipe presente, formada por duas psicólogas e uma assistente social. O primeiro
concurso realizado pelo TJPB, para os cargos de psicólogo, pedagogo e assistente social,
aconteceu no ano de 2012 e as primeiras nomeações ocorreram em 2013. O edital do
concurso delimitava a atuação para as áreas da violência doméstica e da infância e
juventude
Na cidade de Maceió/AL também só existe um Juizado de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher e a equipe é formada exclusivamente por mulheres, sendo
duas psicólogas e duas assistentes sociais. A equipe conta ainda com apoio de estagiárias,
duas na área de psicologia e duas na área de serviço social. A escolha para elas fazerem
parte do Juizado foi realizada pelo Tribunal de Justiça de forma aleatória.
Na cidade de São Paulo/SP, embora existam várias Varas e, consequentemente,
muitas equipes, só realizamos a pesquisa no Fórum do Butantã, que tem uma Vara de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher10. A equipe é composta majoritariamente
por mulheres. Eram três assistentes sociais, três psicólogos, sendo dois desses últimos
homens e uma mulher. Todos funcionários concursados do TJSP.
Na cidade de Porto Alegre/RS existem dois Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, mas esses Juizados não possuem uma equipe multidisciplinar
própria, como nas outras capitais pesquisadas, porém contam com duas técnicas do
Tribunal de Justiça que são psicólogas, com bastante experiência. Além das duas
servidoras, a equipe é integrada também por professoras e alunas/os de instituições de
ensino superior atuantes naqueles Juizados. Nessa capital, o serviço multidisciplinar é
centralizado no âmbito da chamada Central de Atendimento Psicossocial e
10A realização de um único grupo focal em cidade da dimensão de São Paulo se deu, dentre outros motivos,
principalmente em virtude dos fatores tempo e acessibilidade. Para maiores detalhes sobre o recorte espacial
na capital paulista, conferir o Relatório Final de pesquisa (CNJ, 2018: 42-43).
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Multidisciplinar (CAPM), localizada no Fórum Central. Com efeito, em Porto Alegre, existia
uma inserção muito grande da academia, diferentemente do que percebemos em outras
cidades, por isso nesse grupo focal tivemos a participação de alunas/os e professoras do
curso de psicologia de quatro instituições de ensino superior do Rio Grande do Sul (PUC,
CESUCA, FADERGS, UFCSPA).
Em Brasília, não existem equipes multidisciplinares para os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, mas um serviço centralizado, o “Serviço de
Atendimento a Famílias em Situação de Violência” (SERAV), para onde os juízes do plano
piloto encaminham os casos quando precisam de uma intervenção ou acompanhamento
psicossocial. O SERAV é responsável por prestar assessoria não apenas aos Juizados de
Violência Doméstica, mas também aos Juizados (ou Varas) Criminais comuns do Tribunal
de Justiça do Distrito Federal (TJDF). No caso específico de violência doméstica contra a
mulher, o SERAV atua em conjunto com o “Centro Judiciário da Mulher em Situação de
Violência Doméstica e Familiar” (CJM), uma coordenadoria composta por onze
funcionários (das áreas de psicologia, serviço social, pedagogia e direito), destinada à
assessoria dos juízes que atuam no âmbito da violência doméstica. O grupo focal de
Brasília foi realizado com a participação de três analistas da equipe do SERAV, sendo duas
psicólogas e uma assistente social e, pela especificidade do atendimento em Brasília,
participaram também dois analistas do CJM, sendo um assistente social e um analista
jurídico.
Durante o artigo optamos por usar sempre o gênero masculino para nos referirmos à
magistratura, já que os Tribunais de Justiça brasileiros 11 são majoritariamente formados
por homens. Mesmo quando a temática é de violência contra as mulheres, encontramos
11 Levantamento feito pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), órgão do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), mostra que dos 17.670 magistrados em atividade no Brasil, 37,3% são mulheres. O número foi
extraído do Módulo de Produtividade Mensal, sistema mantido pelo CNJ e alimentado regularmente por
todos os tribunais. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84432-percentual-de-mulheres-em-
atividade-na-magistratura-brasileira-e-de-37-3. Acesso em: 09 dez. 2020.
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homens e mulheres atuando de forma paritária durante a pesquisa 12. A nossa escolha tem
como objetivo chamar atenção para como o modo de pensar masculino é ainda
preponderante no âmbito do judiciário.
Entrevistamos juízes em todas as cidades pesquisadas, num total de 24
magistrados, e, ao longo dessas entrevistas, a equipe multidisciplinar é indicada, junto às
medidas protetivas, como um dos pontos de maior relevância da lei.
É, eu acho, a equipe psicossocial, o trabalho do psicossocial é fundamental,
acho que toda vara tem que ter uma boa equipe, uma equipe
compromissada, e com essa, acho que, essa visão, né? Dos servidores, do juiz,
do promotor, do defensor, de a gente tem que trabalhar naquela família que
está doente. Às vezes é uma violência esporádica, né? Que você vê um
arrependimento muito grande naquele agressor e tudo mais, que a gente
sabe que aquilo ali foi um caso isolado. Mas há casos que não, que existe um
ciclo de violência tão pesado e que ninguém consegue quebrar, e se você não
cuidar, se você não tratar, e que a mulher não se liberta, e porque ela não
quer se libertar também. Ela tem certos medos, ou ela viu na família dela, no
pai, aquela agressão, então, aquilo, pra ela é normal, então ela não quebra
aquele ciclo, num é? Então a gente tem que tratar essa família. E, se chegou
a nós, passou por todo mundo, passou pela escola, passou por tudo e num foi
resolvido, se chega a vara de violência doméstica nós temos que ter
competência pra ajudar essas famílias, através de equipe psicossocial e
através de encaminhamento pra ele. (Juiz 3)
(CNJ, 2018a: 153)
Aqui na minha vara a equipe faz um trabalho maravilhoso. Nas outras varas
não sei muito, porque as equipes geralmente são um pouco reservadas e a
gente não tem muito acesso a elas. Mas aqui, a da minha vara faz um trabalho
belíssimo e amplo, muito amplo, né, com homens e mulheres e crianças. (Juiz
7)
(CNJ, 2018a: 153)
Nossa, todos os dias, toda hora, as portas são vizinhas. A gente tem uma
abertura muito grande pra construir soluções juntos, pra ouvir as opiniões,
inclusive esse nosso projeto da audiência de acolhimento foi pensado em
conjunto com a equipe. Quando eu cheguei [...] na qualidade de substituto, o
papel da minha equipe era apenas falar com os agressores... óbvio, eles iam
também dar palestras em escolas, mas era falar com os agressores que
haviam sido sentenciados, eu disse: “Meu Deus, é preciso repensar o papel
dessa equipe, são pessoas tão boas que estão apenas se apegando a um
cumprimento de pena”. A gente tem que fazer a diferença na vida dessas
pessoas, prevenindo, evitando a reiteração de condutas, mas, sobretudo,
dando uma proteção maior à vítima porque é, de fato, quem a gente deve
olhar primeiro, a vítima, não que nós tenhamos que esquecer dos agressores,
de forma alguma, primeiro que a competência não é nossa, né, a competência
é da vara de execução, e segundo que, para fazer um trabalho com os
12 “Dos 24 magistrados entrevistados, 12 (doze) eram homens e 12 (doze) eram mulheres. Com relação à raça,
17 (dezessete) magistrados se identificaram como brancos, 4 (quatro) como pardos, 2 (dois) como amarelos
e 1 (um) não respondeu” (CNJ, 2018: 132).
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Muito, a gente vive muito, muito junta. É tanto que elas me passam várias
leituras... eu vou e converso com elas, discuto com elas, depois a gente vê um
caso muito... a gente é muito, muito junta. Por exemplo, chega uma pessoa
aqui que eu fico na dúvida, eu peço pra elas ouvirem, para elas me dizerem
[...]. Eu converso com elas, entendeu? A gente tem uma interação muito
grande. (Juiz 10)
(CNJ, 2018a: 153)
Influencia demais porque elas têm uma, uma visão diferente da minha, sabe?
Porque elas vão e enxergam toda a realidade, todo contexto em que aquela
família, né? E convive, e as motivações dos crimes, né? Os casos, as hipóteses
dos crimes que surgem né? Então, essa equipe nos subsidia com pareceres
excelentes, sabe? E ajuda demais na recuperação da autoestima das
mulheres, quando elas vão lá nas residências [...] nós temos um veículo aqui,
que vive quase que exclusivamente pra essa, essa equipe, entendeu? Pra
visitar as mulheres, tanto que quando chega um veículo nosso, com a nossa
equipe, na casa de uma vítima dessas, ela já se sente prestigiada. (Juiz 13)
(CNJ, 2018a: 154)
13 Para maiores detalhes e outros exemplos, vide o Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018).
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Nessa seção, o foco é apresentar as principais reflexões extraídas dos grupos focais
realizados com as equipes multidisciplinares. O destaque, pois, será a nossa escuta das/os
profissionais, embora, sempre que possível e relevante, cruzaremos seus relatos com
dados obtidos em outros momentos da pesquisa, como durante as entrevistas com
vítimas e magistrados.
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das equipes acredita que essa questão de competência seria mais uma questão jurídica
do que da equipe psicossocial.
Outras equipes reportaram que, de início, sentiam-se utilizadas para “produzir
provas”, na medida em que eram demandadas a estudar casos (de violência doméstica
e/ou de estupro de menores) e emitir opiniões a respeito deles14. Algumas vezes esses
estudos de caso eram solicitados inclusive pelo Ministério Público. Com o tempo, algumas
equipes conseguiram se afastar dessa função mais instrumental e passaram a trabalhar
mais com as atividades de prevenção, de atendimento e de inclusão das pessoas
envolvidas no conflito familiar na rede de assistência.
Aliás, o tempo despendido no processo judicial em si foi uma crítica comum
entre todas as equipes pesquisadas. Três equipes relataram expressamente que a
dificuldade era, de fato, “sair do processo”. Em uma das equipes, extraímos a seguinte
fala, que sintetiza o que foi encontrado em várias outras: “gostaríamos de sair do
processo, mas o tempo é consumido pela realização dos pareceres” (CNJ, 2018a: 233).
Um incômodo frequente relatado pelas equipes, portanto, é o fato de não existir
uma sistematização sobre os casos em que devem atuar e quais as suas atribuições
específicas, pois as atribuições que chegam ao setor tendem a vir por meio de
determinação judicial e, pelo que algumas equipes podem sentir, a deliberação é feita de
forma aleatória, a depender da vontade do magistrado que está atuando naquele
momento.
Mesmo diante desses relatos, vale ressaltar, praticamente todas as equipes
realizam várias atividades que vão muito além dos processos judiciais. Com efeito, não
obstante a falta de uniformidade entre elas (ou, até, dentro delas), e para além de
atenderem a demandas do juiz para fornecer pareceres aos autos, as equipes
desenvolvem inúmeros projetos pensando na prevenção da violência doméstica, bem
como trabalham no atendimento das vítimas e dos agressores15.
14 Nem todos os Juizados (ou Varas) pesquisados são competentes para julgar casos de estupro de crianças
do gênero feminino. Há cidades em que essa competência é do Juizado (ou Vara) de Violência Doméstica e
em outras cidades essa competência é do Juizado (ou Vara) de Proteção da Criança e do Adolescente.
15 Sobre as atribuições e projetos realizados por cada equipe de pesquisa conferir o Relatório Final da pesquisa
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16O problema da linguagem jurídica também foi apontado em estudo realizado pelo IPEA: “Essa capacitação
também envolve o uso adequado da linguagem, porquanto o “juridiquês”, como é chamado a linguagem
jurídica exageradamente rebuscada, vem sendo cada vez mais criticado” (BRASIL, 2015: 96).
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17 Outra posterior pesquisa financiada pelo CNJ e executada pelo IPEA apontou para achados semelhantes: as
mulheres entrevistadas e profissionais da rede de enfrentamento à violência (fora do judiciário) indicaram
muitos problemas com a linguagem jurídica, seja nos instrumentos de comunicação e chamatórios ao
processo (como as intimações), seja quando as vítimas solicitam informações aos atores jurídicos, aqui
entendidos de forma ampla, como oficiais de justiça, estagiários, juízes, promotores, defensores, etc. Em
alguns casos, inclusive, chegou a se apontar que, até mesmo em momentos criados para informar as mulheres
em situação de violência do procedimento processual, constatou-se a utilização de linguajar próprio do
mundo jurídico inacessível às mulheres que participam do ritual (BRASIL, 2019)
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Olha, eu não tive nenhum curso em formação de gênero. Eu diria a você que
eu sou autodidata. (Juiz 1)
(CNJ, 2018a: 133)
Curso, curso, não. Nós temos eventualmente algumas palestras, feitas por
alguns outros doutos juízes ou outras pessoas da área, que a gente até assiste
e acompanha, mas curso especificamente, de violência de gênero, eu nunca
fiz e nunca participei. (Juiz 15)
(CNJ, 2018a: 133)
A maioria dos entrevistados informou que não foi exigido, por parte do tribunal
de origem, nenhuma formação específica para atuar ou continuar atuando em um Juizado
(ou Vara) especializado em violência doméstica contra a mulher 18.
Muito relacionada a essa ausência de capacitação dos magistrados, também
existiram relatos, por parte das equipes, sobre as dificuldades que os profissionais da área
jurídica têm na hora do depoimento da vítima. Existe, por vezes, uma ausência de
compreensão que a vítima está relatando uma situação de violência e, portanto, está
“trabalhando com uma memória traumática” (CNJ, 2018a: 234). E “essa memória não
vem de forma ordenada e controlada, é necessário tempo para a mulher ordenar o que
aconteceu e esse não é o tempo da audiência” (CNJ, 2018a: 234).
As vítimas estão relatando situações de dor, sofrimento e é muito comum que
as audiências ocorram muito tempo depois do fato. Não obstante, existiram narrativas de
várias equipes no sentido de que é comum a interrupção das falas das mulheres nas
audiências, bem como a reprodução da visão cultural, estereotipada da mulher. Com
efeito, em muitos casos, a vítima tem dificuldades no relato, ou, por vezes, se emociona e, em
momentos assim, é frequentemente reproduzida a ideia de que ela é descontrolada,
exagerada e/ou histérica19.
Outra dificuldade apontada por algumas equipes diz respeito à troca do
magistrado à frente do Juizado (ou Vara). Como a dinâmica de trabalho nesses Juizados
(ou Varas) é muito atrelada à forma de demandar do magistrado, a troca de juiz pode
alterar toda a estrutura de trabalho dessas equipes, já que não existe uma política
institucional, nem sequer na escolha dos magistrados que irão atuar nessa área. Segundo
uma das integrantes de uma das equipes pesquisadas: “A justiça é personificada na
18 Para uma reflexão mais aprofundada extraída das entrevistas com os próprios magistrados, vide Mello,
Rosenblatt e Medeiros (2018).
19 Achados semelhantes são apontados nos relatos de campo de Medeiros (2015), quando versa sobre o
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pessoa do juiz e não tem uma estrutura institucional. Então é muito comum torcermos que
venha um juiz tal que tem mais perfil para violência doméstica” (CNJ, 2018a: 234).
Nesse mesmo sentido, algumas equipes criticaram a existência de mutirões,
ocasiões em que chegam vários juízes, em sua maioria provindos de varas criminais
comuns e que não têm conhecimento das especificidades de uma lesão corporal ou de
uma ameaça, por exemplo, praticadas no âmbito da violência doméstica.
A falta de capacitação em gênero e/ou em violência doméstica ajuda a explicar
aquela dependência dos magistrados nas equipes multidisciplinares para a identificação
das situações em que se deve aplicar a Lei Maria da Penha (que leva à função de “triador”
discutida acima). Na verdade, essa ausência de formação pode acarretar muitos prejuízos
na individualização dos casos que chegam aos Juizados (ou Varas) de violência doméstica,
bem como no tratamento dispensado às partes, principalmente à vítima.
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métodos20 realizada na pesquisa nos permitiu enxergar que essa falta de formação para
realizar atividades especializadas começa na própria delegacia (“das mulheres”) e segue
durante todo o processo penal. Realmente, relatos nesse sentido surgiram em todas as
etapas da pesquisa, trazidos não só pela vítima e pelas equipes multidisciplinares, mas
também pela própria magistratura (vide MELLO; ROSENBLATT; MEDEIROS, 2018).
20 Entendemos que a triangulação dos métodos e consequente combinação de vários métodos de pesquisa
(inclusive com a articulação de técnicas de análise quantitativa e qualitativa) permitiu que um método
ajudasse a controlar o outro; em outras palavras, a triangulação de métodos nos ajuda na monitoração dos
biases (NOAKS; WINCUP, 2006: 125; GOLDENBERG, 2004: 63-67).
21 A respeito das características da vitimização secundária, Rosenblatt (2015b: 87) afirma: “a vítima também
sofre ao longo do processo penal, dentre outras razões, porque: é muitas vezes destratada em Delegacias de
Polícia; tem sua participação no processo limitada às funções de informante; segue aflita por desconhecer
sobre o andamento do “seu” caso, e sobre os seus direitos enquanto vítima; raramente é atendida nas suas
expectativas de reparação de danos; dentre outras situações de desprezo vividas pela vítima que, vale
lembrar, também é protagonista na ocorrência criminosa”.
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Chegamos aqui com a ideia que vamos fazer um trabalho com a violência
doméstica que foi sofrida e de repente nos deparamos que as mulheres
depois da audiência estão tão sofridas pela violência que ela passou na
audiência, pois as mulheres são ouvidas inadequadamente e isso é muito
frustrante.
A demora no processo criminal também foi apontada, pela maioria das equipes,
como uma forma de revitimização, pois a vítima precisa retomar uma situação que ela
gostaria de esquecer. Nesse sentido, um membro de equipe disciplinar nos alertou para
a necessidade de se reconhecer a “demora do processo e a dificuldade dessa vítima, que
já sofreu tantas violências, em ter que falar de uma violência que sofreu três ou quatro
anos antes”. De fato, existem situações em que a demora da resposta é tanta que a vítima
já conseguiu resolver seu problema de outra forma e o processo se torna um fardo (CNJ,
2018a: 237).
Dessa forma, todas essas percepções das equipes multidisciplinares estão de
acordo com o que escutamos das próprias vítimas entrevistadas 22.
22Para uma abordagem mais detalhada sobre os processos de revitimização vividos pelas vítimas, sob a
perspectiva delas mesmas, vide Rosenblatt, Mello e Medeiros (2018).
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Na maioria dos grupos focais, as equipes apontaram que, para ter acesso à rede,
a mulher precisa passar pela delegacia, pois “a delegacia continua sendo a porta de acesso
aos serviços de apoio à mulher” (CNJ, 2018a: 236). Com efeito, embora todas as equipes
pesquisadas reconheçam que a violência doméstica acontece em todos os níveis sociais,
elas afirmam que são as mulheres com baixa renda as que mais procuram a delegacia,
pois geralmente, para elas, “essa é a única porta oferecida [pelo Estado] como forma de
resolução dos seus conflitos domésticos” (CNJ, 2018a: 236). Nesse mesmo sentido, uma
das equipes fez a seguinte afirmação: “A maioria das mulheres que chega à equipe
multidisciplinar tem raça e classe determinadas”, embora essa equipe também tenha
destacado que o problema da violência doméstica perpassa por todas as classes sociais e
reforçado que só pode falar das mulheres que chegam ao setor multidisciplinar e não ao
Juizado (ou Vara) (CNJ, 2018a: 236).
Esse diagnóstico por parte das equipes sobre o perfil socioeconômico das
mulheres vítimas de violência doméstica que buscam o sistema de justiça criminal e
trafegam nos Juizados (ou Varas) pôde ser confirmado na etapa quantitativa da pesquisa
(ROSENBLATT; MELLO; MEDEIROS, 2018). Realmente, o acesso à rede de assistência, ou
simplesmente, a uma separação do companheiro, é um problema das mulheres de baixa
renda, pois na maioria das cidades pesquisadas continua sendo mais fácil acessar as
delegacias do que as defensorias públicas. As mulheres que se encontram em situação de
violência, quando procuram algum auxílio, é porque necessitam urgentemente de algum
meio que possa fazer cessá-la de imediato. Aquelas mais independentes e que possuem
recursos financeiros, têm a possibilidade de sair de casa e procurar ajuda em outras
instâncias, que não a penal, ao lado de psicólogos, grupos de apoio, hospitais particulares
ou, até mesmo, o auxílio de outros familiares (MELLO, 2015: 232). “Para as mulheres
pertencentes às parcelas mais carentes da sociedade e dependentes financeiramente do
companheiro, entretanto, o Estado só disponibiliza o aparato policial, totalmente
despreparado para acudi-las” (MEDEIROS, 2015: 56).
No que se refere especificamente às demandas apresentadas pelas vítimas
durante os atendimentos, as equipes destacaram a vontade da mulher de interromper o
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processo penal. Na opinião de várias equipes, são muitas as vítimas que não desejam o
processo penal pelo fato de o autor da violência fazer parte de sua família, e, na maioria
dos casos, ser pai dos seus filhos. Algumas equipes compartilharam como corriqueira a
seguinte fala por parte das vítimas atendidas: “Eu não quero prejudicar ele, pois ele é um
bom pai” (CNJ, 2018a: 238). O registro da ocorrência na delegacia, defendem essas
equipes, está mais relacionado à busca da mulher por “proteção” e à expectativa de impor
“limites” ao agressor – e as medidas protetivas comumente cumprem esse papel. Quer
dizer, segundo testemunho das equipes, para um grupo marcante de vítimas atendidas,
as medidas protetivas são sentidas como suficientes e satisfatórias às suas necessidades.
Na verdade, todas as equipes destacaram a importância da medida protetiva
como principal instrumento introduzido pela lei. Uma das equipes afirmou que a medida
protetiva “é um instrumento de responsabilização para o agressor e um empoderamento
à vítima” (CNJ, 2018a: 239). Para outra equipe, a medida protetiva poderia resolver a
maioria dos conflitos sem a necessidade sequer do processo criminal, pois é comum que
a medida protetiva já tenha interrompido o ciclo da violência, “então esse processo chega
e coloca todos, e não só o autor da violência, em um processo de culpabilização” (CNJ,
2018a: 238).
A “paz” também foi uma resposta recorrente das equipes quando perguntadas
sobre o que as vítimas desejam quando procuram a delegacia e, por via de consequência,
chegam ao Juizado (ou Vara) de Violência Doméstica. Nas palavras de um integrante: “elas
querem paz” (CNJ, 2018a: 238). Essa busca por paz, explicou-se nos grupos focais,
desemboca numa expectativa por parte da vítima de que haja mudança no
comportamento do autor da violência, o que não necessariamente implica na necessidade
de sua prisão. Nesse sentido, segundo o integrante de uma das equipes, “a prisão é uma
exceção nos meus atendimentos, a maioria das mulheres deseja a paz”. O que foi
corroborado pelos seus colegas (CNJ, 2018a: 238).
De fato, quando a temática foi a pena privativa de liberdade, as equipes
afirmaram que as vítimas, em sua maioria, não desejam a prisão (provisória ou definitiva)
do agressor. Para a maioria das equipes, uma grande parte das vítimas atribui
principalmente ao álcool e às drogas ilícitas o desencadeamento dos conflitos domésticos
e, nessas hipóteses, quando não estão buscando medidas protetivas, a principal demanda
é pelo tratamento do autor da violência para que o mesmo deixe de usar essas
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substâncias, mas não pela sua punição. Nessa mesma linha, outra equipe compartilhou o
entendimento de que a prisão não deve ser aplicada na maioria das situações que chegam
ao seu conhecimento, pois pode piorar a situação da vítima. Um dos integrantes lembrou:
“um dia ele vai ser solto”. Por compreender que a passagem do agressor pelo sistema
prisional pode gerar muitas consequências à vítima e à sua família, essa mesma equipe
entende que outras modalidades de pena podem responsabilizar o homem e, ao mesmo
tempo, ser menos traumática para a família (CNJ, 2018a: 238).
A ideia de usar a prisão como ameaça surgiu em alguns momentos. Para uma
parte dos integrantes das equipes, a pena privativa de liberdade é necessária, “pois
estamos vendo o aumento dos casos de feminicídio”, ou ainda, “a ‘ameaça’ da prisão
ainda é muito importante para interromper o ciclo da violência e também para a
‘mudança’ de comportamento do homem agressor” (CNJ, 2018a: 238). Mesmo para
esses, são poucos os casos em que as vítimas, elas mesmas, demandam a pena privativa
de liberdade.
As impressões das equipes sobre o que buscam as vítimas dialogam diretamente
com as respostas que recebemos das próprias vítimas nas entrevistas que realizamos com
elas (ROSENBLATT; MELLO; SALAZAR, 2018).
A maioria das equipes pesquisadas trabalha com grupos reflexivos para homens,
e aquelas que ainda não trabalham estavam, ao tempo da pesquisa, elaborando projetos
para começar a desenvolver essa atividade. As equipes, de uma maneira geral, entendem
a importância desse espaço de fala para os homens. Segundo elas, nos grupos reflexivos,
ocorrem vários desabafos por parte deles “no sentido de se sentirem injustiçados pelas
medidas aplicadas” e/ou por não terem “espaço de fala, nem na delegacia, nem no
Judiciário” (CNJ, 2018a: 240). Segundo uma das equipes, “os homens sentem muita
necessidade de falar, pois eles constantemente se vitimizam afirmando que não existe
lugar para eles no processo”.
Os relatos das equipes sobre as falas dos homens foram muito parecidos, em
todas as cidades, de norte a sul: “não existe espaço para nossa fala”; “somos vítimas de
uma lei”; “precisamos agora da lei João Maria”; “cadê a Lei Mário da Penha?”; “agora as
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mulheres querem nos ver de saia”; entre tantas outras falas, que demonstram a falta de
percepção da violência produzida por eles. De fato, um sentimento comum entre as
equipes é de que grande parte dos homens ainda não consegue entender que os seus
atos são criminosos.
Ocorre que muitos dos homens que frequentam os grupos reflexivos,
independentemente da classe social a que pertençam, nunca estiveram em uma delegacia
antes. Muitas vezes, eles ainda convivem com a vítima depois de vários episódios de
agressão. Se entendem “trabalhadores honestos”, “pais de família”, “cumpridores dos
seus deveres”. Quase todos são primários para o sistema penal, pois nunca foram
condenados com trânsito em julgado por um crime ou contravenção, mesmo que não
tenha sido a primeira vez que a vítima foi agredida moral ou fisicamente por eles. As
violências narradas nos Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica, para além de
condutas típicas, fazem parte do dia a dia das pessoas e podem até gerar certa
familiaridade entre os agentes do Sistema de Justiça Criminal, independentemente do
gênero e da classe social. O fato de encontrarmos no réu um “pai de família” ou “um
trabalhador” torna difícil encontrar nesse homem a condição de criminoso e,
consequentemente, torna ilegítima, quase que automaticamente, a condição da vítima
(VALENÇA; MELLO, 2020: 1243).
Para tornar o lugar de vítima legítimo, parece necessário que, durante o processo,
o homem passe da condição de “pai de família”, de “trabalhador” à de “bandido”. Para
tanto, o Ministério Público e o Judiciário demandam que a mulher colabore no processo
de desumanização do seu companheiro ou ex-companheiro, que na maioria dos casos é
também o pai dos seus filhos. Quando esse processo não acontece, parece que o homem
passa a ocupar o lugar de vítima e a mulher passa a ser a algoz, que levou “o pai de seus
filhos” para a delegacia. Todas essas particularidades demandam uma atenção especial
nos casos de violência doméstica para minorar os processos de revitimização da mulher.
Em pesquisa sobre as audiências de custódia realizada na cidade do Recife,
encontrou-se a realização de “sermões” por parte da magistratura quando os juízes se
deparavam com casos de violência doméstica:
[...] se acabou, por que o senhor ainda está nessa? É a segunda vez que ela foi
na delegacia. Eu tô pensando em prender o senhor, então pare. Eu já prendi
um rico, de posse, com advogado... Vai virar bandido a pulso, é isso que o
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senhor quer? Então pare. Se tiver chance, vai ficar com a tornozeleira
eletrônica... E acabou, acabou. Deixa ela em paz. Não tem mais isso de porque
ela é mulher, e você, homem. Ninguém manda em ninguém. Tem isso mais
não. Ali onde você dormiu são as flores, cinco estrelas (VALENÇA; MELLO,
2020: 1266).
O “Vai virar bandido a pulso” sugere que o problema não é apenas de auto
percepção, mas também de como o Sistema de Justiça Criminal percebe o réu da violência
doméstica. Segundo as pesquisadoras:
A agressão, a ameaça, a “surra” são condenáveis, sem dúvidas, mas ainda não
constituem “coisa de bandido”. Suspeitamos que um “traficante” reúne
socialmente estereótipos muito mais negativos que um “agressor de mulher”,
não raramente visto como alguém que escorregou, mas que não é
propriamente um criminoso (VALENÇA; MELLO, 2020: 1266).
Da mesma fala podemos extrair outro dado: ainda que os grupos reflexivos
tentem quebrar a lógica de uma resposta violenta nos casos que envolvem violência
doméstica, existe resistência por parte de algumas equipes de afastar a pena, inclusive a
privativa de liberdade, nos casos levados aos Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica.
Isso, na prática, significa que os grupos reflexivos ocorrem em paralelo ao processo e/ou
são adicionados à punição. No máximo, a consequência da participação desses homens
no grupo pode acarretar, em caso de condenação, que esse homem tenha uma atenuação
na pena.
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23 De fato, além da pesquisa coordenada pelas autoras do presente artigo, foi realizada outra no mesmo
período, de mapeamento de práticas de justiça restaurativa no Judiciário nacional, essa coordenada pela
professora Vera Regina Pereira de Andrade (CNJ, 2018b).
24 Sobre esse interesse corrente e (talvez) crescente do CNJ na Justiça Restaurativa, vide as Considerações
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26 Para uma explicação acerca desses possíveis benefícios, inclusive com referência a estudos que chegaram
a tais resultados, vide Rosenblatt (2015a). Para uma lista tentativa dos possíveis benefícios e também riscos
do uso de práticas de Justiça Restaurativa no específico caso da violência doméstica, vide CNJ (2018a).
27 As reflexões completas a respeito do tema podem ser encontradas no Relatório Final da pesquisa (CNJ,
2018a). Para uma versão resumida sobre as falas e impressões de juízes e vítimas a respeito, vide,
respectivamente, Mello, Rosenblatt e Medeiros (2018) e Rosenblatt, Mello e Medeiros (2018).
28 Acerca dos limites entre essas “justiças”, vide Achutti (2009).
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caminhos que essa possível “imposição” pode tomar, um outro integrante concluiu ser a
Justiça Restaurativa “mais um modismo” (CNJ, 2018a: 243).
6. Considerações finais
29 Isso é, do ponto de vista dos próprios magistrados, das vítimas e das equipes multidisciplinares (CNJ, 2018a;
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30As versões completa e resumida do referido planejamento podem ser encontradas no sítio eletrônico do
CNJ, em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/justica-restaurativa/planejamento-da-politica-publica-
nacional-de-justica-restaurativa/. Acesso em: 16 dez. 2020.
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31 Esse dado não apareceu apenas na pesquisa coordenada pelas autoras do presente artigo, mas também
naquela outra, de mapeamento do movimento restaurativo nacional no âmbito do Poder Judiciário (CNJ,
2018b).
32 As transcrições aspeadas foram retiradas da versão completa do referido planejamento, que pode ser
encontrado no endereço eletrônico informado na nota de rodapé n. 30, mas o documento não possui número
de páginas, daí por que a falta de menção a elas.
33 No I Seminário sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa do CNJ, realizado em Brasília, nos dias 17 e
18 de junho de 2019.
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Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-
89662020000201238&lng=en&nrm=iso>. access on 12 Dec. 2020. Epub June 08, 2020.
http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2020/50471.
Sobre as autoras
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Ellen Rodrigues¹
¹ Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
ellen.rodriguesjf@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6952-7765.
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Resumo
O presente trabalho visa refletir sobre o sistema da Justiça Juvenil no Brasil na ocasião
dos 30 anos de aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/1990). Não
se limitando a análises meramente tecnicistas, o estudo busca destacar aspectos de
como a realidade atual foi construída ao longo dos processos históricos e político-
criminais, do período colonial à contemporaneidade. Ademais, o presente estudo
apresenta possibilidade de aplicação da Justiça Restaurativa no âmbito da Justiça
Juvenil, mesmo diante do cenário de expansão punitiva que marca a presente quadra
histórica. Do ponto de vista teórico, o recorte aqui estabelecido privilegia a pesquisa
bibliográfica, com destaque para autores como Zehr 1, Dünkel; Horsfield & Păroşanu 2,
Achutti3, entre outros. Não obstante, o trabalho conta com abordagem empírica através
da qual são relatadas as ações restaurativas realizadas no âmbito do programa de
extensão acadêmica NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais da
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora), através do projeto Além
da Culpa: Justiça Restaurativa para adolescentes, desenvolvido em parceria com a
defensoria pública local. Tal proposta metodológica propõe destacar destaca como a
Justiça Restaurativa vem sendo desenvolvida na prática, seus desafios, perspectivas e
compromisso com práticas libertárias.
Palavras-chave: 30 anos do ECA; Evolução histórica; Política-criminal, Justiça
Restaurativa.
Abstract
This paper aims to reflect on Brazil's Youth Justice system on the occasion of the 30th
anniversary of the Statute for Children and Adolescents' approval (Federal Law No.
8069/1990). Not limited to purely technical analysis, the study seeks to highlight aspects
of how the current reality was constructed throughout the political-criminal and
historical processes, from the colonial period to contemporary times. Besides, this study
presents the possibility of applying Restorative Justice within the scope of Youth Justice,
even in the face of the punitive expansion scenario that indicates the present historical
period. From a theoretical perspective, the focus established in this paper favors
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1. Introdução
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Sem pretender esgotar o tema, o estudo visa contribuir para reflexões críticas
acerca da lógica punitiva que, infelizmente, ainda orienta as práticas do sistema de
justiça criminal pátrio, acenando para promissores caminhos baseados na empatia e nas
possibilidades de restauração das relações interindividuais por meio da JR no âmbito da
Justiça Juvenil, além de contribuir para a prevenção de novas infrações.
13 RODRIGUES, 2017.
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políticas criminais, uma vez que o primeiro Código Penal do Império, datado de 1830, já se lhes atribuía
responsabilidade por seus atos a partir dos quatorze anos, provado o discernimento. Tal discernimento,
contudo, não era objeto de comprovação ou materialidade. O que se viu na prática foi o recolhimento de
crianças e adolescentes pobres e abandonados às mesmas prisões destinadas aos adultos, daí que os jovens
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sociedade e melhoria das condições da nação, tudo com amplo respaldo nas teorias
higienistas emergentes à época.
Nessa conjuntura, despontam outros atores sociais para corroborar o discurso
higienista em torno da infância e juventude. Além da Igreja, sobrevinham médicos e
advogados, que, dotados de saberes específicos e desconhecidos pela maioria da
população, orquestravam os discursos que serviriam de base para as ações do Estado
em relação aos menores de idade. O discurso médico-higienista em torno da infância e
adolescência no Brasil do século XIX e início do século XX não foi privilégio de uma
disciplina em particular, mas resultado de formações teóricas do direito, da medicina, da
criminologia e da pedagogia, todas atreladas aos agentes de poder estatal. Segundo
Antunes, Barbosa e Pereira 18, as condições de emergência histórica desses discursos
apontam para uma modalidade de controle social - calcado na noção de infância
abandonada, perigosa e em perigo - que indicava o caminho para as ações que deveriam
ser tomadas em relação às famílias abastadas para evitar a degeneração e delinquência.
Assim, enquanto as classes privilegiadas eram orientadas a temer a delinquência,
possibilitava-se, a um só tempo, a preservação das crianças e adolescentes dessas
classes e a legitimação da exclusão social dos meninos e meninas das classes pobres, o
que garantiria a edificação de um modelo político-criminal seletivo e excludente.
Apoiados na ideia de anormalidade 19, médicos e juristas recorreram a inventivas
classificações para nomear aquilo que defendiam como sendo resultado da
irregularidade do tratamento familiar conferido às crianças e adolescentes, como se a
essas famílias tivessem sido dadas condições de adaptação às concepções de
normalidade estabelecidas conforme padrões burgueses. A partir da constatação dessa
dita inadaptação das famílias pobres, a exemplo do processo havido na Europa no século
anterior20 21, operou-se no Brasil uma cisão legitimada entre as ações destinadas às
famílias abastadas e às famílias pobres. O resultado desse processo, ao final dos anos
1920, foi a construção jurídica de uma categoria de pessoas tidas como anormais que
inevitavelmente estariam associadas à criminalidade: o menor.
punidos por tal diploma penal ficaram conhecidos como destinatários da etapa penal indiferenciada. Tal
indiferenciação se manteve até a promulgação do Código Penal em 1940, avançando até entrada em vigor
do Código Penal Republicano, de 1890 (RODRIGUES, 2017).
18 ANTUNES, E. H.; BARBOSA, L.H.S.; PEREIRA, L. M. F., 2002, p. 132.
19 FOUCAULT, 2001.
20 DONZELOT, 1986.
21 FOUCAULT, 2001.
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edição do ECA, diploma elogiado por toda a comunidade internacional por seu viés
garantista e humanista, mas que muito longe demonstrava estar da realidade brasileira.
Quando de sua edição, em 1990, a proposta do ECA era romper com a noção de
irregularidade e garantir a todos os menores de dezoito anos possibilidades isonômicas
de exercício da sua cidadania. A elaboração do Estatuto decorreu do imperativo de
pormenorizar o sistema especial de proteção dos direitos fundamentais de crianças e
adolescentes, outorgando a estes o status de cidadãos especiais, de acordo com a
Constituição de 1988, em razão de peculiaridades da personalidade infanto-juvenil.
Além de regulamentar questões relacionadas aos direitos das crianças e
adolescentes e às definições das questões familiares (família substituta, guarda, adoção,
tutela, entre outros temas importantes no âmbito cível), o ECA disciplina a política social
de atendimento a crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade social e
familiar, fixando, para tanto, medidas de proteção. No caso de práticas de infrações
penais, o ECA fixa medidas socioeducativas que podem ser cumuladas com as medidas
de proteção.
Ademais, o Estatuto regulamenta o funcionamento dos Conselhos Tutelares 23,
dispõe sobre o acesso de crianças e adolescentes à justiça, bem como define o
procedimento judicial a ser adotado nas varas especializadas de infância e juventude
(aspectos processuais; procedimentos para apreensões em flagrante e internações
provisórias; apresentação preliminar perante o Ministério Público; regras para
oferecimento de representação ou remissão por parte deste mesmo órgão;
disciplinamento das audiências de apresentação, de continuação, oitivas das partes e
testemunhas, debates orais e sentença e, finalmente, dispõe sobre a interposição de
recursos, a definição de crimes em espécie e as infrações administrativas.
23 Art. 131. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela
sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei.
Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar: I - atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas
nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII; II - atender e aconselhar os pais ou
responsável, aplicando as medidas previstas no art. 129, I a VII [...] (BRASIL, 1990).
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24Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal (BRASIL,
1990).
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Art. 128. A medida aplicada por força da remissão poderá ser revista
judicialmente, a qualquer tempo, mediante pedido expresso do adolescente
ou de seu representante legal, ou do Ministério Público (BRASIL 1990).
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Básica, elaborado pelo Ministério da Educação, segundo o qual, no ano de 2013, dos
mais de 23.500 adolescentes recolhidos nas unidades socioeducativas, apenas 12.219
estavam matriculados em alguma instituição escolar. Apesar de esse número significar
um avanço em relação aos anos de 2010 e 2011, é inegável o déficit educativo existente
no sistema socioeducativo nacional. Ademais, de acordo com os levantamentos do
SINASE, as instituições que contam com atendimento escolar, este se apresenta de
forma extremamente precária28.
Não bastasse o incremento punitivo em relação às sanções restritivas e privativas
de liberdade, as sanções em meio aberto também contaram com sensíveis aumentos. A
elevação da incidência das medidas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de
serviços à comunidade) foi amplamente destacada pelos levantamentos do SINASE
relativos aos anos de 2011 e 2012. De acordo com o Censo SUAS, no ano de 2009 havia
40.657 adolescentes em cumprimento das medidas de prestação de serviços e liberdade
assistida. Em 2010, esse número passou para 67.045. Já no ano de 2011, foi verificado
um total de 88.022 adolescentes nessas modalidades. No ano de 2012, foram
registrados 89.718 adolescentes submetidos às medidas socioeducativas em meio
aberto (SDH, 2015, 2013, 2012). Segundo a pesquisa nacional de medidas
socioeducativas em meio aberto, realizada entre fevereiro e março de 2018 pelo
Ministério do Desenvolvimento Social 29, em 2017 o Brasil contava com 117.207
adolescentes em cumprimento de medidas de liberdade assistida e prestação de
serviços à comunidade, o que representa um aumento significativo em relação aos anos
anteriores30.
Considerando o recorte por raça/etnia, os déficits educacionais, os elevados índices
das sanções restritivas e privativas de liberdade e o aumento das sanções em meio livre,
é possível observar que, ao contrário das representações sociais quanto a um
tratamento leniente do Estado brasileiro para com os adolescentes, o que se desvela, na
prática, é uma realidade extremamente dura, que, assim como no sistema prisional de
SINASE foi publicado em 2018, sendo referente aos dados de 2016. A pesquisa mais recente divulgada pelos
órgãos oficiais é essa publicada pelo Ministério do Desenvolvimento Social também em 2018, relativa aos
dados de 2017. Tal atraso no repasse de informações dificulta um acompanhamento mais efetivo dos
dados, sendo esta, portanto, uma das principais críticas dos pesquisadores que se dedicam ao estudo do
tema.
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34 Idem.
35 Mais informações em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/Monitoramento-Semanal-
Covid-19-Info-12.08.20.pdf. Acesso em: 13 ago. 2020.
36 CALDEIRA, 1991.
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Há algumas décadas, com destaque para os trabalhos críticos publicados nos anos 1970,
a pesquisa criminológica vem demonstrando que o modelo punitivo prisional
empregado na maioria dos países não se apresenta como apto ao enfrentamento,
redução e/ou prevenção da conflitividade social decorrente do crime e da violência. É
nesse sentido que se faz mister a busca por novos mecanismos que possam contribuir
efetiva e afirmativamente para o aprimoramento da resposta estatal e comunitária ao
acontecimento delitivo, com destaque para os programas de JR.
No âmbito infanto-juvenil esse debate remonta às grandes reformas levadas a
efeito nos anos 1980 e 1990 em diversos países, com base na normativa internacional 37
sobre o tema fixada no âmbito da ONU, com destaque para a Resolução 40/33, de 1985
(que dispõe sobre as chamadas Regras de Beijing), que preconizam a observância por
parte dos estados, mesmo em caso de infrações penais, do pleno desenvolvimento da
criança, do adolescente e do jovem, visto que se encontram em uma etapa inicial do
desenvolvimento humano e necessitam de condições dignas para o seu pleno
desenvolvimento físico, mental e social. No mesmo sentido, as Regras Mínimas das
Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, de 1990, estipulam
que, em caso de privação de liberdade em estabelecimento prisional (medida a ser
adotada somente em último caso – ultima ratio-), deve ser garantida aos menores de
idade e jovens adultos a devida proteção, devendo tal privação e/ou restrição de
liberdade ser breve.
Entrementes, cabe dizer, portanto, que o pioneirismo dos sistemas de Justiça
Juvenil na aplicação dos programas de JR não é dado, antes faz parte de um movimento
de abrangência internacional e intercontinental, capitaneado pela ONU a partir do final
dos anos 1970, no sentido de demonstrar o desacerto dos modelos marcadamente
punitivos vigentes até àquela conjuntura sob o signo da doutrina tutelar ou de situação
irregular.
37 Dentre os quais, se destacam: Convenção dos Direitos da Criança, 1989; Regras Mínimas das Nações
Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing - Resolução 40/33, de 1985, da ONU);
Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad - Resolução
45/11, de 1990, da ONU).
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38 GARLAND, 2008.
39 PALLAMOLLA, 2009, p. 53.
40 ACHUTTI, 2013, p.159.
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Para Zehr41o modelo restaurativo deve ser construído pelas comunidades, pois
está atrelado à cultura e às características de cada grupo social, devendo ser
estabelecido através da experimentação e do diálogo tendente a repensar as
necessidades e desdobramentos gerados a partir da ocorrência de determinado fato
delitivo.
Já para Dünkel, Horsfield e Păroşanu 42, os valores da JR não são inteiramente
novos e podem ser traçados desde as culturas indígenas e tradicionais presentes no
mundo todo, pois muitas de suas práticas são inspiradas nos métodos de resolução de
conflitos das tribos indígenas.
Para efeitos deste estudo, concebe-se que a JR se insurge como um movimento
social que reage de encontro ao sistema de controle social institucionalizado 43, que visa
manter a ordem através de mecanismos de poder, centralizando a pessoa do infrator
como inimigo, ou, desviante, buscando respostas penais que atendam expectativas de
prevenção da sociedade, enquadrando-se em um modelo clássico de punição estatal
(punitivista e opressor). Afastando-se dessa concepção, as práticas restaurativas
repercutem um modelo integrador de justiça cujo foco é a edificação de um sistema de
justiça criminal embasado no princípio da dignidade humana44.
O fortalecimento da JR no âmbito infanto-juvenil é fruto de intensos debates
acerca dos limites entre a responsabilização penal e os direitos e garantias desse
contingente, que se caracteriza como um grupo de indivíduos que estão em processo de
desenvolvimento, e, por isso, deve ter um tratamento diferenciado por parte do Estado
e da sociedade como um todo.
As intervenções restaurativas no âmbito da Justiça Juvenil primam pela
reabilitação e reintegração dos menores de 18 anos à comunidade, para tanto contam
com a participação da vítima, do adolescente ofensor e seus responsáveis, dos
servidores de proteção à criança e ao adolescente, técnicos judiciários, representantes
da escola e da comunidade, bem como outras pessoas que, de algum modo, possam ter
sido afetadas pelo conflito. Por ser orientada pelo respeito mútuo e ter por foco o
fortalecimento das relações, o entendimento majoritário é o de que a JR pode ser
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mais facilmente do que no modelo tradicional, no entanto, não são tais aspectos pré-
requisitos e tampouco resultados necessários. Em relação à redução da reincidência,
pesquisas vêm demonstrando bons resultados em relação a grupos participantes de
programas de JR, não obstante o autor afirma que tal fato por si só não deve ser motivo
para promover programas restaurativos, pois, para ele,
a redução da reincidência é um subproduto, mas a JR é praticada, em
primeiro lugar, pelo fato de ser a coisa certa a se fazer. Aqueles que
sofreram o dano devem ser capazes de identificar suas necessidades e tê-las
apontadas, aqueles que causaram dano, devem ser estimulados a assumir a
responsabilidade e aqueles que foram afetados por um delito devem ser
envolvidos no processo50.
50 Idem, p. 22.
51 Idem. p. 20.
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destacar que o resultado final será considerado restaurativo se for fruto de livre
deliberação entre as partes52.
Ressalta-se que é nesse sentido que foi publicada a Resolução nº. 2002/2012 53,
das Nações Unidas, que fixou os princípios básicos a serem seguidos na utilização das
práticas restaurativas e serviu de base para a implantação da Justiça Restaurativa em
vários países, entre eles o Brasil.
Nos programas de JR que vêm sendo implementados no Brasil, sobretudo no
âmbito da Infância e Juventude, é possível perceber a prevalência das conferências
restaurativas, conhecidas, entre nós, como círculos restaurativos, que consistem em
encontros realizados a partir da metodologia circular, conduzidos por facilitadores
previamente capacitados que viabilizam a participação da vítima, da pessoa identificada
como autor/ofensor, seus apoiadores, membros da comunidade e demais pessoas
afetadas pelo conflito. Para a realização dos denominados círculos restaurativos, é
necessária a construção de uma rede de apoio que envolve tanto membros da
sociedade civil, quanto operadores do sistema de justiça criminal. Pois, para que as
propostas restaurativas construídas coletivamente nos círculos produzam efeitos nos
respectivos processos, é necessário o apoio dos Tribunais de Justiça, do Ministério
Público e demais atores envolvidos na demanda.
No âmbito nacional, os projetos pioneiros de JR no âmbito da Justiça Juvenil
foram realizados através do Ministério da Justiça em parceria com o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com destaque para o programa
Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro 54 instituído em 2005
e que se tornou referência para os estudos e práticas inspiradas pelo novo modelo de
justiça estabelecido a partir da JR. A partir desse projeto, foi possível a obtenção de
apoio financeiro para a execução de três projetos pilotos, quais sejam: o programa
Justiça Para o Século 21, desenvolvido na cidade de Porto Alegre/RS55; o programa
Justiça e Educação: parceria para a cidadania, desenvolvido na cidade de São Caetano do
2020.
55 Informações disponíveis em: www.justica21.org.br. Acesso em: 15 jun. 2019.
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56 Mais informações em: Justiça e educação: parceria para a cidadania. Um projeto de justiça restaurativa da
Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul envolvendo a rede escolar da comarca.
Disponível em:
http://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/XXICongressoNacional_ABMP/1
%20Experiencia%20%20Eduardo%20Rezende%20Melo%2008.05%20-%20G7.pdf. Acesso em: 15 jun. 2019.
57Informações disponíveis em: http://www.tjdft.jus.br/institucional/2a-vice-
presidencia/nupecon/justicarestaurativa/o-que-e-a-justica-restaurativa. Acesso em: 15 jun. 2019.
58 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pilotando a Justiça Restaurativa. O papel do poder judiciário. Sumário
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60 Disponível em:
http://www.sejudh.mt.gov.br/documents/412021/9910142/Levantamento+SINASE+_2016Final.pdf/4fd4bc
d0-7966-063b-05f5-38e14cf39a41. Acesso em: out. 2019.
61 No Brasil, as práticas restaurativas, apesar de implementadas pelo Poder Judiciário com base em
resoluções emitidas pelo Conselho Nacional de Justiça, não encontram previsão legal, salvo disposição
expressa na Lei do SINASE. A possibilidade de positivação da JR entre vem sendo discutida, no entanto,
desde 2006, por meio do Projeto de Lei n. 7.006/2006, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados,
em apenso ao Projeto de Novo Código de Processo Penal. Tal projeto de lei visa a alteração do Código Penal,
do Código de Processo Penal e da Lei n. 9.099/95, para instituir e regular o uso facultativo e complementar
da justiça restaurativa no sistema de justiça criminal.
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62 O processo de implementação da JR no Brasil foi iniciado nos anos 2000, culminando na elaboração de um
documento intitulado “Carta de Araçatuaba”, cuja Redação foi elaborada pelos integrantes do I SIMPÓSIO
BRASILEIRO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA, realizado na cidade de Araçatuba, estado de São Paulo - Brasil, nos
dias 28, 29 e 30 de abril de 2005. Tal documento foi posteriormente ratificado na CONFERÊNCIA
INTERNACIONAL DE ACESSO À JUSTIÇA, que ocorreu em Brasília em junho de 2005. A “Carta de Brasília”
funcionou como um importante marco para impulsionar a efetivação de projetos de implantação dos
programas de JR no território nacional. Disponível em: http://jij.tjrs.jus.br/justica-restaurativa/carta-
aracatuba. Acesso em: 14 jun. 2017.
63 RODRIGUES, 2017.
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65 O município de Juiz de Fora conta com três Conselhos Tutelares, quais sejam: CONSELHO TUTELAR I
(REGIÃO CENTRO/NORTE); CONSELHO TUTELAR II (REGIÃO SUL/OESTE); CONSELHO TUTELAR III (REGIÃO
LESTE). Maiores informações disponíveis em:
https://www.pjf.mg.gov.br/conselhotutelar/estrutura/composicao.php. Acesso: 10 fev. 2020.
66 O CRAS é a principal porta de entrada para os serviços da Proteção Básica. Presta atendimento às famílias
em situação de ameaça ou violação de direitos. Nesse espaço são ofertados serviços de proteção a
indivíduos e famílias vítimas de violência, maus-tratos, negligência, entre outros. Sua atuação proporciona à
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família o acesso a direitos sociais. Busca, também, a construção de um espaço de acolhida e escuta
qualificada, fortalecendo vínculos familiares e comunitários. O público alvo inclui: crianças e adolescentes
vítimas de abuso, exploração sexual e violência doméstica, em situação de mendicância e trabalho infantil;
adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas; mulheres, idosos e pessoas com
deficiência com seus direitos violados. Mais informações disponíveis em:
https://www.pjf.mg.gov.br/secretarias/sds/centros_referencias/creas.php. Acesso: 10 fev. 2020.
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Até o ano de 2018, além do atendimento feito durante a execução das medidas
socioeducativas, os adolescentes residentes em Juiz de Fora também contavam com o
programa Se liga68, executado através da SUASE e destinado aos egressos do sistema
socioeducativo. O Se Liga visava apoiar o adolescente quando do cumprimento de sua
medida socioeducativa e auxiliar em sua reinserção social, incentivando aproximações
com a família, educação, trabalho, cultura e renda. Segundo os responsáveis, desde
2018 as atividades do Se liga foram interrompidas na cidade devido a questões
orçamentárias.
Em 2012, quando foram iniciadas as atividades do projeto Além da Culpa, a rede
socioeducativa local parecia estar seguindo o padrão que vigora em todo o país,
caracterizado pela primazia da aplicação das medidas socioeducativas em meio não
aberto e pela predominância de sua imposição a adolescentes negros, pobres e do sexo
masculino69. Embora a realidade em juiz-forana não fosse tão desoladora como a
verificada em outras unidades que padecem com superlotação e maus tratos, sabíamos
que a dinâmica dos atendimentos socioeducativos na cidade estava aquém do ideário
propugnado pelo ECA e distante dos inovadores programas de JR que nos serviam de
modelo.
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http://www.tjsp.jus.br/Download/CoordenadoriaInfanciaJuventude/JusticaRestaurativa/SaoCaetanoSul/Pu
blicacoes/jr_sao-caetano_090209_bx.pdf. Acesso em:15 jun.2017
73 Justiça Restaurativa – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Mais informações disponíveis em
2017.
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75 Maiores informações sobre o processo seletivo do referido projeto de extensão acadêmica disponíveis
em: <http://www.ufjf.br/direito/files/2010/05/Edital-Bolsista-de-Extens%C3%A3o-alem-da-culpa.pdf>.
Acesso em: 14 jun. 2017.
76 Mais informações disponíveis em:< http://www.ufjf.br/noticias/2017/01/12/causas-e-consequencias-dos-
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mesmo, menos acolhedor que o pessoal, sendo possível notar maior número de faltas,
mesmo com a confirmação anterior da presença pelo telefone.
Passada a fase de pré-circulo, no círculo restaurativo, presentes os facilitadores,
co-facilitadores, as pessoas identificadas como ofensor e vítima e seus apoiadores, todos
se assentam de forma circular, no sentido de demonstrar a posição de igualdade entre
os participantes e a necessidade do respeito e atenção mútuos. Os facilitadores
posicionam objetos e materiais de apoio no centro do círculo a fim de dar apoio à fala e
à escuta dos participantes. Ademais, a equipe utiliza um objeto para demarcar o
momento de fala dos participantes, que é denominado bastão ou objeto de fala. Tal
objeto circula de pessoa por pessoa, demarcando o espaço de fala daquele que o detém
e estimulando a alteridade e a escuta dos demais, que, em seguida, também poderão se
expressar enquanto estiverem segurando o bastão.
Na condução dos círculos restaurativos, os facilitadores elaboram perguntas e
estimulam a fala dos participantes a partir de fatos, valores e sentimentos que são,
pouco a pouco, abordados pelo grupo. Ao longo dos círculos realizados, atendendo à
proposta da comunicação não violenta, os facilitadores não abordam o conflito entre as
partes de forma imediata. Ao contrário, as rodadas iniciais procuram fomentar o diálogo
a respeito de temas amenos e alheios ao cerne do conflito decorrente do ato infracional
em questão, permitindo às partes falarem sobre os sentimentos e perspectivas que,
naturalmente, permeiam os primeiros apontamentos acerca da conflitividade que será
discutida no círculo.
Importante salientar, ainda, que, ao longo de todo o encontro circular, são
exploradas as necessidades das partes, o que se dá através de um diálogo seguro e
voluntário, em que todos têm a opção de não falarem ou, até mesmo, de desistirem do
procedimento, se assim desejarem. Caso isso não ocorra e os integrantes evoluam no
diálogo acerca do conflito propriamente dito, os facilitadores procuram estimulá-los na
construção de uma proposta restaurativa coletiva que promova a pacificação das
controvérsias e, se possível, aponte possibilidades para a restauração dos laços que
foram rompidos com o ato infracional.
Ressalta-se que todas as fases do procedimento restaurativo são devidamente
documentadas e o relatório final, confeccionado após a realização do círculo
restaurativo, no qual consta a proposta restaurativa construída coletivamente pelas
partes, é juntado aos autos do processo de apuração do ato infracional para posterior
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análise do juiz responsável, que decidirá pela extinção do feito ou pela valoração da
participação como condição pessoal favorável na escolha da medida socioeducativa a
ser imposta.
No que tange às dificuldades encontradas pela equipe para realização dos
círculos restaurativos, destaca-se a dificuldade que as partes têm de se locomoveram
até a Vara da Infância e da Juventude, pois, em razão da distância dos bairros em que
residem, normalmente distantes do centro da cidade, nem sempre dispõem de dinheiro
para a condução. Outro entrave observado pela equipe é fato de a Central de Práticas
Restaurativas funcionar no ambiente forense, o que causa certo desconforto e temor às
partes, mesmo que orientada, na fase de pré-círculo, que a natureza das práticas
restaurativas é diferenciada dos ritos tradicionais das audiências.
Cumpre salientar que o perfil dos feitos encaminhados à Central de Práticas
Restaurativas corresponde a, na maioria dos casos, a atos infracionais de pequeno e
médio potencial ofensivo, com destaque para condutas análogas aos crimes de ameaça;
injúria; difamação; calúnia; lesão corporal leve, dano e furto, bem como a contravenção
penal de vias de fato, o que é visto pela equipe como um ponto negativo, já que é cediço
que a JR pode ser aplicada também em casos de infrações graves.
Apresentadas as formas de intervenção nos casos de apuração de ato
infracional, convém apresentar as demais formas de intervenção do Além da Culpa,
agora na fase de execução da medida socioeducativa imposta ao adolescente por meio
de sentença condenatória. A primeira é a realização de oficinas semanais no CSE local
com um grupo de em média 10 adolescentes por semestre, que são selecionados pela
equipe técnica do CSE. Ao final de cada módulo, as atividades são consignadas nos autos
e, caso sejam tidas pelo juiz como exitosas, podem contribuir para a progressão e/ou
extinção da medida socioeducativa. A segunda é a realização de círculos que reinserção
familiar, que ocorrem na Central de Práticas Restaurativas e contam com a participação
do adolescente, sua família e/ou membros da comunidade, com o intuito de fortalecer
laços familiares e sociais que possam ter sido afetados em razão do ato infracional.
Já os círculos de reinserção familiar, que são realizados de maneira conjunta
entre a equipe do projeto e a equipe técnica de referência dos no CSE, consistem na
utilização da metodologia circular com a finalidade de promover o diálogo entre
adolescente, seus familiares e membros da comunidade, no sentido restaurar relações
familiares e sociais, para que o adolescente, após cumprir a medida socioeducativa,
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possa retomar o convívio com sua família e grupo social. A ideia é trabalhar situações de
abandono e/ou rivalidades que correm risco de ser revisitadas quando do retorno do
adolescente ao meio livre.
Diferentemente dos círculos restaurativos para verificação de ato infracional,
que buscam a responsabilização do adolescente pelo ato cometido e pelos danos
resultantes, os círculos de reinserção social não tratam de questões de mérito e visam
tão somente fortalecer os vínculos familiares e sociais do adolescente, representando
uma espécie de apoio ao seu retorno ao lar e à sociedade após o cumprimento da
medida socioeducativa de privação e/ou restrição de liberdade. Tal perspectiva é
formulada à luz da compreensão de que a JR pode funcionar como ação afirmativa de
reinserção social, uma vez que leva em conta tanto o fato de que o adolescente ficou
deslocado de seu meio social em razão das consequências advindas da prática do ato
infracional, como também tem em mira a importância do fortalecimento dos vínculos
estremecidos, ou mesmo, quebrados em razão do conflito vivenciado pelas partes.
Quanto aos entraves, destaca-se que nos círculos de reinserção familiar a
equipe encontra uma série de dificuldades para a participação do adolescente em razão
de ele sob a custódia do CSE, ficando a presença prejudicada em razão de falta de
escoltas e/ou veículos para transporte. Ademais, o histórico de abandono e negligência
familiar vivenciado pelos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de
internação dificulta o contato com os familiares para o apoio à reintegração do jovem à
família e à comunidade de origem.
Na realização de todas as atividades, a equipe extensionista tem a clareza de
que o fato de a Central de Práticas Restaurativa funcionar no ambiente forense é um
ponto desfavorável, haja vista o constrangimento e, até mesmo medo, que muitos
adolescentes, familiares e demais participantes têm de se dirigir a esses espaços.
Ademais, a equipe mantem-se atenta aos riscos de captura do procedimento
restaurativo pela lógica do sistema de justiça criminal tradicional, por isso são feitas
reuniões periódicas de estudos, treinamentos e compartilhamento de experiências, à luz
da Criminologia crítica, para que possam ser sempre fomentados os debates críticos
acerca das práticas levadas a efeito pelo grupo e da conveniência de repasse de tais
críticas aos atores jurídicos e institucionais envolvidos. Outro ponto que merece a
atenção da equipe extensionista é o risco de a JR se tornar uma espécie de expansão do
poder punitivo estatal, sendo aplicada em casos em que a remissão em face do
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Considerações Finais
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Nesse sentido, acredita-se que, para que se possa contribuir para a promoção da
proteção integral dos adolescentes brasileiros acusados e/ou condenados pela prática
de atos infracionais, imperiosas se fazem iniciativas capazes de dotar de eficácia os
princípios reitores do Estatuto. À luz de tais princípios, a JR se apresenta como uma
fecunda proposta de responsabilização dos adolescentes por seus atos infracionais que,
sem recorrer à ideologia retributivista, rompe com a lógica meramente punitiva e, ao
mesmo tempo, promove uma justiça integradora, participativa, preocupada em alcançar
todos envolvidos no conflito, quais sejam: a vítima, o ofensor e a comunidade.
Para garantir a difusão e concretização dos programas de JR pelo país é
necessário que haja apoio estatal para sua implantação e capacitação de novos
facilitadores, além da destinação de recursos à viabilização e melhoramento das práticas
restaurativas.
É justamente nesse movimento que vemos as universidades como agentes
parceiros desse projeto promissor de implantação da JR pelo país. Sabemos que há
muito a ser feito, mas, mesmo diante de um cenário de expansão punitiva, a UFJF,
através do Além da Culpa, já começou a avistar um horizonte de possibilidades
libertárias através da extensão acadêmica.
Referências Bibliográficas
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______. Justiça Restaurativa. Edição ampliada e atualizada. 2 ed. São Paulo: Palas
Athena, 2017.
Sobre os autores
Ellen Rodrigues
Doutora em Direito Penal (UERJ), com estágio doutoral na Universität Greifswald
(Alemanha), Mestre em Ciências Sociais (UFJF), Advogada, Professora Adjunta de
Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da UFJF. Coordenadora do
NEPCrim. E-mail: ellen.rodriguesjf@gmail.com
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John Holloway¹
Versão original: “Las grietas y la crisis del trabajo abstracto”, in ADAMOVSKY, Ezequiel
(Org.) (2011) Pensar las autonomías: alternativas de emancipación al capital y el Estado.
1ª ed. México D.F.: Sísifo Ediciones, Bajo Tierra.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
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Introdução
I1
simplesmente como fazer (doing). Dessa maneira, as autonomias podem ser vistas como
revoltas de oposição ao trabalho.
II
A opção do fazer tem um encanto ético e emocional muito forte. Dedicamos nossas
vidas às atividades que nos agradam ou que nos parecem ser importantes. Rejeitar-se a
lógica do dinheiro ou os requisitos do capital e dedicar-nos a criar um mundo mais justo,
um mundo que não toma seu ponto de partida em maximizar a ganância, senão na luta
por um mundo baseado no reconhecimento mútuo da dignidade humana, é
moralmente satisfatório e preenche-nos como pessoas.
A dificuldade se dá no fato de que nossas tentativas de atuar de maneira
diferente estão em contradição com a lógica dominante, com a síntese social
dominante. O trabalho que rejeitamos é parte de um estreito tecido social e de uma
lógica coerente do capital. Essa lógica governa o acesso aos meios de sobrevivência e
produção. Rejeitar-se essa lógica e optar por outro tipo de fazer significa que teremos
dificuldades para acessar o que precisamos para viver, assim como para realizar o
projeto criativo que temos em mente. Optar-se pelo fazer é optar pela exclusão: a
exclusão de uma lógica que está claramente destruindo as bases da existência humana,
mas uma lógica que é, ao mesmo tempo, a base da reprodução humana.
Nossas alternativas sempre existem à beira da impossibilidade. Logicamente
falando, não deveriam existir – pelo menos, segundo a lógica do capitalismo. Mas
existem: frequentemente passageiras e com muitas dificuldades e contradições,
sempre frágeis e correndo o risco de desaparecer, ou, ainda pior, de serem
transformadas em um novo elemento do sistema político ou social. Não deveriam
existir, e ainda assim existem, e estão se multiplicando e expandindo.
III
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governam: são empurrões nessa direção. São empurrões contrários, porque empurram
contra a lógica do capital. Assim, precisamos de um conceito negativo no lugar de um
positivo: fissuras em vez de autonomias.
O problema com “a autonomia” é que nos leva facilmente a uma interpretação
identitária. “As autonomias” podem ver-se como unidades autossuficientes, espaços
onde escapamos e nos quais podemos construir ou desenrolar uma identidade definida,
uma diferença. Em um mundo baseado na negação da autonomia ou da
autodeterminação, a autonomia, em um sentido estático, é impossível. A
autodeterminação não existe: o único que existe é o impulso constante para a
autodeterminação, que é o mesmo que o impulso contra-e-para-além da negação da
autodeterminação, e, como parte desse impulso, a criação de espaços ou momentos
extremamente frágeis nos quais vivenciamos o mundo que queremos criar.
A fissura é um conceito negativo e instável. A fissura é uma ruptura da lógica
da coesão capitalista, um rompimento no tecido da dominação. Já que a dominação é
um processo ativo, as fissuras não podem estar quietas. Correm, estendem-se,
expandem-se, juntam-se ou não com outras fissuras, preenchem-se ou são escondidas,
reaparecem, multiplicam-se, estendem-se. Rompem a partir das identidades. A teoria
das fissuras, então, é necessariamente crítica, anti-identitária, agitadamente negativa,
uma teoria de rompimentos e criações, e não uma teoria de unidades autossuficientes.
As fissuras na dominação capitalista existem por todas as partes. “Hoje não
vou trabalhar porque quero ficar em casa e brincar com as crianças”. Esta decisão talvez
não tenha o mesmo impacto que o levantamento zapatista, mas tem a mesma essência:
“Não, não faremos aquilo que o capital nos disse, faremos o contrário, faremos o que
consideramos necessário ou preferível”. A maneira mais óbvia de pensar nessas revoltas
é em termos espaciais (“aqui em Chiapas, aqui nesse centro social, não nos
submeteremos ao capital, faremos o contrário”), mas não há razão para as quais não
devemos pensar em termos temporais (“durante esse fim de semana, ou durante este
seminário, ou pelo tempo que pudermos, dedicaremos toda nossa energia para criar
relações que desafiam a lógica do capital”). Ou, novamente, nossas provocações
poderiam ser temáticas ou relacionadas particularmente aos tipos de recursos ou
atividades: “não permitiremos que a água, ou a educação, ou o software sejam
governados pela lógica do capital, esses devem ser entendidos como bens comuns e os
faremos sob uma lógica diferente”, e assim sucessivamente.
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IV
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estritamente ligado às formas de luta que estão rejeitando: a velha luta anticapitalista
dos sindicatos e dos partidos reformistas ou revolucionários. E muitas vezes a análise
marxista parece vagar pelas nuvens, longe e separada da recente onda de lutas contra o
capitalismo. De modo que a pergunta sobre a relevância do marxismo é tão importante
para esses movimentos, como é para a teoria marxista.
As fissuras (ou as autonomias) são revoltas que contrariam o trabalho, uma
forma de atividade contra outra. A atividade humana tem um duplo caráter, auto-
antagonista. O duplo caráter, auto-antagonista da atividade humana, ou como ele o
chamou, o “duplo caráter do trabalho”, é o tema central da obra de Marx. Qualquer
teoria sobre as fissuras, sobre as revoltas que contrariam o trabalho, devem partir do
mesmo ponto.
O jovem Marx, nos Manuscritos de 1844, fez uma distinção entre o trabalho
alienado e a atividade vital consciente. A atividade vital consciente é a atividade
autodeterminada, com sentido e é o que distingue os humanos dos demais animais.
Marx considera que sob o capitalismo, essa atividade vital consciente existe de forma
alienada, um trabalho que nos separa dos nossos próximos e do nosso ser genérico.
Marx já não utiliza o mesmo vocabulário que em O Capital, mas, desde as primeiras
páginas, insiste no duplo caráter do trabalho como “o eixo em torno do qual gira a
compreensão da Economia Política” (Marx, 1965: 41) e, portanto, uma compreensão
clara do capitalismo. Logo depois da publicação do primeiro volume, Marx escreveu para
Engels: “os melhores pontos no meu trabalho são os seguintes: 1) o duplo caráter do
trabalho, em função de se expressar como valor de uso ou como valor de troca (Toda
compreensão dos fatos depende disso. Se destaca de imediato no primeiro capítulo)”
(Marx, 1987: 407)2.
O duplo caráter do trabalho em O Capital se refere à distinção entre o trabalho
abstrato e o trabalho útil ou concreto. O trabalho concreto produz valores de uso e
existe em qualquer sociedade, mas no capitalismo existe na forma de trabalho abstrato,
trabalho captado de suas especificidades, trabalho que produz valor. A distinção entre o
trabalho abstrato e o trabalho concreto é uma forma elaborada da distinção anterior
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Já vimos que as fissuras podem ser vistas como revoltas do fazer contra o trabalho. Isso
implica um antagonismo vivo e fundamental entre os dois tipos de atividade. Se vamos
perguntar sobre a relevância de Marx para a compreensão das fissuras, temos que
perguntar se em O Capital há um antagonismo vivo e fundamental inerente à natureza
dupla do trabalho.
Há claramente um antagonismo entre o trabalho concreto e o abstrato,
embora geralmente se entenda como um antagonismo presente, como uma dominação.
No capitalismo, o trabalho concreto existe na forma de trabalho abstrato. Minha
preparação de bolos existe na forma de uma atividade que me é completamente
indiferente. Este, na forma de, é geralmente entendido como uma presença completa,
como uma relação unilateral de dominação. Dado que o trabalho concreto está
simplesmente contido dentro do trabalho abstrato, é uma categoria que não requer
atenção.
Entretanto, dessa forma não há como ser. Certamente minha preparação de
bolos existe como algo que me é diferente, embora haja também momentos em que,
enquanto os preparo, luto contra essa indiferença abstrata e tento recapturar o prazer.
Inclusive, há momentos nos quais digo “pro diabo com o mercado!” e faço o possível
para preparar um bolo delicioso – uma fissura na qual o fazer se rebela contra o
trabalho. Em outras palavras, quando dizemos que algo existe na forma de, temos que
entendê-lo no sentido de dentro-contra-e-para-além da forma desse algo. Dizer que o
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trabalho concreto existe na forma de trabalho abstrato é o mesmo que dizer que o
trabalho abstrato é seu modo de existência. Dito de outra maneira, dado que o trabalho
abstrato é a negação das características particulares do trabalho útil ou concreto,
podemos dizer que existe no “modo de ser negado” (Gunn, 1992: 14)3. Porém, não
aceita, nem pode aceitar sua própria negação sem resistência: inevitavelmente reage
contra sua própria negação, empurra contra-e-para-além dessa negação.
O fazer concreto existe dentro-contra-e-para-além do trabalho abstrato. Todos
estamos conscientes da maneira com a qual o fazer concreto existe dentro do trabalho
abstrato, na maneira em que nossa atividade cotidiana é subordinada às exigências do
trabalho abstrato (ou, de outra forma, subordinada para gerar dinheiro). Também
experimentamos isso como um processo antagonista: o antagonismo entre nosso
impulso na direção da autodeterminação da nossa própria atividade (fazer o que
queremos fazer), e fazer o necessário para ganhar dinheiro. A existência do fazer
concreto contra o trabalho abstrato se vive como frustração. O fazer concreto também
existe além de sua forma como trabalho abstrato, nesses momentos, ou em espaços
onde, individual ou coletivamente, conseguimos fazer aquilo que consideramos
necessário ou desejável. Embora o trabalho abstrato subordine e contenha o fazer
concreto, não o resume por completo: o fazer concreto não existe somente dentro de
sua forma, mas também contra-e-para-além.
É isso que diz Marx? Claro que esta é uma questão de interpretação. A obra de
Marx é uma crítica às categorias da economia política. Marx abre as categorias e
demonstra que elas não estão de fora da história, mas pertencem a formas
historicamente específicas das relações sociais antagônicas do capitalismo. De maneira
crucial, abre a categoria do trabalho e demonstra como existe um antagonismo entre o
trabalho concreto e o abstrato. Todo O Capital pode ser visto como uma crítica ao
trabalho abstrato a partir da perspectiva do trabalho concreto e, precisamente dada
esta perspectiva, não aparece no primeiro plano dentro da narrativa. Voltar a ler Marx
no contexto das lutas atuais contra o capitalismo nos força a focar no antagonismo entre
o trabalho concreto e o abstrato e faz-nos questionar (seja com Marx ou contra-e-para-
além) a natureza dessa relação entre o trabalho e o fazer.
3 “Na concepção marxista, o êxtase existe, mas existe como luta, sustentando-se de forma
alienada (em outras palavras), no modo de ser negado” (ênfase no original).
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VI
Existe um mistério nisso tudo. Nas páginas iniciais de O Capital, Marx escreveu que a
natureza dupla do trabalho é o eixo em torno do qual gira a compreensão da economia
política; escreveu para Engels que esse era um dos melhores pontos de seu livro. O que
poderia ser mais claro? E, no entanto, ocorreu o que era aparentemente impossível: a
tradição marxista praticamente omite esse ponto. Gerações de ativistas e eruditos
analisaram O Capital, e, apesar disso, aquilo que Marx proclamou ser seu argumento
principal foi quase inteiramente negligenciado. É fato que nos últimos anos foi dado
mais atenção a esse aspecto, mas ainda assim, o foco esteve quase exclusivamente no
trabalho abstrato em vez de estar no duplo caráter do trabalho4.
Como explicamos essa indiferença extraordinária? Sem dúvida, até certo
ponto, pode-se culpar o estilo de escrita do próprio Marx; seu olhar era voltado para
fora da perspectiva do trabalho concreto suprimido. E, mesmo assim, isso não se parece
com uma explicação adequada, a negligência não pode ser explicada em termos de uma
falta de erudição, alguma explicação social deve existir.
Uma explicação possível recai sobre o fato de que o duplo caráter do trabalho
inevitavelmente dá lugar a um duplo caráter da luta anticapitalista. O capital se
fundamenta em dois tipos de antagonismo. O primeiro é o antagonismo que já
caracterizamos como central: a luta ao converter o fazer, a atividade cotidiana das
gentes, em trabalho abstrato que produz valor. Essa luta costuma ser associada à
acumulação primitiva, a criação histórica das bases capitalistas, porém, relegarem-se
essas lutas (ou a acumulação primitiva) ao passado, seria equivocado5. A luta para impor
a disciplina do trabalho sobre nossa atividade é uma luta praticada diariamente pelo
capital: o que mais fariam os gerentes, professores, trabalhadores sociais, policiais, etc.?
Somente na base desse primeiro nível de antagonismo, surge o segundo nível. Somente
quando a atividade das gentes é convertida em trabalho abstrato é que se torna possível
a exploração. A atividade humana é convertida em trabalho que produz valor, e,
portanto, somos forçados a produzir não apenas o que equivale ao valor de nosso
próprio poder de trabalho, como também somos forçados a produzir a mais-valia, da
4Para uma excelente discussão sobre as contribuições recentes para o debate sobre o trabalho abstrato, ver
Bonefeld (2010).
5 Para o debate extremamente importante a respeito da compreensão da acumulação primitiva como
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geralmente dá essas coisas por feitas, de modo que o movimento obreiro, por exemplo,
tende a aceitar a autopreservação do Estado como organizador da sociedade (em vez de
vê-lo como um momento da abstração do trabalho, o qual é a força real da coesão
social). O trabalho abstrato nos conduz a um conceito centrado no estado de troca
social. O movimento do trabalho abstrato está contido dentro de uma prisão
organizacional e conceitual, que efetivamente estrangula qualquer aspiração à mudança
revolucionária.
O marxismo ortodoxo é a teoria do movimento obreiro baseada no trabalho
abstrato, de modo que está quase totalmente cego em relação às questões do
fetichismo e da natureza dupla do trabalho.
Portanto, o que explica a razão pela qual um conceito único de trabalho
dominou tanto o movimento obreiro, como a tradição marxista, e a razão pela qual a
insistência de Marx sobre a centralidade da natureza dupla do trabalho foi quase
inteiramente ignorada, é a dominação do movimento anticapitalista pela luta do
trabalho abstrato (ou o trabalho assalariado) contra o capital. A discussão marxista
recente tratou de superar esse legado por meio de um retorno à questão do trabalho
abstrato, porém, ainda não consegue dar a devida importância ao outro lado do duplo
caráter do trabalho.
VII
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VIII
6 Sobre a distinção entre contradição e diferença, e sua importância política, ver Bonnet (2009).
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7 No contexto latino-americano, o grande apóstolo do autonomismo foi Raúl Zibechi, cuja obra tenho uma
grande admiração, porém, que, porventura, não se enfoca suficientemente nas dificuldades desses
movimentos. Ver Zibechi (2008).
8 Para uma excelente discussão das autonomias no contexto da revolta argentina, porém, de uma
que assim está inteiramente escondido). Diz-se “avestruzismo” porque não há nada mais belo que uma
torre de marfim nas universidades. Gostaria que houvesse!
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trabalhadora pode ou não ser considerada como uma luta complementada pelas lutas
classistas dos “novos movimentos sociais”. Ao contrário dessas aproximações, aqui o
argumento diz que a luta revolucionária não é a luta do trabalho, mas do fazer contra o
trabalho; diz, também, que a luta da classe trabalhadora é contra sua própria existência
enquanto classe, ou seja, é contra sua própria classificação.
O sexto objeto de crítica são aquelas aproximações que, excelente ou
corretamente, ressaltam a importância do duplo caráter do trabalho, porém, em
seguida, concentram-se exclusivamente no trabalho abstrato, ao supor que a categoria
do trabalho útil ou concreto ou não é problemática, ou está de fato incluída na categoria
do trabalho abstrato. Em tais aproximações, a contradição se separa do antagonismo
social, de modo que a crítica do capital seja entendida na realidade como uma crítica do
trabalho abstrato, entretanto, a crítica permanece abstrata, na medida em que a relação
entre o trabalho abstrato e o trabalho útil ou concreto não seja entendida como um
antagonismo vivo11. Essa aproximação é estimulante, mas politicamente desastrosa,
visto que nos leva de volta a antiga conclusão de que uma revolução anticapitalista é
necessária, mas deixa-nos totalmente sem resposta sobre como alcançá-la.
O sétimo, e muito importante, é o argumento contra aquelas aproximações, às
vezes influenciadas por Deleuze 12 ou Hardt e Negri, que desbancam a centralidade do
capital como categoria para compreender a natureza do antagonismo social nesta
sociedade. O argumento aqui é que a questão central é o nosso fazer, a maneira com a
qual está organizada nossa atividade cotidiana. Sob o capitalismo, nosso fazer está
subordinado ao trabalho abstrato, ou, em outras palavras, nossa atividade está sujeita a
uma força que não controlamos e que tem como sua fundamental determinante a
expansão do valor e a busca sem fim pela ganância. Essa organização da nossa atividade
tem resultados catastróficos e precisa ser mudada. As lutas atuais têm como seus
enfoques a revolta do fazer contra o trabalho, o impulso a traçar nossa própria
atividade. A ascensão do controle sobre nossa própria atividade significa a dissolução do
capital. Se substituirmos a luta conta o capital pela luta pela democracia13, então,
diluiremos a luta e, pior ainda, desviar-nos-emos do ponto essencial: uma democracia
genuína não fará absolutamente nada em si para mudar a forma e conteúdo da nossa
11 Estou pensando na obra estimulante de Portone (1996) e do grupo Krisis (na sua revista de mesmo
nome).
12 Para uma excelente discussão de Deleuze e sua influência, ver Bonnet (2009).
13 Esta me parece ser a implicação da obra de Hardt e Negri: ver em particular Parte III de Hardt e Negri
(2004).
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atividade cotidiana. Por isso, colocamos o capital como o tema central ao compreender
o capital não como uma categoria econômica, mas sim como a forma historicamente
específica de organização da atividade humana.
Um oitavo objeto de crítica implícita é o conceito de autovalorização, um
termo cunhado por Negri e amplamente utilizado nas discussões sobre movimentos
autônomos. A autovalorização, segundo Cleaver (1992:19), “[...] indica um processo de
valorização que é autônomo da valorização capitalista – um processo que se autodefine
e se autodetermina, e que vai além da mera resistência à valorização capitalista de um
projeto positivo de autoconstituição.”.
Mais adiante, no mesmo artigo (1992: 134), fala sobre “os múltiplos processos
de autovalorização ou autoconstituição que escapam do controle capitalista.”. É
evidente que estamos falando desses mesmos processos de revolta, os quais estamos
tentando compreender. O que me preocupa é a noção de que esses processos sejam
“autônomos da valorização capitalista” ou “escapam do controle capitalista”. Prefiro
insistir que a relação do outro-fazer ao capital é uma relação dentro-contra-e-para-além,
por quatro razões concordantes. Primeiro, corre o perigo de que a noção de
autovalorização, ou mesmo o êxodo, pode criar uma imagem enganosa de estabilidade.
Como já vimos na discussão anterior sobre as dificuldades das fissuras, provavelmente é
de maior ajuda ver as fissuras como pontos e momentos de ruptura, que tem uma
existência passageira, e que somente podem sobreviver mediante sua própria
reconstituição constante. Segundo, a noção de autovalorização pode conduzir à ideia de
que essa é uma forma específica de ativismo que pode surgir da rejeição do trabalho
(daí Cleaver, 1992: 130: “a rejeição do trabalho... cria a mesma possibilidade de
autovalorização”), enquanto que o conceito do fazer coloca o antagonismo no mesmo
processo de agir, não como uma possibilidade, mas sim como uma parte inevitável do
viver. De forma simples, a vida é o antagonismo entre o fazer e o trabalho abstrato14.
Terceiro, o conceito de autovalorização não nos conduz à crítica do trabalho abstrato e
suas manifestações, da mesma forma que o duplo caráter do trabalho. E, por último, a
autovalorização, externa à valorização, não constitui sua crise, enquanto que o fazer é a
crise do trabalho abstrato.
14Em outras palavras, a vida não deveria ser considerada como uma categoria trans-histórica, como já
acontece muitas vezes. Sobre esse ponto, ver novamente Bonnet (2009).
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IX
O argumento aqui exposto sugere que precisamos reler Marx para poder compreender
o movimento autonomista. Realmente nos ajuda? Eu creio que sim.
A releitura de Marx desde a perspectiva das lutas atuais muda a ênfase da
exploração à abstração: em vez de ver a discussão da abstração como começo da
exploração, ver a exploração como um desenvolvimento da problemática central da
abstração. Se não fizermos isso, aprisionaremos Marx a uma forma de luta de classes
que, assim como é repressiva, é decadente. Abandonar Marx dessa forma é perder a
enorme riqueza de seu estímulo, assim como perder as linhas da continuidade que,
apesar de tudo, são tão importantes para nossas lutas. O pior de tudo é que
eventualmente abandonar Marx significa perder-nos a nós mesmos, nublar as perguntas
15 A excepcional fonte para ver este tema é o livro de Massimo De Angelis (2007).
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que rodeiam nossas lutas, traçar o caminho para a reintegração de nossas rejeições no
sistema que recusamos.
Compreender as autonomias desde a perspectiva aqui exposta, como fissuras
na dominação capitalista, ou seja, como fissuras no tecido da coesão intermediada pelo
trabalho abstrato, ajuda-nos a ver que estes movimentos não são unicamente uma
moda, nem um sinal da inatividade na luta de classes, tampouco são apenas uma massa
de fragmentos, mas sim um empurrão para a humanidade que constitui a crise do
trabalho abstrato. Daí sua importância: nossos movimentos são a crise do trabalho
abstrato e o resultado dessa crise depende do futuro do mundo. i
Tradutores
Gustavo Moura de Oliveira, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio
Grande do Sul, Brasil. E-mail: comanchi@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-1994-3864.
Paula Monique Kunzler Schneider, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: paulakunzlerschneider@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0687-0424.
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______ (1987) Letter of Marx to Engels, 24.8.1867. Marx Engels Collected Works, vol. 42.
London: Lawrence & Wishart.
Sobre o autor
John Holloway
Professor-investigador do Instituto de Ciências Sociais e Humanas “Alfonso Vélez
Pliego” da Benemérita Universidad Autónoma de Puebla. Reconhecido autor de
diversos livros a fim de pensar a mudança social e a luta contra e além do capitalismo.
Publicou Cambiar el mundo sin tomar el poder (Mudar o mundo sem tomar o poder)
em diversos países e já foi traduzido em dez idiomas. Outros títulos como:
Keynesianismo: una peligrosa ilusión, em 2003; Clase=Lucha, em 2004, Marxismo
i Nota à tradução brasileira: algumas pequenas modificações textuais foram feitas ao longo da tradução com
Abierto: una visión Europea y Latinoamericana, junto com A. Bonnet e S. Tischler, em
o intuito de democratizar o gênero generalizante. A equipe tradutora e revisora considera que esse
2005; Zapata en Wall Street: aportes a la teoría del cambio social, em 2006, Contra y
pormenor linguista contribui para a formação de uma sociedade mais justa no que se refere à divisão de
másentre
poder allágêneros.
del Ademais,
capital,as alterações
em 2006, foramMarxismo abierto:
feitas no texto, o que nãouna visión
inclui as Europea y
citações.
Latinoamericana Tomo II, em coordenação com W. Bonefeld, A. Bonnet e S. Tischler,
em 2007; Negatividad y Revolución: Theodor W. Adorno y la política, em coordenação
com F. Matamoros e S. Tischler, em 2007; Zapatismo: reflexión teórica y
subjetividades emergentes, junto com F. Matamoros e S. Tischler, em 2008; La Rosa
Roja de Nissan, e outros escritos, em 2009.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p. 687-706.
John Holloway
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Massimo Modonesi
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Introdução
2A palavra alemã selbsttätigkeit desta passagem fundamental foi traduzida como autonomia, mas também
como auto-atividade, auto-ativação ou autoconstituição.
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O tema da autonomia tem sido indiscutivelmente o que, entre os três que estamos a
analisar, mais debates e polêmicas tem suscitado dentro do marxismo como resultado
da abertura semântica da palavra e seu maior grau de oscilação conceitual.
Mabel Thwaites (2004: 17-22), escrevendo a partir da experiência argentina de
2001-2002, indica cinco ideias possíveis do conceito: autonomia do trabalho frente ao
capital (autogestão), autonomia do sujeito social frente às organizações partidárias ou
sindicais, frente ao Estado, frente às classes dominantes (ideológica) e, por último, a
autonomia social e individual (como modelo de sociedade). Esta tipologia pode ser
reordenada à luz dos debates marxistas correspondentes. A primeira definição é, sem
dúvida, fundamental, mas poderia e deveria incluir um horizonte mais amplo do que o
da autogestão, abarcando os processos de autonomização do trabalho vivo que, como
vimos a partir das intuições de Marx, desenvolve a classe operária italiana em geral, e
em particular em Negri com o conceito de autovalorização. A segunda, de origem
anarquista, desaparece como tal, frente às abordagens marxistas sobre o papel do
sindicato e do partido, e se translada ao problema da relação entre “espontaneidade e
direção consciente”, para usar a fórmula de Gramsci. A terceira é de outra ordem –
tático-estratégica, em função do confronto com a dominação burguesa – e, portanto,
não equivalente em nível teórico na medida em que, em amplo sentido, há um consenso
no princípio que corresponde a formação de classe para si e do partido como expressão
3 Um exercício erudito de leitura libertária de Marx encontra-se em Rubel (2000: 284-327), particularmente
em relação com o tema de classe, no qual sustenta que Marx avança na ideia da “autoconstituição da
classe” (Ibid.: 289). Outra possibilidade, mais recente, de uma leitura autonomista de Marx a partir de um
conceito similar pode encontrar-se em Bonefeld (2008).
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4 Ver a síntese tipicamente liberal que propõe Norman (2007) depois de analisar diversos autores. Por outro
lado, a reflexão filosófica de Mier (2009: 83-122), quem relaciona a autonomia com a experiência e a ação
coletiva, mas sem ancorá-la a uma matriz antagonista e a conformação de subjetividades políticas
concretas.
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5 Ver em particular o debate com Lenin sobre o partido bolchevique, Luxemburgo (1969: 41-63);
Luxemburgo (2003; 1995). Guérin (s/f) inicia uma problematização comunista libertária do pensamento de
Rosa Luxemburgo. Para leituras luxemburguistas, ver Basso (1997) e Geras (1980).
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posturas, Rosa Luxemburgo será uma – senão a principal – fonte de inspiração para
correntes marxistas que, com maior ênfase, incorporarão a ideia de autonomia como
emancipação.
De fato, o debate suscitado pelas posturas de Rosa Luxemburgo tornou-se
crucial na medida em que o tema da espontaneidade produzia e produz curto circuitos
no marxismo na medida em que, com exceção da “abertura” operada por Rosa
Luxemburgo, dominavam as posturas que o associavam à inconsciência e que, de
Kautsky a Lenin, sustentava a necessidade de sua superação por meio de uma
intervenção externa ao partido, da vanguarda consciente. A trajetória de Trotsky – do
conselhismo ao bolchevismo centralista e, finalmente, a um bolchevismo pluralista –
nesse debate é uma mostra dos diversos matizes que pode assumir a valoração de uma
combinação entre espontaneidade e consciência e sua tradução estratégica e
organizativa6.
A tendência dominante da identificação entre espontaneidade e autonomia –
versus anarquismo – fez com que, dentro do marxismo contemporâneo, o tema da
autonomia de classe, como princípio de separação, fosse uma hipótese aceita; e que a
ideia de autonomia como emancipação, como objetivo ou como processo de
autodeterminação progressiva fosse patrimônio apenas de perspectivas e correntes
específicas. Nessa última hipótese, com exceção dos casos que mencionaremos adiante,
o conceito de autonomia não tem sido objeto de teorizações específicas, mesmo que
venha fazendo-se presente como referência constante, com diversos alcances e graus de
abertura.
Nesta linha, seria o chamado conselhismo – inspirado nas intuições de Rosa
Luxemburgo – a corrente marxista que, com mais convicção e insistência, articularia a
ideia de autonomia de classe em função da realização concreta de sua expressão de
poder e de autodeterminação, não apenas como princípio de existência subjetiva – de
fundação política de classe – para si ou em função da sua expressão na forma de
6 Mandel (1990: 35-49) e Mandel (2003). Entre parênteses, Mandel atribui a Trotsky o conceito de auto-
organização, e usa-o enfaticamente na hora de sintetizar o pensamento deste. De fato, aparece
tangencialmente no texto de novembro de 1911, titulado “Por que os marxistas se opõem ao terrorismo
individual”, publicado em Der Kampf, quando o revolucionário russo escreve: “Quanto mais eficazes são os
atos terroristas e maior é o seu impacto, mais limitam os interesses das massas por sua auto-organizaçao e
auto-educação”. Depois o conceito desaparece – ainda que não a problemática que pretende sintetizar.
Para um uso muito mais sistemático da noção de auto-organização, há que se esperar, como veremos
adiante, em Pannekoek (1938).
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7 Generalizamos uma linha que está atravessada por polêmicas e conflitos, fundamentalmente no maior ou
menor papel do partido, na maior ou menor valoração da espontaneidade.
8 Sobre os soviets e a relação com o enlace revolucionário do exercício do poder e da autodeterminação da
classe operária, vinculando-se à questão do poder dual, analisado por Lenin, Trotsky; na América Latina
desenvolvido pelo boliviano Zavaleta (1974).
9 Ver Bricianer, (1975); (1976, Vol II: 314-354). Os textos de Anton Pannekoek podem ser consultados em
http://www.geocities.com/cica_web/consejistas/pannekoek/indice.html.
10 Ver Mandel (1973).
11 Elementos importantes do debate italiano podem ser revisados em Cuadernos del Pasado y Presente
(1973).
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12Assumimos nesta passagem uma ampla definição de conselhismo que não necessariamente exclui, como
no caso do Conselhismo com “C” maiúsculo, a existência de um partido comunista. Ver, por exemplo,
Varios, Consejos Obreros y democracia socialista, Cuadernos del Pasado y Presente, México (1977) e
Rossanda (1973).
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“milagrosa”, sendo que nenhuma solução legal garantia o que apenas a ação autônoma
de classe poderia realizar. Nisso o SoB se posicionava explicitamente contra o
“fetichismo estatutário” e também contra o “espontaneísmo anarquista”.
Por outro lado, ainda sustentando a democracia direta a partir das “células
sociais” dos lugares de trabalho, a partir da transparência, da informação e do
conhecimento, Castoriadis defende a necessidade de um certo nível de centralização
que não seja delegável, senão expressão do poder operário (Ibid.: 168). Como já
assinalamos, o problema da autonomia se relaciona tradicional e logicamente com o
tema da organização política, ou seja, com o tema do partido. Ainda que o SoB – em
sintonia com suas origens no bolchevismo trotskista – defendia o papel histórico da
vanguarda e da organização partidária para a difusão da consciência e dos objetivos da
luta antiburocrática, pensava, também, na sua imediata dissolução no interior dos
“organismos autônomos de classe” no processo revolucionário:
Uma organização assim não pode desenvolver-se se não preparar seu
encontro com o processo de criação de organismos autônomos das massas.
Nesse sentido, ainda que se possa dizer que representa a direção ideológica
e política de classe nas condições do regime de exploração, há que se dizer
também e, sobretudo, que é uma direção que prepara a sua própria
supressão, a partir da sua fusão com os organismos autônomos de classe,
desde que a entrada da classe em seu conjunto na luta revolucionária faça
aparecer na cena histórica a verdadeira direção da humanidade, que é esse
mesmo conjunto de classe (Socialisme ou Barbarie, 1949: 34-35).
política. Em segundo lugar, a articulação de sua duplicidade: como meio e como fim,
como processo e como acontecimento. Em terceiro lugar, volta a mencionar a
circularidade e a interdependência entre presente e futuro, entre a orientação das lutas
de hoje e a forma de sociedade de amanhã. A autonomia está no início e no final do
processo; em termos clássicos, é independência de classe e socialismo e, dessa maneira,
torna-se o conjunto do processo, na medida em que os seres humanos – a partir de sua
capacidade autônoma – o protagonizam.
Ao mesmo tempo, junto a uma intuição e uma abordagem original e
enriquecedora, vislumbram-se os elementos de certa confusão conceitual derivada da
ausência de uma clara distinção entre autonomia e autonominação, entre horizonte
emancipatório e processo de emancipação. Uma distinção necessária para que se
visualize plenamente a articulação que SoB esboça em traços gerais:
Queremos mostrar a possibilidade e explicitar o conjunto do projeto
revolucionário, como projeto de transformação da sociedade presente em
uma sociedade organizada e orientada no sentido da autonomia de todos, a
partir de uma transformação efetuada pela ação autônoma dos homens, tal
qual são produzidas pela sociedade presente (Ibid.: 116).
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O autonomismo
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13 Mostras dessas tendências podem encontrar-se em Albertani (2004). Uma análise do retorno anarquista
no altermundismo pode-se ver em Epstein (2001). Elementos de debate entre autonomistas, anarquistas e
comunistas podem ser observados em um número monográfico da revista Contretemps (2003).
14 Ver, por exemplo, alguns textos nos quais aparecem referências explícitas à ideia de autonomia: Colectivo
Situaciones (2003); Rebón (2007); El Colectivo (2007). Em particular, ver sobre o autonomismo argentino em
Ouviña (2009). Por último, para uma compreensão do autonomismo no contexto da história argentina
recente, ver obras de Svampa (2005; 2008).
15 Sobre a trajetória intelectual de Holloway, ver Altamira (2006: 181-263).
16 Ver Holloway (2002), este livro foi objeto de um extenso debate e uma intensa polêmica. Não entraremos
aqui nos seus aspectos mais profundos por não corresponderem aos propósitos do nosso estudo. Parte
significativa do debate pode ser visto em Holloway (2006).
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Ao mesmo tempo, a ideia de “para além” implica uma saída – por meio da
negação – que se dá desde o interior da relação de dominação.
Da ótica que estamos propondo, o itinerário teórico sugestivo traçado por
Holloway – ainda compartilhando as principais coordenadas conceituais – opera um
salto teórico na medida em que funde o dentro e o fora, o contra e o para além, o poder
fazer com o antipoder, a negação com a afirmação. Nesse sentido, a polaridade entre a
subalternidade (fetichismo e poder sobre) e a autonomia (emancipação e poder fazer)
resume o poder contra, simplificando a passagem do conflito e ignorando a
especificidade do antagonismo. Assim como em Negri18, interioridade e exterioridade se
17 Holloway escreve (2009: 123-129): “No capitalismo a subjetividade é em primeiro lugar negativa, é um
movimento contra a negação da subjetividade (a anticlasse antitrabalhadora)”.
18 A relação entre Negri e Holloway mereceria um tratamento específico. Uma aproximação crítica, de
19 Mesmo Holloway (2002: 242-245) – quando polemiza a ideia de imanência negriana – insiste na
interioridade “fetichista” e, por isso, enfatiza a negação contra toda a afirmação “positiva”: no antipoder, a
antipolítica, o antissujeito.
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Conclusão
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Engels entendem o comunismo, como um “movimento real que anula e supera o estado
de coisas atual” (Marx e Engels). Nessa direção, pode-se pensar na autonomia como
sinônimo de comunismo, um sinônimo que aponta para o método e para o conteúdo
libertário e democrático, uma utopia procedimental que corresponde à utopia
substancial ou matéria própria do comunismo”20.
Seja referência abstrata ou experiência concreta, a autonomia orienta um
processo real: a autonomização, o caminho para a autonomia integral, permeado de
autonomias parciais ou relativas, o qual supõe o rechaço a todo autonomismo que
comporte a idealização de uma propriedade metafísica do sujeito.
Nesses termos, a ideia de autonomia como processo de emancipação
contraditório é sustentada por Mabel Thwaites (2004: 20) da seguinte maneira:
A autonomia é um processo de autonomização permanente, de
compreensão continuada do papel subalternizado que impõe o sistema às
classes populares e da necessidade de sua reversão, que tem suas marchas e
contramarchas, seus fluxos e refluxos.
Tradutores:
Gustavo Moura de Oliveira, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio
Grande do Sul, Brasil. E-mail: comanchi@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-1994-3864.
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Sobre o autor
Massimo Madonesi
Doutor em Estudos Latino-americanos. Membro do Comitê de Redação da revista
Memória e Diretor da revista OSAL da CLACSO. Autor do livro La crisis histórica de la
izquierda socialista mexicana (2003) e de El Partido de la Revolución Democrática
(2009), e de numerosos artigos sobre teoria marxista e movimentos sociais latino-
americanos. Coordenou com Elvira Concheiro e Horácio Crespo, o livro El
Comunismo: Otras miradas desde América Latina (2007); com Claudio Albertani e
Guiomar Rovira, o livro La Autonomia Posible. Reinvención de la política y
emancipación (2010). Sua próxima publicação é o livro Subalternidad, Antagonismo y
autonomia. Marxismos y subjetivación política. E-mail: modonesi@hotmail.com
iNota à tradução brasileira: algumas pequenas modificações textuais foram feitas ao longo da tradução com
o intuito de democratizar o gênero generalizante. A equipe tradutora e revisora considera que esse
pormenor linguista contribui para a formação de uma sociedade mais justa no que se refere à divisão de
poder entre gêneros. Ademais, as alterações foram feitas no texto, o que não inclui as citações.
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RESENHA
Santiago M. Roggerone1
1 Universidad Nacional de Quilmes – CONICET, Buenos Aires, Argentina. E-mail:
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 734-741.
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DOI: 10.1590/2179-8966/2020/53493| ISSN: 2179-8966
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E
l libro aquí reseñado es el producto reciente de los esfuerzos llevados a término
por el Grupo de Trabajo (GT) Teoría social y realidad latinoamericana del Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), el cual se encuentra integrado
por distinguidos académicos e investigadores de la región, contando además con
la coordinación de Esteban Torres y José Maurício Domingues. Publicado en el marco de
la Colección Grupos de Trabajo y la Serie Teoría social crítica, de CLACSO, este trabajo
colectivo busca –como bien apunta el editor en su introducción– “expandir el
conocimiento sobre tópicos clásicos que desde mediados del siglo XX inciden de modo
protagónico en la conformación de la agenda pública de las ciencias sociales en América
Latina” (TORRES, 2020a, p. 9).
Intentando entonces sentar las bases de un proyecto intelectual moderno, crítico
y con amplias pretensiones emancipatorias, y apostando en igual medida por una
“creación teórica autonomista” (TORRES, 2020a, p. 9), las contribuciones de Kathya
Araujo, Vivane Brachet-Márquez, Breno Bringel, Fernando Calderón, Enrique de la Garza
Toledo, Alfredo Falero, Guilherme Leite Gonçalves y Sérgio Costa, Aldo Mascareño, Sergio
Pignuoli Ocampo y Juan Pablo Gonnet, y los propios Torres y Domingues se agrupan en
dos grandes bloques: uno en el que América Latina es abordada y problematizada en
tanto objeto, y otro en que se atiende a cuestiones de índole más específica y se elaboran
algunas propuestas teóricas. El libro culmina con un texto de José María Aricó que hace
las veces de un legado que interpela a autores y lectores para hacer algo nuevo y
productivo a partir de lo efectuado por generaciones previas –se trata, en otras palabras,
de “un punto de referencia valioso para alimentar las expectativas de realización
autonomista que hicieron posible la producción de este libro y que permiten el avance
entusiasta de [...un] proyecto de innovación colectiva” (TORRES, 2020a, p. 19).
En el artículo que abre la primera parte de las intervenciones –“Hacia una nueva
teoría del cambio social en América Latina: Esquemas y elementos preliminares”–, Torres
lleva a cabo una propuesta provisoria a los fines de poner en pie un esfuerzo sistémico
más amplio atento a las especificidades de la región –producido, vale decir, en, desde y
para ella. Se trata de una ambiciosa apuesta por pensar a América Latina en los términos
de una dialéctica de “procesos de integración desde arriba, procesos de independencia y
procesos de integración desde abajo” (TORRES, 2020b, p. 24). Entre el amplio y complejo
abanico de categorías y nociones propuestas, destacan las de “gérmenes, impulsos y olas”
(TORRES, 2020b, p. 25). A través de las mismas, el autor problematiza a América Latina en
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La segunda parte del libro inicia con el artículo “Formación del Estado en América
Latina: Una propuesta teórica inter-institucional”, de Brachet-Márquez. Tal como el título
lo anuncia, en su contribución, la autora aborda la relación Estado-sociedad en tanto
cuestión clave de los procesos multiinstitucionales. A Brachet-Márquez le preocupa tanto
“transmitir la naturaleza histórica de la realidad” latinoamericana como “pensar
genéricamente en busca de paralelos y contrastes en las trayectorias históricas diversas
de nuestras sociedades nacionales” (2020, p. 186). Partiendo de esto, en el texto se
presentan y desarrollan una serie de axiomas mediante los cuales se explicita cómo se
construyeron los órdenes sociopolíticos de la región, atendiendo de igual manera a las
dimensiones de la sociedad y el Estado y los vínculos con las potencias mundiales.
En una clave similar al artículo de Brachet-Márquez, el texto de Bringel se ocupa
de conceptualizar un actor clave del devenir regional. Como el título lo informa –
“Movimientos sociales y realidad latinoamericana: Una lectura histórico-teórica”–, ese
actor, por supuesto, es el de los movimientos sociales. A los fines de rebasar las
aproximaciones meramente descriptivas sobre el tema, Bringel propone una
interpretación que, a la vez, busca traspasar las fronteras disciplinares y epistémicas. El
objetivo, de esta manera, consiste en “presentar una visión panorámica de los
movimientos sociales latinoamericanos, sensible al contexto cultural, histórico,
económico y sociopolítico regional” (BRINGEL, 2020, p. 211). Más en concreto, el autor se
centra en un conjunto de matrices político-ideológicas –a las cuales define como
“filiaciones político-discursivas relativamente estables que orientan normativamente la
acción colectiva y la política contestataria de los movimientos sociales” (BRINGEL, 2020,
p. 214)–, sometiéndolas a un análisis exhaustivo.
Más preocupada por la renovación del conocimiento científico sobre la realidad
social del continente que por la trayectoria histórica de tal o cual actor, Araujo delinea los
contornos de una crítica general a la modernidad. En su contribución, titulada
precisamente “Una estrategia para las ciencias sociales: Olvidar la modernidad”, la autora
se pregunta por la posibilidad de otra forma de producción de conocimiento social para
la región. De esta manera, Araujo repasa los enfoques que han puesto a la modernidad
en el centro de la escena para, seguidamente, postular que es necesario “olvidar
estratégicamente” (2020, p. 231) a ésta. En efecto, según la autora, la modernidad en
cuanto tal supone “un obstáculo heurístico” (ARAUJO, 2020, p. 241). En último término,
olvidarla significaría entonces “establecer como objetivo central un programa de
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hacen las veces de un legado que, debido a que ya se encuentra entre aquellos de
nosotros con alguna sensibilidad de izquierda, hay que saber heredar. En efecto, “sin la
permanente recreación de los legados, y sin su transformación en nuevos impulsos”, dice
Torres, “América Latina estará condenada a ser, como imaginaba Hegel, la tierra de una
historia ajena” (2020a, p. 19).
A este respecto, resulta oportuno señalar que, sobre todo durante los últimos
años, el pensamiento de Aricó ha despertado un nuevo interés, siendo objeto incluso de
una suerte de redescubrimiento. En ese sentido, algunos han llegado a reconocer cifrado
en él el intento de poner en pie un nuevo marxismo para la región, despojado de toda
clase de garantías últimas y/o finales (CORTÉS, 2015). Jugando con esto, para concluir con
esta reseña podría decirse que los trabajos reunidos en el libro dejan en claro que,
heredando este pensamiento, recomenzando incluso con él, es posible dar paso a una
nueva teoría social para América Latina.
Referencias bibliográficas
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TORRES, Esteban (ed.) Hacia una renovación de la teoría social latinoamericana. Buenos
Aires, CLACSO, 2020, pp. 229-247.
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intelectual. Buenos Aires: Siglo XXI, 2015.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 734-741.
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y elementos preliminares”. En: ______ (ed.) Hacia una renovación de la teoría social
latinoamericana. Buenos Aires, CLACSO, 2020b, pp. 23-55.
Sobre o autor
Santiago M. Roggerone
Doctor en Ciencias Sociales por la Universidad de Buenos Aires. Docente de la misma
universidad e Investigador del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas con sede de trabajo en el Centro de Historia Intelectual de la Universidad
Nacional de Quilmes. E-mail: santiagoroggerone@gmail.com
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REVIEW
VESTING, Thomas. Legal theory and the media of law. Translated by James C. Wagner.
Cheltenham: Edward Elgar, 2018.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License
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Abstract
This review critically assesses the book Legal theory and the media of law, by Thomas
Vesting. The author seeks to present a multidisciplinary conception of jurisprudence,
analyzing the coevolution between legal phenomena, their self-descriptions and the
dissemination media of communication, from oral cultures to computer networks. The
paper posits Vesting’s contribution in the modern path of German jurisprudence and
philosophy of law.
Keywords: Jurisprudence; Legal theory; Legal media.
Resumo
A resenha avalia criticamente o livro Legal theory and the media of law, de Thomas
Vesting. O autor visa a apresentar uma concepção multidisciplinar de teoria do direito,
analisando a coevolução entre fenômenos jurídicos, suas autodescrições e os meios de
disseminação da comunicação, das culturas orais às redes de computadores. O texto
posiciona a contribuição de Vesting na trilha moderna da teoria e filosofia do direito
alemãs.
Palavras-chave: Filosofia do direito; Teoria do direito; Mídia jurídica.
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T
homas Vesting is a Professor at Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt
am Main, Germany, leading the chair of public law, law and theory of media. This
review aims to analyze and present Thomas Vesting’s Legal theory and the media
of law, pointing out (i) how this book fits in the path of modern German
jurisprudence and (ii) how it can contribute for the development of jurisprudential
approaches that connect legal theory to pulsing legal and social problems of today. These
are the two steps of this text.
The reception of Roman law in Germany led to the historical school of jurisprudence
(WIEACKER, 2004 [1952]). It worked to present that law as a system cultivated by erudite
commentators but in deep resemblance with the “true” law innate to the customs of the
German peoples. The system should be built by logic and abstraction from institutions –
the pillars of the abstract system and of the concrete social life.
Savigny (1867 [1840], p. 8-9) says that decisions about individual rights depend
on the reference to general rules of objective law, i.e. of state legislation. The “living root
and convincing force” of this decision on rights are found in the legal relationship, just as
the deepest foundation of law lies in the institutions, whose organic connection gradually
constitutes the system. Beyond the surface of decisions governed by rules, we find the
legal relationships, which are governed by institutions. That is the “truth and life” of law.
The typological and systematic method displays them in their complexity and
concreteness. Theory and practice of law are not separated, since the intuition of the
institution that dominates a specific legal relationship is a mental operation of the same
nature as the construction of the legal system by science. The true sources of law would
be the “internal forces” of a people and its history, and not the arbitrary will of the
legislator.
By making the science of law a “jurisprudence of concepts,” Puchta (1854
[1841]) develops a tension between freedom (law) and necessity (reason). The subject of
law is the free individual, capable of wanting and deciding, regardless of his moral value.
The right, as a freedom, is structured by equality, by indifference in face of diversity. The
legal form abstracts real inequalities, but the latter are immanent to the former: they re-
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enter its content. The systematic and rational construction of the law, the conceptual
pyramid, brings back the need for freedom, the inequality of relations in the equality of
subjects. The law structured in its complexity, available for selections of meaning, is
abstraction and inequality, a gradual connection of different equalities. Once positivized,
the material source of the legal content (culture, people, history) matters little; law’s
validity is formal, self-regulated. Paradoxically, legal freedom and rational necessity
become, by the science of law, formal freedom and material necessity (DE GIORGI, 1998
[1979], p. 47-60).
Savigny transforms the casuistry of Roman law into a systematic theory of
sources and interpretation (VESTING, 2015 [2007], p. 50), founding legal theory as an
auxiliary of dogmatics. Despite Savigny’s resistance to codification, the anachronistic
Romanist law came to be purified as a perfect, enduring and encompassing ensemble,
serving as a model to the positive law of the recently unified German State. The
Pandectists’ work, culminating with the Civil Code of 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch,
BGB), was the apex of that tradition. Its philosophical counterpart, that opened way for
legal positivism, is Kant’s transcendental formalism: Kant (1991 [1797]) presented as an
idea of reason the systematic unity of law, articulated in its doctrines and institutions (see
also WEINRIB, 1987, p. 478-508; WALDRON, 1996). For this reason, a person guides her
will to transcend nature and realize her freedom. The social contract, as an idea of reason
and not a historical fact, has practical reality by obliging the legislator to produce the law
according to a unitary will of the nation, as if each citizen had consented to that general
will.
In Weber’s (1978 [1922], p. 654-658) perception, the formal rationalization of
law was paradigmatic in the work of the jurisprudence of concepts. It occurred in several
dimensions. Firstly, by the analysis and abstraction of legal generalizations: the relevant
reasons for the decision of a concrete case are reduced to some “principles” or legal
propositions. Secondly: substantive legal doctrines are synthesized. Finally, the
propositions and doctrines are systematized. The highly abstract character of law is the
shield of its autonomy. This allows the analytical derivation of legal solutions from a closed
system of propositions.
Before Weber, Marx could observe in the historicist school the form of liberal
law, a perfect expression of social bonds that characterize bourgeois society: ties of
mutual dependence combined with generalized indifference. Indeed, Hegel (1991 [1820])
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had analyzed the historical transition from family-based communities to the modern
liberal market and its law, praising its upcoming evolution into an ethical order based on
the State. Therefore, Marx found a double initial inspiration for his historical materialism:
on the one hand, in the critique of Hegel’s philosophy of right – in which legal forms are
explained “by the so-called general progress of the human mind”, and not by “the
material conditions of life” (MARX, 1904 [1859], p. 11); on the other hand, in the rejection
of the historical school of jurisprudence (represented by Gustav Hugo), with its frivolous
and backward celebration of the rational necessity of some positive institutions (such as
property, marriage or the state constitution), as they were organized in liberal, bourgeois
society (MARX, 1842; see also LEVINE, 1987; KELLEY, 1978).
As Coing (1996 [1989], p. 337-343) observes, Savigny systematized in the
concept of subjective law the axis of an objective law system; subjective right would be
the zone around the person and innate to her in which she manifests the domination of
the world by her will. The domination of the will is expressed in an absolute way in relation
to things (real rights), but it is relative in relation to other people: the bonds of obligation
deal with specific transactions and activities; otherwise they would mean slavery. This
basic concept is maintained by Puchta and Windscheid, who purify the Romanist tradition
and lead it to the “jurisprudence of the concepts” that assists the codification of German
private law and its interpretation.
Only decades after this codification alternative currents develop, which observe
subjective right not as a sphere of innate will, but as a variable configuration from the
imperative order of objective law (Thon), or as a legally protected interest (Jhering) and,
to this extent, to be considered alongside other competing interests and purposes. At the
same time that the scope of the category of subjective rights (e.g., encompassing
immaterial assets) was being expanded, its absolutecontours immanent to the individual
were being dissipated. The “jurisprudence of interests” (see SCHOCH, 1948) rocked the
formalistic scene, turning social, economic and political considerations into a subject
matter of legal reasoning.
According to De Giorgi’s (1998 [1979], p. 21-22) critical assessment of the
evolution of jurisprudence in Germany, Kelsen concludes the formalist and positivist
project of 19th century “jurisprudence of concepts”, now giving full epistemological basis
(through Kantian transcendental philosophy of theoretical reason) for the understanding
of law as an autonomous abstract system, whose starting point is the (ideal) identification
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of existence and validity. However, although his “pure science” could legitimize law as
simply formal validity, it could no more inform law as a concretization of meaning through
a distinctively legal reasoning. The indeterminacy that Kelsen concedes in the process of
decision-making (by the subject authorized by a norm) undermines the certainty that 19th
century doctrinal-formalists assured through their dogmatic assumptions about facts and
value.
The following tendencies in the 20th century have been a rebirth of natural law,
the merger of jurisprudence and a constitutional theory emphasizing fundamental rights
or the reconceptualization of jurisprudence through sociological perspectives, such as
those of Habermas and Luhmann. Indeed, the latter way can be considered as the answer
to the anxiety expressed in the late 20th century by German legal philosophers: “The legal
science and the legal system are not ready to have a scientific theory, to the methodology
of social (or, better: democratic) sciences, and don’t have their own direction […]”
(WIETHÖLTER, 1991 [1968], p. xviii).
2. Vesting’s contribution
With his Legal theory and the media of law, Thomas Vesting (2018) clearly recasts this
point about basing jurisprudence on social sciences. Among other references, this
jurisprudential approach is conceptually unified through a heterodox adoption of
Luhmann’s systems theory. Luhmann’s project was to provide a general theory of society
and, within it, a sociology of law that recognizes the positivity of modern law, i.e. its
variability and evolution. However, this theory is being rephrased to serve a series of other
intellectual projects, such as the more philosophical and normative statements of a
‘critical systems theory’ (see FISCHER-LESCANO, 2012; AMATO; BARROS, 2018) and, on
the other hand, empirical socio-legal studies (see CAMPILONGO; AMATO; BARROS, 2021).
Thomas Vesting is one of the leading proponents of taking that conceptual apparatus in
order to build a contemporary theory of law (see VESTING, 2015 [2007]).
The main Luhmannian influence on Legal theory and the media of law is
Luhmann’s (2012 [1997], cap. 2) conceptualization on “dissemination media”. Alongside
“symbolically generalized communication media”, such as power, money, truth and
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radicalize the idea of “an infinite loop of an unceasing deferral” that was latent in the
Luhmannian concept of a system, but not sufficiently “divorced from the tradition of
organological thought […] employed by Kant, Hegel, Savigny, Puchta and others to
describe and construct a hierarchical body of laws” (VESTING, 2018, p. 20-21).
Vesting’s plan is also to radicalize the “groundlessness” of legal validity that
Kelsen tried to contain through the transcendental supposition of a “fundamental norm”
– a last attempt to maintain the view of a hierarchical and unified legal order. In Vesting’s
(2018, p. 24-25) judgment, that epistemological operation worked to substitute the idea
of a God’s directive and took course on the analytical positivism of 1900’s Vienna, serving
to escape metaphysics and ontology, but in fact remained “antithetically fixated” to them.
Therefore, Vesting (2018) doesn’t present a general theory of law as one could find in
Kelsen (1967 [1960]; 1949 [1945]), with his definitions of legal norm and legal order,
sanction and validity.
For Vesting (2018, p. 22-23), law’s authority and justification rests ultimately on
“a diffuse (center-less) rationality” and “[t]he fluid combinatorial network of law thus
inevitably reveals another side of itself that cannot be controlled by law itself” – the
distance between legal communications and their structure (expectations, norms) is
inevitably marked on the moment of decision-making. Therefore, this pure contingency
of legal content, partially expressed in Kelsen and Luhmann, is emphasized as having its
last constraint only on “the shared knowledge of a practical culture”. This commitment to
particularism takes away the project of “a general theory of law”, and advances the
merger of legal theory, jurisprudence and legal history with other disciplines. Juridical
modes of thought and concepts such as duty and responsibility, validity and normativity
are taken solely as variables to be understood within a given (provincial) legal culture.
After going through spoken language, writing and then printed books, Legal
theory and the media of law arrives to its fourth and last part, which proposes to focus on
the law of a society based on computer networks. In fact, it emphasizes the changes of
the modern liberal constitutions coming out of a printing culture, comparing these
institutions – like the constitutions – in the setting of a digital order. Vesting (2018, ch. 18)
for instance shows how modern constitutions emerged as a charter, a single document
representing the unity of the sovereign nation-State, but now their equivalents – such as
the transnational orderings of human and digital rights – can only evolve as fragmented
and sectoral regulations (see TEUBNER, 2012), with multiple links and mediations among
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