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esferas públicas: tais

agremiações são cada vez mais fragmentárias e contingentes, alinhavadas de maneira


ad hoc em torno de uma determinada pauta. 286

pg 144 Sumário
pg 155

APRESENTAÇÃO
Apresentação / Editorial: CRÍTICAS RADICAIS AO PODER DE PUNIR: como
pensar abolicionismos em tempos de expansão punitiva?
Revista Direito e Práxis, Laboratório de Críticas e Alternativas à Prisão 1-15

ARTIGOS
GÊNESE ANTICOLONIAL DO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
Carlos Frederico Marés de Souza Filhov PRÁXIS EM VÍDEO 16-47

A TEORIA DOS DOIS DEMÔNIOS: resistências ao processo brasileiro de


justiça de transição
David Barbosa de Oliveira, Ulisses Levy Silvério dos Reis 48-76

PODERÁ O DIREITO SER DECOLONIAL?


David Francisco Lopes Gomes, Rayann K. Massahud de Carvalho 77-101

A EMERGÊNCIA DO NOVO CORONAVÍRUS E A “LEI DE QUARENTENA” NO


BRASIL
Deisy de Freitas Lima Ventura, Fernando Mussa Abujamra Aith, Danielle Hanna
Rached 102-138

LINGUAGEM E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS JURÍDICOS: estudo comparado


entre realismos jurídicos
Eduardo Carlos Bianca Bittar PRÁXIS EM VÍDEO 139-167

SOLIDARIEDADE OU INTERESSE? Reflexões sobre a cooperação no regime


internacional dos refugiados
Rosilandy Carina Cândido Lapa 168-196

TEMPO DA CONSTITUIÇÃO E PONTE PARA O FUTURO: uma análise a partir


da teoria crítica da aceleração social
Ernane Salles da Costa Junior, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira 197-236

INCLUSÃO DA INTERSECCIONALIDADE NO ÂMBITO DOS DIREITOS


HUMANOS
Joana Stelzer, Gabriela de Moraes Kyrillos 237-262

PARA UMA SOCIOLOGIA DA RESSIGNIFICAÇÃO


João Paulo Bachur 263-295

A CAPACIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA APÓS A


CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA:
análise das soluções propostas no Brasil, em Portugal e no Peru
Joyceane Bezerra de Menezes, Ana Beatriz Lima Pimentel, Ana Paola de Castro
e Lins 296-322

FORJANDO MERCADOS COM FERRAMENTAS JURÍDICAS: uma agenda de


pesquisa sociojurídica
Pedro Salomon Bezerra Mouallem 323-352

COVID-19: análise crítica da distribuição constitucional de competências


Rafael Da Cás Maffini PRÁXIS EM VÍDEO 353-378

Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, V.12, N. 1, 2021


TEORIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL: apontamentos desde uma perspectiva
unitária das relações sociais capitalistas
Rhaysa Sampaio Ruas da Fonseca 379-415

ELEMENTOS PARA UMA ANÁLISE DA FORMAÇÃO DAS POLÍTICAS DE BEM-


ESTAR NA GRÃ-BRETANHA A PARTIR DA TEORIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL
Thiago Romão de Alencar 416-443

DOSSIÊ
THEY’RE TALKING ABOUT PENAL ABOLITION: The urgency of re-imagining
different paths as alternatives to the criminal justice system
Jehanne Hulsman, Diogo Justino 444-471

PRISIÓN GLOBAL: dicotomías del encierro en la actualidad


Diana Restrepo Rodríguez PRÁXIS EM VÍDEO 472-496

UMA IMAGINAÇÃO ANTICOLONIAL: a epistemologia do abolicionismo penal


em torno dos sentidos da violência
Vitória de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno, Rômulo Fonseca
Morais 497-523

AS PARTICULARIDADES FUNDANTES DO PUNITIVISMO À BRASILEIRA


Monique de Carvalho Cruz 524-547

PERMANÊNCIAS ESTRUTURAIS E AUSÊNCIA DE RUPTURAS NA POLÍTICA


CRIMINAL E DE SEGURANÇA NOS GOVERNOS DO PARTIDO DOS
TRABALHADORES (2003-2016)
Carla Benitez Martins 548-579

(SOBRE)VIVÊNCIAS NEGRAS: desafios da cidadania diante da violência


Fernanda Lima da Silva, Rodrigo Portela Gomes, Maíra de Deus Brito
PRÁXIS EM VÍDEO 580-607

PARA ALÉM DO “MUNDO JURÍDICO”: um diálogo com as equipes


multidisciplinares de Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica
Marilia Montenegro Pessoa de Mello, Fernanada Cruz da Fonseca Rosenblatt,
Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros 608-641

OS 30 ANOS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E OS


HORIZONTES POSSÍVEIS A PARTIR DA JUSTIÇA RESTAURATIVA: influxos
abolicionistas em tempos de expansão punitiva a partir da extensão
acadêmica
Ellen Rodrigues 642-686

TRADUÇÕES
AS FISSURAS E A CRISE DO TRABALHO ABSTRATO
John Holloway 687-706

O CONCEITO DE AUTONOMIA NO MARXISMO CONTEMPORÂNEO


Massimo Modonesi 707-733

RESENHA
UNA NUEVA TEORÍA SOCIAL PARA AMÉRICA LATINA
Santiago Martín Roggerone 734-741

GERMAN JURISPRUDENCE IN THE 21ST CENTURY: law and its media


Lucas Fucci Amato PRÁXIS EM VÍDEO 742-752

Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, V.12, N. 1, 2021


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Qualis A1 - Direito CAPES

Apresentação
Março 2021

Iniciamos 2021 com nova energia, mas ainda tendo que enfrentar velhos desafios. A
pandemia do vírus Covid completa um ano e ainda não temos em nosso horizonte
previsões tão auspiciosas como desejaríamos sobre o fim da crise sanitária mundial. Nos
últimos anos, lidamos, nós brasileiras e brasileiros, com uma onde de crescente
autoritarismo político e polarização social. Múltiplas crises se relacionam no nosso
cotidiano deixando, em muitos casos, a arena jurídica como um espaço de lutas por
alternativas e tentativas de mudanças dessa realidade. Munidos desse potencial,
apresentamos o novo e primeiro número de 2021 da Revista Direito e Práxis (Vol 12, N. 1,
2021 – dez-mar).
Comunicamos, com essa nova edição, uma mudança em nosso editorial. A partir
desse número, a seção geral de artigos contará com quatorze artigos ao invés de doze,
com o objetivo de dar mais espaço aos muitos e excelentes artigos recebidos e avaliados
para nosso periódico. Se há algo que o desafiador ano de 2020 nos mostrou, é que a
produção científica brasileira, também no campo dos estudos sócio-jurídicos de perfil
crítico, não perdeu qualidade. Muito pelo contrário, observamos sua multiplicação. Nessa
edição, trazemos artigos que tratam dos desafios regulatórios relacionados com a
pandemia, com especial destaque para os artigos de Deisy de Freitas Lima Ventura,
Fernando Mussa Abujamra Aith, Danielle Hanna Rached, “A emergência do novo
coronavírus e a “lei de quarentena” no Brasil” e de Rafael Da Cás Maffini, “COVID-19 e
Distribuição Constitucional de Competências”. Além disso, essa edição apresenta textos
no campo dos estudos decolonais, teoria da reprodução social, direito internacional dos
regugiados, direitos das pessoas com deficiência, justiça de transição e teoria do direito.

Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 1-15.
Revista Direito e Laboratório de Críticas e Alternativas à Prisão
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Na seção de traduções, contamos com contribuições de traduções para português


dos textos “As fissuras e a crise do trabalho abstrato” de John Holloway e “O Conceito de
autonomia no marxismo contemporâneo” de Massimo Modonese. Aproveitamos para
agradecer os tradutores pela confiança em nossa publicação e pelo envio dos manuscritos
traduzidos. Como de praxe, também trazemos duas resenhas de obras relevantes para o
campo da teoria social latino-americana e brasileira, além da história do direito.
Nosso primeiro Dossiê conta com uma seleção rigorosa de artigos realizada pelas
pesquisadoras e pesquisadores do Grupo de Pesquisa “Laboratório de Críticas e
Alternativas à Prisão”, o qual conta com membros da UERJ, PUC-Rio e UFF. Os artigos do
dossiê abordam, a partir de uma perspectiva interdisciplinar e crítica, os limites do poder
de punir e do expansionismo punitivo bem como os potenciais do abolicionismo. Os
artigos do dossiê dialogam com abordagens pós-colonais, do campo da teoria social
brasileira, da criminologia crítica e dos estudos sobre justiça restaurativa. Esse dossiê
reforça as pontes entre o campo das pesquisas sócio-jurídicas e da criminologia crítica,
que também refletem uma linha central no âmbito de nossa publicação.
Relembramos que as políticas editoriais para as diferentes seções da Revista
podem ser acessadas em nossa página e que as submissões são permanentes e sempre
bem-vindas! Agradecemos, como sempre, às autoras e aos autores, avaliadoras e
avaliadores e colaboradoras e colaboradores pela confiança depositada em nossa
publicação.

Boa Leitura!
Equipe Direito e Práxis

Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 1-15.
Revista Direito e Laboratório de Críticas e Alternativas à Prisão
DOI: 10.1590/2179-8966/2021/57203 |ISSN: 2179-8966
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Críticas radicais ao poder de punir: como pensar


abolicionismos em tempos de expansão punitiva?

Laboratório de Críticas e Alternativas à Prisão. E-mail: criticasealternativasaprisao@gmail.com.

Membros:
Ana Luisa Barreto, State University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil. E-mail:
analuisalabarreto@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3358-8843;

Bruna Portella, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Brazil. E-mail: brunaportella@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2906-6161;

Diogo Justino, Vale do Cricaré College, São Mateus, Espírito Santo, Brazil. E-mail:
diogopjs@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0313-2482;

Fernanda Ferreira Pradal, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brazil. E-mail: fernandapradal@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3184-
552X;

João Guilherme Roorda, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Brazil. E-mail: joaolroorda@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5525-8186;

Lucas Vianna Matos, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
E-mail: lucasviannamatos@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5880-7673;

Renata Saggioro Davis, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brazil. E-mail: renatasdavis@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1076-500X;

Tamires Maria Alves, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brazil. E-mail:
tamiresmalves@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2608-7015;

Thayla Fernandes da Conceição, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brazil.
E-mail: thaylafc@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8477-879X.

Herman Melville1 nos trouxe a clássica história de um curioso e solitário anti-


herói, Bartleby, um escrivão que, diante das repetidas demandas de ordem do seu chefe,
um advogado, responde, simples e absolutamente, “Eu prefiro não”. O eco do gesto

1MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão: Uma história de Wall Street. Tradução de Irene Hirsch.
São Paulo: Cosac Naify, 2005.

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Revista Direito e Laboratório de Críticas e Alternativas à Prisão
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inesperado, e a insistência por ele, tumultua o cenário bucólico de acordos comuns e


naturalizados, e deixa uma inspiração simbólica para, por exemplo, Agamben 2
desenvolver uma reflexão crítica ao princípio da autoridade, em tom assemelhado ao
deixado por Marcuse em sua reflexão sobre “a grande recusa”, e para Deleuze 3 refletir
sobre a geração de furos nas estruturas de comunicação e linguagem, e sobre a geração
de espaços de complexidade para além de fórmulas ou respostas com determinações
imediatas.
Há quem questione o lugar da dita radicalidade – adjetivo usualmente implicado
com estereótipos e más compreensões – em meio à uma conjuntura de terra arrasada.
Sem ignorar que a imagem-guia do momento em que vivemos é a da ampliação dos
capitais típicos de uma economia política da dor, e sem ignorar que a bio/necropolítica e
a as reciclagens históricas do macabro são marcas centrais da governamentalidade nos
tristes trópicos, sim, aqui está, mais uma vez, uma contribuição coletiva que opta não pela
via da abertura de concessões às expectativas hegemônicas, mas sim, pela via do “não”,
pela via das recusas, pela via da afirmação de percursos sentipensantes abolicionistas -
estes consagrados como radicais por flertarem com indeterminações, com
multiplicidades, e por descartarem cartilhas e fórmulas cujo único produto de sucesso são
justamente as atrocidades que produzem também a necessidade de sua extinção.
O advento do Laboratório de Críticas e Alternativas à Prisão em meados de 2018
foi energizado pela percepção comum entre os jovens pesquisadores envolvidos de que
o encarceramento e os dispositivos de controle correlatos se constróem e se sustentam
historicamente à base do reforço de estigmas e de violências que se direcionam com mais
ênfase a populações específicas - estruturalmente, jovens negros. Este trágico consenso
direciona nossas trajetórias individuais e nosso pensar-fazer coletivo à dimensão da
afirmação crítica da vida, da pluralidade, e das existências em multiplicidade e no além-
muros. Tão impiedoso o cenário oposto, tão facilitada a conjuração, para os
abolicionismos, da pecha da radicalidade utópica e inoperável, que ensurdece o chamado
às linhas de fuga, e tão facilitado, ainda, o encantamento completo ou parcial pelas
fórmulas apresentadas por autoridades especializadas, personagens autointituladas
detentoras do monopólio prático da resolubilidade, ou, em outras palavras (em nem
sempre ditas palavras), da conservação das novidades médias.

2 AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, ou da contingência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.


3 DELEUZE, Gilles. Bartleby, ou a fórmula. In: Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.80-103.

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Na genealogia do surgimento de grupos abolicionistas, estes se empenharam


entre diligências teóricas e práticas, ou, mais ainda, na extirpação desta diferenciação tão
instrumentalizada por tentativas deslegitimadoras. Abolicionistas (penais, prisionais, das
culturas repressivas, do imaginário punitivo, etc.) compuseram grupos como KRUM,
KRIM, Partido dos Panteras Negras, KRAK, GIP, Nu-Sol, reunindo pesquisas, perspectivas,
atitudes, projetos políticos, muitas vezes tendo diante de si a ascensão e intensificação
dos quadros de guerra vinculados a práticas autoritárias e punitivas. Inevitável a lida
geracional desafiadora com as rupturas e continuidades dos tempos em que estamos
imersos, havendo a possibilidade de nos movimentarmos em contrapelo, em sentido
profanador.
Nos últimos tempos, observamos atentamente a reascensão de ideias e práticas
autoritárias e neofacistas, sempre racistas e xenofóbicas, ao redor do mundo. Trump,
Bolsonaro, Duterte, Vox e Le Pen são alguns dos conhecidos porta-vozes desses
movimentos que se articulam globalmente. Para compreender o momento em que
vivemos é indispensável olhar para esse fenômeno. São muitas nuances para cada caso,
mas as demandas por ordem, punições, aumento de penas, segurança, armamento
pessoal e repressão estão na base da ascensão da extrema-direita no mundo. No caso
brasileiro em particular, o discurso punitivo sempre foi central na figura de Jair Bolsonaro,
sendo, portanto, elemento básico para a compreensão de sua ascensão política. É
impossível compreender a ascensão do neofascismo brasileiro sem colocar em questão
os discursos e práticas racistas e autoritárias de segurança pública, repressão policial,
encarceramento e extermínio, que sempre estiveram presentes em nossa sociedade.
Sabe-se, desde Georg Rusche 4, que os índices de encarceramento e utilização
do aparato penal do Estado variam de acordo com as políticas econômicas e estruturas
sociais de determinado contexto histórico, e que não se compreende a economia sem a
prisão e a prisão sem a economia. Historicamente, os períodos de intensa expropriação
dos meios de subsistência são marcados pela elaboração e aplicação de uma “legislação
sanguinária”. O exemplo mais contemporâneo é o do período de consolidação do
neoliberalismo, que coincide com a explosão das taxas de encarceramento: a contraparte
da minimização do Estado Social é a maximização do Estado Penal. No Brasil, o racismo,
que funda o sistema penal como desdobramento institucional de controle dos corpos

4RUSCHE, Georg. Labour market and penal sanction: thoughts on the sociology of criminal justice
(1933). Tradução de Gerda Dinwiddie. Crime and social justice, n. 10, p 2-8, 1978.

Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 1-15.
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negros, encontra no neoliberalismo a sofisticação das práticas de controle social


estendida a toda uma massa de indivíduos lançada à progressiva informalidade do
mercado de trabalho, indissociada da criminalização dos seus modos de vida e da gestão
diferenciada das ilegalidades5 . Nesse sentido, não é mera coincidência que as políticas de
austeridade trazidas pelas reformas trabalhista e previdenciária venham acompanhadas
da aprovação do projeto anticrime, reforçando a dinâmica entre o racismo, a consolidação
de uma política econômica de racionalidade neoliberal e a ainda maior expansão do poder
punitivo no país que tem a terceira maior população carcerária do mundo e o maior
número de execuções extrajudiciais por agentes do Estado.
Se cada conjuntura histórica terá sua própria demanda por ordem, a articulação
de argumentos neoliberais com argumentos policiais já nos deu a tônica do que veríamos
no governo Bolsonaro: um paradoxo perfeito se observarmos que a crescente demanda
social por segurança pública é proporcional à crescente insegurança produzida pelo
capitalismo contemporâneo6 . Por outro lado, o período progressista (2003-2016) não
rompeu com o paradigma punitivista, ao contrário, produziu a expansão do Estado Penal,
com aumento do encarceramento, ocupação militarizada de favelas, recrudescimento das
operações policiais produtoras de morte, repressão a manifestações etc. Sem romper
com o paradigma da política criminal de controle dos indesejáveis, restaram intactas as
bases que sustentam o bolsonarismo atual e sua necropolítica7, a despeito dos muitos
alertas dos movimentos sociais, de setores ligados à criminologia crítica e ao
abolicionismo penal e de algumas organizações de direitos humanos.
O singelo esforço realizado pelo LabCap espelha-se e une-se, portanto, à energia
destes propósitos críticos, bem como das iniciativas anteriores que lhe inspiram. Em
março de 2019, o Laboratório realizou o I Seminário Internacional Críticas Anti Punitivas
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Pontifícia Universidade Católica
(PUC-Rio), com a presença de pesquisadores e pesquisadoras de todo o território
brasileiro e também de outros países. Diante da execução do evento, foi almejada a
criação de um dossiê que desse vazão aos debates ali elaborados e a outras conversações

5 FLAUZINA, Ana Luiza. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado
brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
6 BATISTA, Vera Malaguti. Crime e guerra no Brasil contemporâneo, 2019.
7 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & ensaios, n. 32, 2016.

Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 1-15.
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correlatas, desejo que hoje aqui se materializa, nesta parceria com a Revista Direito e
Práxis.
Assim sendo, o presente dossiê “Críticas radicais ao poder de punir: Como
pensar abolicionismos em tempos de expansão punitiva?” busca traduzir um pouco da
multiplicidade das perspectivas abolicionistas, bem como de seus tensionamentos, e
reafirmar sua necessidade para além dos freios e contrapesos impostos pela conjuntura
ou, talvez, justamente pela existência deles. O convite surge do desafio e compromisso
de formular críticas radicais ao poder de punir e reflexões sobre as pautas abolicionistas,
tarefas especialmente relevantes na conjuntura atual. Estas perspectivas confrontam o
acúmulo de violências que fundam e realimentam a formação social brasileira, nos seus
âmbitos institucionais-estatais, mas também privados, partem das violências estruturais
no âmbito do poder punitivo em suas dimensões de raça, gênero, sexualidade e/ou
territorialidade e, também, enveredam-se pelas pautas abolicionistas da pena, da prisão
e da polícia, a partir da conjuntura atual.
Abrimos o deque de manuscritos com o artigo de Jehanne Hulsman e Diogo
Justino “They´re talking about penal abolition: The rise of authoritarianism and the
urgency of reimagining different paths as alternatives to the criminal justice system”.
Neste, os autores, a partir de uma elaboração que apresenta dilemas globais atuais e
históricos com relação à ascensão do autoritarismo (considerando, em especial, Europa
central e América Latina), reacendem elementos centrais a perspectivas abolicionistas
diversas, ressaltada a de Louk Hulsman, referência das mais fundamentais para todos nós
e homenageado, tanto quanto sua filha (co-autora do artigo), nas entrelinhas do evento
mencionado e deste consequente dossiê.
O artigo seguinte, “Prisión global: las dicotomias del encierro em la actualidad”
também se trata de uma contribuição de autoria estrangeira. Diana Rastrepo Rodriguéz,
pesquisadora e professora da Universidad de San Buenaventura Cali na Colômbia, traz o
debate a respeito dos elementos dicotômicos que existem no encarceramento na
contemporaneidade. Na sua argumentação destaca como o castigo continua se
comportando como ferramenta para o controle social seletivo enquanto dissocia os
sujeitos entre bons e maus. A autora revela como a difusão do castigo pedagógico permite
que essas práticas violentas possam se manter vigentes na contemporaneidade, sendo
capazes inclusive de criar novos espaços segregacionistas como a ideia de uma prisão
global.

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A terceira contribuição aqui presente é o artigo “Uma imaginação anti-colonial:


a epistemologia do abolicionismo penal em torno dos sentidos da violência” de Vitória
de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno e Rômulo Fonseca Morais, membros
do Grupo Cabano de Criminologia, do Pará. Com uma construção epistemológica sobre
abolicionismos, narram os autores que “violência” é uma categoria-senha para a leitura
do mundo, mas, também, para a leitura de fissuras possíveis desse mesmo mundo, e os
abolicionismos, em sua pluralidade, com suas bordas, margens e beiras linguísticas e
estratégicas, auxiliam neste movimento. A marca do movimento da cabanagem, ocorrido
no século XIX, na antiga Província do Grão-Pará, seus significados e símbolos, fica como
um fio condutor deste debate. Os autores provocam, ainda, os minimalismos e
reformismos em seus limites legitimadores.
Monique Cruz (Justiça Global e UFRJ) é a autora responsável pelo quarto
trabalho apresentado nesta coletânea, intitulado “As particularidades fundantes do
punitivismo à brasileira”. Neste artigo, a autora compartilha um pouco de sua vasta
experiência em unidades prisionais na cidade do Rio de Janeiro e constrói uma provocação
sobre a necessidade de perspectivas abolicionistas se entrelaçarem com as
especificidades das lutas no Brasil. A discussão sobre a formação socioespacial brasileira
e exemplos de lutas empreendidas por mulheres negras fundamentam a provocação.

Também temos a contribuição de Carla Benitez (Universidade Federal de Jataí)


com o artigo “Reversão neocolonial e política criminal nos governos do Partido dos
Trabalhadores: permanências e carência de rupturas sob o social-liberalismo”. A autora
discute sobre as políticas punitivas implementadas pelo Partido dos Trabalhadores
durante a sua condução na presidência (2003-2016) a fim de elucubrar como diante da
primeira gestão social-liberal práticas de recrudescimento penal e militarização da
segurança pública continuaram a ser implementadas. Dito isso, aprofunda o debate a
respeito do capitalismo patriarcal e racista que mantém ávidas as funções segregadoras
da pena ainda que num período econômico mais estável. A relação de país periférico,
dependente e desigual se apresenta como estrutural para as perenizações coloniais e
racistas edificarem-se também nesse período histórico.
O sexto trabalho aqui publicado é de autoria de Rodrigo Portela Gomes,
Fernanda Lima da Silva e Maíra de Deus Brito, do Coletivo Maré, da Universidade de
Brasília, e leva o título de “(Sobre)vivências negras: desafios da cidadania diante da

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violência”. Neste artigo, a preocupação central é com as mediações raciais feitas pelos
estudos sobre violência no Brasil, e com as contradições legitimantes presentes inclusive
em estudos que se propõem críticos com relação à problematização racial. Os autores
desvelam matrizes brancas neste campo de discussão, mobilizam conceitos tais como
“cidadania negra” e elegem violências praticadas por agentes do Estado brasileiro no
contexto da pandemia como eventos condutores da reflexão proposta.
No artigo “Para além do “Mundo jurídico”: um diálogo com as equipes
multidisciplinares de Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica”, as autoras Marília
Mello, Carolina Salazar e Fernanda Rosenblatt do Grupo Asa Branca de Criminologia
(Pernambuco) discutem sobre alternativas viáveis ao sistema punitivo para os autores de
violência doméstica, em sete capitais brasileiras. A proposta do trabalho é a de mapear
nos espaços especializados - inaugurados há pouco mais de uma década - quais
transformações foram desenvolvidas pelo Sistema de Justiça Criminal para lidar com os
que praticaram violência doméstica. O intuito dessa reflexão se edifica na análise das
conversas tidas a partir dos grupos de pesquisa empírica e também das percepções
extraídas de entrevistas com magistrados que atuam na área.
O dossiê encerra suas contribuições com o artigo de autoria da professora Ellen
Rodrigues da Universidade Federal de Juiz de Fora intitulado como “Os 30 anos do
Estatuto da Criança e do Adolescente e os horizontes possíveis a partir da Justiça”.
Destaca-se a contribuição da autora nas reflexões sobre a Justiça Juvenil brasileira a partir
da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. A análise realizada pela
autora se sustenta tanto de forma empírica, através dos grupos NEPCrim e Além da Culpa,
quanto através da utilização de bibliografia especializada sobre Justiça Restaurativa. As
considerações do trabalho versam sobre os desafios, as contribuições e as perspectivas
futuras da aplicação da JR a fim de promulgar práticas libertárias avessas ao punitivismo
político implementado do Brasil-colônia à contemporaneidade.
Com estas provocações, percebemos que a particularidade de se desenvolver
posturas abolicionistas é perceber não apenas o cárcere e a justiça penal, mas sim, todo
o sistema punitivo, sociabilidades incluídas, como “situações-problema” desdobráveis em
níveis macro/estrutural e micro/relacional. A relação com a lógica hegemônica e seu
caldeirão de dispositivos não é de desconsideração inconsequente, mas sim, de
complexificação, de críticas, revelações e tensionamentos. É importante destacar,
também a partir da energia deixada por este conjunto de trabalhos, que não há uma

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essência abolicionista una, unívoca e inequívoca; do contrário, o próprio campo


abolicionista, investido enquanto percurso, se constitui por disputas e difíceis diálogos
que lhe são fundamentais. Não há uma postura de pretensão universalizante que busque
totalizar todas as suas características, servindo o campo, no fim, como um “espelho
invertido” dos códigos e suas estruturas institucionalizantes. A força desta possibilidade
está nas aberturas comprometidas, no apontamento de percursos em concretude, no
reforço de sensibilidades outras e suas correlações reflexivas e práticas.
As soluções repressivas adotadas imediatamente depois dos conflitos - e a
própria fixação na ideia de “solução a qualquer custo”, cuja fonte está no vício maior da
modernidade por eficácia, eficiência, progresso e júbilo moralizante e civilizatório - são
um dos efeitos danosos dos processos históricos político-criminais, sendo um mecanismo
que paralisa e incapacita a sociedade de enxergar-se e posicionar suas estruturas e
relações em outros cenários, inclusive cenários que indiquem o desfazimento de muitas
destas. O processo de criminalização dos sujeitos reforça, perversa e ironicamente, em
totalidade aquilo a que se opõe, e distribui efeitos destrutivos diretos tanto para quem
sofre do castigo quanto para familiares, amigos, amores, para trabalhadores envolvidos
nas instituições e, por fim, para toda a comunidade; é genérica a partilha das ruínas, dos
escombros. Por isso, as possibilidades abolicionistas se propõem sobretudo a nos
convidar para considerar outras maneiras de lidar com conflitos, respeitando sua
complexidade, e, inclusive, deslegitimando alguns dos pilares da linguagem
marginalizante presente nos relatórios penais, tais quais os conceitos de “criminalidade”,
“delito”, “criminoso”, “periculosidade”, “gravidade”, “culpabilidade” e dicotomias
engendradas como “bom versus mau”.
Este dossiê se junta à longa agenda que visa práticas de liberdade e restauração
em detrimento da pedagogia do castigo. Com o cuidado de visualizar que a extinção das
prisões não é o ponto final, mas sim, um ponto de exclamação em meio a um mar de
tensionamentos, reciclagens e instrumentalizações possíveis por parte da sociedade de
controle, falamos aqui coletivamente por outras sensibilidades, outras estruturas
relacionais, outras perspectivas sobre responsabilizações e conflitos humanos.
Entregamos aqui uma pequena contribuição para este percurso de crítica à prisão e a
qualquer monumento de cultura repressiva, todos eles monumentos de barbárie,
pautados, como nos mostram os trabalhos aqui presentes, no medo branco, nas
demandas hegemônicas por ordem, nas continuidades históricas autoritárias. Falamos,

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desde um distanciamento para enfrentamento, pela fertilidade, pela cor-agem, pela


inventividade emancipatória, por outras formas de demarcar um preferível não, um
preferível sim.

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Expediente desta edição

Editores:
Dr. José Ricardo Cunha, UERJ, Brasil
Dra. Carolina Alves Vestena, Universität Kassel, Alemanha

Editora executiva
Bruna Mariz Bataglia Ferreira, PUC-Rio, Brasil

Comissão Executiva
Caroline Targino, UERJ, Brasil
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Conselho Editorial
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Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal
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Dr. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, UFMG, Brasil
Dr. Paulo Abrão, PUC-Rs e UCB, Brasília, Brasil
Dra. Rosa Maria Zaia Borges, PUC-RS, Brasil

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Dra. Sara Dellantonio, Università degli Studi di Trento, Itália


Dra. Sonia Arribas, ICREA - Univesidade Pompeu Fabra de Barcelona, Espanha
Dra. Sonja Buckel, Kassel Universität, Alemanha
Dra. Véronique Champeil-Desplats, Université de Paris Ouest-Nanterre, França

Avaliadores
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Argentina; Alexandra Bechtum, Universidade de Kassel, Alemanha; Dr. Alexandre Costa
Araújo, UNB, Brasil; Dr. Alexandre Mendes, UERJ, Brasil; Dr. Alexandre Veronese, UNB,
Brasil; Alice Resadori, UFRGS, Brasil; Dr. Alvaro Pereira, USP, Brasil; Dra. Ana Carolina
Chasin, UNIFESP, Brasil; Dra. Ana Lia Vanderlei Almeida, UFPB, GPLutas - Grupo de
Pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Socias; Dra. Ana Paula Antunes Martins, UnB, Brasil;
Antonio Dias Oliveira Neto, Universidade de Coimbra, Portugal; Assis da Costa Oliveira,
UFPA Brasil; Dra. Bianca Tavolari, USP, Brasil; Bruno Cava, UERJ, Brasil; Bruno Alberto
Paracampo Mileo, Universidade Federal do Oeste do Pará, Brasil; Bryan Devos, FURG,
Brasil; Dra. Camila Baraldi, USP, Brasil; Dra. Camila Cardoso de Mello Prando, UnB, Brasil;
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Benitez Martins, UFG, Brasil; Dra. Carolina Medeiros Bahia, UFSC, Brasil; Dra. Cecilia Lois
(in memoriam), UFRJ, Brasil; Dr. Cesar Baldi, UnB, Brasil; Dr. Cesar Cerbena, UFPR, Brasil;
Dra. Clarissa Franzoi Dri, UFSC, Brasil; Dra. Claudia Roesler, UNB, Brasil; Dr. Conrado
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Francisco Lopes Gomes, UFMG, Brasil; Dra. Danielle Rached, Instituto de Relações
Internacionais – USP, Brasil; Diana Pereira Melo, UNB, Brasil; Diego Alberto dos Santos,
UFRGS, Brasil; Dr. Diego Augusto Diehl, UNB, Brasil; Dr. Diego Werneck Arguelhes, FGV
DIREITO RIO, Brasil; Dr. Diogo Coutinho, USP, Brasil; Dr. Eduardo Magrani, EIC, Alemanha;
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Socha, USP, Brasil; Eduardo Raphael Venturi, UFPR, Brasil; Eloísa Dias Gonçalves,
Panthéon-Sorbonne, França; Emília Merlini Giuliani, PUCRS, Brasil; Dr. Ezequiel Abásolo,
Universidad Católica Argentina, Argentina; Dr. Emiliano Maldonado, UFSC, Brasil; Dra.
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Floriano, UFRGS, Brasil; Fabíola Fanti, USP, Brasil; Dr. Felipe Gonçalves, CEBRAP, Brasil;
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UniLavras, Brasil; Felipo Pereira Bona, UFPE, Brasil; Fernando Perazzoli, Universidade de
Coimbra, Portugal; Dra. Fiammetta Bonfligli, Universidade Lasalle, Brasil; Dr. Flávia
Carlet, Universidade de Coimbra, Portugal; Dr. Flávio Bortolozzi Junior, Universidade
Positivo, Brasil; Dr. Flávio Prol, USP, Brasil; Dr. Gabriel Gualano de Godoy, UERJ, Brasil;
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Giscard Farias Agra, UFPE, Brasil; Dra. Gisele Mascarelli Salgado, Faculdade de Direito de

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São Bernardo do Campo - FDSBC, Brasil, Dr. Gladstone Leonel da Silva Júnior, UNB, Brasil;
Dr. Gustavo César Machado Cabral, UFC, Brasil, Dr. Gustavo Sampaio de Abreu Ribeiro,
Harvard Law School, USA; Dr. Gustavo Seferian Scheffer Machado, Universidade Federal
de Minas Gerais, Brasil; Gustavo Capela, UNB, Brasil; Dr. Hector Cury Soares, UNIPAMPA,
Brasil; Dr. Henrique Botelho Frota, Centro Universitário Christus, Brasil; Hugo Belarmino
de Morais, UFPB, Brasil; Dr. Hugo Pena, UnB, Brasil; Dr. Iagê Zendron Miola, UNIFESP,
Brasil; Ivan Baraldi, Universidade de Coimbra, Iran Guerrero Andrade, Flacso/México,
México; Jailton Macena, UFPB, Brasil; Dra. Jane Felipe Beltrão, UFPA, Brasil, Joanna
Noronha, Universidade de Harvard, USA; Dr. João Andrade Neto, Hamburg Universität,
Alemanha; Dr. João Paulo Allain Teixeira, UFPE, Brasil; Dr. João Paulo Bachur, IDP, Brasil;
João Telésforo de Medeiros Filho, UNB, Brasil; Dr. Jorge Foa Torres, Universidad Nacional
Villa María, Argentina; Dr. José de Magalhães Campos Ambrósio, UFU, Brasil; Dr. José
Carlos Moreira da Silva Filho, PUCRS, Brasil; Dr. José Renato Gaziero Cella, IMED, Brasil;
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- IMED, Brasil; Dr. José Rodrigo Rodriguez, Unisinos, Brasil; Dr. Josué Mastrodi, PUC-
Campinas, Brasil; Juliana Cesario Alvim Gomes, UERJ, Brasil; Dra. Juliane Bento, UFRGS,
Brasil; Lara Freire Bezerra de Santanna, Universidade de Coimbra, Portugal; Dra. Laura
Madrid Sartoretto, UFRGS, Brasil; Dr. Leonardo Figueiredo Barbosa, UNIFESO, Brasil;
Leticia Paes, Birkbeck, University of London; Ligia Fabris Campos, Humbolt Universität zu
Berlin, Alemanha; Dra. Lívia Gimenez, UNB, Brasil; Dr. Lucas Machado Fagundes, UNESC,
Brasil; Dr. Lucas Pizzolatto Konzen, UFRGS, Brasil; Dra. Lucero Ibarra Rojas, Centro de
Investigación y Docencia Económicas, México; Dra. Luciana Reis, UFU, Brasil; Dra. Luciana
de Oliveira Ramos, USP, Brasil; Dra. Luciana Silva Garcia, IDP, Brasil; Dr. Luciano Da Ros,
UFRGS, Brasil; Dr. Luiz Caetano de Salles, UFU, Brasil; Dr. Luiz Otávio Ribas, UERJ, Brasil;
Manuela Abath Valença, UFPE, Brasil; Marcela Diorio, USP, Brasil; Dr. Marcelo Eibs
Cafrune, UNB, Brasil; Marcelo Mayora, UFJF, Brasil; Dr. Marcelo Torelly, UNB, Brasil; Dra.
Marília Denardin Budó, UFSM, Brasil; Dr. Marxo Alexandre de Souza Serra, Puc-PR,
Brasil; Dr. Marcos Vinício Chein Feres, UFJF, Brasil; Dra. Maria Lúcia Barbosa, UFPE,
Brasil; Dra. Maria Paula Meneses, Universidade de Coimbra, Portugal; Dr. Mariana Anahi
Manzo, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina; Mariana Chies Santiago Santos,
UFRGS, Brasil; Dra. Mariana Trotta, UFRJ, Brasil; Dra. Mariana Teixeira, FU-Berlim,
Alemanha; Dra. Melisa Deciancio, FLACSO, Argentina; Dra. Marisa N. Fassi, Università
degli Studi di Milano, Itália; Dra. Marta Rodriguez de Assis Machado, Fundação Getúlio
Vargas - Direito GV São Paulo, Brasil; Mayra Cotta, The New School for Social Research,
USA; Dr. Miguel Gualano Godoy, UFPR, Brasil; Monique Falcão Lima, UERJ, Brasil; Dr.
Moisés Alves Soares, UFPR, Brasil; Nadine Borges, UFF, Brasil; Natacha Guala,
Universidade de Coimbra, Portugal; Dr. Orlando Aragon, México; Dr. Orlando Villas Bôas
Filho, USP e Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil; Dr. Pablo Malheiros Frota,
UFGo, Brasil; Paulo Eduardo Berni, Universidade Ritter dos Reis, Brasil; Dr. Paulo
MacDonald, UFRGS, Brasil; Dr. Paulo Eduardo Alves da Silva, USP, Brasil; Pedro Augusto
Domingues Miranda Brandão, UNB, Brasil; Dr. Pedro de Paula, São Judas Tadeu, Brasil;
Dr. Philippe Oliveira de Almeida, UFRJ, Brasil; Dr. Rafael Lamera Giesta Cabral, UFERSA,
Brasil; Dr. Rafael Schincariol, USP, Brasil; Dr. Rafael Vieira, UFRJ, Brasil; Dra. Raffaella

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Porciuncula Pallamolla, Universidade Lassalle, Brasil; Dr. Ramaís de Castro Silveira, UnB,
Brasil; Dra. Raquel Lima Scalcon, UFRGS, Brasil; Renan Bernardi Kalil, USP, Brasil; Dr.
Renan Quinalha, USP, Brasil; Dra. Renata Ribeiro Rolim, UFPB; Dr. Renato Cesar Cardoso,
UFMG, Brasil; Dr. Ricardo Prestes Pazello, UFPR, Brasil; Dra. Roberta Baggio, UFRGS,
Brasil; Dr. Roberto Bueno Pinto, UFU, Minas Gerais; Dr. Roberto Efrem Filho, UFPB, Brasil;
Rodrigo Faria Gonçalves Iacovini, USP, Brasil; Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo,
PUCRS, Brasil; Dr. Rodolfo Liberato de Noronha, UNIRIO, Brasil; Rodrigo Kreher, UFRGS,
Brasil; Dr. Roger Raupp Rios, Uniritter, Brasil; Dr. Samuel Barbosa, USP, Brasil; Dr. Saulo
Matos, UFPA, Brasil; Dra. Shirley Silveira Andrade, UFES, Brasil; Dra. Simone Andrea
Schwinn, UNISC, Brasil; Talita Tatiana Dias Rampin, UNB, Brasil; Tatyane Guimarães
Oliveira, UFPB, Brasil; Thiago Arruda, UFERSA, Brasil; Dr. Thiago Reis e Souza, Escola de
Direito Fundação Getúlio Vargas - São Paulo, Brasil; Dr. Thomaz Henrique Junqueira de
Andrade Pereira, Escola de Direito Fundação Getúlio Vargas – Rio de Janeiro, Brasil; Dr.
Tiago de Garcia Nunes, UFPel, Brasil; Dra. Valéria Pinheiro, UFPB, Brasil; Dra. Verônica
Gonçalves, UNB, Brasil; Dr. Vinícius Gomes Casalino, PUC-Campinas, Brasil; Dr. Vinicius
Gomes de Vasconcellos, USP/PUCRS, Brasil; Dr. Vitor Bartoletti Sartori, UFMG, Brasil; Dr.
Wagner Felouniuk, UFRGS, Brasil.

Tradutores que atuaram nessa edição: Deisy de Freitas Lima Ventura, Fernando Mussa
Abujamra Aith, Danielle Hanna Rached, João Zanine Barroso, Gustavo Moura de Oliveira,
Paula Monique Kunzler Schneider, Carla da Silveira Teixeira.

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Gênese Anticolonial do Constitucionalismo Latino-


Americano
Anticolonial Genesis of Latin American Constitutionalism

Carlos Frederico Marés de Souza Filho 1


1 Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail:

carlosmares@terra.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6529-6058.

Artigo recebido em 02/07/2019 e aceito em 11/10/2019.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Resumo
Este artigo analisa o constitucionalismo latino-americano e seu caráter anticolonial no
nascedouro dos Estados Nacionais do continente. Para tanto, busca descrever as
contradições sociais existentes no momento das independências, no começo do século
XIX. Estuda o caráter do constitucionalismo latino-americano, utilizando exemplos das
repúblicas do Haiti e do Paraguai e conclui com as dificuldades de sua implantação, que
se mantém até hoje.
Palavras-chave: Constitucionalismo latino-americano; Haiti; Paraguai; Anticolonialismo.

Abstract
This article analyze Latin American constitutionalism and its anticolonial character in the
birth of the continent's national states. For that seek to describe the existing social
contradictions at the time of independence, the early nineteenth century. Article studies
the character of Latin American constitutionalism using examples from the Republics of
Haiti and Paraguay and conclude with the difficulties of its implementation, which
continues to this day.
Keywords: Latin American constitutionalism; Haiti; Paraguay; Anticolonialism.

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Introdução: Por que são latino-americanas as constituições?

Há uma produção teórica muito extensa sobre o constitucionalismo latino-americano,


chamado algumas vezes de ‘novo’ ou ‘neo’, mas não há consenso sobre seu início, sua
gênese. Roberto Viciano Pastor1, em obra que comparte com outros autores, denomina
de novo e desenvolve a ideia de que o é em relação ao constitucionalismo europeu e
não a si mesmo. Assim, nega que haja um “velho” constitucionalismo latino-americano,
como se o anterior fosse reprodução do europeu, portanto não merecendo o adjetivo de
latino-americano. Diz ainda que o novo nasce com a Constituição venezuelana de 1999,
por ser a primeira com participação efetivamente popular. Nessa concepção, a novidade
é praticamente andina e entende que havia um constitucionalismo universal (europeu);
em 1999, a América Latina inovou com as três constituições andinas, da Venezuela,
Equador e Bolívia. Ao contrário disso, desde o início do constitucionalismo, há na
América Latina uma busca permanente por alternativa local anticolonial como forma
jurídica de constituir Estados Nacionais. Neste artigo será abordada apenas parte da
trajetória dessa busca com os dois primeiros países a alcançarem a independência, Haiti
e Paraguai, ambos claramente antieuropeus.
O que caracteriza o constitucionalismo latino-americano não é só o fato de
escrever uma constituição na América Latina por constituintes da região, mas por seu
conteúdo revelar formações sociais por um lado diferentes das da Europa e, por outro,
com uma identidade regional. Assim, para ganhar o título de latino-americanas, as
constituições têm de ter uma marcada identidade que as diferenciem das demais regiões
do planeta. É necessário entender essas diferenças e identidades, nem sempre claras, já
os povos da América Latina, pensados na diversidade indígena e afrodescendente, entre
outras, são muito vastos apesar dos Estados serem tão parecidos entre si. O processo
colonial sofrido aproxima todos os países da região; eis um primeiro ponto de identidade,
a formação colonial. O segundo ponto, derivado do colonialismo, é a forma de
exploração do trabalho, escravagista e genocida, e o terceiro é a profunda exploração
extrativista da natureza, seja mineral, seja vegetal, o que implica em um controle
antipopular da terra e da natureza.
No início do século XX, com a criação dos Estados de Bem-Estar Social, houve

1VICIANO PASTOR, Roberto. Estudios sobre el nuevo constitucionalismo latinoamericano. Valencia, Espanha:
Tirant Lo Blanch. 2012.

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uma mudança na teoria constitucional europeia que passou a defender a existência de


uma força normativa2 nos textos constitucionais aprovados. Este ‘novo’, que a América
Latina contribuiu fortemente com a Constituição mexicana de 1917, já fazia parte do
pensamento latino-americano anticolonial desde o Haiti, em 1804, portanto outra
característica latino-americana que deve ser ressaltada. Quer dizer, quando Konrad
Hesse elaborou sua teoria da força normativa da constituição, na América Latina já se
disputava a aplicação direta das normas constitucionais, não apenas no século XX com a
Constituição mexicana de 1917, mas antes disso, no Haiti, no Paraguai, na Constituição
bolivariana de Chuquisaca e mesmo na discussão perdida no Brasil, que não conseguiu
impedir a manutenção da escravidão com a Carta outorgada de 1824.
O que caracterizou o constitucionalismo do continente no fim do século XX,
chamando a atenção dos teóricos, foi a inclusão de direitos mais ou menos autônomos
dos povos indígenas e outros tradicionais, além de uma forte proteção da natureza,
muitas vezes denominada de meio ambiente. Esses dois direitos, povos e natureza, se
contradizem e se opõem aos direitos individuais protegidos pela tradição
constitucionalista europeia, capitalista. A inclusão de povos com direitos não individuais
e proteções ou direitos da/ou sobre a natureza que restringem direitos de propriedade
individual da terra é o que dá a essencialidade do caráter latino-americano das
constituições do século XX e XXI, a começar pela brasileira de 1988. 3 Esses direitos se
antagonizam com os direitos individuais por serem coletivos em sua essência e
existência, entendidos não como a soma de direitos individuais, mas como pertencentes
a comunidade ou grupo humano determinado, no caso de povos, e indeterminado, no
caso da natureza e, em consequência, da terra. Essas características são a marca da
anticolonialidade, por isso são de tão difícil aplicação nas sociedades capitalistas
dependentes.
As constituições que inovaram na formulação deste conteúdo podem, portanto,
ser chamadas de novas porque, embora já houvesse a discussão dos direitos dos povos e
da natureza, e do anticolonialismo, desde o nascimento dos Estados Nacionais, no
começo do século XIX, esses não estavam explícitos. A maioria das constituições
formadoras eram formalmente muito parecidas com as europeias, entretanto estava

2HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução Gilmar Mendes. Porto Alegre: SAFabris. 2010.
3 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A essência socioambiental do constitucionalismo latino-americano.
Revista da Faculdade de Direito da UFG. Goiânia, vol. 41, n. 1, p. 197-215. jan/jul. 2017.

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presente o gérmen da discussão sobre o Estado Nacional como protetor das


especificidades sociais locais e limitante da propriedade individual da terra e de
acumulação de riqueza. Essa discussão foi vencedora tanto no Haiti como no Paraguai,
por isso a opção por estes dois nascimentos, que, de resto, são os primeiros.
Este artigo pretende estudar o nascimento deste constitucionalismo nas
independências. Para isso, será analisado o momento de nascimento dos Estados
Nacionais e as forças ou atores sociais presentes naquele momento. Os dois casos
analisados serão as constituições oriundas da Guerra do Haiti e a ausência de um texto
escrito com o nome de Constituição no Paraguai. Ambos são paradigmáticos da luta
anticolonial e auxiliam no entendimento da gênese do constitucionalismo latino-
americano, entendido como a adoção das ideias da modernidade para a criação de
Estados Nacionais com fundamento em regras jurídicas, acrescida da idiossincrasia do
continente, portanto anticolonial, anti escravagista e que favoreça as culturas locais,
principalmente indígena.

O nascimento dos Estados Nacionais latino-americanos

Os Estados latino-americano e caribenhos nasceram sob o jugo do colonialismo e sob a


pressão de um escravagismo orgânico. A gênese das constituições latino-americanas e
seu constitucionalismo está presente na discussão das condições de formação das
sociedades independentes porque tiveram que enfrentar o debate sobre o escravagismo
e a ocupação da terra, dificultando a aplicação dos modelos liberais que se
apresentavam na Europa. A discussão sobre a ocupação da terra está muito presente na
formação das sociedades da América Latina em contradição com a ocupação liberal da
América do Norte4. Na América Latina, as metrópoles mantiveram a terra sobre absoluto
controle, assim como o trabalho escravo. As elites, nas independências, pretenderam
manter o controle sob a terra e a escravidão, por isso sua divergência com os povos
originários, os camponeses e os “Libertadores”. No Brasil, depois da independência, a
terra foi tão controlada quanto antes, sendo inacessível aos trabalhadores. 5 Essa

4 FITZMAURICE, Andrew. Sovereignty, property and Empire: 1500-2000. Cambridge: University Press. 2014.
360 p.
5 SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de terras de 1850. Campinas: Ed. da

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discussão gerou, em diversos países, incompatibilidades com o constitucionalismo


europeu ou norte-americano, ou pelo menos diferenças fortes, demonstrando a
insuficiência das teorias constitucionais exógenas. Dessa forma, as discussões, ou melhor,
a discussão sobre o nascimento dos novos países independentes, sua forma jurídica e
organização política tem traços próprios que desde então vão indicando o que viria a ser
o constitucionalismo latino-americano tão explícito do século XXI.
Ao se analisar as constituições e os discursos constitucionais de Bolívar, Toussaint
L'Overture, Francia, Artigas, San Martin, Marti ou Morelos, fica clara a insuficiência das
propostas europeias e norte-americana. Mesmo no Brasil, onde a independência e a
Constituição foram feitas por um herdeiro português e que parece não ter havido debate
nem resistência, meio escondido na história, é possível sentir esta preocupação6. Ainda
que as posições que levavam em conta a realidade local tenham sido derrotadas ou
traídas, estas marcas ficaram e se revelaram em outros momentos históricos, como no
México e na Bolívia, no século XX. Foram reveladas também nas leis que compuseram o
mundo jurídico de cada país, como exemplo, a Lei de Terras, Lei nº 601/1850, no Brasil 7.
As contradições entre colonialismo e independência, liberdade e escravidão,
natureza e produção para exportação, sociedades hegemônicas e sociedades tradicionais,
fortemente presentes na gênese do constitucionalismo latino-americano, no século XIX,
podem desvelar as inovações ocorridas no final do século XX e XXI, que tem como ponto
culminante a Constituição mexicana de 1917, as andinas do século XXI e a cubana de
2019. Alguns autores, seguindo uma classificação de Raquel Yrigoyen 8, sustentam que o
‘novo’ constitucionalismo nasceu no fim do século XX e se aprimorou em degraus ou
momentos – esses crescem reconhecendo a existência de povos até o
autorreconhecimento estatal como plurinacional. Esta trajetória assim entendida deixa
curta a história e esconde os ricos debates e lutas na formação dos Estados Nacionais no
começo do século XIX e mesmo no fim do XVIII, deixando de considerar a extraordinária
revolução negra do Haiti. Assim, é necessário voltar às origens, esquecendo a palavra

UNICAMP, 1996.
6 No Brasil do começo do século XIX houve discussões, com José Bonifácio, para incluir na Constituição a

distribuição de terras para todos, o fim da escravidão e o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas.
Porém o Imperador promulgou uma Constituição típica da colonialidade.
7 SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de terras de 1850. Campinas: UNICAMP,

1996.
8 YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. Pluralismo jurídico, derecho indígena y jurisdición especial en los países

andinos. El Otro Derecho. Vol. 30, n. ILSA/Bogotá. 2004. p. 171-196.

Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 16-47.
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‘novo’ e a rápida evolução do século XX e XXI para entender as profundas origens do


constitucionalismo latino-americano nas lutas pelas independências. As discussões,
debates, angústias e práticas da formação de Estados Modernos na América Latina
estiveram ausentes nas discussões europeias e nos escritos dos teóricos europeus e
eurocentristas que, em geral, viam no emaranhado legislativo constitucional do século
XIX uma reprodução automática e literal das constituições do chamado Velho Mundo. Os
constitucionalistas europeus que estudam o contexto latino-americano se surpreendem
com as soluções encontradas para dar vida aos direitos dos povos e da natureza, terra,
principalmente nos séculos XX e XXI. O século XIX é esquecido, como se não houvesse
nem debates nem práticas na formação dos Estados Nacionais. A leitura dos espanhóis
Bartolomé Clavero9, Viciano Pastor10 e Martínez Dalmau11, por exemplo, demonstra essa
admiração e, ao mesmo tempo, incompreensão da origem dessas constituições
plurinacionais, pioneiras em reconhecer direito de povos, desafiando os antigos critérios
de autonomias, mas mantendo uma necessária soberania nacional.
Os autores europeus de Direito Constitucional não americanistas mostram certo
desdém pelas constituições da América Latina, por exemplo, o professor Maurice
Duverger que publicou alentado livro em 1978 sobre Constituições e Documentos
Políticos12 sem qualquer referência à Revolução e Constituição mexicanas. Hoje está
claro que, em 1917, o México escreveu um dos mais importantes textos legais
fundadores do Bem-Estar Social e da intervenção do Estado nas ordens econômica e
social, assim como uma constituição com força normativa. A Constituição mexicana de
1917 merece integralmente o adjetivo de latino-americana, com caráter anticolonial,
apesar de já ter sido traída tantas vezes. Com o rompimento das ditaduras na América
Latina, nos anos 1980, os juristas ibéricos, principalmente, passaram a olhar com maior
atenção as constituições que começaram a surgir. É o caso da Constituição brasileira de
1988 e, em seguida, a colombiana de 1991. Estas duas constituições impressionaram
pela clareza na proteção dos direitos indígenas e a extensão aos povos afrodescendentes
e pelo reconhecimento dos diretos sobre o meio ambiente, nome jurídico que

9 CLAVERO, Bartolomé. Derechos indígenas y cultura constitucional en América. México: Siglo XXI. 1994.
10 VICIANO PASTOR, Roberto. Estudios sobre el nuevo constitucionalismo latinoamericano. Valencia, Espanha:
Tirant Lo Blanch. 2012
11 DALMAU, Rubén Martínez. Los Nuevos paradigmas constitucionales de Ecuador y Bolivia. La Tendencia –

Revista de análisis político -, Quito, nº 9, p. 38, , março/abril de 2009.


12 DUVERGER, Maurice. Constitutions et documents politiques. Paris: Presses Universitaire de France. 1978.

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compreende a natureza. Importantes constitucionalistas portugueses e espanhóis


passaram a estudar estas constituições e ampliaram o estudo às outras constituições do
continente. O sevilhano Bartolomé Clavero dedicou vários livros e artigos sobre o tema,
sempre preocupado com as questões indígenas. Outro sevilhano, Joaquín Herrera Flores,
organizou cursos de mestrado e doutorado na Espanha com ênfase na América Latina,
com temas, professores e alunos latino-americanos13. Em Portugal, constitucionalistas
como Jorge Miranda e Gomes Canotilho14 também se voltaram a estudos principalmente
da constituição brasileira. Houve uma densa discussão das constituições brasileira e
colombiana. E as novidades de estenderam por todo o continente, até chegar às
admiradas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009), que definiram os Estados
como plurinacionais e garantiram direta e indiretamente, respectivamente, os direitos da
natureza, deixando clara a existência de peculiaridades latino-americanas anticoloniais e
identidades entre elas, a ponto de se falar, então, em constitucionalismo latino-
americano.
A terra, sua ocupação e os direitos a ela referentes foram discussões
infraconstitucionais no século XIX, mas ganharam status constitucional em 1917 no
México, o que depois se expandiu para o continente, finalmente reconhecido como
direito coletivo ao meio ambiente ou à natureza, e constitucionalizando o que se
chamou de função social. As relações de trabalho, livres e coletivas, os direitos das
mulheres e restrições ao direito individual e patrimonialístico da propriedade imóvel,
urbana e rural também foram ganhando espaço nas constituições com cada vez mais
força normativa.
Todavia, estas inovações e diferenças não são flores sem haste que pairam no
espaço sem ligação com as lutas concretas contra 500 anos de colonização. A limitação
temporal dos estudos constitucionais latino-americanos acaba ofuscando as práticas e os
debates ocorridos ao longo dos últimos duzentos anos. É necessário buscar o início do
constitucionalismo latino-americano nas lutas pela independência, um processo
continuado desde Tupac Amaru e Sepé Tiaraju, até os direitos da natureza da
constituição equatoriana de 2008, passando por Zumbi dos Palmares e Toussaint
L’Overture e textos constitucionais, como as constituições do Haiti de 1804, do México

13Cursos oficiais da Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, Andaluzia, Espanha.


14J.J. Gomes Canotilho é co-autor e co-organizador da alentada obra “Comentários a constituição do Brasil”.
2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2018.

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de 1917, da Bolívia de 1938, a negativa constitucional de Francia e as constituições de


Bolívar. Nesse sentido, a Constituição boliviana de 2009 pode ser incompreendida se não
for conhecida a de 1938, a Revolução de 1952 e a Constituição Bolivariana de
Chuquisaca de 1826. Entender essa história ajuda a compreender a dificuldade de
implementação das belas constituições do continente.
Havia forças díspares e contraditórias nas sociedades coloniais no momento das
independências e elas explicam a discussão anticolonial e o medo das elites em romper
com a colonialidade e a escravidão.

As sociedades latino-americanas e as independências

Na época da chegada das primeiras caravelas ibéricas, passagem dos séculos XV para XVI,
a população do continente era, em cálculos moderados, de 70 milhões de pessoas,
distribuídas em milhares de povos organizados em pequenos grupos ou em grandes
impérios15. A população na América em 1500 era maior do que a europeia. Grondin e
Viezzer anotam que a população americana era de 67 milhões em 1500 e no processo
colonial foram mortos 61 milhões 16. Os cronistas da época relatam esses genocídios; Frei
Bartolomé de Las Casas, em sua vasta obra, conta o assassinato sem causa de milhões de
pessoas em poucos anos17. Segundo as Nações Unidas, hoje vivem na América Latina 45
milhões de indígenas18. Esses números, não sendo um estudo demográfico, indicam que
a colonização nas Américas foi de uma violência ímpar amplificada com a tragédia dos
africanos sequestrados e trazidos em condições sub-humanas. O historiador da
University of London, Kenneth Morgan, estima que aportaram nas Américas mais de 12
milhões de pessoas19 nos quatro séculos de tráfico de escravizados africanos. O autor
explica a dificuldade de acertar estas contas porque o tráfico, especialmente no século

15 STANNARD, David. American Holocaust: the conquest of new word. New York: Oxford University Press.
1992. 391 p.
16 GRONDIN, Marcelo e VIEZZER, Moema. O maior genocídio da história da humanidade. Toledo: Gráfica e

Editora. 2018. 298 p.


17 LAS CASAS, Bartolomé. Brevísima relación de la destrucción de las Índias. Medellin/Colombia: Editorial

Universidad de Antioquia. 2011. 209 p. (pg. 10 e seguintes).


18 AGENCIA BRASIL. Relatório da ONU aponta aumento do número de indígenas na América Latina.

Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2014-09/relatorio-da-onu-aponta-


aumenta-do-numero-de-indigenas-na-america> . Acesso em 2 abr. 2019.
19 MORGAN, Kenneth. Cuatro siglos de esclavitud atlántica. Tradución de Carmen Castells. Barcelona:

Editorial Planeta. 2017. 287 p.

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XIX, era clandestino. Esse número, somado aos europeus, asiáticos e norte-africanos que
chegaram ao continente, oferece uma dimensão do que foi a substituição de população,
com graves consequências culturais. Por um lado, o genocídio indígena, por outro, a
imigração forçada e a miscigenação abalaram as sociedades locais a ponto de destruir os
impérios existentes e exterminar povos livres. É possível dizer que nem os chegantes
nem os substituídos se mantiveram incólumes às mutações culturais. Alguns, como os
africanos negros e os indígenas atraídos, foram perversamente obrigados a esquecer ou
esconder suas origens culturais, sua língua, sua religiosidade e sua arte 20. Outros
simplesmente passaram a viver de maneira diferente do que viviam em seus países e
seus filhos aprenderam coisas impensáveis no país de seus pais.
Mas não só as gentes passaram por este processo de mutação e substituição. A
natureza, os não humanos, também. A economia colonial foi perversamente extrativista
ou agrícola; as minas de ouro, prata e outros metais fundamentais para a formação da
riqueza das metrópoles e a formação do capitalismo foram devastadoras da natureza e a
maior parte do trabalho, escravizado ou servil, era indígena, o que impôs mudanças nas
suas ordens sociais. A outra parte da economia colonial, a agricultura de exportação,
destruiu a natureza local da mesma forma. As grandes lavouras, nas terras baixas e
férteis, ocuparam mão de obra escrava africana, tanto para extrair minérios como para a
produção agrícola em larga escala. Portanto, as consequências foram perversas com a
natureza, o que impôs um rígido regime de controle sobre as terras para garantir acesso
somente aos grandes latifundiários. Por outro lado, as metrópoles se apropriaram rápida
e violentamente dos conhecimentos dos nativos para a localização das minas e para uso
das plantas domesticadas que vieram compor a culinária europeia e literalmente matar a
fome do continente, como batata, milho, tomate, e acrescentar glamour em suas festas
e teatros, como tabaco e cacau.
Dessa forma, como colônia, é possível dizer que a América sofreu uma
transformação das gentes e da natureza, e até mesmo esta separação entre gente e
natureza foi uma concepção trazida da Europa. Quem não sucumbiu ao colonialismo,
quem dele se esquivou, fugiu ou se escondeu, continuou a viver em harmonia, como os
indígenas, os chamados escravos fugidos e outros povos que foram se retirando para o
interior, misturando, plantando e colhendo os frutos generosos da natureza, aprendendo

20MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. 2ªed. São Paulo: Editora Anita Garibaldi. 214. 336 p.
especialmente pg. 233-273.

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a conviver com ela e a mantê-la.


Duas Américas passaram, então, a existir: a América colonial, que excluiu a
natureza, explorou o trabalho em forma escravagista e formou riquezas acumuláveis
para as metrópoles e controlou a terra apenas para produção agrícola de larga escala;
outra, distante, escondida, que manteve a natureza preservada com ela convivendo,
abrigando povos indígenas, com suas línguas e tradições, e que também abrigou novos
povos, fugidos ou desiludidos do mundo colonial, como os quilombolas 21 e outros
camponeses, praticando agricultura de subsistência, mantendo a biodiversidade.
O grupo formado pela América não integrada, com povos indígenas
resistentes ou sobreviventes, sequestrados africanos e seus filhos que já não podiam ou
não sabiam voltar para sua pátria, mas não desejavam, ou não eram bem-vindos no
convívio da sociedade hegemônica, colonial, queria distância do mundo colonial e
preferiu o silêncio e invisibilidade 22 ainda que mantivessem certas relações. Parte desse
grupo passou a viver na periferia do sistema colonial, conservando com dificuldade sua
identidade, outros se afastaram, repudiando qualquer aproximação e repelindo os
avanços coloniais. Esta parte da América, depois da independência e mais próximo ao
século XX, cresceu em população e número de povos com a chegada de brancos, meio-
brancos, meio-negros, quase-índios, que, enganados ou arrependidos, também foram
deixando de lado o Estado organizado ou civil e se embrenharam numa vida íntima com
a natureza. Os caboclos, que se arranchavam onde podiam, sem direito à terra, se
tornaram posseiros, ocupantes, “invasores” na terminologia colonial, provendo as
próprias necessidades, livres, sem fome, sem dinheiro e sem direitos. Assim como os
índios e quilombolas, esses posseiros reivindicaram a terra, foram se tornando povos
tradicionais, ou tribais, segundo a Convenção 169, da Organização Internacional do
Trabalho (OIT). Estes povos no século XX, apesar de vistos como imensas reservas de
mão de obra, eram, e continuam sendo, inoportunos, porque ocupam as terras que
serão necessárias para a expansão da sociedade hegemônica. Todos eles juntos, embora
não formem um grupo homogêneo, mantêm interesses muito próximos à essência do
constitucionalismo latino-americano: são povos, reclamam direitos coletivos e precisam
da terra como natureza para se manter como são e a chamam de terra, lar, casa, com

21 A tradução do termo quilombola para as línguas utilizadas na América Latina não é simples, mas podem
ser chamados de palenques, marrons, cimarrón, jíbaros etc.
22 MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. 3ªed. São Paulo LECH, 1981. 282 p.

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codinomes como mãe-terra, mãe-natureza, tekoha ou pachamama, entre muitos outros.


Lutam pela terra, mas sobretudo lutam por um modo de vida que, ainda quando não
tenham clara consciência, é anticolonial e anticapitalista.
No final do século XVIII, a América Latina não colonial era formada por
indígenas e quilombolas que pretendiam manter a distância os europeus e evitar ou
impedir que tomassem suas terras e eles mesmo como trabalhadores. Não que não
tenham participado das independências, o fizeram em grande medida, mas como
soldados, acreditando que a independência significaria liberdade e autonomia. Em geral,
não foram enganados pelos Libertadores, mas pelos governos que se seguiram.
A outra América, devastada pelo extrativismo mineral e agricultura extensiva e
monocultural, era formada pelos proprietários e trabalhadores escravizados e outras
gentes periféricas, a sociedade colonial. Para gerir as colônias, as metrópoles
mantiveram feitores, pequenos proprietários, administradores, policiais, burocratas,
chamados de homens livres ou homens bons. Sempre homens e sempre brancos ou
quase brancos, além dos europeus diretamente ligados à metrópole. Isto formou uma
casta que a América espanhola chamou de elite crioula (élite criolla) e o Brasil de
aristocracia, em sua maior parte formada por descentes de europeus. Alguns foram
estudar na Europa e voltaram para ocupar cargos importantes na colônia, sempre sob a
direção de europeus de nascença, fidalgos, quase nobres 23.
Em algumas colônias, especialmente francesas, parte dessa elite era mulata,
filhos de uma miscigenação forçada e criminosa e treinada para sustentar a escravidão. A
elite crioula foi se tornando proprietária das terras, concessionários das minas, sócios
minoritários nas exportações e comerciantes ricos. Em muitos lugares foram se
afastando dos interesses das metrópoles e passaram a sonhar com a independência, e
desde o final do século XVIII conspiravam. Essa elite era influenciada pelo iluminismo e
pelas ideias europeias em que se espelhavam, mas o conteúdo da liberdade e da
igualdade em seus discursos e práticas ganhou cores próprias, especialmente porque na
América teriam que enfrentar a questão racial e a superação do escravagismo24, que não
estavam em questão na Europa.
Os escravizados, os servis e os mais ou menos assalariados, sempre dependentes,

23 RAMOS, Jorge Abelardo. História da Nação Latino-americana. Trad. Marcelo Hipólito López et alii. 3ª ed.
Florianópolis: Insular. 2014. 584 p.
24 RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação Latino-americana. Trad. Marcelo Hipólito López et al. 3ª ed.

Florianópolis: Insular. 2014. 584 p.

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subjugados e maltratados, viviam em péssimas condições. Os empregados, durante todo


o período colonial e mesmo depois, já com a constituição dos Estados Nacionais, eram
recrutados geralmente de forma forçada como escravizados africanos ou indígenas ou
imigrantes mais ou menos voluntários. Por isso havia uma permanente comunicação
entre as duas Américas, quer dizer, os livres da primeira estavam sempre ameaçados a
violentamente serem arrastados como não livres para o mundo colonial, assim como
muitos mantinham esperança de voltar ou ingressar na liberdade, e às vezes conseguiam.
Os escravizados que retornaram à liberdade e trabalhadores agrícolas que
abandonaram a plantation, não poucas vezes com dívidas, e que foram se tornar
posseiros distantes, escondidos, acabaram formando sociedades autônomas que foram
sistematicamente combatidas e criminalizadas pelo poder colonial e depois pelos
Estados Nacionais constitucionalizados, em geral com muita violência. Quando os
trabalhadores, por fuga ou ardil, deixavam o mundo colonial, formando um novo povo
ou aderindo a um existente, como os quilombolas, eram sempre ameaçados por estarem
em terras proibidas. As autoridades metropolitanas os caçavam sem escrúpulos, os
Estados Nacionais tratavam de ‘integrá-los’, com políticas de proibição do uso da terra,
regularizações fundiárias e assimilação pelo trabalho assalariado. São inúmeras e
comumente mal contadas as guerras contra camponeses, indígenas e quilombolas, todas
terminadas em massacres e aprisionamentos. Até século XVIII, estas guerras foram
contra indígenas e africanos.
Ambas as Américas tinham interesse na independência e promoveram ou
participaram de forma não homogênea da criação dos Estados Nacionais e suas
constituições, formando ou contribuindo para um constitucionalismo anticolonial. Todos
falavam em liberdade, mas seguramente cada um deles emprestava ao termo um
significado diferente. Humboldt anota que “em termos de comércio e de política, no
momento das discussões sobre as independências, a palavra liberdade expressava
somente uma ideia relativa”25. São inúmeros os levantes indígenas, todos radicalmente
contra a metrópole sem propostas de integração, alteração legislativa ou
reconhecimento de direitos. As lutas eram contra a colonização e pela manutenção das

25 HUMBOLDT, Alexander de. Political essay on the Kingdom of New Spain. v. 4. London: Longman. 1814. 374
p. p. 97. “In affairs of commerce, as well as in politics, the word freedom expresses merely a relative idea”.
elivro grátis. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=tu0MAAAAIAAJ&printsec=frontcover&dq=humboldt&hl=pt-
BR&sa=X&ved=0ahUKEwjPtKih_97hAhV4HbkGHeR6BdEQ6AEITzAF#v=onepage&q=humboldt&f>

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sociedades originárias e pela tentativa de expulsão dos invasores, quer dizer, também
contra os crioulos, diretamente identificados com a colonização e os estrangeiros. Um
dos grandes exemplos desta resistência indígena foi a chamada rebelião de Tupac Amaru
e Tupac Katari, no Alto Peru, que manteve por um período a independência de La Paz26,
no século XVIII.
Durante os três séculos que antecederam as independências, portanto, foi se
formando uma sociedade peculiar. Enquanto na Europa a sociedade se organizava com
base no individualismo, racionalismo, liberdade e igualdade, na América se aprofundava
e institucionalizava concepções racistas contra negros e indígenas, ampliando a
escravidão. Esta formação social colonial que tinha como base trabalho escravo e
administração exógena gerou fontes de descontentamento que moldaram diferentes
reações. Cada ator social reagia de forma diferente, mas com certa padronização em
toda América Latina.
No começo do século XIX, os líderes das elites crioulas formados na ilustração
europeia reclamavam a independência para continuar e desenvolver seus negócios
livremente. Houve fortes divisões internas, mas todos defendiam a necessidade de
organizar Estados Nacionais com garantias formais de direitos civis e estruturação de
poderes. Entre estes líderes havia os que imaginavam que podiam associar-se aos
europeus, com as antigas ou novas metrópoles e os que preferiam uma independência
profunda e sem laços coloniais, pelo menos num primeiro momento. 27 Essas forças,
comandadas por extraordinários generais e líderes, como Bolívar, San Martín e Artigas,
impulsionaram as guerras de independência na América espanhola e propuseram
constituições que pudessem se parecer com os povos que organizavam, mas
enfrentaram oposição interna de outros membros da elite que, de forma sistemática, os
afastaram do poder nos novos Estados criados assim que o exército espanhol foi
derrotado. O constitucionalismo anticolonial latino-americano serviu para derrotar a
metrópole, mas não era implantado pela elite crioula no poder que reaviva a
colonialidade, com a manutenção de controle antipopular da terra, escravidão,
submissão aos povos indígenas e dependência de mercados externos.
A Teoria de Estado forjada a partir do iluminismo destes líderes, especialmente

26 LEWIN, Boleslao. La rebelión de Tupac Amaru y los origenes de la independencia de Hispanoamérica.


Buenos Aires: SELA. 1967. 944 p.
27 ARCINIEGAS, Germán. La libertad: el destino de América. Bogotá: Editorial Planeta Colombiana. 2009. 224

pg.

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Bolívar e Artigas, embora possa se parecer formalmente com as constituições aprovadas


e com as ideias dos teóricos europeus, está muito longe da prática aplicada pelos
governantes, com exceções. Para dar um exemplo singelo, a liberdade pensada por
Bolívar e Artigas era abolicionista e de garantia de direito à terra aos indígenas. Não foi
essa a prática do continente.
Antes da independência propriamente dita, as lutas foram permanentes e, em
geral, esquecidas “… la hicieron los negros. Los nombres de sus caudillos han quedado
ignorados”, afirmava Arciniegas na primeira página do livro citado. A elite branca fez
ensaios de independência marcados por uma forte intelectualidade e o sonho de
construir um país livre não só do colonialismo, mas das diferenças internas, como foi o
liderado por Tiradentes no Brasil e Francisco de Miranda28 na Venezuela, entre outros.
Em 1929, José Carlos Mariátegui chamou esses Estados de semicoloniais porque,
embora com governo próprio, se subordinavam a interesses forâneos 29.
Este caldo de contradições resultou em propostas constitucionais distintas, com
visões de Estados e políticas diferentes, algumas já com características latino-americanas,
com propostas anticoloniais de defesa da liberdade, antiescravista e de melhor uso da
terra, portanto, com respeito à natureza e aos povos. As independências e suas
constituições foram marcadas pelas contradições das duas Américas, mas
principalmente pelas contradições internas da América colonial, que se traduzia por
constituições com caráter latino-americano e governos pró-coloniais.
Cada país independente que se constitui na América Latina teve sua
especificidade. As grandes histórias da construção do constitucionalismo latino-
americano foram: 1) a guerra de independência do Haiti; 2) a independência do Paraguai;
3) as independências dos países que integravam a pátria grande sonhada por Bolívar; 4)
a independência do México e sua constituição pioneira do século XX; 5) José Marti e a
independência de Cuba e revolução socialista; 6) As independências do vice-reino do
Prata; 7) a independência do Brasil. Este artigo está limitado à análise das duas primeiras
histórias: Haiti e Paraguai.

28 MARTÍNEZ, Francisco. Francisco de Miranda: El Precursor. Serie Líderes de Venezuela. Caracas:


Edicomunicacion. 2001.
29 MARIÁTEGUI, José Carlos. La tarea americana: selección de estudios e prólogo introductorio de Héctor

Alimonda. Buenos Aires: Prometeo/CLACSO, 2010. 272 p. pg.125.

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A liberdade francesa e a escravidão em Saint Domingue

“… la colonia de Saint Domingue, fue, por lejos, la colônia más rica que haya tenido
jamás em parte alguna una potencia colonial”30. Saint Domingue conheceu a maior
guerra negra das Américas. Os haitianos enfrentaram as três potências europeias da
época, França, Espanha e Inglaterra e atemorizaram o mundo americano alertando para
o risco da sublevação negra, inspirando Hegel a escrever a dialética do amo e o escravo,
segundo Buck-Morss31. Pelo menos dois grandes romances latino-americanos do século
XX contam esta história, El reino de este mundo, do cubano Alejo Carpentier e La isla
bajo el mar, da chilena Isabel Allende. A longa guerra travada na ilha (1791-1804) foi
integralmente promovida pelos africanos e seus descendentes não mulatos, foi a mais
autêntica e precisa guerra pela liberdade: guerra de escravizados contra amos32. A
maioria absoluta da população era escravizada, os poucos fugitivos viviam nas
cordilheiras, os marrons, e eram perseguidos e mortos impiedosamente pela
administração francesa. A elite crioula formada por alguns poucos brancos e mulatos
serviam aos interesses dos proprietários latifundiários franceses que raramente viviam
na América e mantinham poder econômico na Metrópole.
Um dia, no final do século XVIII, liderados por Toussaint L’Overture o Haiti
amanheceu rompendo grilhões, declarando o fim da escravidão porque todos os
homens eram livres como sempre deveriam ter sido, repetindo o que estava escrito na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Faziam coro aos cidadãos de Paris e se
consideravam cidadãos franceses. De fato, L'Overture havia descoberto que na
Metrópole o povo havia feito uma revolução, e que a sociedade era livre, igual e fraterna.
Hasteou a bandeira da Revolução e enfrentou quem resistia. Os proprietários de terras e
gentes fugiram ou morreram, os mulatos livres e a elite branca, capatazes, burocratas,
seguiram os fugitivos ou aderiram reticentes e temerosos aos revolucionários.
Estava iniciada a guerra que tornaria Saint Domingue na República do Haiti,
independente, soberana e latino-americana. Mas não era bem assim que imaginava

30 GRUNER, Eduardo. Haití: la única revolución de esclavos triunfante. IN: PINEAU, Marisa. Huellas y legados
de la esclavitud en las Américas: proyecto Unesco La ruta del Esclavo. Saenz Peña, Argentina: Universidad
Nacional de Três de Febrero. 2012. 239 p. pag. 223.
31 BUCK-MORSS, Susan. Hegel y Haití: la dialéctica amo-esclavo, una interpretación revolucionaria. Trad.

Fermín Rodriguez. Buenos Aires: Editorial Norma. 2005. 103 p.


32 ARISTIDE, Jean-Bertrand. Tousaint L’Overture: la revolución haitiana. Traducción de Alfredo Brotons Muñoz.

Madrid: Akal. 2013. 174 p.

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Toussaint L'Overture que estava maravilhado com a revolução francesa e não cansava de
repetir sua consigna. Para ele liberdade, igualdade e fraternidade era tudo o que
poderiam desejar os africanos escravizados em toda América. Imaginava que Saint
Domingue continuaria sendo um pedaço da França revolucionária, livre e fraterna. Não
havia nenhuma razão para ser um território independente, seria uma parte da França
livre, mesmo porque sabia já da avidez da Espanha e da Inglaterra e como território
francês seria muito mais forte. Por várias vezes tentou fazer acordo com a França, mas
recebia como resposta que não havia sido abolida a escravidão. A França ilustrada, livre
e revolucionária, se debatia entre declarar o fim da escravidão e alterar o regime das
colônias que lhe garantiam altos ingressos ou manter a escravidão e abrir uma profunda
contradição interna. Afinal venceu a economia, mas politicamente continuou oscilando
entre ser explícita na negativa da liberdade ou justificar a hostilidade contra L’Overture
por outras razões. L'Overture foi enganado, preso e morto na França, por Napoleão. 33
Os homens e as mulheres livres não tinham como voltar à África e a terra que
lhes fizeram adotar à força, Saint Domingue, sempre conheceram como parte da França
e poderia continuar sendo desde que todos fossem livres. Possivelmente seria diferente
se o exército de L'Overture fosse formado por indígenas e tratassem os franceses como
invasores. A luta dos negros era contra a escravidão e os franceses haviam feito uma
sangrenta revolução pela liberdade. Tudo isso se encaixava na lógica do General ex-
escravizado. É claro que estava irmanado com o povo francês, mas não contava que o
racismo construído para manter a ética da escravidão tinha calado tão fundo na Europa
que não poderia admitir uma parte dela dirigidas por negros.
Em 1793, afinal, foi proclamada a abolição da escravidão e poderia ter encerrado
a Guerra Negra. As hostilidades, entretanto, continuaram. L'Overture se fez proclamar
Comandante em Chefe da Colônia, mas a França não aceitou. A Inglaterra e a Espanha
mantiveram as hostilidades, também. Era inaceitável um Estado Nacional negro, já não
era a independência que pesava, mas o sistêmico racismo colonial. Para encerrar as
disputas internacionais em 1801, L'Overture chamou uma Assembleia Constituinte com
representantes de toda ilha e promulgou a Constituição haitiana de 1801 34.

33 JAMES, Cyril Lionel Robert. Los jacobinos negros: Toussaint L’Overture y la Revolución de Haití. Traducción
de Rosa López Oceguera. Título original: Black Jacobins: Toussaint L’Overture and the San Domingo
Revolution. Buenos Ayres: RyR, 2013. 525 p.
34 DUARTE, Evandro Charles Piza & QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. A Revolução Haitiana e o Atlântico

Negro: o Constitucionalismo em face do Lado Oculto da Modernidade. Direito, Estado e Sociedade n.49 p.

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A primeira Constituição da América Latina foi escrita sem nenhuma interferência


externa, por livre determinação do povo haitiano e sob a direção de um militar vitorioso.
Mas seu primeiro artigo estabelecia: “Santo Domingo em toda a sua extensão, e (cita as
ilhas adjacentes), formam o território de uma única colônia, que faz parte do Império
Francês, mas que está sujeito a leis próprias”.35 Quer dizer, L'Overture proclamava a
independência, mas não o afastamento da França, confiava que Paris seria a capital dos
países e pessoas livres.
Napoleão não sancionou a Constituição e não aceitou L’Overture como dirigente
da colônia. Para restabelecer a “autoridade francesa” enviou uma expedição com 25 mil
homens sob o comando do General Leclerc. A guerra reiniciou e a expedição fracassou
totalmente. Sem outra saída, a França chamou L'Overture a Paris, em 1803. Enganado
por Napoleão, foi preso e levado a uma masmorra onde morreu. A revolta e o desânimo
tomaram conta da ilha, mas o General Jean-Jacques Dessalines, também ex-escravizado,
segundo homem na hierarquia e sucessor L'Overture, assumiu o comando e declarou a
independência, chamando nova constituinte36. A Constituição do Haiti independente foi
promulgada em maio de 1804. Era a segunda Constituição da América Latina e Caribe37.
Estava constituído o primeiro Estado Nacional independente da América Latina, popular,
anticolonial e antiescravista.
O povo e os generais do Haiti aprenderam que os dirigentes da revolução
francesa, os ilustrados, racionais e liberais europeus, os queriam apenas como escravos,
nem mesmo na condição de colônia autônoma serviriam. Não poderiam ser cidadãos. A
História lhes reservaria mais uma decepção: não foram reconhecidos como nação
independente por nenhuma potência europeia, nem pelos Estados Unidos da América.
Sentiram o peso da liberdade e as represálias à luta anticolonial, sobretudo, sentiram o
peso do racismo.
Estas duas constituições são fruto de um constitucionalismo latino-americano na
essência e não só pelo fato de terem sido escritas em território latino-americano, por

10 a 42 jul/dez 2016.
35 No original: “Saint-Domingue dans toute son étendue, et Samana, la Tortue, la Gonâve, les Cayemites, l'Ile-

à-Vaches, la Saône et autres îles adjacentes, forment le territoire d'une seule colonie, qui fait partie de
l'Empire français, mais qui est soumis à des lois particulières”. Disponível em: <http://mjp.univ-
perp.fr/constit/ht1801.htm>. Acesso em: 14 mai. de 2019
36 JAMES, Cyril Lionel Robert. Los jacobinos negros: Toussaint L’Overture y la Revolución de Haití. Traducción

de Rosa López Oceguera. Título original: Black Jacobins: Toussaint L’Overture and the San Domingo
Revolution. Buenos Ayres: RyR, 2013. 525 p.
37 Idem.

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latino-americanos de nascimento ou adoção forçada. Ambas são anteriores à


Constituição espanhola de Cádis, 1812, que influenciou o pensamento jurídico
constitucional da América Espanhola. São anteriores até mesmo à Carta outorgada por
Napoleão à Espanha, chamada de Constituição de Baiona, escrita por Napoleão antes de
invadir a Espanha em 1808.
Ambas as constituições haitianas são muito parecidas entre si, apesar da
primeira declarar-se colônia de França e a segunda um Império independente. A ideia
constitucional do Haiti independente era de que a Constituição regeria efetivamente a
vida do povo, portanto teria força normativa. Por isso, cada vez que havia necessidade
de alteração na vida nacional, era promovida uma alteração na Constituição, não por
emendas, mas a reescrevendo. Assim, o Haiti teve muitas constituições no curto período
anterior às demais independências latino-americanas: 1801, 1804, 1805, 1806, 1807,
1811, 181638.
O Haiti passou a ser um país importante no processo de independência da
América Latina não só pelo exemplo de luta e persistência. Simon Bolívar lá encontrou
abrigo, recebeu proteção, ajuda financeira, armas e até uma prensa tipográfica e
comprometeu-se a abolir a escravidão em cada independência que promovesse 39.
Embora não fosse reconhecido pelas potências europeias, era respeitado e reconhecidos
pelos latino-americanos. Mas não apenas, provavelmente foi das ideias de Dessalines
que Bolívar imaginou a República de presidentes vitalícios não hereditários que
defendeu e aplicou especialmente na Constituição de Chuquisaca.
As Antilhas, onde primeiro chegaram os espanhóis em 1492, foi o epicentro do
genocídio indígena. San Domingos, Puerto Rico, Cuba e Jamaica tiveram sua população
originária praticamente extinta pela liquidação física ou miscigenação forçada, o que
explica porque não aparecem os indígenas nas lutas de independência, apenas os grupos
sociais integrantes do processo colonial. A Guerra do Haiti é negra, de trabalhadores
escravizados! Mas é essencialmente anticolonial. Por isso, a sociedade que se constituiu
ali pode ser considerada a origem, a gênese do constitucionalismo latino-americano. O
desenvolvimento posterior do Haiti também é essencialmente anticolonial ou pós-

38 Haiti escreveu constituições em 1801, 1805, 1806, 1807, 1811, 1816, 1843, 1846, 1849, 1867, 1874, 1879,
1888, 1889, 1918, 1932, 1935, 1946, 1950, 1957, 1964, 1983, 1987, além de algumas revisões, sendo a
última em 2011. Todos os textos utilizados neste artigo são da Digithèque MJP: http://mjp.univ-
perp.fr/mjp.htm , acessado múltiplas vezes, sendo a última em 15 de maio de 2019.
39 LYNCH, John. Simón Bolívar. Traducción castellana de Alejandra Chaparro. Barcelona: Crítica. 2010. 478 p.

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colonial. As grandes potências formadas no vácuo colonial e escravista, França, Inglaterra


e os Estados Unidos da América, não aceitaram a independência haitiana e, com
bloqueio econômico e permanente provocação de litigiosidade, o mantiveram em
tensão interna e externa permanente.
A prosperidade do Haiti nas primeiras décadas de independência, com base na
produção agrícola de autossubsistência foi reconhecida por Humboldt como a mais
apropriada para as Antilhas independentes40. Para conceder a independência à antiga
colônia, em 1825, o governo francês exigiu o pagamento de 150 milhões de francos para
indenizar os antigos proprietários de escravos. Os outros países, incluindo os Estados
Unidos, alegaram que somente poderiam reconhecer a independência do Haiti depois
da França. O governo local, pressionado inclusive militarmente, cedeu e aceitou pagar
em 5 anuidades; para pagar a primeira, tomou um empréstimo da própria França de 30
milhões de francos. Em 1838, a França diminui a dívida, impagável de qualquer forma, a
60 milhões41. A independência foi reafirmada, mas o país estava falido, endividado e sem
acesso aos mercados externos. As novas metrópoles destruíram a prosperidade descrita
e elogiada por Humboldt. Os enfrentamentos e provocações continuaram até que, em
1844, a ilha foi dividida ao meio e os haitianos foram expulsos do lado oriental, que
formou a República Dominicana. Então, em 1854, motivado pelo descontentamento da
população, se iniciou um regime autoritário e autocrático para “el regocijo de la
comunidad internacional y racista”, diria Johanna von Grafenstein42
O feliz reino deste mundo nascido em guerra medonha pelo sonho de liberdade
que estava tão próxima depois da sangrenta revolução da metrópole sucumbiu porque
ousou ser igualmente livre, não aceitou a colonialidade, não acreditou no racismo e
buscou um caminho de desenvolvimento próprio. Como não chamar estas primeiras
constituições de latino-americanas? Como não dizer que aqueles Libertadores não
pensaram e praticaram um constitucionalismo latino-americano? É verdade que não
eram indígenas, mas tampouco eram a elite crioula. Haiti aprendeu a duras penas os
males do colonialismo pós-colonial que, em última instância, são os mesmos do

40 HUMBOLDT, Alexander Freiherr von. Ensayo político sobre la isla de Cuba, (Introd. por Fernando Ortiz;
correcciones, notas y apéndices por Francisco Arango y Parrreño, J. S. Thrasher). La Habana: Cultural, 1960, p.
323.
41 GRAFENSTEIN, Johanna von. Haiti en el siglo XIX: desde la Revolución de esclavos hasta la ocupación norte

americana (1791-1915).Istor, Revista de Historia Internacional, CIDE, Año XII, número 46. Otoño de 2011, pp.
3- 32, ISSN 1665-1715.
42 Idem. p. 9.

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escravismo e promotores do capitalismo. Haiti foi vítima, antes e depois da


independência, do racismo colonialista e porque se negou a produzir a riqueza alheia, foi
impedido, mais uma vez à força, de construir a riqueza de seu povo.

O Paraguai e o constitucionalismo

Muito longe das Antilhas, no coração da América do Sul, outro país se alçava em
independência anticolonial e também pagaria caro a ousadia.
A Província do Paraguai, subordinada ao Vice-Reinado do Prata, estava a meio
caminho das ricas minas de Potosi, no Alto Peru, e o porto exportador, Buenos Aires.
Localizado entre os rios Paraná e Paraguai, era um vastíssimo território ocupado por
muitos povos indígenas independentes, principalmente o povo Guarani que estendia
seus domínios desde as bases da cordilheira, para além do Chaco, até próximo do litoral
atlântico e o Rio Uruguai ao sul. A região e o povo Guarani foram o centro das
experiências jesuíticas de uma colonização sem colonos, na expressão de Meliá 43,
chamada de Missões. O povo Guarani, formado por hábeis agricultores, desenvolveu
entre outras muitas coisas o cultivo da erva-mate, amendoim, milho, mandioca44. Nas
reduções jesuíticas das Missões, desenvolveu habilidades de fundição, criação de gado,
cerâmica, construção civil, fiação de tecidos de algodão que seriam extremamente úteis
durante a independência.45
A reação política ocorrida na Espanha quando Napoleão, em 1808, entregou a
coroa espanhola a seu irmão Luís ante a abdicação dos Reis Carlos IV e Fernando VII em
Baiona, repetiu-se em todas as colônias. As elites de Buenos Aires tomaram diferentes
posições, ora em defesa de Fernando VII, que se dizia enganado, ora em defesa da Corte
de Cádis e, em alguns casos, com propostas independentistas anticoloniais. Na região,
duas outras potências ajudavam a complicar o quadro político: Portugal que tinha
interesse na região cisplatina e a Inglaterra, inimiga da França e da Espanha, tencionava

43 Barlomeu MELIÁ é um dos mais importantes etnólogos do povo Guarani e estudioso das Missões. Utilizou
o apropriado termo em conferência proferida em Curitiba, na PUC/PR, em 2016.
44 SUSNIK, Branislava. Una visión socio-antropologica del Paraguay: XVI-½XVII. Asunción: Museo

Etonográfico Dr. Andrés Barbero. 197 p.


45 PALÁEZ PADILLA, Jorge. Pueblos originarios y Estado nación en Paraguay: el proceso de construcción

nacional durante la Dictadura perpetua de José Gaspar Rodríguez de Francia. San Luis Potosí/México:
CENEJUS. 2015. 241 p.

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controlar o Rio da Prata.


A margem esquerda do Rio Uruguai – atual estado do Rio Grande do Sul e
República Oriental do Uruguai – estava controlada pelo General José Artigas que acusava
Buenos Aires de manter aliança com Portugal e com a Espanha. Artigas propunha uma
independência sem condições, abolição da escravatura e distribuição de terras a todos
os chamados americanos, indígenas e negros, e virtual expulsão de estrangeiros 46. Além
disso, não admitia entregar a Colônia do Sacramento nem a Província Cisplatina a
Portugal. Artigas, com um exército popular, bem organizado, mas pobre e mal armado,
não aceitava menos do que a organização de uma nação inteira, o que incluía não
admitir a concentração do poder em Buenos Aires, nem a aliança com a Inglaterra, nem
a aproximação com Portugal cujo governo estava no Rio de Janeiro 47.
Esta luta contra Buenos Aires e Portugal representava em toda a sua plenitude o
que Bruschera chamou de dialética da emancipação ibero-americana, de um lado “o
patriciado das cidades capitais” e de outro “o sentimento de libertação dos povos,
interpretado pelos grandes caudilhos” na busca do “ser histórico continental”.48 As
independências da América do Sul e os chamados libertadores sustentavam esse
“sentimento de libertação”, mas todos foram traídos tão logo as elites crioulas se viram
livres dos espanhóis. Prevaleceu, portanto, a ordem do “patriciado”, como conclui o
autor, mas o único país em que a libertação anticolonial dos povos venceu na América do
Sul foi justamente o Paraguai, sob o comando do Dr. José Gaspar Rodriguez de Francia. 49
No conturbado período de 1811 a outubro de 1814, em que o antigo vice-reino
do Prata se esvaía e Buenos Aires tentava manter o controle e domínio, enfrentando
lutas intestinas e externas e, fazendo alianças e acordos com a Inglaterra e Portugal, a
província do Paraguai foi se distanciando. Era intensa a atividade política no Paraguai; no
princípio, a maioria defendia a fidelidade ao Rei Fernando VII, mas já havia a defesa da
independência completa. Desde o início, Dr. Francia fazia eloquentes e densos discursos
contra qualquer alinhamento colonial, propondo uma independência total. Francia foi
ganhando adeptos principalmente entre o povo, os camponeses, os pequenos

46 O’DONNELL, Pacho. Artigas: la versión popular de la revolución de mayo. 1ª ed. Buenos Aires: Aguilar.
2012. 256 p.
47 RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação latino-americana. Trad. Marcelo Hipólito López et alii. 3ª ed.

Florianópolis: Insular. 2014. 584 p.


48 BRUSCHERA, Oscar H. Artigas. Coleção “Los Nuestros”. Montevideo: Editorial Nuestra América. Tradução

de João Manuel Rodrigues. 1971. 180 p. pg. 9.


49 idem.

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proprietários, todos americanos e, evidentemente, entre a oposição dos estrangeiros e


setores da economia mais ligados às metrópoles. Com muita habilidade, Francia foi
afastando as lideranças não convencidas com a República e com a Independência e com
o “sentimento de libertação dos povos”. Foi proclamada a República sob a direção de
Francia, para negar qualquer relação com as monarquias e, finalmente, declarada a
independência tanto em relação à Espanha como ao Rio da Prata, Buenos Aires.
Em 1813 foi realizado o primeiro Congresso Nacional, com mil votantes,
representantes de todas as regiões, com massiva participação camponesa e popular com
um domínio bastante confortável ao Dr. Francia. Neste Congresso foi aprovado o
“Reglamiento de Gobierno”, um documento com características constituintes que
utilizava termos da Antiguidade romana e da modernidade francesa. Ali apareceu pela
primeira vez a palavra República (Republica del Paraguay) e ainda nomeava o governo
como um Consulado de dois membros. Esses eram Dr. José Gaspar Rodriguez de Francia
e Pedro Juan Caballero, com iguais poderes, mas que se alternariam a cada ano na
direção do Estado. O documento é muito mais do que um esboço de constituição, mas
trata principalmente da forma de governo e dos poderes dos cônsules. São 17 artigos,
sendo que o último consolida um Congresso de mil sufragistas, como o que estava
aprovando o Regulamento, garantindo que qualquer mudança somente poderia ser
estabelecida por esse Congresso. Era o constitucionalismo em prática.
A Província do Paraguai tornou-se um país independente. Organizou-se segundo
os interesses da população e constitui-se em uma República, a primeira da América do
Sul. O primeiro Congresso constituinte, de 1813, não redigiu ou aprovou uma
Constituição propriamente dita, como se viu, mas foi organizado segundo um sufrágio
universal e a maioria dos membros era representante de trabalhadores, funcionários e
artesãos. Foram dois meses de reuniões e Assunção vivia um clima de construção de
Nação 50 . A proposta de constituir um Estado Nacional independente, segundo as
possibilidades, habilidades e vontades do povo e da natureza em que lhes coube viver,
marcadamente rural, com respeito à outra América, indígena, sem escravidão ou
servidão, estava desenhado no Paraguai de Francia e de seus sucessores, por isso pode-
se dizer que aí está o berço do constitucionalismo latino-americano na América do Sul.
Coube ao Dr. Francia o primeiro ano de consulado. Foi então promulgada uma lei

50GUERRA VILABOY, Sergio. El Paraguay de Doctor Francia. Crítica & Utopia. Nº 5. Dictadura y Dictadores.
Buenos Aires. Setiembre de 1981.

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em 1.° de março de 1914 (Resolución Consular) que atacou diretamente a elite crioula
formada pela oligarquia comercial de Assunção e espanhóis residentes, chamados de
peninsulares.51 A Lei, cujo preâmbulo dizia ser “medida necessária para facilitar o
progresso da sagrada causa da liberdade da República contra as maquinações de seus
inimigos”, proibia o casamento entre homem europeu e mulher “americana conocida y
reputada como española”, branca, portanto, desautorizando os casamentos entre
europeus e permitindo apenas que se casassem com “con indias de los pueblos, mulatas
conocidas y negras”. Política inversa ao branqueamento da população praticada sem
sucesso efetivo, mas intensificador do racismo em outros países como o Brasil. A partir
daí o cerco contra os estrangeiros, espanhóis e outros europeus foi apertando de tal
forma que em pouco tempo a maior parte tinha se mudado para Argentina e Brasil, onde
em geral mantinham interesses econômicos e apoiavam a colonialidade.
Em 3 de outubro de 1814, outro Congresso com mil deputados, altamente
representativo da Nação, com grande participação de camponeses, determinou novas
formas de governo acabando o Consulado e designando Dr. Francia o Ditador Supremo
da República por cinco anos, pela expressiva margem de mais de 85% dos votos52.
O descontentamento das elites era visível e Francia, com o apoio renovado do
Congresso e das classes populares, continuou investindo contra os interesses
econômicos e eclesiásticos. Necessitando manter a política de construir a nação, Francia
seria, cinco anos depois e por unanimidade, eleito pelo Congresso Ditador Perpétuo da
República.
Os dois termos, Cônsul e Ditador, não têm a mesma conotação que se lhe
empresta no século XXI, são termos tirados diretamente da Roma antiga. 53 Deste modo,
os títulos provavelmente foram determinados pela erudição do Dr. Francia, cuja
personalidade e cultura está expressa numa das mais importantes obras de ficção da
literatura latino-americana, Yo, el Supremo, do paraguaio Roa Bastos. A ideia de
mandatário perpétuo, em geral não hereditário, se repetiu nos países que foram sendo
criados após as independências, como no Haiti, no Paraguai e, depois, na Constituição de

51 Texto do Decreto disponível em: <https://nacaomestica.org/blog4/?p=18345 > Acesso em: mai. 2019.
52 ARECES, Nidia R. De la independencia a la guerra de la Tróplice Alianza (1811-1870). In: TELESCA, Ignacio.
Historia del Paraguay. Asunción: Taurus Historia. 2010. 443 p. p. 157.
53 O Hino do Paraguai, que terminou de ser escrito apenas em 1846, afirma no verso segundo: Nueva Roma,

la Patria ostentará/ dos caudillos de nombre y valer,/ que rivales —cual Rómulo y Remo—/ dividieron
gobierno y poder./ Largos años —cual Febo entre nubes—/ viose oculta la perla del Sud./Hoy un héroe
grandioso aparece/ realzando su gloria y virtud...

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Chuquisaca de inspiração bolivariana. A ideia foi defendida por Bolívar em suas cartas e
outros escritos 54 , principalmente para a América do Sul, por desconfiança dos
libertadores nas elites locais que poderiam retornar à colônia ou fazer acordos com
novas metrópoles contra os interesses do povo. Esse também era o temor de Francia,
que tinha o absoluto apoio do povo, quer seja por seu despojamento de bens materiais,
quer seja por sua dedicação em efetivamente resolver os problemas do país. General
José de San Martín, o outro libertador, criador de repúblicas, como a do Chile, no final
das lutas quando voltou à Argentina e finalmente teve que exilar-se na Espanha,
considerava que os Estados Nacionais latino-americanos deveriam restaurar as
monarquias,55 com dinastias americanas, caso contrário os interesses das elites crioulas
locais fariam acordos neocoloniais contra seus povos e a favor de que antigas ou novas
metrópoles voltassem a comandar os novos países, como, de fato, aconteceu.
O Paraguai ficava cada vez mais isolado e sofrendo hostilidades dos vizinhos.
Com domínio sobre a terra e a produção, Francia foi orientando o trabalho e
organizando o povo para suprir as necessidades e garantir a defesa contra eventuais
ataques. O país rapidamente se tornou autossuficiente em algodão, gado e cereais e
iniciou uma indústria baseada na fundição, tecelagem e cerâmica. As experiências
missioneiras estavam sendo utilizadas. Em longo ofício datado de 25 de dezembro de
1820, Francia se dirige ao Comandante Fernando Acosta para que ele reclame às
autoridades brasileiras que reconheçam Paraguai como República independente e
parem de incentivar roubos de gado e outros bens em prejuízo da alimentação do
povo.56 Este ofício demonstra as hostilidades dos vizinhos para com a prosperidade do
Paraguai independente, ficando claro que havia sido encontrado um caminho latino-
americano para o desenvolvimento que não dependia das metrópoles europeias.
A legislação implementada por Francia tinha um caráter latino-americano
contrário a qualquer colonialismo e tendia a proteger a independência das hostilidades
constantes dos vizinhos. Há pouco conhecimento na América Latina desta vitoriosa
experiência que transformou um país isolado, sem saída para o mar senão atravessando

54 BOLIVAR, Simón. Obra politica y constitucional. Prólogo, antología y notas de Eduardo Rozo Acuña. Madrid:
Tecnos. 2007. 203 p.
55 LYNCH, John. San Martín: soldado argentino, héroe americano. Traducción Alejandra Chaparro. Barcelona:

Crítica. 2009. 382 p.


56 FRANCIA: 1817-1830/ Comentários Guido Rodrigues Alcalá. Vol II. Edición comentada, aumentada y

corrigida de la colección Doroteo Barrero del Archivo Nacional de Asunción. Asunción: 2009. 1771 pg. p. 700.

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territórios hostis, na mais importante potência sul-americana.


Em 1840 faleceu o Doutor Francia. Apesar da comoção social que se estabeleceu,
a sucessão foi tranquila e manteve as políticas de Estado já estabelecidas. Carlos Antonio
López assumiu o Governo e encomendou uma atualização da legislação. Em 1844, foi
reescrito o Regulamento Governamental de 1813, chamado de Ley de Administración
Pública. Não se chamava Constituição, ainda que se parecesse e os teóricos paraguaios
do constitucionalismo assim a chamem. O título de ditador perpétuo foi retirado e o
governante passou a se chamar Presidente da República, com um mandato de 10 anos.
A eleição se daria por maioria, considerada como tal a metade dos votos mais quatro.
Em 1862, passados 50 anos da independência, assumiu a presidência o filho de
Carlos López, Francisco Solano López. O país não tinha dívidas, era já um grande centro
industrial e manufatureiro, tinha desenvolvido navegação fluvial e linhas férreas, mas era
um país fechado, praticamente sem comércio exterior. Solano López, homem de cultura
e educado na Europa, tentou abrir o país propondo tratados de amizade com os vizinhos
que, em geral, nunca foram ratificados. 57
O Paraguai e sua independência tinha ido longe demais. Os vizinhos o
desprezavam e cobiçavam. Iniciou-se, então, a guerra fratricida chamada no Brasil de
“Guerra do Paraguai” e no Paraguai de Guerra Grande ou Guerra da Tríplice Aliança. O
fato é que Brasil, Argentina e Uruguai, contraindo empréstimos da Inglaterra, entraram
em guerra contra o Paraguai que resistiu heroicamente. Foram cinco anos de destruição.
As cifras do massacre são controversas, mas nenhuma é aceitável humanitariamente.
Nidia Areces estima que de 60-70% da população morreu em consequência da guerra,
de cada cinco mortos apenas uma era mulher, sendo em algumas partes uma relação
ainda maior. Anota que o desequilíbrio na população pós-guerra ocorreu não apenas
entre sexo, mas entre gerações. E ainda foram perdidos acervos culturais, bibliotecas,
arquivos, lugares, além da proibição do uso da língua guarani. Acrescente-se a isso a
perda de parte do território58. Foi o preço da não submissão.
Vívian Trías afirma que Francia e os dois López provaram que era viável um
modelo de desenvolvimento libertador na América Latina, e que para o interromper foi

57 ARECES, Nidia R. De la independencia a la guerra de la Tróplice Alianza (1811-1870). In: TELESCA, Ignacio.
Historia del Paraguay. Asunción: Taurus Historia. 2010. 443 p. pg. 159.
58 idem. pg. 193.

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necessária “una guerra implacable y abrumadora”59. Até hoje a história dessa Guerra
Grande é mal contada na América Latina exatamente porque ela destruiu um modelo de
desenvolvimento diferente do colonialismo e da colonialidade posterior, e a forma de
constituir o Estado Nacional, discutido e criado junto com o povo. Isso explica a
importância de entender este processo no estudo do constitucionalismo latino-
americano e a razão de ser inserido em gênese.
Com o Paraguai destruído e diminuído em seu território, em 1870 foi sancionado
o primeiro documento jurídico com o nome de Constituição, a Constitución de la
República del Paraguay. Estava destruída por uma guerra implacable a rica experiência
da independência marcadamente anticolonial e popular da América Latina. A nova
Constituição seguia a tradição constitucionalista europeia, muito parecida com a
argentina e a espanhola, já não havia novidade nem ameaça, o Paraguai estava destruído.
Considerações Finais
As independências do Paraguai e do Haiti foram exemplos da derrota colonial e
da elite proprietária e neocolonial. As duas independências jamais foram assimiladas
pelas novas potências. Há, porém, diferenças profundas entre elas. Haiti é africano,
Paraguai indígena. Haiti nasceu de uma longa guerra contra os impérios e foi destruído
pelo estrangulamento econômico e racismo da colonialidade, Paraguai nasceu do
desprezo da colonialidade, não sem resistência e luta, e foi destruído 60 anos depois por
uma guerra de extermínio que envergonha os vencedores. 60 Nos dois processos está
presente a guerra de destruição, nos dois o cerco econômico. Neste sentido, estas duas
formações sociais estatais expressam em seus inícios a tentativa de pôr em prática uma
profunda e clara proposta de constituir Estados latino-americano, isto é, de constituir um
Estado Nacional popular, anticolonial e no qual a terra sirva a todos.
L’Overture adotou o constitucionalismo com Constituição à moda francesa, como
se viu, Dr. Francia optou por organizar o Estado paraguaio sem necessidade de redigir
uma constituição. Se partirmos do princípio puramente formal que constituição é uma
lei que leva o nome de Constituição e que estabelece a organização do Estado e a
garantia de direitos individuais, então o Paraguai não foi constituído por uma
Constituição e sim por um Regulamento de Governo ditado inovadoramente por Francia.

59 TRIAS, Vívian. El Paraguay de Francia, el Supremo, y la guerra de la tríplice aliança. Buenos Aires: Crisis.
1975. p. 79
60 TRIAS, Vívian. El Paraguay de Francia, el Supremo, y la guerra de la tríplice aliança. Buenos Aires: Crisis.

1975.

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Entretanto, o que mais interessa para a constituição do Estado no Paraguai é o


Congresso Popular que o definiu e não o documento escrito que dele resultou.
Tampouco segue o modelo constitucionalista criar um estado independente como
colônia da França. Neste sentido, a Constituição de 1801, haitiana, tampouco seria uma
Constituição, mas fez nascer uma ideia constitucional anticolonial que se realizou com
força em 1804.
Porém, deixando de lado o formalismo, o constitucionalismo é a estruturação, a
partir de hipotética autodeterminação popular, de Estados Nacionais com hierarquias
definidas e direitos reconhecidos numa legalidade expressa. É claro que essa
autodeterminação é imaginada, hipotética, porque é a expressão da força hegemônica
num determinado momento histórico e não necessariamente a vontade discutida,
consultada e determinada pelo povo. No caso das duas independências, porém, os
Estados que se formaram eram populares no sentido de terem sido erigidos pela
vontade soberana do povo, caso contrário Haiti não teria vencido a Guerra de
Independência e o Paraguai não teria resistido ao ataque militar por tanto tempo.
Na América Latina, quase todas constituições das independências expressavam
essa essência latino-americana voltada para os povos, mas assim que o poder era
assumido, seus princípios e materialidade eram esquecidos e passavam a valer as
normas de direito comum ou civil sobre as terras e as gentes, negando direitos coletivos,
sem proteger a natureza e pouco se importando com o povo, mantendo na maioria dos
casos a escravidão, apesar da proclamação formal, na Constituição, da liberdade como
um direito de todos. A manutenção da colonialidade, assim, se fazia na prática de uma
constituição sem força normativa, exatamente ao contrário do Paraguai “sem
constituição” e do Haiti com sua declaração de liberdade colonial.
Quando se lê as constituições do final do século XX e XXI, é possível sentir que
são uma espécie de renascer das velhas causas populares do início do século XIX,
repetindo a contradição entre a vontade popular e vontade das elites. A diferença entre
as Constituições formadoras e as atuais é que a essência popular e anticolonial passou a
ser escritas a partir de um aprendizado de duzentos anos de frustração, com
protagonismo indígena. No Paraguai e no Haiti, a vontade popular se sobrepôs na prática,
independentemente dos acertos ou desacertos das constituições. Nas constituições do
final do século XX a vontade popular entrou em disputa direta para fixar o texto da
constituição, cada vez de forma mais explícita. Pôr em prática essa vontade popular,

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porém, é outra questão, porque as forças anticoloniais continuam fortes, atuantes e


dominantes. Quando a derrota interna das elites parece definitiva, acodem as forças
externas econômicas ou militares.
Tal como antes, a dificuldade de implantação dos dispositivos anticoloniais das
constituições latino-americanas, desde a brasileira de 1988 à boliviana de 2009, está
presente. E as razões são as mesmas: as oligarquias continuam tentando destruir ou
impedir a construção de sociedades fraternas.

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Sobre o autor

Carlos Frederico Marés de Souza Filho


Professor titular de Direito Socioambiental da PUCPR no Programa de Pós-graduação
em Direito. E-mail: carlosmares@terra.com.br

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

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A teoria dos dois demônios: resistências ao processo


brasileiro de justiça de transição
The two demons theory: resistances to the Brazilian transitional justice process

David Barbosa de Oliveira¹


¹ Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: dvdbarol@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2461-2872.

Ulisses Levy Silvério dos Reis²


² Universidade Federal Rural do Semiárido, Mossoró, Rio Grande do Norte, Brasil. E-mail:
ulisses.reis@ufersa.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1476-416X.

Artigo recebido em 12/09/2019 e aceito em 15/03/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Resumo
O processo de justiça transicional brasileiro é constantemente desafiado por discursos
contrários capazes de simbolizar a chamada “teoria dos dois demônios”, criada na
Argentina após o fim do regime de 1976-1983. A pesquisa problematizou de qual
maneira o uso discursivo desta teoria foi distinto nas experiências de transição da
Argentina e do Brasil. O trabalho utilizou-se de fontes bibliográficas e documentais,
especialmente analisando-se os discursos políticos veiculados por meio de jornais e de
registros do Congresso Nacional brasileiro. Concluiu-se pela aproximação no uso da
teoria dos dois demônios em ambos os países, embora isso tenha ocorrido em períodos
diferentes e com fins distintos.
Palavras-chave: Justiça de transição; Anistia; Teoria dos dois demônios.

Abstract
The Brazilian transitional justice process is constantly challenged by opposing speeches
capable of symbolizing the so-called “theory of the two demons”, created in Argentina
after the end of the 1976-1983 regime. This research questioned how the use of this
theory was different in the transition experiences of Argentina and Brazil. The work used
bibliographic and documentary sources, especially analyzing the political speeches
broadcast through newspapers and records of the Brazilian National Congress. It was
concluded that there was an approximation in the use of the theory of the two demons
in both countries, although this occurred at different times and with different ends.
Keywords: Transitional justice; Amnesty; Theory of the two demons.

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1. Introdução

A forma como Estados democráticos saídos de períodos ditatoriais enfrenta seu legado
autoritário diz muito sobre como uma sociedade enxerga a si própria e desenha o seu
caminho para o futuro. Situações não (ou mal) resolvidas com o passado, seja distante
ou recente, costumam deixar feridas abertas que inflamam em períodos de maior
instabilidade política. O Brasil, que tem sua história enquanto país independente
marcada por conflitos e intervenções responsáveis por excluir a população do
direcionamento das ações governamentais, tem uma tradição de não lidar diretamente
com todas as consequências dos traumas causados por violações aos direitos humanos.
Essa experiência não é diferente com o tratamento do legado autoritário decorrente da
ditadura civil-militar de 1964-1985.
A tônica da recente transição da ditadura para a democracia foi permeada, no
campo jurídico-político, por disputas acerca de como tratar os responsáveis pelos crimes
de direitos humanos praticados por agentes de Estado em desfavor de movimentos de
resistência ao governo. Nenhuma dessas controvérsias pôde furtar-se à análise da Lei n.
6.683/1979, chamada “Lei de Anistia”, que, ao mesmo tempo em que foi responsável
por extinguir a punibilidade dos crimes cometidos pelos funcionários do governo e pelos
membros da resistência armada, abriu caminho para uma futura política de reparações
a serem concedidas pelo Estado em favor das vítimas do regime e dos seus familiares. A
título de exemplo, podem-se citar a Lei n. 9.140/1995, que criou a Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e reconheceu como mortas pessoas
desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades
políticas, no período de 02/09/1961 a 15/08/1979; a Lei n. 10.559/2002, que criou a
Comissão da Anistia e regulamentou o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias a fim de instituir o regime do anistiado político; e a Lei n. 12.528/2011, que
criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV).
A criação desse último órgão não passou imune à atenção de setores
interessados em impedir a rediscussão do passado ditatorial brasileiro. Em 2010, ao fim
do governo Lula (PT) (2003-2010), quando da elaboração do decreto que instituiu um
grupo de trabalho para desenhar normativamente a futura Comissão Nacional da

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Verdade, Nelson Jobim1 e os comandantes militares criticaram seu teor por não ter sido
inclusa a investigação de excessos praticados por grupos da esquerda armada (G1,
2012a). É importante mencionar que, de acordo com o art. 1º de sua lei constitutiva, a
CNV visava justamente efetivar os direitos à memória e à verdade histórica dos fatos
ocorridos no período ditatorial. Após a polêmica, o governo publicou um novo decreto,
construído em acordo com o Ministério da Defesa e a Secretaria de Direitos Humanos,
em que a expressão “violação dos direitos humanos” não era associada à repressão
política. Safatle se manifestou sobre tal fato afirmando que declarações dessa natureza
se baseiam na teoria dos dois demônios, um “malabarismo retórico de quem acredita
que excessos foram cometidos dos dois lados e que, por isso, melhor seria deixar o
passado no passado”. Tal opinião foi veiculada por meio de coluna no jornal Folha de
São Paulo (2011) e serve de mola propulsora para essa investigação
Esse trabalho tem por objetivo demonstrar como os discursos políticos do
entorno da disputa pelos direitos à memória e à verdade fizeram uso da teoria dos dois
demônios no contexto brasileiro. A partir da análise de seu surgimento e de sua
utilização após o período ditatorial argentino de 1976-1983, problematizou-se: em que
medida se aproxima o uso discursivo da teoria dos dois demônios nas experiências de
justiça transicional da Argentina e do Brasil? Buscou-se averiguar os eventuais pontos de
consonância e dissonância presentes entre os conjuntos de discursos travados nas
realidades geográficas mencionadas.
Utilizou-se para tanto o método dedutivo, com análise de fontes bibliográficas
e documentais. Fizeram parte do acervo pesquisado, além da legislação que regeu as
experiências transicionais, autores que problematizaram tal fenômeno e discursos de
autoridades políticas e membros da sociedade civil que buscaram influenciar na
construção dos sentidos que performaram as disputas em torno das anistias e das
responsabilizações por crimes de direitos humanos. As fontes documentais, em todas as
subseções, foram trabalhadas de maneira contextualizada com a literatura sobre justiça
transicional e sobre a teoria dos dois demônios.

1 Nelson Azevedo Jobim, natural de Santa Maria/RS, é uma das figuras políticas mais importantes da história
constitucional brasileira no cenário pós-Constituição Federal de 1988. Além de ter sido Deputado Federal
pelo Rio Grande do Sul, ele exerceu os cargos de Ministro de Estado da Justiça, nomeado pelo ex-Presidente
Fernando Henrique Cardoso (PSDB), de Ministro do Supremo Tribunal Federal (nomeado pelo mesmo
Presidente da República) e de Ministro de Estado da Defesa, dessa vez nomeado pelo ex-Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) e mantido pela ex-Presidenta Dilma Roussef (PT).
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O texto foi dividido em três subseções. Num primeiro momento,


problematizaremos a experiência brasileira bipartida de incompletude do processo de
justiça transicional em relação aos julgamentos dos crimes de direitos humanos (efeitos
da anistia) e de avanços em relação às medidas reparatórias, tudo isso à luz das disputas
políticas que circundam tais fenômenos; a seguir, discutiremos o contexto do
surgimento da teoria dos dois demônios na Argentina e o seu emprego a fim de, no
primeiro momento da redemocratização, impedir as investigações dos atos praticados
pelos agentes de Estado que cometeram graves violações aos direitos humanos; na
última subseção, analisaremos discursos de atores do campo político brasileiro que
podem ser encaixados na teoria dos dois demônios e verificaremos qual o uso dado a tal
categoria.
A inacabada transição brasileira continua desafiando pesquisas nas ciências
sociais e humanidades a fim de se buscar a compreensão dos seus nuances. Muitas
vezes, estratégias utilizadas em outras realidades histórico-geográficas são aqui usadas
para dar vazão a resultados similares, o que parece ser o caso dos discursos
responsáveis por vocalizar a teoria dos dois demônios no contraponto em análise.

2. A batalha pelo esquecimento e pela memória como legado do período Ditatorial


Brasileiro de 1964-1985 e a incompletude do processo de Justiça Transicional

A seleção sobre o que deve ser lembrado (monumento, documento, registro do


patrimônio cultural etc.) ou o que deve ser “esquecido” (anistia) não é natural, algo que
existe por si, mas uma elaboração que reflete as lutas sociais e as disputas pelo poder. O
corte intencional do Estado sobre a realidade, elegendo os fatos que serão “esquecidos”,
implica a formação de um tipo de memória que se fortalece a cada comemoração (no
sentido de memorar junto) do projeto ideológico dominante. A anistia impõe
ideologicamente uma memória, tanto que o fato, em si, não é esquecido,
permanecendo nas mentes dos que o vivenciaram.
A par do “esquecimento” oficial, as memórias continuam circulando na
sociedade, criando uma tensão entre as versões oficial e a reprimida, o que gera uma
disputa pela memória. Para Pollak (1989, pp. 04), essas memórias subterrâneas
“prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível

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afloram, em momentos de crise, em sobressaltos bruscos e exacerbados”. A conjuntura


sociopolítica do momento é determinante para definir se a memória subterrânea virá ou
não à superfície, possibilitando a disputa pela memória oficial.
Deste modo, o “esquecimento” proposto pela anistia, por exemplo, não é, em
si, um esquecimento, mas a seleção de uma memória. Quando se fala da publicação de
uma lei com o objetivo de a sociedade esquecer fatos, há uma impropriedade em face
da impossibilidade de se impor o esquecimento. Não é apropriado, pois, realizar uma
vinculação estrita da anistia com o esquecimento, porque, além de isso conduzir a
contradições teóricas e legais, deixa de fora uma ampla produção de memória pelos
instrumentos de reparação que a acompanham.
Essa vinculação da anistia com o esquecimento induz também à naturalização
do direcionamento ideológico do instituto jurídico. Muitos estudiosos e operadores do
Direito não se dão conta disso e reproduzem o pensamento dominante acriticamente,
afirmando, como faz Martins (1978, pp. 18), que a anistia “surge assim, de forma
natural, como uma instituição capaz de reconstruir o país após os efeitos de lutas civis e
militares”. Na verdade, a escolha do fato que será “esquecido” é artificial, bem como
não é natural à seleção da memória que será (co) memorada. Essa escolha do que será
esquecido ou memorado protege uma memória que referenda um determinado
investimento político-ideológico sobre fatos pretéritos. Com o esquecimento pela
anistia ou a seleção de uma memória pelo direito à memória e à verdade, o Estado
investe sobre a realidade, selecionando ideologicamente determinados fatos,
protegendo uma memória que reproduz o pensamento socialmente hegemônico no
momento da seleção, destacando fatos sociais que produzirão, ou não, efeitos no
mundo jurídico.
Se, como anota Ost (2005, pp. 47), “uma coletividade só é construída com base
numa memória compartilhada, e é ao direito que cabe instituí-la”, a Comissão de Anistia
e a Comissão Nacional da Verdade organizaram as falas interditadas, possibilitando a
escuta das memórias subterrâneas, contraditando a versão oficial da memória estatal.
Deste modo, apesar da imposição legal de que o fato destacado deverá cair em
esquecimento, em verdade, apenas dentro do Direito o efeito do fato queda olvidado,
pois, na sociedade, esses grupos permanecem disputando a memória oficial,
constituindo instrumentos que superem o passado e afirmem suas lutas. É nesse sentido
que Ricoeur (2007, pp. 462) destaca que a anistia pensada como imposição de

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esquecimento “priva a memória privada e coletiva da salutar crise de identidade que


possibilita uma reapropriação lúcida do passado e de sua carga traumática”, impedindo
que erros do passado venham a se tornar lições para o futuro.
Esquecimento e memória não são dados naturais, mas construções sociais que
caminham juntas. As discussões sobre a justiça de transição levam em consideração
esses pressupostos, pois a anistia (seleção estatal do que deve ser esquecido, ou
melhor, o que será lembrado para que não gere efeitos jurídicos) e o direito à memória
como seleção do que deve ser lembrado como memória oficial construída pelo regime
de exceção está em constante disputa. Assim, qualquer seleção de esquecimento ou
memória realizada pelo Estado é uma decisão político-ideológica.
A anistia é o instrumento clássico de superação de conflitos violentos, graves e
duradouros numa sociedade. Etimologicamente, conforme anota Martins (1978, pp. 18),
“prevaleceu, para as línguas latinas, o radical grego amnéstia, significando
esquecimento”. Essa vinculação da anistia à ideia de esquecimento, contudo, é
facilmente perceptível, ainda hoje, pois muitos, partindo de Rui Barbosa (1896 pp. 28),
para quem a anistia é o “véu do eterno esquecimento”, ou extraindo diretamente do
pensamento clássico, reproduzem esse sentido como uma verdade dogmática, como
fizeram vários dos ministros do Supremo Tribunal Federal nos seus votos sobre a (in)
compatibilidade da Lei n. 6.683/1979 (Lei da Anistia) com a Constituição Federal de
1988, nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153/DF 2.
Decorre daí que a anistia esquece fatos sociais e, como esses deixam de existir para o
mundo jurídico, não operam efeitos posteriores nem anteriores.
Entretanto, hoje, a anistia não pode ser pensada como o principal ou como o
único instrumento de apaziguamento na transição entre regimes autoritários e
democráticos. Caminha a anistia, contemporaneamente, junto com outros instrumentos
que se somam na transição para a democracia, o que passou a se denominar justiça de
transição (TEITEL, 2014). A anistia passa, então, a ser um instrumento de reparação das
vítimas de atos arbitrários de um regime de exceção e não tão somente esquecimento.

2 Para ficar apenas num dos vários votos que seguiram essa linha (Eros Grau, Gilmar Mendes etc.), a
Ministra Ellen Gracie afirmou que “o pedido alternativo de interpretação conforme que retirasse do âmbito
de abrangência da lei os atos praticados pelos agentes de repressão tampouco podem ser atendidos. Anistia
é, em sua acepção grega, esquecimento, oblívio, desconsideração intencional ou perdão de ofensas
passadas. É superação do passado com vistas a reconciliação de uma sociedade. E é, por isso mesmo,
necessariamente mútua. É o objetivo da pacificação social e política que confere a anistia seu caráter
bilateral. A esse respeito, Plutarco dizia: ‘uma lei que determina que nenhum homem será interrogado ou
perturbado por coisas passadas é chamada Anistia, ou lei do esquecimento’”.
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Todos os textos de anistia, no Brasil, os legais e os constitucionais, trouxeram


dispositivos de reparação a fim de retirar o dano ou, quando não for possível, deixar a
vítima, o mais próximo possível, da situação em que se encontrava antes daquele.
Inúmeras anistias, notadamente aquelas que inauguraram as
redemocratizações na América Latina, inclusive no Brasil, foram seladas ante a
permanente ameaça (tácita ou expressa) de um regresso autoritário, em contextos
impositivos, com clara assimetria de poder entre os distintos pactuantes sociais.
Segundo Quinalha (2012, pp. 156), “o conceito de justiça de transição emerge, então, e
é, precisamente, direcionado a esse tipo de contexto histórico, legado como herança
autoritária, mas que funcionou de ponto de partida dos regimes democráticos”.
Consoante Ambos (2009, pp. 26), justiça de transição hoje é o processo que “comprende
el entero ámbito de los procesos y mecanismos asociados con los intentos de una
sociedad para afrontar un legado de abusos a gran escala del pasado, para asegurar
responsabilidad, rendir justicia y lograr reconciliación”. A justiça de transição destaca-se
da justiça comum porque “se ocupa de abusos a gran escala y especialmente graves
cometidos o tolerados por un régimen pasado, normalmente autoritario, en el marco de
un conflicto militar o, al menos, sociopoliticamente violento” (AMBOS, 2009, pp. 28).
A justiça, nestas transições, deve ser entendida de modo muito amplo, não se
atendo apenas à justiça penal retributiva, mas também à restaurativa da comunidade,
buscando o equilíbrio possível entre a paz e o justo. As medidas aplicadas, na justiça
transicional, podem ser de natureza judicial (investigação, processamento, julgamento,
reparação civil etc.) ou extrajudicial (instituto do perdão, reforma de instituições etc.) e
a qualidade desta justiça está diretamente ligada à influência da antiga elite no poder, à
independência das instituições e à participação popular envolvida durante a transição. A
“justicia en justicia de transición es sobre todo y predominantemente justicia para las
víctimas” (AMBOS, 2009, pp. 41).
A despeito de autores que discutem apenas os aspectos do processamento
judicial dos violadores de direitos humanos na esfera jurídico-penal3, o processo de
justiça de transição após experiências autoritárias compõe-se, segundo Abrão e Torelly
(2011, pp. 215), de pelo menos quatro dimensões fundamentais (de forma similar ao

3No livro “Justiça de Transição no Brasil”, os autores se restringem a discutir e, em alguns momentos, de
maneira extremamente positivista e tradicional, a dificuldade de construir critérios externos para superação
da legalidade da Lei de Anistia, especificamente a extinção da punibilidade dos agentes de Estado, omitindo,
por exemplo, os aspectos de reparação que constam também na Lei n. 6.683/1979. Cf. DIMOULIS;
SWENSSON JÚNIOR; MARTINS, 2010.
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estabelecido pela Organização das Nações Unidas): i) o fornecimento da verdade e a


construção da memória; ii) a regularização da justiça e o restabelecimento da igualdade
perante a lei; iii) a reforma das instituições perpetradoras de violações contra os direitos
humanos; e iv) a reparação das vítimas.
A Organização das Nações Unidas, por meio dos seus diversos órgãos,
continuamente vem aprimorando o que se entende por processos transicionais. Um dos
primeiros e mais importantes documentos produzidos com esse teor foi elaborado pelo
Conselho de Segurança (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2004). Com base nos §§
5º a 8º desse documento, é também uma medida que garante o cumprimento da justiça
de transição a retirada dos agentes comprometidos com o passado dos cargos públicos.
Assim, as estratégias da justiça transicional devem ser consideradas, conforme aponta
Zyl (2011, pp. 48), parte importante da construção da paz na medida em que abordam
as necessidades e as reclamações das vítimas, promovem a reconciliação, reformam as
instituições estatais e restabelecem o Estado de Direito.
As Comissões de Anistia e Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, no
Brasil, encarnam, direta ou indiretamente, vários eixos da justiça de transição. A anistia
brasileira, além da matéria de anistia penal (extinção da punibilidade), trouxe nos seus
textos legais a preocupação com a reparação das vítimas. Essa reparação que a justiça
de transição exige para ser realizada encontra nas leis de anistia seu fundamento
primeiro. Estas comissões realizam a reparação das vítimas, que pode assumir várias
formas, como, por exemplo: ajuda material (pagamentos compensatórios, pensões,
bolsas de estudos etc.), reparação moral (pedido oficial de desculpas), assistência
psicológica (aconselhamento para lidar com o trauma, instauração de clínicas de
testemunho) e medidas simbólicas (monumentos, memoriais e dias de comemoração
nacionais). A Comissão de Anistia inovou na política de reparação ao agregar uma gama
de mecanismos de reparação simbólica, como o projeto Marcas da Memória, em que há
diversas ações de protagonismo em conjunto com a sociedade civil, buscando trazer à
tona memórias do período, como o Memorial da Anistia, para que reparação e a
memória sigam integradas, além de realizar escutas públicas, homenagens públicas,
memoriais, monumentos e placas. As Caravanas da Anistia, com julgamentos públicos da
história e pedidos oficiais de desculpas às vítimas, dão publicidade aos trabalhos da
Comissão, fomentando maior reflexão e educação da população ante as suas ações.

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O direito à verdade, que se refere à apuração dos fatos ocorridos em períodos


repressivos e autoritários, especialmente em ditaduras e totalitarismos, exige um amplo
acesso aos documentos públicos. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos
Políticos, no Brasil, também contribuiu para a revelação de importantes fatos obscuros
da recente história nacional. O apelo à memória efetivado pelas comissões indica a
necessidade de que o Estado empreenda políticas de memória, segundo Weichert
(2008), para realização do princípio da não repetição. A criação da Comissão Nacional da
Verdade buscou especificamente efetivar esse eixo da justiça de transição, dando amplo
conhecimento de que ocorreram graves violações dos direitos humanos e
reconhecimento, por parte dos governantes, cidadãos e perpetradores, da injustiça de
tais abusos. A ausência de espaços para a formulação pública das memórias
subterrâneas prejudica ainda mais a anistia no Brasil, visto que as divergentes leituras
sobre o passado são salutares para a democracia, ao passo que a tentativa de evitar o
debate público por meio da imposição do esquecimento atinge, justamente, o objetivo
oposto, gerando ressentimentos e grupos que se sentem excluídos da narrativa sobre o
passado.
Contribuem ainda as comissões para a reforma das instituições, pois, ao
demonstrarem que as violações dos direitos humanos no passado não constituíram um
fenômeno isolado ou atípico, podem melhorar as opções daqueles que, dentro ou fora
de um novo governo, tencionam programar reformas reais para assegurar o fomento e a
proteção dos direitos humanos, possibilitando, segundo Zyl (2011), a transformação das
instituições estatais. Essa, possivelmente, é a resposta à crítica feita por Quinalha
(2012), ao acentuar que o conceito de justiça de transição é inadequado ao atual
contexto latino-americano por sinalizar um tipo de justiça provisória e momentânea, a
justiça possível, que continuaria a permitir ameaças à democracia com o retorno do
regime autoritário, pois, com a reforma das instituições, é fortalecida a democracia,
melhorada a prestação da justiça e a proteção dos direitos fundamentais. Desta
maneira, com a disponibilização dos processos e documentos à população e ao governo,
é possível se perceber quais instituições foram as responsáveis pelas violações dos
direitos humanos, podendo servir de instrumento para mudá-las radicalmente ou, em
alguns casos, dissolvê-las. Muitas vezes, as comissões da verdade estão especificamente
habilitadas para fazer diretamente essas sugestões, em seus relatórios finais, a respeito
das medidas legais, administrativas e institucionais que devem ser tomadas para evitar o

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ressurgimento dos crimes sistemáticos do passado. Foi essa a tônica da realidade


brasileira, como se pode ver do relatório final do trabalho da CNV (2014). Além de
justiça, busca-se, na justiça de transição, o direito à verdade, à reparação e a reforma
das instituições. O Brasil, segundo Abrão e Torelly (2011), possui estágios diferenciados
na implementação de cada uma dessas dimensões, e muitas medidas são tardias em
relação a outros países da América Latina.
A gênese da justiça de transição brasileira é sediada nas leis de anistia, sendo o
texto de 1979, advindo do regime de exceção, a primeira. O processo nacional de
reparação iniciou-se ainda durante a ditadura militar (1964-1985), pois essa lei tratava
tanto da extinção de punibilidade aos crimes políticos e conexos quanto de sua
reparação. Após a lei de 1979, editou-se uma emenda à “Constituição” outorgada de
1969 (Emenda Constitucional n. 26/85), que constitucionalizou a matéria, agregou a
previsão da restituição dos direitos políticos aos líderes estudantis e ampliou direitos
àqueles reparados pela Lei n. 6.683/1979, viabilizando algumas progressões, por
exemplo. Já a Constituição Federal de 1988 ratificou as progressões dos servidores
afastados e admitiu também a reparação dos trabalhadores do setor privado (ABRÃO;
TORELLY, 2011). Fora os dispositivos que tratam da extinção da punibilidade, os demais
artigos versam sobre estratégias que buscam colocar o indivíduo, na maior medida
possível, na situação que se encontrava antes do dano sofrido pelos atos de exceção.
Para Payne, Abrão e Torelly (2011), o Brasil é um caso importante para pautar
a discussão sobre anistias e justiça de transição. Acadêmicos e formuladores de políticas
públicas tendem a ignorar a experiência do país ao lidar com seu passado precisamente
porque recorreu à anistia em vez de julgamentos. O amplo e inédito desenvolvimento
da justiça transicional brasileira, aliado à persistência da Lei de Anistia e aos recentes
desafios impostos a ela, inclusive pelo julgamento da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, denotam uma transição díspar das demais do ambiente sul-americano. O
processo brasileiro desafia algumas afirmações referentes às leis de anistia e sua
legitimidade, e, ainda mais especialmente, permite o questionamento de variadas
afirmações oriundas do campo da justiça de transição. Ademais, o amplo
desenvolvimento dos processos transicionais brasileiros, na segunda metade da década
passada, lança novos desafios para a própria literatura sobre o país, em muito focada na
ideia de que a carência de julgamentos caracterizaria a ausência de uma justiça
transicional ou a existência de uma justiça transicional de má qualidade. Em verdade, o

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caso brasileiro reafirma parte das críticas feitas à justiça de transição no sentido de,
conforme aponta Quinalha (2012), veicular uma pretensão de universalidade extremada
em demasia, utilizar indiscriminadamente, para situações marcadamente distintas entre
si e para localidades que vivem momentos históricos diferentes, os mesmos
regramentos, e impingir uma normatividade ao desenvolvimento histórico que precisa
necessariamente ser observada e discutida.
Percebe-se, então, que a anistia, tradicionalmente vista como esquecimento e
perdão, passam a ser percebidas, pela colocação de uma nova memória que disputa
espaço com a oficial, pela assunção da responsabilidade estatal e pelo pedido de perdão
pelos erros cometidos no passado, como uma lei que repara as vítimas e realiza vários
eixos da justiça de transição. No caso brasileiro, a anistia não é vista apenas como
“esquecimento” (uma memória que não repercute penalmente), mas também como
ações que disputam essa memória, que reparam moral e civilmente, colaborando com a
solidificação das instituições democráticas. Deste modo, afirmam Payne, Abrão e Torelly
(2011), mesmo tendo sido concebida pelo regime como uma lei de amnésia, a Lei de
Anistia se transmutou no tempo, ao ponto de ser a Comissão de Anistia, 30 anos depois,
polo difusor de memória.

3. O surgimento da Teoria dos Dois Demônios na Argentina

A teoria dos dois demônios, segundo Franco (2014, pp. 23), não existe como construção
propriamente teórica, epistemológica, mas como um “conjunto de representações
coletivas de ampla circulação, cujas formulações mais óbvias cristalizaram-se em alguns
enunciados públicos nos primeiros anos pós-ditatoriais”. Ainda segundo a autora (2014,
pp. 22), “a teoria dos dois demônios nunca foi enunciada como tal, nem em termos
positivos sob essa denominação; não existe como um corpus de ideias e nenhum grupo
se reconhece como autor ou promotor dela”.
A “teoria dos dois demônios” tem sua origem na Argentina, nos anos 1970 e
1980. Segundo Quinalha (2013), não há uma fonte única na criação do termo, uma vez
que vários atores colaboraram na sua delimitação. Nesse sentido, são fontes que
ajudaram a cunhar o termo: o escritor Ernesto Sábato, que presidiu a Comisión Nacional
sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) e que formulou o conhecido relatório

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Nunca Más; a política de Direitos Humanos do presidente Raúl Alfonsín; a Asemblea


Permanente por los Derechos Humanos (APDH); e até mesmo a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Essa interpretação surgiu a partir de grupos
comprometidos com a causa dos direitos humanos. Eles buscavam, conforme Quinalha
(2013), uma forma de racionalizar os acontecimentos então em curso, desqualificando a
tática da luta armada e os militantes que se engajaram nessa opção política.
Na Argentina, segundo Franco (2014), a origem da “teoria dos dois demônios”
levou em consideração, necessariamente, a ideia da existência de duas violências
enfrentadas: as guerrilhas de esquerda e as Forças Armadas atuando em nome do
Estado; a relação de ação/reação entre essas forças, assumindo ainda a
responsabilidade na gênese da violência pela esquerda; a equiparação entre ambas às
violências (desde as responsabilidades históricas até a simetria de forças e/ou de
métodos); e a situação de exterioridade da sociedade nesse conflito, que é apresentada
como alienada, inocente ou vítima dessa violência.
Na Argentina, inicialmente, criticava-se ambos os lados. Daí Alfonsín, ao tomar
posse, em 10 de dezembro 1983, ter proposto a derrogação da autoanistia militar. Um
dos princípios centrais norteadores da política de direitos humanos de Alfonsín era
baseado, conforme Nino (2015, pp. 136), na convicção de que “[...] tanto el terrorismo
de Estado como el subversivo serían castigados”. Para Quinalha (2013), algumas
iniciativas do primeiro governo democrático argentino, de Raul Alfonsín, foram
fundamentais para propagar e justificar esta teoria, dando-lhe legitimidade e caráter de
oficialidade. Neste sentido, Alfonsín, ante um possível recrudescimento das Forças
Armadas, no momento de abertura, defendeu que:
Estas ideas nos hacen regresar a 1976. (…) En ese momento quienes
estábamos por la democracia y contra la subversión afirmamos que no se la
podía combatir aplicando sus mismos métodos. Dijimos que al prescindir de
la ley y de la justicia quizás se destruyera la subversión pero que también se
sacrificarían inocentes y se destruirían las instituciones del país. Pero se
combatió al demonio con las armas del demonio. Y sucedió lo inevitable: la
Argentina fue un infierno (CLARÍN, 1983, pp. 10).

Essa fala, além de revelar, de acordo com a versão oficial do momento, que a
esquerda havia excedido a legalidade, buscava, segundo Franco (2014), denunciar a
ação militar que violava os direitos humanos. Em 1983, já era de conhecimento de
Alfonsín, como membro da APDH, as graves violações que o Estado argentino havia

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cometido durante a ditadura. Alfonsín, ao mesmo tempo, determinou, no mesmo


decreto, que sete membros da guerrilha fossem julgados junto com os militares.
O que percebemos, nesse contexto inicial, é a tentativa de ruptura com o
passado e a instauração de um novo tempo, de uma nova ordem que andasse de mãos
dadas com a democracia. Assim, Alfonsín rompe tanto com a violência do regime de
exceção como com a que atenta contra o Estado. Daí Franco (2014, pp. 38) afirmar que
“la ruptura con ese pasado cercano implicaba distanciamiento con el régimen militar,
una severa crítica de las violaciones a los derechos humanos, la promesa de no
impunidad de esos crímenes y la distancia con la violencia de los conflictos internos del
peronismo en el período 73-76”. Buscava-se um regime de pluralismo democrático e, no
contexto, ambas as violências negavam essa possibilidade. A violência, de onde quer
que ela venha, impedia a democracia.
Sustenta Molinaro (2013, pp. 04) que “en el contexto de derrumbe de la
dictadura militar esta noción fue funcional para algunos actores políticos que pretendían
enarbolar uma posición neutral entre el gobierno militar y las organizaciones de
derechos humanos críticos del accionar represivo ejercido en el país”. Nesse momento
inicial, em que se fez a transição para a democracia, interessou aos detentores do poder
e a amplos setores da sociedade uma posição de neutralidade entre as ações e punições
das Forças Armadas e da esquerda armada. Entretanto, segundo Molinaro (2013, pp.
04), nesta “versión de la Teoría de los dos demonios, no había una diferencia cualitativa
entre la violencia de estas organizaciones y la represión estatal”.
Importante perceber, portanto, que a estrutura binária e equivalente dos
primeiros meses de transição foi ganhando complexidade e firmando a assimetria entre
as violências do Estado e da sociedade civil. O relatório final da CONADEP (1984, pp. 06),
o Nunca Más, por exemplo, de setembro de 1984, afirmava que “durante a década de
70, a Argentina foi convulsionada por um terror que provinha tanto da extrema direita
como da extrema esquerda, fenômeno que tem ocorrido em muitos outros países”.
O prólogo do Nunca Más, contudo, além de equiparar as práticas de
terrorismo do Estado ditatorial e as ações de guerrilha de grupos opositores e
considerados subversivos ao regime vigente, foi adiante. Molinaro (2013, pp. 07) aponta
que “Es en este relato donde podemos observar la introducción de la noción de
terrorismo de Estado a la Teoría de los dos demonios para caracterizar la represión
llevada a cabo por las fuerzas de seguridade”. Afirmou o relatório, em seu prólogo, que

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o terrorismo de Estado era “infinitamente peor que el combatido, porque desde el 24 de


marzo de 1976 contaron con el poderío y la impunidad del Estado absoluto,
secuestrando, torturando y asesinando a miles de seres humanos” (CONADEP, 1984, pp.
11). Segundo Franco (2014, pp. 40), “con el impacto de la brutal evidencia empírica
aportada por el Nunca Más y el impacto de la escena judicial, sí fue desplazándose aquel
tópico tan presente en los primeros meses que afirmaba la igualdad de métodos para
unos y otros, y su connotación de simetría entre ambos ‘bandos’”. Este conceito
implicou, assim, numa diferença qualitativa no terrorismo levado a cabo entre ambos os
lados.
No lugar, contudo, ganhou maior força a ideia de uma inocência da sociedade.
Para Molinaro (2013, pp. 08): “al caracterizar el surgimiento del terrorismo de Estado
como produto de la violencia política de la etapa previa demonizaba a los actores
sociopolíticos involucrados activamente de dicha violencia y, a la vez, exculpaba al resto
de la sociedad de haber sido parte de la misma”. Em consonância com essa leitura,
Novaro y Palermo assinalam que:
la teoría de los dos demonios (en referencia al esquema de dos fuerzas
enfrentadas) fue el complemento necesario del ‘mito de la inocencia de las
víctimas’ en tanto ofrecía una explicación sobre la violencia política ilegal del
régimen, y surgió con esa función para sostener el proyecto de las fuerzas
democráticas (2003, 491).

Importa ainda afirmar que a outra ponta do argumento do terrorismo de


Estado era a figura do detido/desaparecido. Essa figura, segundo Molinaro (2013), dava
legitimidade ao discurso contra o Estado e à teoria dos dois demônios. É mérito, então,
dos movimentos sociais de luta pelos direitos humanos ter colocado em questão a
legitimidade das ações do Estado contra os “subversivos”. Essa mudança de postura da
sociedade civil explicitou os excessos do regime de exceção e pôs em questão a “teoria
dos dois demônios”.
A atuação dos movimentos sociais foi decisiva para a superação da ideia de
que, na Argentina, os “dois demônios” se equivaliam. A partir daí, a rede de ativistas
passou também a contar com o engajamento de advogados e autoridades estatais
compromissados com o desenvolvimento da justiça transicional e dispostos a exigir do
Poder Judiciário a responsabilização criminal dos agentes de Estado que perpetraram
graves violações aos direitos humanos das vítimas, o que gerou o fenômeno da “cascata
da justiça” (SIKKINK, 2011). Foi preciso desmistificar a ideia de que ambos os lados do
conflito, Estado e movimentos de resistência, dispunham de paridade de armas e meios
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de atuação para que a etapa mais sensível da justiça de transição na Argentina pudesse
seguir adiante, situação similar à ocorrida em outros países da região (Chile, Uruguai
etc.), mas que não teve o mesmo desfecho no Brasil 4.

4. Ecos da Teoria dos Dois Demônios no processo brasileiro de justiça transicional

No Brasil, também percebemos, por parte de alguns setores civis e militares, a utilização
da teoria dos dois demônios, principalmente (mas não somente) a partir da implantação
da CNV. Nos debates legislativos, em 1979, por uma anistia ampla, geral e recíproca,
aparecem, por exemplo, mesmo que incipientemente, elementos da teoria dos dois
demônios. O fato, no entanto, é que o uso de tal teoria, nos dois momentos (passado e
atual), difere quanto à finalidade buscada.
Com a apresentação do projeto do que viria a se tornar a Lei n. 6.683/1979
pelo ex-Presidente João Figueiredo, o debate resumiu-se aos dois parágrafos do seu
primeiro artigo. O primeiro considerava conexos aos crimes políticos os delitos de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação
política; o segundo excetuava do benefício da anistia os condenados pela prática de
crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal 5. Dos dois parágrafos, o
segundo atraiu ainda mais atenção que o primeiro, uma vez que, conforme sustenta Fico
(2010), os parlamentares do MDB apresentaram, de um total de 305, 209 emendas ao
projeto. Dentre essas, o partido submeteu 65 propostas de alteração do art. 1º, aí
incluídas nove substitutivas que ofereciam um novo projeto na íntegra. Dessas 65,
apenas 11 propunham a exclusão do perdão aos responsáveis pela repressão, 45
mantinham o benefício previsto no projeto de lei e 09 eram irresolutas.
Percebemos, nesses debates e propostas de emendas, os dois lados afirmando
que houve excessos por parte dos opositores, um afirmando que terroristas cometeram
crimes de sangue – como o fez o deputado Cantidio Sampaio (ARENA), em 23 de agosto
de 1979 (BRASIL, 2019) – e o outro dizendo que torturadores não poderiam ser
anistiados – como fizeram os deputados Marcos Cunha (MDB) e Elquisson Soares (MDB),

4 Em obra seminal na qual analisou os comportamentos das instituições jurisdicionais da Argentina, do Chile
e do Brasil em seus respectivos períodos ditatoriais na segunda metade do século XX, Pereira (2010) discute
as consequências dessa atuação para a conformação das etapas da justiça de transição após as
redemocratizações.
5 Tais propostas foram aprovadas sem modificações e constam na atual legislação.

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em 22 e agosto de 1979 (BRASIL, 2019a). Não obstante, só isso não traz a lume a figura
dos dois demônios, como exposto anteriormente.
Outros trechos dos debates deixam a figura dos dois demônios mais incipiente.
Por exemplo, quando Teotônio Vilela (ARENA), em 23 de agosto de 1979, afirmou que:
[...] é bom acabar com essa exploração do crime de sangue atribuído
exclusivamente aos que combateram contra a situação de poder dominante,
como se num estado de beligerância ou num estado de guerra como quer a
doutrina da Escola Superior de Guerra [...] só houve morte de quem morreu
de um lado e do outro não. Parece-me que Vladmir Herzog, os que caíram
no Araguaia, nas ruas, em tantos cárceres – não eram desprovidos da
condição humana. Ou eram de outro planeta. [...] Dizer que o Movimento
de 31 de março de 1964, como todos os seus similares no passado, decorreu
de forma incruenta é escarnecer dos mortos. E se houve morte de parte a
parte, houve sangue de parte a parte (BRASIL, 2019b, pp. 1663).

Por certo que os motivos do recurso ao argumento de violência de ambos os


lados surgem em contexto diverso do argentino. Aqui se tem como escopo ampliar a
anistia proposta pelo Poder Executivo. Não se buscou justificar uma violência com outra;
pelo contrário, pretendeu-se recorrer à graça estatal em razão de ambos os lados terem
errado. Mas, tendo em conta o contexto, aparece, mesmo que isoladamente, uma
atribuição de culpa a ambos os lados, um reconhecimento de que os dois usaram de
violência. Esse mesmo argumento e o termo “morte parte a parte” também foi utilizado
pelo deputado Marcos Nobre (MDB) (BRASIL, 2019b). Percebemos, portanto, um
discurso de afirmação da violência de ambos os lados, mas não se buscava equiparar as
violências, como atesta a fala do deputado Paulo Brossard (MDB). A respeito da
diferença entre terrorista e torturador, afirmou esse último que:
[...] o terrorista que, em campo aberto, pratica o seu ato vandálico,
correndo os riscos da sua ação, ainda é menos condenável do que aquele
que, ungido de autoridade, abusando da lei, do silêncio das noites,
protegido pela ausência de testemunhas, servindo-se de um objeto –
porque já deixa de ser uma pessoa humana, para ser um objeto – exercer
sobre um pobre, sobre um miserável objeto humano, a crueza de seus
instintos bestiais (BRASIL, 2019c, pp. 1668).

Como se percebe, não se encontram os mesmos traços da teoria dos dois


demônios nos debates legislativos sobre a anistia. Os argumentos expostos buscam
antes levar a anistia ao outro extremo do debate, pois, se torturadores estavam sendo
anistiados, por que os agentes que atuaram contra o regime de exceção não o seriam?
Nesse primeiro instante, a ideia dos dois demônios ligou-se sobremaneira à necessidade

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de se estender o perdão (anistia) dos agentes de Estado também aos integrantes da


oposição política.
Com a criação da CNV, em 2012, a teoria volta a ganhar força e passa a
disputar espaço com outras teorias sociais a fim de apresentar um teor revisionista. É
certo que havia divergências, dentro e fora, antes, durante e depois, sobre os limites das
investigações da Comissão. Alguns setores da sociedade buscavam que não se
investigasse somente os abusos cometidos pelos agentes do Estado, mas também se
examinasse as ações de grupos de esquerda. Como já exposto, antes ainda da criação da
CNV, em 2010, o então Ministro de Estado da Defesa, Nelson Jobim, defendeu que a
Comissão Nacional da Verdade, destinada a apurar violações aos direitos humanos
ocorridos durante o regime militar, investigasse não só as ações patrocinadas pela
ditadura, mas também a atuação de grupos da esquerda armada que tentavam derrubar
o regime.
Durante todo esse período, inclusive na posse da CNV, o Executivo buscava
reiterar que a comissão não era movida pelo revanchismo, pelo ódio ou pelo desejo de
reescrever a história de uma forma diferente do que aconteceu. Afirmava a então
Presidenta Dilma Roussef (PT) que o que a movia (Comissão) era a necessidade
imperiosa de conhecer a verdade em sua plenitude, sem ocultamento (G1, 2012a). A
despeito disso, vozes, mesmo fora do governo, intentavam uma investigação mais
ampla. A esse exemplo, em 2014, para a Folha de São Paulo (2014), o presidente da
Human Rights Watch6, José Miguel Vivanco, afirmou que “o Brasil está atrasado e
precisa de coragem para julgar os acusados, de ambos os lados, de crime durante a
ditadura militar (1964-1985)”.
Dentro da CNV havia divergência também sobre os seus limites. O jornal O
Globo (2019) ressaltou que, para o Coordenador dos trabalhos, o ex-Ministro Gilson
Dipp7, “toda violação” deveria ser apurada. No mesmo sentido, José Paulo Cavalcanti,
também membro da entidade, defendeu que ela deveria também investigar ações dos
grupos de oposição armada contra a ditadura civil-militar (ESTADO DE SÃO PAULO,
2014). Já para Cláudio Fonteles, ex-Procurador-Geral da República, só agentes do Estado

6 Trata-se de uma organização não governamental internacional que fiscaliza violações de direitos humanos
nos mais variados temas, além de propor medidas para a sua contenção. Para uma consulta sobre suas
atividades, cf. https://www.hrw.org/pt/americas/brasil. Acesso em: 10 set. 2019.
7 Gilson Dipp foi ministro do Superior Tribunal de Justiça de 29/06/1998 a 25/09/2014, nomeado pelo ex-

Presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Foi o primeiro Coordenador da CNV, mas não
chegou a encerrar os trabalhos, afastando-se por motivos de saúde.
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deveriam ser investigados (G1, 2012b). Segundo esse último, a comissão é fruto de uma
lei que reconheceu que o Estado brasileiro violou direitos humanos por meio de
servidores públicos. Sabemos que a última opinião foi a que prosperou, mas isso não
encerrou os debates que contemplam a teoria dos dois demônios.
Buscando afastar qualquer dúvida sobe o papel da Comissão Nacional da
Verdade, foi editada a Resolução n. 02/2012. O art. 1º da resolução esclareceu que à
“Comissão Nacional da Verdade cabe examinar e esclarecer as graves violações de
direitos humanos praticadas, no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou
no interesse do Estado”. Ainda assim, não faltou, ao final do CNV, principalmente por
setores ligados às Forças Armadas, quem chamasse a comissão de “comissão da
inverdade”, “comissão do revanchismo” etc. Situamos, então, nesse período, a inserção,
a fixação e a multiplicação, por civis e militares, da teoria dos dois demônios no debate
sobre a responsabilização de militares que ultrapassaram o limite legal do regime de
1964. Nesse instante, passa a teoria a ser utilizada com a finalidade de embaraçar e
impedir, por meio da retórica da violência de lado a lado, a possibilidade de os ex-
agentes de Estado serem investigados e responsabilizados pelos crimes de direitos
humanos praticados.
Mais recentemente, já em 2019, em resposta ao ato do Presidente da
República, Jair Messias Bolsonaro (sem partido), que decidiu comemorar o Golpe Civil-
Militar de 1964 nos estabelecimentos castrenses, o Min. Gilmar Mendes, em decisão no
Mandado de Segurança 36.380/DF, ressaltou que, durante o regime de exceção:
A contraposição ideológica permitiu a realização de diversas agressões, que
se constituíram em fatos típicos criminais, praticados, de um lado, pelo
Estado forte e monopolizador do aparelho organizatório e, de outro, por
núcleos de cidadãos ideologicamente contrários. Não obstante o desnível de
potencialidade ofensiva exercida durante os tempos de beligerância é
preciso observar que tanto houve agressões praticadas pelo Estado – por
meio de seus agentes repressores – quanto por intermédio de cidadãos
organizados politicamente, em derredor de um direcionamento político.

Mendes ressalta “o desnível de potencialidade ofensiva exercida durante os


tempos de beligerância”, tanto que mais à frente aduz que “sequestros, torturas e
homicídios foram praticados de parte a parte, muito embora se possa reconhecer que,
quantitativamente, mais atos ilícitos foram realizados pelo Estado e seus diversos

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agentes do que pelos militantes opositores do Estado”. Contudo, em seguida, ressalta


que:
é certo que muitos dos que recorreram a estes delitos não buscavam a
normalidade democrática, mas a defesa de sistemas políticos autoritários,
seja para manter o regime de exceção, seja para instalar novas formas de
administração de cunho totalitário, com bases stalinistas, castristas ou
maoístas.

Para Mendes, é notório que, em muitos casos, “os autores desses tipos de
crimes violentos pretendiam estabelecer sistema de governo totalitário, inclusive com
apoio, financiamento e treinamento concedidos por ditaduras estrangeiras”.
Apesar de afirmar que havia desproporção entre os atos do Estado e dos
opositores do regime de exceção, Mendes iguala os motivos dos dois grupos ao afirmar
que ambos “pretendiam estabelecer sistema de governo totalitário, inclusive com apoio,
financiamento e treinamento concedidos por ditaduras estrangeiras”. Ele também
equipara ambos os lados ao pontuar que “é certo que muitos dos que recorreram a estes
delitos não buscavam a normalidade democrática”. Entendemos que há aí uma
percepção de que ambos os lados erraram e isso justifica o seu tratamento isonômico.
Não haveria culpa por parte dos agentes do Estado, do próprio Estado e de sua
desproporcional máquina de violência, mas reação, defesa, lei e ordem.
Percebemos também que a utilização da teoria busca por em equiparação a
violência realizada por ambos os lados, equivalendo as suas forças, não se discutindo
quem foi mais violento ou quem iniciou tais atos. Os discursos sobre erros dos dois lados
ressoaram muito além dos agentes estatais e dos membros da Comissão Nacional da
Verdade. A teoria dos dois demônios circula há um tempo entre alguns setores da
sociedade e ganha espaço na disputa pela memória sobre o regime civil-militar de 1964-
1985.
O que percebemos com o uso da teoria dos dois demônios no Brasil é a
estratégia de tentar estabelecer um parâmetro entre as ações do Estado (agentes de
Estado) e dos que a ele resistiam. Defende-se a existência de “dois lados” em confronto
na época, ambos com certa legitimidade histórica para suas ações, mas com excessos
que seriam condenáveis e, portanto, puníveis (QUINALHA, 2013). Deste modo, se grupos
contra o regime de exceção violaram a lei para resistir e depô-lo, nenhum torturador
pode ser punido. Se há um demônio cá, ninguém exorciza o diabo de lá! Nessas últimas
análises, a teoria dos dois demônios está bem alinhada com a teoria argentina e o que

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percebemos é que, no Brasil, ela foi/é posta como um escudo de impunidade para os
agentes do Estado que exorbitaram os limites da lei.
É importante ressaltar que a “teoria dos dois demônios” e sua derivação – o
fato de que, se forem processar os militares, deverão também punir os que se opuseram
à ditadura – não deve ter guarida. De acordo com Quinalha (2013): primeiro, porque foi
justamente o golpe civil-militar que forçou uma atuação clandestina e armada de grupos
de esquerda; segundo, porque não havia a prática sistemática, por parte das
organizações opositoras da ditadura, de táticas de guerrilha ou atos de terrorismo;
terceiro, por não ser razoável colocar no mesmo lado quem agiu fora da lei (agentes do
Estado) e quem resistiu a esse arbítrio, como sustenta Safatle (2011). Por fim, ressalte-
se que o argumento de que, se forem punir os militares, também devem punir quem se
opôs à ditadura civil-militar, não deve prosperar, posto que os indivíduos que se
opuseram ao regime de exceção foram processados e julgados ainda durante o
momento ditatorial, sendo exorbitante o número de processos de “subversivos” no
período8.
A defesa de setores de dentro do governo e da sociedade civil por uma
verdade, digamos, mais ampla, apresentando fatos não revelados por ambos os lados,
pelos agentes do Estado e por quem se opôs à ditadura de 1964-1985, pode justificar-se
na tentativa de lastrear sua fala em um porto legítimo, pois ficaria numa posição
“neutra” da disputa por essa memória ao apresentar também os abusos do lado da
oposição política. Entretanto, ao tomar essa postura, pode-se estar legitimando
justamente o argumento de que a violência dos agentes do Estado foi uma resposta à
violência dos opositores do regime de exceção, que as violências eram equiparadas e
esquecer que os agentes do Estado deveriam proteger, conforme a Constituição do
regime de exceção, a integridade física de qualquer cidadão.

8 Isso sem falar nas recentes descobertas sobre a farta parcialidade dos julgamentos protagonizados pelas
cortes militares em desfavor de “subversivos” no período 1964-1985. Uma recente reportagem da Revista
Época (2017) evidenciou, com base no acesso a gravações inéditas dos julgamentos de presos políticos no
período ditatorial, como os ministros do Superior Tribunal Militar flexibilizavam a interpretação normativa
em prol da condenação de presos políticos submetidos a torturas, maus tratos e privações das mais
diversas.
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5. Conclusão

Esquecimento e memória não são dados naturais, mas construções sociais que
caminham juntas. As discussões de justiça de transição levam em consideração esses
pressupostos, pois tanto a anistia quanto o direito à memória como seleção do que deve
ser lembrado como memória oficial construída pelo Estado estão em constante disputa.
Assim, qualquer seleção de esquecimento ou memória é uma decisão político-
ideológica.
Os institutos jurídicos não se encontram estáveis ao ponto de podermos
extrair deles uma natureza jurídica. Percebemo-los sempre tensionados por interesses
das mais diversas ordens. A anistia política é um bom exemplo, pois, a despeito de seu
julgamento pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 153/DF, a disputa pela determinação do seu sentido continua em
desenvolvimento dentro e fora do Estado 9. Observamos posicionamentos que buscam
ampliar a anistia e outros que buscam restringir seu alcance, a saber: as decisões dos
casos Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) v. Brasil (2010) e Herzog e Outros
v. Brasil (2018), os julgamentos da Comissão de Anistia, o relatório da Comissão
Nacional da Verdade, os posicionamentos do Ministério da Defesa sobre os anistiados,
grupos civis organizados etc.
As memórias se alinham a outro tipo de anistia, pois, ao lado da anistia como
“esquecimento” do Direito Penal, há a anistia como reparação. Ao se anistiar, busca-se
apaziguar a sociedade, afiançando que determinados fatos serão “esquecidos” e que
algumas pessoas terão direito a reparações de modo a restituir-lhes, na maior medida
possível, sua condição anterior ao dano. Se anistia fosse apenas esquecimento dos fatos,
seu aspecto reparador findaria destituído de sentido e eficácia, tornando-se
contraditório determinar o esquecimento de determinado fato e, ao mesmo tempo,
reparar suas consequências. Assim, pelo eixo da reparação, trazem-se à tona as
memórias suprimidas que passam, a partir daí, a disputar espaço com a memória oficial
imposta como verdade histórica.

9 O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), após a condenação do Brasil no sistema interamericano de


direitos humanos, protocolou nova ação judicial no Supremo Tribunal Federal solicitando a declaração de
inconstitucionalidade e inconvencionalidade da Lei n. 6.683/1979, a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 320/DF. Seu andamento pode ser conferido em:
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4574695. Acesso em: 10 set. 2019.
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A decisão estatal de esquecer ou lembrar, deste modo, é uma decisão política


e ideológica. É inegável o esforço do Poder Executivo, desde 2001, no sentido de
organizar os processos de anistia e ampliar o debate sobre os anos do regime de
exceção. Foi uma decisão política e ideológica dos governos posteriores caminharem
nesse mesmo sentido e ampliar a memória desse período. E é de igual maneira, uma
decisão ideológica do Executivo (e de sua bancada no Congresso) de propor, a partir de
2019, iniciativas de modo a tentar restringir direitos dos anistiados (BBC BRASIL, 2019),
propor Comissões Parlamentares de Inquérito sobre as reparações da Comissão de
Anistia (SENADO FEDERAL, 2019), rever o conteúdo dos livros de história sobre a
ditadura militar (FOLHA DE SÃO PAULO, 2019) etc. A anistia e a justiça de transição
estão em disputa na sociedade e no Estado.
A teoria dos dois demônios se encaixa nessa ótica, sendo uma construção
direcionada ideologicamente que não se lastreia em fatos históricos. Não há dados
capazes de sustentar, no Brasil, que a violência foi iniciada por quem se opunha ao golpe
de Estado (o que justificaria o próprio golpe), que a violência de setores que lutavam
contra o regime de exceção e a dos agentes que agiam em nome do Estado era
equiparada etc. O uso no Brasil da teoria dos dois demônios é uma tentativa de
construção de resistências à justiça de transição. Dita teoria busca, por conseguinte,
afastar a efetivação de direitos humanos (via procedimentos penais e por outros meios),
embaraçar as políticas públicas de memória e verdade, atrasar a reforma das
instituições, dificultar a indenização de anistiados etc. Vê-se que atende ela a uma
agenda dos descontentes com a tentativa de se superar o legado autoritário nas mais
diversas vias indicadas pelos processos de justiça de transição.
A partir da análise dos textos de jornais e declarações de autoridades políticas
a fim de expor as representações pelo sentido da teoria dos dois demônios, chega-se à
conclusão de que o seu uso, na experiência histórico-constitucional brasileira dos anos
2010, se aproxima de sua ideia original. Na Argentina, ela foi utilizada para legitimar a
ideia de que, por terem ambos os lados opositores políticos utilizado medidas de
violência equivalentes, não poderia haver punição dos agentes de Estado. Tal ideia veio
a ser posteriormente superada pela forte atuação da sociedade civil. No Brasil, embora
tenha servido no ano de 1979, para justificar a anistia dos opositores do regime, o uso
do termo corre agora no sentido oposto, pois surge como escudo de impunidade dos ex-
agentes de Estado. Utiliza-se dela para relativizar as políticas de anistia e de justiça de

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transição, buscando justificar os atos do regime autoritário, almejando a impunidade de


militares pelos crimes praticados contra aqueles que resistiram contra a ditadura de
1964-1985.
A teoria dos dois demônios, embora o termo em si não seja utilizado nos
discursos de civis e militares, visa causar embaraço no imaginário da sociedade civil e
dos que titularizam órgãos no Estado. Por meio de artifícios retóricos presentes em
entrevistas, discursos e mesmo decisões judiciais, tenta-se equalizar qualitativa e
quantitativamente as ações de violência dos agentes estatais e dos opositores da mais
recente ditadura. O véu de penumbra gerado a partir dessa retórica serve como
justificativa para “deixar as coisas como estão”, ou seja, impedir a rediscussão do
passado e a punição dos que cometeram crimes de direitos humanos em nome do
Estado. Tal estratégia foi superada na Argentina, mas vem sendo exitosa no Brasil.

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10.

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Sobre os autores

David Barbosa de Oliveira


Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2015). Colaborador do
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do
Ceará. Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Ceará. E-mail: dvdbarol@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
2461-2872.

Ulisses Levy Silvério dos Reis


Professor Adjunto C-1 da Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa),
instituição em que exerce a função de Coordenador (2019-2021) no Curso de
Graduação em Direito. Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Realiza estágio pós-doutoral no
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
(PPGD/UFMG). Pesquisador integrante do Grupo de Pesquisa em História do
Constitucionalismo Brasileiro: a construção social da cidadania e a mudança
constitucional no Brasil entre 1920 a 1988 (DGP/CNPq). E-mail:
ulisses.reis@ufersa.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1476-416X.

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Poderá o direito ser decolonial?


Could the law be decolonial?

David F. L. Gomes¹
¹ Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail:
davidflg@ufmg.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0948-5860.

Rayann K. Massahud de Carvalho²


² Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail:
rayannkmassahud@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0956-5580.

Artigo recebido em 29/06/2019 e aceito em 09/03/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Resumo
Este artigo pretende discutir lacunas teóricas e conceituais na obra de Boaventura Santos
a partir de sua vinculação ao Grupo Modernidade/Colonialidade, especialmente no que
se refere ao direito. Para tanto, inicialmente são apresentadas, em linhas gerais, a história
desse grupo e suas características fundamentais. Na sequência, são debatidas as
similaridades e as possíveis divergências entre as concepções de B. Santos e o
pensamento decolonial, mesmo antes de sua vinculação oficial. Em seguida, os principais
desenvolvimentos teóricos e conceituais na obra de B. Santos a partir dessa vinculação
são debatidos. Finalmente, as lacunas mencionadas são diretamente abordadas.
Palavras-chave: Boaventura Santos; Giro Decolonial; Direito; Emancipação.

Abstract
This paper aims at discussing the theoretical and conceptual shortcomings in Boaventura
Santos' work from his linking to the Modernity/Coloniality Group, especially with regard
to the law. To do so, it first presents, in general terms, the history of that group and its
fundamental features. After that, it debates the similarities as well as possible divergences
between B. Santos' conceptions and the decolonial thinking, even before their official
linking. Next, it approaches the main theoretical and conceptual developments in the
work of Boaventura Santos from his linking to the decolonial thinking. Finally, the
aforementioned theoretical and conceptual shortcomings are directly adressed.
Keywords: Boaventura Santos; Decolonial Turn; Law; Emancipation.

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1. Introdução

Nos últimos anos, tem aumentado a influência de um movimento intelectual cujo objetivo
declarado é a renovação da crítica latino-americana (BALESTRIN, 2013, p. 89). Esse
movimento, conhecido em geral como pensamento decolonial ou giro decolonial,
organizou-se inicialmente em torno do Grupo Modernidade/Colonialidade, que coloca
sua ênfase no conceito de colonialidade compreendida como a face violenta e oculta da
modernidade (MIGNOLO, 2017, p. 13).
Embora ancore sua crítica na categoria da colonialidade, esse movimento busca
distinguir-se de outras vertentes que, também dedicadas à crítica das relações coloniais
e de seus efeitos para além do desfazimento dos vínculos coloniais formais, poderiam ser
englobadas como “pós-coloniais”. Duas características podem ser apontadas como
centrais para a origem dessa distinção: a busca, internamente ao pensamento decolonial,
por uma separação definitiva em face de autores eurocêntricos (BALLESTRIN, 2013, p. 94-
95) – ou pelo menos daqueles ligados mais diretamente ao pós-estruturalismo francês –
e uma maior preocupação em garantir que as especificidades da América Latina não
permanecessem desconsideradas no debate (BALLESTRIN, 2013, p. 95-96).
Apesar de não haver participado da origem do movimento, um autor conhecido
e relevante já há algumas décadas para a crítica teórica e prática no Brasil veio a
aproximar-se do pensamento decolonial: Boaventura de Sousa Santos (CASTRO-GOMEZ;
GROSFOGUEL, 2007, p. 11), (MIGNOLO, 2010, p. 7), (BALLESTRIN, 2013, p. 97), (BELLO,
2015, p. 51).
B. Santos sempre dedicou atenção especial ao Brasil em suas pesquisas 1 e
influenciou, como ainda influencia, as universidades e os movimentos sociais brasileiros.
Entretanto, apesar da sua relevância e de sua relação próxima com o Brasil, há
pouquíssimos estudos sistematizados no país sobre sua vasta obra, estudos de fôlego
dedicados a explicitar seus principais conceitos, as mudanças que sofreram ao longo das
décadas e as tensões que daí emergem.2

1É válido citar, a título meramente exemplificativo, a tese de doutorado defendida em 1973, na Universidade
de Yale (EUA), publicada no Brasil com o título “O direito dos oprimidos” (SANTOS, 2014), e o projeto
“Reinventar a emancipação social a partir do Sul”, em que o Brasil é um dos seis países abrangidos (SANTOS,
2007b, p. 21).
2 Os pouquíssimos exemplos disponíveis desses estudos em regra não abrangem toda a obra, em seus

múltiplos aspectos, mas destacam uns ou outros de seus elementos. Conferir, por exemplo: CARVALHO, 2019.

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Ao mesmo tempo, como se sabe B. Santos possui uma significativa reflexão


crítica sobre o direito e sobre as relações entre direito e emancipação3. Por outro lado,
embora vez ou outra o direito apareça como uma categoria teórica relevante para o
pensamento decolonial, é relativamente pequena a produção desse movimento acerca
da temática4 quando comparada a outros temas como as relações entre gênero e
colonialidade ou entre raça e colonialidade.
As considerações dos parágrafos anteriores iluminam, assim, as questões que
guiam a pesquisa de fundo da qual resulta o presente trabalho: como pensar o direito à
luz do pensamento decolonial? O que a aproximação de Boaventura Santos ao
movimento traz de influência para sua reflexão sobre o direito? Quais as relações entre
direito, giro decolonial e emancipação? O questionamento em relação à possibilidade de
o direito ser emancipatório se mantém inalterado, ou, relido à luz do giro decolonial,
passa a ser: poderá o direito ser decolonial?
No presente texto, como relatório parcial da pesquisa de fundo mencionada no
parágrafo anterior, o objetivo é explicitar as dificuldades teórico-conceituais que se
colocam internamente à obra de Boaventura Santos a partir de sua aproximação ao
pensamento decolonial e de sua vinculação ao Grupo Modernidade/Colonialidade. Para
tanto, inicialmente é resgatada, em linhas gerais, a história de constituição do giro
decolonial e do Grupo Modernidade/Colonialidade, apresentando-se suas características
fundamentais. Em seguida, por meio do conceito de “pós-modernismo de oposição” é
mostrado como a aproximação entre B. Santos e o pensamento decolonial pode ser lida
no sentido de um desdobramento interno de posições já presentes anteriormente em
seus escritos. A seção seguinte, por seu turno, dedica-se a tentar lidar com as
ambiguidades do que seriam as divergências entre B. Santos e o pensamento decolonial,
canalizadas pelo conceito de “pós-colonialismo de oposição”. Na sequência, são
apresentados os desenvolvimentos que consideramos mais relevantes na obra de B.
Santos a partir de sua aproximação ao pensamento decolonial. Por fim, na última seção o
objetivo do presente artigo é mais diretamente abordado, quando são discutidas as
dificuldades teórico-conceituais e as necessidades de reformulação que derivam daquela

3 Um excelente panorama dessa reflexão pode ser encontrado em SANTOS, 2003, bem como no dossiê
organizado pela Revista Direito e Práxis, intitulado “Revisitando 'Poderá o Direito ser emancipatório?'”,
organizado pelos professores Boaventura de Sousa Santos e Orlando Aragón Andrade (SANTOS; ANDRADE,
2015)
4 Isso não quer dizer que não haja produções relevantes. Por exemplo, PAZELLO, 2014.

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aproximação. A metodologia, definida pelo próprio escopo do texto, é a revisão


bibliográfica e a reconstrução textual e conceitual.

2. O giro decolonial e o grupo modernidade/colonialidade

Um grupo de pesquisadores e de pesquisadoras, em sua maioria latino-americanos e


latino-americanas, foi responsável por dar início a um notável movimento epistemológico,
que pode ser definido como a realização de uma “radicalização do argumento pós-
colonial” (BALLESTRIN, 2013, p. 89) na América Latina.
O principal local de encontro dessas pesquisadoras e desses pesquisadores veio a
ser o Grupo Modernidade/Colonialidade, cuja origem remota situa-se na década de 1990,
nos Estados Unidos, quando em 1992 foi reimpresso o texto de Aníbal Quijano
“Colonialidad y modernidad-racionalidad” (BALLESTRIN, 2013, p. 94). Algum tempo
depois, o ano de 1998 seria decisivo. Nele, a América Latina viria a ser definitivamente
inserida no debate pós-colonial a partir da tradução para o espanhol e a publicação do
manifesto inaugural do Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos, que surgira
naquele 1992. Em conjunto com a tradução do referido manifesto, era lançada uma
coletânea de artigos na qual um dos membros do grupo, Walter Mignolo, criticava a
posição dos estudos pós-coloniais “originais” denunciando seu “imperialismo”, uma vez
que não haviam sido capazes de romper de um modo definitivo com autores e com
autoras eurocêntricos (BALLESTRIN, 2013, p. 94-95).
Para W. Mignolo, os estudos subalternos latino-americanos não deveriam
espelhar-se nas respostas ao colonialismo oferecidas pelos estudos subalternos indianos,
pois a trajetória da América Latina seria muito diferente, comportando especificidades
irredutíveis a um denominador comum. Desse modo, enquanto prevalecesse a chave de
leitura pós-colonial, as formas de dominação e de resistência que ocorreram no
continente americano estariam sendo invisibilizadas no debate. Devido a essas
divergências, ainda em 1998 o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos viria a ser
dissolvido; no mesmo ano, teriam lugar os primeiros encontros que deram origem ao
Grupo Modernidade/Colonialidade (BALLESTRIN, 2013, p. 95-96).
O Grupo Modernidade/Colonialidade foi sendo estruturado a partir de
seminários e publicações, com a década de 2000 marcando a entrada de novas e novos

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integrantes e o diálogo com outras pesquisadoras e outros pesquisadores, como


Catherine Walsh, Nelson Maldonado-Torres, Margarita Cervantes de Salazar, Libia Grueso
e Boaventura de Sousa Santos (BALLESTRIN, 2013, p. 98).
Em uma síntese apertada, pode-se dizer que o Grupo
Modernidade/Colonialidade realiza uma crítica à colonialidade, entendida como conjunto
de relações sociais que continuam existindo mesmo com o fim do colonialismo, ou seja,
com o processo de independência das ex-colônias (PAZELLO, 2014, p. 89-90). Nesse
trabalho de crítica, intelectuais vinculadas e vinculados ao grupo defendem uma “opção
decolonial” epistêmica, teórica e política, para que sejam possíveis a compreensão do e a
atuação no mundo, caracterizado este precisamente pelo prolongamento da
colonialidade em distintos níveis e esferas da vida, tanto individual quanto coletiva
(BALLESTRIN, 2013, p. 89).
Além disso, esse trabalho de crítica, na medida em que procura seguir a trilha
da ruptura que deu origem ao Grupo Modernidade/Colonialidade, é desenvolvido
afastando-se das influências pós-modernas – buscadas sobretudo no pós-estruturalismo
francês da segunda metade do século XX – que marcavam os estudos pós-coloniais
dominantes (PAZELLO, 2014, p. 89-90).5

3. Pós-modernidade e o pós-modernismo de oposição

Intelectual já de projeção internacional antes da constituição do Grupo


Modernidade/Colonialidade, Boaventura Santos acabará se aproximando do movimento
decolonial algum tempo depois de sua origem. Essa trajetória de aproximação não
corresponde a um mero encontro aleatório, nem pode ser reduzida a uma comunhão de
perspectivas político-ideológicas apenas. Antes, ela pode ser traçada internamente à obra
teórica prévia do próprio B. Santos, tendo como ponto de partida a sua crítica ao
paradigma moderno, que desde muito cedo está presente em suas reflexões.

5 Por causa da pluralidade interna ao pensamento decolonial, esse afastamento em relação à influência pós-
moderna, mais especificamente em relação ao pós-estruturalismo francês, não pode ser tomada como uma
característica geral que permanece inalterada para além do momento de fundação do Grupo
Modernidade/Colonialidade. A obra de um autor como Santiago Castro-Gómez, por exemplo, não mantém
esse afastamento.

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Para ele, a modernidade aparece inicialmente como um problema na medida


em que as promessas inscritas nela não puderam ser cumpridas por ela mesma (SANTOS,
2007, p. 19). Nesse âmbito de reflexão sobre promessas que não se cumpriram, o direito
e a ciência vão aparecer como instituições basilares para a compreensão do transcurso da
modernidade e para pensarem-se as possibilidades de sua superação (SANTOS, 2011, p.
52).
É importante destacar, desde já, que nesse momento de sua obra a distinção
entre Norte e Sul ainda não possui a força que viria a adquirir depois. Não que essa
distinção não apareça, mas, mesmo quando aparece, ainda não está vinculada ao que
viria a ser o giro decolonial, a partir do qual ela assumirá a condição de uma clivagem
conceitual central.
Seguindo a linha argumentativa das promessas que não se cumpriram, o
paradigma da modernidade, segundo B. Santos, seria fortemente marcado por
contradições internas: ele traz consigo a possibilidade de uma inovação cultural e social,
mas essa possibilidade não se efetiva (SANTOS, 2011, p. 50-51). Como consequência, a
modernidade, no limite, torna-se um conjunto contraditório de promessas não
cumpridas, de um lado, e de promessas cumpridas em excesso, de outro (SANTOS, 2007,
p. 19).
Esse caráter contraditório do paradigma moderno abre caminho, por sua vez,
para a categoria das transições paradigmáticas. Estas ocorrem quando as contradições
internas a um paradigma não são mais geridas de maneira satisfatória por mecanismos
também internos a ele (SANTOS, 2011, p. 167). O fato de na modernidade haver
perguntas modernas para as quais não há respostas modernas (SANTOS, 2007, p. 19)
estaria, assim, a apontar tanto para um esgotamento da modernidade quanto para uma
transição paradigmática em direção a uma pós-modernidade:
Afirmar que o projeto da modernidade se esgotou significa, antes de mais,
que se cumpriu em excessos e déficits irreparáveis. São eles que constituem
a nossa contemporaneidade e é deles que temos de partir para imaginar o
futuro e criar as necessidades radicais cuja satisfação o tornarão diferente e
melhor que o presente. A relação entre o moderno e o pós-moderno é, pois,
uma relação contraditória. Não é de ruptura total como querem alguns, nem
de linear continuidade como querem outros. É uma situação em que há
momentos de ruptura e momentos de continuidade. A combinação específica
entre estes pode variar de período para período ou de país para país (SANTOS,
2013, p. 134).

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Essa transição não seria apenas entre modos de produção econômicos, como
era pensada na chave do marxismo mais ortodoxo, mas entre formas de sociabilidade,
incluindo a dimensão social, cultural, política e econômica (SANTOS, 2011, p. 168).
Não é difícil vislumbrar aqui uma similaridade com a crítica pós-moderna à
modernidade, crítica que, respeitadas as divergências internas entre tantas e tantos
autores distintos, é também compartilhada pelos estudos pós-coloniais.
Como dito acima, o Grupo Modernidade/Colonialidade terá como um dos
motivos fundamentais de seu surgimento a busca por afastar-se do pós-colonialismo,
busca justificada exatamente pela influência que nele se fazia sentir de autores e de
autoras ligados aos argumentos e aos afetos da pós-modernidade (PAZELLO, 2014, p. 89-
90).
A posição de Enrique Dussel quanto ao tema é exemplar quanto à relevância
que esse afastamento possui para o pensamento decolonial. Segundo ele, as correntes
pós-modernas, diferentemente dos estudos decoloniais, acabariam caindo em um
reducionismo vulgar tão grande quanto aqueles levados a cabo pela modernidade
eurocêntrica mesma. Pois, segundo o filósofo argentino radicado no México, nos estudos
pós-modernos
Se critica uma certa unilateralidade com outra de sentido contrário, e se cai
naquilo que se critica. Desde uma crítica panóptica pós-moderna repete-se a
pretensão universal da Modernidade; ou seja, “a pós-modernidade – nos diz
Eduardo Mendieta – perpetua a intenção hegemônica da modernidade e da
Cristandade ao negar-lhe a outros povos a possibilidade de nomear a sua
própria história e de articular seu próprio discurso autorreflexivo” (DUSSEL,
2017, p. 3237-3238).

No mesmo sentido, Aníbal Quijano – que, ao lado de E. Dussel e de W. Mignolo


são em geral reconhecidos como os pilares centrais do pensamento decolonial
(BRAGATO; CASTILHO, 2014, p. 19; BELLO, 2015, p. 51; BERCLAZ, 2017, p. 205-206;
PAZELLO, 2014, p. 39) – afasta-se da tradição pós-moderna afirmando que ela teria
compreendido a realidade de modo distorcido ao também seguir ocultando a
colonialidade. Nas palavras do sociólogo peruano:

Na realidade, cada categoria usada para caracterizar o processo político


latino-americano tem sido sempre um modo parcial e distorcido de olhar
esta realidade. Essa é uma conseqüência inevitável da perspectiva
eurocêntrica, na qual um evolucionismo unilinear e unidirecional se
amalgama contraditoriamente com a visão dualista da história; um dualismo

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novo e radical que separa a natureza da sociedade, o corpo da razão; que não
sabe o que fazer com a questão da totalidade, negando-a simplesmente,
como o velho empirismo ou o novo pós-modernismo, ou entendendo-a só
de modo organicista ou sistêmico, convertendo-a assim numa perspectiva
distorcedora, impossível de ser usada salvo para o erro (QUIJANO, 2014, p.
157, destaques nossos).

Se assim o é, torna-se questionar: um autor como Boaventura Santos, que se


vincula textualmente a um projeto de pós-modernidade, pode vincular-se também ao
movimento decolonial? Não haveria aí um choque radicalmente incomensurável de
pressupostos?
Para começar a galgar o caminho de uma resposta capaz de afastar a suspeita
de incompatibilidade, o primeiro passo é evidenciar que a concepção de B. Santos sobre
a pós-modernidade é distinta da definição de pós-modernidade6 frente à qual as autoras
e os autores decolonais procuram afastar-se.
Apesar de Boaventura Santos ter denominado assim o período de transição
paradigmática, para ele essa designação de pós-moderno seria inadequada. Em suas
próprias palavras: “a designação pós-moderno nunca me satisfez” (SANTOS, 2004, p. 6).
O problema do termo “pós-moderno” seria que ele carrega consigo uma série
de pré-compreensões, das quais o autor português se afasta, como: o entendimento
sugerido de que a definição do novo paradigma somente ocorre a partir da negação do
anterior; a pressuposição de que há uma sequência no tempo, como se o novo paradigma
somente pudesse ser constituído com o fim do anterior; o risco de que, como o
desenvolvimento social e científico não é o mesmo em todo o mundo, a pós-modernidade
pudesse ser compreendida como sendo um privilégio das sociedades do centro (SANTOS,
2004, p. 4).
Como nenhuma dessas características está presente na concepção de pós-
modernidade que havia sido sustentada por B. Santos, ele chama atenção para o fato de
que seu conceito de pós-modernidade é muito diferente do que circula na Europa e nos
Estados Unidos – em ambos os casos, e apesar de diferenças mais ou menos sutis,
relacionado a uma celebração da pós-modernidade paralela a uma recusa da
modernidade, dos seus modos de racionalidade, de seus valores e também do

6 O próprio Enrique Dussel chega a utilizar, na década de 1970, a nomenclatura pós-moderna para definir o
seu projeto teórico, projeto que hoje assume o nome de transmodernidade. Conferir: DUSSEL, 1977; DUSSEL,
2015.

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pensamento crítico que nela havia sido inaugurado. Para esse pós-modernismo, a crítica
à modernidade acabava “paradoxalmente na celebração da sociedade que ela tinha
conformado” (SANTOS, 2004, p. 4-5). Por conseguinte, à sua concepção de pós-
modernidade, em contraposição ao pós-modernismo celebratório típico dos Estados
Unidos e da Europa, B. Santos optou por chamar de “pós-modernismo de oposição”
(SANTOS, 2004, p. 4-5).
Da perspectiva de B. Santos, haveria uma relação entre o pós-modernismo
celebratório e o pós-colonialismo dominante, sendo que o primeiro exerce influência
sobre o segundo, o que levaria a um eurocentrismo, ou melhor, a um etnocentrismo dos
estudos pós-coloniais (SANTOS, 2004, p. 11-12). Assim, sem negar totalmente o mérito
das concepções pós-modernas e pós-estruturalistas na emergência dos estudos pós-
coloniais, essas concepções não seriam capazes de corresponder às aspirações éticas e
políticas subjacentes ao pós-colonialismo (SANTOS, 2004, p. 13). Essa crítica, porém, não
se aplicaria ao pós-modernismo de oposição (SANTOS, 2004, p. 13), pois este compreende
a superação da modernidade desde uma perspectiva tanto pós-colonial quanto pós-
imperial, situando-se nas margens mais extremas da modernidade nortecentrada para, a
partir desse lugar epistêmico, lançar sobre ela um olhar crítico (SANTOS, 2004, p. 18-19).
Estabelecida a diferença entre “pós-modernismo celebratório” e “pós-
modernismo de oposição”, não é difícil perceber o quanto a proposta de B. Santos já
guardava afinidades eletivas com as bases fundamentais do Grupo
Modernidade/Colonialidade antes da efetiva aproximação entre eles7. Quanto à tarefa de
superação da modernidade/colonialidade, por exemplo, ela consiste para W. Mignolo em
[...] contar as histórias não apenas a partir do interior do mundo “moderno”,
mas também a partir das fronteiras. A partir de histórias “[...] esquecidas
que trazem para o primeiro plano [...] uma nova dimensão epistemológica:
uma epistemologia da, e a partir da margem do sistema mundial
colonial/moderno”. (MIGNOLO, 2002, p. 83, destaques nossos)

Partindo da perspectiva do pós-modernismo de oposição, B. Santos vai


direcionar duas principais críticas ao que seria, também em seu entender, o pós-
colonialismo dominante. A primeira está relacionada ao eurocentrismo e ao não

7 Para críticas algo semelhantes ao pós-modernismo, conferir, por exemplo: DUSSEL, 2017; QUIJANO, 2014;
MIGNOLO, 2017.

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rompimento definitivo com autores eurocêntricos e com autoras eurocêntricas 8, cuja


presença contribuiria para uma fragilização política do pós-colonialismo (SANTOS, 2004,
p. 26).
A segunda crítica, por sua vez, diz respeito à compreensão homogeneizante das
relações coloniais, indicando uma ausência de capacidade histórico-comparativa
(SANTOS, 2006, p. 243-244). Nesse sentido, as relações coloniais, no bojo dos estudos
pós-coloniais, seriam consideradas como um todo uniforme e homogêneo, sem se
analisar o que havia de específico nas variadas formas de colonização e de colonialidade
que se deram em lugares tão distintos como as Américas, a África, a Ásia (SANTOS, 2006,
p. 243-244).
Mais uma vez aqui, B. Santos não está distante de um dos fundadores do Grupo
Modernidade/Colonialidade, W. Mignolo. Também para este o movimento pós-colonial
dominante teria ocultado a dominação colonial latino-americana e a resistência latino-
americana do debate pós-colonial (MIGNOLO, 1998).
Assim, apesar de em alguns contextos não ficar claro até que ponto Boaventura
Santos não engloba todos os autores e todas as autoras dos estudos pós-coloniais e do
pensamento decolonial dentro de uma mesma categoria9, é nítido que suas críticas ao
pós-colonialismo voltam-se contra um conjunto de características ao menos de uma parte
do movimento pós-colonial, que é exatamente a parte à qual o Grupo
Modernidade/Colonialidade viria a se contrapor.

4. Para além do pós-colonialismo dominante

8 Voltando ao tema da influência de autores e de autoras ligadas ao pós-estruturalismo nos estudos pós-
coloniais, ela também foi identificada por W. Mignolo, sendo um dos motivos determinantes para o
afastamento dos autores e das autoras decoloniais em relação aos estudos pós-coloniais. Conferir: MIGNOLO,
2008. Ver, porém, nota 5 acima.
9 Por exemplo, no texto “Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e de outro”, B. Santos debate
com o movimento pós-colonial. No entanto, no próprio texto, ele responde a uma crítica realizada por W.
Mignolo em relação ao fato de sua teoria manter-se “demasiadamente dentro da modernidade” (SANTOS,
2004, p. 20). Nesse mesmo texto, B. Santos discorda da concepção de A. Quijano quanto à derivação das
formas de dominação na modernidade (SANTOS, 2004, p. 27). Ao mesmo tempo, no texto “Entre próspero e
Calibã: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade”, texto também destinado ao tema, ele cita “Homi
Bhabha”, “Gayatri Spivak”, “Renajit Guha”, entre outros (SANTOS, 2007, p. 234), como sendo integrantes do
“movimento pós-colonial”.

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Por tudo o que foi dito na seção anterior, não demoraria para que a aproximação entre
Boaventura Santos e o Grupo Modernidade/Colonialidade ocorresse, vindo aquele a
tornar-se membro deste.
Porém, a posição de Boaventura Santos também diante de autores e autoras
decoloniais não é uma posição de compartilhamento pleno de pressupostos e conclusões.
Como desdobramento de sua aproximação ao pensamento decolonial, e ao mesmo
tempo em contraste com o pensamento decolonial, B. Santos cunha a expressão “pós-
colonialismo de oposição” (SANTOS, 2004, p. 22).
Não fica exatamente claro a que se referiria esse pós-colonialismo de oposição
e o que ele traria de novidade em face do giro decolonial e do Grupo
Modernidade/Colonialidade. Mesmo não ficando completamente claro, todavia, parece
que dois aspectos são relevantes para compreender-se a singularidade que B. Santos
reivindica para si. O primeiro refere-se a uma maior ênfase na crítica ao capitalismo, que,
segundo Boaventura Santos, receberia, em regra, pouca atenção do movimento pós-
colonial dominante em comparação com a atenção dada à modernidade e ao colonialismo
(SANTOS, 2004, p. 28)10.
O segundo aspecto trata da consideração da especificidade da colonização,
sobretudo as relações Portugal/colônias e Portugal/mundo (SANTOS, 2004, p. 43-
44)(SANTOS, 2006, p. 244), que acabaria ofuscada na compreensão homogeneizante da
colonização latino-americana junto ao Grupo Modernidade/Colonialidade.
Esse segundo aspecto é particularmente interessante na medida em que aponta
para uma contradição interna ao Grupo Modernidade/Colonialidade, pois, ao mesmo
tempo em que o grupo criticara a homogeneização dos processos de colonização e de
colonialidade que acabava por ofuscar as singularidades latino-americanas, acabara por
homogeneizar as relações coloniais e de colonialidade na América Latina, ao tratar a
América Latina como um todo uniforme (SANTOS, 2006, p. 243-244).
Para B. Santos, da mesma maneira que há diferenças internas ao colonialismo
inglês e entre este e o colonialismo ibérico, há peculiaridades no colonialismo ibérico, pois
há especificidades do colonialismo português em relação ao espanhol, derivadas tanto da
posição específica – semiperiférica – de Portugal no mundo quanto do modo específico
de sua relação com suas antigas colônias (SANTOS, 2006, p. 244). Essas distinções não

10 Essa crítica dificilmente se sustenta em face da obra de E. Dussel e A. Quijano. Conferir: DUSSEL, 2007;
QUIJANO, 2010; 2014.

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marcam apenas o modo como ocorreram as diferentes formas de colonização, como


também geram efeitos distintos no momento “pós-colonial” nos espaços de língua
portuguesa, sejam eles antigas colônias, ou mesmo a antiga metrópole (SANTOS, 2006, p.
244). Portanto, os impactos das distinções e especificidades da colonização e da
colonialidade portuguesa precisariam ser observados, embora essa tarefa ainda carecesse
de ser realizada (SANTOS, 2004, p. 43-44).
Esses dois aspectos, contudo, se podem iluminar um pouco melhor o que seria
a singularidade do pós-colonialismo de oposição, não permitem desfazerem-se em
definitivo as dúvidas sobre a que esse conceito se refere nem, o que é mais grave, até que
ponto as críticas que o constituem estão dirigidas apenas ao pós-colonialismo dominante,
apenas ao pensamento decolonial, ou a ambos (SANTOS, 2004, p. 22).
Apesar dessa ambiguidade nem de longe pouco relevante, é possível mapear
desenvolvimentos robustos na obra de Boaventura Santos a partir da sua aproximação ao
Grupo Modernidade/Colonialidade – desenvolvimentos que, como se verá ao final, não
deixam de lançar novas perguntas sobre a compatibilidade interna à sua obra.

5. O sul global

Datado de 2010, “Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una
epistemología del Sur” (SANTOS, 2010), é um texto que condensa provavelmente a maior
e mais desenvolvida parte desses desenvolvimentos que os estudos e escritos de B. Santos
seguirão desde sua vinculação ao Grupo Modernidade/Colonialidade.
Segundo o autor, há dois grandes sistemas de dominação do mundo inscritos na
modernidade, o capitalismo e o colonialismo, ao mesmo tempo diferentes e inseparáveis
(SANTOS, 2010, p. 60-61). Portanto, haveria três grandes desafios para o pensamento
crítico na América Latina: o pós-colonialismo, o pós-capitalismo e a articulação entre eles
(SANTOS, 2010, p. 29).
O colonialismo seria, então, uma das principais dificuldades a serem enfrentadas
pela “imaginação política”, ao lado do capitalismo. Pois, enquanto os governos oficiais
pensam, quando muito, um pós-capitalismo a partir do capitalismo e os movimentos
indígenas a partir do pré-capitalismo, nem um dos dois logra imaginar “o capitalismo sem
o colonialismo interno” (SANTOS, 2010, p. 26). Para Boaventura Santos,

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[...] o colonialismo interno não é somente nem principalmente, uma


política de Estado, como foi durante o colonialismo da ocupação
estrangeira; é uma gramática social muito vasta, que atravessa a
sociabilidade, o espaço público e o espaço privado, a cultura, as
mentalidades e subjetividades. É, em resumo, um modo de viver e
conviver muitas vezes compartilhado por quem se beneficia com isso
e por aqueles que o sofrem (SANTOS, 2010, p. 29).

Sendo assim, ao tratar do tema central do texto em questão, o Estado, B. Santos


o define como sendo moderno, capitalista e colonial, procurando chamar atenção para o
fato de que a refundação necessária desse Estado guarda os limites e as possibilidades da
imaginação política do fim do capitalismo e do fim do colonialismo (SANTOS, 2010, p. 69),
algo que estaria no horizonte dos movimentos indígenas do continente latino-americano:
eles têm consciência da dificuldade de se refundar o Estado, uma vez que isso não
acontecerá sem que haja o fim dos referidos sistemas de dominação e de exploração
(SANTOS, 2010, p. 71).
Identificados os dois grandes sistemas de dominação global e os desafios que
eles colocam para o pensamento e a prática críticos na América Latina, o passo seguinte
tem um caráter propositivo. B. Santos defende que os processos de desmercantilizar,
democratizar e descolonizar devem ser realizados por meio das epistemologias do Sul, a
partir do refazimento e, consequentemente, da ampliação do conceito de justiça social.
Neste, deve-se incluir na liberdade e na igualdade o reconhecimento da diferença, tanto
quanto incluir a justiça cognitiva, por meio da ecologia dos saberes 11, e a justiça histórica,
compreendida como luta contra o colonialismo tanto estrangeiro quanto interno
(SANTOS, 2010, p. 131).

11 Ecologia dos saberes é a proposta teórico-conceitual de B. Santos para a realização de um diálogo


horizontal entre as diferentes formas de conhecimento. Assim, é possível recuperar e valorizar os diferentes
saberes que resistiram à monocultura da ciência moderna e permanecem coexistindo com ela (SANTOS, 2013,
p. 13). É necessário evidenciar que o objetivo não é “‘descredibilizar’ a ciência”, mas realizar um uso contra-
hegemônico do conhecimento hegemônico: “Ou seja, a possibilidade de que a ciência entre não como
monocultura mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber científico possa
dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações
urbanas marginais, com o saber camponês. Isso não significa que tudo vale o mesmo. [...] Somos contra as
hierarquias abstratas de conhecimento, das monoculturas que dizem, por princípio, ‘a ciência é única, não há
outros saberes’. [...] Não há dúvidas de que para levar o homem ou a mulher à Lua não há conhecimento
científico; o problema é que hoje também sabes que, para preservar a biodiversidade, de nada serve a ciência
moderna. Ao contrário ela a destrói. Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade são os
conhecimentos indígenas e camponeses [...]” (SANTOS, 2007b, p. 32-33).

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Possivelmente, a mais nítida influência de sua aproximação com o movimento


decolonial se evidencie quando Boaventura Santos vai definir o que são as epistemologias
do Sul. Trata-se da
[...] demanda por novos processos de produção e avaliação de conhecimentos
científicos e não científicos válidos e de novas relações entre diferentes tipos
de conhecimento, com base nas práticas das classes e grupos sociais que
sofreram desigualdades e discriminações sistematicamente injustas causadas
pelo capitalismo e pelo colonialismo. O Sul global não é então um conceito
geográfico, embora a grande maioria dessas populações viva em países do
hemisfério sul. É mais uma metáfora do sofrimento humano causada pelo
capitalismo e pelo colonialismo em uma escala global e de resistência para
superá-lo ou minimizá-lo. É por isso um Sul anticapitalista, anticolonial e
antiimperialista (SANTOS, 2010, p. 43, destaques nossos).

A nitidez da influência se revela na alteração expressa do conceito de Sul, ao


acrescentar-se o colonialismo como causa do sofrimento humano 12. Antes, para o autor,
o Sul global era também a metáfora do sofrimento humano, mas tinha como causa apenas
o capitalismo (SANTOS, 2004, p. 6).
Outro texto emblemático na obra de B. Santos que permite mapear a influência
do giro decolonial é o “Para além do pensamento abissal: das linhas abissais globais a uma
ecologia dos saberes” (SANTOS, 2009). Anterior cronologicamente, nele a ênfase recai em
mostrar que o mundo não consiste em um todo homogêneo. Dessa forma, soma-se à
clivagem emancipação-regulação, que dominara seu pensamento desde o início13, uma
nova clivagem, uma clivagem geopolítica, correspondente à divisão do mundo em linhas
abissais.

12 Da mesma forma, no texto “Para além do pensamento abissal: das linhas abissais globais a uma ecologia
dos saberes”: “[...] Sul global não-imperial, concebido como metáfora do sofrimento humano sistêmico e
injusto provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo (SANTOS, 2009, p. 37).
13 Naquele contexto, a modernidade era compreendida como ancorada fundamentalmente na tensão entre
dois pilares, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. O pilar da regulação seria composto pelo princípio
do Estado, pelo princípio do mercado e pelo princípio da comunidade. O pilar da emancipação seria
constituído pela racionalidade estético-expressiva, pela racionalidade cognitivo-instrumental e pela
racionalidade moral-prática. Contudo, no transcurso da modernidade, teria vindo a ocorrer um desequilíbrio
internamente aos referidos pilares e entre eles: no pilar da emancipação houve a colonização das diferentes
racionalidades pela racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, e as potencialidades da emancipação
passaram a estar concentradas na ciência e na técnica; no pilar da regulação, por sua vez, houve o
desenvolvimento excessivo do mercado (SANTOS, 2011, p. 49-57); a consequência foi a absorção do pilar da
emancipação pelo pilar da regulação. Em outros termos, a “[...] redução da emancipação moderna à
racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, e a redução da regulação moderna ao princípio do mercado,
incentivadas pela conversão da ciência na principal força produtiva, constituem as condições determinantes
do processo histórico que levou a emancipação moderna a render-se à regulação moderna” (SANTOS, 2011,
p. 57).

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Nessa chave de leitura, passa a ser entendida como uma das marcas da
modernidade o caráter abissal do pensamento dominante nela produzido. Dividindo o
mundo em dois, entre Norte e Sul global, esse pensamento abissal consiste em distinções
visíveis e invisíveis, sendo que estas fundamentam aquelas ao dividir o mundo entre o
lado de cá e o lado de lá da linha – das linhas abissais. Essa cisão opera de tal maneira que
o outro lado da linha é invisibilizado, é tornado inexistente e, como existência tornada
inexistente pelo traçar mesmo das linhas abissais, sofre a exclusão radical, não se
encaixando sequer naquilo que a concepção dominante do “mesmo” aceita como sendo
o “outro” (SANTOS, 2009, p. 23-24).
Duas seriam as principais manifestações do pensamento abissal – não por acaso,
as duas categorias que melhor elucidavam, anteriormente em seu pensamento, a tensão
moderna entre emancipação e regulação: o direito moderno e o conhecimento moderno.
Em relação a este, o que estaria em jogo, “deste lado da linha” é a pretensão da ciência
moderna quanto ao monopólio do critério da verdade, em detrimento de formas outras
de conhecimento, como a filosofia e a teologia; ao mesmo tempo, “do outro lado da
linha”, formas variadas de conhecimentos populares não são sequer reconhecidas como
conhecimento, estando para além da própria distinção verdadeiro/falso (SANTOS, 2009,
p. 24-25).
Já no que tange ao direito, no “lado de cá da linha” – isto é, no Norte –, ele é
determinado pelo que se compreende como legal ou ilegal, a partir do direito oficial
estatal e internacional, sendo essa distinção entre legal e ilegal a única relevante e
tomada, por isso mesmo, como universal. Logo, é desconsiderado todo um conjunto de
relações perante as quais essa clivagem legal/ilegal em termos oficiais não faz sentido
(SANTOS, 2009, p. 26). Do “lado de lá da linha”, entretanto, não é nem mesmo a distinção
legal/ilegal que opera, ainda que gerando problemas quanto a relações não captáveis
adequadamente por ela: no Sul, as relações sociais são tomadas como situadas para além
de uma compreensão de mundo passível de ser organizada em torno da distinção entre
legal e ilegal – trata-se do simplesmente “sem lei” que repete em tom menos alegórico a
velha máxima segundo a qual não há pecado para além da linha do Equador (SANTOS,
2009, p. 28).
As linhas abissais assim traçadas dividem o mundo entre Norte e Sul negando a
possibilidade da co-presença, da presença comum entre formas de saber e de viver
distintas, e, na medida em que essa negação da co-presença se dá por meio de uma

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negação ativa da existência válida daquilo que está para além das linhas, produz-se um
desperdício de experiências, vivências, experimentações da realidade. Também aqui não
é difícil ouvir os ecos da velha crítica de Boaventura Santos aos desperdícios de uma
“razão indolente” (SANTOS, 2011), mas essa velha crítica aparece agora talhada em uma
linguagem claramente influenciada pelo pensamento decolonial.
Ao mesmo tempo, é também aqui que a continuidade entre seus estudos
anteriores e suas novas perspectivas recebe uma forte suspeita de não se sustentar sem
reformulações mais profundas do que prevalecera até então. Devido à separação em dois
universos distintos, entre metrópole e territórios coloniais, entre Norte e Sul, a tensão
que fundamenta a modernidade, assim como seus conflitos, entre emancipação e
regulação só se aplica nas sociedades metropolitanas, ou seja, no Norte global, não
fazendo sentido perante as sociedades coloniais. Nestas, a dicotomia presente é a da
apropriação/violência (SANTOS, 2009, p. 24), que se manifesta de formas distintas no que
tange às linhas abissais epistemológica e jurídica – mas se manifesta em ambas.
A existência dessa outra tensão, do “outro lado da linha”, no Sul global,
diferentemente da tensão entre regulação e emancipação, coloca, em princípio, o caráter
universal desta última dicotomia em xeque. Com ela, naquilo que interessa mais de perto
ao presente artigo, ameaça ruir também a defesa de B. Santos de que o direito poderia,
sim, ser emancipatório, a depender dos usos que se deem a ele (SANTOS, 2003).
Para tentar lidar com esses riscos que emergem diante de ambas as formulações
– a de uma dicotomia regulação/emancipação organizando uma modernidade que, a um
só tempo, é cindida por linhas abissais que fazem com que aquela dicotomia tenha de
conviver globalmente com outra, a da apropriação/violência –, é necessário
compreender-se toda a complexidade da articulação possível entre elas.
Dentro dessa proposta, pode-se afirmar que as linhas abissais globais
historicamente se deslocaram, sofreram “abalos tectônicos”, sendo o primeiro deles
referente aos processos de independência e às lutas anticoloniais das antigas colônias,
em que o “lado de lá da linha” voltou-se em atuações concentradas e concertadas contra
a exclusão e os povos que “haviam sido sujeitos ao paradigma da apropriação/violência
se organizaram e reclamaram o direito à inclusão no paradigma da
regulação/emancipação” (SANTOS, 2009, p. 32).
O segundo abalo tectônico, por sua vez, vem ocorrendo desde 1970 e 1980.
Nele, as linhas abissais globais movimentam-se no sentido de que o Sul parece estar a

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expandir-se, enquanto o Norte parece estar encolhendo: ou seja, a dicotomia


apropriação/violência vem tornando-se mais presente e mais forte no Norte global,
enquanto a lógica da regulação/emancipação vem enfraquecendo-se. Mais do que isso: o
domínio da regulação/emancipação não apenas está diminuindo, mas está sendo
desfigurado, pois vai contaminando-se inclusive internamente a si pela lógica da
apropriação e da violência (SANTOS, 2009, p. 32-33). A consequência vem estampada com
a face do fascismo social e do estado de exceção, que, dentro mesmo do Norte, convivem,
cada vez mais como se fora algo não problemático, ao lado da democracia liberal e da
normalidade constitucional, “transformando o colonial numa dimensão interna do
metropolitano” (SANTOS, 2009, p. 41).
Diante desse cenário, a tendência à reprodução do pensamento abissal – que
não só sustentou o delineamento moderno das linhas abissais, manifestando-se
precipuamente no direito moderno e no conhecimento moderno, mas continua
fundamentando hoje o deslocamento dessas linhas em direção a um encolhimento do
espaço de ação da dicotomia regulação/emancipação – somente pode ser barrada por
uma resistência ativa. Esta, por sua vez, embora deva manifestar-se como resistência
política, assenta-se numa resistência epistemológica, porquanto, para que haja uma
justiça social global, é necessário que haja uma justiça cognitiva, que seja também global
(SANTOS, 2009, p. 41): daí toda a força de sentido da proposta de “epistemologias do Sul”
(SANTOS; MENESES, 2009).
Para tanto, a crítica possui uma tarefa que vai além da criação de alternativas:
trata-se, antes, de gerar um pensamento pós-abissal como “um pensamento alternativo
de alternativas”. No desempenho dessa tarefa, atenção deve recair-se sobre o “contra-
movimento”, resultado do segundo abalo tectônico que as linhas abissais globais estão
sofrendo, denominado por Boaventura Santos como “cosmopolitismo subalterno”, uma
“globalização contra-hegemônica” caracterizada por iniciativas, organizações,
movimentos e redes capazes de ligar globalmente iniciativas locais dispersas, todas elas
comungando o propósito comum de opor-se à globalização hegemônica e a seus traços
claros de um neoliberalismo capitalista e colonial (SANTOS, 2009, p. 41-42).
Com isso, e sem desconsiderar as diferenças de um lado e do outro lado da linha,
seguiria sendo possível uma utilização não convencional do direito moderno e do
conhecimento moderno, que podem, a depender de seus usos, contribuir para a
diminuição das mazelas sofridas pelos povos e grupos oprimidos ao redor do globo.

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6. Considerações finais: poderá o direito ser decolonial?

A articulação entre as dicotomias regulação/emancipação e apropriação/violência


apresentada no final da seção anterior guia-se pelo princípio hermenêutico fundamental
que, possuindo também uma dimensão ética, recomenda procurar-se ler qualquer texto
à sua melhor luz. Entretanto, mesmo um esforço como tal não consegue eliminar de todo
as ameaças de curto-circuito que se projetam sobre as reflexões de B. Santos a partir de
sua aproximação ao pensamento decolonial e de sua vinculação ao Grupo
Modernidade/Colonialidade.
Especificamente quanto ao direito, é importante inicialmente lembrar que
Boaventura Santos o pensara, em uma de suas formulações canônicas sobre o tema, sob
a chave mais ampla da tensão regulação/emancipação. Assim, o direito, ao lado da
política, aparecia conectado às noções de globalização contra-hegemônica e de
cosmopolitismo sulbaterno – ou seja, para opor-se ao fascismo social não bastaria o
mesmo direito e a mesma política, mas um um outro direito e uma outra política (SANTOS,
2003, p. 27).
Relido no âmbito do cosmopolitismo subalterno – compreendido à época como
um projeto cultural, político e social ainda em suas manifestações embrionárias – esse
novo direito aparece sob a rubrica de uma “legalidade cosmopolita subalterna” (SANTOS,
2003, p. 35). Esta possui um conjunto de pressupostos, nos quais se pode vislumbrar um
rol amplo de possibilidades para as lutas emancipatórias que se valham do direito. De
partida, como a própria noção de uma “legalidade subalterna” convida a entender, o que
assume centralidade é um direito para além do direito estatal moderno, cunhado em uma
linguagem individualista moderna. Trata-se de um direito que emerge de outras fontes
que não o Estado – infra-estais, como grupos, comunidades, favelas e movimentos sociais,
mas também supra-estatais – e que pode ser reunido na noção mais ampla de direito não-
hegemônico. Porém, nem todo direito produzido fora da esfera estatal oficial e, por isso,
não-hegemônico é necessariamente também contra-hegemônico. O teste fundamental -
o "teste de Litmus"14 - consiste em averiguar-se se esse direito não-hegemônico, esse

14 Sobre esse tema, conferir: MALDONADO, 2015.

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pluralismo jurídico, contribui ou não para a redução das desigualdades e para a inclusão.
Se o fizer, aí sim está-se diante de um direito não-hegemônico e contra-hegemônico, uma
“pluralidade jurídica cosmopolita” (SANTOS, 2003, p. 39).
Por outro lado, porém, o direito hegemônico não é totalmente excluído do
cosmopolitismo subalterno. Em primeiro lugar, porque é possível o uso não-hegemônico
de ferramentas jurídicas hegemônicas: isto é, “a legalista cosmopolita perfilha uma visão
não-essencialista do direito estatal e dos direitos” (SANTOS, 2003, p. 37), de modo que o
que torna esse direito um direito hegemônico é o uso que classes e grupos dominantes
dão a ele, não sendo uma questão de um direito que seria, desde sempre e para sempre,
ontologicamente hegemônico. Em segundo lugar, contudo, nem mesmo um uso
hegemônico do direito estatal e dos direitos individualistas que o caracterizam – a
“legalidade demoliberal” – estão descartados: “as lutas cosmopolitas podem aliar com
proveito estratégias jurídicas cosmopolitas e estratégias demoliberais, originando assim
híbridos político-jurídicos de vários tipos” (SANTOS, 2003, p. 41). Um bom exemplo desses
híbridos seriam as lutas pelos direitos humanos15.
Em face de toda essa dinâmica complexa envolvida na legalidade cosmopolita
subalterna, B. Santos concluiu que o “direito não pode ser nem emancipatório, nem não-
emancipatório, porque emancipatórios e não-emancipatórios são os movimentos, as
organizações e os grupos cosmopolitas subalternos que recorrem à lei para levar as suas
lutas por diante” (SANTOS, 2003, p. 71). O que, em outras palavras, significa concluir tanto
pela possibilidade da emancipação em nível global quanto pela utilização emancipatória
do direito nas lutas subalterno-cosmopolitas contra a globalização hegemônica.
Todavia, essa clareza de conclusão abre-se a ser questionada no momento em
que a reflexão sobre o direito passa a ser atravessada pela clivagem colonial, pela
centralidade recebida pela distinção Norte/Sul e pela correlata dicotomia
apropriação/violência.
Em termos gerais, se a tensão regulação/emancipação é situada “do lado de cá
da linha”, como ainda seria possível pensar a emancipação “do lado de lá da linha”, isto
é, no Sul Global, onde precisamente se situam as situações e experiências que mais
clamam por justiça social? O modo topográfico – ou, para usar seus próprios termos,
cartográfico – como B. Santos lida com as duas dicotomias parece enredar sua obra em

15 É válido mencionar que A. Quijano também atribui uma relevância significativa aos direitos humanos.
Conferir: QUIJANO, 2001.

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contradições não facilmente superáveis desde um ponto de vista teórico-conceitual: se


não em nome da emancipação, em nome do quê se articulam e se devem articular as lutas
no Sul Global contra uma modernidade capitalista e colonial? Mas como podem essas
lutas valer-se da utopia emancipatória se, na forma descrita de um mundo
cartograficamente cindido por linhas abissais, a emancipação é tensionada pela regulação
apenas num Norte que se atrofia? Não se esconde nessa formulação ainda um resto de
eurocentrismo que não consegue estender também ao Sul as tensões tipicamente
geradas pelas expectativas de emancipação?
Se nossa leitura não estiver de todo equivocada, a maneira como se encontra
apresentada a relação entre linhas abissais, Norte, Sul, tensão regulação/emancipação e
tensão apropriação/violência na obra de B. Santos precisa ser profundamente
reformulada para que essas perguntas não assumam a figura de um beco sem saída.
No que tange à discussão mais específica sobre o direito, até que ponto,
recepcionadas a clivagem colonial Norte/Sul, as linhas abissais e a dicotomia
apropriação/violência, permanece válida em sua integridade a reflexão que havia sido
construída sobre o direito e a afirmação da possibilidade de um seu uso emancipatório?
Se “do lado de lá da linha” não há direito/não direito, mas apenas apropriação e violência,
como o é que o direito, confinado dentro do Norte, ainda pode ser usado de modo contra-
hegemônico no Sul? Uma solução possível seria esta: na formulação anterior, a pergunta
é pela possibilidade de o direito ser emancipatório, pergunta que recebe uma resposta,
conquanto ambígua, relativamente positiva: seus usos podem ser emancipatórios; na
leitura pós-giro decolonial, tanto a pergunta continuaria válida quanto a resposta
permaneceria positiva: mas se restringiriam ao Norte, ao “lado de cá da linha”, pois do
“lado de lá da linha” não há nem direito, nem emancipação.
Essa solução, caso conseguisse assegurar uma coerência interna, caminha em
direção radicalmente oposta aos propósitos práticos de uma obra como a de B. Santos,
que tanto tem contribuído ao longo das décadas com as lutas no Sul Global. Mas nem
mesmo essa coerência interna ela pode assegurar, exatamente porque Boaventura
Santos destaca-se, dentre tantas outras coisas, por ter sabido reconhecer o papel do
direito nas lutas sociais do Sul – em um país como o Brasil, por exemplo (SANTOS, 2007).
Assim, também especificamente quanto ao direito, o corpus das reflexões de B.
Santos parece necessitar de uma reformulação profunda, apta a articular de maneira não
contraditória a concepção de um direito cujo uso possa ser emancipatório também ali

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onde mais se necessita que ele o seja: no Sul Global, como um instrumento a mais de suas
lutas contra as ameaças crescentes de uma globalização hegemônica. Enfim, poderá o
direito, em seus usos emancipatórios, ser também uma ferramenta de uso decolonial?

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SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS,


Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra:
Almedina, 2009.

Sobre os autores

David F. L. Gomes
Professor efetivo da Faculdade de Direito da UFMG. Doutor, mestre e bacharel em
Direito pela UFMG. E-mail: davidflg@ufmg.br

Rayann K. Massahud de Carvalho


Mestre em direito pela UFMG. Bacharel em direito pela UFLA. E-mail:
rayannkmassahud@gmail.com

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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A emergência do novo coronavírus e a “lei de quarentena”


no Brasil
The Emergency of the new Coronavirus and the “Quarantine Law” in Brazil

Deisy de Freitas Lima Ventura1


1 Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: deisy.ventura@usp.br.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8237-2470.

Fernando Mussa Abujamra Aith2


2 Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: fernando.aith@usp.br.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1971-9130.

Danielle Hanna Rached3


3
Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
danielle.rached@fgv.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6759-3459.

Artigo recebido em 11/03/2020 e aceito em 12/03/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 102-138.
Deisy de Freitas Lima Ventura, Fernando Mussa Abujamra Aith e Danielle Hanna Rached
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/49180| ISSN: 2179-8966
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Resumo
A Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, regula medidas de saúde pública relacionadas
à emergência do novo coronavírus com alto potencial restritivo de direitos
fundamentais, inclusive a quarentena e o isolamento. Esta análise crítica aborda a
dimensão internacional da emergência, além da tramitação casuística e antidemocrática
da lei brasileira. Com base na legislação epidemiológica em vigor, escrutina estas
medidas excepcionais e as salvaguardas à sua implementação.
Palavras-chave: Quarentena; Coronavírus; Emergência Internacional.

Abstract
Law no. 13,979, of February 6, 2020, regulates public health measures related to the
emergence of the new coronavirus with high potential to restrict fundamental rights,
including quarantine and isolation. This critical analysis addresses the international
dimension of the emergency, and the casuistic and anti-democratic procedure of the
Brazilian law. Based on the epidemiological legislation in force, it scrutinizes restrictive
measures and safeguards for its implementation.
Keywords: Quarantine; Coronavirus; International Emergency.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 102-138.
Deisy de Freitas Lima Ventura, Fernando Mussa Abujamra Aith e Danielle Hanna Rached
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Introdução

A Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 1 , doravante referida como “lei de


quarentena”, traz inovações significativas à ordem jurídica brasileira na medida em que
regulamenta matérias como a imposição de medidas de isolamento e quarentena de
pessoas e animais; a realização obrigatória de testes laboratoriais, vacinação, exames e
tratamentos médicos; a restrição temporária de entrada e saída do país de pessoas e
bens; a requisição de bens e serviços privados pelo Estado, entre outras, instituindo
limites mas também salvaguardas em relação ao exercício dos direitos e liberdades
fundamentais previstos pela Constituição Federal em vigor. Porém, seu alcance atém-se
exclusivamente “ao enfrentamento do coronavírus responsável pelo surto de 2019”,
não podendo ultrapassar o tempo de duração da Emergência de Saúde Pública de
Importância Internacional (ESPII)2 que foi declarada pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) em 30 de janeiro de 20203. A seguir, a OMS reconheceu a existência de uma
“pandemia de COVID-19”4, em 11 de março de 20205.
O objetivo do presente artigo é oferecer uma análise crítica da lei de quarentena,
destacando seus aspectos positivos e negativos, tendo como referências valorativas a
proteção da saúde pública, a democracia, os direitos humanos e as liberdades
fundamentais. Tal análise justifica-se pela crescente banalização de medidas restritivas
de direitos no plano global, motivadas, em geral, pelo pânico disseminado entre as
populações. Não se trata apenas da China, regime ditatorial e epicentro da propagação

1 BRASIL. Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da
emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo
surto de 2019. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 7 fev. 2020.
2 Cf. artigo 1°§ 3° da lei de quarentena.
3 OMS. Statement on the second meeting of the International Health Regulations (2005) Emergency

Committee regarding the outbreak of novel coronavirus (2019-nCoV). Genebra, 30 jan. 2020. Disponível em
<https://www.who.int>. Acesso em 28 fev. 2020.
4 A primeira denominação adotada pela OMS foi “novo coronavirus 2019” (em inglês, “2019 novel

coronavirus”), posteriormente alterada para SARS-CoV-2. Em 11 de fevereiro, a OMS passou a chamar a


doença decorrente do vírus de “COVID-19”, que é o acrônimo de “doença por coronavírus” (“coronavirus
disease”), acrescido do ano relativo à aparição do surto (2019), v. OMS. WHO Director-General's remarks at
the media briefing on 2019-nCoV on 11 February 2020. Genebra, 11 fev. 2020. Disponível em
<https://www.who.int>. Acesso em 28 fev. 2020. No âmbito deste artigo, optamos por adotar a referência
da lei brasileira, “coronavírus responsável pelo surto de 2019”, simplificada pela expressão “novo
coronavírus”.
5 Na ausência de uma definição jurídica, de modo geral, a OMS chama de pandemia a propagação

internacional de uma nova doença. No caso do novo coronavírus, porém, a declaração faz referência à
rapidez da propagação, ao número de casos graves e à insuficiência da resposta, cf. WHO Director-General's
opening remarks at the media briefing on COVID-19 - 11 March 2020. Genebra, 11 mar. 2020. Disponível em
<https://www.who.int>. Acesso em 11 mar. 2020.

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internacional do novo coronavírus6, que implementou medidas radicais de contenção da


doença nas regiões mais atingidas, entre elas o isolamento de cidades populosas, o
fechamento de estabelecimentos, inclusive escolares, e a suspensão de funcionamento
do transporte coletivo7. Também a Itália, que foi o segundo epicentro da doença e é
uma importante democracia europeia, adotou medidas similares às chinesas que foram
consideradas “frenéticas, irracionais e imotivadas”, capazes de instaurar um “estado de
medo” como justificativa para medidas de exceção 8 . Foram igualmente relatadas
significativas tensões entre poderes locais e o poder central, decorrentes do
regionalismo que caracteriza o sistema de saúde italiano, com a adoção de diferentes
protocolos a depender da região em questão9.
Do ponto de vista teórico, este texto posiciona-se na vertente de estudos
críticos da saúde global no sentido de que aborda a interação entre as agendas políticas
e as formas pelas quais as ideias sobre as emergências são apresentadas, interpretadas,
justificadas, legitimadas e contestadas10. Também pretende ser considerado um estudo
crítico por ser “centrado nas pessoas” 11 , em oposição aos enfoques securitários,
dogmáticos ou tecnicistas.
Tratando-se de um artigo jurídico, não é demais ressaltar o crescente
reconhecimento da importância do direito na saúde global. Com efeito, as diferentes
formas de regulação podem influenciar positiva ou negativamente os sistemas nacionais
de saúde; as agendas políticas dos Estados, das Organizações Internacionais e de atores

6 Segundo o Ministério da Saúde, os coronavírus causam infecções respiratórias e intestinais em humanos e


animais, a maioria delas causada por espécies de baixa patogenicidade que geram sintomas do resfriado
comum, podendo eventualmente levar a infecções graves em grupos de risco, idosos e crianças. Quanto ao
novo coronavírus, em particular, ainda não existe descrição clínica completa, havendo lacunas sobre os seus
padrões de letalidade, mortalidade, infectividade e transmissibilidade. Ademais, ainda não há vacina ou
medicamentos específicos disponíveis; atualmente, o tratamento oferecido ao paciente é de suporte e
inespecífico, cf. BRASIL. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico n. 3 - Doença pelo Novo Coronavírus
2019 - COVID-19, Brasília, 21 fev. 2020. O mesmo boletim destaca: “previamente a 2019, duas espécies de
coronavírus altamente patogênicos e provenientes de animais (SARS e MERS) foram responsáveis por surtos
de síndromes respiratórias agudas graves”, Ibid.
7 Ver, por ex., CHEN, Simiao et al. “COVID-19 control in China during mass population movements at New

Year”, The Lancet, v. 395, n. 10226, 2020, p.764-766.


8 AGAMBEN, Giorgio. O estado de exceção provocado por uma emergência imotivada. Tradução de Luisa

Rabolini. Instituto Humanitas Unisinos, 27 fev. 2020. Após a publicação do citado artigo, as medidas
excepcionais na Itália tornaram-se ainda mais extensas e drásticas, v. Itália. Conselho de Ministros. Decreto
del Presidente - Ulteriori disposizioni attuative del decreto-legge 23 febbraio 2020, n. 6, recante misure
urgenti in materia di contenimento e gestione dell'emergenza epidemiologica da COVID-19 (20A01522).
Diário Oficial, Serie Generale Roma, n.59, 08 mar. 2020.
9 ALONGE, Guillaume; GUARNIERI, Francesca. Le patient italien ou la vie au temps do Coronavirus. AOC -

Analyse, Opinion, Critique. 02 mar. 2020.


10 NUNES, João; PIMENTA, Denise. “A epidemia de Zika e os limites da saúde global”. Lua Nova: Revista de

Cultura e Política, n. 98, 2026, p. 21-46.


11 BIEHL, João; PETRYNA, Adriana. “Peopling Global Health”. Saúde e Sociedade, n.23, v.2, 2014, pp. 376-389.

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privados; o acesso das populações à saúde (inclusive aos medicamentos e à atenção


primária); o combate às diferentes formas de discriminação, entre outros e numerosos
temas, ensejando recentemente o surgimento da expressão “determinantes jurídicos da
saúde global”12.
O artigo possui cinco seções. A primeira apresenta o processo pelo qual uma
doença ou agravo torna-se uma emergência internacional. A segunda aborda a
justificativa e a tramitação da lei de quarentena. A terceira sintetiza a legislação
epidemiológica em vigor no que se refere às emergências e às medidas de saúde pública.
A quarta apresenta as medidas de saúde pública reguladas pela lei de quarentena,
enquanto a quinta e última seção escrutina as salvaguardas nela contidas. Por
derradeiro, algumas conclusões são formuladas.

Dimensão internacional da declaração de emergência

Organização especializada do sistema das Nações Unidas, a OMS é a autoridade


encarregada de dirigir e coordenar a atuação internacional no campo da saúde, sendo
dotada de poder regulamentar13. A declaração de uma ESPII pela OMS funda-se no
Regulamento Sanitário Internacional (RSI)14. A atual versão do RSI foi aprovada em 2005
pela Assembleia Mundial da Saúde15 e está em vigor desde 2007 em 196 Estados.
Conforme o artigo 1° do RSI, uma ESPII é um evento extraordinário que constitui “um
risco para a saúde pública para outros Estados, devido à propagação internacional de
doença”, e que potencialmente exige “uma resposta internacional coordenada”.

12 GOSTIN, Lawrence et al. “The legal determinants of health: harnessing the power of law for global health
and sustainable development”. The Lancet, v. 393, n. 10183, pp. 1857-1910.
13 OMS. Constituição (1946). In: BRASIL. Decreto n. 26.042, de 17 de dezembro de 1948. Promulga os Atos

firmados em Nova York a 22 de julho de 1946, por ocasião da Conferência Internacional de Saúde. Diário
Oficial da União (DOU), Rio de Janeiro, RJ, 25 jan. 1949, especialmente artigos 2° e 21 a 23.
14 BRASIL. Decreto n. 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto revisado do RSI, acordado na 58 a

Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 30 jan. 2020, retif. em 31 jan. 2020.
15 Principal órgão deliberativo da OMS, a Assembleia Mundial da Saúde reúne-se anualmente em Genebra,

sede da organização. Adota o sistema de votação por maioria, tendo cada Estado-membro direito a um voto.

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O surto do novo coronavírus, inicialmente ocorrido na China, motivou a sexta


ESPII declarada pela OMS. A figura n. 1 oferece algumas informações básicas sobre a
história dessas emergências.

Figura n. 1 - ESPIIs declaradas pela OMS até fevereiro de 2020

2. Poliomelite 4. Associação
5. Ebola 6. Coronavírus
1. Gripe A (H1N1) 3. Ebola entre zika vírus e
(em curso) malformações (em curso) (em curso)

•Declarada em •Declarada em •Declarada em •Vigente entre •Declarada em •Declarada em


abril de 2009, maio de 2014 agosto de 2014 e fevereiro e outubro de 2019 janeiro de 2020
extinta em (33a reunião do extinta em novembro de (2a reunião do com epicentro
agosto de 2010, Comitê de março de 2016, 2016, seu Comitê de na China,
com origem no Emergências em teve como epicentro foi o Emergências em seguida de
México e 07/01/2020) epicentro a Brasil que 12/02/2020) propagação
inicialmente •envolve África Ocidental, revelou para o •epicentro na internacional
chamada gripe atualmente mais com cerca de 11 mundo a República •declarada
suína de 20 Estados mil óbitos Síndrome Democrática do pandemia em 11
•declarada com diferentes notificados Congênita do Congo, marcada de março de
pandemia em graus de risco de •representa um Zika por conflitos 2020
junho de 2009 propagação turning point no •suscita a armados e •medidas
•denúncias internacional da campo da saúde questão das instabilidade altamente
apontaram doença, entre global, com doenças política restritivas de
conflitos de eles Afeganistão, grande endêmicas no • gerou polêmica direitos são
interesse na Nigéria, repercussão dos âmbito das sobre declaração adotadas,
composição do Paquistão e Síria 7 casos da ESPIIs tardia e inclusive nas
comitê de •risco de doença tratados •impacto sobre relativização democracias
emergências da propagação do no Ocidente direitos sexuais e política do europeias
OMS vírus foi •ação da OMS reprodutivos das conceito de ESPII •repercussão da
•comissões de ampliado por foi considerada mulheres, e pelo respectivo doença causa
alto nível conflitos um fracasso; sobre os direitos Comitê de impacto
formularam armados e crises uma missão da das crianças Emergências crescente no
duras críticas ao políticas, ONU (UNMEER) •marcada por mercado
texto ou à gerando o assumiu controle grave crise internacional
aplicação do RSI comprometimen da resposta política e a
to dos internacional, simultaneidade
programas de focada na com Jogos
imunização contenção Olímpicos e
geográfica da Paralímpicos
doença e
marcada pela
militarização

Salta aos olhos que, das três ESPIIs atualmente em curso, apenas a relacionada
ao novo coronavírus alcança repercussão expressiva no plano global. Tanto a ESPII
referente ao poliovírus, que está por completar seis anos, como a recente ESPII que
corresponde ao ebola na República Democrática do Congo são raramente referidas
pelos meios de comunicação.
A análise da figura n. 1 demonstra, ainda, que a letalidade da ameaça em
questão; o número ou a gravidade dos casos; os impactos sobre as populações atingidas,
ou ainda a eventual ineficiência dos Estados onde ocorrem os surtos não são os fatores
que determinam a declaração de uma ESPII. Os elementos decisivos, de acordo com o já
citado conceito previsto no RSI, são: o caráter extraordinário do evento; o potencial de
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propagação da doença entre as regiões do mundo; e a necessidade de


internacionalização da resposta. Daí decorre que doenças que afligem milhões de
pessoas não sejam consideradas emergenciais nos termos do RSI 16.
A figura n. 2, por sua vez, descreve sinteticamente o mecanismo de declaração
de uma ESPII.

Figura 2 - Declaração de uma ESPII segundo o RSI

Os 196 Estados Partes do RSI têm Cabe ao Diretor-Geral da OMS OMS emite recomendações
obrigação de notificar a existência declarar seu início e fim (art.12) temporárias (art.15)
de eventos extraordinários (art. 6°)

• mas OMS não depende de • depois de ouvido um Comitê de • Estados podem adotar medidas
notificação, nem do Emergências composto por adicionais às recomendadas, mas
consentimento do Estado onde especialistas (arts.48-49) devem justificá-las junto à OMS
ocorre um surto para declarar que mantém um mecanismo de
uma ESPII (art.12) controle sem poder de sanção
(art.43)

Nota-se que o RSI em vigor outorga à OMS uma competência da maior


relevância, eis que a declaração de uma ESPII pode causar grande repercussão
econômica, política e social, como é o caso do novo coronavírus. No entanto, há uma
vasta literatura crítica sobre o RSI e o mecanismo de declaração de emergências da OMS.
Ela indica disfunções concernentes aos Comitês de Emergências que dão base à
declaração de uma ESPII pela Direção Geral, inclusive sua composição17 e a opacidade
de seus processos decisórios18; além da ausência de poder de sanção que possa
converter as recomendações da OMS em obrigações para os Estados, entre outros
aspectos19.

16 A pertinência deste conceito é tema recorrente da literatura crítica sobre a saúde global. Experiências
recentes de ampliação do conceito de emergência em saúde são descritas pela literatura, v. SUNSHINE,
Gregory et al. “Emergency Declarations for Public Health Issues: Expanding Our Definition of Emergency”.
The Journal of Law, Medicine & Ethics, v. 47, n. 2_suppl, 2019, pp. 95–99.
17 Quando da declaração da primeira ESPII, relativa à gripe A(H1N1), a OMS só divulgou a identidade dos

membros do comitê ao final da emergência, ensejando acusações de conflito de interesses de seus


membros, alguns deles vinculados à indústria farmacêutica. A partir da segunda ESPII, a composição dos
comitês passou a ser divulgada simultaneamente à declaração da ESPII, v. lista de membros do comitê
relativo ao novo coronavírus disponível em <https://www.who.int>. Acesso em 28 fev. 2020.
18 Ver sobretudo FIDLER, David. “To Declare or Not to Declare: The Controversy Over Declaring a Public

Health Emergency of International Concern for the Ebola Outbreak in the Democratic Republic of the
Congo”. Asian Journal of WTO & Int. Health Law and Policy, V.14, N. 2, Set. 2019, pp. 287-330.
19 Sobre as negociações do RSI, seu alcance jurídico e uma síntese das críticas a ele destinadas ver VENTURA,

Deisy. Direito e saúde global - o caso da pandemia de gripe A(H1N1). São Paulo: Expressão Popular/Dobra
Editorial, 2013, part. capítulos 3 e 4.

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As declarações de emergências, sejam elas internacionais ou nacionais, têm


como efeito potencial a adoção de medidas excepcionais de proteção da saúde pública
que ensejam a necessidade de ponderação e equilíbrio entre os direitos individuais e o
interesse coletivo.

Nova lei de quarentena brasileira: uma tramitação casuísta e antidemocrática

Elaborada em menos de uma semana, com dois dias de tramitação entre as duas casas
do Congresso Nacional, a Lei n. 13.979/2020 resultou de estreita coordenação entre o
Poder Executivo e as lideranças do Poder Legislativo.
O correspondente Projeto de Lei (PL) n. 23/2020, de iniciativa do governo
federal, não foi submetido ao debate democrático, exceto durante escassas horas de
discussão no plenário da Câmara dos Deputados, premidas pela tramitação do texto em
regime de urgência20, solicitado pela própria casa legislativa21. Modificado pela Câmara
dos Deputados, o PL n. 23/2020 foi convertido em lei após sua aprovação integral pelo
Senado Federal, recebendo a seguir uma sanção presidencial plena.
Embora à época o Brasil não tivesse casos confirmados de coronavírus e
contasse um reduzido número de casos suspeitos, a urgência na tramitação da lei foi
uma condição imposta pelo Poder Executivo para repatriar os brasileiros que se
encontravam em Wuhan, China, então o epicentro da ESPII. De início, o líder de extrema
direita Jair Bolsonaro, Presidente da República, havia afastado a possibilidade de
repatriação por dois motivos: o elevado custo financeiro da operação, considerando as
condições especiais de traslado de potenciais pacientes; e a suposta ausência de
legislação aplicável ao caso, que ensejaria o risco de suspensão de medidas restritivas de

20 Em virtude do art. 152 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, “Urgência é a dispensa de
exigências, interstícios ou formalidades regimentais, salvo as referidas no § 1º deste artigo [publicação e
distribuição, em avulsos ou por cópia, da proposição principal e, se houver, das acessórias; pareceres das
Comissões ou de Relator designado; e quórum para deliberação], para que determinada proposição (...) seja
de logo considerada, até sua decisão final”, cf. BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados.
Regimento interno da Câmara dos Deputados. 9. ed. Brasília: Edições Câmara, 2011.
21 Em 04/02/2020, pelo Deputado Aguinaldo Ribeiro, na condição de Líder da Maioria, com base no art. 155

do já citado Regimento Interno da Câmara dos Deputados, segundo o qual “Poderá ser incluída
automaticamente na Ordem do Dia para discussão e votação imediata, ainda que iniciada a sessão em que
for apresentada, proposição que verse sobre matéria de relevante e inadiável interesse nacional, a
requerimento da maioria absoluta da composição da Câmara, ou de Líderes que representem esse número,
aprovado pela maioria absoluta dos Deputados (...)”, Ibid.

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direitos por meio de ações judiciais22. Assim, como reconhece o Parecer do Senado
Federal que recomendou a aprovação do já citado PL, “a edição de uma nova lei é
necessária para dar segurança jurídica à repatriação de brasileiros que estão em Wuhan,
cidade chinesa que é o epicentro do surto, e ao regime de quarentena ao qual eles
deverão ser submetidos no retorno ao País”23.
Foi deflagrada então a “Operação Regresso à Pátria Amada Brasil” 24, que
compreendeu o chamado “resgate” de 34 brasileiros que se encontravam em Wuhan
por intermédio de dois aviões da Força Aérea Brasileira (FAB), e sua subsequente
submissão à quarentena, juntamente com 24 profissionais que acompanharam a missão,
na Base Aérea de Anápolis (GO), durante 14 dias 25.
Trata-se de um velho dilema: “um enfoque imperialista da saúde pública conduz
a um questionamento ou a uma limitação inaceitável das liberdades fundamentais, mas
uma concepção minimalista pode provocar dramas humanos de gravidade
excepcional”26. Logo, as medidas de saúde pública podem, de fato, “invadir a esfera da
liberdade individual de forma bastante agressiva”, invasão que, “no âmbito do Estado
Democrático de Direito, será sempre permitida quando feita nos termos da lei e em
defesa do interesse público, no caso, a proteção da saúde pública contra riscos à saúde
identificados na sociedade”, com base em “amplo debate social” sobre as regras e os
procedimentos que o Estado deve adotar”27. Os programas de imunização, cada vez

22 “Ao trazer brasileiros pra cá, é nossa ideia colocar em um local para quarentena, mas qualquer ação
judicial tira de lá”, declarou o Presidente, cf. G1, TV GLOBO. “Bolsonaro diz que não traz brasileiros da China
porque 'custa caro' e não há lei de quarentena”. Globo.com, Brasília, 31 jan. 2020. Disponível em
<https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/31/bolsonaro-reune-ministros-para-avaliar-risco-do-
coronavirus-e-situacao-de-brasileiros-na-china.ghtml>. Acesso em 28 fev. 2020.
23 BRASIL. SENADO FEDERAL. Parecer n. 1/2020. De Plenário, em substituição à Comissão de Assuntos

Sociais sobre PL n. 23, de 2020, do Poder Executivo, que dispõe sobre as medidas sanitárias para
enfrentamento da ESPII decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Relator: Senador
Nelsinho Trad. Brasília, 5 fev. 2020.
24 Ação interministerial que envolveu o Ministério da Defesa (em especial por meio da Força Aérea Brasileira,

FAB), o Ministério da Saúde, o Ministério das Relações Exteriores e a Agência Brasileira de Vigilância
Sanitária (ANVISA), para a qual foi criado um site oficial próprio, disponível em
<http://www.fab.mil.br/operacaoregresso/>. Acesso em 28 fev. 2020.
25 AGÊNCIA BRASIL. “Coronavírus: todos os protocolos foram cumpridos, diz ministro”. EBC, Brasília, 23 fev.

2020. Disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-02/coronavirus-todos-os-


protocolos-foram-cumpridos-diz-ministro>. Acesso em 28 fev. 2020.
26 TABUTEAU, Didier. “Santé et liberté”, Pouvoirs, vol. 130, no. 3, 2009, pp. 97-111.
27 AITH, Fernando; DALLARI, Sueli. Vigilância em saúde no Brasil: os desafios dos riscos sanitários do século

XXI e a necessidade de criação de um sistema nacional de vigilância em saúde. Revista de Direito Sanitário,
São Paulo v. 10, n. 2, Jul.-Out. 2009, p.121.

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mais atacados por campanhas contrárias à vacinação, constituem um exemplo bastante


revelador da complexidade desta questão 28.
As tensões entre interesses legítimos, mas eventualmente diversos ou até
antagônicos, põem em relevo a importância de uma “democracia sanitária” que
compreenda a positivação de direitos de participação popular em processos decisórios
relacionados à saúde; a organização do Estado para a prática de processos decisórios
participativos; além da ampliação dos espaços e processos de argumentação,
possibilitando que todas as partes interessadas consigam apresentar seus argumentos e
influenciar no processo decisório29.
Daí decorre que, em Estados democráticos, medidas restritivas de direitos e
liberdades fundamentais devam ser reguladas de forma detalhada, a fim de garantir que
sejam devidamente motivadas, razoáveis e proporcionais, além de potencialmente
eficientes; no campo da saúde, em particular, é imperativo que sejam baseadas em
evidências científicas.
Porém, a lei de quarentena brasileira ora em apreço, em que pese ter o mérito
de regulamentar as eventuais medidas restritivas de direitos relacionadas à emergência
do novo coronavírus, o faz de forma açodada, em um momento de notório declínio da
democracia e dos direitos humanos no território nacional. A próxima seção buscará
situá-la no contexto do ordenamento jurídico pré-existente.

Emergências e medidas de saúde pública: síntese da legislação epidemiológica em


vigor

28 “A obrigatoriedade da vacinação representa uma proteção ao bem público comum da prevenção e


promoção da saúde, mas não deve ser tomada de forma absoluta, sendo sempre passível de flexibilização
para casos em que a não vacinação não representar riscos relevantes para a saúde pública. Trata-se de um
conflito entre liberdade individual e saúde pública que deve ser sempre ponderado à luz dos princípios
jurídicos da razoabilidade e proporcionalidade, equilibrando-se a proteção à saúde com a proteção às
liberdades individuais da melhor forma possível”, BARBIERI, Carolina; COUTO, Márcia; AITH, Fernando. A
(não) vacinação infantil entre a cultura e a lei: os significados atribuídos por casais de camadas médias de
São Paulo, Brasil”. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, e00173315, 2017 .
29 AITH, Fernando. Direito à saúde e democracia sanitária. São Paulo: Quartier Latin, 2017, p.185-6.

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A atual legislação epidemiológica brasileira foi gestada na década de 1970, portanto


antes da existência da Constituição Federal de 1988 e da criação do Sistema Único de
Saúde, e na vigência do RSI de 1969, que era destinado ao combate de doenças
específicas: cólera, febre amarela, peste e varíola 30. Tal anacronismo soma-se ao
problema mais amplo da fragmentação da vigilância em saúde31 brasileira em vigilâncias
especializadas, quais sejam epidemiológica, sanitária e ambiental; e a superposição
existente entre elas, tanto no plano conceitual como no das práticas, mormente no que
atine ao exercício do poder de polícia32.
A presente seção limita-se a apresentar as principais normas que podem ser
diretamente relacionadas à nova lei de quarentena.
Ainda vigente, a Lei n. 6.259, de 30 de outubro de 1975, mantém-se como a
principal norma brasileira de vigilância epidemiológica de caráter geral, ao menos no
que tange ao tema em apreço33. A ação de vigilância epidemiológica compreende as
informações, investigações e levantamentos necessários à programação e à avaliação
das medidas de controle de doenças e agravos à saúde, competindo ao Ministério da
Saúde regular a organização e as atribuições de seus serviços, tanto públicos como
privados, além de promover a sua implantação e coordenação (art. 2°). A lei determina a
notificação compulsória às autoridades sanitárias dos casos suspeitos ou confirmados de
doenças que podem implicar medidas de isolamento ou quarentena, de acordo com o
RSI (supra citadas), além de outras doenças e “agravos inusitados à saúde” que podem
ser indicados pelo Ministério da Saúde (art. 7°). Estipula, ainda, que “é dever de todo
cidadão comunicar à autoridade sanitária local a ocorrência de fato, comprovado ou
presumível, de caso de doença transmissível”, sendo também obrigatória a notificação
de casos suspeitos ou confirmados das doenças previstas pelo artigo 7º por médicos e
outros profissionais de saúde, além dos responsáveis por estabelecimentos públicos e
particulares de saúde e ensino (art. 8°). Uma vez notificada, a autoridade sanitária é

30 OMS. Règlement Sanitaire International 1969. 3. ed. anotada. Genebra: OMS, 1983. Em 1981, a
Assembleia Mundial da Saúde excluiu a varíola do alcance do RSI, tendo em conta a sua erradicação. Ibid.
31 Nos termos do RSI, “vigilância” significa a coleta, compilação e a análise contínua e sistemática de dados,

para fins de saúde pública, e a disseminação oportuna de informações de saúde pública, para fins de
avaliação e resposta em saúde pública, conforme necessário (art. 1° do RSI).
32 AITH, Fernando; DALLARI, Sueli. Vigilância em saúde no Brasil: os desafios dos riscos sanitários do século

XXI e a necessidade de criação de um sistema nacional de vigilância em saúde. Revista de Direito Sanitário,
São Paulo v. 10, n. 2 p. 94-125 Jul.-Out. 2009.
33 BRASIL. Lei n. 6.259, de 30 de outubro de 1975. Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância

Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação


compulsória de doenças, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília,
DF, 31 out. 1975.

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obrigada a proceder à investigação epidemiológica pertinente para elucidação do


diagnóstico e averiguação da disseminação da doença na população sob o risco,
podendo exigir e executar investigações, inquéritos e levantamentos epidemiológicos
junto a indivíduos e a grupos populacionais determinados, sempre que julgar oportuno
visando à proteção da saúde pública (art. 11). Em decorrência dos resultados, parciais
ou finais, de tais iniciativas, a autoridade sanitária fica obrigada a adotar, prontamente,
as medidas indicadas para o controle da doença, no que concerne a indivíduos, grupos
populacionais e ambiente (art. 12).
Por fim, as pessoas físicas e as entidades públicas ou privadas, abrangidas pelas
medidas referidas no artigo 12, ficam sujeitas ao controle determinado pela autoridade
sanitária (art.13). Este, especificamente, foi o principal dispositivo legal a garantir ao
Poder Executivo o exercício do poder de polícia em casos de riscos epidêmicos até o
advento da lei de quarentena. Genérico e sem prever quais medidas sanitárias poderiam
ser determinadas, tampouco as sanções específicas para quem não as cumprisse,
dependia da aplicação subsidiária da Lei 6.437, de 1977, que prevê as infrações
sanitárias e respectivas sanções, ou até do Código Penal brasileiro, como será explicado
mais adiante.
Trata-se, portanto, de uma legislação silente no que se refere aos
procedimentos para adoção e implementação de medidas de emergência em saúde
pública, especialmente no que se refere à proteção dos direitos das pessoas afetadas. A
única salvaguarda prevista pela Lei n. 6.259/1975 diz respeito ao caráter sigiloso da
notificação compulsória de casos de doenças, dispondo que a identificação do paciente,
fora do âmbito médico sanitário, “somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional,
em caso de grande risco à comunidade a juízo da autoridade sanitária e com
conhecimento prévio do paciente ou do seu responsável” (art.10).
Em 2005, com a adoção do RSI, cuja entrada em vigor foi estipulada para 2007,
o Brasil assumiu obrigações internacionais de vulto em matéria de vigilância em saúde,
em especial o desenvolvimento de “capacidades básicas” que, na prática, são as
condições elementares para que o regulamento possa ser cumprido 34. O Ministério da
Saúde (MS) passou a contar com o Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em

34 Ver sobretudo Anexo 1 do RSI.

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Saúde (CIEVS) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS)35, definido como ponto focal
brasileiro do RSI junto à OMS. Ainda em 2005, um Grupo Executivo Interministerial (GEI),
composto por diferentes órgãos do governo federal e coordenado pelo Ministério da
Saúde, foi criado como elemento da resposta brasileira a uma possível pandemia de
influenza36. A partir de 2009, ano em que a OMS declarou a ESPII relativa à gripe
A(H1N1), o CIEVS passou a liderar uma rede de centros de vigilância estaduais, de
capitais brasileiras e de outros municípios considerados estratégicos37. Houve grande
mobilização do governo federal para o enfrentamento daquela pandemia38, deixando
significativo legado à vigilância em saúde brasileira, inclusive no plano regulamentar39, e
em matéria de emergências.
Com efeito, em 2011, a Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011, busca adaptar
as terminologias utilizadas na legislação brasileira ao léxico do RSI40. No mesmo ano, por
meio do Decreto n. 7.616, de 17 de novembro de 2011 41, regulamentado pela Portaria n.
2.952 42 , foi instituída a categoria jurídica da Emergência em Saúde Pública de
Importância Nacional (ESPIN). Embora se trate claramente de uma transposição da
categoria da ESPII ao ordenamento jurídico pátrio, os institutos são independentes entre
si43. Até o momento, duas ESPINs foram declaradas no Brasil: a relativa à Síndrome

35 Teixeira, Maria Glória et al. “Vigilância em Saúde no SUS - construção, efeitos e perspectivas”. Ciênc.
saúde colet. 23 (6) Jun 2018, pp.1811-1818.
36 BRASIL. Presidência da República. Decreto de 24 de outubro de 2005 (s/n). Institui o Grupo Executivo

Interministerial para os fins que especifica e dá outras providências. D.O.U., Brasília, DF, 25 out. 2005.
Modificado em duas oportunidades, e revogado em dezembro de 2010, v. BRASIL. Presidência da República.
Decreto de 6 de dezembro de 2010 (s/n). DOU, Brasília, DF, 7 dez. 2010.
37 Temporão, José Gomes. “O enfrentamento do Brasil diante do risco de uma pandemia de influenza pelo

vírus A (H1N1)”. Epidemiol. Serv. Saúde 18(3), 2009, pp. 201-204.


38 Além de uma ESPII, a OMS também reconheceu a gripe A(H1N1) como uma pandemia, o que causou

polêmica à época, ver DOSHI, P. “The elusive definition of pandemic influenza”. Bull World Health Organ.
2011 Jul 1;89(7):532-8.
39 COSTA, Ligia; MERCHAN-HAMANN, Edgar. Pandemias de influenza e a estrutura sanitária brasileira: breve

histórico e caracterização dos cenários. Rev Pan-Amaz Saude, Ananindeua , v. 7, n. 1, mar. 2016, pp. 11-25.
40 Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as

terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no RSI 2005, a relação de doenças,
agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelece
fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. DOU, Brasília, p. 37-8,
26 de jan. 2011.
41 Brasil. Presidência da República. Decreto Nº 7.616, de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a

declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional - ESPIN e institui a Força Nacional do
Sistema Único de Saúde - FN-SUS. DOU, 18 nov. 2011.
42 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.952, de 14 de dezembro de 2011. Regulamenta, no âmbito do

SUS, o Decreto no 7.616, de 17 de novembro de 2011, que dispõe sobre a declaração de ESPIN e institui a
FN-SUS. DOU, Brasília, DF, 15 dez. 2011.
43 Segundo o citado Decreto, a declaração de ESPIN ocorrerá em situações que demandem o emprego

urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública (art. 2º),
em virtude da ocorrência de situações epidemiológicas (os surtos ou epidemias que apresentem risco de

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Congênita associada à infecção pelo vírus zika (SCZ), entre 2015 e 2017; e a relativa ao
novo coronavírus, como será visto a seguir.
Além da resposta à pandemia de gripe A(H1N1), tal evolução normativa está
relacionada à grande mobilização do Estado brasileiro para acolher, entre 2007 e 2016,
importantes eventos de massa internacionais, entre eles os Jogos Panamericanos (2007),
a Copa das Confederações (2013) e a Copa do Mundo (2014), a Jornada Mundial da
Juventude (2013) e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos (2016) 44. Em 2013, uma regulação
específica sobre ações de vigilância e assistência à saúde nos eventos de massa foi
adotada, mas ela não faz referência direta às medidas de saúde pública45.
Em 2015, apesar de seu subfinanciamento crônico e incontáveis mazelas, o SUS
revelou para o mundo a Síndrome Congênita associada à infecção pelo vírus zika (SCZ),
graças aos notáveis profissionais de saúde que atuam no sertão nordestino 46 e aos
institutos públicos de pesquisa que resistem aos ataques brutais à ciência brasileira
recentemente intensificados. Em meio a uma grave crise política e econômica, inclusive
o processo de impeachment da Presidente Dilma Roussef, o Brasil conseguiu, graças ao
SUS, organizar uma resposta de grande amplitude47. Em 11 de novembro de 2015, o
Ministério da Saúde declarou a ESPIN48; em 1° fevereiro de 2016, a OMS declarou a
ESPII49. É importante ressaltar que o objeto da emergência, tanto no plano nacional
como no internacional, não era o surto da doença do vírus zika, e sim a associação entre
a infecção e a microcefalia e outras malformações.

disseminação nacional; sejam produzidos por agentes infecciosos inesperados; representem a reintrodução
de doença erradicada; apresentem gravidade elevada; ou extrapolem a capacidade de resposta da direção
estadual do SUS); de desastres; ou de desassistência à população (art. 3º). O mesmo decreto institui a Força
Nacional do SUS (FN-SUS) como programa de cooperação voltado à execução de medidas de prevenção,
assistência e repressão a situações epidemiológicas, de desastres ou de desassistência à população (art. 12).
44 Teixeira, Maria Glória et al. “Vigilância em Saúde no SUS - construção, efeitos e perspectivas”. Ciênc.

saúde colet. 23 (6) Jun 2018, pp.1811-1818.


45 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria Nº 1139, de 10 de junho de 2013. Define, no âmbito do Sistema único

de Saúde (SUS), as responsabilidades das esferas de gestão e estabelece as Diretrizes Nacionais para
Planejamento, Execução e Avaliação das Ações de Vigilância e Assistência à Saúde em Eventos de Massa.
DOU, Brasília, DF. 10 jun. 2013.
46 Sobre o início da associação entre o vírus zika, a microcefalia e outras malformações, v. DINIZ, Debora.

Zika: do sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
47 V. BRASIL. Ministério da Saúde. SVS. Vírus Zika no Brasil: a resposta do SUS. Brasília: MS, 2017. Disponível

em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/virus_zika_brasil_resposta_sus.pdf>. Acesso em 28 fev.


2020.
48 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 1.813, de 11 de novembro de 2015. Declara ESPIN por

alteração do padrão de ocorrência de microcefalias no Brasil, com base no Decreto nº 7616, de 17 de


novembro de 2011. DOU, Brasília, DF, 12 nov. 2015.
49 OMS. WHO statement on the first meeting of the International Health Regulations (2005) (IHR 2005)

Emergency Committee on Zika virus and observed increase in neurological disorders and neonatal
malformations, Genebra, 01 fev. 2016.

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Como demonstra o Quadro n. 1, a ESPIN e a ESPII relacionadas à SCZ tiveram


impacto significativo sobre a legislação brasileira, estando à origem de leis e de
numerosos atos normativos do Poder Executivo.

Quadro n. 1 - Principais normas relacionadas à emergência da SCZ

Resolução Normativa Dispõe sobre o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde no


nº 387, de 28 de âmbito da Saúde Suplementar, para regulamentar a
outubro de 2015 cobertura obrigatória e a utilização de testes diagnósticos
para infecção pelo vírus Zika (Alterada pela RN nº 407, de 3
de junho de 2016, e revogada pela RN nº 428, de
07/11/2017)
Portaria MS nº 2.121, Altera o Anexo I da Portaria nº 2.488/GM/MS de 21 de
de 18 de dezembro de outubro de 2011 [que aprova a Política Nacional de Atenção
2015 Básica], para reforçar as ações voltadas ao controle e redução
dos riscos em saúde pelas Equipes de Atenção Básica.
Decreto nº 8.612, de Institui a Sala Nacional de Coordenação e Controle, para o
21 de dezembro de enfrentamento da Dengue, do Vírus Chinkungunya e do Zika
2015 Vírus (Revogado pelo Decreto nº 10.087, de 2019)
Medida Provisória nº Dispõe sobre a adoção de medidas de vigilância em saúde
712, de 29 de janeiro quando verificada situação de iminente perigo à saúde
de 2016 pública pela presença do mosquito transmissor do Vírus da
Dengue, do Vírus Chikungunya e do Zika Vírus fica autorizada
Convertida na Lei nº a determinar e executar as medidas necessárias ao controle
13.301, de 2016 das doenças causadas pelos referidos vírus, nos termos da Lei
nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, e demais normas
aplicáveis [autoridades do SUS poderão determinar e
executar medidas de contenção das doenças relacionadas
aos citados vírus, entre elas o ingresso forçado em imóveis
públicos e particulares, no caso de situação de abandono ou
de ausência de pessoa que possa permitir o acesso de agente
público, regularmente designado e identificado]
Decreto nº 8.662, de Dispõe sobre a adoção de medidas rotineiras de prevenção e
1º de fevereiro de eliminação de focos do mosquito Aedes aegypti, no âmbito
2016 dos órgãos e entidades do Poder Executivo federal, e cria o
Comitê de Articulação e Monitoramento das ações de
mobilização para a prevenção e eliminação de focos do
mosquito Aedes aegypti (Revogado pelo Decreto nº 10.179,
de 2019)
Portaria MS nº 1.046, Institui a Rede Nacional de Especialistas em Zika e doenças
de 20 de maio de 2016 correlatas (RENEZIKA)
Portaria MS nº 204, de Define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de
17 de fevereiro de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de
2016 saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos
termos do anexo, e dá outras providências [torna obrigatória
notificação da doença do vírus zika e de óbitos dela

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decorrentes]
Medida Provisória nº Abre crédito extraordinário, em favor dos Ministérios da
716, de 11 de março Ciência, Tecnologia e Inovação, da Defesa e do
de 2016 Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no valor de
R$ 420.000.000,00, para os fins que especifica [combate à
Convertida na Lei nº microcefalia e ao mosquito Aedes]
13.310, de 7 de julho
de 2016
Portaria Institui, no âmbito do SUS e do Sistema Único de Assistência
Interministerial Social (SUAS), a Estratégia de Ação Rápida para o
MS/Ministério do Fortalecimento da Atenção à Saúde e da Proteção Social de
Desenvolvimento Crianças com Microcefalia
Social e Agrário (MDS) - Prorrogada pela Portaria Interministerial MS/MDS n. 1.115
nº 405 de 15 de março em 3 de junho de 2016
de 2016
Portaria MDS nº 58, de Dispõe sobre ações articuladas das redes de Assistência
3 de junho de 2016 Social e Previdência Social na atenção às crianças com
microcefalia para o acesso ao Benefício de Prestação
Continuada da Assistência Social – BPC
Portaria Ministério das Dá nova redação ao Manual de Instruções para seleções de
Cidades nº 321, de 14 beneficiários no âmbito do Programa Minha Casa, Minha
de julho de 2016 Vida [dispensa do sorteio para o programa as famílias que
possuam membro com microcefalia]
Portaria MS nº 1.682, Declara o encerramento da ESPIN por alteração do padrão de
de 30 de julho de 2017 ocorrência de microcefalias no Brasil e desativa o Centro de
Operações de Emergências em Saúde Pública (COES)

Entre os diferentes aportes deste arcabouço normativo, destacamos que, apesar


de sua tradição em programas de combate a vetores transmissores de doenças,
somente no bojo da resposta à SCZ o direito brasileiro veio a permitir expressamente a
entrada de agentes públicos em imóveis privados abandonados para eliminação de
focos de mosquitos50. Ainda assim, o Brasil tem perdido a chamada “Guerra contra o
mosquito”, permanecendo elevada a incidência de doenças transmitidas por vetores,
sobretudo devido a deficiências estruturais relativas ao saneamento básico e o acesso à
água potável, inclusive nas regiões mais ricas do país, marcadas por persistentes
iniquidades em saúde. Em 2019, o Brasil teve mais de 1,5 milhão de casos de dengue,
com número maior de casos no Sudeste e maior incidência51 no Centro Oeste; mais de

50 BRASIL. Lei n. 13.301, de 27 de junho de 2016. Dispõe sobre a adoção de medidas de vigilância em saúde
quando verificada situação de iminente perigo à saúde pública pela presença do mosquito transmissor do
vírus da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika ; e altera a Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977.
DOU, Brasília, DF, 28 jun. 2016.
51 Número de casos por 100 mil habitantes.

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130 mil de chikungunya, com maior número de casos e maior incidência no Sudeste; e
mais de 10 mil de zika, com maior número de casos e maior incidência no Nordeste52.
Nota-se, portanto, que as doenças endêmicas transmitidas por vetor, contrariando
antigos estigmas infelizmente reflorescidos, não estão concentradas nas regiões
Nordeste e Norte do país.
Deve ser ressaltado, ainda, que apesar de sua importância, a emergência
relacionada à SCZ não foi suficiente para ensejar a elaboração de uma nova lei de
vigilância epidemiológica de caráter geral.
Diferentemente da SCZ, em que a declaração de ESPIN antecedeu à ESPII – o
que se explica por ter sido o Brasil o epicentro da emergência e ter o SUS detectado o
objeto da mesma – , a resposta brasileira ao novo coronavírus acompanhou a
declaração de emergência no plano internacional, como se deduz do Quadro n. 2.

52BRASIL. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico n. 2 – Monitoramento dos casos de arboviroses


urbanas transmitidas pelo Aedes (dengue, chikungunya e zika), Semanas Epidemiológicas 01 a 52, Brasília,
16 jan. 2020. Sobre a SCZ, ver BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim
Epidemiológico N. Especial. SCZ: situação epidemiológica, ações desenvolvidas e desafios, 2015 a 2019.
Brasília, 14 nov. 2019.

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Quadro n. 2 – Normas infralegais adotadas no âmbito da resposta brasileira ao


coronavírus até fevereiro de 2020

Decreto nº 10.211, de Institui o Grupo Executivo Interministerial de Emergência em


30 de janeiro de 2020 Saúde Pública de Importância Nacional e Internacional (GEI-
ESPII), revogando o Decreto de 6 de dezembro de 2010 que
possuía idêntico objeto
Decreto nº 10.212, de Promulga o texto revisado do RSI
30 de janeiro de 2020
Portaria MS n. 188, de Declara Emergência em Saúde Pública de importância
03 de fevereiro de Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo
2020 novo Coronavírus (2019-nCoV).
Decreto nº 10.238, de Altera o Decreto nº 10.211, de 30 de janeiro de 2020, que
11 de fevereiro de dispõe sobre o GEI-ESPII, para incluir em sua composição o
2020 Ministério das Relações Exteriores
Medida Provisória n. Altera a Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, que dispõe
922, de 28 de fevereiro sobre a contratação por tempo determinado para atender a
de 2020 necessidade temporária de excepcional interesse público,
entre outras, incluindo no rol de situações excepcionais as
emergências de saúde pública

Note-se que o governo federal fez questão de promulgar o RSI, já aprovado pelo
Congresso Nacional por decreto legislativo53, com a ressalva de que seu objeto havia
entrado em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, em 15 de junho de 2007, nos
termos do artigo 59 do próprio RSI. Embora à luz do direito internacional, pela natureza
dos regulamentos da OMS, a sua incorporação não seja necessária (e, a rigor, sequer
cabível)54, é evidente que esta promulgação visa eludir todo e qualquer questionamento
a respeito da vigência do RSI na ordem jurídica brasileira.
Como também revela o Quadro n. 2, em 3 de fevereiro de 2020, o Ministério da
Saúde declarou uma emergência de saúde pública no plano nacional (ESPIN). Entre as
justificativas contidas nos considerandos da declaração encontra-se a necessidade de
estabelecer uma estratégia de acompanhamento dos nacionais e estrangeiros que
ingressarem no país e que se enquadrarem nas definições casos de suspeitos e
confirmados. Também em 3 de fevereiro, a mesma pasta encaminhou à Presidência da
República o anteprojeto hoje convertido em lei.

53Ver VENTURA, Deisy. Direito e Saúde Global …, op. cit., p.144-147.


54BRASIL. Congresso Nacional. Decreto Legislativo nº 395, de 9 de julho de 2009. DOU, Brasília, DF, 10 jul.
2009.

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Na exposição de motivos do anteprojeto, o Ministro da Saúde, Luiz Henrique


Mandetta, sustenta que a legislação brasileira estava “defasada no que respeita à
definição de medidas e instrumentos jurídicos e sanitários adequados para que o Estado
e a sociedade brasileira possam organizar-se para o combate às novas ameaças à saúde
pública”55.

Medidas de saúde reguladas pela Lei n. 13.979/2020

A nova lei de quarentena refere-se à disposição sobre “medidas para enfrentamento da


ESPII decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019” (epígrafe), tendo como
objetivo a proteção da coletividade (art. 1° §1°). O Quadro n. 3 apresenta as medidas
excepcionais previstas pelo art. 3° da nova lei, que por seu caráter restritivo de direitos
chegou a ser referida como “um AI-5 Sanitário em 2020”56.

Quadro n. 3 – Medidas para enfrentamento da ESPII (art. 3° da Lei 13.979/20)

Medida Definição57 Autoridade(s)


competente(s)58
I – Isolamento Separação de pessoas doentes - Ato do Ministro de
ou contaminadas, ou de Estado da Saúde
bagagens, meios de dispõe sobre
transporte, mercadorias ou condições e prazos
encomendas postais afetadas, aplicáveis
[ou] de outros, de maneira a - Podem ser
evitar a contaminação ou a aplicadas pelo
propagação do coronavírus Ministério da Saúde
(art. 2.1 Lei 13.979/20) (MS) e por gestores
II – Quarentena Restrição de atividades ou locais de saúde,
desde que
separação de pessoas
suspeitas de contaminação das autorizados pelo MS
pessoas que não estejam
doentes, ou de bagagens,
contêineres, animais, meios de

55 BRASIL. Ministério da Saúde. EM n. 9/2020 – MS. Brasília, 3 fev. 2020.


56 CORRÊA FILHO, Heleno Rodrigues. “Lei do CoronaVirus 2019 – autoritarismo sem garantias de cidadania”.
CEBES, Rio de Janeiro, 06 fev. 2020. Disponível em <http://cebes.org.br/2020/02/comentario-a-lei-do-
coronavirus-2019-uma-lei-autoritaria-sem-garantias-de-cidadania/> Acesso em 28 fev. 2020.
57 Em virtude do art. 2º § único da Lei 13.979/20, as definições estabelecidas pelo art. 1° do RSI são a ela

aplicáveis “no que couber”.


58 Cf. art. 3°§§ 5 a 7 da Lei 13.979/20.

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transporte ou mercadorias
suspeitos de contaminação, de
maneira a evitar a possível
contaminação ou a
propagação do coronavírus
(art. 2.2 Lei 13.979/2020)
III - a) Exames médicos Avaliação preliminar de uma - MS
Determinaç pessoa por um profissional de - Gestores locais de
ão da saúde autorizado ou por uma saúde
realização pessoa sob a supervisão direta
compulsóri da autoridade competente, a
a de fim de determinar o estado de
saúde da pessoa e seu
potencial de risco para a saúde
pública para terceiros,
podendo incluir o exame
minucioso de documentos
sanitários, bem como um
exame físico quando as
circunstâncias do caso assim o
justificarem (art. 1° RSI)
b) Testes Não há
laboratoriais
c) Coleta de
amostras clínicas
d) Vacinação e
outras medidas
profiláticas
e) Tratamentos
médicos
específicos
IV - Estudo ou investigação Não há - MS
epidemiológica - Gestores locais de
saúde
V - Exumação, necropsia, cremação e Não há MS e gestores locais
manejo de cadáver de saúde, desde que
autorizados pelo MS
VI - Restrição excepcional e “Saída” significa, no caso de - Deve ser regulada
temporária de entrada e saída do pessoas, bagagens, carga, por ato conjunto do
País, conforme recomendação meios de transporte ou Ministros de Estado
técnica e fundamentada da Agência mercadorias, o ato de deixar da Saúde e do
Nacional de Vigilância Sanitária um território; “porto” significa Ministro de Estado
(Anvisa), por rodovias, portos ou um porto marítimo ou em da Justiça e
aeroportos águas interiores, onde chegam Segurança Pública
e saem embarcações em - Pode ser aplicada
viagens internacionais; pelo MS e por

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“aeroporto” significa todo gestores locais de


aeroporto de origem ou saúde, desde que
destino de voos internacionais autorizados pelo MS
(art. 1° RSI)
VII - Requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, - MS
hipótese em que será garantido o pagamento posterior de - Gestores locais de
indenização justa saúde
VIII - Autorização excepcional e temporária para a importação de - Ato do Ministro de
produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde Estado da Saúde
que registrados por autoridade sanitária estrangeira; e previstos em concede autorização
ato do MS - Pode ser aplicada
por MS e gestores
locais de saúde,
desde que
autorizados pelo MS

Não resta dúvida sobre a complexidade operacional e ética das medidas


arroladas pela lei. A literatura especializada apresenta reservas sobretudo em relação ao
tratamento obrigatório (art. 4°, III, e) e à quarentena (art. 4°, II). Quanto ao primeiro,
trata-se claramente de “uma situação-limite em saúde pública”, eis que os “códigos de
Ética Médica só autorizam um tratamento imposto contra a vontade do paciente em
situações de iminente risco de vida”; no que tange à quarentena, estudos demonstram a
“baixa efetividade dos métodos coercitivos e também deterioração das condições gerais
de vida dos pacientes quarentenados” 59. No entanto, a indubitável existência de
situações que potencialmente justificam medidas restritivas sob o prisma da proteção
da saúde pública, a exemplo das epidemias de grande escala, parece suficientes para
justificar sua regulamentação, especialmente para garantir o seu caráter excepcional e
minimizar o seu impacto sobre os direitos das pessoas atingidas. Neste particular,
devem ser consideradas ainda as dúvidas que assaltam as autoridades sanitárias e os
profissionais de saúde durante as emergências, na ausência de uma regulamentação
mais detalhada.
Em 2014, o advento do primeiro caso suspeito de ebola no Brasil, não
confirmado, ofereceu um privilegiado laboratório dos riscos trazidos por uma
regulamentação deficiente, que contribuiu para que os direitos de informação e de
consentimento do paciente fossem violados na primeira etapa de seu atendimento, e

59SANTOS, Iris; NASCIMENTO, Wanderson. As medidas de quarentena humana na saúde pública: aspectos
bioéticos. Revista Bioethikos, São Paulo, v. 8, n. 2, 2014, pp. 174-85.

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que simultaneamente ocorresse a violação da privacidade pela ampla difusão de sua


identidade e imagem nos meios de comunicação60. À época, questionou-se: “Caso o
paciente se recuse a permanecer internado a equipe deverá chamar a polícia? Os
policiais deverão vestir os EPIs [Equipamentos de Proteção Individual] para conter o
paciente? O paciente será colocado sob vigilância no próprio hospital de referência?’,
entre outros aspectos61.
Em 11 de março de 2020, a Portaria MS n. 356 62 regulamentou a lei de
quarentena63. Ela torna obrigatórios o termo de consentimento livre e esclarecido para
pessoas afetadas por isolamento ou quarentena, e a notificação de isolamento,
oferecendo tais formulários em seu Anexo 1. Determina, ainda, prazos de duração
dessas medidas: quatorze dias para isolamento, prorrogáveis por igual período; e de até
quarenta dias para quarentena, prorrogáveis por prazo indeterminado. O objetivo da
quarentena é esclarecido: garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e
determinado. Também indica que o isolamento deve ocorrer preferencialmente em
domicílio, além de aportar diversos detalhes operacionais relativos a exames e testes,
entre outros.
A regulamentação, porém, não trouxe detalhes sobre sanções por
descumprimento das medidas, limitando-se a determinar que o médico ou agente de
vigilância epidemiológica informe à autoridade policial e ao Ministério Público sobre
eventual descumprimento. Segundo o art. 1° do RSI, uma “medida de saúde”
corresponde aos procedimentos aplicados para evitar a propagação de contaminação ou
doença, “não incluindo medidas policiais ou de segurança”. A nova lei brasileira não
permite supor a exclusão de medidas policiais ou de segurança, embora não as preveja
expressamente. Com efeito, o artigo 3° § 4° da lei de quarentena estipula que “as

60 VENTURA, Deisy; HOLZHACKER, Vivian. Saúde Global e Direitos Humanos: o primeiro caso suspeito de
ebola no Brasil. Lua Nova, São Paulo, n. 98, 2016, p. 107-140.
61 CERBINO NETO, J. Questões éticas no manejo de pacientes com doença pelo vírus Ebola. Cadernos de

Saúde Pública, v. 30, n. 11, 2014, pp. 2256-58.


62 BRASIL. MS. Portaria n. 356, de 11 de março de 2020. Dispõe sobre a regulamentação e operacionalização

do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da
emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19). DOU,
Brasília, DF, 12 mar. 2020.
63 Antes que a regulamentação da lei fosse adotada, o Poder Judiciário do Rio de Janeiro teria determinado,

em processo protegido por segredo de justiça, a internaçãocompulsória de turistas franceses no Município


de Paraty (RJ) Justiça determina que casal suspeito de contrair coronavírus fique internado. Revista
Consultor Jurídico, 28 de fev. de 2020. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-fev-28/justica-
determina-internacao-compulsoria-suspeitos-coronavirus>. Acesso em 28 fev. 2020. Em Brasília, uma
decisão judicial garantiu o exame obrigatório e a internação domiciliar de caso suspeito, cf. Justiça manda
marido de paciente com coronavírus no DF fazer exams, Folha de S. Paulo, 10 mar. 2020.

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pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o


descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei”. Na
ausência de referência explícita à lei cabível, é de se supor uma remissão às “infrações à
legislação sanitária federal” previstas pela Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977. Dita lei,
em seu art. 10, tipifica e prevê sanções para condutas como o descumprimento do
dever de notificação de doença ou zoonose transmissível ao homem (inciso VI); o gesto
de impedir ou dificultar a aplicação de medidas sanitárias relativas às doenças
transmissíveis e ao sacrifício de animais domésticos considerados perigosos pelas
autoridades sanitárias (VII); ou de dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias
que visem à prevenção das doenças transmissíveis e sua disseminação, à preservação e
à manutenção da saúde (VIII), entre outras condutas64. Registre-se ainda que, mais
recentemente, uma lei federal teve o exclusivo objeto de definir como “infração
sanitária” a inobservância das obrigações previstas pela Lei nº 6.437, supracitadas, sem
prejuízo das demais sanções penais cabíveis65.
Em seara penal, segundo o Ministério da Saúde 66, dois crimes tipificados pelo
direito penal brasileiro poderiam ser, neste ponto, evocados: “Causar epidemia,
mediante a propagação de germes patogênicos” corresponde à pena de reclusão de 10
a 15 anos, sendo a pena aplicada em dobro quando daí resultar morte (art. 267) 67; e
“infração de medida sanitária preventiva”, “destinada a impedir introdução ou
propagação de doença contagiosa”, punível com detenção de um mês a um ano e

64 BRASIL. Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977. Configura infrações à legislação sanitária federal,
estabelece as sanções respectivas, e dá outras providências. DOU, Brasília, DF, 24 ago. 1977.
65 BRASIL. Lei n. 13.730, de 8 de novembro de 2018. Altera o art. 14 da Lei nº 6.259, de 30 de outubro de

1975, para considerar infração sanitária a inobservância das obrigações nela estabelecidas. DOU, Brasília, DF,
24 ago. 1977. A justificativa desta alteração seria configurar claramente a ausência de notificação de
doenças pelos profissionais de saúde como infração sanitária, em decorrência de constatação feita pela
Subcomissão Especial destinada a investigar o uso dos agrotóxicos e as suas consequências para a saúde
(2011) de que havia subnotificação de enfermidades, inclusive de notificação compulsória, cf. CÂMARA DOS
DEPUTADOS. Comissão de Seguridade Social e Família. PL n. 1.068, DE 2015. Parecer do Relator. Deputado
Adelmo Carneiro Leão. Brasília, 27 out. 2015. Vale recordar que a omissão de notificação de doença de
notificação compulsória por um médico constitui crime punível con detenção, de seis meses a dois anos, e
multa, conforme artigo 269 do Código Penal em vigor.
66 SOUZA, André. Após internação forçada, Saúde criará regra para quarentena de turistas com sintomas de

Covid-19, Rio de Janeiro, O Globo, 02 mar. 2020.


67 De acordo com o mesmo artigo, em caso de culpa (ausência de dolo e presença de negligência, imperícia

ou imprudência, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos).

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multa68. O Ministro da Saúde declarou: “senti no episódio dos franceses uma falta de
clareza, talvez”, embora tenha reconhecido as boas intenções de todos os envolvidos 69.
Cabe, ainda, suscitar a questão da compatibilidade das medidas previstas na lei
com o RSI. Em princípio, os Estados Partes não podem impor aos viajantes70 nenhum
exame médico, vacinação, medida profilática ou medida de saúde de sem seu prévio
consentimento expresso e informado, ou de seus pais ou tutores legais, (art.31.1). No
entanto, quando existem evidências de risco iminente para a saúde pública, o Estado
Parte poderá, na medida necessária para controlar tal risco, obrigar o viajante a se
submeter a exames médicos, que permitam alcançar o objetivo de saúde pública visado
da forma menos invasiva 71 e intrusiva 72 possível; à vacinação ou a outra medida
profilática; ou a medidas como isolamento e quarentena (art.31.2).
Por outro lado, a restrição excepcional e temporária de entrada e saída do país
(art. 3°, VI), ainda que condicionada à recomendação técnica e fundamentada da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), também pode ensejar
incompatibilidade com o RSI quando não há recomendação da OMS, baseada em
evidências científicas, de restrição da circulação internacional de pessoas. Em virtude
do artigo 43.1 do RSI, medidas adicionais às recomendadas pela OMS podem ser
adotadas não deverão ser mais restritivas ao tráfego internacional, nem mais invasivas
ou intrusivas em relação às pessoas. Este tipo de medida restritiva é potencialmente
danosa aos direitos humanos porque dificulta a circulação internacional de recursos
humanos necessários à resposta, além de favorecer o estigma e a discriminação de
viajantes, migrantes e refugiados em razão de sua origem.
Sabe-se que a OMS até o momento não recomendou restrições à circulação
internacional de pessoas no caso da ESPII em curso. As recomendações da OMS rumam

68 Segundo o parágrafo único do mesmo artigo, a pena é aumentada de um terço se o agente é funcionário
da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
69 SOUZA, André. Após internação forçada, Saúde criará regra para quarentena de turistas com sintomas de

Covid-19, Rio de Janeiro, O Globo, 02 mar. 2020.


70 Viajante é “uma pessoa física que realiza uma viagem internacional” (art. 1° RSI).
71 “Intrusivo” significa causador de possível desconforto por meio de contato próximo ou questionamento

íntimo (art. 1° RSI).


72 “Invasivo” significa a perfuração ou incisão na pele ou a inserção de um instrumento ou substância

estranha no corpo, ou o exame de uma cavidade corporal. São considerados como não invasivos o exame
médico de ouvido, nariz e boca, a verificação de temperatura por meio de termômetro auricular, oral ou
cutâneo, ou imagem térmica; a inspeção médica; a ausculta; a palpação externa; a retinoscopia; a coleta
externa de amostras de saliva, urina ou fezes; a aferição externa da pressão arterial; e a eletrocardiografia
(art. 1° RSI).

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em sentido oposto, podendo ser sintetizadas em sete eixos, como demonstra a figura
n.3.

Figura n. 3 – Síntese das recomendações da OMS relativas à ESPII do novo


coronavírus73

Viagens e comércio
internacional não devem ser
Acelerar o desenvolvimento
restritos, e eventuais Cooperar com Estados cujos Combater a propagação de
de vacinas, tratamentos e
medidas restritivas devem sistemas de saúde são frágeis rumores e informações falsas
diagnósticos
ser baseadas em evidências
científicas

Revisar planos de resposta, Trabalhar juntos em um


identificar lacunas e avaliar Compartilhar dados, espírito de solidariedade e
os recursos necessários para conhecimentos e cooperação pois a contenção
identificar, isolar e tratar experiências com a OMS e da doença só pode ser obtida
casos, além de previnir a com o mundo por meio da ação coletiva
transmissão dos Estados

Apesar de tais recomendações, em 27 de fevereiro de 2020, 41 Estados haviam


notificado a adoção de medidas restritivas ao tráfego internacional 74; até aquele
momento não haviam sido notificadas restrições comerciais 75. Segundo a OMS, a
maioria dessas medidas tem como alvo pessoas provenientes da China ou de países com
transmissão sustentada do COVID-19, compreendendo a interdição de entrada de
estrangeiros em território nacional, a imposição de medidas de quarentena ou
isolamento de nacionais ou estrangeiros, ou mesmo restrições na concessão de vistos. A
justificativa das medidas prende-se em geral a dois tipos de argumentos: as
vulnerabilidades do sistema de saúde (por exemplo, falta de capacidade de diagnóstico
e resposta) e as incertezas a respeito da transmissão do vírus e da gravidade da doença;
ambas as justificativas dificilmente se sustentam diante das evidências científicas
disponíveis. Ainda segundo a OMS, tais medidas podem ter atrasado a importação de
novos casos, mas não impediram a importação da doença. Desafortunadamente, tais
medidas inscrevem-se na assentada tradição de associação entre o estrangeiro e a
doença que marca a história das epidemias e faz parte do processo de construção das

73 Elaboração própria com base em OMS. Director-General’s statement on IHR Emergency Committee on
Novel Coronavirus (2019-nCoV). Portal da OMS. Genebra, 30 jan. 2020. Disponível em
<https://www.who.int>. Acesso em 28 fev. 2020.
74 No âmbito do mecanismo de controle instituído pelo artigo 43 do RSI.
75 OMS. COVID-19 Situation Report n. 39. Genebra, OMS, 28 fev. 2020, p.2.

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identidades nacionais no Ocidente, mantendo na contemporaneidade o potencial de


induzir ou justificar violações de direitos humanos76.
Além da provável ilegalidade das medidas notificadas, há estimativas de que
numerosos Estados sequer notificaram à OMS as medidas por eles adotadas77. O Brasil,
até o momento, não adotou medidas restritivas de entrada e saída do país, o que só
poderá fazer por meio de ato conjunto dos Ministros da Saúde e da Justiça e da
Segurança Pública (art. 3° § 6° da Lei 13.979/20).
De modo geral, conclui-se que a lei de quarentena brasileira não é, per se,
incompatível com o RSI, sendo a pertinência da motivação e a proporcionalidade da
aplicação das medidas nela previstas os critérios decisivos para aferir sua
compatibilidade com a referida norma internacional, além da efetiva aplicação das
salvaguardas que serão tratadas na seção seguinte.
Antes disto, cumpre registrar que a lei institui excepcionalidade de outra
natureza. Trata-se da dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços e insumos
de saúde destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus, apenas enquanto perdurar a ESPII decorrente
do coronavírus (art. 4°).

Salvaguardas instituídas pela Lei n. 13.979/2020

Sem entrar no necessário debate sobre a pertinência ou a eficiência de medidas


restritivas de direitos no caso do novo coronavírus, é importante destacar que, quando
adotadas, essas medidas não podem representar uma “carta branca” para o Estado em
relação ao destino das pessoas atingidas.
Com efeito, a primeira salvaguarda prevista pela lei é a de que as medidas para
enfrentamento da ESPII “somente poderão ser determinadas com base em evidências
científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser
limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação
da saúde pública” (art. 3° § 1º). Uma evidência científica corresponde a “informações

76 VENTURA, Deisy. Impacto das crises sanitárias internacionais sobre os direitos dos migrantes. Sur - Revista
Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, Conectas Direitos Humanos, v. 13, n. 23, p. 61-75, 2016.
77 HABIBI et al. “Do not violate the International Health Regulations during the COVID-19 outbreak”, The

Lancet, v. 395, n. 10225, 2020.

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que fornecem um nível de prova com base em métodos científicos estabelecidos e


aceitos” (art. 1° RSI). A relevância desta salvaguarda torna-se especialmente sensível
quando se constata que a negação dos saberes científicos e o obscurantismo religioso
grassam em diversos setores do governo federal.
A seguir, a lei assegura às pessoas afetadas pelas medidas “o direito de serem
informadas permanentemente sobre o seu estado de saúde” e o direito de receberem
tratamento gratuito (art. 3° § 2º). No léxico do RSI, pessoa “afetada” significa pessoa
infectada ou contaminada, ou que “porte em si fontes de infecção ou contaminação, de
modo a constituírem um risco para a saúde pública" (art. 1° RSI).
Além das salvaguardas recém descritas que figuravam no PL encaminhado pelo
Poder Executivo, a Câmara dos Deputados modificou ou inseriu novos dispositivos, com
expressiva contribuição ao aperfeiçoamento da legislação, como demonstra o Quadro
n.4.

Quadro n. 4 – Salvaguardas introduzidas na Lei 13.979/20 pela Câmara dos


Deputados78

Ementa e Inclusão da expressão “responsável pelo surto de 2019”para qualificar


caput do art. a emergência de saúde pública inicialmente referida apenas como
1° “decorrente do coronavírus”
Art. 1° Acréscimo do §3° para limitar o período máximo de vigência da lei à
duração da ESPII declarada pela OMS
Art. 3° inciso Adição da necessidade de “recomendação técnica e fundamentada
VI pela ANVISA” para balizar eventual medida de restrição excepcional e
temporária de entrada e saída do país
Art. 3° §2° Inclusão da assistência à família como garantia às pessoas afetadas
inciso I pelas medidas previstas na lei, mediante regulamento
Art. 3° §2° Acréscimo do inciso III para assegurar às pessoas afetadas “o pleno
respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do RSI”
Art. 4° Acréscimo do §2° para dar maior transparência e publicidade às
contratações e aquisições realizadas mediante dispensa de licitação:
“Todas as contratações ou aquisições realizadas com fulcro nesta Lei
serão imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na
rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber,

78Elaboração própria com base em BRASIL. SENADO FEDERAL. Parecer n. 1/2020. De Plenário, em
substituição à Comissão de Assuntos Sociais sobre o PL n. 23, de 2020, do Poder Executivo, que dispõe sobre
as medidas sanitárias para enfrentamento da ESPII decorrente do coronavírus responsável pelo surto de
2019. Relator: Senador Nelsinho Trad. Brasília, 5 fev. 2020.

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além das informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527, de


18 de novembro de 2011, o nome do contratado, o número de sua
inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o
respectivo processo de contratação ou aquisição”
Art. 5° - Modificação do caput para substituir a frase “É dever de toda pessoa
natural no território brasileiro a comunicação imediata às autoridades
sanitárias de [I - possíveis contatos com agentes infecciosos do
coronavírus; II - circulação em áreas consideradas como regiões de
contaminação pelo coronavírus] pela frase: “Toda pessoa colaborará
com as autoridades sanitárias na comunicação imediata de”
- Supressão do inciso III que obrigava a comunicação às autoridades
sanitárias da “manifestação de sintomas considerados característicos
do adoecimento pelo coronavírus”
Art. 6° Acréscimo do §2°: “O Ministério da Saúde manterá dados públicos e
atualizados sobre os casos confirmados, suspeitos e em investigação,
relativos à situação de emergência pública sanitária, resguardando o
direito ao sigilo das informações pessoais”
Art. 8° Inclusão para determinar que a “Lei vigorará enquanto perdurar o
estado de emergência internacional pelo coronavírus responsável pelo
surto de 2019”

Não resta dúvida sobre a importância das salvaguardas instituídas pela Câmara
dos Deputados, em que pese o exíguo tempo de tramitação do PL, tanto no que atine à
proteção das pessoas afetadas (adoção da garantia de dignidade, direitos e liberdades
mais ampla prevista pelo RSI) e à assistência às respectivas famílias (embora dependa de
regulamento), como na imposição ao Estado de uma limitação temporal mais clara (por
meio de vínculo da duração da ESPIN à duração da ESPII, ou seja, vedação da
possibilidade de prorrogar indefinidamente a vigência de medidas excepcionais com
base nesta lei) e de garantias de transparência (quanto à dispensa de licitação e aos
dados relativos à emergência) 79.
É digno de nota ainda o redimensionamento da obrigação resultante do artigo
5º, que passa de um “dever de comunicação imediata às autoridades” de contato
possível com o vírus, inclusive de sintomas característicos como previsto no PL, ao
dispositivo finalmente vigente que exclui a referência aos sintomas e estipula, de forma

79O mero direito à informação, por si só, não torna a lei um modelo de mecanismo de accountability, o que
seria ideal neste caso. Mecanismos de accountability funcionam como uma ferramenta de controle do
processo de tomada de decisões e, consequentemente, como um limite à autonomia do agente com
autoridade para decidir. Para uma elaboração conceitual mais detalhada v. RACHED, Danielle Hanna. The
Concept(s) of Accountability: Form in Search of Substance. Leiden Journal of International Law, v. 29, p 317-
342, 2016.

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mais branda, que toda pessoa colaborará com as autoridades sanitárias na comunicação
imediata de possíveis contatos com agentes infecciosos do coronavírus; e da circulação
em áreas consideradas como regiões de contaminação pelo coronavírus. A nova redação
pode contribuir para prevenir estigmatizações, além de tornar menos promissoras
eventuais tentações de, pela via infra-legal, tornar obrigatória a delação de casos por
meio do estabelecimento de sanções à suposta violação de um dever de comunicação.
Está ausente da lei, porém, uma referência explícita ao tratamento que deve ser
dispensado aos viajantes nos termos do RSI. Além da garantia geral prevista no já citado
artigo 3° do RSI, e contemplada na lei de quarentena brasileira graças à atuação da
Câmara dos Deputados, em virtude do artigo 32 do RS os Estados Partes tem a
obrigação de minimizar “qualquer incômodo ou angústia associado a medidas
restritivas”, tratando todos os viajantes com cortesia e respeito; levando em
consideração o gênero e as preocupações socioculturais, étnicas ou religiosas dos
viajantes; providenciando alimentação e água adequadas, acomodações e roupas
apropriadas, proteção para bagagens e outros bens, tratamento médico apropriado,
meios de comunicação necessários, “se possível em idioma que possam compreender”;
e outra assistência apropriada a viajantes que se encontrem em quarentena, isolados ou
sujeitos a outros procedimentos para fins de saúde pública.
Se a ausência de referência explícita ao artigo 32 do RSI pode ser eventualmente
compensada pela invocação judicial do próprio regulamento, considerando sua
indiscutível vigência no país, a falta de outras salvaguardas não contempladas no RSI dá
margem a violações de direitos humanos. Vale mencionar ao menos quatro delas.
Em primeiro lugar, a autoridade sanitária que determina medidas sanitárias
restritivas de liberdade individual deveria ser obrigada a comunicar sua decisão ao órgão
do Ministério Público competente ou a algum órgão de controle externo e popular, no
prazo máximo de 24 horas, devendo estes órgãos de controle verificar se estão
preenchidos os requisitos legais e formais para a adoção da medida e tomar as medidas
judiciais cabíveis80.
Em segundo lugar, no que se refere a nacionais de outros Estados, caso a pessoa
atingida por estas medidas não domine a língua portuguesa, deveria haver a
obrigatoriedade de tradução para idioma compreensível, condição indispensável ao

80AITH, Fernando; DALLARI, Sueli. Vigilância em saúde no Brasil: os desafios dos riscos sanitários do século
XXI e a necessidade de criação de um sistema nacional de vigilância em saúde. Revista de Direito Sanitário,
São Paulo v. 10, n. 2, Jul.-Out. 2009, p.121.

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exercício do direito à informação sobre o próprio estado de saúde que foi previsto pela
lei, e não apenas “na medida do possível” como preconiza o já citado artigo 32 do RSI. A
submissão de uma pessoa a medidas como exames e tratamentos compulsórios, além
de isolamento ou quarentena, quando associada à impossibilidade de comunicar-se com
os profissionais de saúde e outros envolvidos no atendimento em questão, constitui
tratamento desumano e degradante, de todo incompatível com a ordem constitucional
e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de direitos
humanos.
Em terceiro lugar, a atual legislação não apresenta soluções jurídicas para as
pesadas consequências que uma quarentena, um tratamento compulsório ou um
isolamento podem ter para as relações de trabalho. A atual legislação limita-se a
considerar falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de
ausência decorrente destas medidas (art. 3° § 3º). Certamente seria bem-vinda uma
regulação que protegesse o trabalhador, de forma mais ampla, de riscos econômicos.
Finalmente, na eventualidade de serem determinadas restrições relacionadas ao
sepultamento de pessoas, a fim de impedir aglomerações, ou ainda sepultamentos
coletivos, fica pendente a regulação do exercício dos direitos inalienáveis de velar e de
se despedir dos mortos.

Conclusões

O presente artigo permite concluir que as medidas de saúde pública, inclusive a


quarentena, já existiam na legislação epidemiológica brasileira. Porém, a lei de
quarentena, ao regulá-las e atribuir-lhes importantes salvaguardas, representa um
avanço em relação à ordem anterior. Não obstante, a lei de quarentena mantém os
traços essenciais da legislação precedente, quais sejam a elaboração reativa e casuística
de instrumentos normativos; a fragmentação do ordenamento jurídico numa
diversidade de instrumentos cuja consistência hierárquica pode ser questionada; a
ausência do imprescindível debate democrático; e a pendência de normatização de
numerosos detalhes decisivos para a correta implementação da lei, constatado um
ainda insuficiente exercício do poder regulamentar.

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Evidencia-se, ainda, que apesar do expressivo limite temporal de tramitação


parlamentar da nova lei, a Câmara dos Deputados efetuou acréscimos e modificações no
texto originalmente encaminhado pelo Poder Executivo que representam uma
contribuição fundamental à democracia e aos direitos humanos. As salvaguardas
contidas na lei parecem ainda mais relevantes e sensíveis quando se constata, além do
encorajamento institucional à violação de direitos humanos no plano interno, que a
posição internacional do Brasil sobre direitos humanos sofre degradação inédita em um
regime democrático, comprometendo inclusive o papel de liderança que o Brasil vinha
exercendo, nas últimas décadas, na governança global da saúde81. Não obstante, a lei
de quarentena ainda carece de significativo aperfeiçoamento para que possa alcançar
tanto a eficiência como a legitimidade devidas.
No mesmo sentido, em um contexto político extremamente adverso para a
saúde pública brasileira, aviltada por sucessivos cortes orçamentários e sofrendo a
concorrência do fundamentalismo religioso e do negacionismo em relação à ciência, o
SUS mantém-se como o principal eixo da resposta às emergências. A análise das
competências que figuram na nova lei indica o fortalecimento das autoridades sanitárias
na resposta à emergência do novo coronavírus, e com elas a afirmação das evidências
científicas como critério indispensável da adoção de medidas de saúde pública. O atual
Ministro da Saúde teria declarado: “Ainda bem que temos o SUS” 82 . Porém, a
persistência de manchetes sobre o novo coronavírus, além de causar pânico na
população e estigma em relação às pessoas envolvidas, pode obnubilar as evidências de
só existe segurança sanitária verdadeira em sistemas capazes de cobrir a totalidade do
território com acesso universal à saúde. A detecção de uma doença não pode depender
de recursos financeiros para pagar um atendimento, e ainda menos a sua prevenção e o
seu tratamento. Ademais, as instituições públicas de pesquisa realizam labor
indispensável na resposta às emergências. Por conseguinte, o desmonte dos sistemas
universais de saúde e a desvalorização da ciência são hoje as maiores ameaças à
segurança da saúde global.
Neste sentido, o evento em curso também reforça a importância da atuação da
OMS, malgrado suas disfunções e as críticas que a ela se possa, com justiça, formular. Os

81 Ver BUSS, Paulo. “Cooperação internacional em saúde do Brasil na era do SUS”. Ciência & Saúde
Coletiva, 23(6), 2018, p.1881-1890.
82 CRISTINA, Paula. [Luiz Henrique Mandetta] “Ainda bem que temos o SUS”. Isto É Dinheiro, s/l, 28 fev.

2020. Disponível em <https://www.istoedinheiro.com.br/ainda-bem-que-temos-o-sus/>. Acesso em: 28 fev.


2020.

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padrões da OMS, baseados em evidências científicas, são referência de difusão


imensurável no plano global, potencializando sua capacidade de compartilhamento de
saberes imprescindíveis à detecção e resposta à doença. Ademais, é difícil imaginar
outro ator internacional que afirmasse, diante desta emergência, “é tempo de fatos, não
de medo; de ciência, não de rumores; de solidariedade, não de estigma”83.
Por fim, é imperativo que o Brasil adote uma lei epidemiológica geral e
permanente, ou seja, não adstrita a uma emergência específica, elaborada de forma
democrática, que sistematize as diversas normas infralegais em vigor. Com uma
população mundial de 7,8 bilhões de pessoas, parte delas capazes de realizar cerca 1,5
bilhão de viagens internacionais por ano 84, o ecossistema global serve hoje como uma
espécie de “playground” para emergência e troca de vírus animais com elevadas taxas
de mutação que se transformam em ameaças existenciais para os humanos85. As
sucessivas crises econômicas que depauperam enormes contingentes populacionais, a
aceleração da devastação do meio ambiente e a persistência de conflitos armados e
zonas com elevados índices de violência aumentam vertiginosamente os riscos de
pandemias, inclusive de doenças que hoje parecem facilmente preveníveis 86. Assim, as
pandemias tendem a integrar de forma definitiva o panorama político jurídico nos
planos nacional e global.

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Sobre os autores

Deisy de Freitas Lima Ventura


Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: deisy.ventura@usp.br

Fernando Mussa Abujamra Aith


Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: fernando.aith@usp.br

Danielle Hanna Rached


Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
danielle.rached@fgv.br

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Linguagem e interpretação de textos jurídicos: estudo


comparado entre realismos jurídicos
Language, legal texts and legal interpretation: notes for a comparative study
between legal realisms

Eduardo C. B. Bittar¹
¹ Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: edubittar@uol.com.br.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4693-8403.

Artigo recebido em 12/09/2019 e aceito em 7/02/2020

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 139-167.
Eduardo C. B. Bittar
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/45203| ISSN: 2179-8966
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Resumo
Este artigo contém uma reflexão comparada entre modelos de Realismo Jurídico, no
campo da Teoria do Direito, considerando-se as concepções do Realismo Jurídico
Metodológico (Riccardo Guastini), no âmbito da teoria italiana, e da Teoria do
Humanismo Realista (Eduardo C. B. Bittar), no âmbito da teoria brasileira. Assim, este
artigo se ocupa de demonstrar as conexões aproximativas e distintivas entre as duas
concepções de Realismos Jurídicos, dando-se destaque aos temas da indeterminação da
linguagem, dos textos jurídicos e do papel central que a interpretação desempenha para
os debates contemporâneos em Teoria do Direito.
Palavras-chave: Realismo Jurídico; Linguagem Jurídica; Interpretação Jurídica.

Abstract
This paper is a comparative reflection on the models of Legal Realism, in the Theory of
Law, considering the conceptions of the Methodological Legal Realism (Riccardo
Guastini), in the Italian perspective, and of the Theory of Realistic Humanism (Eduardo C.
B. Bittar), in the Brazilian perspective. Therefore, this article shows the similarities and
disconnections between the two conceptions of Legal Realisms, especially considering
the domain of the indetermination of language, the legal texts and the central role of
the legal interpretation to the contemporary Theory of Law.
Keywords: Legal Realism; Legal Discourse; Legal Interpretation.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 139-167.
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1. Introdução: entre realismos jurídicos

Em Teoria do Direito, as tendências e as concepções dos realismos jurídicos do passado e


do presente são muito diversas entre si. A expressão ‘realismo jurídico’ parece espelhar
uma tendência única, seguida por autores(as) em várias partes do mundo, mas, após
uma análise mais apurada, essa primeira impressão se desvanece, para se destacar uma
enorme diversidade de visões e perspectivas entre os teóricos do realismo jurídico, que
vem se desenvolvendo desde o final do século XIX até o início do século XXI. Desde logo,
é importante deixar claro que a expressão ‘realismo jurídico’ é aqui tomada para
designar o conjunto das concepções teóricas sobre o Direito constituídas com uma base
comum, qual seja, a ‘revolta contra o formalismo’, como assinala a jurista italiana Carla
Faralli.1 A ‘revolta contra o formalismo’ aqui é tomada apenas como um ponto de
partida, mas os pontos de chegada das diversas concepções teóricas que daí vêm
surgindo irão matizar as diferenças entre Autores(as) e suas visões sobre o Direito. À
parte o ponto de partida, no geral, as visões realistas implicam um deslocamento da
Teoria do Direito do mundo das normas jurídicas para o mundo da aplicação do Direito,
implicando uma preocupação com o caráter empírico das ‘asserções jurídicas’,2 o que irá
implicar outra tendência comum entre os teóricos, qual seja, o deslocamento para o
campo dos problemas de concretização, decisão e interpretação do Direito.
Por isso, se o realismo jurídico implica em posições e perspectivas muito diversas
entre si, será necessário catalogar as linhas em ao menos quatro grandes grupos, como
o faz o jurista italiano Giovanni Tarello.3 Mas, apesar das divergências, a posição comum
a todos os realismos jurídicos parece ser a questão da complexa relação entre validade
do Direito - garantida pelas normas jurídicas - e eficácia do Direito - apenas garantida
pela aplicação judicial.4 E isso, fundamentalmente, porque os realismos jurídicos
discordam do ponto-de-partida do raciocínio da tradição do positivismo jurídico,

1“...sisono sviluppati nel solco della ‘rivolta contro il formalismo’ nella prima metà del secolo scorso,
presentando forti affinità accanto a rilevanti differenze”; “se desdenvolveram no sulco da revolta contra o
formalismo na primeira metade do século passado, apresentando fortes afinidades e também relevantes
diferenças entre si” (tradução livre) (Faralli, Le grandi correnti della filosofia del diritto: dai Greci ad Hart,
2011, p. 77).
2Consulte-se, a este respeito, Tarello, El realismo jurídico americano, 2017, p. 45.
3Cf. Tarello, Diritti, enunciati, usi: storia di teoria i metateoria del diritto, 1974, ps. 54-75.
4“Por otra parte, debemos recordar que el Realismo jurídico contiene una serie de diferentes matices.

Algunas de sus formas americanas extremas niegan, en general, la ‘existencia’ de las normas jurídicas”
(Aarnio, Lo racional como razonable: un tratado sobre la justificación jurídica, 2016, p. 93). No caso da
posição teórica de Alf Ross, consulte-se Ross, Direito e justiça, 2000, p. 41.

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segundo o qual o Direito Posto na forma da norma jurídica é suficiente para criar
segurança jurídica em sociedade.
Este é o ponto de discordância que dá alento ao desenvolvimento das diversas
posições teóricas mais sedimentadas e conhecidas no campo dos realismos jurídicos,
que, num mapeamento mínimo e, em perspectiva mundial, nos revela um imenso
campo de linhas de análise, momentos históricos e contextos de debates teóricos muito
diferentes entre si, e que se podem agrupar da seguinte forma: (i) o Realismo jurídico
escandinavo (Axel Hägerström; Anders Sandöe Örsted; Karl Olivecrona; Wilhelm
Lundstedt; Alf Ross); (ii) o Realismo jurídico italiano (Enrico Pattaro, Bologna; Giovanni
Tarello; Riccardo Guastini; Paolo Comanducci, Gênova); (iii) o Realismo jurídico francês
(Michel Troper); (iv) o Realismo jurídico norte-americano (Karl N. Llewellyn; Jerome
Frank; Carl Sustein; H. Oliphant; Roscoe Pound; Oliver Holmes; Roberto M. Unger).5 Com
relação a estas quatro (iv) grandes linhas de expressão do realismo jurídico, se pode
acrescentar uma nova perspectiva realista, formulada recentemente no Brasil (2018), e
derivada da Teoria Crítica da Frankfurter Schule,6 e que se desenvolve sob o título de
Teoria do Humanismo Realista (v).7 O que há de comum entre as teorias mais
sedimentadas, e esta nova concepção, surgida no contexto latino-americano, é o
incômodo inicial que movimentou a formulação das diversas concepções de realismos
jurídicos, em face da Teoria Tradicional, ou seja, em face dos mandamentos centrais
oriundos da tradição do positivismo jurídico.
Por isso, não obstante se reconhecer a enorme diversidade de concepções
realistas, este artigo faz a opção por um estudo mais restrito e localizado, pontual e
circunscrito, para fins de delimitação de sua abrangência. No âmbito deste estudo, as
teorias realistas abordadas serão: i) o realismo jurídico italiano de Riccardo Guastini, o
Realismo Metodológico, também chamado de realismo jurídico italiano, ou genovês; ii)
e, o realismo jurídico brasileiro, o Realismo Emancipatório, contido nas premissas da
chamada Teoria do Humanismo Realista. A escolha de ambas as perspectivas teóricas
não somente repousa na originalidade deste estudo, quanto se destaca a aposta em dois
fatores centrais: ambas as concepções correspondem a visões de realismo jurídico

5A respeito da polêmica em torno do legal realism na tradição do realismo norte-americano, consulte-se


Tarello, El realismo jurídico americano, 2017, ps. 43-52.
6Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2.ed., 2003.
7Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, ps. 43-59.

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contemporâneo, sendo que ambas trazem fortes contribuições no plano da discussão


sobre a linguagem jurídica e os textos jurídicos.
Se há inúmeras concepções e perspectivas realistas brasileiras na Teoria do
Direito,8 o mesmo se pode afirmar sobre o realismo italiano.9 Mas, em termos de
delimitação para um artigo científico, diante da vastidão do campo de estudo, pretende-
se dar atenção central às seguintes obras: de Riccardo Guastini, será aqui considerado
decisivo e constitutivo o estudo intitulado Dalle fonti alle norme (1990),10 sendo de se
reconhecer que a obra mais recente Interpretare e Argumentare (2011),11 traz mais
moderação às concepções iniciais; de Eduardo C. B. Bittar, serão aqui consideradas as
obras O direito na pós-modernidade (2003), Linguagem Jurídica (2017) e Introdução ao
estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça (2018), e o que a sua interpretação
conjunta indica no campo da formulação de uma visão contemporânea do Direito em
realidade latino-americana.12
Em suma, a proposta de um estudo teórico-comparativo de duas tradições
diferentes de realismos jurídicos, o Realismo Metodológico (Riccardo Guastini), na
perspectiva italiana, e o Realismo Emancipatório (Eduardo C. B. Bittar), na perspectiva
brasileira, é a de verificar alinhamentos e desalinhamentos entre ambas as concepções,
compreendendo que ambas as concepções fornecem visões alternativas aos limites
teóricos da tradição do positivismo jurídico. Assim, não se pretende exaurir o tema,
tendo em vista a enorme bibliografia que o cerca, mas extrair alguns apontamentos
iniciais entre tradições teóricas, sabendo-se que estes apontamentos estarão
concentrados na questão da linguagem jurídica e se voltarão para a discussão acerca da
importância da atividade de interpretação jurídica, tendo-se em vista a centralidade que
a questão ocupa em ambas as posições teóricas.

8A este respeito, consulte-se Adeodato, Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo, 2011,
p. 18.
9Este estudo estará dedicado à Escola de Gênova, dando-se destaque ao papel que tem o Istituto Tarello per

la Filosofia Del Diritto da Università degli Studi di Genova, no sentido de produzir a catalisação das
contribuições atuais de seus colaboradores, em especial a de Riccardo Guastini. O realismo jurídico italiano,
no entanto, tem outros protagonistas, a exemplo de: Enrico Pattaro, em Bologna (CIRSFID), e de Giovanni
Tarello, Riccardo Guastini, e Paolo Comanducci, em Gênova (IstitutoTarello). A este respeito, consulte-se
Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, jul./dez., 13,
2016, p. 187.
10Guastini, Das fontes às normas, 2005.
11Guastini, Interpretare e argumentare, 2011.
12Bittar, O direito na pós-modernidade, 2014; Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e

justiça, 2.ed., 2019; Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito, 7. ed., 2017.

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Por fim, cabe destacar a importância dos estudos comparados entre autores
latino-americanos e europeus, sabendo-se que a Teoria do Direito de Riccardo Guastini
vem recebendo uma recepção paulatina e adequada13 no Brasil contemporâneo. 14
Assim, fortalecer este campo de aproximações representa uma contribuição reflexiva ao
linguistic turn, há muitos anos consolidado na literatura jurídica brasileira. 15 Assim, ao
longo do artigo, se procurará abordar o Realismo Jurídico Metodológico, numa primeira
parte (itens 2, 2.1, 2.2. e 2.3), para, em seguida, poder-se abordar a Teoria do Realismo
Humanista, numa segunda parte (itens 3, 3.1., 3.2, 3.3), e, ao final, poder-se desdobrar a
conexão entre as duas concepções (itens 4, 4.1., 4.2, 4.3), considerando-se o campo
temático da linguagem jurídica, dos textos jurídicos e da interpretação jurídica o ponto
de ancoragem das mais relevantes aproximações teóricas.

2. O Realismo Jurídico Metodológico: três traços centrais

A Teoria do Direito formulada pelo realismo jurídico genovês de Riccardo Guastini se


desenvolve numa perspectiva analítica, cética, não-cognitivista e decisória. 16 Ela se
afirma como uma Teoria voltada para a compreensão do Direito como um fenômeno
que depende da linguagem natural e da linguagem jurídica. Por isso, o primeiro traço a
se constatar é a relevância que os estudos de linguagem têm para a sua arquitetura
interna, dentro da grande tendência na Filosofia e Teoria Geral do Direito, de reconhecer
que o aprimoramento da linguagem técnica é o que confere maior certeza e precisão à
Ciência do Direito, como observa Antonio Enrique Pérez Luño. 17 Sabendo-se que a

13A este respeito, o estudo introdutório de Tôrres, Apresentação, In Das fontes às normas (Guastini,
Riccardo), 2005, ps. 15-19.
14A exemplo do estudo crítico de Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira

de Estudos Políticos, jul./dez., 13, 2016, p. 187.


15A este respeito, o decisivo estudo de Ferraz Junior, Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,

dominação, 6.ed., 2010.


16“Il realismo metodológico è, molto semplicemente, una teoria scettica dell´interpretazione:

l´interpretazione – ossia l´attribuzione di significato ai testi normativi – è attività non cognitiva, ma


‘decisoria’ ”; “O realismo metodológico é, muito simplesmente, uma teoria cética da interpretação: a
interpretação - ou seja, a atribuição de significado aos textos normativos - é uma atividade não cognitiva,
mas ‘decisória’ ” (tradução livre) (Guastini, Il realismo giuridico ridefinito, in Revus, 13, 2013, p. 98).
17“L´analisi del linguaggio si è posta come uno dei suoi principali obiettivi nell´ambito giuridico quello di

fornire alla scienza e alla filosofia un linguaggio rigoroso”; “A análise da linguagem é colocada como um dos
seus principais objetivos no âmbito jurídico, aquele de fornecer à ciência e à filosofia uma linguagem
rigorosa” (traduçãolivre) (Pérez Luño, La storia della filosofia del diritto e il suo significato attuale, In Rivista
di Filosofia del Diritto, n. 1, 2016, p. 176).

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linguagem define o conjunto das práticas discursivas do Direito, é que a questão da


interpretação assumirá uma relevância central em sua configuração.
Por isso, com toda a sua força, a concepção de Riccardo Guastini acaba por se
configurar como uma teoria realista da interpretação jurídica.18 Com essa opção, a
teoria se apresenta como um realismo jurídico metodológico (não-ontológico ou não-
epistemológico),19 ou seja, como uma teoria que está em constante busca por
compreensão do Direito em sua prática, tendo como inquietante a presença da
pergunta: “Que tipo de atividade é a atividade interpretativa?”.20 Tendo esta questão
como mote de suas investigações, é que se dará ênfase ao tratamento da
indeterminação da linguagem jurídica (i), da centralidade dos textos jurídicos (ii) e da
atividade da interpretação jurídica (iii), temáticas parciais que se apresentam
interconectadas em sua Teoria e que, por isso, terão importância decisiva em sua
configuração interna.

2.1. A indeterminação da linguagem jurídica

A linguagem natural e a linguagem jurídica estão atravessadas por forte


indeterminação, e a insegurança jurídica é uma característica geral que se transmite das
práticas discursivas às práticas de justiça. Assim, se os enunciados normativos não
conseguem transmitir plena segurança regulatória à sociedade, os operadores do Direito
são obrigados a enfrentar desafios que são próprios ao mundo das linguagens. É isto que
faz com que o realismo jurídico de Riccardo Guastini21 se aproxime da ideia da
indeterminação da linguagem jurídica - na esteira dos estudos acerca da open texture do
Direito, seja de Genaro Carrió, 22 seja de Herbert L. A. Hart.23 E nisto, uma grande parte
dos juristas contemporâneos está de acordo, para ressaltar que a indeterminação

18“Por realismo se entiende comúnmente el punto de vista según el cual el Derecho es el conjunto de las
normas efetivamente usadas por los órganos de aplicación en la justificación de sus decisiones (...)”
(Guastini, Algunos aspectos de la metateoría de Principia Iuris, in DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho,
n. 31, 2008, p. 260).
19Cf. Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos,

jul./dez., 13, 2016, p. 191.


20“Che tipo di attività è l´attività interpretativa?”; “Que tipo de atividade é a atividade interpretativa?”

(traduçãolivre) (Guastini, Il realismo giuridico ridefinito, in Revus, 13, 2013, p. 98).


21Cf.Guastini, Das fontes às normas, 2005, p. 145. Cf., também, Presa, Teoría y doctrina de la interpretación

en la propuesta de Riccardo Guastini, In DOXA, 23, 2000, p. 692.


22“Para aludir a este fenómeno se habla de la ‘vaguedad de los lenguajes naturales’ ” (Carrió, Notas sobre

Derecho y Lenguaje, 5.ed., 2011, p. 32).


23Cf. Hart, A. O conceito de Direito, 1986, p. 141.

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impede que as soluções das normas para as decisões sejam unívocas, e se transfiram
como que por processos lógico-subsuntivos.24
Nesta fase inicial da teoria do jurista italiano Riccardo Guastini, o ceticismo com
relação à linguagem é radical, e recai até mesmo sobre o sentido do termo ‘Direito’,25
que sofre desta indeterminação e variação,26 fazendo com que o seu conceito se
confunda com o próprio conceito de ‘cultura’, como se constata nos estudos de
Giovanni Tarello.27 Inclusive, Riccardo Guastini chega a mencionar que estes
qualificadores podem ser aplicados aos próprios termos que nomeiam as teorias como
‘positivistas’, ou como ‘realistas’, não estando a teoria isenta dos mesmos
questionamentos de linguagem.28
É desta forma que este ceticismo leva a consequências importantes para todo o
desenho da teoria, na medida em que, no lugar de oferecer uma linguagem formal,
técnica e objetiva, o Direito acaba por se ver constituído - seguindo-se a análise de
Mauro Barberis -,29 por uma linguagem aberta, imprecisa, vaga, ambígua e equívoca, de
modo que somente o seu uso cotidiano pode delimitar o sentido das palavras. A partir
da obra de 2011, Interpretare e argumentare,30 Riccardo Guastini irá esmaecer este
ceticismo radical da primeira fase, para começar a admitir uma relativa cognoscibilidade
nos conteúdos normativos, caminhando em direção a um ceticismo moderado. Mas,
mesmo atualmente, as questões de linguagem não devem deixar de ser o centro das
preocupações dos juristas, quando se trata de resolver problemas concretos.

24Cf. Catania, Manuale di teoria generale del diritto, 2.ed., 2010, p. 179.
25“I testi normativi – ‘il diritto’, dunque, in uno dei sensi di questa parola – soffrono di una molteplice forma
di indeterminatezza”; “Os textos normativos – ‘o Direito’, então, num dos sentidos desta palavra – sofrem
de uma multíplice forma de indeterminação” (tradução livre) (Guastini, Il realismo giuridico ridefinito, in
Revus, 13, 2013, p. 98).
26A este respeito, vide Guastini, Algunos aspectos de la meta teoría de Principia Iuris. DOXA: Cuadernos de

Filosofía del Derecho, 31, 2008, p. 254.


27“Per questa stessa ragione il designato di diritto è variabile, e variabile è stato anche in epoche storiche

non vicine”; “Por esta razão o designatum Direito é variável, e variável tem sido também em épocas
históricas não próximas” (tradução livre) (Tarello, Diritti, enunciati, usi: storia di teoria i metateoria del
diritto, 1974, p. 10).
28A este respeito, vide Guastini, Algunos aspectos de la metateoría de Principia Iuris, DOXA: Cuadernos de

Filosofía del Derecho, 31, 2008, ps. 259 e 260.


29“L´indeterminatezza dei termini dipende dal fato che il significato di tutte le parole è fissato, in ultima

istanza, solo dal loro uso...”; “A indeterminação dos termos depende do fato que o significado de todas as
palavras é fixado, em última instância, somente por seu uso...” (tradução livre) (Barberis, Introduzione allo
studio del diritto, 2014, p. 64).
30Cf. Guastini, Interpretare e argumentare, 2011.

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2.2. A centralidade do texto jurídico

Se a linguagem está no centro das preocupações dos juristas, fica claro que o
texto jurídico tem um papel decisivo na teoria de Riccardo Guastini. As diversas fontes
do Direito, e não apenas as normas jurídicas, irão se expressar pelo uso da linguagem,
de modo que o sistema jurídico será compreendido como um conjunto de textos
jurídicos,31 e não como um conjunto de normas jurídicas, como pretendia Hans Kelsen,
na Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre, 1934).32 Assim, Riccardo Guastini se coloca
numa posição crítica ao normativismo positivista, para realçar na indeterminação da
linguagem a inexistência do Direito (in abstracto), até que haja uma decisão jurídica que
defina em concreto qual o direito que será efetivado na prática e de acordo com as
variações das situações concretas (in concreto). Isso implica, ainda, admitir que o
sistema jurídico não é completo, mas lacunoso (inclusive, reconhecendo-se a existência
das lacunas axiológicas), e que o sistema possibilita a construção de normas implícitas e
o reconhecimento da defettibilità das normas jurídicas.33
É isto que permite a Riccardo Guastini compreender as normas jurídicas,
observando-as em dupla distinção, seja como disposizione, seja como norma - valendo-
se da distinção operada por Vezio Crisafulli -,34 para entendê-las como produtos da
interpretação.35 Nessa percepção realista, as normas jurídicas não existem in abstracto,
e não formam um sistema per se, pois ainda aguardam as atividades de interpretação
que farão de seus intérpretes os responsáveis pelos atos de discurso que tornam
existentes as decisões sobre conteúdos, estes que serão, ao final dos processos de
avaliação, ponderação e interpretação, relevantes, vinculantes e decisórios por parte
das instituições dotadas de força vinculante e imperatividade. Aqui, não se diferencia se
o texto é claro ou escuro, para lhe impor interpretação, pois para o realismo genovês de
Riccardo Guastini, sempre há interpretação, inclusive como atividade de percepção da
clareza e da obscuridade dos textos jurídicos.36 Daí, a importância do raciocínio jurídico,

31Cf. Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos,
jul./dez., 13, 2016, p. 206.
32Cf.Guastini Das fontes às normas, 2005, p. 87. Sobre este ponto, é de se destacar a leitura crítica

elaborada por Presa, Teoría y doctrina de la interpretación en la propuesta de Riccardo Guastini, In DOXA,
23, 2000, p. 697.
33Vide Guastini, Defettibilità, lacune assiologiche, e interpretazione, in Revus [Online], 2010.
34Cf.Guastini Das fontes às normas, 2005, p. 30.
35Cf. Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos,

jul./dez., 13, 2016, p. 199.


36Cf. Guastini, Das fontes às normas, 2005, p. 133.

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seja diante da opacità definitoria (legislador), seja diante da opacità sopravvenuta (juiz),
como se destaca da análise de Damiano Canale.37 Daí, não sobrar dúvida de que os
textos jurídicos reclamam atividade constante de interpretação jurídica, para entrarem
em circulação, e produzirem efeitos, encadeando-se a decisões do sistema jurídico.

2.3. A atividade da interpretação

Se, para que os conteúdos jurídicos sejam decididos, são relevantes os atos de
linguagem que lhes atribuem sentidos, é aqui que a questão da interpretação jurídica
ganha relevância. Para Riccardo Guastini, o que a interpretação jurídica faz é tradução, 38
da norma ao caso concreto, ou seja, a atividade de interpretação é uma atribuição de
sentido39 acerca das fontes do Direito. 40 E, exatamente por isso, implica em decisões
sobre o sentido jurídico, a partir do uso e da prática.41 Essas decisões são sempre
relativas, circunstanciais e mutáveis.42 Com isso, o realismo genovês de Riccardo
Guastini se coloca na dimensão crítica do cognitivismo interpretativo, a exemplo da
posição de H. L. A. Hart, que já critica em Dalle fonti alle norme (1990),43 e a quem volta
a criticar em estudo mais recente, no artigo Releyendo a Hart (2014).44
Com essa posição teórico-analítica, Riccardo Guastini se afasta da concepção
tradicional - a do formalismo jurídico - segundo a qual a interpretação jurídica consiste
na descoberta da verdade semântica.45 Ao contrário, Riccardo Guastini quer enfatizar
que a interpretação é atividade criativa, e não descritiva de conteúdos, o que conduz à

37Canale, Norme opache: il ruolo degli esperti nel ragionamento giuridico, Rivista di Filosofia del Diritto,
2015, p. 111.
38“... a interpretação e a tradução são congêneres” (Guastini, Das fontes às normas, 2005, p. 26); além disso,

leia-se: “...interpretar sólo puede ser entendido como la actividad dirigida a reformular el texto legislativo,
traduciéndolo” (Presa, Teoría y doctrina de la interpretación em la propuesta de Riccardo Guastini, In DOXA,
23, 2000, p. 694).
39Cf. Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos,

jul./dez., 13, 2016, p. 193.


40“... a interpretação é reformulação dos textos normativos das fontes” (Guastini, Das fontes às normas,

2005, p. 27).
41“Interpretar es decidir el significado de las disposiciones normativas” (Presa, Teoría y doctrina de la

interpretación en la propuesta de Riccardo Guastini, In DOXA, 23, 2000, p. 698).


42Cf. Guastini, Das fontes às normas, 2005, p. 135.
43Guastini, Das fontes às normas, 2005.
44“La teoria de la interpretación de Hart es tan simple y clara como ingénua y enganosa: desde su punto de

vista, los problemas de interpretación son exclusivamente (ya que no menciona otros) problemas de
subsunción de casos concretos – los ‘casos difíciles’ - en las clases de casos determinados en el antecedente
de las reglas” (Guastini, Releyendo a Hart, in DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 37, 2014, p. 106).
45Cf. Mello, O realismo metodológico de Riccardo Guastini, in Revista Brasileira de Estudos Políticos,

jul./dez., 13, 2016, p. 207.

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concepção de que a interpretação tem certo teor de discricionariedade, conceito este


que não se confunde com o de arbitrariedade, na medida em que a interpretação está
cercada por limites normativos (i) e por limites factuais (ii). 46 Isso é especialmente válido
para a interpretação judicial, que é diferente da interpretação doutrinária, pois esta é
centrada em textos, e aquela é constrangida pelos fatos.47 E será exatamente isso que
permitirá a Riccardo Guastini alcançar a afirmação, em Distinguendo (1999), de que a
norma jurídica será “...uma disposição normativa reformulada pelo intérprete”.48 Então,
norma jurídica implicará sempre a atividade legislativa e a atividade decisória. E isso,
sempre considerando-se a advertência de Mauro Barberis, de que a interpretação da
norma jurídica corresponde a uma atividade voltada para alcançar justiça, legalidade e
legitimidade, e é nestes limites que sua atuação é constrangida por uma série de
exigências.49

3. A Teoria do Humanismo Realista: três traços centrais

Se há conceitos de Direito que expulsam a preocupação com a Sociedade, operando a


construção de uma identificação radical entre o conceito de Direito e o conceito de
norma jurídica - como se pode encontrar na Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre,
1934), de Hans Kelsen -50 é exatamente isto que faz com que as concepções do realismo
jurídico procurem escapar da definição que a Teoria Tradicional impõe ao Direito. Assim,
os realismos jurídicos deslocam o conceito de Direito em direção à prática do Direito, no
plano da aplicação do Direito, podendo inclusive, com isso, abordá-lo como um
fenômeno comportamental e intra-psíquico da mente dos juízes - como ocorre em Alf
Ross, na obra On law and justice (1958),51 ou mesmo, em Enrico Pattaro, na obra Opinio
Iuris (2011).52

46“Guastini afirma el carácter discrecional de la interpretación, pero también estabelece expressamente su


carácter no arbitrario” ((Presa, Teoría y doctrina de la interpretación en la propuesta de Riccardo Guastini,
In DOXA, 23, 2000, p. 702).
47Cf. Guastini, Das fontes às normas, 2005, p. 73.
48“La norma es más bien una disposición interpretada y, en ese sentido, reformulada por el intérprete: es,

pues, un enunciado del lenguaje de los intérpretes” (Guastini, Distinguendo: estúdios de teoria y metateoría
del Derecho, 2016, p. 101).
49A este respeito, vide Barberis, Introduzione allo studio del diritto, 2014, p. 225.
50Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4.ed., 1976.
51Cf. Ross, Direito e justiça, 2000, p. 100.
52“Le norme – realtà intrapsichiche – possono essere espresse, e vengono espresse, in enunciati linguistici

(...)”; “As normas – realidade intrapsíquica – podem ser expressas, e vêm expressas, em enunciados
lingüísticos” (tradução livre) (Pattaro, Opinio Iuris, 2011, p. 29).

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Esse deslocamento parte, portanto, de um incômodo justificado, gerado pela


tradição do positivismo jurídico, em torno de uma série de pressupostos teóricos que se
consideram criticáveis. Mas, entre a ênfase do positivismo jurídico e a ênfase do
realismo jurídico, o que se constata é a existência, no mundo do Direito, de uma tensão
entre a dimensão da validade e a dimensão da faticidade,53 e, também, de uma
complementariedade entre autonomia individual e justiça social.54 Essa mesma
configuração tensional se verifica na oposição entre as visões legalistas e as visões
sociológicas do Direito, as primeiras privilegiando a abordagem formal, e as segundas
privilegiando a relação entre Direito e Sociedade (Law and Society), e o cumprimento de
uma função social por parte do sistema legal.55
A constatação da existência desta tensão leva a Teoria Crítica, através da obra
de Jürgen Habermas, Faktizität und Geltung (1992),56 a uma importante contribuição, no
plano da Filosofia do Direito, e que é absorvida por inúmeras correntes teóricas mundo
afora. Assim, será a partir desta matriz teórica que se construirá a Teoria do Humanismo
Realista - uma expressão da Teoria do Direito que aparece no Brasil do início do século
XXI (2018) -,57 recebendo a influência da tradição frankfurtiana alguns pressupostos
teóricos importantes, para caminhar em direção à análise dos desafios concretos e reais
latino-americanos. E, na visão da Teoria do Humanismo Realista, o sistema jurídico se
move, constantemente, em busca do aprimoramento de suas regras e de seus
procedimentos, visando o alcance das formas históricas de justiça, que são sempre fruto
das trocas comunicativas em sociedade. É a partir desta ideia inicial, que se afirma o
traçado interno de sua concepção, considerados os seus três traços centrais, tal como a
seguir exposto: horizontes regulatórios, realistas e humanistas (i); a importância das
instituições de justiça (ii); a eficácia das leis e das práticas de justiça (iii). Nos tópicos
seguintes serão expostas as ideias concernentes a estes três traços centrais.

3.1. Horizontes regulatórios, realistas e humanistas

A clausura de horizontes regulatórios costuma ser uma característica das


concepções de Direito que se conhecem através do positivismo jurídico. A Teoria do

53Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2.ed., 2003, ps. 105-115.
54Cf. Honneth, O direito da liberdade, 2015, p. 36.
55Ferrari, Diritto e società, 11.ed., 2012, p. 37.
56Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2.ed., 2003, ps. 110-111.
57Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, ps. 61-86.

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Direito costuma ser tratada como uma teoria recursivamente voltada sobre si mesma,
considerando os horizontes do universo interno do Direito. Assim, a Teoria do
Humanismo Realista traz seu contributo, ao abrir a Teoria do Direito, para além dos
horizontes regulatórios, a horizontes realistas (i) e humanistas (ii).58
Na dimensão de horizontes realistas (i), abre a concepção de Direito para a
compreensão dos desafios sociais, concretos, reais e empíricos, para demonstrar que a
subcidadania59é uma categoria com a qual o Direito tem de conviver, especialmente no
Brasil (e, de forma geral, na América Latina), para que, ao conhecer o fenômeno social,
se possa superá-lo em direção à cidadania plena de todos(as) o(a)s cidadãos(ãs). Assim,
não há a plena realização dos direitos individuais sem o alcance de justiça social.60 Nesta
medida, a compreensão da realidade social, econômica, política e cultural é
determinante para a compreensão do papel que o Direito tem a desempenhar em
sociedade. Especialmente, no universo da modernidade periférica, o Estado
Democrático de Direito se encontra em pleno processo de construção, não se podendo
olvidar os seus desafios reais e concretos, bem como os obstáculos a serem superados.
Na dimensão de horizontes humanistas (ii), se afirma que a Teoria do Direito não
pode avançar no conhecimento da realidade social a qual procura regular através de
regras jurídicas, sem métodos interdisciplinares e críticos, e, sobretudo, sem a
colaboração com os resultados dos estudos dos campos da História,61 da Sociologia,62 da
Ciência Política e da Economia,63 da Antropologia64 e da Semiótica.65 Aliás, no campo da
Filosofia do Direito e do Direito Constitucional esta fusão de horizontes já se processou
com clareza, no Brasil.66 E são exatamente estes estudos que têm procurado acentuar a
relevância de pensar e tratar, empiricamente, os dados mais centrais e decisivos,
quando os temas considerados são os temas da justiça, da cidadania, do acesso aos
direitos, das violências, da pobreza e das exclusões sociais. Este tipo de conexão com a
realidade latino-americana torna o Direito uma forma de saber muito mais capaz de

58Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, ps. 43-59.
59“Em sociedades periféricas como a brasileira, o habitus precário – que implica a existência de redes
invisíveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e
subcidadãos (...) é um fenômeno em massa (...)” (Souza, Subcidadania brasileira, 2018, p. 252).
60Cf. Honneth, O direito da liberdade, 2015, p. 36.
61Na historiografia, vide Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 21.ed., 2016.
62Na sociologia, a respeito deste conceito, vide Souza, Subcidadania brasileira, 2018.
63Na economia, vide Bresser-Pereira,A construção política do Brasil, 2.ed., 2015.
64Na antropologia, vide Damatta, O que faz o Brasil, Brasil?, 1986.
65“El objeto de la semiótica, dijimos, es la significación” (Landowski, La sociedad figurada: ensayos de

sociosemiótica, 1993, ps. 76-77).


66No direito constitucional, vide Neves, Entre Têmis e Leviatã, 2006, p. 239.

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responder aos desafios práticos aos quais é exposto, pelo fato de lidar com conflitos
sociais inseridos numa realidade sócio-político-econômica específica.

3.2. A importância das instituições de justiça

A Teoria do Humanismo Realista parte do pressuposto de que a legislação


representa uma parte importante do Direito, mas não representa nem a totalidade do
Direito, e nem é capaz de operar a transformação direta da realidade social que
pretende regular. Assim, os enunciados normativos apenas representam o início de um
percurso discursivo - o percurso do discurso normativo -, que é complementado pela
atuação dos discursos burocrático, científico e decisório. 67 Assim, a totalidade do
sistema jurídico não é composta apenas de enunciados normativos, mas de um conjunto
de práticas discursivas encadeadas entre si, na forma de uma malha semiótica.68 Nesta
visão, o Direito não se resume às normas jurídicas, mas ao conjunto de atividades de
sentido produzidas pelos juristas, da formulação das normas às decisões dos Tribunais.
Aqui, fica claro que os discursos jurídicos são uma forma de expressão da ação
comunicativa,69 mas que somente conseguem ‘realizar coisas com palavras’, através do
papel exercido pelas instituições de justiça e do sistema de justiça.70 Por isso, a Teoria do
Humanismo Realista se apoia no institucionalismo do teórico italiano Santi Romano, 71
para afirmar que práticas de justiça são sustentadas por práticas discursivas, e, por sua
vez, estas correspondem não apenas às práticas oriundas dos Tribunais - como ocorre na
tradição de common law -, mas às práticas oriundas dos órgãos institucionalizados que
são responsáveis, dentro de competências e atribuições legais, pela promoção do acesso
à justiça.

67“Assim, querem-se assinalar quatro principais modalidades de discurso jurídico, a saber, o normativo, o
burocrático, o decisório e o científico, cada uma destas constituindo uma microssemiótica em particular da
textura jurídica” (Bittar, Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito, 7. ed., 2017, p. 182).
68“...o sistema jurídico é um sistema de textos em troca intersemiótica, encadeados por práticas

argumentativas, que funciona segundo dinâmicas argumentativas e contextuais...” (Introdução ao estudo do


direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, p. 441).
69Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2.ed., 2003, p. 25.
70A este respeito: “Tale elemento comune, come si ricorderà, può essere espresso dicendo che per

‘istituzione’ si può intendere un complesso normativo di qualunque genere che struttura durevolmente un
campo d´azione sociale”; “Tal elemento comum, como se recordará, pode ser expresso dizendo que por
‘instituição’ se pode compreender um complexo normativo de qualquer gênero que estrutura duravelmente
um campo de ‘ação social’ ” (tradução livre) (Ferrari, Diritto e società, 11.ed., 2012, p. 98).
71Cf. Romano, O ordenamento jurídico, 2008, p. 83.

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E isso porque não são apenas decisões judiciais que atribuem direitos e deveres,
mas também as decisões administrativas, a atuação dos órgãos de prevenção, e,
sobretudo, a tarefa da comunicação dos conteúdos normativos 72 e da educação para a
cidadania, que podem criar um estado social de pacificação, prevenção, cumprimento e
punição de acordo com as regras jurídicas vigentes. Assim, um estado de justiça em
sociedade é sempre carente da atividade concreta de efetivação discursiva e
institucional do Direito previsto em documentos legais (law in books), sendo a prática
discursiva (law in action) - a que se refere Roscoe Pound -,73 uma etapa de decisão
discursiva acerca das previsões legais.

3.3. A eficácia das leis e das práticas de justiça

No interior da obra O direito na pós-modernidade,74 ganhou destaque a


discussão acerca de um diagnóstico do tempo presente, através do qual se procurou
ressaltar o fato de que os déficits de atuação das instituições de justiça costumam criar
profundos vazios de eficácia do Direito vigente - e os diversos estudos empíricos
costumam demonstrar que existe uma conexão entre eficácia do Direito e condição
social dos indivíduos, como vêm constatando sociólogos brasileiros 75 e portugueses. 76
Tais vazios de eficácia comprometem a legitimidade do Direito, e colaboram para uma
sensação social de insegurança e impunidade. Por isso, a busca por eficácia do Direito
passa pela necessidade de superá-los por meio da revisão, reforma e humanização das
instituições de justiça - como se tem procurado afirmar através da Teoria do Humanismo
Realista.77 Nesta perspectiva, o argumento do filósofo alemão Jürgen Habermas de que
os procedimentos do poder burocrático devem ser abertos, plurais e participativos traz
colaboração relevante para a renovação da atuação do Estado Democrático de Direito, o
que permite pensar em horizontes emancipatórios e democráticos.78
Com isso, a Teoria do Humanismo Realista se expressa como uma concepção
teórica que parte do contexto latino-americano, onde se constatam enormes déficits de

72Cf. Ferrari, Diritto e società, 11.ed., 2012, ps. 43-45.


73Consulte-se a análise de Faralli, Le grandi correnti della filosofia del diritto, 2011, p. 107.
74“A crise de eficácia é um ponto de comprometimento... das instituições...” (Bittar, O direito na pós-

modernidade, 3.ed., 2014, p. 154).


75Na sociologia do direito, vide Faria, Direitos humanos, direitos sociais e justiça, 1998, p. 17.
76A este respeito, vide Santos, O direito dos oprimidos, 2014, p. 90.
77Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, ps. 369-384.
78Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2.ed., 2003, p. 180.

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cidadania, para refletir acerca do Estado Democrático de Direito em face das


contradições, desafios e carências históricas da realidade social brasileira, na qual
medram profundas desigualdades sócio-econômicas. Neste contexto, a realidade social -
daí, a tendência a um realismo sociológico - chama mais a atenção do que a estatuição
formal das regras jurídicas pelo Poder Legislativo - esta que é a ênfase do normativismo
de Hans Kelsen -, ou do que a capacidade do Poder Judiciário conferir interpretações às
regras jurídicas - esta que é a ênfase do realismo de Alf Ross -, tendo-se em vista o
cenário de déficits de cidadania, de acesso aos direitos, corrupção, violências,
intolerâncias, pobreza, subcidadania, violações de direitos humanos.
No Brasil, a legitimidade da atuação do Estado Democrático de Direito chega a
ser abalada e questionada, diante dos dados empíricos provenientes de diversos campos
temáticos, encontrando-se a democracia em estado de franca debilidade. Os Relatórios
mais recentes, contendo dados empíricos, constituem o melhor instrumento para
discutir os déficits de direitos, justiça e cidadania, sendo que apontam para três
situações escandalosas: i.) um número exorbitante de homicídios,79 de modo que o
Brasil é o país com o maior índice de homicídios do mundo; 80 ii.) a continuidade das
práticas de execuções extrajudiciais pela atuação das polícias, de cuja atuação deveria
resultar maior segurança pública cidadã;81 iii.) um número exorbitante de perseguições e
mortes de defensores(as) de direitos humanos, em todo o país, de modo que a defesa de
direitos é reprimida pelos meios da violência estatal e não-estatal.82
Diante destes fenômenos sociais, e, uma vez estando em face destes dados
empíricos, resta muito clara a percepção de que existem inúmeros desafios de justiça,
cidadania e inclusão a serem enfrentados na realidade sócio-político-econômica
brasileira para que o Estado Democrático de Direito venha a existir em sua plenitude e
possa criar, com isso, condições reais de vida comum pautada na cidadania, na

79Para o registro dos dados concretos: “O número de homicídios no Brasil, em 2015, ficou estável na mesma
ordem de grandeza dos dois anos anteriores. Segundo o Ministério da Saúde, nesse ano houve 59.080
mortes. Trata-se de um número exorbitante (...)” (IPEA; FSPB, Atlas da Violência 2017, 2017, p. 55).
80ONU Brasil, 2017.
81Para o registro dos dados concretos: “Os homicídios pela polícia continuaram numerosos e, em alguns

estados, aumentaram. No estado do Rio de Janeiro, 811 pessoas foram mortas pela polícia entre janeiro e
novembro. Houve relatos de diversas operações policiais que resultaram em mortes, a maioria delas em
favelas. Algumas poucas medidas foram adotadas para frear a violência policial no Rio, mas ainda não
produziram resultados” (Anistia Internacional, O estado dos direitos humanos no mundo 2016-2017, In
https://anistia.org.br, Acesso em 27/12/2017, 2017, p. 84).
82Cf. Direitos Humanos, 3º. Relatório Nacional do Estado Brasileiro ao Mecanismo de Revisão Periódica

Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – 2017, 2017, p. 03.

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igualdade e na justiça.83 Por isso, a Teoria do Humanismo Realista procura direcionar a


atenção dos juristas para a percepção do conjunto de fatores que circundam o Direito e
as instituições de justiça, numa realidade específica. Neste sentido, a Ciência do Direito,
orientada criticamente, será capaz de atuar mais eficazmente nos pontos em que os
processos de modernização não deram certo, falharam ou são ainda ineficazes. Isto
chama a atenção para a especificidade da modernidade periférica, e aponta para a
necessidade de criação de mentalidades decolonizadas, no campo da atuação jurídica.
A formação crítica favorece a que o papel dos juristas seja não propriamente o
de discutir o Direito analiticamente como ‘norma jurídica’, mas o de mobilizar o papel da
Teoria para que soluções possam ser encontradas para a resolução dos problemas
crônicos de injustiça social. Assim, o fim da theoría é colaborar com a práxis da justiça.
Desta forma, a Teoria do Humanismo Realista mobiliza a potência do Direito para que
exerça duplo papel, de um lado, um papel de conservação e estabilização social, e, de
outro lado, um papel de emancipação e conquista de cidadania.84 Por isso, esta
concepção se destaca enquanto perspectiva teórica de um Realismo Emancipatório.

4. A linguagem jurídica: um ponto de convergência entre realismos jurídicos

Ao se passar para uma análise comparada entre as duas concepções de realismo


jurídico, a do realismo jurídico metodológico (Riccardo Guastini) e a da Teoria do
Humanismo Realista (Eduardo C. B. Bittar), o que se percebe é que há pontos centrais de
convergência em suas propostas teóricas: i) o ceticismo quanto à capacidade do Direito
moderno, como revelação da razão moderna, através da legislação, transmitir
segurança, certeza, objetividade e univocidade,85 e, a partir daí, operar por si só a
transformação da realidade social; 86 ii) a transferência do foco da análise do Direito, do
plano da validade para o plano da eficácia, e desta para o papel central que a
interpretação jurídica desempenha na atividade de concretização do Direito; iii) o
reconhecimento da indeterminação da linguagem jurídica,87 que deriva da associação
entre linguagem natural e linguagem técnica, deslocando o papel do legislador, em

83Cf. Neves, Entre Têmis e Leviatã, 2006, p. 250 e ss.


84Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, p. 259.
85E isso porque: “Todo texto, nessa medida, permite sentidos” (Bittar, Linguagem jurídica: semiótica,

discurso e direito, 7. ed., 2017, p. 119).


86Cf. Atienza, O direito como argumentação, 2014, p. 63.
87“En el lenguaje jurídico, la tensión entre estabilidad y flexibilidad ha adoptado muchas formas” (Aarnio, Lo

racional como razonable: un tratado sobre la justificación jurídica, 2016, p. 37).

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direção ao papel dos atores jurídicos e dos intérpretes. 88 O que se procurará fazer nas
seções seguintes será apresentar o conjunto de pontos de convergência e divergência,
considerando-se este pano de fundo comum.

4.1. A diversidade de pressupostos teóricos

O traçado de construção de ambas as teorias é muito diferente - desenvolvidas


sob influências e em ambientes teóricos muito diferentes entre si -, em função de
pressupostos teóricos derivados de concepções não idênticas. Apesar da diferença nos
pressupostos, as obras revelam uma forte simetria, especialmente se considerados os
estudos contidos em Dalle fonti alle norme (1990)89 e os estudos contidos em
Linguagem jurídica (1999),90 sabendo-se que estes últimos decorrem da influência
decisiva da Semiótica do Direito, nos estudos de Filosofia do Direito no Brasil, em
especial, a partir da matriz teórica da École de Paris.91
Assim, em Linguagem Jurídica (1999), procura-se compreender o sistema
jurídico enquanto sistema de significação em meio a outros sistemas de significação.92
Dando-se ênfase à relação entre signos verbais e não-verbais,93 os processos de
comunicação e textualização94 são colocados no centro da compreensão do sistema
jurídico.95 E, nesta empreitada, são decisivas as influências dos estudos de gramática
narrativa, derivada do semioticista lituano Algirdas Julien Greimas,96 e dos estudos sobre
o signo e a comunicação, do semioticista italiano Umberto Eco.97

88“En otros términos, las reglas del sistema controlan los casos claros, pero no los de la penumbra” (Carrió,
Notas sobre Derecho y Lenguaje, 5.ed., 2011, p. 72).
89Guastini, Das fontes às normas, 2005.
90Em 1999, defendida como Tese de Doutorado pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil); posteriormente, publicada em forma
de livro. A este respeito, consulte-se Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito, 7. ed., 2017.
91Vide Landowski, La sociedade figurada: ensayos de sociosemiótica, 1993, ps. 76-77.
92Cf. Cornu, Linguistique juridique, 1990; Dubouchet, Sémiotique juridique: introduction à une Science du

Droit, 1990.
93“Le signe est une unité du plan de la manifestation, constituée par la fonction sémiotique, cest-à-dire par

la relation de présupposition reciproque quis´établit entre deux grandeurs du plan de l’expression (ou
signifiant) et du plan du contenu (ou signifié), lors de l’acte de langage”; “O signo é uma unidade do plano
da manifestação, constituído pela função semiótica, ou seja, pela relação de pressuposição recíproca que se
estabelece entre duas grandezas do plano da expressão (ou significante) e do plano do conteúdo (ou
significado), no âmbito do ato de linguagem” (tradução livre) (Greimas, Courtés, Sémiotique: dictionnaire
raisonné de la théorie du langage, 1993, p. 349).
94Vide Bittar, Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito, 7. ed., 2017, p. 115.
95Cf. Eco, Os limites da interpretação, 1995, p. 219.
96Greimas, Courtés, Sémiotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage, 1993.
97Eco, Tratado geral de semiótica, 2. ed., 1991; Eco, Os limites da interpretação, 1995.

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4.2. Entre realismo sociológico e realismo metodológico

Sabendo-se que toda Teoria se constitui progressivamente, etapas anteriores


foram essenciais para o nascimento da Teoria do Humanismo Realista, inclusive
registradas em artigos e livros anteriores. Por isso, considerando-se a história interna da
Teoria do Humanismo Realista, deve-se afirmar que a sua versão mais completa e
madura somente veio à lume em 2018, com a publicação de Introdução ao Estudo do
Direito: humanismo, democracia e justiça. Esta obra opera, em seu interior, uma síntese
entre duas etapas acadêmicas anteriores, a saber, a fase da Semiótica do Direito e da
gramática narrativa (i) - encabeçada pela obra Linguagem jurídica (1999), onde se
procurou discutir de mais perto o problema da linguagem jurídica - e, em seguida, a fase
da eficácia e da sociologia jurídica (ii) - encabeçada pela obra O direito na pós-
modernidade (2003),98 onde se procurou discutir de mais perto o problema da eficácia
do Direito.
Ora, será da fusão destes dois horizontes de trabalho anteriores - um horizonte
semiótico e um horizonte sociológico -, que surgirá a obra Introdução ao Estudo do
Direito (2018). Assim, após longos anos de investigação científica, tornou-se possível
inclusive harmonizar as exigências discursivas decorrentes da Semiótica do Direito de
Algirdas Julien Greimas - de cuja teoria se permite uma análise crítica e estrutural dos
sistemas de significação - com as exigências comunicativas da Teoria Crítica de Jürgen
Habermas - de cuja teoria desponta a questão da interação comunicativa para a
descrição do caráter discursivo, dialógico e democrático do conceito de Direito.99
É evidente que, ao se desenvolver como uma derivação da matriz da Teoria
Crítica, o realismo brasileiro acaba sendo uma versão teórica mais próxima, mas ainda
assim não-idêntica, do realismo norte-americano do Critical Legal Studies, de Roberto
Mangabeira Unger.100 Isso significa que o realismo brasileiro é, em grande parte, um
‘realismo’ no sentido forte do termo, por pretender se afastar do formalismo jurídico e

98A Tese de Livre-Docência intitulada A crise do direito na pós-modernidade, defendida junto ao


Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(São Paulo, Brasil); posteriormente, publicada em forma de livro. A este respeito, consulte-se Bittar, O
direito na pós-modernidade, 3.ed., 2014.
99Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2.ed., 2003, ps. 90-120.
100Tushnet, Some current controversies in Critical Legal Studies, in German Law Review, 12, 01, 2014, ps.

290-299; Unger, In The Critical Legal Studies Movement: another time, a greater task, 2015; Unger, The
Critical Legal Studies Movement, in Harvard Law Review, 96, 3, 1983, ps. 561-675.

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do positivismo jurídico, que fetichizam o papel da ‘norma jurídica’, buscando inclinar-se


em direção a um ‘realismo crítico, sociológico e discursivo-democrático’ a respeito da
efetividade do Direito, tendo na busca da dignidade da pessoa humana o seu centro de
gravitação.
Essa posição teórica evidencia preocupações de transcender os muros da Teoria
do Direito como teoria formal, no que segue uma tendência oposta à do realismo
metodológico de Riccardo Guastini, cada vez mais carregado de preocupações
analíticas.101 Mas, não obstante a preocupação crítica, sociológica e democrática, não se
dedica menos atenção à instrumentalidade com que os signos linguísticos, os textos
jurídicos e a interpretação jurídica são articulados no interior do sistema jurídico. 102
Assim, a Teoria do Humanismo Realista é, a um só tempo, condizente com uma visão
analítico-semiótica e com uma visão crítico-emancipatória, redundando num ceticismo
moderado no campo do discurso jurídico. Sobretudo, ela procura desenvolver uma visão
equilibrada entre os papéis do Direito, de um lado, de estabilização institucional e, de
outro lado, de emancipação social, naquilo em que se evidencia a sua maior distância do
modelo teórico formulado pelo realismo italiano de Riccardo Guastini, especialmente à
luz de fortes influências analíticas.103
Em especial, e, por fim, na dimensão epistemológica, deve-se acentuar o papel
que a Teoria possui no sentido de fornecer subsídios para uma compreensão
interdisciplinar, complementar e articulada da Ciência do Direito com os demais campos
das Ciências Humanas e Sociais. Não é apenas pelas normas jurídicas que se conhece o
mundo; a realidade social somente pode ser enfrentada pela multiplicidade de
‘entradas’ trazidas pelas diversas Ciências Humanas e Sociais. Nesta visão, a Ciência do
Direito somente pode cumprir o seu papel se for capaz de se articular de forma
complementar com os conhecimentos oriundos das demais Ciências Humanas e Sociais.
E é do plano geral da Teoria do Direito que deve partir esta visão metacientífica,
segundo a qual a dogmática jurídica não pode estar recursivamente voltada para si
mesma. Essa visão é evidenciada na Teoria do Humanismo Realista, e negligenciada no
Realismo Metodológico - e, talvez, enquanto teorias ambientadas em circuitos tão

101“...laTeoria del Derecho concebida como análisis del derecho desde el punto de vista ‘formal’ y/o
‘estructural’ ” (Guastini, Distinguendo: estúdios de teoria y metateoría del Derecho, 2016, p. 23).
102“A relação entre estudo semiótico e estudo da interpretação é de implicação...” (Bittar, Linguagem

jurídica: semiótica, discurso e direito, 7. ed., 2017,p. 110).


103Guastini, Das fontes às normas, 2005, p. 374; Guastini, Distinguendo: estúdios de teoría y metateoría del

Derecho, 2016, ps. 25-27.

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diferentes, considerando-se a matriz latino-americana e democrática da primeira, e a


matriz europeia e analítica da segunda concepção - deixa claro o que as distingue com
mais profundidade, enquanto modelos diferentes de realismos jurídicos.

4.3. Linguagem, indeterminação e textos jurídicos

Se as principais atividades práticas e decisórias que giram em torno dos textos


jurídicos são as de interpretar e de argumentar,104 fica claro que as concepções de
realismo jurídico, tanto do realismo genovês (Riccardo Guastini), quanto do humanismo
realista (Eduardo C. B. Bittar), o Direito depende, para fazer funcionar operações
jurídicas, da textualidade e da intertextualidade acerca das fontes do Direito. Para o
realismo brasileiro, os textos jurídicos - tomados em seu sentido semiótico - formam as
unidades internas do sistema jurídico.105
Os textos jurídicos suscitam, pela indeterminação da linguagem natural e da
linguagem jurídica,106 a atividade da interpretação, esta que foi tornada com muita
acuidade, por Riccardo Guastini, a preocupação central da Teoria do Direito.107 Assim, a
atividade da interpretação - com idêntica concepção com o realismo genovês -108 é
entendida pela Teoria do Humanismo Realista como uma atividade produtora de
sentido,109 e não descritiva do conteúdo semântico das normas jurídicas. Eis aqui a
idêntica crítica que ambos os modelos teóricos, em uníssono, endereçam à tradição do
formalismo jurídico.
Daí que, a norma jurídica não exista, por sua simples formulação e positivação
em texto de lei, por parte da atividade do legislador. Nisso, ambas as teorias estão de
pleno acordo, apontando para uma visão não-ontológica, cética e intersubjetivista. A
enunciação do discurso normativo pelo legislador é condição para a aplicação do Direito,

104Guastini, Interpretare e argumentare, 2011. Vide, também, Gazzolo, Lingua del diritto/ diritto della lingua,
in Rivista di Filosofia del Diritto, 2016, p. 162.
105“... as unidades internas do sistema jurídico são (...) os textos” (Bittar, Introdução ao estudo do direito:

humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, p. 445).


106“A indeterminação é, pois, uma característica do Direito” (Bittar, Introdução ao estudo do direito:

humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, p. 486).


107E, nisto, há enorme consenso na Teoria do Direito, a exemplo do que afirma Mauro Barberis: “Oggi molti

pensano chel´interpretazione sia il problema fondamentale della teoria del diritto”; “Hoje muitos pensam
que a interpretação seja o problema fundamental da teoria do Direito” (tradução livre) (Barberis,
Introduzione allo studio del diritto, 2014, p. 187).
108Mauro Barberis está de acordo com as críticas de Riccardo Guastini ao formalismo jurídico. A este

respeito, vide Barberis, Introduzione allo studio del diritto, 2014, p. 197.
109“a interpretação jurídica é atividade produtora de sentido...” (Bittar, Introdução ao estudo do direito:

humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, p. 447).

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mas não é condição única para a produção do sentido jurídico, que demanda a atividade
de outros atores jurídicos. 110 O legislador-actante produz um discurso, o discurso
normativo, que carece de ser complementado pelas práticas provenientes dos discursos
decisório, burocrático e doutrinário. 111 Ou melhor, a norma jurídica existe apenas em
parte no discurso normativo.
Dentro da visão da Teoria do Humanismo Realista - que assimila as contribuições
da Semiótica do Direito para o interior dos debates da Teoria do Direito - a norma
jurídica pode ser entendida como sendo um projeto-de-sentido,112 ainda carente de ser
invocado, concretizado, aplicado através de práticas discursivas levadas adiante pelos
atores jurídicos. No nível do discurso normativo, a norma jurídica ainda não existe, pois
a incompletude é a sua característica, sendo sua completude não-semântica, mas sim
pragmático-discursiva e decisória, dependente da cadeia de relações institucionais e
interpretativas que seguirão ao ato de criação da norma jurídica. Dentro da visão do
realismo metodológico de Riccardo Guastini é enfatizado que isto demanda dos
intérpretes das normas jurídicas um conjunto de decisões sobre os sentidos das
mesmas, e, por isso, alcança-se a afirmação de que as normas jurídicas são o produto da
interpretação, como o faz no artigo Dos concepciones de las normas,113 ou ainda, de que
a norma jurídica é uma “...disposição reformulada pelo intérprete”, como em
Distinguendo.114
É neste ponto, também, que a concepção da Teoria do Humanismo Realista
acaba por desembocar nas mesmas percepções céticas, hermenêuticas e decisórias do
realismo genovês de Riccardo Guastini, ao afirmar que a decisão jurídica é, sobretudo,
uma decisão sobre os sentidos possíveis das regras jurídicas, querendo-se com isso dizer
que as decisões são criadoras de Direito - e, complexas, porque resultantes do
entrecruzamento de vários textos jurídicos,115 aí incluído o problema dos testemunhos,

110Cf. Guastini, Distinguendo, 2016, ps. 100-101.


111Cf. Bittar, Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito, 7. ed., 2017, p. 204.
112“Norma editada e publicada é ainda projeto-de-sentido e, portanto, para efeitos da aplicação do Direito,

esboço-de-solução” (Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019,
p. 493).
113“Una norma no es otra cosa que el significado de un enunciado, o bien un enunciado interpretado, o, si se

quiere, la interpretación-producto de un enunciado” (Guastini, Dos concepciones de las normas, in Revus,


2018, p. 31).
114“La norma es más bien una disposición interpretada y, en ese sentido, reformulada por el intérprete: es,

pues, un enunciado del lenguaje de los intérpretes” (Guastini, Distinguendo, 2016, p. 101).
115“... a decisão jurídica é vista como um ponto de confluência de várias decisões, formando uma

supratextualidade que opera com outros textos...” (Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo,
democracia e justiça, 2.ed., 2019, p. 511).

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que ampliam a opacidade do Direito -,116 e não miméticas de regras, o que não significa
nem subjetivismo decisório,117e, muito menos ainda, objetividade regulatória,118 mas sim
uma posição intermediária que deixa margem para as adequadas, fundamentadas,
dialógicas e racionais justificações sobre saídas institucionais aos conflitos sociais e aos
reclamos por justiça.

Conclusões: Diferenças metodológicas e proximidades hermenêuticas entre realismos


jurídicos

Neste artigo, as duas concepções de realismos jurídicos estudadas, a saber, o realismo


metodológico (Riccardo Guastini), na perspectiva italiana, e o realismo emancipatório e
humanista (Eduardo C. B. Bittar), na perspectiva brasileira, são espécies do mesmo
gênero, sabendo-se que se desenvolvem em meio aos complexos debates globais e
locais, e expressam o incômodo comum quanto aos limites da Teoria Tradicional,
trazendo contribuições específicas relacionadas aos ambientes acadêmicos nos quais se
inserem. O realismo genovês se fará altamente devedor do realismo italiano de Giovanni
Tarello e do realismo escandinavo Alf Ross, bem como da analítica de Norberto Bobbio,
e, ao mesmo tempo, devedor e crítico do positivismo continental de Hans Kelsen e do
positivismo anglo-saxão de Herbert L.A. Hart. O realismo emancipatório e humanista se
fará crítico e, ao mesmo tempo, devedor do positivismo de Hans Kelsen. Sua estatura
teórica será traçada em função de sua dupla origem e evolução interna, de um lado, a
partir da Teoria Crítica, se constituirá enquanto concepção que absorve a influência da
tradição frankfurtiana de Jürgen Habermas e, de outro lado, a partir da Semiótica do
Direito, nisto sendo influenciada pelo semioticista lituano Algirdas Julien Greimas e pelo
semioticista italiano Umberto Eco.
Em seus três traços constitutivos, o Realismo Jurídico Metodológico e a Teoria do
Humanismo Realista acabam por se revelar abordagens teóricas diferentes em seus
pressupostos epistemológicos e métodos que definem a arquitetura interna de seus
modelos. Em especial, a concepção teórica do realismo emancipatório e humanista irá
procurar fundir os horizontes sociológicos e filosóficos, seguindo a proposta

116Canale, Norme opache: il ruolo degli esperti nel ragionamento giuridico, in Rivista di Filosofia del Diritto,
2015, ps. 93-124.
117“...a interpretação não é algo arbitrário, ou ainda, sem-limites, pois obedece a certos cânones...” (Bittar,

Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, p. 497).


118Cf. Bittar, Introdução ao estudo do direito: humanismo, democracia e justiça, 2.ed., 2019, p. 495.

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metodológica da Teoria Crítica, fazendo-se uma concepção preocupada com a realidade


sócio-econômica, e, ademais, com os déficits de cidadania, procurando pensar o papel
transformador do Direito, com vistas à emancipação e à justiça social. Aqui, o realismo
humanista é um realismo crítico e emancipatório. Por isso, a necessidade de valer-se de
uma metodologia dialógica e interdisciplinar, e se aproximar dos resultados científicos
da Sociologia, da Antropologia e das demais Ciências Sociais - e, portanto, dos estudos
empíricos - para melhor apreender os traços da realidade sócio-econômica dentro da
qual se insere e se pratica o Direito. Nesta dimensão, o realismo humanista se aproxima
do realismo norte-americano de Roberto Mangabeira Unger, e se afasta do realismo
genovês, deixando-se a percepção inicial de que as teorias têm um ponto de partida em
comum, na medida em que o realismo genovês tem claras feições analíticas.
Mas, no plano da linguagem jurídica, os realismos estudados neste artigo
acabam apontando para caminhos muito próximos - no sentido de serem caminhos
paralelos, similares e complementares -, pois ambas as concepções reconhecem a
indeterminação da linguagem, a centralidade dos textos jurídicos, bem como o papel
construtivo e criativo da interpretação jurídica. Afinal, em sua formulação teórica, o
realismo emancipatório e humanista é influenciado - e se apóia, ainda que seja de forma
pontual, em algumas teses desenvolvidas por Riccardo Guastini -, especialmente, no que
concerne à teoria da decisão jurídica, da intepretação jurídica e do raciocínio jurídico. O
realismo humanista se constrói, portanto, nestes três capítulos importantes da Teoria do
Direito, em diálogo teórico com as conclusões do realismo genovês. Neste ponto, o
realismo brasileiro é um realismo cético, institucionalista, discursivo e semiótico, o que
justifica a imensa proximidade com a perspectiva teórica de Riccardo Guastini.
Assim, se evidenciam pontos notáveis de aproximação no campo da linguagem
jurídica, não obstante o distanciamento das matrizes epistemológicas. E isso porque, em
Teoria do Direito, ambas as vertentes teóricas estão situadas após o linguistic turn, e
representam contribuições anti-formalistas, uma ambientada no direito continental
europeu, outra ambientada no contexto periférico latino-americano. Igualmente, outro
ponto curioso de entrelaçamento das perspectivas teóricas, se deve ao fato de que
ambas as vertentes teóricas podem ser vistas, em seu atual estágio de desenvolvimento,
como expressões de um realismo moderado. E, assim, para descrever esta aproximação
entre concepções realistas, se podem perceber fórmulas inversamente proporcionais,
quais sejam: (i) quanto mais próximo se está da dimensão epistemológica, mais

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distantes ficam os realismos jurídicos; (ii) quanto mais próximo se está da dimensão
hermenêutica, mais próximos ficam os realismos jurídicos. É isto que faz com que,
possuindo pontos de convergência e de divergência, o realismo genovês e o realismo
brasileiro, dentro de suas tradições e desafios locais, representem alternativas ao
positivismo jurídico, movimentando o olhar do jurista para além dos limites internos da
norma jurídica.

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Sobre o autor

Eduardo C. B. Bittar
É Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É Doutor (1999) e Livre-Docente
(2003) pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. Foi Secretário-Executivo (2007-2009) e
Presidente (2009-2010) da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP). Foi
2º. Vice-Presidente da Associação Brasileira de Filosofia do Direito (ABRAFI – IVR/
Brasil, 2009-2016). Foi Visiting Professor da Università di Bologna (Bologna, Itália,
2017) e, também, da Université Paris-Nanterre (França, Paris, 2018) e do Collège de
France (França, Paris, 2019). É Membro Titular do Grupo de Pesquisas Direitos
Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo – IEA/ USP. É Associate Editor do International Journal for
the Semiotics of Law (IJSL). É Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail:
edubittar@uol.com.br

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 139-167.
Eduardo C. B. Bittar
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Solidariedade ou interesse? Reflexões sobre a cooperação


no regime internacional dos refugiados
Solidarity or interest? Reflections on cooperation in the international refugee
regime

Rosilandy Carina Candido Lapa¹


¹ Universidade Católica de Santos, Santos, São Paulo, Brasil. E-mail:
roselapa@outlook.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5753-0334.

Artigo recebido em 20/07/2019 e aceito em 07/02/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 168-196.
Rosilandy Carina Candido Lapa
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Resumo
Nessa pesquisa estudou-se o atual desequilíbrio entre as necessidades apresentadas no
âmbito das migrações forçadas e a resposta coletiva internacional para aliviar os Estados
de primeiro asilo que concentram a maior parte das solicitações de refúgio. Por meio do
método dialético-descritivo, de caráter transdisciplinar, foram analisadas duas vertentes
teóricas que concebem a solidariedade ou o interesse dos Estados como força motriz
para a cooperação ao longo da formação e manutenção do Regime Internacional dos
Refugiados.
Palavras-chave: Cooperação; Refúgio; Solidariedade; Non-refoulement.

Abstract
This research examines the current imbalance between the needs presented in the
context of forced migration and the collective international response to alleviate the
states of the first asylum, which concentrate most of the requests for refuge. Through
the dialectical-descriptive method, of a transdisciplinary character, two theoretical
aspects are analyzed that conceive the solidarity or the interest of the States as a driving
force for cooperation throughout the formation and maintenance of the International
Refugee Regime.
Keywords: Refugees; Cooperation; Solidarity; Non-refoulement.

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Introdução1

A busca por refúgio faz parte da história da civilização. Por diferentes motivos, há
sempre indivíduos isolados ou grupos que deixam a terra de origem para fixar-se em
outro lugar. No primeiro momento, enquanto deslocados internos, eles buscam o
recomeço dentro de suas próprias fronteiras. Depois, na condição de imigrantes
forçados, transpõem fronteiras e tentam superar as barreiras da distância e da
adaptação ao meio e aos grupos locais.
A construção do Regime Internacional dos Refugiados é fruto de ação de
governança voltada à proteção de pessoas que deixaram seu Estado de Origem. No
entanto, o tema da cooperação não apareceu no texto da Convenção de 1951, apenas
no seu preâmbulo, indicando que a mesma seria essencial para “reduzir os encargos
indevidamente pesados para certos Países”2. Nesse sentido, cooperação, no âmbito do
regime dos refugiados, significa o apoio da “comunidade internacional” aos Estados que
recebem os fluxos massivos de refugiados, denominados Estados de primeiro asilo. Esse
apoio está relacionado aos demais Estados, oferecendo cotas de reassentamento para
“reduzir os encargos indevidamente pesados” que recebem os Estados de primeiro asilo.
Quase sete décadas se passaram desde a normatização da proteção aos
refugiados. Contudo, houve aumento no desequilíbrio entre as necessidades
apresentadas, afluência de refugiados e a insuficiência da resposta coletiva
internacionalna forma de apoio aos Estados de primeiro asilo, bem como oferta de cotas
suficientes para reassentamento. Por exemplo, há, aproximadamente, 25,4 milhões de
refugiados no mundo,entretantoos Estados reassentaram, em 2016, cerca de 190 mil
refugiados, com destaque para os EUA (96,8 mil), o Canadá (46,7) e a Austrália (27,6 mil)
(UNHCR, 2017, n.p).

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001/This study was financed in part by the Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
2 “Parágrafo 4°: Considerando que da concessão do direito de asilo podem resultar encargos indevidamente

pesados para certos países e que a solução satisfatória dos problemas cujo alcance e natureza
internacionais a Organização da Nações Unidas reconheceu, não pode, portanto, ser obtida sem
cooperação internacional. [...] Parágrafo 6°: Notando que o Alto Comissário das Nações Unidas para os
Refugiados tem a incumbência de zelar pela aplicação das convenções internacionais que assegurem a
proteção dos refugiados, e reconhecendo que a coordenação efetiva das medidas tomadas para
resolver este problema dependerá da cooperação dos Estados com o Alto Comissário, convieram nas
seguintes disposições” . Disponível
em:http://www.acnur.org/fileadmin/scripts/doc.php?file=fileadmin/Documentos/portugues/
BDL/Convencao_ relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados&view. Acesso em: 04 mai. 2018.

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A problemática dessa pesquisa emerge do cenário de falta de cooperação


estatal no regime dos refugiados para aliviar os Estados de primeiro asilo que recebem
contingente massivo de refugiados em seus territórios. Assim, formula-se a seguinte
pergunta: como incentivar os Estados a cooperar com o Regime Internacional dos
Refugiados?
A questão a ser analisada é se o regime dos refugiados teria condições de
influenciar os Estados a cooperarem. Nesse sentido, alguns pesquisadores estudam
novas estratégias, como a “criação de um protocolo adicional à Convenção de 1951,
articulando compromissos de responsabilidade compartilhada, cooperação e
solidariedade” (TÜRK; GARLICK, 2017, p. 656). Contudo, outros autores consideram não
ser possível utilizar o modelo da Convenção de 1951, devido a sua inadequação aos
dilemas da atualidade, sendo necessária uma política que considere alternativas de
cooperação e que inclua a participação de outros atores, como a sociedade civil e
iniciativa privada, para incentivarem a cooperação (BETTS, 2009).
Pressupõe-se que o discurso de solidariedade como incentivo principal para
que haja cooperação entre os Estados é inviável para solucionar o problema e dar
continuidade ao Regime. Assim, acredita-se ser possível entender se são as práticas das
Nações Unidas que geram diferentes resultados ou se é o interesse dos Estados que
determina as condições que os refugiados sejam recebidos e instalados nos territórios
que buscam abrigo.
Como metodologia de pesquisa qualitativa, adotou-se como base
epistemológica o método dialético-descritivo3, pois não se pretende apontar uma
solução específica para a questão da cooperação do Regime dos Refugiados, mas
estudar as suas variáveis na concepção de solidariedade e interesse. Duas áreas,
Relações Internacionais e Direito, são contempladas nesse estudo que analisou
interesses e práticas dos Estados e organizações. Outro fator significativo é o recurso às
obras dos campos da Sociologia e Antropologia ao longo dos conteúdos relacionados à
cooperação e à solidariedade.

3“No método dialético, os processos não são observados como fixos, tampouco isolados ou destacados. Os
fenômenos da natureza e sociedade são compreendidos como interligados, condicionando-se de forma
recíproca, conforme observado na obra Fundamentos da Metodologia Científica: em resumo, todos os
aspectos da realidade (da natureza ou da sociedade) prendem-se por laços necessários e recíprocos. Essa lei
leva à necessidade de avaliar uma situação, um acontecimento, uma tarefa, uma coisa, do ponto de vista
das condições que os determinam e, assim, os explicam”(PESCUMA; LAKATOS, 2003, p.102).

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1. Governança e cooperação para a positivação da proteção aos refugiados

Antes de analisar o regime internacional dos refugiados e as ações de


cooperação, é preciso compreender o que são as ações de governança e os regimes
internacionais. Pensar em ações de governança foi possível a partir das demandas que
transpuseram as fronteiras e exigiam respostas combinadas entre os envolvidos para a
solução de questões comuns. Aos poucos, temas que antes tinham resoluções distintas
entre os Estados foram trazidos para o debate na esfera internacional como parte do
processo de globalização que reduziu a força das fronteiras e encurtou as distâncias.
É importante salientar que há três aspectos fundamentais na definição de
governança que merecem ser destacados: o caráter instrumental, como meio e processo
capaz de produzir resultados eficazes, a participação ampliada nos processos decisórios
com envolvimento de atores não estatais e consenso e persuasão nas relações e
ações. De acordo com esse conceito, a governança é essencial para a resolução de
problemas comuns por meio de articulação dos diversos atores para enfrentarem as
dificuldades (GONÇALVES, 2011).
Alguns temas debatidos no âmbito da cooperação e da governança
culminaram na adoção de princípios que, por sua vez, traduzem conjuntos de normas e
práticas para a sua efetividade. Quando isso acontece, há a criação de um regime no
qual incide as ações de governança desenvolvidas. Não há roteiro definido sobre como
um regime deve se constituir, mas há interpretações de diversos teóricos sobre a sua
formação, manutenção e término. Os regimes internacionais podem ser definidos como
um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos para as tomadas de
decisões de determinadas áreas das Relações Internacionais, as quais convergem as
expectativas dos atores. Ao analisar a estrutura do regime, Krasner (2012) correlaciona
as avaliações de outros autores para determinar as causas estruturais e as
consequências dos regimes internacionais, considerando-as como variáveis
intervenientes, ou seja, regimes variam de acordo com o problema específico a ser
abordado, os interesses e quantidades de atores envolvidos, a disposição geográfica,
cultura e o processo de formalização.

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Enquanto ferramenta de coordenação de comportamentos, um regime visa


alcance maior do que ações individuais não coordenadas. Os atores esperam que o
custo de cooperar seja compensado com as vantagens que a ação trará no futuro e, por
esse motivo, aceitam participar do regime, considerado por Young (1989, p.361) um
“sistema de barganha institucional”.
Os regimes podem ter impacto em situações que não teriam resultados a
partir de ações individuais dos Estados ou acordos ad hoc. Contudo, regimes permeados
por riscos morais, informações assimétricas ou desonestidade podem ter sua
aplicabilidade prejudicada (KEOHANE, 1983).Desse modo, a atuação particular dos
Estados, dependendo da sua profundidade, pode causar reação em cadeia dos demais
atores, desde a mudança nas regras e nos procedimentos, discussão sobre as normas ou
até mesmo na mudança dos princípios. Nesse sentido, o autor defende que “enquanto
os Estados preveem que o seu comportamento ad hoc não teria a mesma eficácia do
que uma ação coordenada, optam por atender aos regimes” (KEOHANE, 1983, p. 330).
Em consonância com a sugestão de Carr (1982, p.361) de que se deve “estudar
a história antes de estudar os fatos”, traçou-se, a seguir, o histórico do Regime
Internacional dos Refugiados construído no início do Século XX, devido ao número
expressivo de deslocamentos além-fronteiras causados pela Revolução Russa, Primeira e
Segunda Guerras Mundiais (JAEGER, 2001).
Por muito tempo, a concessão do refúgio foi opcional. Até a positivação da
proteção, em1951, os Estados poderiam estabelecer critérios próprios e, muitas vezes,
discriminatórios para definirem a quem deveriam acolher. Durante a Segunda Guerra
Mundial, estima-se a existência de pelo menos dois milhões de refugiados registrados na
Europa4.
Em face disso, em 1950, foi estabelecido o Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR), base institucional e, em 1951, foi elaborada a
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (Convenção de 1951), considerada a
base normativa universal do instituto do refúgio, uma vez que determinou as diretrizes
do conceito de refugiado.
De acordo coma Convenção, considera-se como refugiado aquele que tem
fundado temor de perseguição “em razão da sua raça, religião, nacionalidade, grupo

4Cf.,por exemplo, as estatísticas do Alto Comissariado das Nações Unidas sobre refugiados desde a criação
da agência. Dados disponíveis em: <http://popstats.unhcr.org/en/overview>. Acesso em: 10 fev. 2018.

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social ou opiniões políticas, e que estão fora do seu Estado de Origem” (ACNUR, 1951,
Art. 1°). A Convenção consagrou também o non-refoulement que pode ser concebido
como uma garantia de não expulsão pelo Estado de asilo que deve acolher o solicitante
de refúgio durante o devido processo legal para o seu reconhecimento (UNHCR,
1977).Tal direito já constava do regime internacional de proteção aos refugiados desde a
época de atuação da Liga das Nações, tendo sido adotado pela mencionada Convenção
de 19335 e consagrado novamente na Convenção de 1951.
Em seu preâmbulo, A Convenção de 1951 reconhece o caráter social e
humanitário do problema dos refugiados e declara que apenas a cooperação
internacional pode reduzir os encargos indevidamente pesados dos Estados de primeiro
asilo, ressaltando que os Estados devem “fazer tudo que estiver ao seu alcance para
evitar a tensão”(ACNUR, 1951, preâmbulo).
O conceito de refugiado na Convenção de 1951 foi criado com duas limitações:
uma geográfica (aos refugiados na Europa) e outro temporal (aos acontecimentos
ocorridos antes de janeiro de 1951). A fim de sanar tal limitação, houve a revisão da
abrangência na Convenção de 1951, ocorrida em 1967, com a criação do Protocolo
sobre o Status dos Refugiados, indicando em seu preâmbulo que “todos os refugiados
abrangidos na definição da Convenção, independentemente do prazo de 1° de janeiro
de 1951, possam gozar de igual estatuto”, ou seja, removendo a reserva temporal
prevista na Convenção de 1951 e, consequentemente, ampliando a proteção (ACNUR,
1967, Art. 1°).
Tal extensão da proteção continuou com iniciativas regionais, a exemplo da
Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos (1969) que
inseriu a “grave perturbação da ordem pública” (Art. 1°) como fundamento para conferir
proteção e a Declaração de Cartagena (1984) que incluiu a “violência generalizada ou
violação maciça dos Direitos Humanos” (III conclusão). Esses conceitos foram acrescidos
ao conceito universal estabelecido pela Convenção de 1951, revisada pelo Protocolo de
1967, apenas tornando mais ampla a proteção.

5Cf. Art. 3°: Each of the Contracting Parties undertakes not to remove or keep from its territory by
application of police measures, such as expulsions or non-admittance at the frontier (refoulement), refugees
who have been authorized to reside there regularly, unless the said measures are dictated by reasons of
national security or public order. It undertakes in any case not to refuse entry to refugees at the frontier of
their countries of origin.

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O refúgio deve, portanto, ser reconhecido para todas as pessoas que se


enquadrarem nos padrões conceituais da Convenção de 1951 6, uma vez que se trata de
uma obrigação internacional assumida pelos Estados. No entanto, o tema da
cooperação não apareceu no Protocolo Adicional de 1967. Desde então, embora o tema
da cooperação não tenha sido normatizado, ocorreram casos que culminaram em ações
de cooperação bem-sucedidas, como:
a) Programa de reassentamento desenvolvidos pela Organização
Internacional de Refugiados (IRO- 1945-1952);
b) Caso do reassentamento de refugiados húngaros após a Segunda Guerra
(1946-1959);
c) Conferência Internacional dos Refugiados na América Central (1987-
1995);
d) Plano Integrado de Ação para Refugiados Indochineses (1988-1996);
e) Caso dos refugiados do Kosovo após a invasão da Sérvia (1999).

Entretanto, em outros casos, as tentativas de promover a cooperação foram


ineficazes, como a Conferência Internacional sobre a Assistência aos Refugiados em
África (ICARA I e II 1981-1984).
Dessa forma, conclui-se que o Regime Internacional dos Refugiados congrega
princípios e sistema jurídico complexos e estruturados, tomando forma pela Convenção
Internacional de 1951 e pelo Protocolo de 1967, com ampla adesão 7, que definem como
os Estados devem proteger refugiados, mas que não há obrigação legal em reassentar
refugiados (MENEZES, 2016).
Os princípios do Regime foram ramificados em instrumentos regionais que
ampliaram a definição do termo ‘refugiado’ a todos que sofreram violação generalizada
aos direitos humanos. Além disso, regras e procedimentos para monitorar, receber
pleitos e julgar violações aos princípios completaram o ciclo necessário para a formação
de um regime nos moldes da concepção de Krasner (1982). Tal ação demonstra que o

6As pessoas que não se enquadrarem não devem ser reconhecidas como refugiados; assim como as
submetidas às cláusulas de exclusão Convenção de 51 que impedem que, ainda que a pessoa se enquadre
nos critérios conceituais de refugiado, seja a mesma reconhecida como tal (art. 1, F).
7A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 foi ratificada por 145 Estados, enquanto o

Protocolo Adicional de 1967 foi ratificado por 146 Estados. No total, 142 Estados ratificaram ambos os
documentos. Para mais informações, consultar: http://www.unhcr.org/protection/basic/3b73b0d63/states-
parties-1951-convention-its-1967-protocol.html.

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Regime apresentou desenvolvimento progressivo, com mudanças graduais positivas e


influenciou nas questões para o qual foi criado.

2. Cooperação: solidariedade ou interesse?

O leite, quando ferve na leiteira, derrama. Não sei, e nunca quis saber, por
que isto acontece; se me pressionarem, provavelmente atribuiria o
fenômeno a uma propensão do leite para derramar quando ferve, o que é
verdade mais nada explica (CARR, 1982, p. 102).
Nesse subtópico, tem-se como objetivo ir além das razões óbvias para explicar
por que o “leite derrama quando ferve”, ou seja, estudar o conceito de solidariedade e
cooperação para compreender sua relação com as dificuldades enfrentadas pelo Regime
dos Refugiados, explicitadas no texto. Com suporte teórico transdisciplinar, pesquisou-
se as diferenças entre solidariedade, interesse e cooperação no Regime dos Refugiados.
Os termos solidariedade e cooperação são comumente utilizados nos
instrumentos normativos da Organização das Nações Unidas, em especial naqueles
relacionados aos Direitos Humanos. Entretanto, não há uma definição clara em relação
às diferenças entre ambos ou como devem ser interpretados nesses documentos,
restando compreensão abstrata sobre seus significados.
Embora sejam de algum modo dependentes, como ver-se-á adiante,
solidariedade e cooperação não são iguais. Aliás, não há consenso teórico que atribua
significado perpétuo, mas interpretações aplicadas de maneira geral ou específica.
Assim, espera-se compreender o sentido e o alcance desses conceitos como parte dos
instrumentos internacionais de proteção aos refugiados.
A compreensão sobre o termo solidariedade apresentou metamorfose,
conforme o contexto no qual foi aplicada ao longo dos séculos. Nessa pesquisa,
empregou-se a divisão do termo realizada pelo sociólogo Hauke Brunkhorst (2001),
conforme a Tabela 1:
Tabela 1 – Níveis de solidariedade

Concreta (solidariedade mecânica)

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I Concordia (amizade entre cidadãos, boa vizinhança)

II Caritas (fraternidade/amor ao próximo)

Abstrata (solidariedade orgânica/organizada)

III Solidariedade hierarquicamente organizada

IV Solidariedade igualitariamente organizada

IVaEurocêntrica/Estatal

IVb Global?
Fonte: Retirado de Brunkhorst (2001, p. 108).
Inicialmente ligada à filosofia grega, a solidariedade era concebida como uma
relação de amizade (philia) e concordância (concórdia), prevendo que a amizade entre
muitos Estados geraria dificuldades, tornando impossível uma relação perfeita.
Entretanto, Aristóteles (384 a.c- 322 a.c) reconhece que poderia existir redes entre
amizades variadas sobrepostas, cuja estreita interconexão tornava a faixa de concórdia
duradoura (ARISTÓTELES, 1999).
Em seguida, emergiu o conceito romano-legal in solidum (solidariamente)
referente à obrigação pelo conjunto, responsabilidade solidária e dívida comum, para
depois adotar contornos relacionados à caridade (caritas) e à amizade (Philia), ao longo
da expansão da filosofia eclesiástica antiga8. Essa noção de caridade, contudo, aplicava-
se de maneira universal apenas no âmbito celestial, enquanto na terra a solidariedade
era hierarquizada e empregada de acordo com a posição social dos indivíduos.
Após a Revolução Francesa (1789), o termo solidariedade assume o significado
generalista (solidariedade igualitária) utilizado até os dias atuais, relacionadoà
fraternidade (fraternité) e à igualdade (égalité). Ao mesmo tempo, o termo é
normatizado na estrutura dos Estados e seus relacionamentos em diferentes áreas,
como a economia, o direito e a política que, juntos, formam os chamados sistemas
funcionais (BRUNKHORST, 2001). Nesse último nível, deu-se a transformação dos
indivíduos em massa por meio da produtividade sistêmica e dependência do mercado. O
modelo capitalista que se reproduz em territórios e culturas com significativas
diferenças econômicas e sociais.

8Tomás de Aquino (1225-1274) e Agostinho de Hipona (354-430) são exemplos de filósofos eclesiásticos
(1225-1274) que buscaram referenciar conceitos da filosofia grega clássica nos princípios da igreja católica,
em especial a ética e teoria política.

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A partir desse ponto, a divisão global consiste em “centro” e “periferia” da


modernidade, na qual, de um lado, estão a América do Norte e a União Europeia e, do
outro, Europa Oriental, Ásia, América Latina e África. Nesse ambiente transnacional de
direito público, ainda em construção e validação, impera o comportamento hegemônico
que atua tanto na economia quanto nos sistemas de proteção aos Direitos Humanos.
Ao realizar uma busca no banco de dados da Organização das Nações Unidas,
foram localizados36.635 documentos das mais variadas áreas, nos quais há o emprego
de maneira abstrata do termo ‘solidariedade”.9 Na maioria voltado aos Direitos
Humanos, esses documentos estão relacionados com determinados objetivos, como a
proteção aos refugiados, e contam com a solidariedade dos Estados como força motriz
para seu cumprimento. Assim, quando no preâmbulo da Convenção de 1951, pede-se
aos Estados que “façam tudo que estiver ao seu alcance” para evitarem que o problema
dos refugiados seja fruto de tensão e indica a cooperação como meio para encontrar
soluções aos “encargos indevidamente pesados” aos Estados de primeiro asilo. A
Organização das Nações Unidas compreendeu que a solidariedade, em sua forma
igualitária, seria a “mola propulsora” das ações de cooperação, como demonstra o Ex-
Alto Comissário das Nações Unidas, Paul Hartling:
Dificilmente há uma resolução posterior da Assembleia Geral relacionada ao
trabalho do Alto Comissariado que não contenha alguma referência à
importância da solidariedade internacional na busca de soluções para o
problema dos refugiados. A solidariedade internacional tem sido, de fato, a
mola propulsora de toda ação empreendida pelo meu escritório em favor
dos refugiados (TÜRK; GARLICK, 2017 p. 662 apud HARTLING, 1980, p. 237)10
Nessa visão, a cooperação nada mais é do que o exercício coletivo da
solidariedade, ou seja, ela acontecerá naturalmente em qualquer situação que envolva o
refúgio. Basicamente, a cooperação consiste no apoio aos Estados de primeiro asilo na
forma de reassentamento dos refugiados em outros Estados que estejam dispostos a
recebê-los ou no suporte financeiro ao Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados.
Türk e Garlick (2017) adotam a perspectiva de que os Estados são, em sua
essência, comprometidos com o princípio da solidariedade igualitária e divisão das

9Busca de termo com o filtro “ALL ODS”, banco de dados “UNITED NATIONS SEARCH Powered by UNITE”.
Results 31 - 40 of 36,635 for solidarity. Search took 3.01 seconds. Disponível em:
https://search.un.org/results.php. Acesso em: 08 out. 2018.
10Do original: There is hardly a single subsequent resolution of the General Assembly relating to the work of

my Office which does not contain some reference to the importance of international solidarity in seeking
solutions to the refugee problem. International solidarity has indeed acted as mainspring for all action
undertaken by my office in favour of refugees.

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responsabilidades (responsability-sharing) e, por isso, algumas ações de reassentamento


de refugiados foram bem-sucedidas no passado. Assim, consideram que a solidariedade
e a cooperação são obrigações legais reconhecidas pelos Estados nos artigos 55 11 e 5612
da Carta das Nações Unidas (1945), na Declaração Sobre Relações Amistosas (1970) 13 e
no artigo 35 da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 14.
O Alto Comissariado das Nações Unidas, no entendimento desses autores,
representa a institucionalização da solidariedade e do dever de cooperar. Contudo,
reconhecem que as discussões no âmbito do compartilhamento da responsabilidade
têm sido mais divisórias do que coesas e apontam como proposta de solução um
Protocolo Adicional à Convenção de 1951 “para que os Estados se lembrem do
compromisso com o princípio da solidariedade” (TÜRK; GARLICK, 2017, p. 663). Foram
analisados dois pontos chave sustentados pelos autores: obrigação legal e solidariedade.
Sobre obrigação legal, uma das principais questões concernentes ao Direito
internacional refere-se à força de lei das normas internacionais que surge a partir da
inadequada comparação com o Direito Interno, caracterizado por um sistema legal
embasado e amparado pela coerção (HART, 1994).
No Direito Internacional, os Estados são livres para aderirem, denunciarem ou
retirarem-se a qualquer tempo dos compromissos assumidos, evidenciando o caráter
associativo e não coercitivo dos instrumentos internacionais, incluindo os que foram

11Artigo 55: Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e
amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da
autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a. níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e
condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b. a solução dos problemas internacionais
econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c.
o respeito universal e efetivo raça, sexo, língua ou religião.
12Artigo 56: Para a realização dos propósitos enumerados no artigo 55, todos os membros da Organização se

comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente.


13Os Estados cooperarão com outros Estados na manutenção da paz e segurança internacionais;b) Os

Estados cooperarão na promoção do respeito universal e observância dos direitos humanos e liberdades
fundamentais para todos e na eliminação de todas as formas de discriminação racial e de todas as formas de
intolerância religiosa; c)Os Estados conduzirão suas relações internacionais nos campos econômico, social,
cultural, técnico e comercial, de acordo com os princípios de igualdade e não-intervenção
soberana;d)Estados Membros das Nações Unidas têm o dever de tomar ações conjuntas e separadas em
cooperação com as Nações Unidas, de acordo com as disposições pertinentes da Carta.
14Art. 35 - Cooperação das autoridades nacionais com as Nações Unidas. Os Estados Contratantes se

comprometem a cooperar com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ou qualquer
outra instituição das Nações Unidas que lhe suceda, no exercício das suas funções e em particular para
facilitar a sua tarefa de supervisionar a
aplicação das disposições desta Convenção. 2. A fim de permitir ao Alto Comissariado ou a qualquer outra
instituiçãodas Nações Unidas que lhe suceda apresentar relatório aos órgãos competentes das Nações
Unidas, os Estados Contratantes se comprometem a fornecer-lhes, pela forma apropriada, as informações e
dados estatísticos pedidos relativos: a) ao estatuto dos refugiados, b) à execução desta Convenção, e c) às
leis, regulamentos e decretos que estão ou entrarão em vigor que concerne aos refugiados.

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citados pelos autores. A própria Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951)
tem cláusula específica para denúncia (retirada), a saber:
Art. 44 – Denúncia
1. Qualquer Estado Contratante poderá denunciar a Convenção a qualquer
momento por notificação dirigida ao Secretário-Geral das Nações Unidas. 2.
A denúncia entrará em vigor para o Estado interessado um ano depois da
data na qual houver sido recebida pelo Secretário-Geral das Nações Unidas.
3. Qualquer Estado que houver feito uma declaração ou notificação
conforme o art. 40 poderá notificar ulteriormente ao Secretário-Geral das
Nações Unidas que a Convenção cessará de se aplicar a todo o território
designado na notificação. A Convenção cessará, então, de se aplicar ao
território em questão um ano depois da data na qual o Secretário-Geral
houver recebido essa notificação.
Os Estados podem, inclusive, aderir aos instrumentos com ressalvas à certos
artigos. Este comportamento não pode ser replicado no direito interno, pois
não há opção de retirada ou ressalva aos seus sujeitos. Um cidadão não
pode optar por deixar de seguir as regras de trânsito em razão de não
concordar com seus pressupostos, tampouco cumpri-las com ressalvas
(ACNUR, 1951, Art. 44).
Nem todas as leis ou mais propriamente “regras” pressupõem obrigação como
elemento essencial, como as regras procedimentais e burocráticas que regem as
relações públicas e privadas e, no caso internacional, os tratados que constituem as
Organizações Internacionais e aqueles que regem questões técnicas. As regras no
Direito não são apenas construções intelectuais, mas têm eficácia social na medida em
que apresentam alguns aspectos centrais, como a legitimidade ou aceitação “aos olhos
das pessoas ou grupos a quem são aplicadas” e que “sendo legitimadas, não dependem
de sanções para que se tornem efetivas”(HART, 1994, p. 217).
Os Estados obedecem às regras impotentes porque são atraídos para o
cumprimento por considerações de legitimidade e justiça distributiva. Assim, o Regime
pode ser efetivo, mesmo sem ferramentas de coerção enquanto atender aos interesses
dos Estados (KOH, 1995).
A adoção de mecanismos de coerção, nesse caso, pode enfraquecer as bases
do Regime, pois a aderência aos instrumentos internacionais depende, em sua essência,
do interesse dos Estados, enquanto, no direito interno, todos os códigos legais vigentes
incorporam-se automaticamente a partir do nascimento do sujeito, sem possibilidade de
escolha. Sendo assim, entende-se que o direito internacional deve ter status legal a
partir de outros meios, como a própria legitimidade ou ações provenientes do direito
que não estão necessariamente impostas a partir da coerção ou da execução da força
em caso de não conformidade.

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Adicionalmente, em um mundo globalizado caracterizado pela era da


informação, a vigilância é constante e pode ser utilizada como ferramenta, pois dificulta
ações indiscriminadas dos Estados sem ser percebido pelos outros atores e demais
Estados. A retaliação internacional não precisa ser necessariamente expressa em um
acordo ou institucionalizada nos moldes do reforço coercitivo do respeito à regra, como
no Direito Interno. Isso claramente iria de encontro à voluntariedade de submissão que
é fundamental ao próprio Direito Internacional e aos princípios de adesão aos tratados e
às normas.
O segundo ponto analisado foi a compreensão da solidariedade como
motivação para a cooperação, recorrendo a dois exemplos de ações do ACNUR. Nos
últimos 20 anos, o Alto Comissariado das Nações Unidas tem promovido discussões e
propostas com o objetivo de remover as lacunas (gaps) da proteção aos refugiados. A
solução de um “novo protocolo adicional à Convenção de 1951”, com base na
solidariedade, proposta por Turk e Garlick foi tentada no passado, sem sucesso, por
meio da Convention Plus Initiative (2002-2005). Formada por uma série de acordos
especiais (special agreements), era tão burocrática e confusa que gerou efeito contrário,
ou seja, causou questionamentos quanto à efetividade do Alto Comissariado das Nações
Unidas em endereçar e resolver problemas (ZIECK, 2009). Em apenas três anos, a
iniciativa foi encerrada, pois não alcançou resultados.
Em 2011, o ACNUR promoveu nova reunião 15 para discutir como enfrentar
esses desafios. No relatório elaborado após as discussões, a cooperação, mas não a
solidariedade, foi apontada como princípio chave do Regime Internacional dos
Refugiados e uma prática necessária. O objetivo da reunião não foi o de propor novo
documento, mas, sim, de discutir casos envolvendo refúgio considerados bem-sucedidos
para replicá-los em outros locais, indicando de forma colaborativa e não coercitiva de
que maneira as ações multilaterais, bilaterais ou unilaterais poderiam ser realizadas.
Divididas em diversos níveis (resgate, primeiro atendimento e soluções
duráveis), escopos (larga escala, fluxo misto) e estruturas (capacidade dos Estados), as
propostas de ação na reunião consideraram diversos atores para formar um quadro de
cooperação, conforme Tabela 2:

15A reunião foi intitulada de “International Cooperation to ShareBurden and Responsabilities: Expert
Meeting in Amman, Jordan” e resultou no documento que pode ser consultado pelo endereço:
http://www.unhcr.org/events/conferences/4ef332d29/expert-meeting-international-cooperation-share-
burden-responsibilities.html.

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Tabela 2 – Quadro de cooperação: atores e ações

Atores Ações

Estados de Origem Memorando

Estados de Primeiro Asilo ou Trânsito Planos de Ação

Organizações Regionais Acordos bilaterais e multilaterais

Organizações Internacionais Políticas e regulações harmonizadas

ONGs e Sociedade Civil Procedimentos operacionais padrão

Solicitantes de Refúgio e Refugiados Acordos-quadro e Reuniões estratégicas

Fonte: Retirado de Acnur (2011).


Embora não tenha sido de grande relevância no quesito resultados, a reunião
ofereceu experiências para as propostas seguintes, além de explorar a importância de
outros atores para efetivar a cooperação, como a sociedade civil e os próprios
refugiados, de acordo com as suas capacidades. Logo, o ACNUR identificou que a
solidariedade não representava a principal razão para os Estados cooperarem,
tampouco que apenas o ACNUR e os Estados seriam suficientes para lidar com o tema
refúgio.
Algumas perspectivas teóricas consideram que o interesse dos Estados e não a
solidariedade seja de fato a motivação que efetiva a cooperação. Para Betts e Collier
(2015), o modelo primordialmente voltado à assistência humanitária, promovido pela
Convenção de 1951, aplicado em situações de longo prazo, fez com que os Estados
enxergassem os refugiados como um fardo, não uma oportunidade.
Tanto para os Estados de primeiro asilo quanto para os demais Estados, os
refugiados são vistos como encargo, um problema e não há interesse em reassentá-los
nos moldes propostos pelo ACNUR. Alguns Estados não concordam com políticas de
reassentamento por acreditarem que os refugiados devam permanecer nos Estados de
primeiro asilo para facilitar o futuro processo de repatriação ou por que pretendem
desenvolver suas políticas migratórias conforme seus interesses nacionais, sem assumir
compromisso com organizações internacionais que não deveriam gerir assuntos
migratórios (UNITED STATES OF AMERICA, 2017).Logo, como incentivá-los a cooperar?
A institucionalização do refúgio e o princípio do non-refoulement são avanços
na proteção, mas ao invés de criarem uma rede de cooperação e de ações de

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governança, pautada pela reciprocidade, o non-refoulement incentivou alguns Estados a


não contribuirem e a deixarem a maior parte da responsabilidade e custas para os
Estados de primeiro asilo, pobres, localizados no Sul-Global (UNHCR, 2017).
Embora os Estados se beneficiassem com ação coletiva, a cooperação não se
dá enquanto conseguem aproveitar a carona (free-ride) de outros (BETTS, 2008). Nesse
sentido, o autor sugeriu que os Estados contribuam a medida que a cooperação gerou
benefícios subsidiários (produtos conjuntos). Ou seja, Estados fornecem apoio regional
para proteção e soluções quando há interesse. Assim, o autor destacou que as ações de
cooperação bem-sucedidas do passado são fruto de discussões envolvendo persuasão
(barganhas) nas quais os interesses dos Estados os induziram a cooperar (BETTS, 2009).
Em aditivo, as ações de agentes do ACNUR, como o brasileiro Sérgio Vieira de
Mello, persuadiram os Estados a visualizarem possíveis interesses em alguns casos de
reassentamento, bem como os problemas que viriam caso a cooperação não ocorresse
(BETTS, 2009). Ações desse tipo não só se relacionam com o direito, mas com o poder. É
trocar o discurso de “até que ponto devemos ceder às suas exigências” para “até que
ponto podemos utilizar suas exigências” (NIETZSCHE, 2005, p. 217).
Essa forma de coordenação realizada no passado é considerada por Betts
(2009) um modelo a ser aprimorado. Admitir as relações de poder e estruturar as
negociações conforme os interesses dos atores envolvidos é a solução-base proposta, na
espécie de persuasão cruzada (cross-issue persuasion), por meio de conexões (linkages)
entre Estados, organizações internacionais, ONGs e empresas, com o objetivo de
“contrastar incentivos para provisões” (BARRET, 2007, p. 09). Nesse modelo, o papel do
ACNUR seria o de criar grupos para analisar estratégias e responder eficazmente às
restrições e oportunidades políticas mais amplas. O futuro da agência dependeria da sua
“capacidade de efetivamente se envolver com a política além do regime de refugiados”
(BETTS, 2009, p. 186).
Os autores referidos tentam encontrar respostas ao desafio comum:
cooperação no Regime dos Refugiados. Ao abordar solidariedade e interesse dos
Estados a respeito dos refugiados, procurou-se compreender qual deles, em nossa visão,
seria a força dos Estados para alcançar as soluções duráveis que o Regime demanda.
Com relação à teoria que emprega o princípio da solidariedade como principal fator de
cooperação, foi considerado que há equívocos na concepção de Turk e Garlick (2017)
nos seguintes pontos.

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1. Ao afirmar que os Estados são intrinsecamente solidários e que por isso


cooperam;
2. Ao afirmar que os Estados são legalmente obrigados a cooperarem e serem
solidários;
3. Ao embasar o argumento da obrigação legal utilizando instrumentos
internacionais de caráter associativo, sem poder coercitivo ou punitivo;
4. Ao propor um Protocolo Adicional à Convenção de 1951 para lembrar aos
Estados do seu compromisso com a solidariedade, quando, no passado, tal
proposta não teve êxito;
5. Ao creditar os sucessos das ações de reassentamento realizadas no passado ao
princípio da solidariedade dos Estados.
Considerou-se que esses autores defendem a solidariedade igualitária em uma
estrutura que reflete, na realidade, nova apresentação da solidariedade hierarquizada
medieval que agora é globalizada.
O argumento de Betts (2009) sobre o interesse dos Estados como motivação
para cooperação relaciona-se com outras teorias, como a de Foucault (1978) que
dissertou sobre a continuidade da soberania na organização dos códigos jurídicos e seu
funcionamento e, também, de Maquiavel (2005) sobre as ações não solidárias e éticas
dos chamados homens de Estado, como analisa Escorel (1979):
Se o indivíduo, na sua existência privada, tem o direito de sacrificar o seu
bem pessoal imediato e até sua própria vida a um valor moral superior,
ditado pela sua consciência, pois em tal hipótese está empenhando apenas
seu destino particular, o mesmo não acontece com o homem de Estado,
sobre a qual pesam a pressão e a responsabilidade dos interesses coletivos;
este, de fato, não terá o direito de tomar uma decisão que envolva o bem-
estar ou a segurança da comunidade, levando em conta tão-somente as
exigências da moral privada; casos haverá em que terá o dever de violá-la
para defender as instituições que representa ou garantir a própria
sobrevivência da nação (ESCOREL, 1979, p. 94).
O trecho ilustra o dilema do Regime dos Refugiados. É, na realidade, o cerne
da questão, pois envolve moralidade e interesses que se sobrepõem ao ato de cooperar,
de ser solidário. Desse modo, o argumento de Betts (2009) correlaciona-se com as
informações sobre fatores que levaram aos problemas de cooperaçãono Regime dos
Refugiados. Foi consideradoque em relação às duas teorias avaliadas a mais coerente é
aquela que pondera sobre o interesse dos Estados como força motriz da cooperação.

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3. Os modelos de cooperação: os riscos das soluções “in box”

Para exemplificar a discussão teórica sobre interesse versus solidariedade,


analisou-se,a seguir, o caso do reassentamento dos refugiados húngaros após a Segunda
Guerra Mundial, coordenado pela recém-criada Organização das Nações Unidas. A ação
é considerada pela ONU um exemplo de sucesso no âmbito da cooperação
internacional, na qual muitas pessoas foram reassentadas em pouco tempo.
Tendo em vista as sucessivas recusas dos Estados, na atualidade, para o
reassentamento, procurou-se compreender o motivo pelo qual deram certo os modelos
do passado. Assim, recorreu-se às fontes primárias das negociações realizadas na época,
isto é, relatórios com o posicionamento dos Estados e das agências especializadas IRO e
ACNUR até 1959, ano que foi declarado o encerramento desse programa.
O caso do reassentamento dos refugiados húngaros foi o primeiro em larga
escala após a Convenção de 1951. Aproximadamente, 200 mil pessoas deixaram a
Hungria em seis semanas, devido à repressão sofrida pela intervenção militar soviética,
em direção às fronteiras ocidentais com a Áustria (180 mil) que, na época, tinha uma
população de 7 milhões de pessoas (UNITED NATIONS, 1961).
Inicialmente, as pessoas foram acomodadas em 199 campos de refugiados
construídos com os USD 20.000,00 arrecadados pelo Alto Comissariado das Nações
Unidas em sua primeira missão após a sua criação, em 1951. Enquanto a assistência
humanitária era provida aos grupos que chegavam, o ACNUR buscou apoio de outros
Estados para organizar o reassentamento imediato por intermédio de uma assembleia
geral organizada pela Organização das Nações Unidas chamada “Acordos rápidos e
eficazes para a assistência de emergência aos refugiados da Hungria”, ou seja, sem longa
estadia nos campos de refugiados que tinham prazo de término estipulado (1960).
Mesmo em regime de emergência, os campos eram equipados com hospitais, escolas,
refeitório e alojamento familiar (UNITED NATIONS, 1961).
Os reassentamentos começaram na primeira semana após a chegada dos
refugiados no campo. Quarenta Estados se voluntariaram para reassentarem, de
maneira facilitada, os refugiados, tendo em vista que eles saíram do Estado de origem
sem documentos. Para entrar na Suíça, por exemplo, era necessário informar apenas o
nome e a idade. Em 1957, dos 200 mil refugiados, 177 mil foram reassentados,
enquanto apenas 23 mil permaneciam nos campos. Com o objetivo de aplicar soluções

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duráveis, tais como reassentar todas as pessoas em outros Estados, repatriá-las


voluntariamente ou integrá-las nos Estados de primeiro asilo, o ACNUR solicitou aporte
adicional de USD 7,5 milhões, ressaltando a importância de fechar os campos de
refugiados, pois eles não constituíam uma solução durável, mas provisória(UNITED
NATIONS, 1961).
Em 1960, restavam 8.940 refugiados na Áustria, mas apenas 955 viviam em
campos e o restante vivia em residências providenciadas por agências voluntárias ou em
institutos federais, enquanto aguardavam o reassentamento ou a concessão de
nacionalidade austríaca, que já havia sido conferida para 785 pessoas que
permaneceram no território (UNITED NATIONS, 1961). No final de 1960, havia
aproximadamente 9 mil pessoas em processo de integração no território nacional, o que
representa rápido processo de redução de danos, evitando longas estadias em campos
de refugiados. Para aqueles que continuaram na Áustria, o processo de integração foi
planejado e gerenciado pelo ACNUR por meio de doações dos Estados, considerando-se
soluções duráveis que promovessem a autonomia dos refugiados (UNITED NATIONS,
1961).
A disponibilização de casas, assistência para promoção da agricultura,
treinamento e educação, cuidado com as mães solteiras, universitários, entre outros,
fizeram parte dos 34 projetos do ACNUR e do governo da Áustria voltados às soluções
duráveis. Ainda em 1960, foram iniciados 7 projetos para construir residências para as
pessoas que estavam em hospedarias ou campos, totalizando 1.160 residências (UNITED
NATIONS, 1961).Os progressos foram reportados pelo governo da Áustria ao ACNUR:
A escola de formação profissional em Hirtenberg continua a fornecer
excelentes instalações para novos aprendizes de refugiados húngaros. O
número de beneficiários aumentou em 1960 em 118 casos, elevando o total
em 31 de dezembro de 1960 para 282 casos (185 de campos). A partir de 1º
de janeiro de 1961, 110 jovens refugiados húngaros passaram por
treinamento na escola. Os resultados dos exames de aprendizes que se
formaram na escola de treinamento em Hirtenberg e as chances de
encontrar um emprego bem remunerado ao sair da escola permanecem
excelentes (UNITED NATIONS, 1961, p. 03). 16

16 Do original: The vocational training school at Hirtenberg continues to provide excellent facilities to new
Hungarian refugee apprentices. The number of beneficiaries increased during 1960 by 118 cases bringing
the total as of 31 December 1960 to 282 cases (185 from camps). As of 1 January 1961, 110 new Hungarian
refugee youth were undergoing training in the school. Both the results of the examinations of apprentices
graduating from the training school at Hirtenberg and the chances of finding well-paid employment on
leaving the school remain excellent. Disponível em:
http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/AC.96/112.

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Tão importante quanto à educação, o tratamento psicológico e terapêutico foi


considerado e aplicado principalmente para as crianças desacompanhadas com o
objetivo de auxiliar na readaptação. Para tanto, foi criada a Clínica de Orientação Infantil
em conjunto com um conselheiro de saúde mental designado pelo ACNUR (UNITED
NATIONS, 1961).
Na Iugoslávia, Estado de primeiro asilo de 20 mil refugiados húngaros, foi
realizado um censo com a finalidade de saber os locais para os quais os refugiados
gostariam de ser reassentados. Cada Estado disponibilizou a sua cota de acordo com
seus interesses e ressalvas, como, a Alemanha que condicionou o reassentamento à
proximidade étnica e ao financiamento da viagem pela sociedade civil.
Desse modo, observou-se que as tratativas referentes aos refugiados húngaros
seguiram dois parâmetros: assistência humanitária imediata e busca por soluções
duráveis por meio do diálogo para aliviar o Estado de primeiro asilo, como indica Zieck
(2017):
A Áustria não só havia sido aliviada fisicamente, mas também
financeiramente. As despesas incorridas até o final de 1957, estimadas em
USD 12.200.000, foram totalmente cobertas por contribuições de outros
governos através do Secretário-Geral, do ACNUR, ou diretamente ao
governo da Áustria (ZIECK, 2017, p. 389) 17.
Para compreender a razão pela qual 40 Estados prestaram cooperação nesse
caso, se foi por solidariedade ou interesse, passar-se-á a analisar o contexto da época.
Em 1956, a Europa atravessava período de reconstrução devido às baixas da Segunda
Guerra Mundial, enquanto nos Estados Unidos a construção civil e a indústria nacional
dos bens de consumo apresentaram rápido crescimento que resultou em baixa taxa de
desemprego (2%), conforme relatório do Presidente Eisenhower.
No entanto, após a virada do ano, à medida que o avanço da produção
continuou e se espalhou para fora, os empregos se expandiram
rapidamente. Entre os últimos trimestres de 1954 e 1955, o emprego
aumentou mais de 3 milhões. Enquanto isso, o desemprego diminuiu,
especialmente de mulheres e jovens, que foram atraídos para o mercado de
trabalho por altos salários e ampliação de oportunidades. Em meados de
1955, o desemprego em geral estava bem abaixo de 4% da força de
trabalho. A taxa de desemprego entre homens casados que vivem com suas
famílias, que formam o núcleo duro da força de trabalho, caiu abaixo de 2%
(UNITED STATES OF AMERICA, 1956, n.p). 18

17 Do original: Austria had not only been relieved physically but also financially. The expenditures it incurred
by the end of 1957, estimated to amount to 12,200,000 USD, were fully covered by contributions from other
governments through the Secretary-General, UNHCR or directly. Disponível em:
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1481596.
18 Do original: However, after the turn of the year, as the advance of production continued and spread
outward, jobs expanded swiftly. Between the last quarters of 1954 and 1955, employment increased by

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Outra motivação favorável ao reassentamento dos refugiados húngaros foi sua


crença religiosa, o cristianismo, que também era a crença da maioria dos Estados
dispostos a reassentarem o maior número de refugiados: Estados Unidos, Canadá e
Austrália. Nos Estados Unidos, esse período também foi marcado por atos de
segregação racial amparados por leis estaduais e municipais (Jim Crow Laws)19 que
permitiam, até 1968, menos direitos gerais e acesso dos negros aos locais públicos e
privados, escolas e empregos, entre outras restrições.
Havia procura por mão de obra caucasiana barata e os refugiados húngaros
atenderam essa necessidade, além de concederem boa imagem aos Estados Unidos que,
após a Segunda Guerra Mundial, foi criticado pelas Nações Unidas sobre a segregação
racial promovida pelas leis Jim Crow (CONSTITUTIONAL RIGHTS FOUNDATION, 2017,
n.p). Após o Vice-Presidente Richard Nixon visitar o Kilmer Camp, local em queos
refugiados húngaros eram provisoriamente instalados, Martin Luther King escreveu ao
Vice-Presidente solicitando a mesma atenção aos negros que sofriam opressão no Sul.
Prezado Presidente: Todas as pessoas de boa vontade ficaram
impressionadas com sua profunda preocupação pelo sofrimento do povo
húngaro que se expressou em sua viagem à Áustria, seu relatório ao
presidente e ao povo americano. Pedimos que você faça uma viagem para
áreas problemáticas do Sul, a fim de informar ao presidente e às pessoas a
intensidade e extensão dos boicotes econômicos, represálias, atentados e
violência dirigida contra as pessoas e os lares. de negros que tentam afirmar
seus direitos sob a constituição dos estados unidos. Para ser específico,
dentro do ano passado milhares de negros fugiram de Mississipi. eles não
receberam assistência moral ou financeira do governo federal. Se você
fizesse a viagem para o sul para explorar os fatos e conversar com as vítimas
da opressão racial, você poderia recomendar ao presidente e ao povo
americano um curso de ação que poderia ser tão eficaz quanto os seus
esforços em favor da população. refugiados húngaros (LUTHER KING, 1957,
carta não paginada).20

over 3 million. Meanwhile, unemployment declined despite the tremendous numbers, especially of women
and young people, who were attracted into the labor market by high wages and widening opportunities. By
mid-1955 unemployment at large was well below 4 percent of the labor force. The unemployment rate
among married men living with their families, who form the hard core of the labor force, fell below 2
percent. Disponível em: http://www.presidency.ucsb.edu/economic_reports/1956.pdf.
19 As Leis Jim Crow eram um conjunto de normas estaduais e municipais formuladas no Sul dos Estados
Unidos com o intuito de segregar os negros. Para mais informações a respeito, consultar:
https://www2.gwu.edu/~erpapers/teachinger/glossary/jim-crow-laws.cfm.
20Do original: dear Mr. vice president: all persons of goodwill were impressed with your deep concern for

the suffering of the Hungarian people which expressed itself in your trip to Austria, your report to the
president and to the American people. we urge you to make such a fact-finding trip to troubled areas of the
south in order to report to the president and to the American people the intensity and extent of the
economic boycotts, reprisals, the bombings and violence directed against the persons and homes of negroes
who attempt to assert their rights under the united states constitution. To be specific, within the last year
thousands of negroes have fled Mississippi. they have received no moral or financial assistance from the
federal government. if you were to make the trip into the south to explore the facts, and to talk with victims
of racial oppression, you could then recommend to the president and the American people a course of

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Para refugiados caucasianos, cristãos e não comunistas, o acesso estava quase


garantido. Em apenas 90 dias, 27 mil húngaros foram ajustados à “vida americana”,
restando apenas 1.600 no campo destinado à espera de remanejamento. Nessa nova
vida, os refugiados foram empregados inicialmente em qualquer tipo de serviço, sendo
aos poucos integrados na economia e destacados para posições de acordo com suas
habilidades.
Um observador calculou que cerca de 38% dos refugiados foram
inadequadamente ou mal colocados, citando "o advogado que lava a louça;
o ex-secretário que trabalha numa máquina de costura na fábrica; o
arquiteto na fundição; o mecânico de automóveis que é um açougueiro"
ajudante." Contudo, a mesma crítica observou que apenas 9% dos
refugiados estavam desempregados no final de um ano e que mais de 50%
deles estavam adequadamente empregados em suas áreas (MARKOWITZ,
1973, p. 49, tradução da autora)21.
Era comum a seleção de pessoas conforme critérios físicos, o que levou o
Governo da Áustria a solicitar aos Estados “levar não só os jovens, os fortes, os
habilidosos, mas também os coxos, doentes, deficientes e as famílias não ativas
economicamente” (UNITED NATIONS, 1961, p. 02). Nesse ponto, o governo Canadense
respondeu que “bastaria aos húngaros que estivessem vivos para serem elegíveis ao
reassentamento”, quando, na realidade, escolhia os grupos mais saudáveis ainda nos
campos austríacos (MARKOWITZ, 1973, p. 46).
Inicialmente, os americanos não desejavam participar tão ativamente do
programa de reassentamento dos refugiados húngaros. Entretanto, a oportunidade de
estabelecer os Estados Unidos como apoiadores dos direitos humanos contra os
“violadores comunistas soviéticos” chamou a atenção do governo.Com campanhas de
reassentamento chamadas “operação paraíso seguro”, “paraíso dos oprimidos” e
“operação piedade”, as propagandas eram veiculadas no rádio e nos cinemas, tanto em
território nacional quanto no exterior, indicando o solo americano como “o solo da
liberdade”(MARKOWITZ, 1973, p. 49).
Como resultado, os Estados Unidos não só melhoraram a sua imagem perante
à comunidade internacional, mas também internamente, pois “as ações humanitárias e
generosas foram, segundo Nixon, calorosamente aplaudidas pela nação” (MARKOWITZ,

action that might be as effective as your efforts on behalf of Hungarian refugees. Para consultar a carta,
utilizar o link: https://kinginstitute.stanford.edu/king-papers/documents/richard-m-nixon-4.
21 Do original: One observer estimated that some 38% of the refugees were inadequately or wrongly placed,

citing "the lawyer who washes dishes; the former secretary who works on a sewing machine in the factory;
the architect in the foundry; the auto mechanic who is a butcher's helper." However, the same critic noted
that only 9% of the refugees were unemployed at the end of a year's time, and that over 50% of them were
at least adequately placed in their areas.

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1973, p. 51). Eisenhower (1957), ao questionar o Vice-Presidente Richard Nixon sobre os


riscos que os refugiados húngaros poderiam trazer, como espionarem em favor dos
soviéticos, obteve a seguinte resposta:
Asseguro ao Presidente que o processo de triagem, tem garantido que os
refugiados não apresentem " risco significativo de subversão interna neste
país. "Em vez de assumir uma responsabilidade, sinto que os Estados Unidos
ou qualquer outra nação que aceitou estas pessoas está ganhando "um
ativo nacional valioso (UNITED STATES OF AMERICA, 1957, tradução da
autora)22.
Esse ativo nacional valioso era necessário e oportuno para os 40 Estados que
reassentaram refugiados húngaros, cada um com seu interesse específico, que foi
considerado pelo ACNUR. É importante ressaltar, inclusive, que a maioria dos Estados
que aceitou reassentar não havia ainda ratificado a Convenção de 1951 Relativa ao
Estatuto dos Refugiados, as ações foram operadas de maneira descentralizada. Os
refugiados receberam proteção com titulações diversas em solo estrangeiro, como
“asilo temporário”, “reassentamento além-mar”, “reassentamento temporário”,
“segundo asilo”, “realocação” e “evacuação massiva” (ZIECK, 2009, p. 390).
Independente da nomenclatura recebida, praticamente a totalidade dos refugiados
húngaros foi reassentada em um ano.
Dessa forma, considerou-se que o panorama da época foi favorável ao
reassentamento dos refugiados húngaros pelos seguintes interesses:
1. Econômico: necessidade de mão de obra barata na reconstrução pós Segunda
Guerra Mundial e ascensão da indústria dos bens de consumo;
2. Populacional: aumentar a população dos jovens Estados independentes nos
Estados Unidos, na Austrália e no Canadá;
3. Étnico: refugiados europeus, cristãos e caucasianos;
4. Imagem e Status-quo: propaganda contra a ascensão do comunismo soviético
(guerra fria) e construção da imagem de salvador dos que foram oprimidos
pelos regimes comunistas.
Em nossa análise, esses casos representam situações que envolveram
interesses dos Estados, sejam culturais, econômicos ou políticos e que por isso tiveram

22 Do original: The screening process then in effect guaranteed that the refugees would present "no
significant risk of internal subversion in this country." Rather than assuming a liability, I feel that the United
States or any other nation which accepted these people would be gaining "a valuable national asset” Para
visualizart odo o relatório, consultar: http://archivum.retorki.hu/upload/2015/10/254.pdf.

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resultados práticos. Outros casos, no entanto, mesmo se tratando da mesma questão,


reassentamento ou ajuda financeira, não tiveram êxito.
Como exemplo de iniciativa que não deu certo, a Conferência Internacional
sobre Assistência aos Refugiados na África 23 (1984, ICARA I e II) é o reflexo de que o
interesse e não a solidariedade move os Estados rumo à cooperação. O objetivo da
iniciativa era o de obter assistência para “compensar os Estados de asilo africanos pelos
impactos econômicos, sociais e na infraestrutura, causados pelo acolhimento de grande
número de refugiados” (BETTS, 2008, p. 160). Após encontros em Genebra para
apresentar a lista de projetos que demandavam doações e a quantia necessária para
iniciá-los, os Estados do Norte Global, doadores, destinaram apenas USD 40 milhões dos
USD dos 560 milhões solicitados, sob alegação de que os projetos não atendiam
soluções duráveis. Em aditivo, os Estados doadores optaram por destinar suas doações
apenas aos projetos de Estados africanos com os quais mantinham relações comerciais
ou outros interesses. Sem alternativa de barganha, a iniciativa não teve o êxito desejado
pelos Estados africanos (BETTS, 2008, p. 163).
Para explicar a razão pela qual atualmente os Estados não aplicam modelos
“de sucesso” do passado para alcançar efeito prático, partiu-se da percepção de que um
sistema inflado marcado por 82% dos migrantes forçados vindos de Estados do Sul, em
geral, subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, compostos por maioria negra de
cultura diversificada(BETTS, 2008, p. 159).
Assim, não há interesse dos Estados do Norte em reassentar essas pessoas que
significam, as suas populações, uma ameaça ao seu estilo de vida e à homogeneidade
cultural, racial e religiosa, sentimento alimentado por partidos de extrema-direita24.
Ademais, há evidente desequilíbrio no poder de barganha entre os Estados do Norte e
do Sul Global. Relativamente distantes e dependentes de ajuda, os Estados do Sul não
contam com qualquer tipo de ativo que possa persuadir os Estados do Norte a cooperar,
mas a recíproca não é verdadeira. Os Estados do Norte, ao sentirem pressionados,
podem deixar de contribuir financeiramente com a assistência humanitária aos Estados
do Sul.

23Do original: International Conference on Assistance to Refugees in Africa


24Exemplo nesse sentido são as Leis atualmente propostas na Alemanha pelos partidos de extrema-direita,
cujo objetivo é o de impedir a reunião familiar de quem recebeu status de refugiado no País. Para mais
informações, consultar: https://www.dw.com/en/germanys-far-right-afd-targets-refugees-in-first-bill-
before-parliament/a-42206338.

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Como resultado, alguns Estados do Sul violam o princípio do non-refoulement


ao recusar solicitantes de refúgio em seu território que, por sua vez, fazem longas
jornadas até a Europa, o que causou a chamada crise migratória europeia,
representando apenas 13% do total de refugiados e solicitantes de refúgio no mundo
(UNHCR, 2017).
Consideramos que modelos de sucesso do passado não podem ser
padronizados e aplicados nas situações atuais, no formato “in box’, devido à
complexidade de cada conflito ou situação que envolve refugiados. Contextos
geográficos, culturais, sociais e econômicos são afetados pelo fator tempo, ou seja, os
dilemas de hoje não são os mesmos de 1956 ou 1999, tampouco os sujeitos da questão,
os refugiados, são os mesmos. Seria a mesma lógica de comprar pneus de fusca para um
caminhão.
É necessário, portanto, dialogar com os Estados, a exemplo do que Sérgio
Vieira de Mello chamou de “novas soluções orientadas e consensuais envolvendo a
cooperação entre os Estados de Origem, primeiro asilo e reassentamento” (MELLO,
1985, n.p). Desse modo, os exemplos do passado corroboram com a perspectiva de que
novas iniciativas com base na solidariedade não terão aderência dos Estados, pois não
foram, ao contrário do que informa o ACNUR, pautados pela solidariedade.

Conclusão

Ao analisar a formação do Regime Internacional dos Refugiados, identificou-se


que as regras e os procedimentos para monitorar, receber pleitos e julgar violações aos
princípios completaram o ciclo necessário para a formação de um regime nos moldes da
concepção de Krasner.
Observou-se, assim, que a proteção aos refugiados é normatizada,
compulsória aos Estados signatários, mas não é mais garantida, conforme as situações
analisadas. A cooperação acontece em alguns casos específicos, mas não é normatizada
e, logo, não obrigatória. Assim, os Estados não podem ser acionados nos tribunais
regionais por falta de cooperação.
Em nossa análise sobre solidariedade e interesse, identificamos que os autores
escolhidos tentaram encontrar respostas ao desafio comum: cooperação no Regime dos

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Refugiados. Ao abordar solidariedade e interesse dos Estados a respeito dos refugiados,


procurou-se compreender qual deles, em nossa visão, seria a força dos Estados para
alcançar as soluções duráveis que o Regime demanda. Com relação à teoria que
emprega o princípio da solidariedade como principal fator de cooperação, consideramos
que há equívocos na concepção de Turk e Garlick (2017), no que tange creditar
solidariedade à motivação para a cooperação, fator que não se sustenta nas iniciativas
analisadas.
Dessa forma, o argumento de Betts e Paul Collier (2017) correlaciona-se com
as informações sobre fatores que prejudicam a cooperação no Regime dos Refugiados.
Consideramos que das duas teorias avaliadas, a mais coerente é a que aborda o
interesse dos Estados como força motriz da cooperação.
No estudo empírico, foi analisado o caso dos refugiados húngaros, considerado
um sucesso de cooperação internacional e solidariedade, no qual 200 mil pessoas foram
reassentadas em aproximadamente um ano. Observamos que os campos de refugiados
da época dispunham de tudo que era necessário para a estadia das famílias: hospitais,
escolas, casas familiares e que havia grande esforço em mantê-las o mínimo possível nos
campos.
Correlacionou-se os reassentamentos dos húngaros com o crescimento da
indústria dos bens de consumo dos Estados Unidos da América que necessitava de mão
de obra barata, caucasiana e cristã, em detrimento dos negros americanos que eram, na
mesma época, segregados pelas leis Jim Crow. Para os que ficaram nos campos da
Áustria, aproximadamente 9 mil pessoas, foram construídas residências, concessão de
nacionalidade e estudo para que pudessem reconstruir suas vidas. Tal ação dos Estados
destoa completamente dos exemplos mais atuais relacionados aos refugiados sírios, por
exemplo.
Desse modo, confirmamos a premissa dessa pesquisa de que o discurso de
solidariedade como incentivo principal para que haja cooperação entre os Estados é
inviável para solucionar o problema e dar continuidade ao Regime e de que não são as
práticas das Nações Unidas que geram diferentes resultados, mas o interesse dos
Estados que determinam as condições para que os refugiados sejam recebidos e
instalados nos territórios que buscam abrigo.

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Sobre a autora

Rosilandy Carina Candido Lapa


Bacharela em Relações Internacionais (2017), Mestra em Direito Internacional (2018)
e Doutoranda em Direito Ambiental Internacional (2019- presente data), pela
Universidade Católica de Santos. Na mesma instituição, integra os grupos de
pesquisa “Regimes e Tutelas Constitucionais, Ambientais e Internacionais” e
“Comunicação e Cidadania”. Pesquisadora e consultora na área do Direito
Internacional com foco em Direitos Humanos, Migrações Forçadas e Apatridia. Possui
experiência em pesquisa e elaboração de relatórios sobre Informação do Estado de
origem dos refugiados (Country of Origin Information- COI), certificada pela Austrian
Centre for Country of Origin & Asylum Research and Documentation (ACCORD) e
United Nations High Comissioner for Refugee (UNHCR) (2016). E-mail:
roselapa@outlook.com

A autora é a única responsável pela redação do artigo.

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Tempo da Constituição e Ponte para o Futuro: uma análise


a partir da teoria crítica da aceleração social
Constitution time and Bridge for the Future: an analysis from the critical theory of
social acceleration

Ernane Salles da Costa Junior1


¹ Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail:
profernanesalles@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0088-6556.

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira 2


² Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail:
mcattoni@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2409-5804.

Artigo recebido em 9/9/2019 e aceito em 9/03/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 197-236.
Ernani Salles da Costa Junior e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/45118| ISSN: 2179-8966
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Resumo
O problema que orienta essa investigação pode ser formulado da seguinte maneira: em
que medida a crise constitucional, evidenciada nas reformas recentes contra o núcleo
inclusivo da Constituição brasileira que compõem o programa “Uma Ponte para o
Futuro”, seria também uma crise temporal? A partir de um estudo teórico-conceitual
embasado em pesquisa bibliográfica e análise documental, a hipótese defendida aqui é
a de que o pano de fundo dessa crise está relacionado com um discurso que
instrumentaliza o “tempo histórico” e o “futuro” em si para gerar adesão social a partir
da defesa aberta da aceleração, a defesa de um futuro que deve chegar mais rápido. Tal
categoria é analisada a partir de uma leitura específica que esse artigo propõe da obra
de Hartmut Rosa, no quadro de uma crítica à aceleração que submete os
comprometimentos públicos de longa duração da Constituição à tutela da acumulação
da riqueza privada e à velocidade do tempo do mercado e da competitividade.
Palavras-chave: Constituição; Tempo; Aceleração Social.

Abstract
The problem that guides the investigation can be formulated as follows: to what extent
is the constitutional crisis, evidenced in the recent reforms against the inclusive nucleus
of the Brazilian Constitution that make up the program “A Bridge to the Future”, would
be also a temporal crisis? Based on a theoretical-conceptual study based on
bibliographic research and documentary analysis, the hypothesis defended here is that
the background of this crisis is related to a discourse that instrumentalizes “historical
time” and “future” itself for to generate social adhesion from the open defense of
acceleration, the defense of a future that must come faster. This category is analyzed
based on a specific reading that this article proposes from the work of Hartmut Rosa,
within the framework of a criticism to the acceleration that submits the long-term public
commitments of the Constitution to the tutelage of the accumulation of private wealth
and the speed of market and. Competitiveness time.
Keywords: Constitution; Time; Social acceleration.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 197-236.
Ernani Salles da Costa Junior e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/45118| ISSN: 2179-8966
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1. Introdução: Crise e Constituição

Ao menos no Brasil, a palavra crise é uma daquelas utilizadas de forma corrente por
figuras públicas e pela impressa para traduzir um estado de turbulências e de
instabilidade, por vezes corriqueiros, no cenário vigente. Concebido dessa forma, o
termo já perdeu muito de seu componente de excepcionalidade: a gradativa
normalização do conceito – fala-se a todo o momento em crise política, crise econômica,
crise de valores, crise da civilização – tem duas consequências: uma espécie de
banalização da ideia de crise e uma certa opacidade do conceito (PAIXÃO, 2018).
Considerando seu significado mais preciso ou pelo menos mais restrito, aquele
proveniente dos dicionários de língua portuguesa 1, tem-se que crise indica “mudança
súbita ou agravamento que sobrevém no curso de uma doença aguda” ou “conjuntura
ou momento perigoso” ou mesmo “desacordo que obriga instituição ou organismo a
recompor-se ou a demitir-se”. Remete, portanto, a uma anormalidade que conduz à
ideia de um momento de transição ou ruptura.
Significado semelhante foi atribuído por Koselleck (1999, p. 145) que,
remetendo a Rousseau, afirma que, no sentido político, crise consistiria num
desdobramento do sentido médico a partir da metáfora do Estado enquanto corpo
político. A partir daí, poderia se chegar a, pelo menos três sentidos, segundo ele, da
palavra crise: transformação no curso de uma doença, ponto decisivo no tempo e
situação alarmante (KOSELLECK, 2006, p. p. 357-400). Ela representaria um processo
crítico que não acarreta apenas um período de insegurança cujo fim seria imprevisível,
mas um momento de transição que demanda decisão e escolhas. No mesmo sentido e
em leitura de suas reflexões, Ricoeur confirmaria esse significado do termo: “en
pénétrant dans la sphère politique, la crise dramatise la critique; elle apporte avec elle sa
connotation médicale: son pouvoir révélateur à l'égard d'un mal profond et surtout son
effet de décision entre l'aggravation ou l'amélioration” (RICOEUR, 1988, p.4).
Partindo dessa noção tecnicamente mais afinada do termo, há razões para
enxergar, mesmo sob uma aparente normalidade institucional, traços de uma
verdadeira “crise constitucional” na conjuntura político-jurídica brasileira de nossos
tempos, exposta pelo menos desde o “impeachment” da Ex Presidente Dilma Rousseff,
sem correr o risco de uma banalização ou instrumentalização ideológica do termo.

1 Disponível em <https://dicionariodoaurelio.com/crises>
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 197-236.
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Trata-se de uma “crise”, primeiramente, porque coloca em evidência a excepcionalidade


e o rompimento como chave de resolução dos problemas. Ela é “constitucional”, porque
é a Constituição de 1988 que está colocada à prova, sua função está em risco e “os
procedimentos ordinariamente disponíveis para o enfrentamento de impasses e
discordâncias não são suficientes para resolver o impasse político” (PAIXÃO, 2018).
Desde pelo menos 2016, ações adotadas pela coalizão política que se formou
para viabilizar o processo de impeachment colocaram em evidência a crise
constitucional em que o Brasil está submetido (PAIXAO, 2018), sustentadas
especialmente por meio das contrarreformas iniciadas no governo Temer e que ainda
estão em curso. Há um núcleo comum distintivo da crise: ela é propriamente uma crise
desconstituinte (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016, STRECK, 2016, PAIXÃO, 2018). As
contrarreformas convergem-se num ataque aberto ao sentido performativo da
Constituição de 1988, delineado pelo compromisso intersubjetivo de reconhecimento
recíproco dos direitos fundamentais, por meio do esvaziamento gradual do seu núcleo
inclusivo.
A promulgação da Emenda n. 95 que impõe o teto de gastos públicos, em
áreas prioritárias como saúde e educação, é um dos exemplos concretos desse
esfacelamento dos direitos fundamentais por meio do recuo das políticas públicas ao
longo de vinte anos, o que implica submeter à Constituição de forma nem tão lenta – e
gradativamente -, a um estado de obsolescência2. A implicação imediata é de abandono
progressivo das promessas não cumpridas da modernidade reafirmadas
contrafactualmente no projeto constituinte por meio de sua inversão: enquanto a
Constituição estabelece um modelo de Estado Democrático de Direito comprometido
normativamente com a erradicação da pobreza e da marginalização e com a redução
das desigualdades sociais e regionais, como enunciado dentre os objetivos da República
(art. 3 CR88), a Emenda n. 95 é seu reflexo antagônico, porque coloca empecilhos
concretos para a realização de políticas públicas que coloquem em marcha o que foi
pactuado em 1988. O movimento desconstituinte delineado no teto de gastos está

2 Posição distinta daquela assumida no presente artigo é a de Henrique Meirelles (2016), na época Ministro
da Fazenda e do Planejamento, segundo a qual a reforma busca estabelecer “regras que contenham a
pressão por expansão do gasto além da capacidade de pagamento do governo” e “recobrar o equilíbrio
fiscal com visão de longo prazo”. Para ele (2016), “solucionar a crise e voltar a crescer é a mais importante
política social que precisamos colocar em prática para recuperar emprego e renda”. Argumentos como esse
são reforçados em Veloso (2016), Pessoa (2017) e Mendes (2016) que insistem, como se buscará aqui
demonstrar, a submeter a Constituição a uma variável puramente econômica (como a taxa de inflação),
impondo uma política permanente de redução e precarização do gasto público (e social).
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justamente em excepcionalizar os direitos fundamentais, de ordem vinculante, por 20


anos e, portanto, fazer com que a Constituição de 1988 só valha naquilo que não
contraria a Emenda. Toda a política do Estado brasileiro passa a vincular-se à tutela
estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação de riqueza privada
(STRECK, 2016).
Esse desfecho, porém, não é inevitável e ainda não se configurou por completo
(PAIXÃO, 2018). Uma compreensão mais apurada da crise faz-se necessária para que se
possa justamente contrapor uma resistência aos seus impulsos desconstituintes, sob um
“movimento reconstituinte” (PAIXAO, 2018). A proposta do presente texto, fruto de
pesquisa em sede de investigação de pós-doutoramento, é de oferecer, sob uma
perspectiva nova, um diagnóstico mais profundo das bases de tal crise a fim de oferecer
elementos para superá-la. A tese defendida aqui é a de que a atual crise constitucional
se expressa numa crise de consciência histórica que tem sido vivenciada no Brasil desde
as jornadas de junho de 2013 e que se configura por meio de uma nova relação entre
tempo e Constituição que ali se configurou. Em outros termos, a crise constitucional
(PAIXÃO, 2018), além de ser uma crise desconstituinte (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016), é
também uma crise temporal. Isso, por sua vez, significa que há uma racionalidade por
trás desse movimento desconstituinte que pode ser compreendida a partir de um
discurso que instrumentaliza o “tempo histórico” e o “futuro” em si para gerar adesão
social a partir da defesa aberta da aceleração, a defesa de um futuro que deve chegar
mais rápido, de modo a sobrepor a razão do mercado sobre a do Estado 3. Tal categoria
será analisada a partir de uma leitura específica que proponho da obra de Hartmut Rosa
da Universidade de Iena (Universität Jena), a fim de construir uma análise do pano de
fundo do quadro político-constitucional brasileiro.
Num primeiro momento, buscar-se-á então traçar as origens dessa crise da
consciência histórica no Brasil a partir de uma breve análise da síndrome da urgência no

3 O economicismo é uma das ideologias contra a qual a hipótese da pesquisa em questão se coloca. Por
economicismo, entende-se, no mesmo sentido de Kwak (2017) ou de Souza (2013), a invocação do discurso
econômico como chave de explicação de todos os fenômenos sociais, numa espécie de determinismo que
ignora distintos olhares e fatores da sociedade e reduz a realidade a simples modelos abstratos. “É uma
visão empobrecida e amesquinhada da realidade, como se fosse ‘toda’ a realidade social” (SOUZA, 2013, p.
p.132). De certo modo, não se confunde com a ciência econômica cuja importância é irrefutável, trata-se, na
verdade, de uma forma de ver o mundo dominante, reproduzida, de forma irrefletida, pela grande mídia e
por políticos (e até mesmo por acadêmicos) que contribui para a dominação da política pela riqueza privada,
ao construir uma arquitetura interpretativa que justifica as políticas elitistas e a desigualdade por elas
geradas, por meio da distorção da visão de mundo, que passa a ser pautada em uma caricatura do
conhecimento econômico.
(KWAK, 2017, p. 187).
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discurso constitucional como legado das jornadas de junho. Em seguida, essa categoria
da síndrome da urgência será aprofundada, a partir de sua aproximação a outra
categoria, a aceleração social, desenvolvendo-a através das contribuições de Hartmut
Rosa. Na sequência, será examinado, de modo exemplificativo, o programa “Uma ponte
para o futuro”, apresentado pelo ex-presidente Michel Temer como base de seu projeto
de contrarreforma a partir da análise do próprio documento lançado pelo PMDB
juntamente com a Fundação Ulysses Guimarães (FUG) a fim de se depurar suas
intenções e ideias à luz da teoria crítica da aceleração social. Por fim, buscar-se-á
mostrar as consequências da Emenda Constitucional 95, como um projeto de aceleração
social, para o tempo do Direito e da Constituição.
Cabe ainda destacar, em termos metodológicos, que a pesquisa em questão
não se trata de estudo de caso do programa “Uma Ponte para o futuro”, mas sim um
estudo teórico-conceitual, de perfil exploratório e de análise bibliográfica e documental
que toma esse programa como exemplo. A proposta é, pois, demonstrar que “Uma
ponte para o futuro” é parte integrante de um projeto (contra) normativo maior de
desestruturação da Constituição que tem se operado a partir de uma aceleração social
em face do núcleo inclusivo da Constituição. Uma das mais importantes contribuições
desse artigo é oferecer aporte teórico para examinar esse fenômeno com sua devida
complexidade e suas consequências, hoje, para o discurso constitucional.

2. A crise da consciência histórica e os legados das Jornadas de Junho

Embora a crise constitucional se expresse de forma mais evidente com o processo de


impeachment da ex Presidente Dilma Rousseff em 2016, há indícios suficientes para
afirmar que ela não se instaurou ali, havendo desde já um pano de fundo
intersubjetivamente compartilhado, que se tornou visível no contexto dos protestos que
tomaram as ruas das principais cidades brasileiras em 2013. O objetivo desse momento
é retomar aqui análises e conclusões da pesquisa de doutoramento de um dos autores
(COSTA JUNIOR, 2017), ainda que de modo breve, pois há, naqueles estudos, conclusões
em aberto que apontam para compreensões ainda por vir. Se naquele momento, a
proposta era desvelar alguns dos sentidos possíveis das jornadas de junho, o interesse
agora é apresentar o modo como esses sentidos apontam rastros e fragmentos de uma

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normatividade ainda presente como pano de fundo para se compreender a relação, no


Brasil, entre tempo e Constituição4.
Há, nos movimentos de junho, uma pluralidade interna e uma impossibilidade
da apropriação unívoca de seu sentido. Naquele contexto, as ruas revelaram-se como
um grande palco de manifestações que tornaram explícitas a heterogeneidade e as
disputas políticas de sentidos, por setores progressistas e conservadores, em meio a
uma pluralidade de pautas, de narrativas e de lutas por reconhecimento e distribuição.
Além disso, o movimento sofreu transformações no seu curso, o que evidencia as
diversas possibilidades de interpretá-lo. Propriamente, nessa análise, o enfoque se
dirigirá ao modo como a crise de representatividade e os discursos contrários à
corrupção delimitaram ali as bases do discurso constitucional que emergiu desde
aquelas revoltas sociais.
Especificamente no dia 21 de junho de 2013, momento em que as revoltas de
junho atingiam sua maior adesão e ganhava contornos reacionários em meio a uma
disputa sobre as várias pautas e bandeiras divergentes que a orientavam, o senador
Cristovam Buarque, trilhando um caminho demasiado perigoso proferiu um discurso no
Senado Federal, defendendo a extinção dos partidos políticos e a convocação de uma
Assembleia Constituinte no país como única solução para atender as reivindicações dos
manifestantes. Nas suas palavras:
Talvez eu radicalize agora, mas acho que para atender o que eles querem
nós precisaríamos de uma lei com 32 letras: estão abolidos os partidos,
estão abolidos todos os partidos. Isso sensibilizaria a população lá fora.
Hoje, nada unifica mais todos os militantes e manifestantes do que a ojeriza,
a desconfiança, a crítica aos partidos políticos. Talvez seja a hora de
dizermos estão abolidos todos os partidos se vamos trabalhar para saber o
que é que a gente põe no lugar, se a gente põe no lugar outros partidos ou
outra coisa. [...] Algo tem que mudar na maneira de fazermos o diálogo com
o povo. Que não basta mais dialogar uma vez a cada quatro anos. É preciso
dialogar a cada quatro minutos (FOLHA, 21/06/2013).

A constatação da crise política e do esgotamento da democracia


representativa fez com que Cristovam Buarque vislumbrasse apenas uma solução fora
dos procedimentos previstos na Constituição em vigor para criar uma nova maneira de
fazer política: “nossos partidos não refletem mais o que o povo precisa com seus
representantes, nem do ponto de vista do conteúdo, nem do ponto de vista da forma”

4 A primeira tentativa de aproximação entre tempo e Constituição para um dos autores ocorreu em sua
dissertação de mestrado (ver Costa Junior, 2011). Algumas das conclusões tiradas ali foram posteriormente
publicadas no artigo “Constituição, tempo e narrativa” (ver Costa Junior, 2013).
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(FOLHA, 21/06/2013). Conclui o senador em direção a uma defesa aberta da realização


de uma Assembleia Constituinte exclusiva para discutir a reforma política, dentro do
prazo de um ano: “creio que essa é uma proposta que poderia levar à revolução. Não há
manifestações de um milhão de pessoas em um dia que não exija a revolução” (FOLHA,
21/06/2013). O que, talvez, o senador possa ter esquecido é de que número similar de
manifestantes também tomou as ruas nas marchas em 1964 e o mesmo nome revolução
foi atribuído aos acontecimentos da época como modo de justificar, democraticamente,
a ruptura constitucional. No ato institucional n.1, por exemplo, chegou-se a afirmar:
A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que
nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a
vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder
Constituinte. [...] Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder
Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa como Poder Constituinte, se
legitima por si mesma (BRASIL, A.I. n.1, 1964).

Defenderam também, no dia 21 de junho de 2013, a proposta da convocação


de uma Assembleia Constituinte para discutir a reforma política, os senadores Pedro
Taques (do PDT - MT) e Pedro Simon (PMDB - RS), entendendo-a como a principal
reivindicação dos manifestantes:
Quando o senador Cristovam fala em convocar uma Assembleia Nacional
Constituinte, eu entendo o porquê. É porque ele, como toda a sociedade,
não acredita no Congresso Nacional, duvida que nós façamos alguma
emenda positiva a favor do povo brasileiro” (SIMON, GAZETA DO POVO,
21/06/2013).

Nesse ambiente de desconfiança das instituições políticas e do devido


processo legislativo, em especial, na capacidade do atual Parlamento instituído
constitucionalmente como representante do povo de conduzir uma reforma política que
sepulte, de uma vez por todas, a corrupção política, a proposta de uma constituinte
exclusiva é reforçada também pela Chefe do Poder Executivo.
Como resposta estatal à “voz das ruas” que “reivindica um combate
sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos” (ROUSSEFF, BBC, 21/06/2013),
a Presidente Dilma Rousseff fez um pronunciamento público e propôs, no dia 24 de
junho de 2013, “cinco pactos em favor do Brasil”, dentre os quais se encontrava um pela
ampla e profunda reforma política. A proposta seria a convocação de um plebiscito
popular que autorizasse o funcionamento de um processo constituinte específico para
fazer a reforma política. Trata-se de uma constituinte originária, pois é soberana, ou

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seja, não se limita, na ordem jurídica vigente, nem pelo Congresso, nem pelo Judiciário,
nem tampouco, pelo Executivo; exclusiva, pois eleita estritamente para cumprir essa
tarefa e depois se dissolve; e temática, pois se limita a fazer a reforma política apenas
(MAGALHÃES, 2014a). A proposta não é nova 5, mas reflete bem o sentimento de junho
de 2013 e a tentativa de uma resposta estatal para responder à crise de
representatividade e ao mal-estar generalizado contra a política nacional.
Em torno da necessidade de se alterar o sistema político tal como regulado
hoje pela Constituição de 1988 somado a um discurso majoritário de combate à
corrupção, a instauração de uma Constituinte Exclusiva é apresentada como solução
fatídica e necessária de ruptura.
Ainda que não seja nossa intenção aqui elaborar uma crítica pormenorizada
desse projeto como foi realizada em outro momento (COSTA JUNIOR, 2017), cabe
destacar como uma resposta de exceção configurou-se ali como a suposta solução da
crise política e como nela mesma já se encontram elementos importantes de uma crise
constitucional. A proposta de uma Assembleia Constituinte alternativa e soberana como
solução dos problemas inscritos no âmago da tradição política brasileira (vista sempre
na ótica patrimonialista de uma história de fracassos) traduz a ideia de rompimento com
as formas de dominação política do passado e do presente e abertura, sem mediação
com as regras da Constituição vigente, a um futuro sem precedentes. A reforma política
capaz de combater a corrupção endêmica e a própria lógica privatista em que operam
políticos e partidos – o que deturpa o cerne da representação –, só seria factível a partir
de uma solução salvacionista fora do procedimento constitucional em vigor: apenas uma
nova Assembleia, investida de soberania popular, poderia, em uma certa leitura

5 “Entre as propostas de atribuição de poderes de revisão específicos ao Congresso Nacional, destacou-se a


PEC 554/1997, apresentada pelo dep. Miro Teixeira (PDTRJ), permitindo alterações por maioria absoluta nos
artigos 14, 16, 17, 21 a 24, 30, 145 a 162 e conexos da Constituição Federal. Essa proposição foi
posteriormente apensada à PEC 157/2003, apresentada pelo dep. Luiz Carlos Santos (PFL/SP), e à PEC
447/2005, apresentada pelo dep. Alberto Goldman (PSDB/SP), ambas voltadas a implementar uma ampla
revisão constitucional pelos próprios parlamentares, o que mostra a persistência desse posicionamento
político, cabendo destacar que todas essas propostas de revisão ampla foram apresentadas por deputados
de oposição, o que contraria a ideia vigente de que o interesse nesse tipo de estratégia é sempre da base
governista. Também na linha das propostas voltadas a promover uma revisão constitucional pelo Congresso
foi a PEC 193/2007, do dep. Flávio Dino (PCdoB/MA), que se diferenciou ao propor que essa revisão deveria
ser autorizada por meio de plebiscito e que deveria cingir-se a temas de Organização dos Poderes e de
Tributação e Orçamento. Já a PEC 384/2009, apresentada pelo dep. Marco Maia (PT/RS), concretizava uma
proposta que foi publicamente sustentada por seu partido em 2007, quando do Terceiro Encontro Nacional
do PT e indicou que “a reforma política não pode ser um debate restrito ao Congresso Nacional, que já
demonstrou ser incapaz de aprovar medidas que prejudiquem os interesses estabelecidos dos seus
integrantes” e, por isso, o “Partido dos Trabalhadores defende que a reforma política deve ser feita por uma
Constituinte exclusiva, livre, soberana e democrática” (COSTA; ARAÚJO, 2015, p.214).
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fatalista, “emprestar legitimidade ao carcomido Estado brasileiro” (SARMENTO, 2009),


fundando sobre novas bases o poder político.
A velha narrativa do fracasso constitucional e do atraso brasileiro como única
leitura das experiências políticas e jurídicas em jogo se articula com uma espécie de
patologia da projeção do futuro, o que conduz à necessidade de um “salto alhures”
(RICOEUR, 1994) da realização de todos os sonhos aqui e agora numa perspectiva que se
traduz em forma de uma “satisfação imediata do desejo” (CHAUI, 2013). Nessa situação,
o devido processo a ser seguido para as mudanças normativas é percebido apenas como
excessiva demora ou garantia de conservação do status quo de modo que deveria ser
“acelerado”. É nesse futuro percebido como demasiado próximo que atravessa de
dentro uma “síndrome da urgência”, pois se o futuro é amanhã, quando não hoje
mesmo, nenhum projeto de médio ou longo prazo pode ser pensado, e todos os
obstáculos que, como uma Constituição, se põem a mudanças bruscas e imediatas são
vistos meramente como paredes a serem derrubadas – nunca como muros de proteção
(GOMES, 2018; COSTA JUNIOR, 2017).
Ora, o “contra tudo isso que está aí” converte-se, assim, em urgência; a sede
de mudar as estruturas políticas do Brasil recai num surto de pressa que ameaça
conquistas e avanços em termos normativos. A Constituinte exclusiva parece, pois,
refletir bem os sentimentos de junho e a crise constitucional que se despontou daí: a
síndrome da urgência que tomou o país desde então; como se todo procedimento se
tornasse uma insuportável espera e todo caminho definido pela Constituição um
retardamento incontornável apto a impedir o curso do tempo social das
transformações. Junho parece ter despertado uma onda conservadora e moralista que
tem pressa. Nessa vontade tenaz de se lançar diretamente ao futuro, rompendo com a
letargia das instituições que causam o atraso nacional, nossas regras instituídas e nosso
espaço de experiência são concebidos como lugares que nada têm a dizer.
Ora, se a proposta da assembleia constituinte reflete algo que é diferente dela
e mais profundo do que ela – uma síndrome da urgência –, esse mesmo algo pode
refletir-se, igualmente em outros casos nos quais uma solução imediata sem nenhum
apego às garantias do Estado Democrático de Direito ofereça-se como a mais
conveniente alternativa para a suposta ruptura quase mágica com uma história trazida à
memória somente em termos patológicos (GOMES, 2018): em todos esses casos, que se
tornaram por vezes corriqueiros, é possível verificar claramente que narrativa do atraso

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e síndrome da urgência, mais uma vez, são articulados e mobilizados contra o discurso
constitucional. É esse processo que reivindica a aceleração em face do tempo do Direito
frente à ideia de uma satisfação imediata do desejo que será desenvolvido de forma
específica na sequência.

3. Elementos de uma teoria crítica da aceleração social

Ao enfatizar que uma nova consciência histórica tem sido desenvolvida desde junho de
2013 em torno da recepção do passado – de uma história mesma contada
predominantemente sob a perspectiva unilateral do fracasso constitucional – e da
projeção do futuro – reivindicado violentamente no presente como aceleração do
tempo do Direito – se pretendeu mostrar até aqui a perspectiva localizada de um
fenômeno que, no entanto, não se circunscreve na esfera nacional. Ainda que adquira
aqui cores específicas, a síndrome da urgência é um fenômeno social mais amplo, que
vai muito além do campo jurídico, sendo intrínseco ao modo como o tempo é percebido
hodiernamente nas sociedades ocidentais. As estruturas temporais conectam os níveis
micro e macro da sociedade; por exemplo, nossas ações e orientações se coordenam e
se fazem compatíveis com os “imperativos sistêmicos” das modernas sociedades
capitalistas (ainda que perifericamente modernas) através de normas, prazos e
regulamentos temporais (ROSA, 2016, p.9). Uma análise que agregue, pois, a
perspectiva temporal do contemporâneo tem especial relevância, na medida em que
não existe um tempo social independente da estrutura social, da cultura, do Direito, da
política. Se essa hipótese estiver certa, a aceleração está entrelaçada com as “dimensões
materiais da sociedade e não pode ser claramente separada delas em termos
fenomenológicos” (ROSA, 2011, p.12), o que, por sua vez, exige uma teoria crítica que dê
conta de seu funcionamento e do que é capaz de produzir em termos de “mal-estar”
numa tensão entre local e global.
Segundo David Harvey, um dos traços mais importantes das últimas décadas é
a noção da compressão do tempo e do espaço. A dinâmica nascente no contexto da
globalização é a da superação das distâncias, no sentido de que as transformações
técnicas e tecnológicas foram capazes de acelerar os fenômenos sociais e os níveis de
produção econômica e integração política. Essa observação de Harvey não está isolada.

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Tal percepção de aceleração já presente, de algum modo, no discurso científico –


inclusive em outros autores de abordagens tão distintas como Koselleck, Ricoeur,
Marramao e Rosa – entrelaça-se com o discurso do senso comum, vislumbrado numa
percepção geral de que os processos sociais se aceleram, de que a vida, a política, o
trabalho, a comunicação se desenrolam de forma cada vez mais veloz. Porém, ainda que
exista um evidente aumento do discurso sobre a aceleração e a escassez de tempo nos
últimos anos, a sensação de que a história, a cultura e as instituições e o próprio tempo
se aceleram não é exatamente nova, na medida em que parece ser o traço constitutivo
da modernidade como tal (ROSA, 2011, p.11).
Como foi demonstrado por Koselleck (2006), a percepção de uma aceleração
tem acompanhado a sociedade moderna ao menos desde o século XVIII. Isso, de certo
modo, está atrelado a três temas que se relacionam internamente na modernidade: a
crença, primeiro, que a época presente abre sobre o futuro a perspectiva de uma
novidade sem precedentes históricos; em seguida, a crença de que essa mudança para
melhor se acelera de modo que o intervalo que nos conduzirá a tempos melhores está
se encurtando; e, por fim, a crença de que o homem é capaz de fazer sua própria
história, de que pode acelerar seu rumo e lutar contra o que atrasa. Nos termos de
Koselleck, há uma temporalização da história. Tempos novos, aceleração do progresso e
disponibilidade da história, ao se retroalimentarem reciprocamente, contribuíram para
o desdobramento de um novo horizonte de expectativa na modernidade (RICOEUR,
1997, p. 363). De fato, a história da modernidade parece estar caracterizada por uma
aceleração de grande alcance e repercussão de formas diferentes que passam por
processos tecnológicos, econômicos, sociais, jurídicos e culturais e por um esforço por
alcançar o ritmo geral de vida (ROSA, 2011, p.11).
Todavia, não há uma única pauta universal de aceleração, segundo Hartmut
Rosa (2017, p.371). Nem tudo está em constante aceleração. Existem coisas que
simplesmente não se pode acelerar, como alguns processos corporais, por exemplo –
como a gravidez ou certas doenças – e ainda outras que sofreram uma desaceleração
como o tráfego nas grandes cidades. Mas o que é importante, num sentido mais
sistemático, é que, conforme Rosa: “o processo de modernização, enquanto uma
dinamização do mundo conduz a uma forma de equilíbrio social baseado no fenômeno
da estabilização dinâmica” (2017, p. 372). A razão de ser das sociedades modernas
encontra-se na sua maneira contraditória de estabilização através do movimento. Isso

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aponta, em sua perspectiva, que a sociedade moderna pode manter sua própria
estrutura apenas através da aceleração, crescimento e inovação, o que significa que o
mundo como um todo, em sua materialidade, é posto sob pressão para dinamizar-se:
pessoas, dinheiro, bens e matérias primas são postos em movimento. Basicamente, é
possível, para Rosa, separar esse fenômeno em três categorias analíticas e
empiricamente distintas.
A primeira e mais aparente forma de aceleração é a tecnológica, que pode ser
definida em relação aos processos intencionais e dirigidos a um objetivo, o que pode ser
visto nas transformações que passaram o transporte, a comunicação e a produção. Na
idade da globalização e da “utopicalidade” da internet, cada vez mais se concebe o
tempo como capaz de comprimir ou mesmo aniquilar o espaço: o espaço se contrai
virtualmente em razão da velocidade do transporte e da comunicação (ROSA, 2016,
p.23). Em muitos aspectos, hoje, o espaço perde seu significado no que se refere à
orientação no mundo.
A segunda categoria refere-se à aceleração da própria sociedade. Tanto as
atitudes e os valores como a moda, as instituições e os estilos de vida, as relações sociais
e as obrigações, assim como os grupos ou classes, as linguagens sociais e também as
práticas e os hábitos mudam a um ritmo cada vez maior6 (ROSA, 2011, p. 16). Segundo
Hermann Lubbe (2009), as sociedades ocidentais experimentam uma constante
contração do presente como consequência da velocidade acelerada das inovações
culturais e sociais. A sociedade moderna seria, nesse contexto, uma sociedade marcada
por processos dinâmicos em que haveria uma perda da capacidade de se transmitir o
conhecimento teórico e prático do passado, a perda da experiência como noção apta a
orientar as ações no presente. Essa “contração do presente” encontra apoio na noção de
presente tal como concebida por Koselleck (2006) que se articula num jogo de tensões
que só se realiza no presente entre duas categorias meta-históricas – e, portanto
formais – que são o “espaço de experiência”, entendido como um conjunto de heranças
e o modo como percebemos, consciente ou inconscientemente, as vivências e como
organizamos, narrativamente, as visões do passado, e o “horizonte de expectativa”,

6 Diferentemente do que ocorre com as taxas de aceleração tecnológicas, as taxas de mudança social são
difíceis de se medir empiricamente. Segundo Rosa (2011), há pouco consenso na sociologia a respeito de
quais são os indicadores relevantes de mudança e quando as alterações ou variações realmente constituem
uma mudança social significativa ou pouco relevante. Aqui a sociologia precisaria complementar-se com as
contribuições da filosofia social.
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aquele sobre o qual se projetam as previsões, as antecipações, os temores e a


esperança, até mesmo as utopias que dão o conteúdo ao futuro histórico.
Na formulação de Rosa (2016, p. 26), somente dentro desses espaços
temporais de relativa estabilidade, pode-se aproveitar as experiências passadas para
orientar nossas ações e inferir conclusões a partir do passado com olhos postos no
futuro. É nesse sentido que se pode extrair, de fato, orientação, avaliação e expectativa.
Em suas palavras, a aceleração estaria definida por uma perda da confiança nas
experiências e nas expectativas e pela contração dos lapsos de tempo definíveis como “o
presente” (ROSA, 2016, p. 26). Há uma espécie de encolhimento do espaço de
experiência e o presente passa a ser sentido como um declive escorregadio em
constante transformação. Como notou Marramao, “el tempo se escinde en una
incessante proyeccion hacia el futuro y em uma incesante atrofia y museificación del
pasado, que sustrae progresivamente al presente el espacio de su existencia”
(MARRAMAO, 2008, p. 86). É desse modo que se pode aplicar essa categoria às
instituições sociais e culturais e as práticas normativas de todo tipo: o presente se
contrai nas dimensões políticas e ocupacionais, tecnológicas e estéticas, normativas e
científicas, isto é, em aspectos tanto culturais como estruturais 7 (ROSA, 2016, p. 26).
Submetido a uma pressão temporal de se tomar decisões rápidas em consonância com
as mudanças sociais, as instituições de hoje estariam marcadas por uma perda
progressiva do aprendizado social extraído das experiências vividas, na medida em que
todo o discurso sobre contingência e pós-modernidade (ou também modernidade tardia
– para Rosa – ou hipermodernidade para Marramao) depende da ideia segundo a qual a
estabilidade dessas instituições, como o Direito e a Política, encontra-se em declive. Esse
ponto será retomado num momento posterior para pensar o problema específico da
Constituição submetida a esse processo aceleratório.
O terceiro e último tipo de aceleração tem, por assim dizer, uma relação
paradoxal com a aceleração tecnológica: trata-se da aceleração do ritmo de vida. Se, por

7 Para demonstrar essa aceleração, Rosa afirma: “Por el momento quiero sugerir que el cambio en esos dos
ámbitos –trabajo y familia– se há acelerado de un ritmo intergeneracional en la sociedad moderna
temprana a um ritmo generacional en la ‘modernidad clásica’ y a un ritmo intrageneracional en la
modernidad tardía. Por eso, la típica estructura familiar ideal de las sociedades agrarias tendió a
permanecer estable a lo largo de los siglos, con una renovación generacional, dejando las estructuras
básicas intactas. En la modernidad clásica, esta estructura se construyó para durar por sólo una generación:
se organizaba em torno a una pareja y tendía a desaparecer con la muerte de la pareja. En la modernidad
tardía existe uma tendencia creciente de los ciclos de vida familiar a durarmenos que la duración de la vida
de un individuo: tasas crecientes de divorcio y segundos matrimonios son la prueba más obvia de esto”
(ROSA, 2011, p.17).
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um lado, a aceleração tecnológica expõe a diminuição do tempo necessário para levar a


cabo processos e ações cotidianas de produção e reprodução, comunicação e
transporte, esta deveria levar um aumento do tempo livre, o qual poderia frear o ritmo
de vida (ROSA, 2011, p.18). Em outros termos, o avanço tecnológico deveria produzir um
acréscimo no tempo de vida. Porém, ocorre justamente o contrário. A despeito de toda
a tecnologia desenvolvida para auxiliar na economia do tempo, quanto mais rápida são
essas tecnologias, quanto mais tempo conseguimos economizar, de menos tempo
parecemos dispor. A explicação possível, segundo Rosa, para esse paradoxo é que a
própria quantidade de atividades mudou ou, mais precisamente, aumentou mais rápido
que a correspondente taxa de aceleração tecnológica. Por exemplo, se a velocidade do
transporte dobra enquanto que a distância que necessitamos para percorrer quadriplica,
necessitamos do dobro do tempo que utilizamos antes: o tempo se tornou,
proporcionalmente, escasso.
A tese levantada por Rosa é a de que, pelo menos desde os anos 908, contexto
que ele denomina modernidade tardia, em contraposição à modernidade clássica –
fundada a partir do século XVIII –, a aceleração social se impulsionou e tornou-se um
sistema que impulsiona a si mesmo. As três formas de aceleração tornaram-se, hoje, um
círculo entrelaçado que se retroalimenta e que mobiliza uma a outra de maneira
constante. Primeiramente, porque a aceleração tecnológica provoca toda uma série de
mudanças nas práticas sociais, nas estruturas de comunicação e nas correspondentes
formas de vida, gerando espaços de interação social e novas formas de identidade social
mais dinâmicos (ROSA, 2011, p. 21). Em segundo lugar, porque a aceleração das
mudanças sociais (ou da própria sociedade) supõe uma “contração do presente”, o que
conduz a uma aceleração do ritmo de vida, por meio do fenômeno do “declive
escorregadio”: o capitalista não pode parar e descansar, nem assegurar sua posição, já
que não existe ponto de equilíbrio. Ou se está em ascensão ou em queda, até porque
permanecer parado é igual ficar para trás, isto é, tornar-se antiquado, obsoleto,

8 “E eu acredito que isso começou a mudar realmente por volta do ano 1990, pois os processos de
aceleração social ocorrem em movimentos ondulares, e é justamente nesse período que pelo menos três
ondas de aceleração se manifestaram. Uma delas foram as revoluções políticas que levaram à queda do
Muro de Berlim e do bloco comunista. A Europa do Leste e a Eurásia possuíam uma temporalidade distinta,
e a confrontação entre os blocos funcionava como uma barreira de velocidade. Dessa forma, as revoluções
políticas significaram a abertura de uma vastidão de terras e populações à lógica da aceleração. Uma
segunda onda teve a ver com a reforma dos mercados financeiros no sentido de desregulação e
privatização, o que costumamos chamar de neoliberalismo – o que está relacionado em grande medida com
a transformação do modo de produção fordista. E, por fim, obviamente, a revolução digital e o advento da
internet” (ROSA, 2017, p. 371).

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anacrônico. As pessoas se sentem pressionadas a manter o ritmo de velocidade de


mudança que experimenta em seu mundo social e tecnológico para evitar a perda de
opções e conexões potencialmente valiosas (ROSA, 2011, p. 21-22). Assim, a mudança
social acelerada conduzirá a uma aceleração do ritmo de vida e, por sua vez, serão
requeridas novas formas de aceleração tecnológica para acelerar os processos da vida
produtiva e cotidiana: há, portanto, ciclos de aceleração que funcionam como um
processo fechado e auto-impulsionado (ROSA, 2011, p. 22).

4. Os motores da aceleração social

A principal força, conforme Rosa (2016, 2011), que impulsiona esses ciclos de aceleração
social nas sociedades ocidentais é, por suposto, o capitalismo. O funcionamento do
sistema capitalista está baseado na circulação acelerada de bens e capital frente a uma
sociedade orientada pelo crescimento. O tempo do trabalho deve ser muito bem
aproveitado de modo a gerar um acúmulo de lucro cada vez maior. Do mesmo modo,
novas tecnologias são empregadas para diminuir o custo da produção e estimular a
competição. Também, o círculo de produção, distribuição e consumo deve ser
estimulado e acelerado constantemente. Para usar a famosa expressão de Benjamin
Franklin: “tempo é dinheiro”.
Portanto, a lógica do capitalismo conecta crescimento com aceleração na
necessidade de desenvolver a produção e também a produtividade – que pode ser
entendida como produção por unidade de tempo (ROSA, 2011, p. 22). Com Marx, Rosa
(2017, p.373) entende que o sujeito de movimento da sociedade capitalista é o próprio
capital, o que torna a competição uma das chaves do sistema e uma das forças motoras
da aceleração social, na medida em que seu critério de medida, sua mensuração é o
número de efetivações por unidade de tempo. Mas diferentemente de Marx, a lógica da
competição não pode ser circunscrita apenas ao capitalismo, não se trata apenas de
efeito do sistema. Há competição em diversas esferas da vida social que não a
econômica9. Como consequência, onde quer que exista competição, existe escassez de
tempo.

9 “A competição, enquanto uma norma de distribuição e alocação de recursos, não é completamente


dependente do capitalismo. No campo da ciência, por exemplo, aquele que consegue um emprego como
professor ou pesquisador é quem oferece a melhor proposta para tal, aquele que é mais competitivo, e não
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Mas além desse motor de natureza predominantemente econômica, existe


um motor cultural da aceleração. A “roda de hamster” da aceleração social não gira por
si mesma, mas por nós: somos nós que impulsionamos o moinho (ROSA, 2017, p. 373). E
assim o fazemos não apenas pela força bruta do capitalismo que nos coloca a correr
constantemente. Ainda que o capitalismo submeta quase tudo a uma pressão
aceleratória, esse processo ainda precisa da energia humana e do nosso desejo. “Como
Charles Taylor diz, não podemos entender o que e quem somos de modo independente
de nossas autointerpretações” (ROSA, 2017, p.374).
O motor da aceleração é impulsionado fortemente por uma poderosa
promessa cultural: na sociedade secular, a aceleração tem a mesma função que tinha a
promessa religiosa da vida eterna. A sociedade moderna é secular no sentido de que em
termos culturais, a ênfase central está coloca antes da morte: a riqueza, a plenitude e o
grau de felicidade de uma vida podem ser medidas por meio da profundidade e da
quantidade de experiências acumuladas durante essa vida (ROSA, 2016, p. 48). Dentro
dessa lógica cultural, se continuarmos aumentando a velocidade da vida, com o tempo
poderíamos chegar a viver uma multiplicidade de vidas dentro de uma única vida (ROSA,
2011, p. 25). A aceleração do ritmo de vida representa, nessa concepção, a resposta
moderna ao problema da finitude e da morte.
Para Rosa, há uma coesão interna entre esses dois motores da aceleração.
Nem o motor cultural é uma causa do capitalismo, nem o motor econômico é uma causa
da cultura. Ambos se entrelaçam e se nutrem reciprocamente, pois não somos apenas
movidos pela promessa de aumento de nosso escopo, mas também pelo medo de que,
se não aumentarmos, cairemos em um abismo (ROSA, 2017, p.374).

5. Implicações da aceleração social para o Tempo da Política e do Direito

Do ponto de vista da experiência temporal, o que está em jogo na passagem para a


modernidade é a nova articulação entre passado e futuro, inscrita especialmente na
relação entre as ideias de progresso e de aceleração, o que, por sua vez, trouxe
impactos para a política e para o Direito. Koselleck (2006) afirma que só se pode

aquele que possui esse ou aquele status, ou pertence a essa ou aquela classe. O mesmo ocorre no campo da
política, ou no âmbito das relações amorosas”. (ROSA, 2017, p.373)
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conceber a modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as


expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então, no
sentido de que as mudanças passam a ser produzidas de forma mais acelerada e o
futuro se torna aberto e desconhecido. Se antes do século XVIII, era possível contar-se
com a “futuridade do passado”, isto é, com a expectativa de que o futuro seria igual ao
passado no sentido de que era possível tirar lições e conclusões dele no amanhã, a
modernidade inaugura, em contraposição, a ideia da radicalidade do futuro, vivido no
presente como aceleração, o que tornou descartável a experiência e a tradição.
Essa passagem pode ser vista, segundo Koselleck (2006, p.49-50), por meio
de uma mudança significativa do vocabulário na segunda metade do séc. XVIII na
Alemanha. Progressivamente, a palavra Geschichte vai sendo substituída pelo termo
Historie. Historie traduz a ideia de narrativas dos acontecimentos, enquanto geschichte
significa história no singular, um singular coletivo. As histórias de alguma coisa ou de
alguém tornaram-se simplesmente a História. E isso traduz uma ideia de sistema, uma
ideia de unidade, como se a história fosse uma epopeia única, uma história universal: os
homens constroem a história, como singular coletivo, com suas próprias mãos. A
história passa a ser a síntese de vários tempos e particularidades em um movimento
único, linear e universal de um percurso estruturado de desenvolvimento, que se inicia
na barbárie e se orienta na direção de um futuro luminoso (DUARTE, 2012, p.75). Essa
ideia de temporalização da história, como nota Marramao, pressupõe:
um processo indefinido caracterizado pela passagem a estados sempre
melhores, enquanto prospecção do futuro, se entrelaça intimamente com a
ideia de planificação. A superação entre razão e tempo mundano - a
apropriação do tempo enquanto campo de aplicação dos artefatos, dos
projetos racionais, em suma, das formas produzidas pelo “pensamento
consciente” do homem – é, no entanto, possível não somente, na medida
em que a história tem um “sentido”, mas na medida em que esse sentido
coincide com a sua “direção” (MARRAMAO, 1995, p. 108).

Concebendo a história como progresso orientado, a política da modernidade


clássica articulou-se em tornos de noções temporais a partir de denominações próprias
como “progressistas” e “conservadores”: a política progressista buscou acelerar este
movimento histórico para tempos melhores, enquanto que a política conservadora se
estruturou de modo reacionário ao se opor às forças de mudança e de aceleração
(ROSA, 2011, p. 35). A própria ideia de Constituição surgiu como espaço de atuação das

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forças progressistas, reestruturando também as relações entre tempo e direito num


movimento próprio da modernidade.
A Constituição, conforme Luhmann (1996, p.1), desenvolveu-se sob o fundo de
uma concepção dinâmica de história, na medida em que foi fundada em algum
momento do tempo presente, não como um processo único, que tenha acontecido de
uma só vez, mas que ao contrário, algo que pode ser posteriormente replanejado
através de interpretações e eventuais emendas ao seu texto10. No lugar de encontrar
sua legitimidade em uma normatividade estática advinda do passado, da tradição ou de
concepções de ordem metafísicas – e, portanto, fora da temporalidade mesma –, ela se
abre ao futuro, pois funda a política e o direito que passam a funcionar a partir do
referencial constitucional, estando ambos submetidos a uma construção continuada no
tempo. O ato fundador não está assim fixado intemporalmente, mas passa a funcionar
como um projeto permanente, “dirigeant progressivement le cours de l’évolution sociale
au long du processus historique” (ROSA, 2010, p. 307). Trata-se, genuinamente, de um
ato performativo que é ele mesmo, um ato constituinte, um processo de
constitucionalização que se prolonga no tempo e se inscreve na própria historicidade, ao
mesmo tempo em que se faz reafirmação e ruptura, contendo um sentido normativo,
que nele mesmo se expressa (CATTONI DE OLIVEIRA, 2017, p. 114).
A Constituição funciona, assim, como um projeto performativo que organiza
jurídico e politicamente a sociedade no tempo: ela ratifica que o futuro pode ser
diferente do passado, que a evolução social futura pode ser atingida, dirigida e
organizada num quadro político democrático, que os critérios normativos definem os
objetivos dessa organização existente ou mesmo poderão ser estabelecidos através de
um consenso político coletivo, ainda que se possa revisá-lo11 (ROSA, 2010, p. 308). Para
Rosa (2010, p. 308), a própria democracia política delineada aí está imediatamente
ligada a uma visão da história temporalizada, tal como concebida por Koselleck. Do
mesmo modo, diríamos que os direitos fundamentais, definidos constitucionalmente,
permitem orientar expectativas sociais numa dinâmica de realização histórica com vistas

10 Sobre uma análise mais profunda sobre a relação entre tempo e Constituição em Luhmann, ver Costa
Junior (2012).
11 Hartmut Rosa não teoriza especificamente sobre o papel da Constituição na modernidade, mas sua

reflexão sobre a política caminha num sentido bem próximo. O projeto político da modernidade e a ideia
que a funda de uma organização democrática dos modos de vida coletivos – tal como pensado por Rosa
(2010, p. 307) –estruturou-se, fundamentalmente, por meio das Constituições normativas a partir das
revoluções do séc. XVIII, o que justifica a nossa leitura.
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na concretização de promessas de autonomia e de emancipação, estando abertos a


reconstrução insaturável do seu sentido.
A Constituição relaciona-se com as estruturas temporais da sociedade também
porque define um sistema de regras e princípios assim como os procedimentos por meio
dos quais se desenvolverão as diversas estruturas de formação de vontade política e da
tomada de decisão, inerentes ao sistema democrático de modo que sejam compatíveis
com o ritmo e a duração das evoluções sociais. Segundo Rosa (2010, p. 308), deve haver
algum tipo de relação sincronizada entre as tomadas de decisão coletiva e o curso
dessas evoluções sociais, de modo que o sistema político tenha o tempo de tomar as
decisões fundamentais e de organizar diante disso o processo democrático e
deliberativo de formação de vontade. É nesse sentido que a Constituição deve
proporcionar condições estáveis e de longa duração que permita, ao mesmo tempo,
abertura do seu conteúdo de forma que as gerações subsequentes tenham o direito de
deliberar sobre a vida pública na experiência histórica de uma comunidade política. Ela
representa, em termos normativos, o entrelaçamento entre a experiência da
dinamização social e a expectativa de direcionamento do movimento através dos seus
direitos fundamentais – de conteúdo insaturável – e os critérios político-jurídicos
democraticamente articulados.
Ora, sob essa expectativa, a aceleração social combina-se muito bem com o
projeto constitucional por não poder ser considerada senão meio para o progresso e
para a realização da autonomia privada e pública. Porém, a tese levantada por Rosa é a
de que nos dias de hoje, na modernidade dita tardia, a aceleração passa a converter-se
em um fim em si mesmo, o que coloca em risco as promessas modernas de
emancipação assim como a estabilidade das instituições político-jurídicas que poderiam
funcionar nessa direção. O impulso à aceleração e ao crescimento se tornaram desejos
autojustificados e passaram, agora, a funcionar como imperativos de ação: o movimento
é o fim e a condição do próprio movimento. Sob esse aspecto, a “condição pós-
moderna”, como nota Marramao 1995, p.170), não se encontra completamente numa
relação de ruptura, mas antes de íntima continuidade (ainda que seja uma continuidade
de filha ilegítima) com o moderno. Crescer, expandir e dinamizar que já eram aspirações
modernas tornam-se, hoje, uma necessidade que se justifica a si mesma. Mas a
aceleração divorciou-se da responsabilidade e também da carga moral do progresso.

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Assim, há uma nítida interdependência entre o déficit crônico de legitimação


dos Estados contemporâneos e a aceleração dos dias de hoje, como nota Marramao
(1995, p.170), na queda do futuro como potência simbólica frente a uma síndrome da
pressa. Essa aceleração que acomete as estruturas institucionais e normativas na
modernidade tardia (ou hipermodernidade) é um sintoma da dificuldade de manter o
simbolismo social: consequência de produzir o programa da futurização sem ter mais a
possibilidade do recurso simbolicamente eficaz aos mitos do progresso e da revolução
(MARRAMAO, 1995, p. 170). O tempo da modernidade tardia é, pois, o tempo do
sacrifício do presente, tempo sempre a perder, tempo de mera subtração:
Com a passagem da era do progresso à era da modernização, a futurização
perde sua polaridade axiológica, deixando livre o caminho para a pura e
simples aceleração: o desejo e a tensão do futuro se revertem em frustração
e ‘anomia’. O Moderno, de excitante aventura das margens e dos limites,
transforma-se numa progressão geométrica eternamente ameaçada pelo
abismo e pela voragem do presente. O Futuro não é mais intencionado e
projetado como finalidade, mas como etapa a ser queimada: existe apenas
para ser consumido o mais rapidamente possível e deixado para trás,
depositado na margem perigosamente mínima deixada à experiência. A
época da modernização é a época do definitivo ‘contrair-se’ do hiato entre
passado e futuro, do futuro que transcorre com imperceptível rapidez no
passado: é a época do vergangene Zukunft, do futuro passado (MARRAMAO,
1995, p.118-119).

O futuro, hoje, perdeu de forma irremediável o seu significado prospectivo: ele


antes uma fronteira fugaz que se retira e que deixamos para trás, como as dunas de
areia (MAARAMAO, 1995, p. 119). Como consequência, a própria Constituição como
projeto converteu-se num obstáculo da aceleração “pós-moderna”. A ideia de uma
instituição político-jurídica cuja raiz latina indica seu caráter estável, prospectivo e
duradouro é, pois, incompatível com a ideia de uma aceleração “total” (ROSA,2011,
p.35).
Ironicamente, hoje em dia, aqueles referenciais temporais da política moderna
também se inverteram. Os progressistas hoje tendem a simpatizar com os defensores da
desaceleração em pautas como controle político da economia, negociação democrática,
proteção do meio ambiente e defesa de direitos fundamentais que asseguram o Estado
de bem-estar social; enquanto que os conservadores converteram-se como fortes
defensores da necessidade de uma maior aceleração, incluindo as novas tecnologias, a
velocidade dos mercados econômicos, a expansão do processo de privatização e a
rápida tomada de decisão administrativa (ROSA, 2011, p. 35). As forças de aceleração,

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assim, sobrepuseram-se às mesmas instituições político-jurídicas que as colocaram em


marcha como o próprio Estado Constitucional que, agora, se vê no risco de erosão dos
seus direitos fundamentais que historicamente colocaram em marcha a aceleração
social. A estabilização dinâmica, operada mediante a articulação entre Constituição e
aceleração na modernidade, entra em colapso, atualmente, de maneira que o momento
da estabilização se desestabiliza de forma assustadora pelas forças da dinamização. Com
isso, a própria função das Constituições é posta em risco, seu papel de guiar a
comunidade política através do horizonte da emancipação e da autonomia está,
precisamente, em crise. Quanto menos direitos, mais eficiência.
Como efeito, o discurso constitucional tornou-se, para usarmos a expressão de
Rosa, “situacionista”: ele já não aspira ao seu horizonte normativo condutor do
desenvolvimento social, ao contrário, ele se limita, em sua essência, a reagir às pressões
aceleratórias, no lugar de desenvolver perspectivas progressistas próprias. Os
compromissos de longo prazo e o sentido performativo do projeto constituinte cedem
lugar a “una sensación de cambio frénetico y carente de dirección” (ROSA, 2011, p. 36). A
orientação da Constituição em direção ao futuro como uma narrativa que é construída e
se prolonga no tempo para mobilizar forças de transformação social não faz sentido
num presente comprimido, sem experiência e expectativa, que se reduz a responder ao
contingencial. As decisões assim são tomadas de vez em quando, segundo as
necessidades e desejos situacionais e contextuais (ROSA, 2011, p.33), numa permanente
revisão de pressupostos e comprometimentos normativos temporalmente estendidos.
Essa temporalização do tempo da Constituição equivale, paradoxalmente, a
destemporalização do tempo Constitucional. A dificuldade de se retomar
retrospectivamente os sentidos das “origens” do projeto constitucional no sentido de
sua abertura ao porvir político conduz a uma lógica presentista destemporalizada em
que os momentos são desconectados uns dos outros, profundamente vulneráveis às
contingências e desvinculados das promessas da modernidade. Isso logicamente
compromete o próprio aprendizado social contido na dinâmica das lutas progressistas
por direitos que são travadas em torno dos significados da Constituição, o que abre
caminho para a perda da memória dos percursos dessas lutas por reconhecimento e o
retrocesso dos direitos já conquistados (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010, p.45).
De forma paradoxal também, o novo já nasce velho. As propostas de reformas
e estratégias de mudanças constitucionais não são mais impostas em torno do

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comprometimento com uma vida privada e pública autônoma e reflexiva, mas


motivadas pela ameaça da perda da competividade. O discurso constitucional submete-
se assim a uma miopia: torna-se refém da situação imediata, geralmente reivindicada
pelo discurso vazio do crescimento do PIB e pela suposta necessidade de salvaguardar
mercados, em detrimento de visões históricas bem elaboradas ou estratégias político-
normativas de longo prazo. “Avec chaque nouveau présent, le monde change, et l’on
peut em déduire que l’avenir qui nous fait face n’est qu’un avenir présent. Le futur est
irrémédiablement inconnu” (ROSA, 2016, p. 328).
Portanto, essa temporalização destemporalizada, conduzida pela pressão
aceleratória autojustificada em si mesma, provoca, assim, uma dessincronização das
esferas sociais. A incapacidade de envolver-se em comprometimentos públicos de longa
duração e de desenvolver prioridades resistentes ao tempo – como é o caso dos direitos
sociais –, parece impor ao tempo da Constituição um dinamismo - próprio da Economia
– que conduz a sua erosão. A aceleração fixa um tempo da Constituição
dessincronizado, porque sensível a uma sensação de movimento frenético e sem rumo
incompatível com o sentido normativo de direção, prioridade e narratividade da vida
pública que seu projeto carrega.

6. A “ponte para o futuro” como projeto de aceleração dessincronizado

No dia 31 de agosto de 2016, o então Vice-presidente em exercício, Michel Temer,


assumiu peremptoriamente a presidência do Brasil em razão do processo de
impeachment sofrido pela Presidente Dilma Rousseff. A plataforma colocada em prática
pelo novo governo foi intitulada “Uma ponte para o futuro” e apresentou um plano
normativo de contrarreformas, em aberta divergência à agenda de propostas do
governo anterior, democraticamente eleito e do qual Temer fazia parte. A hipótese a ser
defendida aqui é a de que essa ponte para o futuro e sua expressão máxima, a Emenda
Constitucional n. 95, constituem num projeto de aceleração social, tal como se vem
delineando no decorrer desse texto, que implica desincronização do tempo da
Constituição e, com isso, desintegração social.
“Uma ponte para o futuro” foi formalizada num documento de 19 páginas e
lançada pelo PMDB juntamente com a Fundação Ulysses Guimarães (FUG), instituição

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 197-236.
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privada sem fins lucrativos sediada em Brasília. O documento (PMDB, 2015) tem
profundas ligações com outro, elaborado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI),
intitulado como “Propostas da Indústria para as Eleições 2014” (CNI, 2014), em diversas
dimensões.
Em ambos, é apresentada a necessidade de se reformular o regime fiscal
nacional, a partir da redução de gastos públicos, a expansão dos processos de
privatização e terceirização e a redução de custos tributários e trabalhistas para as
empresas ligadas ao comércio, indústria e agronegócio, dentre outras pautas de
ideologia manifestamente neoliberal. A modernização do Brasil, nessa perspectiva,
deveria se impor como um imperativo econômico de desenvolvimento e expansão
pautado na autovalorização do capital, sujeito, para Rosa (2016), da aceleração nas
sociedades modernas. Questões como incremento da competitividade e expansão de
mercado passam a ser apropriados de forma independente de processos normativos de
desenvolvimento social e de erradicação da pobreza, delineados na Constituição de
1988.
Segundo o próprio documento apresentado pelo ex presidente Michel Temer,
“voltado para o crescimento e não para o impasse e a estagnação” (PMDB, 2015, p. 9),
“este programa destina-se a preservar a economia brasileira e tornar viável o seu
desenvolvimento” (PMDB, 2015, p. 2).
O discurso, contido na proposta apresentada, prenuncia uma lógica de
crescimento para o Brasil que se assemelha com a da aceleração: um crescimento
enquanto movimento de expansão inevitável que se justifica por si mesmo e cujo
sentido é predominantemente (ou até mesmo unilateralmente) econômico. Esse mesmo
significado de crescimento é reforçado em outros trechos como: “crescer a economia
não é uma escolha que podemos fazer, ou não. É um imperativo de justiça” (PMDB,
2015, p. 8); os “motores esgotaram-se e um novo ciclo de crescimento deverá apoiar-se
no investimento privado e nos ganhos de competitividade do setor externo, tanto do
agronegócio, quanto do setor industrial” (PMDB, 2015, p. 17); “recriar um ambiente
econômico estimulante para o setor privado deve ser a orientação de uma política
correta de crescimento” (PMDB, 2015, p. 17); “devemos nos preparar rapidamente para
uma abertura comercial que torne nosso setor produtivo mais competitivo” (PMDB,
2015, p. 17).

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No mesmo programa, o que se verifica é que tal exigência de aceleração é


articulada por meio de um discurso fatalista que reforça o atraso e o fracasso das
instituições político-jurídicas, a partir da construção de um cenário catastrófico para o
Brasil. Nos termos do programa:
A parte mais importante dos desequilíbrios é de natureza estrutural e está
relacionada à forma como funciona o Estado brasileiro. Ainda que
mudássemos completamente o modo de governar o dia a dia, com
comedimento e responsabilidade, mesmo assim o problema fiscal
persistiria. Para enfrentá-lo teremos que mudar leis e até mesmo normas
constitucionais, sem o que a crise fiscal voltará sempre, e cada vez mais
intratável, até chegarmos finalmente a uma espécie de colapso (PMDB,
2015, p.5-6, grifo nosso).

Com base nessa narrativa que prioriza o sentido pejorativo das experiências do
Estado Brasileiro, o caminho que se propõe é o da via única, imprescindível e urgente. A
ponte que se deve edificar para o futuro contém uma dimensão de inexorabilidade
frente a uma história contada de uma vez por todas, intocável e com o sentido
necessário, absoluto, definitivo:
Todas as iniciativas aqui expostas constituem uma necessidade, e quase um
consenso, no país. A inércia e a imobilidade política têm impedido que elas
se concretizem. A presente crise fiscal e, principalmente econômica, com
retração do PIB, alta inflação, juros muito elevados, desemprego crescente,
paralisação dos investimentos produtivos e a completa ausência de
horizontes estão obrigando a sociedade a encarar de frente o seu destino
(PMDB, 2015, p. 2, grifo nosso).

Se “no Brasil de hoje a crise fiscal, traduzida em déficits elevados, e a tendência


do endividamento do Estado, tornou-se o mais importante obstáculo para a retomada
do crescimento econômico” (PMDB, 2015, p. 2, grifo nosso), não haveria outra solução
senão o congelamento dos gastos públicos por 20 anos em áreas como saúde, educação,
moradia. “Não temos outro caminho a não ser procurar o entendimento e a cooperação”
(PMDB, 2015, p.2). A culpa da crise seria do Estado, tal como desenhado na
Constituição, prolongando-se a suas prestações positivas. “As despesas públicas
primárias, ou não financeiras, têm crescido sistematicamente acima do crescimento do
PIB, a partir da Constituição de 1988. Em parte estes aumentos se devem a novos
encargos atribuídos ao Estado pela Constituição” (PMDB, 2015, p.6-7). Faltaria à
Constituição justamente flexibilidade, maleabilidade, dinamicidade:
Na forma como está desenhada na Constituição e nas leis posteriores, que
resultam em excessiva rigidez nas despesas, o que torna o desequilíbrio
fiscal permanente e cada vez mais grave. É a leitura destas regras que

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alimenta os prognósticos cada vez mais sombrios sobre o futuro das nossas
contas públicas (PMDB, 2015, p.8).

O desejado crescimento explicitado no programa de Temer opor-se-ia ao ritmo


cadenciado do tempo da Constituição que implicaria “estagnação ou retração
econômica” (PMDB, 2015, p.5). Com isso, seria preciso:
aprovar leis e emendas constitucionais que [...]aproveite os mais de 25 anos
de experiência decorridos após a promulgação da Carta Magna, para corrigir
suas disfuncionalidades e reordenar com mais justiça e racionalidade os
termos dos conflitos distributivos arbitrados pelos processos legislativos e as
ações dos governos (PMDB, 2015, p. 16, grifo nosso).

Resta saber que disfuncionalidades são essas. Quais os vícios da Constituição


sobre os quais o programa “Uma ponte para o futuro” se refere? Trata-se dos próprios
compromissos de longa duração, delineados pelos direitos sociais que ela vincula em
seu projeto, que se sobrepõem a imediatismos contingenciais. As ditas
disfuncionalidades referem-se, paradoxalmente, a própria funcionalidade da
Constituição na modernidade: “a própria expressão contrafática de compromissos entre
as forças políticas e sociais, num determinado momento da história vista como um
processo de aprendizado social em longo prazo” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2017, p. 116).
Ora, a Constituição que se propunha dirigir – leia-se, obrigar – os governos a
implementarem políticas públicas que pusessem em marcha o que foi pactuado em
1988 é entendida como prejudicial aos interesses do país, causadora última das crises
econômicas, do déficit público e da “ingovernabilidade” (STRECK, 2016). Segundo o
documento, “esta mesma Constituição e legislações posteriores criaram dispositivos que
tornaram muito difícil a administração do orçamento e isto contribuiu para a desastrosa
situação em que hoje vivemos” (PMDB, 2015, p.7). A ponte que conduz ao futuro,
construída pela Emenda Constitucional n. 95, se trata, supostamente, de desfazer esse
“mal” da fixidez a partir de um novo regime fiscal que acelere a resolução dos
problemas postos pelo projeto constituinte:
É necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais
estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação, em
razão do receio de que o Executivo pudesse contingenciar, ou mesmo cortar
esses gastos em caso de necessidade, porque no Brasil o orçamento não é
impositivo e o Poder Executivo pode ou não executar a despesa orçada
(PMDB, 2015, p.).

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Essa pretensa agenda normativa para o desenvolvimento impõe sérios riscos à


Constituição de 1988, em termos de desincronização e desintegração social. Há
paradoxos insuperáveis nessa “ponte para o futuro” de modo que se deve, pois,
perguntar, com Derrida e Roudinesco (2004): “qual amanhã?” (CATTONI DE OLIVEIRA,
2010, p.52). A demasiada ênfase no crescimento não se trata da satisfação de
necessidades concretas, mas de uma produção direcionada a um contínuo aumento
escalar da própria produção do setor privado ad infinitum e de um desinteresse pela
lógica própria dos comprometimentos públicos de distribuição e inclusão social. A
pressão pelo desenvolvimento econômico tende a se manter em detrimento dos
direitos que amparam a integração social, o que leva ao declínio do horizonte normativo
da Constituição.
A Constituição passa a funcionar numa estrutura de linguagem que lhe é
estranha. Ao invés de se falar em direitos, fala-se em “necessidade inerente” e
“inevitável ajuste” (ROSA, 2011). No lugar de um núcleo de proteção de minorias e de
vulneráveis dilatado no tempo, a proposta anuncia “a formação de uma maioria política,
mesmo que transitória ou circunstancial, capaz de num curto prazo produzir todas estas
decisões na sociedade e no Congresso Nacional” (PMDB, 2015, p. 2). A compulsão ao
movimento já não implica uma projeção longitudinal. O congelamento dos gastos
públicos das despesas primárias, como saúde e educação é justificado pelo alto
contingenciamento econômico, sobretudo pela imprevisibilidade e volatilidade dos
mercados financeiros. Trata-se de ajustar compromissos públicos duráveis – por meio da
limitação de recursos para os direitos sociais – às pressões imediatistas do mercado “em
termos que tornem possível à adaptação a circunstâncias excepcionais” (PMDB, 2015, p.
10).
Situação inversa a da saúde e da educação – que são direitos fundamentais,
nunca é demais lembrar, e por isso possuem natureza vinculante e não programática– é
a da destinação de recursos da União para o pagamento da dívida pública. Por não se
tratar de uma despesa primária, a dívida ficou de fora dos limites impostos pela Emenda
95 e pode crescer sem controle e limitação. Com o teto dos gastos públicos, a tendência
é ainda de cada vez mais recursos federais sejam deslocados para o pagamento de juros
e amortizações da dívida. Só no ano de 2018, tais recursos consumiram por volta de 40
% do orçamento da União, muito mais do que todos os gastos juntos dos programas
sociais do Estado. É desse modo que o ajuste fiscal ganhou status constitucional a partir

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de um processo perverso de desconstitucionalização do projeto constituinte. Não se


trata, pois, de reforma, mas de rompimento com a Constituição.
Essa emenda desconstituinte (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016) está, pois,
relacionada a um processo maior que integra a própria lógica interna dos subsistemas
Direito e Economia e a capacidade de reproduzirem-se autonomamente.
Contrariamente à opinião generalizada, a modernidade não estabeleceu apenas uma
forma unitária de tempo linear e abstrato que sincronize todos os seus diversos
subsistemas (ROSA, 2011, p. 38): cada subsistema na modernidade opera de modo
autônomo dentro de sua própria linguagem (LUHMANN, 1983) como “la economia, la
ciencia, el derecho, la politica, las artes, etc., cada uno de los cuales sigue sus proprios
ritmos temporales, pautas y horizontes” (ROSA, 2011, p. 38). Da mesma forma não
existe um centro unificador social ou substancial que governe as operações
subsistêmicas, não existe tampouco uma autoridade temporal integradora, e isto resulta
por sua vez numa crescente desincronização temporal (ROSA, 2011, p.38).
Para a Constituição, isto implica verdadeiros horizontes temporais paradoxais.
Em primeiro lugar, porque o tempo necessário para a tomada de decisões políticas
democráticas e também de realização continuada das promessas da modernidade,
inscritas em uma Constituição é muito difícil de acelerar, na medida em que os
processos de deliberação numa sociedade democrática e pluralista assim como os de
realização dos direitos sociais, especialmente num país tão desigual como o Brasil,
inevitavelmente exigem tempo. A Constituição, reiteramos, funciona numa
temporalidade outra que a do mercado: sua concretização é tarefa presente e
permanente de longa duração. Por outro lado, a lógica da Economia conecta
crescimento com aceleração no sentido que a produção e a produtividade devem se
desenvolver em tempos cada vez mais curtos: “tempo é dinheiro”, repetimos com
Benjamin Franklin.
Como consequência, o horizonte temporal da Constituição precisa contrair
continuamente com a primazia do prazo curto do mercado. Essas pressões temporais
contraditórias impõem não só uma lógica situacionista, sem direção; também exige que
a Constituição se acelere a tal ponto de modo a perder sua autonomia. O teto de gastos
públicos impõe a transferência progressiva da tomada de decisão sobre o orçamento
federal, próprio do jogo político democrático, para a arena econômica numa lógica que
conduz a uma expansão desenfreada da privatização e da desregulamentação. Com

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capacidade de investimento limitado, há não só um processo progressivo de


obsolescência constitucional diante do recuo de políticas públicas, mas igualmente um
enfraquecimento do Estado que torna-se, a cada dia, refém do setor privado, pois passa
a ter mais poder de negociação e de articulação nas decisões estatais12.
O tempo da duração dos direitos fundamentais e da orientação de horizontes
normativos sede lugar para o tempo da competitividade, da imediaticidade dos
mercados e da austeridade. “La configuración política deliberada y democrática de
nuestra sociedad y nuestra forma de vida, el proyecto político y la promesa de la
modernidad ilustrada, parece por tanto volverse obsoleta em esta ‘sociedade de la
aceleración’ de la modernidad tardía” (ROSA, 2011, p.40). Esse processo de des-
diferenciação dos subsistemas Direito e Economia conduz aquilo que Bercovici (2005,
p.1) chamou, com base numa leitura criativa de Schmitt, “estado de exceção econômico”
a que está submetida, especialmente, a periferia do capitalismo. Especialmente nos
Estados periféricos, há o convívio do decisionismo de emergência para salvar os
mercados com o funcionamento dos poderes constitucionais, bem como a subordinação
do Estado ao mercado, com a adaptação do direito interno às necessidades do capital
financeiro, exigindo cada vez mais flexibilidade para reduzir as possibilidades de
interferência da soberania popular: enfim, a razão de mercado passa a ser a nova razão
de Estado (BERCOVICI, 2005, p.4). Trata-se, com isso, de submeter direitos fundamentais
à lógica da acumulação capitalista.
Mas esse processo de desincronização operado pela Emenda 95 não se
restringe às relações sistêmicas entre Constituição e Economia, ele se impõe aos
diferentes grupos e segmentos da sociedade brasileira. O crescimento preconizado na
“ponte para o futuro” tende a se manter mesmo sob o risco da fragilização das
mediações normativas delineadas pela Constituição que sustentam a integração social.
Isso quer dizer que relações de maior densidade e de menor capacidade de aceleração
tendem a ser externalizadas, ou melhor, expulsas do sistema autorregulado do modo de
estabilização dinâmica (TZIMINADIS, 2018, p. 71). O Novo Regime Fiscal já começou a

12 “Ao longo dos anos, com o teto sufocando cada vez mais as demandas da sociedade e com a lenta
retomada econômica, decorrente inclusive dessa escolha de política fiscal de austeridade, o governo tem
que realizar cortes orçamentários. Como o governo tem dificuldade em cortar as despesas com serviços
públicos, por serem em sua maioria obrigatórias, a tesoura recai sobre as despesas com investimento, estas
discricionárias, ou seja, o governo não tem obrigação de executar. O resultado disso é que o investimento
público chegou em 2017 ao menor nível em quase 50 anos, de acordo com Orair e Gobetti. União, estados e
municípios investiram apenas 1,17% do PIB – valor sequer suficiente para garantir a conservação da
infraestrutura já existente” Disponível https://www.inesc.org.br/para-manter-teto-dos-gastos-governo-
burla-constituicao-na-ldo-2019/.
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desproporcionalmente afetar grupos em desvantagem, tais como as mulheres negras e


pessoas vivendo em situação de pobreza, aumentando os níveis de desigualdade de
classe, de raça e de gênero em suas relações interseccionais com o desmonte das
políticas de transferência de renda.
Essa perspectiva é confirmada pelo estudo, realizado pelo Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc) em parceria com a Oxfam Brasil e Centro para os Direitos
Econômicos e Sociais (Center for Economic and Social Rights - CESR, em inglês), que fez
um levantamento dos gastos governamentais desde 2015 a 2017, primeiro ano em que
a Emenda Constitucional vigorou. A avaliação é a de que, entre os programas que
apresentaram maior redução de recursos públicos no período, destacaram-se aqueles
que possuem elevado impacto nas pessoas em condição de vulnerabilidade, sendo que
as políticas públicas voltadas para a promoção dos direitos fundamentais sofreram
queda de até 83% nesses anos:

GRÁFICO 1: variação (%) da dotação orçamentária nominal por programa selecionado,


2014 a 2017

Variação (%) da dotação orçamentária nominal por programa


selecionado, 2014 a 2017
Promoção dos Direitos da Juventude -83%
Segurança Alimentar e Nutricional -76%
Mudança do Clima -72%
Moradia Digna -62%
Defesa dos Direitos Humanos e Adolescentes -62%
Promoção da Igualdade Racial e Superação do… -60%
Política para as Mulheres -53%
Promoção e Defesa dos Direitos Humanos -14%
Serviço da Dívida Interna 90%
Integralização de Cotas em Organismos… 118%
Refinanciamento da Dívida Externa 344%

-150%-100%-50% 0% 50% 100%150%200%250%300%350%400%

Disponível em David; Lusiani; Chaparro (2018, P.9)

O gráfico 1 permite ainda extrair uma conclusão adicional relevante: nesses três
anos analisados, o Brasil experimentou expressiva transferência de recursos públicos de
programas sociais relevantes para os serviços da dívida pública, o que traduz uma
significativa redistribuição inversa dos recursos públicos, das populações vulneráveis

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para as mais ricas13 (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018, P.10). Isso ainda pode ser
reforçado a partir do gráfico 2, extraído dos mesmos dados levantados. Ele revela que,
entre os anos de 2015 e 2016, a proporção do orçamento gasto com despesas
financeiras (serviços da dívida) cresceu 2% em termos reais, o que implicou igual perda
para as despesas primárias (programas sociais) (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018,
P.10):

GRÁFICO 2: Proporção da despesa total do Orçamento Geral da União com despesas


primárias e despesas financeiras (%), 2014 a 2017

Proporção da despesa total do Orçamento Geral


da União com despesas primárias e despesas
financeiras (%), 2014 a 2017
74% 75% 73%
80% 69%

60%

40% 27% 31%


26% 25%
20%

0%
2014 2015 2016 Sep 2017

Despesas Primárias Despesas Financeiras

Disponível em David; Lusiani; Chaparro (2018, P.10)

O que se vê é uma política de austeridade seletiva que suspende o projeto


constituinte no que se refere ao horizonte normativo do uso máximo de recursos
disponíveis para a realização progressiva dos direitos fundamentais14 de modo a agravar

13No sentido contrário do que temos demonstrado, em novembro de 2016, o assessor especial do Ministro
da Fazenda, Marcos Mendes, em audiência pública conjunta da Comissão de Constituição e Justiça e da
Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal buscou desconstruir o que ele chamava de mito em
torno do teto dos gastos públicos, alegando que a reforma “vai beneficiar os mais pobres e a despesa com
juros vai cair” (MENDES, 2016). A partir dos dados aqui apresentados, se confirma a falta de embasamento
dos seus argumentos.
14 Esse horizonte normativo do projeto constituinte de 1988 pode ser extraído de pelo menos dois

princípios. O primeiro e mais óbvio é o princípio do uso máximo dos recursos disponíveis, ancorado no art. 2
do Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais, do qual o Brasil é signatário desde
1992, que estabelece que “Cada Estado-Parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto
por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos
econômico e técnico, até no máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar,
progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente
Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas” (PIDESC, 1966). Sobre tal princípio, ver
Oliveira (2007), O segundo princípio é o da vedação do retrocesso social que em seu sentido mais amplo
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o quadro de desigualdades no Brasil, que já é um dos piores do mundo15. Os dados


(DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018, P.10) confirmam, pois, um comprometimento do
uso máximo dos recursos não para a realização dos direitos fundamentais, mas para o
enriquecimento dos mais ricos por intermédio do pagamento de despesas financeiras.
Uma total inversão do pacto constitucional com a submissão de seus preceitos à lógica
aceleratória do mercado, ratificando a hipótese da investigação.
É nesse sentido que se intensificam formas de desincronização de classes
sociais no Brasil. Nem todos os grupos se aceleram da mesma maneira: alguns como
aqueles segmentos sociais que precisam de acesso às políticas públicas se vêem
forçados a desacelerar16, frente aqueles outros que conseguem realizar seus projetos de
vida, ainda que com a mínima participação do Estado. Para usar os termos de Rosa, “há
uma maior simultaneidade do não simultâneo dentro de uma mesma sociedade”. O
resultado dessa multitemporalidade desincronizada é a desintegração progressiva da
sociedade brasileira. Na medida em que os direitos sociais são condições para o
desenvolvimento da autodeterminação pública e privada dos vulneráveis, a
desincronização agrava o problema da guetização, transformando a sociedade em um
mosaico de guetos temporais.
Por fim, a aceleração imposta pela Emenda incorre num último paradoxo
temporal que é o sentido normativo atribuído ao horizonte do futuro. Em primeiro
lugar, porque não há nada de temporário na proposta, já que se estenderá para além
das futuras recuperações econômicas que possam ocorrer durante as duas próximas
décadas. Em segundo lugar, porque a imposição do teto de gastos públicos por esse
longo período subtrai o direito das próximas gerações de deliberar sobre as modalidades
de despesa dos recursos estatais. Esse dispositivo temporal provoca, assim, um
enfraquecimento do núcleo da soberania popular, definido como fundamento da
República do Brasil no art. 1 da Constituição. Nem mesmo a sociedade, por meio do

possui duas dimensões, uma negativa e a outra positiva: a negativa refere-se à obrigação da não supressão
de direitos sociais nem mesmo redução de seu sentido normativo; a positiva refere-se à exigência do Estado
de implementar programas que possibilitem o avanço na concretização de direitos sociais de modo a reduzir
as desigualdades sociais. Sobre tal princípio, ver Sarlet (2015).
15 Os 10% mais ricos recebem mais da metade de toda a renda nacional18. A concentração de renda do 1%

dos brasileiros no topo é a maior do mundo19, com os seis maiores bilionários do país possuindo riqueza
equivalente ao patrimônio dos 100 milhões de brasileiros mais pobres, metade da população
16 A título de exemplo desse processo de desaceleração, anteriormente às medidas de austeridade, mais de

um terço dos beneficiários só podiam acessar os medicamentos em farmácias públicas que tinham objetivo
de ampliar o acesso da população aos medicamentos considerados essenciais, disponibilizados a um baixo
custo. Em 2017, o Ministério da Saúde decidiu fechar 314 farmácias públicas, deixando apenas 53 em
funcionamento hoje (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018).
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voto, poderia, em princípio, eleger programas de governo voltados a uma perspectiva


inclusiva e progressista de direitos sociais, uma vez que as despesas com as políticas
públicas jamais, dentro do atual quadro normativo, poderão elevar-se.
Há, nessa lógica, uma delimitação máxima e desarrazoável do campo de ação
político-democrático que deveria estar aberto a disputas e reorientações das
expectativas normativas. Em outras palavras, a Emenda suprime a própria contingência
do jogo democrático e, portanto, o próprio tempo da Constituição numa pretensão um
tanto quanto absurda. A sensação é de uma “jaula de ferro”, para usar a expressão de
Weber (2003), por meio do controle dos governos subsequentes e das propostas
normativas que estão obrigados, sem possibilidade de questionar as regras, a cumprir o
mesmo plano aceleratório neoliberal. Ela fecha o sentido normativo da Constituição em
uma espécie de “Constituição Dirigente Invertida” (BERCOVICI, MASSONETO, 2006),
vincula prospectivamente toda a política do Estado brasileiro à tutela estatal da renda
financeira do capital, à garantia da acumulação de riqueza privada. Paradoxalmente, a
aceleração aqui dá lugar a um “tempo congelado, sem passado e sem futuro” (ROSA,
2011).
Ora, a temporalização do tempo da Constituição, operado pelo teto de gastos,
é sua destemporalização. Ela afeta o próprio caráter aberto e infuturante da
Constituição de 1988 enquanto Constituição moderna. Por isso mesmo, diríamos que o
“constitucionalismo democrático lança-se, aqui e agora, a um porvir, a um futuro-em-
aberto, como projeto falível, mas no sentido de que o presente pode ser o futuro de um
passado que agora é redimido pelo agir político-jurídico, constitucional, que o constitui”
(CATTONI DE OLIVEIRA, 2010, p. 54). É esse porvir do projeto constituinte que se opõe
ao amanhã, delineado na “ponte para o futuro”. O porvir é abertura da Constituição em
sua articulação com o tempo histórico e, portanto, compromisso com o sentido
performativo do projeto de emancipação que herdamos como promessas ainda não
cumpridas de modo a possibilitar que o direito seja desenvolvido, ampliado e
ressignificado, aqui e agora, na arena de disputa política e democrática. Foi isso que
garantiu, até os dias de hoje, as transformações sociais e a ampliação do significado dos
direitos fundamentais no Brasil e cuja concretização é uma tarefa sempre presente,
permanente e inacabada.
A pergunta “qual amanhã?”, anteriormente aqui colocada, diz muito sobre o
sentido desses vinte anos de congelamento enquanto “futuro” do país. Não é à toa que

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a justificativa da Emenda faz referência à tradicional identificação do Brasil como país do


futuro:
A ideia, sempre presente em nossa história de que somos um “país do
futuro”, combina uma realidade e uma expectativa que, juntos, nos
ajudaram a transpor nossos dramas políticos e sociais, sem que a sociedade
perdesse a coesão ou se envolvesse em conflitos destrutivos (PMDB, 2015,
p.3).

Diferentemente do porvir (DERRIDA, 2007; CATTONI DE OLIVEIRA, 2010), esse


“futuro” é um horizonte de expectativa urgentemente reivindicado e paradoxalmente
hipertrofiado. A ponte para o futuro conduz a ideia, ao mesmo tempo, de aceleração
econômica e de um futurismo da “espera”. Giacomo Marramao, em uma leitura
particular das teses sobre o conceito de história de Benjamin, afirma que: “é
exatamente em nome do direito das gerações futuras que foi construída a “pirâmide de
sacrifício” no curso da história ocidental; é em nome do direito de um não melhor
precisado porvir que temos sacrificado a nossa vida presente para fabricar “paraísos na
terra” (MARRAMAO, 2018, p. 72). Se os opressores se alimentam do futuro a partir do
discurso da “espera” (por vinte anos) pela realização dos direitos fundamentais, de um
sonho que um dia virá, os oprimidos, ao contrário, se alimentam da “imagem dos
ancestrais escravizados, não do ideal dos descentes libertados” (MARRAMAO, 2018, p.
72). É assim que a ponte para o futuro é uma ponte interminável da espera e do
retrocesso: país do futuro, para onde aceleramos para trás. Como já disse Millor
Fernandes, “o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por
detrás, se preferem”.

7. Conclusão

Ao longo do nosso percurso, constatou-se que o programa “Uma ponte para o futuro”,
especialmente na sua expressão máxima, a Emenda n. 95, expõe uma nova consciência
histórica – que já vem sendo desenvolvida pelo menos desde as jornadas de junho –
como pano de fundo da atual crise constitucional cujo passado é percebido como um
espaço em que a experiência constitucional é encurtada e rechaçada e o futuro como
horizonte desprovido de legado e de projeção, o que resulta um processo de aceleração
social contra a Constituição.

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O tempo da Constituição – enquanto tempo da processualidade, da duração e


dos comprometimentos de longo prazo que se realizam e tem continuidade por meio de
sucessivas gerações – é submetido à velocidade do tempo do mercado, da
competitividade e da austeridade. A Emenda do congelamento dos gastos públicos é,
talvez, a maior referência, entre nós, dessa aceleração: ao estabelecer por 20 anos o
congelamento dos gastos públicos sob o pretexto de pagamento de dívidas e
compromissos com bancos e instituições privadas, ela impõe uma agenda neoliberal a
ser compulsoriamente seguido, por meio da exclusão da contingência e de planos
normativos inclusivos e dissidentes, o que enfraquece o próprio sentido da esfera
pública democrática além de barrar oportunidades presentes e vindouras de
concretização e avanços em termos de direitos fundamentais. É nesse sentido que a
emenda é “desconstituinte”, porque inverte a fundação constitucional de 1988 e a
submete a um Estado de Exceção Econômico e, com isso, despreza a dimensão temporal
da Constituição (e das políticas públicas necessárias para a sua realização) como
processo tenso e contraditório não imediatista, de construção sempre presente e de
aprendizado social no tempo.
Esse movimento de aceleração desconstituinte parece não ter chegado ao fim.
O atual governo federal de Bolsonaro já deu declarações suficientes no sentido de
manutenção do teto das despesas públicas e ainda da ampliação das contrarreformas
aceleratórias, como a previdenciária que, da forma como vem sendo conduzida,
restringe consideravelmente o acesso ao direito à aposentadoria. Com o
pronunciamento "vamos desengessar o Orçamento porque o teto é compromisso17", o
Ministro da Economia, Paulo Guedes, promete ainda encaminhar ao Congresso Nacional
uma proposta que pretende modificar drasticamente a Constituição de 1988 através da,
chamada por ele, “PEC do Pacto Federativo”. Atualmente, a Constituição determina que
os estados da federação devem investir no mínimo 12% do orçamento na área da saúde,
enquanto os municípios devem investir 15%. Em educação, a vinculação orçamentária
obriga que estados e municípios apliquem pelo menos 25% das receitas tributárias e
repasses. A medida prometida pelo governo significa acabar com qualquer obrigação de
estados ou municípios ou mesmo do próprio governo federal de investir o mínimo
constitucional nas áreas de saúde e educação. Na prática, é uma continuidade do

17 Disponível em <https://extra.globo.com/noticias/economia/equipe-de-transicao-estuda-desvinculacao-
para-respeitar-teto-dos-gastos-diz-guedes-23268644.html>
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processo de suspensão do pacto constitucional e de desmonte dos direitos sociais de


modo a lançar sua prestação nas mãos da iniciativa privada e de colocar em risco
importantes processos normativos de integração social.
À luz dos resultados obtidos até aqui, fenômenos como esse abrem caminho
para a realização de pesquisas ainda por vir.

8. Referências bibliográficas

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Sobre os autores

Ernane Salles da Costa Junior


Pós-doutorado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Doutor em Direito pela mesma instituição e Mestre em Teoria do Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) com a distinção
magna cum laude. Realizou estágio doutoral com bolsa sanduíche da CAPES no
instituto Fonds Ricoeur, vinculado a École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS). Professor substituto da Faculdade de Direito e de Ciências do Estado da
UFMG. E-mail: profernanesalles@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
0088-6556.

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira


Pós-doutorado em Teoria do Direito pela Università degli studi di Roma TRE com
bolsa CAPES. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito e de
Ciência do Estado da UFMG. Bolsista de produtividade do CNPQ (1D). E-mail:
mcattoni@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2409-5804.

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Inclusão da Interseccionalidade no âmbito dos Direitos


Humanos
Inclusion of intersectionality in the scope of human rights

Joana Stelzer1
¹ Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail:
joana.stelzer@ufsc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9503-4080.

Gabriela M. Kyrillos2
² Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:
gabrielakyrillos@furg.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7237-4210.

Artigo recebido em 23/08/2019 e aceito em 13/04/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.237-262.
Joana Stelzer e Gabriela M. Kyrillos
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/44747| ISSN: 2179-8966
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Resumo
O estudo aborda o conceito de interseccionalidade das opressões ou desigualdades
interseccionais – cunhado em 1989, por Kimberlé Crenshaw – e seu potencial analítico
para a concretização do acesso das mulheres aos Direitos Humanos. Por meio de revisão
bibliográfica e documental, de aplicação do método hipotético-dedutivo, a pesquisa
possui caráter descritivo e explicativo. Conclui-se que as discriminações de gênero
interagem com outras categorias estruturais, como raça, produzindo processos de
exclusão particulares que são barreiras no acesso a direitos, sendo a interseccionalidade
uma ferramenta com grande potencial para melhor compreender esses processos e
minimizá-los.
Palavras-chave: Interseccionalidade; Feminismo Interseccional; Direitos Humanos.

Abstract
The research is about the study of the concept of intersectionality of oppression or
intersectional inequality - coined in 1989, by Kimberlé Crenshaw – and its analytical
potential for the realization of women's access to Human Rights. Through bibliographical
and documentary review, and the application of the hypothetical-deductive method, the
research has a descriptive and explanatory character. It is concluded that gender
discrimination interacts with other structural categories, such as race, producing
particular exclusion processes that are barriers in accessing rights, with intersectionality
being a tool with great potential to better understand these processes and minimize
them.
Keywords: Intersectionality; Intersectional Feminism; Human Rights

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.237-262.
Joana Stelzer e Gabriela M. Kyrillos
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/44747| ISSN: 2179-8966
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1. Introdução

A busca pela eficácia dos Direitos Humanos nasce na mesma ocasião em que se
estipulam alguns direitos como sendo fundamentais e inalienáveis a todos os seres
humanos. A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949), em um cenário
marcado pelas atrocidades cometidas durante as duas Grandes Guerras Mundiais, o
discurso dos Direitos Humanos passa a ser incluído em grande parte dos ordenamentos
jurídicos ocidentais. Junto com o aparecimento de tal discurso, emerge a busca por
estratégias e ferramentas capazes de colocar em prática as garantias fundamentais que
tais documentos pretendem assegurar.
A presente pesquisa surge, portanto, da necessidade constante de reflexão
sobre as formas e estratégias para a efetivação dos Direitos Humanos, para isso
perpassa algumas Convenções sobre Direitos Humanos dedicadas à proteção de grupos
específicos como meninas e mulheres e pessoas negras. Desse modo, a investigação
demonstra o potencial da categoria interseccionalidade, pois reconhece que existe na
atualidade um complexo de estruturas de opressão (múltiplas e simultâneas) que
precisam ser analisadas como um sistema de desempoderamento.
Isso posto, tem-se como problema de pesquisa identificar como o conceito da
interseccionalidade pode contribuir ao debate sobre o acesso aos Direitos Humanos e
de que modo isso tem se desenvolvido no cenário internacional. Assim, tem-se como
objetivo principal demonstrar a relevância do conceito de interseccionalidade para a
construção teórica e prática de mecanismos de superação de desigualdades partindo do
reconhecimento da interseccionalidade das opressões (CRENSHAW, 1991).
Quanto à natureza, trata-se de pesquisa pura, com abordagem do problema e
avaliação de dados de maneira qualitativa. O método de abordagem utilizado foi o
hipotético-dedutivo, conforme Marconi e Lakatos (2003). Os meios foram bibliográficos
e documentais, com destaque para as obras de relevantes teóricos (as) e os textos da
Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(CEDAW) e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (ICERD), bem como, as Recomendações que os respectivos Comitês
produzem. A interpretação foi predominantemente teleológica. Quanto aos fins, a
pesquisa apresentou-se de cunho descritivo e explicativo. Afinal, foi possível reconhecer
que a interseccionalidade traz grandes contribuições para maior compreensão da

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.237-262.
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DOI: 10.1590/2179-8966/2020/44747| ISSN: 2179-8966
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complexidade do acesso igualitário das mulheres aos Direitos Humanos. Os resultados


foram apresentados em forma de textos.
Em síntese, estimula-se uma reflexão sobre os sutis avanços identificáveis na
inclusão da interseccionalidade no cenário internacional dos Direitos Humanos, para a
efetivação de tais direitos. Tendo como marco teórico Kimberlé Crenshaw, Meghan
Campbell, Michel Foucault e Joan Scott, almeja-se o avanço na compreensão das
potencialidades da interseccionalidade na busca por tornar mais eficaz o acesso aos
Direitos Humanos.

2. Raízes da Interseccionalidade: Gênero e Feminismos

A interseccionalidade pode ser compreendida como ferramenta analítica capaz de


contribuir para a solução de problemas muitas vezes invisibilizados quando se trata do
acesso aos Direitos Humanos: “A interseccionalidade é uma conceituação do problema
que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou
mais eixos da subordinação” (CRENSHAW, 2002, p. 177).
Esse conceito, surgido em 1989, quando a jurista estadunidense Kimberlé
Crenshaw o nomeou e ainda é considerado historicamente recente no campo das
pesquisas em ciências humanas e ciências sociais aplicadas. A produção inicial sobre
interseccionalidade ocorreu principalmente nos Estados Unidos por meio de uma
articulação entre conceitos como gênero, raça e classe. Isso não significa dizer, contudo,
que no Brasil não ocorreram desde muito antes do surgimento do conceito da
interseccionalidade debates e pesquisas que articulavam essas categorias.
Vale desde já destacar que gênero será aqui entendido como uma primeira
forma de dar significado às relações de poder, tal qual conceituado pela historiadora
estadunidense Joan Scott (1995), afinal, gênero permite revelar que não é coerente
pensar nas diferenças entre homens e mulheres como algo atemporal e universal. Ou
seja, o gênero promove inquietações cientificamente imprescindíveis sobre os modos
como se interpretam as diferenças biológicas, pois são essas interpretações e
construções sociais os elementos chaves para compreender as relações sociais entre
homens e mulheres. Gênero é, portanto, como se percebem tais diferenças em uma
dada sociedade, como se hierarquizam e se constroem como dicotômicas e binárias.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.237-262.
Joana Stelzer e Gabriela M. Kyrillos
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O conceito de Raça, por sua vez, não deve ser entendido como foi utilizado do
século XVI ao XIX, para reproduzir ideias da colonialidade moderna que compreendiam a
existência de uma hierarquia racial. Nesta pesquisa, assim como ocorre quando o
conceito raça é utilizado nos Movimentos Negros e por alguns intelectuais das Ciências
Sociais na atualidade, está se partindo de uma nova interpretação, tal qual apresentado
por Nilma Lino Gomes (2005, p. 45), que se baseia na dimensão social e política do
conceito de raça. A utilização do termo raça é uma escolha política adequada para o
Brasil posto que a forma como se dá a discriminação racial no país, desenvolve-se não
apenas a partir de elementos da identidade étnica de determinado grupo, mas, também
em razão dos aspectos físicos possíveis de serem observados na estética corporal dos
membros desse grupo (GOMES, 2005, p. 45). Ou seja, “raça ainda é o termo que
consegue dar a dimensão mais próxima da verdadeira discriminação contra os negros,
ou melhor, do que é o racismo que afeta as pessoas negras da nossa sociedade.”
(GOMES, 2005, p. 45).
Interseccionalidade surge, portanto, da necessidade de construir uma
ferramenta analítica adequada para as pesquisas que envolviam gênero e raça, bem
como outras categorias que interagem e criam o que a Kimberlé Crenshaw denomina
como rede de desempoderamento. Para melhor compreender a interseccionalidade faz-
se imperativo entender o contexto no qual ela emergiu.
Para abordar a história da interseccionalidade é preciso iniciar antes mesmo
do conceito ser nomeado por Kimberlé Crenshaw. Esse é o entendimento de Patricia Hill
Collins e Sirma Bilge (2016), assim como de Anna Carastathis (2016), para quem a
interseccionalidade deve ser entendida como representando uma síntese entre os
movimentos sociais e o conhecimento acadêmico crítico. É comum, no entanto, que os
estudos históricos sobre a interseccionalidade ignorem que tal conceito se originou nos
Estados Unidos, a partir da luta dos Movimentos Sociais, em especial, daqueles que
tinham como protagonistas mulheres negras 1.
Minimizar tal origem tende a diminuir o potencial transformador e crítico da
própria interseccionalidade2. Mesmo no campo acadêmico, é preciso destacar que

1 Sobre isso ver: “Uma Análise Crítica sobre os Antecedentes da Interseccionalidade” de Gabriela M. Kyrillos
(2020).
2 No livro intitulado ‘Intersectionality’ (2016) de autoria das sociólogas Patricia Hill Collins e Sirma Bilge

(ainda sem tradução para o português), as autoras demonstram como a ausência sobre os movimentos
sociais nos históricos sobre interseccionalidade não é apenas uma falha na contextualização do conceito
mas, sobretudo, um equívoco ao assumir que a interseccionalidade se resume a mais um campo acadêmico

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discussões que articulavam gênero e raça foram predecessoras fundamentais para a


construção do próprio conceito de interseccionalidade, tal qual enfatizado
anteriormente quando se destacou a produção de pesquisadoras feministas negras
brasileiras, como é possível identificar, por exemplo, nos textos de Sueli Carneiro (1995;
2003) e de Lélia Gonzalez (1984).
O termo amplo ‘movimento feminista’ abriga vasta gama de interpretações,
correntes, teorias e ações práticas distintas, todas possuindo como objetivo comum a
melhoria da qualidade de vida das mulheres e a redução das desigualdades. Os
caminhos para alcançar tal objetivo, como se sabe, são múltiplos e muitos deles utilizam
o conceito de gênero enquanto elemento chave para pensar as diferenças socioculturais
entre homens e mulheres. Tal conceito é derivado dos debates teóricos de meados do
século XX, importante por ter sido capaz de, ao mesmo tempo em que revelou as
assimetrias e hierarquias nas relações entre mulheres e homens, tornou visível que não
é possível compreender a amplitude dos diferentes papéis atribuídos aos homens e às
mulheres sem um estudo que seja relacional (PEDRO, 2005, p. 88-89).
Gênero, por conseguinte, irá se constituir como conceito altamente relevante
na academia e no movimento feminista. Quando Joan Scott publica no fim da década de
1980 um texto que se tornou basilar para a popularização do conceito, ela se dedica a
traçar uma distinção entre o sexo (aquilo que é o biológico) e o gênero (aquilo que é
construído por relações socioculturais). A proposta de Scott diferenciou-se dos usos
anteriores por dar grande relevância às relações sociais e se baseia na compreensão de
que as diferenças percebidas entre homens e mulheres se constroem dentro de relações
de poder (PEDRO, 2005, p. 86).
Dessa maneira, Scott irá destacar outra forma de compreender o gênero a
partir do momento em que apresenta o poder de modo difuso. De acordo com a autora,
faz-se necessário substituir a ideia de poder social como algo “[...] unificado, coerente e
centralizado por alguma coisa que esteja próxima do conceito foucaultiano de poder,
entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso

(COLLINS; BILGE, 2016, p. 64), ignorando que a interseccionalidade parte da sinergia entre a pesquisa crítica
(critical inquiry) e a práxis crítica (critical praxis). Enquanto o primeiro diz respeito ao desenvolvimento da
interseccionalidade na academia, como ferramenta analítica para a construção de pesquisas e análises
críticas; o segundo refere-se à forma como as pessoas, seja individualmente, seja enquanto coletivos,
produzem e usam a estrutura da interseccionalidade no seu dia-a-dia (COLLINS; BILGE, 2016, p. 32). Um
exemplo válido de como as discussões que articulam raça e gênero são muito anteriores ao surgimento do
conceito da interseccionalidade e se desenvolveu fora do campo acadêmico é o discurso de Sojourner Truth
‘Não sou uma mulher?’.

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nos ‘campos de forças’.” (SCOTT, 1995, p.78). Na busca por definir o conceito, Scott
elucida que: “[...] o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas
diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as
relações de poder.” (SCOTT, 1995, p. 81)
Portanto, o que se produz como interpretação sobre o sexo ou o gênero, em
outras palavras, as distinções tidas como verdadeiras entre homens e mulheres são
frutos de relações de saber e poder. Nesse sentido, Michel Foucault é um dos mais
relevantes autores que articulou saber, poder e corpo, em especial nos três volumes da
série História da Sexualidade (2014a; 2014b; 2014c). O filósofo e teórico social francês,
tornou-se conhecido por sua compreensão fragmentada e difusa de poder. Para, além
disso, tornou o corpo o local privilegiado das relações de poder e saber – razão pela qual
é uma referência importante para Joan Scott e outras (os) estudiosas (os) de gênero.
O entendimento de Michel Foucault (2014a) a respeito do corpo e da
sexualidade compreende que o poder não está associado exclusivamente ou
prioritariamente com as fontes clássicas de poder como o Estado-nação ou o Direito.
Poder é compreendido como algo difuso, múltiplo e complexo. Por essa razão, Foucault
irá propor uma nova forma de análise das relações de poder, de modo histórico e sem
apego às clássicas fontes do poder que por muito tempo foi o ponto de partida para
esses estudos. Perceber como o autor trata essa temática é reconhecer que todo poder
que se exerce por diferentes e difusos instrumentos e mecanismos tem um corpo, razão
pela qual, a história dos corpos que ele produz, busca revelar como o corpo se torna
percebido e valorizado na história (CIRINO, 2007, p. 79).
Na medida em que o poder se exerce sobre o corpo, distintos aspectos que
formam essa corporalidade tornam-se relevantes. O gênero e a raça são alguns desses
elementos que fazem com que as experiências não sejam idênticas em uma sociedade
na qual o poder é difuso. Nesse sentido, as obras de Michel Foucault são de grande
relevância para os estudos de gênero por destacar o caráter difuso do poder que se
exerce sobre os corpos e sobre as sexualidades.
As teorizações de Foucault, em particular da sua coleção sobre história da
sexualidade, ocorrem em momento no qual há uma diversidade de trabalhos, em
distintas áreas do conhecimento, que buscam a dissolução da concepção de sujeito
universal, priorizam a questão da linguagem e do discurso como práticas que interagem

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e são centrais para a compreensão da sociedade, especialmente ao perceberem a


produção do saber como um ato de poder (PISCITELLI, 2008, p. 264).
Desse modo, os estudos da década de 1980 produzem sérios debates sobre
igualdade e diferenças e questionam fortemente a distinção clássica entre gênero e
sexo, enquanto categorias de ordem distintas – uma da cultura e a outra da natureza –
ao ponto de serem estanques e admitirem a existência de apenas dois gêneros possíveis
e opostos: o feminino e o masculino. Essa forma de compreender os gêneros
complexifica largamente as discussões sobre as diferenças postas sobre os corpos
sexualizados.
Inicialmente, coloca em xeque a própria distinção entre sexo e gênero, na
medida em que a maneira como os seres humanos definem e separam o que é biológico
e o que é cultural (ou, a distinção entre cultura e natureza) também é um processo que
se constrói com base em relações sociais de poder. Assim, “[...] a ‘diferença sexual’ foi
estabelecida não somente como um fato natural, mas também como uma base
ontológica para diferenciação política e social.” (SCOTT, 2005, p. 21).
Quando os movimentos feministas começaram a utilizar o termo ‘mulher’ foi
em uma tentativa de construir categoria que servisse de oposição a de homem, que se
apresentava como universal, neutra e inclusiva (PEDRO, 2005). Era, em alguma medida,
um modo de demonstrar que a categoria “homem” não era capaz de incluir toda a
humanidade. Contudo, em seguida, foi possível perceber que a própria categoria mulher
também parecia pretender uma universalidade que não era coerente com a vida
cotidiana das diversas mulheres que buscavam no feminismo um movimento que
representasse suas demandas e reivindicações. Mulheres lésbicas não se sentiam
representadas dentro de um feminismo heteronormativo. Mulheres negras não se
sentiam incluídas quando as bandeiras e as lutas promovidas pelo movimento eram
quase que totalmente questões relevantes para as mulheres brancas, apenas. Mais do
que isso, inúmeras vezes o próprio movimento feminista acabava sendo espaço de
perpetuação da heteronormatividade e do racismo3.
Desse modo, é possível perceber a justificativa e a importância da existência
dos diversos feminismos que buscam dar conta da diversidade existente dentre as
mulheres, bem como, a própria categoria mulher passa a ser gradativamente substituída

3Sobre isso, ver Angela Davis (2016) e sua abordagem sobre as disputas em torno do direito das mulheres
ao voto nos Estados Unidos.

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pela categoria mulheres, ou ao menos, compreendida como categoria que abarca ampla
gama de diversidade. Como bem sintetiza a indiana, feminista e militante do movimento
antirracista Avtar Brah:
Nosso gênero é constituído e representado de maneira diferente segundo
nossa localização dentro de relações globais de poder. Nossa inserção
nessas relações globais de poder se realiza através de uma miríade de
processos econômicos, políticos e ideológicos. Dentro dessas estruturas de
relações sociais não existimos simplesmente como mulheres, mas como
categorias diferenciadas, tais como “mulheres da classe trabalhadora”,
“mulheres camponesas” ou “mulheres imigrantes”. Cada descrição está
referida a uma condição social específica. Vidas reais são forjadas a partir de
articulações complexas dessas dimensões. É agora axiomático na teoria e
prática feministas que “mulher” não é uma categoria unitária. (BRAH, 2006,
p.341)

O conceito de interseccionalidade, portanto, pode ser um meio importante


para análises não essencialistas das diferenças e das desigualdades sociais. Dessa forma,
na seção seguinte, serão abordadas as características centrais do conceito para
posteriormente considerar sua aproximação com o campo internacional dos Direitos
Humanos.

3. Elementos Centrais para compreender a Interseccionalidade

No primeiro texto em que utiliza o termo interseccionalidade, Kimberlé Crenshaw (1989)


buscou examinar a tendência de tratar raça e gênero enquanto categorias de análises e
de experiências concretas mutuamente excludentes. Observou como essa tendência
perpetua-se devido à forma de eixo-único que domina a produção das leis contra a
discriminação racial e as teorias feministas e antirracistas. A autora sugere que esse
modo de eixo-único invisibiliza as mulheres negras na conceitualização, identificação e
na remediação quanto à discriminação de raça e gênero, sendo limitadas pelas
experiências dos outros membros do grupo, mais privilegiados – no caso do movimento
antirracista os privilegiados são os homens negros, e no caso da discriminação de gênero
as privilegiadas são as mulheres brancas. Esse cenário cria, portanto, análises e
estratégias distorcidas sobre racismo e discriminação de gênero (CRENSHAW, 1989, p.
140). Tal distorção ocorre porque “[...] as concepções operativas de raça e sexo se

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tornam ancoradas em experiências que, na realidade, representam apenas um


subconjunto de um fenômeno muito mais complexo” (CRENSHAW, 1989, p. 140).
É importante compreender que, de acordo com Crenshaw (1989, p. 140), para
resolver o problema da invisibilidade da mulher negra quanto aos processos de exclusão
e marginalização não basta incluí-las em uma já estabelecida estrutura de análise. Isso
ocorre porque a experiência interseccional é maior do que o racismo e o sexismo,
consequentemente, uma análise que não tome em consideração a interseccionalidade
não será suficientemente capaz de lidar com a situação particular de subordinação que é
imposta às mulheres negras.
Dessa maneira, o conceito de interseccionalidade sofreu influência dos
debates que vinham ocorrendo dentro do feminismo, enquanto movimento social,
especialmente no âmbito dos feminismos negros. Isso se deu em razão dos
questionamentos que os feminismos negros fazem sobre os propósitos de um
movimento majoritariamente centrado em questões que afetavam mulheres brancas,
heterossexuais e de classe média, momento no qual se proliferam as reinvindicações por
um feminismo capaz de atender também as demandas de mulheres negras,
homossexuais, transexuais, pobres, migrantes, entre outras.
Parte dos debates teóricos que ocorreram a partir da década de 1980, que
contribuíram para reduzir a rigidez da distinção entre sexo e gênero, como já abordado
anteriormente, também foram influenciados por essas reinvindicações no campo social.
Contudo, como muito bem sintetiza Adriana Piscitelli (2008, p. 265):
[...] as reelaborações teóricas não incorporaram as exigências de prestar
atenção a outras diferenças, para além da sexual, de maneira homogênea.”;
ou seja, as análises acadêmicas acerca das desigualdades de gênero
continuam sem incorporar outras categorias de opressão relevantes.

Por essa razão, o surgimento do conceito de interseccionalidade vem suprir


uma lacuna analítica sobre as relações de opressão que surgem para além das relações
de gênero e que com ela interage de forma indissociável. Nas palavras de Carla
Akotirene (2018, p. 13) “Tal conceito é uma sensibilidade analítica, pensada por
feministas negras, cuja experiência e reivindicações intelectuais eram inobservadas tanto
pelo feminismo branco quanto pelo movimento antirracista, a rigor, focado nos homens
negros”.
Em função disso, interseccionalidade pode ser definida como uma ferramenta
analítica, capaz de contribuir para a solução de problemas muitas vezes invisibilizados.

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Conforme Kimberlé Crenshaw (2002, p.177): “A interseccionalidade é uma conceituação


do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação
entre dois ou mais eixos da subordinação”, algo que a autora faz muito bem em sua
análise acerca da violência contra as mulheres negras no texto intitulado: ‘Mapping the
Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color’
(1991). Nessa obra, a autora traça distinções conceituais fundamentais, além de
relacionar sua teoria com situações concretas nas quais as mulheres negras estão mais
propensas às violências, aos estupros, às desigualdades, e, principalmente, como essas
experiências possuem características e consequências específicas.
Kimberlé Crenshaw apresenta o conceito de interseccionalidade estrutural
(1991; 2002), utilizando dois eixos de violência contra as mulheres: a agressão física
(battering) e o estupro. Quanto à agressão física, Crenshaw apresenta dados que obteve
de um estudo no qual visitou alguns abrigos para mulheres agredidas de Los Angeles,
destinado majoritariamente às mulheres negras e outro às mulheres asiáticas. Uma
conclusão relevante de seu estudo é que, na maior parte dos casos, a violência física é a
manifestação mais imediata que leva as mulheres aos abrigos, mas é, também, apenas
uma parte de múltiplas experiências de subordinação às quais essas mulheres estão
expostas, de modo que, grande parte delas, estão desempregadas ou em subempregos
e são pobres (CRENSHAW, 1991, p. 1245).
A autora aborda a forma como essa estrutura de discriminação contribui para
que as mulheres negras se encontrem em uma situação particular de vulnerabilidade, na
medida em que elas são as principais responsáveis pela criação das crianças, estão
sobrecarregadas pela pobreza e lhes faltam certas habilidades de trabalho que são
socialmente valorizadas. Esses encargos são resultados de combinação das estruturas de
discriminação de gênero e de discriminação racial, de modo que o
desproporcionalmente alto desemprego ao qual estão sujeitas pessoas negras faz com
que essas mulheres tenham menores chances de conseguirem abrigar-se na casa de
amigas(os) ou familiares quando são vítimas de violência doméstica (CRENSHAW, 1991,
p.1246). Desse modo, Crenshaw (1991, p. 1246) destaca que o sistema de raça, gênero e
classe convergem para as experiências que vivem as mulheres agredidas em seus lares e,
consequentemente, estratégias de intervenção que se baseiam apenas nas experiências
das mulheres que não compartilham de contextos socioculturais semelhantes – não

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possuem os mesmos backgrounds – de classe e raça, são limitadas na busca por ajudar
mulheres que enfrentam obstáculos diferentes.
Para demonstrar isso, ela utiliza o exemplo da lei de imigração que definiu que
para obter a cidadania estadunidense é necessário, não apenas, casar-se com um (a)
cidadão ou cidadã, mas, também, que as pessoas permaneçam casadas por pelo menos
dois anos. Diante de tal regra, muitas mulheres migrantes suportavam diversas formas
de violência doméstica e agressões física, com medo de serem deportadas. Para coibir
esse tipo de violência, a lei foi alterada e passou a permitir exceção à regra dos dois
anos, caso se possa apresentar alguns documentos tais como boletim de ocorrência ou
laudos médicos que atestem a violência sofrida pela mulher. Contudo, o que o legislador
não percebeu é que para muitas dessas mulheres há dificuldades culturais e linguísticas
que tornam extremamente difícil conseguir a documentação solicitada:
Tina Shum, uma conselheira familiar em uma agência de serviço social,
aponta que "esta lei soa tão fácil de aplicar, mas existem complicações
culturais na comunidade asiática que fazem com que até mesmo esses
requerimentos sejam difíceis... Simplesmente encontrar a coragem e a
oportunidade para nos ligar é uma realização para muitas." A esposa
imigrante típica, ela sugere, talvez viva "em uma família estendida onde
várias gerações vivem juntas, talvez sem nenhuma privacidade para usar o
telefone, nenhuma oportunidade de sair da casa e nenhum conhecimento
sobre telefones públicos." Como consequência, muitas mulheres imigrantes
são completamente dependentes de seus maridos para adquirir
informações concernentes ao seu status legal. Muitas mulheres que agora já
são residentes permanentes continuam a sofrer abusos de seus maridos sob
ameaça de deportação. Mesmo que as ameaças sejam infundadas, mulheres
que não tem acesso independente a informações continuarão a se sentir
intimidas por tais ameaças. [...] Barreiras linguísticas apresentam outro
problema estrutural que frequentemente limita as oportunidades que
mulheres não falantes de inglês têm para tirar vantagem dos serviços de
apoio existentes. Tais barreiras não apenas limitam o acesso a informações a
respeito de abrigos, mas também limitam o acesso a segurança que os
abrigos oferecem. Alguns abrigos rejeitam mulheres não falantes de inglês
por falta de pessoal bilíngue e de recursos. (CRENSHAW, 1991, p.1248-1249)

Desse modo e partindo de situações reais, Crenshaw busca demostrar como os


padrões de subordinação interagem nas experiências sobre a violência doméstica, de
maneira que a subordinação interseccional não precisa ser intencionalmente produzida
– comumente, ocorre de forma não intencional. De fato, costuma ser consequência de
um fardo ou obrigação que interage com outras formas de subordinação pré-existentes
(CRENSHAW, 1991, p. 1249). No caso citado, o fardo é a obrigação legal de estar casada
por dois anos (ou a possibilidade de não ficar casada em caso de violência doméstica,

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mas com a necessária comprovação do ocorrido) e a situação de subordinação já


existente é o fato de se tratarem de mulheres migrantes, não-falantes da língua do país,
muitas vezes pobres e negras. A união desses dois elementos (o fardo imposto
estruturalmente e o local prévio de exclusão) torna as experiências dessas mulheres
vítimas de violência doméstica completamente distintas daquelas mulheres vítimas de
violência doméstica que são cidadãs no Estado onde estão, dominam o idioma e,
portanto, acessam as informações sobre seus direitos e possuem algum recurso
financeiro, bem como uma rede de amizades e/ou familiares vivendo no país.
O fato de que mulheres que fazem parte de minorias sofram dos efeitos de
subordinações múltiplas, combinados com expectativas institucionais
baseadas em contextos não-interseccionais inapropriados, modela e em
última instância limita as oportunidades para intervenções significativas em
prol delas. Reconhecer o fracasso ao considerar dinâmicas interseccionais
pode favorecer muito a explicação dos altos níveis de falha, frustração e
exaustão vivenciados por conselheiras que tentam atender às necessidades
de mulheres que fazem parte de minorias. (CRENSHAW, 1991, p. 1249)

Essas pesquisas de Crenshaw tornam evidente a importância da compreensão


de que a subordinação interseccional é notoriamente um processo particular e
complexo que resulta em barreiras abusivas no acesso aos direitos humanos. É possível
compreender que, em grande parte, as políticas públicas para as mulheres fracassam
em alcançar aquelas que não são brancas, nacionais ou classe média – tal como
mulheres negras, latinas ou imigrantes – posto que existem diferenças qualitativas nas
experiências dessas mulheres que não são percebidas no momento de elaboração e de
execução das políticas públicas que buscam garantir a elas o acesso a direitos.
Uma mulher negra pertence a, de acordo com Crenshaw (1991, p. 1252), pelo
menos, dois grupos que são subordinados na sociedade e que, além disso, possuem
muitas vezes agendas conflitantes. A autora destaca que a agenda do movimento
antirracista é pautada em virtude das experiências e demandas dos homens negros,
enquanto a agenda do movimento feminista é pautada pelas demandas e experiências
das mulheres brancas. Em função disso, ambos os movimentos não apenas fracassam
em incluir as questões que dizem respeito às mulheres negras, como também fracassam
ao não perceber que muitas vezes o racismo que uma mulher negra sofre não é idêntico
ao racismo que um homem negro sofre, bem como, que o sexismo que afeta mulheres
negras em diversos momentos não é uma experiência equivalente ao sexismo que

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agride as mulheres brancas. Ou seja, as lutas antirracistas e o movimento feminista são


limitados mesmo considerando seus próprios termos e objetivos, de modo que:
O fracasso do feminismo em confrontar-se com a questão da raça significa
que as estratégias de resistência do feminismo frequentemente reproduzem
e reforçam a subordinação das pessoas de cor4, e o fracasso do antirracismo
em interpelar o patriarcado significa que o antirracismo frequentemente
reproduzirá a subordinação das mulheres. Essas elisões mútuas apresentam
um dilema político particularmente difícil para mulheres de cor. Adotar
qualquer uma das duas análises constitui-se em uma negação de uma
dimensão fundamental de nossa subordinação5 e impede o
desenvolvimento de um discurso político que empodere mais plenamente
as mulheres de cor. (CRENSHAW, 1991, p. 1252)

É possível, a partir dessas considerações, compreender dois conceitos que


Crenshaw utiliza para destacar como as questões que afetam mulheres negras podem
ser totalmente invisibilizadas ou estar pouco representadas quando se trata das lutas
dos movimentos sociais antirracista e feminista, assim como, no campo da produção do
conhecimento sobre gênero e raça. Trata-se dos conceitos de superinclusão e
subinclusão, que significam observar que “nas abordagens subinclusivas da
discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas; enquanto que, em
abordagens superinclusivas, a própria diferença é invisível” (CRENSHAW, 2002, p. 176).
Quando se aborda a superinclusão, lida-se com um problema ou condição que
é desproporcionalmente imposta de modo particular e específico a um subgrupo de
mulheres e, no momento de abordar essa questão, ele é tratado apenas como um
problema de mulheres.
A superinclusão ocorre na medida em que os aspectos que o tornam um
problema interseccional são absorvidos pela estrutura de gênero, sem
qualquer tentativa de reconhecer o papel do racismo ou alguma outra
forma de discriminação possa ter exercido em tal circunstância.
(CRENSHAW, 2002, p. 174).

Em outras palavras, significa invisibilizar um problema que afeta


especificamente um subgrupo de mulheres supondo que a questão será abordada ao

4 O termo "pessoas de cor" possui uma conotação antirracista em inglês, por contraposição ao termo
"colored". Isso faz parte de uma tendência mais geral dos movimentos sociais em países anglófonos de
empregar algo que costuma ser chamado de "people-first language" (da mesma forma, prefere-se "pessoa
com deficiência" a "deficiente" por exemplo). É importante destacar este ponto, pois a expressão "pessoas
de cor" pode parecer racista a leitores e leitoras lusófonos.
5 "Nossa subordinação" refere-se à subordinação das mulheres negras. Esta é uma das muitas ocasiões em

que Crenshaw desafia a norma formal que aconselha o não-uso da primeira pessoa. Essa não é uma mera
idiossincrasia do texto, mas uma escolha deliberada, haja vista a importância da questão do lugar de fala
quando se discutem questões relativas à interseccionalidade das opressões.

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pensar na totalidade das mulheres o que acaba gerando um processo de abandono


daquele subgrupo em detrimento de um discurso dominado majoritariamente por
mulheres em condições de poder no grupo (por exemplo: mulheres brancas,
heterossexuais, não-pobres, dentre outras). Crenshaw (2002, p. 175) utiliza como
exemplo o discurso em torno do tráfico de mulheres e como é comumente ignorada a
marginalização racial e social que se relacionam diretamente com a maior probabilidade
de que certas mulheres sejam traficadas e outras não.
De forma paralela e igualmente prejudicial, as abordagens subinclusivas
ignoram quando um subgrupo de mulheres enfrenta determinados problemas dentre
várias razões, também pelo fato de que são mulheres. Contudo, isso não é tido como
um problema de gênero, simplesmente porque isso não afeta outras mulheres que
pertencem especialmente aos grupos dominantes. O mesmo tende a ocorrer quando
um problema é direcionado às mulheres negras e, na medida em que não afeta
diretamente os homens negros, isso não é visto como um problema do movimento
antirracista, não é entendido como uma questão de discriminação étnico-racial,
supondo tratar-se, exclusivamente, de um problema de gênero.
Assim sendo, é importante considerar que esses dois problemas recorrentes
nas análises e elaborações de políticas para acesso a direitos podem ser minimizados
com a adequada utilização da perspectiva interseccional. Na medida em que essas são
questões já postas no campo feminista há quase duas décadas, compreende-se melhor a
afirmação da socióloga estadunidense Leslie McCall de que as/os feministas talvez sejam
as únicas pessoas que abraçaram o desafio de lidar com a interseccionalidade, ou seja,
“as relações entre múltiplas dimensões e modalidades de relações sociais e formações de
sujeitos” (McCALL, 2005, p. 1771).
McCall (2005) acredita ser a interseccionalidade a maior contribuição teórica
feita pelos estudos de gênero e áreas afins, até o momento. Em grande medida, essa
constatação decorre do fato de que a maior parte dos esforços por compreender,
instrumentalizar e melhor aplicar o conceito tem ocorrido no campo teórico dos estudos
de gênero. O potencial transformador dessa categoria de análise ainda está sendo
descoberto, mas, sem dúvida, já demonstra que para lidar com as questões que afetam
as mulheres negras e/ou as mulheres indígenas, não basta incluí-las no discurso sem que
se faça uma revisão das próprias categorias de análises e metodologias. A importância

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disso não se limita à produção de conhecimento em si mesma, mas, também, reflete-se


na busca por efetivar o acesso aos direitos humanos:
A garantia de que todas as mulheres sejam beneficiadas pela ampliação da
proteção dos direitos humanos baseados no gênero exige que se dê atenção
às várias formas pelas quais o gênero intersecta-se com uma gama de outras
identidades e ao modo pelo qual essas intersecções contribuem para a
vulnerabilidade particular de diferentes grupos de mulheres. Como as
experiências específicas de mulheres de grupos étnicos ou raciais definidos
são muitas vezes obscurecidas dentro de categorias mais amplas de raça e
gênero, a extensão total da sua vulnerabilidade interseccional ainda
permanece desconhecida e precisa, em última análise, ser construída a
partir do zero. (CRENSHAW, 2002, p.174)

A proposta de Crenshaw, em seu texto, é justamente ajudar a compreender


como as experiências particulares das mulheres não-brancas são invisibilizadas nos
discursos sobre direitos, “Onde os contornos específicos da discriminação de gênero não
são bem compreendidos, as intervenções para tratar de abusos aos direitos humanos
das mulheres serão provavelmente menos efetivas.” (CRENSAHW, 2002, p. 174). Por
essa razão, analisa-se na seção seguinte de que modo a interseccionalidade tem sido
inserida no âmbito internacional dos Direitos Humanos, utilizando como exemplares os
textos e os Comitês de duas Convenções Internacionais dedicadas à proteção das
mulheres e das pessoas negras.

4. A inclusão da Interseccionalidade no âmbito Internacionais dos Direitos Humanos

Um dos textos de Kimberlé Crenshaw mais popularizados no Brasil foi aquele destinado
à Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias
Correlatas, que ocorreu em Durban, África do Sul, em 2001. Sua popularização no país,
em grande medida, ocorreu por ter sido traduzido para o português em 2002 pelo
importante periódico da Revista Estudos Feministas. Além disso, esse ainda é um dos
poucos materiais de Crenshaw com tradução para o português. Esse texto de Crenshaw
é também um marco no que diz respeito à inclusão da interseccionalidade no âmbito
internacional dos Direitos Humanos.
Como muito bem identificaram Collins e Bilge (2016) a partir do convite do
Comitê de preparação para a Conferência a Crenshaw e a apresentação de seu position
paper, as referências ao conceito da interseccionalidade (mesmo que com outras

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nomenclaturas) tornou-se cada vez mais comum no âmbito internacional dos Direitos
Humanos. Em sentido semelhante, Maylei Blackwell e Nadine Naber (2002) destacam
como a interseccionalidade influenciou a referida Conferência e como a compreensão
da existência de “intolerâncias correlatas” passou a integrar as análises sobre os
processos discriminatórios que experienciam as diversas mulheres no mundo.
Nesse sentido, a compreensão de Carla Akotirene em diálogo com a definição
apresentada por Crenshaw reforça que “a interseccionalidade é, antes de tudo, lente
analítica sobre interação estrutural em seus efeitos políticos e legais.” (AKOTIRENE,
2018, p. 58). Portanto, a aproximação do conceito com o campo dos Direitos Humanos
tem se expandido em distintos espaços.
Aqui optou-se por analisar, em particular, as questões de gênero e para isso,
vale iniciar com a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra a Mulher – CEDAW (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1979). Ela tem como
principal objetivo sistematizar os direitos humanos destinados às mulheres – rompendo
com a visão pretensamente universalista dos direitos do homem, que, ao acenar com a
falsa promessa de que o termo era neutro com relação a sexo e gênero, expurgava a
possibilidade de se discutir sobre os direitos das mulheres. A Convenção foi promulgada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979 e ratificada pelo Brasil em 1984.
A partir disso, há o compromisso do Brasil de realizar relatórios acerca da
implementação das diretrizes da Convenção no país, assim como a respeito dos avanços
e retrocessos no acesso das mulheres aos Direitos Humanos. O Comitê da CEDAW
analisa, então, os relatórios e produz sugestões diretamente ao país, bem como,
recomendações gerais para todos os Estados signatários. A perspectiva de gênero
incorporada ao discurso dos Direitos Humanos, que se fortaleceu com o surgimento da
CEDAW, está relacionada com o período recente da história dos direitos humanos.
Ao longo da última década, em consequência do ativismo das mulheres,
tanto em várias conferências mundiais como no campo das organizações de
direitos humanos, desenvolveu-se um consenso de que os direitos humanos
das mulheres não deveriam ser limitados apenas às situações nas quais seus
problemas, suas dificuldades e vulnerabilidades se assemelhassem aos
sofridos pelos homens. A ampliação dos direitos humanos das mulheres
nunca esteve tão evidente como nas determinações referentes à
incorporação da perspectiva de gênero (gender mainstreaming) das
conferências mundiais de Viena e de Beijing. [...] Assim, enquanto no
passado a diferença entre mulheres e homens serviu como justificativa para
marginalizar os direitos das mulheres e, de forma mais geral, para justificar a
desigualdade de gênero, atualmente a diferença das mulheres indica a
responsabilidade que qualquer instituição de direitos humanos tem de

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incorporar uma análise de gênero em suas práticas. (CRENSHAW, 2002, p.


172).

Partindo dessa perspectiva, gênero torna-se um elemento que deve ser


transversalmente incluído nos tratados e convenções sobre Direitos Humanos. Um bom
exemplo de como isso tem se dado é a inclusão da discussão de gênero feita pelo
Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD) em sua
Recomendação nº. 25, na qual passa a reconhecer a incorporação da análise de gênero
em seu campo de ação (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2000).
A Recomendação nº. 25, que aborda as questões de gênero relacionadas à
discriminação étnico-racial, destaca desde o princípio que o CERD reconhece que a
discriminação racial não afeta mulheres e homens em igual escala nem do mesmo
modo. A Recomendação traz grande contribuição quando reconhece que há
circunstâncias em que a discriminação racial afeta apenas ou, sobretudo as mulheres ou
as atinge de forma diferenciada, ou ainda, com um grau diferente de impacto em suas
vidas. Ao tomar essas questões em consideração, o CERD reconhece que, muitas vezes,
tais processos discriminatórios escapam à detecção ao não haver um reconhecimento
explícito das diferentes experiências de vida de homens e mulheres, tanto na esfera
pública quanto privada (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2000).
Ao abordar a interseccionalidade das violações de direitos sofridas pelas
mulheres, o CERD apresentou uma estratégia para incluir as questões de gênero nas
análises sobre o combate à discriminação racial, destacando quatro eixos a partir dos
quais as questões de gênero serão incorporadas nas análises: (a) formas e
manifestações da discriminação racial; (b) as circunstâncias nas quais ocorre a
discriminação racial; (c) as consequências da discriminação racial, e; (d) a disponibilidade
e a acessibilidade aos recursos e mecanismos de reclamação e denúncia da
discriminação racial. Além disso, o Comitê expressou seu interesse de que os relatórios
dos países signatários da ICERD (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1965) busquem
evitar a comum lacuna sobre a discriminação racial sofrida pelas mulheres, convidando-
os a descrever os fatores quantitativos e qualitativos que afetam e dificultam a garantia
e o gozo dos direitos das mulheres de viverem livres da discriminação racial
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2000).

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Em nível doméstico, poucos países cumpriram a tarefa de garantir que os


danos interseccionais pudessem ser efetivamente remediados. Apesar disso,
relevantes tratados sobre a discriminação exigem que os países signatários
proponham uma legislação nacional que aborde tanto a discriminação racial
quanto a de gênero. Se os mecanismos nacionais não são capazes de tratar
desses problemas interseccionais, as mulheres marginalizadas não podem
receber toda a proteção a que teriam direito. Portanto, países que não
fornecem soluções para a discriminação interseccional não cumprem
totalmente suas obrigações. A fim de preencher essa lacuna, é essencial não
apenas que o gênero seja incorporado aos relatórios e revisões dos países
por meio da CERD, mas também que a raça seja similarmente incorporada
ao funcionamento de todas as instituições e órgãos da ONU, incluindo a
CEDAW, a DAW e a Comissão sobre a Condição da Mulher (Commission on
the Status of Women/CSW). (CRENSHAW, 2002, p.186)

Nesse sentido, Kimberlé Crenshaw (2002) já demonstrava desde o início dos


anos 2000, tal qual posto no início dessa seção, a importância da incorporação do
elemento étnico-racial nas discussões em torno dos Direitos Humanos das mulheres,
tanto no campo do direito internacional quanto na produção legislativa e jurisprudencial
dos países signatários das CEDAW, bem como das demais convenções internacionais de
direitos humanos.
A CEDAW, por sua vez, possui em sua origem uma proposta fundamental de
não discriminação com base nas diferenças entre os sexos e é possível identificar a partir
da Recomendação nº. 28 a incorporação da preocupação com a discriminação com base
nas diferenças de gênero (CAMPBELL, 2015, p. 486). Através do estudo desenvolvido por
Meghan Campbell (2015, p. 483), é possível identificar alguns avanços na inclusão da
interseccionalidade nas análises e propostas do Comitê CEDAW. A autora afirma que os
textos da CEDAW e do Comitê CEDAW foram capazes de compreender de modo
sofisticado a discriminação interseccional, razão pela qual, as discriminações com base
nas diferenças de sexo e de gênero não são analisadas de maneira isolada das demais
formas de discriminação (CAMPBELL, 2015, p. 490). É interessante que a única menção
no texto da CEDAW à pobreza e à etnia está em seu preâmbulo. Contudo, como
observou Campbell (2015, p. 494), as recomendações do Comitê CEDAW têm reforçado
a importância dessas categorias e a própria desigualdade interseccional.
Vale destacar que a interseccionalidade não se confunde com o princípio da
transversalidade que foi introduzido em 1995, pela Conferência de Beijing e,
posteriormente, incluído nas propostas da União Europeia. A transversalidade parte:
[…] da consideração de que as ações, as políticas e os programas têm
resultados diferentes para homens e mulheres. Por esse motivo, a

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perspectiva das mulheres deve ser considerada no desenho, na


implementação, no surgimento e na avaliação das políticas e dos programas
em todos os âmbitos, com o objetivo de que homens e mulheres sejam
beneficiados igualmente e que a desigualdade não se perpetue. Incluindo
atividades específicas e ações positivas porque as posições de largada para
homens e mulheres não são iguais. (MOLINA, 2012, p. 205).

A transversalidade, portanto, é um importante princípio do campo do direito


internacional, pois contribuiu para se pensar além do discurso pretensamente
universalizante que acabava por excluir as mulheres. Porém, a transversalidade não se
confunde com a interseccionalidade, visto que essa remete a qualquer processo de
marginalização que interage com outras categorias excludentes, para além do gênero,
criando uma situação específica de vulnerabilidade. Como muito bem destacado pela
professora espanhola Carmen Molina (2012, p. 205), os dois conceitos são ferramentas
complementares na busca pela superação das desigualdades de gênero, na medida em
que a interseccionalidade contribui para tornar visíveis as diferentes realidades nas
quais se encontram as mulheres, podendo, assim, melhorar a própria estratégia política.
Na pesquisa de Marília Ortiz (2013) é possível perceber como a
interseccionalidade tem se aproximado do campo das políticas públicas no Brasil, em
especial a partir das Secretarias que lidavam com conceitos como raça e gênero de
modo transversal. A conclusão apresentada pela autora é de que, predomina no Brasil,
apenas uma superinclusão de termos e a permanência de uma estrutura pensada para
lidar com categorias monolíticas de discriminação.
Tal constatação é semelhante à conclusão do estudo de Emanuela Lombardo e
Mieke Verloo (2009) sobre a possível institucionalização da interseccionalidade na União
Europeia. Nessa pesquisa, as autoras concluíram que os marcos legais da União Europeia
não estão de fato usando a interseccionalidade em sua complexa e transformadora
concepção, mas sim, justapondo categorias de desigualdades sem, de fato, intersectá-
las.
Essas pesquisas demonstram que é bastante coerente a preocupação de
Crenshaw de que não se confunda interseccionalidade com a mera adição de conceitos
(CRENSHAW, 2002, p. 175). Por essa razão, Akotirene reforça que:
“A interseccionalidade impede aforismos matemáticos hierarquizantes ou
comparativos. Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições
estruturais atravessam corpos, quais posicionalidades reorientam
significados subjetivos desses corpos [...]” (AKOTIRENE, 2018, p. 39).

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Por essa razão, vale retomar a crítica apresentada por Collins e Bilge (2016, p.
86), segundo a qual as interpretações existentes na academia sobre interseccionalidade,
após sua institucionalização, minou parte do potencial crítico do conceito. Anna
Carastathis também identifica esse mesmo problema na forma como a
interseccionalidade foi incorporada pela academia e no campo político:
Inicialmente, a interseccionalidade objetivava explicitamente contestar
essas dinâmicas representativas, discursivas e intersubjetivas dentro dos
movimentos antirracistas e feministas que buscavam transformar as
relações sociais. No entanto, muito do que a análise de Crenshaw revelou
sobre identidades, opressões e luta política foi esquecida – alguns dizem
sistematicamente (Bilge 2013) – à medida que a interseção tornou-se
integrada como um projeto intelectual institucionalizado. Embora a
interseccionalidade tenha se tornado um axioma da teoria e da pesquisa
feministas e tenha sido "institucionalizada" (Nash 2008) em discursos
acadêmicos e, cada vez mais, em discursos sobre direitos humanos e na
estrutura política, abundantes ou vagas referências à "interseccionalidade"
se proliferaram e podem obscurecer uma crítica sólida dos hábitos
cognitivos profundamente enraizados que informam o pensamento
feminista e antirracista sobre opressão e privilégio. Em outras palavras,
paradoxalmente, o sucesso da interseccionalidade pode marcar seu
fracasso, a ampla viagem do conceito se dá por sua apreensão superficial.
(CARASTATHIS, 2016, p. 42).

Desse modo, é preciso que se construam análises críticas sobre a ampliação do


uso da interseccionalidade na academia, no campo das políticas públicas e do acesso aos
Direitos Humanos, inclusive focado na realidade brasileira. Carla Akotirene (2018) é um
notório exemplo desse tipo de análise. A autora também reforça a importância de
perceber com atenção esses processos de incorporação do conceito no campo do
Direito, para que não perverta a proposta inicial de uma compreensão crítica e acabe
reforçando o status quo. A autora indica, portanto, os perigos de uma apropriação
violenta da interseccionalidade que sirva para reforçar estruturas racistas de poder, tal
qual o próprio discurso punitivista do Estado (AKOTIRENE, 2018, p. 47).
Sendo assim, é válido destacar que o uso de termos como interseccionalidade
ou de outras categorias para além do gênero em documentos sobre Direitos Humanos
das mulheres não caracteriza, por si só, a presença de uma visão interseccional. É
preciso que se reconheça que apesar dos documentos internacionais sobre Direitos
Humanos não prescreverem qualquer desigualdade formal no acesso a direitos, esse
ainda se dá de forma desigual. Eis um aspecto importante da inclusão da
interseccionalidade no campo normativo internacional, dar visibilidade a essas
desigualdades de acesso e demonstrar de que forma ela se constitui. Nesse sentido:

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A despeito dos direitos humanos permitirem acesso irrestrito,


independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou
qualquer outra condição, as mulheres negras se veem diante dos
expedientes racistas e sexistas das instituições públicas e privadas por lhes
negarem primeiro trabalho e, depois, o direito humano de serem
reclamantes da discriminação sofrida. A interseccionalidade instrumentaliza
os movimentos antirracistas, feministas e instâncias protetivas dos direitos
humanos a lidarem com as pautas das mulheres negras. (AKOTIRENE, 2018,
p. 57).

É possível perceber, portanto, que não se trata apenas de incluir dentre as


recomendações – seja por parte do Comitê CEDAW ou do CERD – que se reduza as
desigualdades entre mulheres brancas e mulheres negras e indígenas. Tal inclusão pode
ser considerada um primeiro passo, mas ela não contempla a reformulação estrutural
ou a inclusão de novas ferramentas analíticas que se faz indispensável para uma política
de acesso a direitos conseguir romper com as desigualdades interseccionalmente
construídas.
Os avanços quanto à inclusão da interseccionalidade nas recomendações do
Comitê CEDAW possuem inconsistências relevantes, de acordo com o estudo
desenvolvido por Meghan Campbell (2015, p. 498). Apesar disso, demonstram o
potencial do conceito na busca por novas formas de lidar com os problemas no acesso
aos Direitos Humanos, partindo da compreensão da desigualdade interseccional. Seria,
portanto, relevante não apenas melhorias na inclusão da interseccionalidade do cenário
internacional dos Direitos Humanos, como também, a inclusão do conceito no cenário
nacional, aprofundando o debate e contribuindo para a melhoria das estratégias que
visam à concretização no acesso aos Direitos Humanos.

5. Conclusão

Ao promover o debate acerca do conceito de interseccionalidade das opressões e


desigualdades interseccionais, desenvolveu-se brevemente alguns elementos essenciais
para a ampliação e inclusão do tema na agenda dos Direitos Humanos. Foi possível
verificar que, por meio da revisão bibliográfica realizada, aliar a interseccionalidade aos
discursos e práticas sobre os Direitos Humanos é imprescindível para consolidar e
ampliar o acesso a tais Direitos.

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Não se trata da inclusão de um termo a mais no momento de elaboração das


estratégias que visam à concretização dos Direitos Humanos, mas sim, uma nova forma
de compreender a importância que distintos aspectos possuem na limitação do acesso a
tais direitos. Essa compreensão possibilita novas estratégias que estarão mais aptas a
lidar com a realidade de significativa parcela da população.
O acesso das mulheres aos Direitos Humanos é, há algumas décadas, o
fundamento e o objetivo de diversas legislações, inclusive no cenário internacional,
sendo a CEDAW um dos mais relevantes documentos. A interseccionalidade tem um
potencial significativo na busca por sanar lacunas que comumente tornam ineficazes tais
mecanismos de promoção dos Direitos Humanos para uma significativa parcela de suas
destinatárias. Observar como a interseccionalidade tem progressivamente ganhado
espaço no cenário internacional de proteção dos Direitos Humanos desde o início dos
anos 2000, bem como de que modo isso tem surgido em propostas específicas do
Comitê CEDAW e do CERD é relevante para acompanhar como esse conceito, que surge
nos movimentos sociais de mulheres negras chega na academia com um caráter crítico,
está sendo apropriado nos discursos de organizações internacionais e Estados.
Desse modo, aproxima-se das críticas sobre o modo como a institucionalização
da interseccionalidade tem recorrentemente minado seu potencial crítico, assim como,
o fato de que têm sido limitadas as estratégias que buscam abandonar a compreensão
monolítica de conceitos como gênero e raça. Dessa forma, reconhece-se como
indispensável à ampliação acerca da complexidade da interseccionalidade, bem como, a
importância da construção de estratégias capazes de lidar com as desigualdades
interseccionalmente estruturadas.
Apesar das preocupações com o esvaziamento do conceito, não há como negar
que a interseccionalidade possui grande potencial na busca por concretizar o acesso aos
Direitos Humanos em um país historicamente desigual e marcado pela exclusão social
baseada em elementos como a raça, a classe, a orientação sexual e a identidade de
gênero. Ampliar a compreensão sobre a interseccionalidade das desigualdades sociais
no país, é uma forma de promover mecanismos mais adequados para saná-las. Busca-se
romper, assim, com o discurso que inclui apenas uma parcela específica e minoritária
das mulheres brasileiras – brancas, heterossexuais e classe média ou alta – a partir da
compreensão de que elementos estruturais como a raça, produzem processos de
exclusão particulares e que, portanto, demandam ferramentas particulares para

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solucioná-los. Sem tal reconhecimento, corre-se o risco de que se continue perpetuando


exclusões com base em um discurso que apenas formalmente defende o acesso de
todas as pessoas aos Direitos Humanos.

6. Referências bibliográficas

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Joana Stelzer e Gabriela M. Kyrillos
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/44747| ISSN: 2179-8966
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Sobre as autoras

Joana Stelzer
Doutora e Mestre em Direito, na área de Relações Internacionais (UFSC). Pós Doutora
em Direito (USP). Professora Associada I na UFSC. Professora credenciada no
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina
(PPGD/CCJ/UFSC) para Mestrado e Doutorado. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa
Centro de Estudos Jurídico-Econômicos e de Gestão do Desenvolvimento – CEJEGD. E-
mail: joana.stelzer@ufsc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9503-4080.

Gabriela M. Kyrillos
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós Doutora
em Direito e Justiça Social na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora
Adjunta do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande
(FURG). Líder do Grupo de Pesquisa Interseccionalidades e Decolonialidade nas
Relações Internacionais – INDERI. E-mail: gabrielakyrillos@furg.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-7237-4210.

As autoras contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Joana Stelzer e Gabriela M. Kyrillos
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Para uma sociologia da ressignificação


Towards a sociology of ressignification

João Paulo Bachur1


1 Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:

joao.bachur@idp.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3657-3965.

Artigo recebido em 11/10/2018 e aceito em 12/06/2019.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021 p. 263-295.
João Paulo Bachur
DOI: 10.1590/2179-8966/2019/37794| ISSN: 2179-8966
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Resumo
O conceito de ressignificação desenvolvido por Butler designa a inversão política de um
termo depreciativo por aqueles que dele fazem uso e que passam a lhe atribuir um
sentido positivo, afirmativo. Essa concepção, porém, permanece refém da teoria dos
atos de fala de matriz fonocêntrica. O artigo faz uma crítica da categoria da
ressignificação e sugere ampliá-la sociologicamente incorporando a mobilização coletiva
(Bourdieu) e a produção documental (Latour) como dimensões indispensáveis para
conferir materialidade aos processos históricos de ressignificação.
Palavras-chave: Teoria do discurso; Atos de fala; Ressignificação; Materialidade.

Abstract
Butler’s theory of ressignification addresses the political reversion of a depreciative
word by those who deploy it, using the originally prejudicial word in an affirmative way.
However, this conception remains attached to traditional speech act theories in its
phonocentric aspect. The paper submits Butler’s concept of ressignification to critic and
suggests a sociological expansion of ressignification by combining it with collective
political action (Bourdieu) and inscription processes (Latour). These two approaches
provide materiality to historical processes of ressignification.
Keywords: Discourse theory; Speech acts; Resignification; Materiality.

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Introdução

Judith Butler é uma das principais filósofas da atualidade e muitos de seus insights
reverberam para além das fronteiras dos estudos de gênero. É o caso do conceito de
ressignificação: desenvolvido no quadro de uma teoria performativa da política que
parte da discussão jurídica dos discursos de ódio nos Estados Unidos (Butler 1997a),
trata-se de categoria promissora para o aprofundamento da teoria sociológica, cujo
potencial analítico ainda está longe de se esgotar. A partir da teoria dos atos de fala de
Austin e da crítica de Derrida a ela, tem-se um processo de ressignificação quando um
termo tradicionalmente usado em sentido pejorativo ou depreciativo (e.g., “gay”,
“negro”, “lésbica” etc.) é politicamente invertido por aqueles que dele fazem uso e que
passam a lhe atribuir um sentido positivo, tornando-o afirmativo. O discurso se torna,
definitivamente, um campo de batalha em que signos e significados – e com eles
também a história – são disputados politicamente. Esse é um ganho incontestável da
teoria do discurso de Butler.
O problema, porém, é que essa concepção de ressignificação parece ainda
refém da teoria dos atos de fala de matriz fonocêntrica, o que limita seu alcance teórico.
Com efeito, quando é possível dizer, do ponto de vista da sociedade, que um termo foi
efetivamente ressignificado? A rigor, na esteira de Derrida, a linguagem (mas também a
consciência, a percepção etc.) só é possível como iterabilidade – uma repetição sem
origem no bojo da qual algo de novo é produzido, ainda que esse algo novo seja um
efeito de continuidade – de forma que todo uso linguístico é, em alguma medida, uma
espécie de ressignificação de usos linguísticos pretéritos (Derrida 1972). Isso nos coloca
outra questão: ressignificação ocorre a todo e qualquer momento? Ou é uma
condensação histórica de sentido? Como aferir, sociologicamente, a mudança de
sentido de um termo para além da intenção dos participantes no discurso? Do ponto de
vista da construção dessa categoria teórica, tem de ser possível apreendê-la
sociologicamente, isto é, observá-la e descrevê-la como um fenômeno social (i.e., da
sociedade, e não de seus indivíduos). Além disso, ressignificação pode ocorrer de forma
conservadora e reacionária – ou não? Como categoria linguística, nada há que, de saída,
lhe imponha um sentido político pré-determinado e necessariamente progressista ou
emancipatório, por assim dizer.

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Neste trabalho, importa-nos não a ressignificação em sua relação com a questão


de gênero, mas a leitura sociológica dessa categoria, em sua articulação com o discurso;
mas com o discurso compreendido como prática material, e não como uma espécie de
“superestrutura” ideológica que paira sobre uma “base” material. Compreendido como
prática material, o discurso supera a distinção canônica entre palavras e coisas e vincula
a produção de sentido a práticas institucionais (jurídicas, políticas, econômicas,
científicas etc.) que fundem enunciados, fatos e ações (cf. Foucault 1966, Derrida 1990,
Bourdieu 1972, Latour 1986, 2002, 2005 e 2012, Reckwitz 2010). Portanto, a teoria da
ressignificação de Butler será aqui lida exclusivamente no registro de uma teoria
sociológica – e, no limite, no bojo de uma teoria material do discurso, i.e., uma teoria
que compreende o discurso como prática social institucionalmente estruturada.
O artigo faz uma crítica da categoria da ressignificação tal como desenvolvida
por Butler e sugere ampliá-la com recurso às teorias do discurso de Pierre Bourdieu e
Bruno Latour, a fim de conferir materialidade à categoria da ressignificação,
incorporando a mobilização coletiva e a produção documental como dimensões
indispensáveis para operar, sociologicamente, processos de ressignificação. A crítica
aqui pretendida sustenta que, sem esses dois aportes materiais – a ação política coletiva
(Bourdieu) e alguma forma de inscrição documental (Latour) dessa ação política – a
ressignificação gira em falso e se torna, ao fim e ao cabo, uma categoria da consciência.
Mais ainda: uma categoria que reproduz o cacoete metafísico que identifica logos e
phone. Há que se considerar, inclusive, que as obras mais recentes de Butler procuram
justamente endereçar o primeiro desses aspectos (e.g., Butler 2018). Mas não há, ainda,
qualquer consideração da dimensão documental.
A argumentação se estrutura em quatro momentos: inicialmente, a categoria da
ressignificação é brevemente situada no contexto da evolução intelectual de Butler
(seção I). Na sequência, discutiremos os principais problemas presentes na formulação
teórica dessa categoria (seção II). Em seguida, procuraremos enriquecer a categoria da
ressignificação com uma teoria do discurso tornado prática pela ação coletiva (seção III)
e pela teoria das inscrições (seção IV). Acredita-se que, com isso, os processos sociais de
sedimentação e crítica (e, eventualmente, também de quebra) de narrativas
estabelecidas – incluindo posições hegemônicas de poder e dominação por elas
reproduzidas e legitimadas – poderão ser descritos de maneira mais acurada. No atual

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momento do país, nada melhor do que levar Butler realmente a sério do ponto de vista
de sua construção teórica1.

I. O giro linguístico de Butler

Butler se tornou uma das mais importantes pensadoras da atualidade ao problematizar,


no início dos anos 1990, o conceito central da teoria feminista – a mulher ou o corpo
feminino – enquanto ponto de partida dado, auto-evidente e suficiente em si mesmo
para orientar o movimento feminista. Considerando que a teoria de gênero emergiu no
bojo do movimento feminista, suas publicações iniciais provocaram fortes reações
contrárias, de sorte que o enquadramento de Butler no debate ainda divide opiniões (cf.
Benhabib, Butler, Cornell e Fraser 1995; Nussbaum 1999; Breen & Blumenfeld 2005; e
Hark 2005). Não temos aqui como entrar nos pormenores desse debate. A perspectiva
de Butler sobre sexo e identidade de gênero será aqui mobilizada única e
exclusivamente para situar a categoria da ressignificação em seu percurso teórico.
Em sua maioria, as teorias feministas têm assumido a existência de alguma
identidade, entendida pela categoria da mulher, que não apenas inicia os
interesse feminista e seus objetivos dentro do discurso, mas que constitui o
sujeito em nome de quem a representação política é perseguida. [...]
Recentemente, essa concepção dominante acerca da relação entre a teoria
feminista e a política foi desafiada por dentro do discurso feminista. A
própria mulher como sujeito não é mais entendida em termos estáveis ou
imutáveis. Há uma quantidade significativa de material que questiona a
viabilidade ‘do sujeito’ enquanto o candidato último para representação,
ou, ainda, para liberação, mas há muito pouco consenso acerca daquilo que
constitui, ou deveria constituir, a mulher enquanto categoria [conceitual
fundante da teoria feminista]. (Butler 1990, ps. 1/2, trad. livre).

O objetivo de Butler é não apenas contestar a binariedade do sexo biológico e a


implicação causal “sexo biológico → gênero → desejo sexual”, mas também apresentar
gênero e identidade de gênero como produtos de constelações de poder que se
fundamentam em uma matriz heterossexual. Com o conceito de matriz heterossexual,
Butler designa a propensão incrustrada nas instituições e reproduzida
intergeracionalmente pela socialização para naturalizar corpo, sexo, gênero e identidade

1Em recente passagem pelo Brasil, Butler foi alvo de protestos (veja-se a matéria da Folha de S. Paulo de
7.11.2017: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/11/1933437-manifestantes-pro-e-contra-judith-
butler-protestam-no-sesc-pompeia.shtml).

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de gênero, impondo assim uma convergência biológica e antropomórfica supostamente


natural. A sociedade se estrutura com auxílio de uma preferência normativa pela
heterossexualidade (Butler 1990, p. 151). A teoria feminista deve principiar assim pela
crítica dessa associação entre heterossexualidade e normalidade. Butler contesta a
compreensão naturalista do corpo realidade pré-discurisva dada pela natureza, sobre a
qual o sujeito supostamente poderia construir sua identidade de gênero, de forma livre
(Butler 1990, p. 129).
Butler está interessada em reconstruir as estruturas de poder dentro das quais a
determinação da identidade de gênero ocorre, i.e., como tais estruturas permitem e ao
mesmo tempo condicionam a determinação da identidade de gênero, sem renunciar, de
saída, à dimensão ativa da subjetividade (“agency”):
Para Beauvoir, o gênero é ‘construído; mas sua construção implica um
agente, um cogito, que de alguma maneira recebe e se apropria do gênero e
que poderia, em princípio, assumir algum outro gênero. O gênero é tão
variável e volitivo como a perspectiva de Beauvoir parece sugerir? [...] Se o
gênero e o sexo são fixos ou livres – trata-se de uma função do discurso,
que, pode-se sugerir, procura definir certos limites à análise ou salvaguardar
certos fundamentos do humanismo como pressupostos de qualquer análise
de gênero (Butler 1990, p. 8/9, trad. livre).

Esse aspecto é costumeiramente mal compreendido por críticos de Butler


(Smith 2001, p. 390). Com efeito, o processo de construção do sujeito em Butler é
ambivalente e trabalha na fronteira entre o auto-desenvolvimento e a contenção da
subjetividade. É por isso que o sujeito exsurge no entrecruzamento entre relações de
poder e sua ação subjetiva (Butler 1997b, p. 14/15). Ela se apoia em Foucault para
compreender o processo de formação da subjetividade como o resultado contingente
da relação entre poder e linguagem (Mills 2003). Há, portanto, um componente
performativo no processo de construção do gênero e da identidade de gênero:
Nesse sentido, gênero é sempre um fazer, embora não um fazer por um
sujeito que pré-existe à ação que realiza. [...] Não há identidade de gênero
por trás da expressão do gênero; essa identidade é constituída
performativamente justamente pelas ‘expressões‘ que tomamos por ser o
resultado da identidade de gênero. [...] Como prática discursiva contínua e
ininterrupta, está sempre aberta a intervenção e ressignificação (1990, p. 25
e p. 33, trad. livre).

A performatividade do gênero em Butler é construída a partir da teoria da


performatividade de John L. Austin e do conceito de iterabilidade de Derrida. É claro que

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Butler faz uma tradução exclusivamente empírica da iterabilidade.2 Se, do ponto de vista
da filosofia acadêmica esse movimento poderia ser considerado tecnicamente
questionável, trata-se, do ponto de vista sociológico, de insight extremamente
produtivo, pois Butler combina a contingência do processo de subjetivação com a
codificação social pré-existente, que o condiciona sem conseguir determiná-lo
totalmente. Por essa razão, a teoria de gênero de Butler é performativa: o gênero se
constrói pela iteração de atos por meio dos quais estruturas sociais são incorporadas,
rejeitadas, transformadas, apreendidas, distorcidas, reincorporadas e assim
indefinidamente, sem origem e sem um final teleológico:
O sujeito não é determinado pelas regras através das quais ele é gerado
porque significação não é um ato fundante, mas um processo regulado de
repetição que ao mesmo tempo se invisibiliza e impõe suas regras
justamente por meio da produção de efeitos essencialistas (Butler 1990, p.
145, trad. Livre, grifos originais); Performatividade não é, assim, um ‘ato’
singular, pois requer-se sempre a iteração de uma norma ou de um
conjunto de normas. E, à medida que esse processo adquire o status de fato
[“an act-like status”] no presente, ele obscurece ou dissimula as convenções
que regulam sua repetição (Butler 1993, p. 12, trad. livre).

O problema é que Butler não leva essa ambivalência constitutiva da subjetivação


às últimas consequências para a sua teoria performativa da política e reintroduz um
momento logo-fonocêntrico em sua teoria da ressignificação, em que o sujeito
determina, absolutamente – e pela fala! – a si mesmo. Há uma recaída metafísica na
teoria de uma das mais célebres versões do pós-estruturalismo tributário de Derrida.
A teoria política de Butler, em que tem lugar a categoria da ressignificação,
deriva de sua teoria de gênero. Em Excitable Speech (Butler 1997a), ela abre diversas
polêmicas em torno do discurso do ódio (“hate speech”) sancionado pela Suprema Corte
Americana, da questão da pornografia, da homoafetividade no exército americano e de
quais medidas o Estado pode ou deve tomar nesses casos. O debate se articula em polos
antagônicos: de um lado, líderes e teóricos ativistas reivindicam a proibição estatal do
discurso do ódio e da pornografia, com o argumento de que essas formas discursivas

2 Em Derrida, originalmente, a iterabilidade se enraíza na indecidibilidade entre o empírico e o


transcendental: Derrida principia pelas características empíricas da escrita mas constrói um conceito de
iterabilidade que se torna condição não apenas da escrita, mas do sentido em geral, e, no limite, de toda
experiência, cognição ou ação. Essa “condição de possibilidade” sem recurso a uma origem última e
absoluta evita que a iterabilidade recaia em uma espécie de a priori formal categórico. Por isso ela é “quasi-
transcendental” (Gasché, 1986, p. 274). Não temos como aprofundar esse ponto neste artigo. Cf. Gasché
1986 e Bachur 2017, ps. 69 e ss.

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estão baseadas em uma forma ilegítima de discriminação e dominação (e.g., Matsuda et


al. 1993 e MacKinnon 1993). De outro lado, defensores radicais da liberdade de
expressão recusam qualquer forma de censura estatal. Em síntese, trata-se de saber se a
Constituição Americana protege toda forma de expressão – inclusive o discurso do ódio
(Walker 1994 e Herrmann et al. 2007).
Nesse contexto, Butler se posiciona contra a regulação estatal do discurso. Para
ela, a censura estatal é uma forma de tutelar a agency subjetiva, minando-a de saída.
Butler prefere alternativas que reforcem a espontaneidade dos agentes em resistir, por
conta própria, a discursos de ódio (Butler 1997a, ps. 127 e ss). É nesse contexto que
ressignificação aparece como estratégia linguístico-política para fazer frente à violência
perpetrada por discursos de ódio:
Desapropriar a força da linguagem injuriosa para contradizer a injúria
constitui uma estratégia que resiste à solução da censura patrocinada pelo
Estado, de um lado, bem como o retorno à impossível noção da liberdade
soberana de um indivíduo, de outro. [...] A ressignificação do discurso
requer a abertura de novos contextos, falar de formas que ainda não foram
legitimadas, produzindo daí legitimação em uma forma nova e ainda futura
(Butler 1997a, p. 41, trad. livre).

Enquanto nos primeiros textos as formas de subversão do gênero “oficial”


imposto pela matriz heterossexual eram as práticas corporais de “drag” e “parody”,
(Butler 1993, p. 231 e 1990, p. 146), a ressignificação passa a ocupar o centro da teoria
política de Butler, consubstanciando uma espécie de “giro linguístico” (Lloyd 2007, p.
120; Smith 2001, p. 391; e Disch 1999).
Butler constrói sua categoria da ressignificação em quatro passos: inicialmente,
ela se apoia em uma recepção da teoria dos atos de fala de Austin que enfatiza o papel
do corpo ao suportar a força performativa da linguagem (Felman 1980). Tomando a
sério a teoria dos atos de fala, Butler se interessa pelo componente ativo do ato de fala
performativo, i.e., aquele momento em que a expressão linguística performa (executa)
uma ação3. E, seguindo Derrida, a performatividade da linguagem tem sempre um
componente de repetição: é a iteração de atos de fala que torna a comunicação
possível. Não existem atos de fala soberanos que, pronunciados uma única vez,

3Afastando-se assim de uma leitura inicial meramente retórica de Austin – Butler, 1993, p. 224: “A
centralidade da cerimônia de casamento nos exemplos de J. L. Austin para atos performativos sugere que a
heterossexualização do vínculo social é a forma paradigmática pela qual os atos de fala executam aquilo que
enunciam”. Como se vê, trata-se de apreensão muito pouco técnica da teoria dos atos de fala de Austin.

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produzem exatamente os efeitos pretendidos, em uma relação positivista de causa e


efeito. Esse é o principal argumento de Butler contra a censura: da mesma forma como
nenhum discurso de ódio é, de saída, soberano e absoluto, também a censura não o
será. O falante, ao pronunciar o ato de fala, não tem total domínio sobre os efeitos de
sua própria fala, não domina a forma pela qual o ato de fala será recepcionado pelo
ouvinte. É por isso que a contingência do ato de fala – a possibilidade de ser bem ou mal
sucedido sempre acentuada por Derrida – é o ponto central da apropriação que Butler
faz da teoria dos atos de fala de Austin, acentuando, outrossim, o papel do corpo na
fala: ele introduz um excesso de significação que torna incontrolável a recepção do
conteúdo da proposição linguística enunciada (Butler 1997a, p. 11).
E, mais do que contingente, o ato de fala é constitutivamente disputável: “o
enunciado linguístico se tornou cenário de conflitos” (Butler 1997a, p. 91). Portanto,
compreendido como ato de fala – como enunciado linguístico sujeito ao risco de
fracassar, entendendo-se o fracasso pela não produção dos efeitos desejados por quem
pronuncia o ato de fala – o discurso do ódio se torna linguisticamente vulnerável. Todo e
qualquer discurso (tanto o hate speech quanto a censura a ele) são assim
constitutivamente abertos à ressignificação.
Em segundo lugar, a teoria da ressignificação de Butler se apropria da
concepção de interpelação de Althusser: o endereçamento linguístico que nomeia um
sujeito (Butler 1997a, p 29; e 1997b, p. 106 e ss.). Há, na interpelação, um momento
performativo que contribui para a constituição do sujeito. É dizer, ninguém domina
plenamente o processo de constituição de própria subjetividade, de sorte que a forma
pela qual somos interpelados por outros contribui (sempre de maneira não soberana)
para a elaboração de nossa própria auto-compreensão subjetiva.
Em terceiro lugar, Butler rejeita o determinismo linguístico de Bourdieu (1982),
acentuando (em linha com Austin e Derrida) a contingência dos atos de fala. Com efeito,
Bourdieu se apropria da recepção de Austin por Émile Benveniste, que compreende o
ato de fala inexoravelmente como um ato de autoridade. Diferentemente de Derrida,
que o vê como constitutivamente contingente, Benveniste sustenta que a única forma
de assegurar que o ato de fala produza os efeitos pretendidos por quem o enuncia é
compreendê-lo como ato de autoridade ou “ato de instituição” (“acte d’institution”),
pronunciado no contexto de uma relação hierárquica (Benveniste 1963). Bourdieu se

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apropria da vinculação entre linguagem e autoridade para criticar o habitus linguístico


que reproduz, na fala, as relações de poder dadas. Bourdieu chega mesmo a definir os
interactantes como porta-vozes de suas próprias posições de poder, neutralizando assim
qualquer autonomia do discurso face aos elementos exteriores a ele (elementos não-
discursivos). Ao fim e ao cabo, a linguagem em Bourdieu finda por assumir o caráter de
um meio neutro de transmissão das cadeias de dominação que reitera as posições de
poder fáticas dos interactantes. Para Butler (1997, ps. 142/145), a sociologia da
linguagem de Bourdieu é, por isso, inerentemente conservadora, pois elimina o
elemento crítico permitido pela contingência intrínseca a todo e qualquer ato de fala 4.
Por fim, Butler se apropria do conceito de iterabilidade de Derrida, mas o
investiga do ponto de vista de sua estabilização social. Se, como já mencionado, essa
leitura pode ser questionada do ponto de vista da técnica da filosofia acadêmica 5, vale
ponderar que ela é extremamente produtiva do ponto de vista da teoria sociológica:
Derrida parece instalar a ruptura [com o contexto] como característica
estruturalmente necessária em cada sentença e em cada código escrito,
paralisando assim a análise social de sentenças capazes de exercer sua força
[“forceful utterance”]. Temos ainda de chegar a uma consideração da
iterabilidade social da sentença (Butler 1997, p. 150 – grifos originais, trad.
livre).

A discussão técnica da crítica de Butler a Derrida nos desviaria do objeto deste


artigo. Apenas é preciso registrar que a possibilidade de romper com o contexto em que
é usado é uma possibilidade inscrita em qualquer signo e que seu uso conforme o
contexto não elimina essa possibilidade enquanto tal. Mas Butler tem razão ao apontar
que Derrida acentua excessivamente a ruptura com o contexto, sem explicar os
momentos em que o signo funciona efetivamente conforme o contexto. Derrida exagera
o risco potencial sempre presente na comunicação, mesmo quando, empiricamente, a
maior parte das interações ocorre conforme o contexto, sem ruídos disruptivos
significativos. A iterabilidade do signo (mas também da ação, da experiência, da
cognição etc.) é socialmente ancorada e estabilizada por instituições e convenções
sociais, de forma que o risco da ininteligibilidade (nunca eliminado enquanto

4 Butler tem um ponto: Bourdieu se aproxima excessivamente da concepção do ato de fala como “acte
d’institution” de Benveniste e, com isso, neutraliza o elemento mais interessante da teoria da
performatividade de Austin – mas há um aspecto crítico na teoria do discurso de Bourdieu que
abordaremos na seção III.
5 Ao que seria possível redarguir que Derrida não desenvolveu, ele mesmo, uma filosofia acadêmica estrita.

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possibilidade inscrita no funcionamento do próprio signo linguístico) resta, do ponto de


vista da sociedade, um tanto quanto artificialmente ampliado (Bachur 2017, ps. 81 e
ss.). Ou seja, quando a linguagem funciona, quando as interações transcorrem de
maneira trivial, sem precisarem ser interrompidas para tomarem a si mesmas como
objeto de reflexão, os signos estarão sendo usados conforme o contexto; é dizer, não
haverá quebra nas expectativas de sentido empregadas pelos interactantes. Nesses
casos, a iterabilidade do signo linguístico é socialmente estruturada, pois ocorre
conforme convenções de sentido institucionalizadas socialmente, estabilizando as
expectativas de sentido dos interactantes:
Em outras palavras, quando palavras executam ações ou se constituem, elas
mesmas, em uma forma de ação, isso ocorre não porque elas refletem o
poder da intenção ou da vontade individual de um sujeito, mas porque elas
recorrem a convenções que obtiveram seu poder precisamente através de
uma iterabilidade sedimentada (Butler 1995, p. 134, trad. livre).

Com isso, tem-se o quadro geral conforme o qual a categoria da ressignificação


foi desenvolvida: partindo da leitura que Derrida e Felman fazem da teoria dos atos de
fala de Austin, Butler rejeita o determinismo linguístico de Bourdieu e vê na interpelação
de Althusser o momento em que subjetivação e sujeição às estruturas de poder dadas
se inter-relacionam. Com isso, é possível compreender a dinâmica ambivalente e
contingente do discurso, fundamentando uma teoria performativa da política.

II. Aspectos críticos

Até aqui, vimos como a categoria da ressignificação foi construída do ponto de vista
teórico. Agora é preciso passar aos aspectos críticos dessa construção. Antes de
qualquer outra consideração, é preciso reconhecer que Butler não desenvolve
conceitualmente a formulação de uma “iterabilidade socialmente sedimentada”, a partir
de sua leitura de Derrida. Ao contrario, ela recorre a um exemplo: ela se reporta a Black
Atlantic, de Paul Gilroy, para explicar que a narrativa iluminista tem claramente um
avesso, um lado perverso que permitiu acomodar a escravidão negra do outro lado do
Atlântico; mas reforça que justamente essa narrativa subterrânea não está encerrada
em si mesmo – pode ser resgatada e apropriada em sua força crítica, como forma de

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combater a narrativa hegemônica estabelecida pela dominação (Butler 1995, p. 128). É


aí que tem lugar a ressignificação.
O problema é que Butler associa a performatividade do ato de fala diretamente
à ressignificação: “nesse sentido, o discurso é o horizonte da ação, mas também é
preciso pensar performatividade como ressignificação” (no original: “In this sense,
discourse is the horizon of agency, but also, performativity is to be rethought as
resignification” – Butler 1995, p. 135, trad. livre). Se é verdade que a ressignificação
pode designar com clareza a luta travada no campo discursivo-semiótico para
questionar a repetição de conceitos e narrativas apoiadas em relações de dominação,
ela não assimila, por inteiro, o aspecto performativo da linguagem. Vale para Butler a
mesma crítica por ela endereçada a Derrida: se a iterabilidade permite quebrar com o
contexto comunicativo, a linguagem funciona “na média” conforme o contexto; e se,
por outro lado, narrativas hegemônicas podem ser efetivamente questionadas e
ressignificadas, a comunicação trivial do cotidiano funciona “na média” sem essa carga
crítica. Se todo ato de fala tem um componente performativo, nem todo ato de fala
implica a ressignificação de categorias discursivas estabelecidas. A assimilação entre
performatividade e ressignificação traz problemas consideráveis para o uso sociológico
dessa última categoria (para além de seu uso nas questões de gênero).
Nessa esteira, é preciso indagar primeiramente: por que a ressignificação ocorre
sempre em sentido progressista ou emancipatório? Com efeito, Butler afirma: “a
linguagem jurídica é precisamente o tipo de linguagem que pode ser citada em sentido
reverso ao oficial, quando essa reversão se apropria de uma lei com histórico
reacionário e a converte em uma norma com intuito progressivo” (Butler 1997, p. 98,
trad. livre). Ora, se não há ato de fala ou discurso soberano, isso vale inclusive para
aqueles atos de fala que procuram perpetrar a ressignificação de conceitos impregnados
pelas relações de poder estabelecidas. Se o discurso do ódio, a censura estatal ou a
narrativa histórica do Esclarecimento não constituem unidades semânticas inatacáveis,
fechadas sobre si mesmas, também o próprio contra-discurso que pretende
desconstituí-las é, de saída, falível. Não há nada que imponha, necessariamente, uma
orientação anti-hegemônica à ressignificação enquanto categoria conceitual (Mills 2003,
p. 254).

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Basta pensarmos, por exemplo, na cristalização do discurso neoliberal pelo


establishment político e econômico ao longo dos anos 1980 e 1990, já extrapolando o
conceito de ressignificação para além da política identitárias e de gênero. Conceitos
como “liberdade”, “eficiência”, “pleno emprego”, “justiça social”, “austeridade fiscal”,
“risco” e muitos outros foram profundamente impregnados por uma lógica discursiva
que submete o Estado ao mercado (é dizer, ao mercado concebido de uma maneira
muito específica, conforme pressupostos às vezes muito distantes da forma pela qual os
mercados concretos funcionam na vida real). E qualquer tentativa de “abrir” esses
significantes, que funcionam na verdade como black boxes discursivas (os “textos-
máquina” de Derrida), encontrará forte resistência por parte das instituições que
mantêm esses significantes automatizados em ação – e.g., o pensamento acadêmico
dominante nas faculdades de economia, o discurso político oficial, as organizações
internacionais, os jornais, as organizações empresariais etc. Essas instituições trabalham
preservando o núcleo do discurso neoliberal.
Em um outro exemplo, o Brasil passa por um momento em que nosso passado
ditatorial-militar vem sendo afirmado positivamente à luz da crise institucional que
vivemos. E isso a despeito do trabalho da Comissão Nacional da Verdade, tardiamente
instalada em 2011. É inegável que há um movimento de ressignificação positiva da
ditadura militar brasileira. A greve dos caminhoneiros de maio de 2018, por exemplo, foi
dominada por uma ofensiva política que pedia a volta dos militares. Antes disso, os
protestos de junho de 2013, inicialmente convocados por movimentos sociais de
mobilidade urbana, conviveram com discursos que pediam a volta dos militares. O
mesmo se passou com as manifestações pedindo o impeachment de Dilma Rousseff em
meados de 2015. Em todos esses casos, a ditadura militar aparecia como solução para a
crise institucional em curso. Como se não bastasse, o Decreto n° 9.288, de 16 de
fevereiro de 2018, de Michel Temer, opera uma intervenção de caráter militar no Rio de
Janeiro. Na sequência, o comandante do exército brasileiro cobra em sua rede social
liberdade para os militares agirem “sem risco de surgir uma nova Comissão da
Verdade”. Mais remotamente, mas não menos importante, o jornal Folha de S. Paulo
caracterizou em editorial o período militar brasileiro como “ditabranda” – e não era uma
ironia. E, por fim, mas não menos importante, às vésperas do primeiro turno das
eleições presidenciais de 2018 – lideradas com folga por um ex-militar aposentado

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precocemente e dedicado à reconstituir o regime militar no país – o presidente do


Supremo Tribunal Federal nomeia como seu assessor um general envolvido nessa
campanha presidencial e afirma, em evento comemorativo dos 30 anos da Constituição
Federal de 1988, que prefere designar a ditadura militar como “movimento de 1964” 6.
Ou seja, em perspectiva histórica, o país procurou ajustar contas com o passado por
meio de uma tardia Comissão Nacional da Verdade cujos resultados, porém, foram
tímidos e muito aquém do esperado. Por outro lado, uma onda de ressignificação
reacionária foi desencadeada com o intuito de reinterpretar positivamente a ditadura
militar brasileira. Ou seja: o discurso reacionário (que durante décadas nos pareceu
definitivamente sepultado) se revigorou e reagiu. Hoje, ele ruma para retomar (pela via
parlamentar!) sua antiga hegemonia 7. Se nenhum ato de fala é soberano, isso vale para
todas as narrativas hegemônicas, mas também para todas as tentativas de desestabilizá-
las. É isso que Butler não considerou ao formular sua categoria da ressignificação.
Em segundo lugar, é preciso considerar que as narrativas dominantes poderão
(e tenderão) a usar a força e a violência física para silenciar tentativas de ressignificação.
Se, de fato, o discurso se tornou uma arena aberta ao conflito, não há qualquer garantia
de que o conflito discursivo seja processado de maneira exclusivamente discursiva, isto
é, de que ele não seja silenciado com auxílio da violência física (estatal ou paraestatal).
Nesse passo, Butler recorre inclusive a Habermas, sugerindo que o processo de
ressignificação poderia configurar aquela situação ideal de fala em que a força crítica da
linguagem é utilizada de modo livre (Butler 1997, p. 86). A vida real, contudo, tende a
ser dura com tentativas voltadas interpretar criticamente o passado e o presente 8.

6 Todos esses fatos são hoje amplamente conhecidos. Vejam-se os respectivos links com notícias extraídas
de jornais de circulação nacional:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/30/politica/1527703161_738090.html;
https://g1.globo.com/politica/blog/cristiana-lobo/post/general-vilas-boas-militares-precisam-ter-garantia-
para-agir-sem-o-risco-de-surgir-uma-nova-comissao-da-verdade.ghtml; https://www1.folha.uol.com.br/fsp/
opiniao/fz1702200901.htm; https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/nomeacao-de-general-por-
toffoli-e-alvo-de-questionamentos.shtml e https://www.jota.info/stf/do-supremo/toffoli-golpe-64-
movimento-01102018?utm_source=JOTA+Full+List&utm_campaign=5afbf6893a-
EMAIL_CAMPAIGN_2018_10_02_09_41 &utm_medium=email&utm_term=0_5e71fd639b-5afbf6893a-
380467909, respectivamente (consultados em 10 de outubro de 2018).
7 Este artigo foi concluído entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial de 2018.
8 Especialmente nos trópicos – nossa crise institucional é tão grave que é possível identificar inúmeros

exemplos de ressignificação reacionária: professores são hostilizados em seminários acadêmicos sobre o


centenário da Revolução Russa (veja-se: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/professora-da-uerj-
hostilizada-em-evento-sobre-revolucao-russa-22003757), enquanto o ministro da educação de Temer
manifesta a intenção de impedir uma disciplina acadêmica a ser oferecida na Universidade de Brasília com o
título “golpe de 2016” (veja-se: https://oglobo.globo.com/brasil/mec-vai-acionar-mpf-contra-disciplina-da-

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Em terceiro lugar, é importante afirmar que Butler veicula uma forma de


pensamento anti-institucional (tributária de Foucault), conforme a qual o direito e o
aparato estatal são concebidos de forma unilateral e até mesmo um tanto ingênua.
Butler rejeita a censura estatal à pornografia afirmando que o Estado, ao fazê-lo, estará
replicando a linguagem que pretende proibir e, de outro lado, dificultando a emergência
de resistência espontânea por parte da sociedade civil (e aqui o tom da argumentação é
curiosamente habermasiano). A censura ampliaria a incidência do Estado sobre a esfera
do discurso, intensificando seu poder regulatório e incorrendo em inevitáveis desvios
burocratizantes, pois o Estado somente tem a seu dispor a sua própria linguagem
burocrática (Butler 1997, p. 101). Muito críticos apontaram aqui uma compreensão
limitada do papel histórico do Estado em afirmar direitos (Lloy 2007, p. 127-131; Mills
2003, p. 266; Jenkins 2001, p. 366-368; Zivi 2008). Ao sustentar, como já citado, que a “a
linguagem jurídica é precisamente o tipo de linguagem que pode ser citada em sentido
reverso ao oficial, quando essa reversão se apropria de uma lei com histórico
reacionário e a converte em uma norma com intuito progressivo” (Butler 1997, p. 98),
vale indagar: como ressignificar o conteúdo de decisões jurídicas, leis e outros atos
oficiais sem o recurso à legislação ou a outras decisões judiciais? A ressignificação de
uma decisão judicial não pode ser processo meramente mental ou verbal; como
processo social, ela precisa ocorrer institucionalmente, i.e., apoiada em uma linguagem
documental.
Em quarto lugar, ao rejeitar a censura por conta dos efeitos deletérios da
regulação estatal, a estratégia de Butler pode soar conservadora. De saída, ela garante
uma margem de vantagem para o discurso do ódio já praticado – enquanto não houver
censura ou reação espontânea da sociedade civil, haverá apenas o discurso do ódio
(Lloyd 2007, p. 127). E, do ponto de vista formal da construção do argumento, Butler
recusa a censura estatal por suspeitar, em princípio, de toda e qualquer regulação
estatal, bem como porque a interferência estatal produzirá efeitos paradoxais: ela
inibirá a emergência de contra-discursos espontâneos. É assim que Butler reproduz a
retórica reacionária que vê, na ação estatal, efeitos perversos, fúteis ou prejudiciais à
espontaneidade dos atores privados (Hirschmann 1991). Butler não considera que o

unb-sobre-golpe-de-2016-22420187). Seria possível recuperar ainda um longo inventário de atos de


violência física cometidos contra gay, negros, mulheres e jornalistas entre o primeiro e o segundo turno das
eleições presidenciais de 2018 – mas isso tornaria impossível concluir este artigo.

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papel do Estado pode galvanizar posições contrárias ao discurso do ódio, catalizando-as,


e não as inibindo ou ameaçando.
Em quinto lugar, Butler não indica uma única condição para que o ato de
ressignificação seja socialmente estabilizado (Smith 2001, p. 397). Ao rejeitar a versão
determinista da linguagem de Bourdieu, Butler desconsidera a necessária compreensão
da ressignificação como práxis social, i.e., como prática inserida socialmente e
estruturada pelas instituições e convenções sociais. Butler não investiga o papel que as
classes sociais ou as diferenças de capital (econômico, cultural e simbólico) exerceriam
em uma luta por ressignificação.
Em sexto e último lugar, encerrando a crítica à categoria da ressignificação, é
imprescindível mencionar que Butler, ao rejeitar toda e qualquer dimensão institucional,
i.e., ao compreender ressignificação de forma eminentemente não-documental, excluiu
automaticamente a escrita de sua teoria política, reencenando justamente a
identificação entre logos e phone criticada por Derrida. Se, em sua teoria da
subjetivação ela menciona “inscrições corporais” (“bodily inscriptions”) para descrever
atos pelos quais gênero e identidade de gênero são construídos (Butler 1990, p. 128 e
ss.), o sentido dessas “inscrições corporais” é metafórico e não diz respeito à escrita
propriamente dita, enquanto prática social de tradução de operações sociais em
superfícies bidimensionais. Ao contrário a teoria da performatividade política de Butler é
toda apoiada em atos de fala literalmente considerados, i.e., a performatividade política
da ressignificação é compreendida como ato de fala em sentido estrito (Vila 2010, p.
421). E isso com a exclusão literal da escrita:
Faz sentido lembrar que a ‘força‘ do ato de fala [...] tem tudo a ver com o
status da fala enquanto ato corporal [“bodily act”]. Que a fala não é idêntica
à escrita parece claro; mas não porque o corpo está presente na fala em
uma forma que inexiste na escrita, mas porque a relação oblíqua do corpo
com a fala é ela mesma performada pela sentença, refratada por ela e
conduzida pela própria performatividade. Arguir que o corpo é igualmente
ausente na fala e na escrita é verdade apenas na medida em que nem a fala,
nem a escrita fazem o corpo imediatamente presente. Mas a forma oblíqua
pela qual o corpo aparece na fala é, necessariamente, diferente da forma
em que ele aparece na escrita (Butler 1997, p. 152 – trad. Livre, grifos
acrescidos)9.

9 A frase é truncada mesmo no original: “It makes sense to remember that the ‘force’ of the speech act [...]
has everything to do with the status of speech as a bodily act. That speech is not the same as writing seems
clear, not because the body is present in speech in a way that it is not in writing, but because the oblique
relation of the body to speech is itself performed by the utterance, deflected and carried by the
performance itself. To argue that the body is equally absent in speech and writing is true only to the extent

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Ora, com isso, uma das mais reputadas seguidoras de Derrida refaz o gesto
metafísico pelo qual a escrita é extirpada de uma relação privilegiada estabelecida entre
o corpo e a fala. A escrita é exterior, mera técnica rude; a fala e o corpo estão co-
presentes para si mesmos de maneira diferenciada. Ainda que Butler pretenda destacar
o excesso de sentido proporcionado pelo corpo e nunca inteiramente transmitido pela
fala, porque irredutível à semiose do discurso; e ainda que ela reconheça o corpo como
exterioridade tanto para a fala quanto para a escrita, ela confere ao corpo, na fala, um
status diferenciado. O resultado disso é reiterar uma relação privilegiada entre o corpo e
a fala. E o problema não é a escrita entendida como ato solipsista e monológico, mas a
escrita como prática institucional necessariamente coletiva: decisões de tribunais,
aprovação de leis e decretos, preparação de documentos empresariais (atas, balanços
contábeis, estatutos) etc.; enfim, todas as organizações da sociedade – organizações não
governamentais e partidos políticos, bancos e empresas, hospitais, escolas,
universidades, instituições governamentais, parlamentares e judiciais – se estruturam
pela escrita e o trabalho por elas realizado é institucionalmente regrado e coletivamente
produzido. Inscrições, nesse sentido, são trabalho congelado (Bachur 2017).
Retoma-se assim a crítica já endereçada a Butler: como ressignificar uma
decisão judicial sem recorrer a alguma forma de linguagem documental? Apesar de
Butler apresentar a sugestiva formulação de uma “iterabilidade socialmente
sedimentada”, ela não investiga as instâncias sociais e institucionais encarregadas de
estabilizar o discurso (e, com isso, bloquear ou viabilizar processos de ressignificação). A
não ser que ressignificação seja compreendida como ato de fala em sentido estrito (à la
Searle), portanto, como uma operação da consciência, e não da sociedade. Ora, é isso,
com efeito, que Butler expressamente apresenta ao exemplificar o que seria a
ressignificação:
Eu me lembro de uma vez, andando por uma rua de Berkeley, quando uma
criança apareceu numa janela e perguntou ‘Você é lésbica?‘. Simples assim.
Eu respondi ‘Sim, eu sou lésbica‘. Eu devolve a injúria em uma versão
afirmativa. Foi um momento totalmente impulsivo. Uma interpelação do
nada. Na medida em que eu fui capaz, muito rápido, de voltar e dizer ‘Sim,
eu sou lésbica‘, o poder de meu inquiridor se perdeu (Butler 2000, p.
759/760 – grifos originais, trad. livre).

that neither speech nor writing makes the body immediately present. But the way in which the body
obliquely appears in speech is, of necessity, different from the way it appears in writing”.

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O exemplo torna muito claro tratar-se de um caso de ato de fala típico da


filosofia da linguagem analítica, que reduz o discurso à interação verbal e essa à frase na
ordem direta em primeira pessoa no presente do indicativo. No caso, é a intenção do
sujeito que opera a reversão linguística designada como ressignificação. Há uma
identificação entre logos e phone. Esse ato de fala, contra toda a leitura que Butler faz
de Austin e Derrida, é apresentado como se fosse um ato de fala soberano. Como saber
se, no exemplo narrado, trata-se efetivamente de ressignificação? Um observador
externo descreveria a situação como ressignificação? Com base em quais elementos?
Como saber se o garoto do exemplo não voltou a empregar a palavra “lésbica” em
sentido pejorativo e discriminatório? Ele compreendeu e se convenceu do elemento
discriminador contido no termo “lésbica”? Não poderia ter ocorrido o contrário e o
garoto ter ficado ainda mais sexista e ainda mais preconceituoso a partir da resposta de
Butler?
Todas essas questões ficam sem resposta à luz da formulação original de Butler
para a categoria da ressignificação. Não obstante, do ponto de vista da teorização
sociológica, a categoria da ressignificação pode ser empregada de modo muito
produtivo para: (i) designar o campo semiótico do discurso como uma arena de conflito
em que se disputa não apenas a interpretação do presente e do passado, mas também
as possibilidades de sentido abertas para o futuro, pois é a interpretação do passado e
do presente que abre ou fecha cursos de ação possíveis no futuro; (ii) designar essa luta
como uma prática que, enquanto tal, funde aspectos sociais, políticos, institucionais e
discursivos, colaborando assim para a construção de uma teoria material do discurso.
Tal como teorizada por Butler, porém, a categoria da ressignificação não aproveita todo
esse potencial e fica reduzida a uma operação mental, como se o sujeito pudesse
determinar, por sua vontade psicológica íntima, o conteúdo das palavras e seu efeito
sobre a sociedade. Isso não ocorre, para o bem e para o mal. A forma pela qual a
categoria da ressignificação pode fundamentar uma teoria material do discurso exige
que ela seja complementada, de um lado, pela ação política coletiva e, de outro, pela
inscrição documental como prática social.

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III. O discurso herege: mobilização social com Pierre Bourdieu

Bourdieu, em O que falar quer dizer (Bourdieu, 1982), critica tanto a linguística
estrutural de Saussure quanto a teoria dos atos de fala de Austin. Na leitura de
Bourdieu, a teoria da linguagem ignora todo o contexto social e institucional em que os
usos linguísticos ocorrem, abstraindo as relações de poder que conformam o habitus
linguístico. Recuperando-as, temos uma sociologia da linguagem em que o uso da fala é
respaldado por posições de poder e dominação. Os falantes são porta-vozes de suas
posições de poder subjacentes.
Sem prejuízo da crítica que Butler faz a Bourdieu, já que a força da linguagem –
a ilocução; isto é, o caráter performativo da linguagem conforme o qual um dizer é
simultaneamente um fazer – perde sua autonomia para o contexto não-linguístico das
relações fáticas de poder, há um mérito em reconhecer que as diversas teorias da
linguagem não conseguem apreender a materialidade da produção de sentido. A crítica
de Butler a Bourdieu é correta, pois Bourdieu reproduz de fato um mecanicismo social
ao derivar toda produção de sentido de posições de poder pré-linguísticas. Mas
Bourdieu tem um ponto ao ressaltar que os aspectos extra-linguísticos participam da
formação do sentido. A linguagem ordinária, ponto de partida da filosofia da linguagem,
nunca funcionou com atos de fala depurados do contexto, como pretende Searle.
Contudo, Bourdieu não é tão determinista quanto pretende Butler. A parte final
de O que falar quer dizer é dedicada ao que Bourdieu designa por “discurso herege”: a
contestação discursiva de visões de mundo, classificações e distinções de grupo que
estruturam o campo político (Bourdieu 1982, ps. 149 e ss.). Isso porque o campo político
tem uma dimensão cognitiva anterior – a estruturação de grupos, classes sociais e
regras de distinção pressupõe uma leitura do mundo, que tem de ocorrer
necessariamente pela estruturação do discurso. Segundo Bourdieu, essa dimensão
cognitiva precede a luta política. Sempre há, portanto, em Bourdieu, espaço para a
utopia:
A subversão herética explora a possibilidade de mudar o mundo social
mudando a representação desse mundo, a qual contribui para sua própria
realidade, ou, mais precisamente, opondo uma pré-visão paradoxal, uma
utopia, um projeto, um programa, à visão ordinária que apreende o mundo
social como mundo natural: enunciado performativo, a pré-visão política é,
por si mesma, uma pré-dição que visa a fazer advir aquilo que ela enuncia
(Bourdieu 1982, p. 150 – grifos originais).

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Nota-se assim que Bourdieu não fecha o discurso sobre si mesmo com base nas
posições de poder. Remanesce um componente crítico que pode ser mobilizado para
introduzir a contingência que as narrativas hegemônicas pretendem suprimir ao
enunciar o mundo social como mundo dado, natural. Esse ponto não é, de maneira
alguma, discrepante da forma pela qual Butler apresenta o discurso como arena do
conflito. O discurso herege explora a possibilidade de mudar o mundo social mudando a
representação semântica desse mundo, opondo-o a utopias e programas ainda não
realizados e que contestam a afirmação do mundo tal como ele é. Essa é a dimensão
performativa do discurso herético: ele pré-forma o mundo pretendido e, com isso,
deslegitima o mundo fático.
É claro que o status quo reage com ortodoxia. É por isso que Bourdieu fala em
um trabalho de enunciação (“travail d’énonciation”): a necessidade de que o discurso
herético se estruture socialmente como prática voltada a desmistificar o caráter natural,
dado, imutável que as narrativas hegemônicas atribuem ao mundo que elas ajudam a
criar. Ao fim e ao cabo, tem-se aqui uma releitura discursiva altamente sofisticada da
teoria da ideologia – com a vantagem de apresentar os aspectos (improváveis, mas
possíveis) pelos quais a ideologia pode ser combatida nos mesmos termos em que ela é
produzida.
Por isso, processos discursivos não estão mecanicamente fechados sobre si
mesmos, são sempre contingentes. E, para que o discurso herege tenha alguma chance
de sucesso, ele depende diretamente de mobilização coletiva:
A luta em que o conhecimento do mundo social está em jogo não teria
jamais objeto se cada agente encontrasse em si mesmo o princípio de um
conhecimento infalível da verdade de sua condição e de sua posição no
espaço social e se esses mesmos agentes não pudessem se reconhecer no
discurso e em classificações diferentes (Bourdieu, 1982, p. 156).

Ou seja, a constituição de identidades de grupo – a demarcação de linhas de


distinção e, no limite, das classes sociais – é resultado de uma luta discursiva
ininterrupta, no contexto da qual nos identificamos, nos reconhecemos e nos alinhamos
ou nos opomos aos outros. É por isso que Bourdieu sustenta que aquilo que circula não
é a linguagem em abstrato (Bourdieu 1982, p. 16), mas clusters discursivos estilizados
pelos interactantes – coletivamente. A luta pelo discurso, em Bourdieu, nunca se

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resumiria ao exemplo que Butler oferece para ressignificação, como algo que o falante
opera unilateralmente. É, ao contrário, o resultado imprevisível de uma luta. Essa
dimensão coletiva da linguagem é incontornável.
Em um de seus livros mais recentes, Butler procura preencher essa lacuna
oferecendo uma teoria performativa da assembleia: trata-se de uma aplicação de sua
teoria performativa da política aos fenômenos de agremiação política:
agir em concordância pode ser uma forma corporizada de colocar em
questão as dimensões incipientes e poderosas das noções reinantes da
política. O caráter corpóreo desse questionamento opera ao menos de dois
modos: por um lado, contestações são representadas por assembleias,
greves, vigílias e ocupações de espaços púbicos; por outro, esses corpos são
o objeto de muitas das manifestações que tomam a condição precária como
sua condição estimulante. Afinal de contas, existe uma forca indexical do
corpo que chega com outros corposo a uma zona visível para a cobertura da
mídia: é esse corpo e esses corpos, que exigem emprego, moradia,
assistência médica e comida, bem como um sentido de futuro que não seja
o futuro das dívidas impagáveis (Butler 2018, ps. 15/16 – grifos originais).

Com efeito, Butler procura incorporar a dimensão coletiva da política,


mencionando inclusive que se trata de dimensão que não pode ser reduzida à fala
verbal (Butler 2018, ps. 226/227). Não obstante, ela não retoma, em sua teoria da
assembleia, o componente coletivo da luta política na luta discursiva por ressignificação.
A teoria da assembleia é esboçada em paralelo à categoria da ressignificação. Butler não
conecta os dois componentes de sua teoria política: a luta discursiva por determinações
de sentido, de um lado, e movimentos políticos coletivos, por outro. O corpo
coletivamente criado na assembleia se apresenta como categoria paralela ao discurso.
Em Bourdieu, as posições de poder dos grupos envolvidos no discurso são fundamentais
para definir o próprio espectro de possibilidades para o discurso.
A ressignificação, portanto, nunca será efetiva como ato de fala de um sujeito
soberano; muito pelo contrário, ela tem de ser pensada, enquanto categoria produtiva
para a teoria sociológica, em um quadro conceitual mais amplo que inclua a produção
discursiva de distinções, grupos e classes sociais em lutas políticas coletivas. Sem essa
perspectiva, a categoria da ressignificação tende a recair no velho ato de fala da filosofia
analítica da linguagem, repetindo a identificação metafísica entre logos e phone. Por
óbvio: nem todos os movimentos de protesto coletivo configuram lutas por
ressignificação, mas toda luta por ressignificação ganha densidade histórica e política se
incorporar esse momento coletivo.

Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021 p. 263-295.
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Não obstante, o momento coletivo é apenas metade do caminho.


As recentes interpretações da política coletiva praticada nas ruas – sejam os
chamados “novos movimentos sociais” dos anos 1980, a esfera pública de Habermas, a
multidão de Toni Negri ou as assembleias de Butler – apresentam um traço comum: tais
agremiações são cada vez mais fragmentárias e contingentes, alinhavadas de maneira
ad hoc em torno de uma determinada pauta. Em síntese, trata-se da ocupação do
espaço público e da mídia com os corpos dos manifestantes de forma a conturbar a
rotina das instituições jurídicas e políticas e focar a atenção da esfera pública e da mídia
de massa na pauta que veiculam. Esse é o repertório do protesto coletivo conduzido
conforme o paradigma “Occupy Wall Street”, por assim dizer. O conceito de repertório,
nesse sentido bastante específico, foi cunhado por Charles Tilly ao estudar os padrões
identificáveis nos protestos coletivos na Inglaterra de meados do século XVIII e
princípios do século XIX: “In particular times and places, performances cluster into a
limited number of recurrent, well-defined types” (Tilly 2005, p. 60). No período por ele
estudado, a ação política coletiva abandona o saque de edifícios e grãos, bem como
formas públicas de humilhação e violência, e passa a adotar estratégias apoiadas em
“public gatherings” e na subscrição de “petitions”. Atualmente, o protesto político tende
a seguir o padrão “Occupy”: corpos físicos se aglomeram no espaço público em defesa
de uma determinada pauta, pressionando o sistema político oficial.
Há, contudo, um limite intrínseco a esse repertório político: a grande energia
política gerada pelas assembleias via de regra não se permite institucionalizar; ao
contrário, ela tende a se dissipar a partir do momento em que o sistema político rejeita
ou absorve a pauta veiculada pelo protesto. Tem-se inicialmente um alvoroço, uma
multidão em revolta que, com o decurso do tempo, contudo, recai na apatia da rotina 10.
Esse é o limite intrínseco do repertório de protesto construído com recurso
exclusivamente à materialidade do corpo: ele não se converte em instituição. E isso por
uma razão quase óbvia, mas renitentemente negligenciada pela teoria social – o
protesto não se institucionaliza por não incorporar a dimensão documental do discurso.

10Curiosamente, o melhor diagnóstico dessa dialética entre revolta e resignação ainda parece ser o
oferecido por Luhmann – cf. Luhmann 1997 e Luhmann & Hellmann 1996. Os movimentos de junho de 2013
no Brasil em torno do passe livre estudantil e a greve dos caminhoneiros de 2018 ilustram precisamente
essa dinâmica: o país para por um momento, obstruído pelo protesto; o sistema político reage inicialmente
rejeitando a pauta, mas é forçado a reconhecê-la, em geral concedendo a reivindicação – e a vida retoma
então seu curso.

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IV. Móveis imutáveis: as inscrições de Bruno Latour

O recurso a Bourdieu foi importante para mostrar que ressignificação não pode ocorrer
conforme a vontade subjetiva de um único indivíduo, mas tem de estar inserida em uma
mobilização, em uma ação política coletiva. Se símbolos e significantes não tiverem seu
conteúdo transformado para uma determinada coletividade, parece difícil sustentar a
ocorrência de um processo social e histórico de ressignificação. A sociedade precisa, em
alguma medida, incorporar a mudança semântico-linguística em seus processos de
reprodução simbólica, isto é, nas operações de autodescrição que faz de si mesma nas
esferas científica, política, jurídica, nos meios de comunicação de massa, nas
universidades, nas interações cotidianas das pessoas etc. Isso não elimina o caráter
conflituoso da ressignificação. Mas alguma base fática consistente para seu uso precisa
estar estabelecida11. Agora é importante juntar a segunda materialidade indispensável a
uma sociologia da ressignificação, qual seja, a prática documental. Para tanto,
recorreremos à teoria das inscrições de Bruno Latour.
Latour (dentre outros, como Michel Callon e John Law) se apresenta como
expoente da teoria do ator-rede, iniciativa que ampliou significativamente o horizonte
da teoria social advogando uma simetria radical entre a natureza, a sociedade e a
técnica (Latour 1991; Latour 2005). Partindo dos chamados Science and Technology
Studies, Latour argumenta que distinções simples tais como “sujeito/objeto” ou
“natureza/cultura” são inadequadas para compreender a situação em que nos
encontramos hoje. Somente quando observarmos humanos e não-humanos de maneira
rigorosamente simétrica é que entenderemos o entrelaçamento entre fenômenos,
naturais, sociais, discursivos e técnicos, marca distintiva da modernidade – não obstante
o discurso oficial do Iluminismo insista em uma retórica de purificação (Latour 1991).
Apoiado na semiótica de Julien Greimas, na etnografia de Harold Garfinkel, na
filosofia de Gilles Deleuze e na sociologia de Gabriel Tarde, Latour desenvolveu um

11Pensemos, por exemplo, no escândalo político do primeiro mandato do governo Lula, cujo julgamento
ocupou a cúpula do judiciário brasileiro por anos: o conflito semântico se estabeleceu inicialmente entre
atores que empregavam o termo “mensalão” e atores que se referiam à “ação penal 470” (veja-se o link:
https://direitosp.fgv.br/ap470, consultado em 19/09/2018). Hoje, a sociedade parece ter pacificado um
determinado uso semântico para o termo “mensalão”, tendo inclusive derivado outros usos tais como
“mensalão mineiro” (por exemplo: https://tudo-sobre.estadao.com.br/mensalao-mineiro, consulta em
19/09/2018) ou “mensalão tucano” (em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mensal%C3%A3o_tucano, consulta
em 19/09/2018). Mas o uso da palavra “mensalão” para designar o escândalo de corrupção no primeiro
mandato do governo Lula parece ter deixado de ser problematizado.

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sofisticado vocabulário conceitual que tem sido objeto de intenso debate. Não é o caso
de apresentar ou problematizar a construção teórica de Latour neste ensaio (para tanto
veja-se Bachur 2016); interessa-nos um aspecto específico de sua teoria social: a rica
descrição que Latour faz dos processos de inscrição. Partindo de estudos etnográficos
(Latour & Woolgar 1979, Latour 2002), Latour observa o papel crucial das inscrições em
moldar o mundo em que nos movemos. É por meio delas que a ciência constrói sua
verdade, é por meio delas que o direito estabelece responsabilidades, obrigações e
culpabilidades em seus vereditos. Essas operações práticas da sociedade só encontram
seu objetivo final quando são materializadas documentalmente.
Tal como Butler, Latour contesta aspectos cruciais da teoria dos atos de fala de
Austin, oferecendo uma espécie de “teoria material do discurso”, segundo a qual
cadeias discursivas são sustentadas por um trabalho coletivo que mantém determinados
enunciados (“statements”) circulando como verdadeiros. Não é possível entrar aqui em
todos os pormenores da teoria da inscrição de Latour, basta dizer que ela nos permite
romper com alguns dos postulados ortodoxos da teoria da linguagem ao apoiar a
performatividade da linguagem não na fala, mas nas escrita – mais ainda, na escrita
como processo de inscrição coletivo e estabilizado institucionalmente.
Inscrições são “móveis imutáveis”: traduzem em uma superfície bidimensional
operações concretas que, nessa tradução, ganham relativa autonomia para serem
inseridas em outras operações e em outras inscrições, mantendo, contudo, seu caráter
imutável (Latour 1986). Uma inscrição se permite definir da seguinte maneira:
Um termo geral que se refere a todos os tipos de transformações pelas
quais uma entidade se torna materializada em um signo, um arquivo, um
documento, um pedaço de papel, um vestígio [“a trace”]. Usualmente, mas
não sempre, inscrições são bidimensionais, combináveis e passíveis de
superposição. Elas são sempre móveis, isto é, elas permitem traduções e
articulações ao mesmo tempo em que mantêm alguns tipos de relações
intactas. Daí serem chamadas também de ‘móveis imutáveis‘ (Latour 1999,
ps. 306/307, grifos originais, trad. livre).

Uma inscrição é imutável porque não é possível alterá-la sem corrompê-la, mas
é ao mesmo tempo móvel, isto é, combinável com outras inscrições e manuseável
praticamente, inclusive incorporando-a em uma nova inscrição. Nesse encadeamento,
seu sentido pode se alterar à luz de novas inscrições, mas ela permanece imutável. Isso
porque ela é o registro documental – ou uma tradução bidimensional – de práticas

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sociais. Latour, como Butler, identifica o universo discursivo como uma “situação
agonística”: versões de um evento “lutarão” entre si pelo estabelecimento “da
verdade”. Um tema qualquer que esteja em disputa cinde o universo discursivo e
permite que se formem coalizões argumentativas cujo resultado é o estabelecimento de
uma versão que será tomada daí em diante como “verdade”, i.e., como ponto de partida
para novas argumentações:
Quem irá vencer no encontro agonístico entre dois autores, e entre eles e
todos os outros necessários para construir um enunciado? Resposta: aquele
capaz de gerenciar o maior número de aliados fiéis e alinhados. [...] Meu
ponto é que escrever e construir imagens não podem por si mesmas
explicar as mudanças em nossas sociedades científicas, a não ser na medida
em que ajudem a tornar essa situação agonística mais favorável. [...] Nós
precisamos, em outras palavras, olhar as formas pelas quais alguém
convence alguém a aceitar um enunciado e passá-lo adiante, tornando-o
mais próximo de um fato, e reconhecer a propriedade e originalidade
primária do autor (Latour 1986, p. 5, trad. livre).

Portanto, contrariando o cânone da teoria da linguagem, é o trabalho coletivo


exigido para produzir inscrições que sustentam uma determinada afirmação, que
asseguram assim sua “felicidade” ou “infelicidade”, para usarmos os termos de John L.
Austin. A teoria do discurso de Latour é, por isso, material: o discurso não flutua acima
das práticas sociais, mas é mantido por elas (Bachur 2016 e 2017). Nota-se uma
convergência não confessada com Derrida e Foucault, pois as relações entre linguagem,
poder e instituições são constitutivas da teoria das inscrições de Latour. É o texto escrito
que materializa determinadas operações da sociedade e é o trabalho coletivo de
produção e interpretação desses textos (desenvolvido institucionalmente) que sustenta
o próprio conteúdo semântico ali materializado. Esse aporte é fundamental para uma
teoria sociológica da ressignificação.
Com efeito, densificada pela mobilização coletiva e pela necessidade de
transcorrer nos trilhos da linguagem documental, a categoria da ressignificação passa a
designar processos sociais por meio dos quais semânticas sociais – rubricas que a
sociedade usa para sua autodescrição – são alteradas documentalmente no contexto de
ações políticas coletivas. Essa releitura faz com que ressignificação deixe de abranger
exclusivamente processos identitários, permitindo que ela ganhe em alcance sociológico
ao mostrar que a narrativa do tempo histórico está não apenas permanentemente em

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aberto, está também sempre em disputa. E, mais ainda: que essa disputa se processa
pelas balizas institucionais da sociedade.
Luhmann e Koselleck, por exemplo, definem alterações na semântica social
como processos mais ou menos congruentes com as alterações estruturais da
sociedade. Haveria, nessas versões, uma convergência básica entre a estrutura social e
sua semântica (apesar dessa convergência não configurar um bloco monolítico perfeito
e, ao contrário, estar suscetível a descompassos e contradições). Mas, para eles, tais
fórmulas semânticas não são objeto de disputa. Elas antecipam ou retardam alterações
estruturais, mas não são vistas como um campo de batalha em que o sentido dos
processos históricos está inserido concretamente, em uma disputa por definição.
Compreendida como prática documental coletiva, a ressignificação ganha potencial
crítico para descrever formas de contestação e resistência, mas também de defesa e
afirmação da sociedade vigente.
Por um lado, abandonamos definitivamente a visão excessivamente subjetivista
de Butler. Afinal, não é possível estabilizar socialmente um processo de ressignificação
sem respaldo na mobilização coletiva e na documentação. Documentação designa aqui
não apenas a produção de textos oficiais (leis, decisões judiciais, decretos etc.), mas
também a produção de textos jornalísticos, científicos, políticos e de outra ordem, que
documentam alguma operação de autodescrição da sociedade. Reitere-se: é claro que
ressignificação não implica consenso, nos termos de Habermas. Mas é preciso que uma
determinada formulação semântica (“socialismo”, “liberalismo”, “democracia”,
“ditadura”, “petismo”, “anti-petismo”, “revolução de 64”, “golpe de 64” etc.) seja
empregada pela sociedade – em sentido positivo ou negativo – para descrever um
determinado evento histórico concreto.
A perspectiva construída neste ensaio, e que não equivale às visões de Butler,
Bourdieu ou Latour isoladamente consideradas, vê, nas narrativas cristalizadas
historicamente, um campo de disputa marcado por relações de poder e hegemonia.
Relações de dominação não podem abrir mão dessa dimensão simbólica – pois, como
visto, ela é também material: ancorada documentalmente nas instituições da sociedade.
Com uma sociologia da ressignificação, abandonamos a visão mecanicista de um
“aparato ideológico” inerte, instrumentalizável por uma classe dominante e tornamos
também essa esfera palco de luta. Com efeito, estratégias para quebrar narrativas

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hegemônicas têm de se valer dos canais formais e informais de comunicação,


combinando mobilização coletiva e documentação. Essas duas formas de atuação,
isoladamente, não são suficientes para alterar a forma de reprodução da sociedade.
Mobilização, sozinha, causa tumulto, mas não provoca transformações fundamentais na
estrutura social. A documentação, por sua vez, não pode ser conduzida como se fosse
um ato de fala.
Mas mobilização somada a estratégias de documentação – decisões judiciais,
leis, textos científicos e jornalísticos, enfim, toda a cadeia de textos que sedimentam
uma determinada narrativa e uma determinada interpretação do passado e do presente
– podem ser capazes de alterar o rumo dos acontecimentos. Em nossa releitura,
ressignificação ocorre tanto em sentido crítico quanto em sentido conservador, i.e., ela
pode ser uma estratégia para criticar as estruturas sociais vigentes, mas também uma
forma de reação dessas estruturas, como forma de sobrevivência e invalidação da
crítica.
Por outro lado, embora abandonemos o subjetivismo da visão de Butler, não
deixamos os processos semânticos imunes à ação (agency): a constelação de fatores que
permite que autodescrições da sociedade sejam criticadas e eventualmente substituídas
é complexa, mas permeável à vontade política coletiva. O sucesso dependerá, sempre,
da capacidade de mobilização coletiva das forças progressistas e de sua capacidade de
se apoderar dos canais institucionais de (re)produção documental da sociedade.
Esse aporte permitiria o desenvolvimento de diversas pesquisas empíricas
acerca da estabilização de narrativas hegemônicas e contra-hegemônicas. Um último
exemplo nos permite concretizar a leitura sociológica que se pretende da categoria da
ressignificação. Recentemente, a justiça brasileira alterou a certidão de óbito de
Vladimir Herzog, morto em 1975 durante seções de tortura conduzidas pela ditadura
militar. A decisão foi um dos primeiros documentos em que se reconheceu oficialmente
a existência de tortura pelo Estado, sempre negada pelo regime militar. É claro que essa
decisão, sozinha, não é capaz de alterar totalmente a semântica utilizada para a
descrição do regime militar. Mas é um marco importante. E, por óbvio, temos de
mencionar o processo atualmente em curso de ressignificação do regime militar
conduzido por movimentos de extrema direita no Brasil. Questiona-se desde a
existência de práticas de tortura ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, afirma-se a

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legitimidade de tortura praticada contra militantes de extrema esquerda. Está em curso


no Brasil um claro processo de reinterpretação do regime militar. E a categoria da
ressignificação enriquecida pelos aportes sociológicos da mobilização coletiva e da
linguagem documental nos ajuda a obter uma descrição sociológica acurada da dinâmica
social e histórica que transcorre diante dos olhos enquanto observamos, atônitos, à
marcha aparentemente inevitável do retrocesso.

V. Conclusões

Ao longo deste trabalho, buscamos desenvolver, ainda que de forma ensaística e


preliminar, uma compreensão do discurso como prática material: isto é, não como mera
fala que paira sobre a sociedade concreta, mas como rotina que estrutura
comportamentos, expectativas e instituições, atribuindo assim sentido ao mundo. Como
prática material, o discurso supera a distinção canônica entre palavras e coisas e vincula
a produção de sentido a práticas institucionais (jurídicas, políticas, econômicas,
científicas etc.). Esse mote tem guiado nossos últimos esforços (Bachur 2016 e 2017). Se
a atribuição de sentido ao mundo, isto é, a construção articulada de uma narrativa sobre
o passado, o presente e o horizonte de possibilidades aberto para o futuro, narrativa
esta ancorada nas instituições e na reprodução de expectativas e padrões
comportamentais que orientam nossa existência no mundo; enfim, se tais processos
semióticos têm uma dimensão material que os enraíza na própria reprodução da
sociedade, eles permitem compreender o discurso como prática material.
Essa noção ainda está apenas inicialmente trabalhada neste artigo e deverá ser
objeto de investigações posteriores mais robustas. Não obstante, ela já nos permite
dialogar, de forma crítica, com a categoria da ressignificação de Butler. Trata-se, como
se viu, de um poderoso insight para a teoria sociológica: identificar como, quando e por
quais processos uma palavra, uma sentença, um enunciado ou uma narrativa dominante
pode vir a ser contraditado e revertido de forma a abrir respiros para discursos
subalternos. As perspectivas abertas a partir daí para uma análise empírica do discurso
são vastíssimas.

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Antes, porém, é preciso refinar o conceito de ressignificação. Pudemos destacar


seis pontos críticos: (i) não há nada que, de saída, imponha à ressignificação um sentido
necessariamente progressista, pois o discurso conservador recorre historicamente à
ressignificação do passado para se legitimar; (ii) se o discurso é material, é preciso
considerar que a força poderá ser mobilizada contra estratégias progressistas de
ressignificação; (iii) Butler assume uma postura radicalmente anti-institucional,
obliterando o papel importante que as instituições podem eventualmente desempenhar
na afirmação de direitos; (iv) a perspectiva anti-institucional, que aposta nos
movimentos espontâneos da sociedade civil, pode soar conservadora; (v) Butler não
indica uma única instância de estabilização social da ressignificação e, por fim (vi) Butler
reedita o privilégio dado à fala em detrimento da escrita, quando a ressignificação
parece ser uma categoria essencialmente documental. Ao fim e ao cabo, portanto, a
ressignificação de Butler parece ser justamente um ato de fala soberano, restrito ao
subjetivismo da consciência individual.
Para contornar esses problemas, sugerimos dois aportes de materialidade: uma
materialidade do corpo, extraída de Bourdieu, e uma materialidade documental,
retirada de Latour.
Bourdieu abre sua teoria do discurso para uma dimensão não mecanicista ao
teorizar, com o que ele chama de “discurso herege”, a mobilização coletiva para o
trabalho de enunciação que denuncia classificações e hierarquias sociais como dadas,
naturais. Há, como se vê, grande afinidade entre essa perspectiva e a própria teoria de
gênero de Butler. Latour, a seu turno, é um dos poucos teóricos recentes a incorporar as
inscrições no cerne de sua leitura sociológica. O registro documental do passado e do
presente são indispensáveis para orientar o comportamento humano. Grande parte das
práticas sociais desenvolvidas no direito, na economia, na política, na educação, na
ciência, na arte etc., estão apoiadas no registro documental. Assim também a
ressignificação: para reverter, socialmente, o que a sociedade entende por um
determinado termo, é preciso mudar a forma pela qual esse determinado termo é
registrado. Sem essas duas dimensões, a categoria da ressignificação perde seu
potencial sociológico.
É claro que essas indicações críticas não permitem, ainda, a formulação positiva
de uma teoria sociológica da ressignificação. Para tanto, talvez seja preciso recorrer a

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alguma forma de análise empírica do discurso. Não obstante, a indicação desses dois
aportes de materialidade – ação política coletiva e produção de inscrições – são
fundamentais para tornar a categoria da ressignificação produtiva em termos
sociológicos, contribuindo assim para o desenvolvimento de uma teoria do discurso
como prática material.

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Sobre o autor

João Paulo Bachur


Graduado em direito e doutor em ciência política pela USP, com pós-doutorado no
Instituto de Filosofia da Universidade Livre de Berlin como bolsista da Fundação
Alexander von Humboldt, é coordenador acadêmico do Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Direito Constitucional do IDP/Brasília. E-mail:
joao.bachur@idp.edu.br

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021 p. 263-295.
João Paulo Bachur
DOI: 10.1590/2179-8966/2019/37794| ISSN: 2179-8966
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A capacidade jurídica da pessoa com deficiência após a


Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência:
análise das soluções propostas no Brasil, em Portugal e no
Peru
The legal capacity of persons with disabilities following the Convention on the
Rights of Persons with Disabilities: solutions proposed in Brazil, Portugal and Peru

Joyceane Bezerra de Menezes1


¹ Universidade de Fortaleza, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: joyceane@unifor.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-5710-9977.

Ana Beatriz Lima Pimentel2


² Universidade de Fortaleza, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: abeatrizlp@hotmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2752-5419.

Ana Paola de Castro e Lins3


³ Universidade de Fortaleza, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: paolaclins@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6371-126X.

Artigo recebido em 08/06/2019 e aceito em 14/04/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.296-322.
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Resumo
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) estabeleceu o marco
para a alteração do tratamento das questões relacionadas às pessoas com deficiência com
repercussão em mais de cento e setenta países signatários do documento. O instrumento
internacional obriga os Estados a assegurarem a promoção e a proteção do pleno
exercício dos direitos e interesses fundamentais das pessoas com deficiência a partir do
reconhecimento da plena capacidade jurídica em igualdade de condições com as demais.
Desde então, foram noticiadas várias medidas legais adotadas por diversos países na
busca da realização do escopo da Convenção. Tendo em vista que o intercâmbio de
modelos e experiências pode contribuir para o aperfeiçoamento do modelo social de
abordagem da deficiência que caracteriza a CDPD, analisam-se as alterações inseridas nos
ordenamentos jurídicos brasileiro, português e peruano, com enfoque no
reconhecimento da plena capacidade estabelecido pelo documento internacional.
Palavras-chave: Direitos; Deficiência; Capacidade; Sistema; Brasil; Acompanhado;
Portugal; Peru.

Abstract
The Convention on the Rights of Persons with Disabilities (CRPD) has set the framework
for changing the treatment of disability issues with repercussions in over one hundred
and seventy signatory countries. The international instrument obliges States to ensure
the promotion and protection of the full exercise of the fundamental rights and interests
of persons with disabilities on the basis of the recognition of full legal capacity on equal
terms. Since then, several legal measures adopted by several countries have been
reported in the pursuit of the scope of the Convention. Given that the exchange of models
and experiences can contribute to the improvement of the social model of approach to
disability that characterizes the CRPD, we analyze the changes introduced in the Brazilian,
Portuguese and Peruvian legal systems, focusing on the recognition of full capacity
established by the international document.
Keywords: Rights of Person; Legal capacity; System in Brazil; Accompanied; Portugal;
Restricted; Peru.

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1. Introdução

A partir da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), estabeleceu-


se a regra do comprometimento dos Estados para assegurar e promover o pleno exercício
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas com deficiência, pelo
que devem adotar todas as medidas legislativas e administrativas, modificando ou
derrogando leis, regulamentos, costumes e práticas existentes que constituam
discriminação contra as pessoas com deficiência (GONZÁLES, 2018, p. 252).
Coube a cada país signatário do tratado internacional, a seu turno, a
responsabilidade de estender o modelo social de abordagem da deficiência para o seu
ordenamento jurídico, abandonando-se os critérios que, ao longo da história, foram
utilizados para modular a capacidade jurídica a partir da deficiência. Seja por meio da
criação de novos instrumentos, seja pela modificação dos institutos já existentes, impôs-
se expressiva alteração nos ordenamentos jurídicos vigentes, a fim de garantir a inclusão
participativa da pessoa com deficiência.
O art. 12 da Convenção, considerado o verdadeiro pivô das reformas legislativas
necessárias para a adequação ao conteúdo da Convenção, assegura a toda pessoa com
deficiência a íntegra capacidade legal como um dispositivo indispensável, impactando
intensamente nos diversos institutos do direito civil dos países signatários. Diversas
Nações estão realizando as acomodações necessárias para o cabal cumprimento da CDPD,
estabelecendo soluções diferentes para a concretização do objetivo que é comum a
todos.
Considerando a existência de barreiras diversas que ainda impedem a
participação plena e efetiva da pessoa com deficiência na sociedade, objetiva-se averiguar
como a capacidade legal das pessoas com deficiência vem sendo construída nos países
signatários da Convenção e quais reformas vêm sendo feitas, que esforços foram iniciados
nesse sentido e quais são as limitações que ainda se fazem presentes.
Foram selecionadas para análise as propostas apresentadas pelo Brasil, por
Portugal e pelo Peru, tendo como referencial a CDPD. A escolha se deu porque os três
países foram alvo de críticas após avaliação da legislação pelo Comitê sobre Direitos da
Pessoa com Deficiência das Organizações das Nações Unidas. Em suma, a principal
repreensão aos três países foi a de não atenderem criteriosamente as disposições

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normativas do documento internacional em relação à plena capacidade jurídica e à


promoção do acesso ao exercício autônomo de direitos e interesses.
Para a consecução desses objetivos, realizou-se pesquisa bibliográfica na
doutrina nacional e comparada, bem como pesquisa documental na legislação
internacional. A abordagem foi de natureza qualitativa, e exploratória, no que diz respeito
aos objetivos.
Nesse sentido, pelo método dedutivo, analisa-se a modernização dos
ordenamentos jurídicos brasileiro, português e peruano. No Brasil, a Lei nº 13.146/15
estabelece que a pessoa com a deficiência tenha assegurado o direito ao exercício da sua
capacidade legal em igualdade de condição com as demais pessoas. Em Portugal, a Lei nº
49/2018 cria o regime jurídico do maior acompanhado, reformando o Código Civil, com a
eliminação dos institutos da interdição e inabilitação. Já o Decreto 1384, de setembro de
2018, mais recentemente, regula no Peru a capacidade jurídica das pessoas com
deficiência, estabelecendo que todas as pessoas maiores de 18 anos têm plena
capacidade de exercício de sua capacidade jurídica, em todos os aspectos da vida.

2. A capacidade jurídica convencional e seus fundamentos filosóficos

O objetivo primordial da Convenção sobre o Direito da Pessoa com Deficiência - CDPD é a


garantia de inclusão das pessoas com deficiência a partir do reconhecimento da igualdade
formal e material relativamente aos demais. Nessa medida, o art.12 1 assegura a toda
pessoa com deficiência a íntegra capacidade legal como um dispositivo de conteúdo

1 Artigo 12 Reconhecimento igual perante a lei 1.Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência
têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei. 2.Os Estados Partes
reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as
demais pessoas em todos os aspectos da vida. 3.Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover
o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal. 4.Os
Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam
salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos
direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal
respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de
influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período
mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente,
independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os
direitos e interesses da pessoa. 5. Os Estados Partes, sujeitos ao disposto neste Artigo, tomarão todas as
medidas apropriadas e efetivas para assegurar às pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou herdar
bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras
formas de crédito financeiro, e assegurarão que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente
destituídas de seus bens.

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medular que impõe uma ruptura paradigmática para a maioria dos Estados signatários.
Com essa dramática alteração no regime das incapacidades, a CDPD impactou
intensamente nos diversos institutos do direito civil dos países signatários e gerou
inúmeras polêmicas, inclusive quanto à sua adequação à tutela das pessoas com
deficiência.
Ao longo do século XX, muitos juristas, incluindo-se os civilistas, opuseram críticas
ao regime das incapacidades previsto nas codificações civis, denunciando a sua
impropriedade para o trato de questões existenciais que estavam em franca ascensão,
graças à expansão dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Observaram que a
titularidade dos direitos personalíssimos não poderia se separar ou cindir-se da
capacidade de exercício, fosse por sua intransmissibilidade, fosse por sua inerência à
determinada pessoa,2 sob pena de importar no esvaziamento do próprio direito. 3
(MACHADO, 2013).
Outro argumento, transcendente à discussão em torno da estrutura e das
características dos direitos personalíssimos, tem sede na filosofia dos direitos humanos e
propõe o realinhamento de conceitos como dignidade, autonomia e capacidade para
favorecer a tutela das pessoas, sobretudo, aquelas que encontravam dificuldades
persistentes para o gozo dos seus direitos, em virtude de uma deficiência (ROIG, 2007).
Nessa direção, entende-se que o sujeito moral a quem se reconhece a dignidade é todo
ser humano a quem também se garante a liberdade de eleição e, consequentemente, a
possibilidade de realização do seu próprio plano de vida (PECES-BARBA, 2003).
Sob uma perspectiva formal, a liberdade de eleição não se restringe à aptidão
para realizar escolhas concretas (PECES-BARBA, 2003, p. 35). Apresenta-se como um
atributo inerente a todo ser humano igualitariamente, constituindo sua própria
integridade moral, sem a qual se verá transformado em simples objeto (nem que seja de
proteção).

2Na locução de Antônio Menezes Cordeiro (2011, p. 108-109), há uma inerência dos direitos de personalidade

à pessoa do titular e ao objeto tutelado. Assim, “nos direitos de personalidade uma primeira vertente de
inerência é constituída pela intransmissibilidade da sua posição ativa. O direito de personalidade nasce na
esfera de um titular e ficará aí até a sua extinção (…) O direito de personalidade está, ainda,
indissociavelmente ligado ao seu objeto. Ele reporta-se a um bem de personalidade, atingindo-o onde quer
que ele se encontre. Na hipótese de uma circulação indevida de escritos ou de imagens que se devam
considerar tutelados pelo regime da personalidade, o titular poderá agir onde quer que eles se encontrem.”
3Conforme Díez-Picazo (2003, p. 346), “Como es lógico, la titularidad del derecho corresponde a la persona y,

en princípio, solo seguramente, a ella. Es además, en línea de principio, un derecho de caráter personalísimo
que solo el titular puede ejercer.”.

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Diversamente da síntese acima e a despeito de a presunção da capacidade viger


como um postulado imemorial, a pessoa com deficiência, notadamente aquela que possui
uma limitação na seara psíquica ou intelectual, sofre quotidianamente uma presunção
juris tantum de “incapacidade”. Daí a necessária implementação de uma política global
de não discriminação, tal qual a delineada pela CDPD, promovendo uma mudança
paradigmática em algumas instituições arraigadas muito mais na tradição legal do que
nos critérios e concepções de justiça e igualdade balizadores dos direitos humanos (ROIG,
2007; BARIFFI, 2014, p. 264).
A partir da CDPD, a pessoa com deficiência possui igual capacidade jurídica (ou
capacidade legal, como diz o texto original) em relação às demais. Os países signatários
da Convenção terão que abandonar a deficiência como critério modulador da capacidade
jurídica, sob pena de transformar o sujeito de direito em mero objeto de proteção e
desrespeitar o texto convencional.
Ao longo dos tempos, muitos desses países usaram a deficiência para balizar a
capacidade, fazendo-o a partir de três critérios básicos - o critério do status, o critério da
decisão irracional e o critério funcional (MENEZES, 2018). No Brasil, a solução não foi
diferente. Pelo critério do status, o diagnóstico médico da “enfermidade” ou “doença
mental” levaria a pessoa à condição de absolutamente incapaz, conforme tratou o art.
5o., do Código Civil de 1916, arrolando “os loucos de todos os gêneros” entre os
absolutamente incapazes.4
Tratava-se a deficiência a partir das limitações pessoais, e essa incapacitação
seria o suficiente para a restrição dos direitos deflagrada na própria restrição da
capacidade jurídica. Pelo critério da racionalidade da escolha, o sujeito poderia ser
considerado “incapaz” quando as suas decisões fossem ruins, reputadas irracionais ou
desassisadas, em prejuízo próprio, aos familiares ou a terceiros. O Código Civil de 1916
também adotou esse critério relativamente ao “pródigo”, no que foi seguido pelo Código
Civil de 2002.5

4CC/1916, Art. 5o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
(...)
II. Os loucos de todo o gênero.
III. Os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade.
5CC/1916, “Art. 6o São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:(…)

II. Os pródigos.”
CC/2002, Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (… V - os pródigos.

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Observa-se que, embora toda pessoa seja capaz de atos irracionais,


contraditórios à sua conduta ordinária, apenas as pessoas com deficiência intelectual e
psíquica estariam na berlinda, como se a sua capacidade natural e intelectiva estivesse
continuadamente sob sindicância. Nesse aspecto, eram vítimas de um tratamento
discriminatório (PEREIRA, 2019).
Pelo critério da funcionalidade, procura-se identificar a limitação natural da
pessoa com deficiência intelectual ou psíquica para, a partir daí, localizar o espaço no qual
ela não tem condições de se manifestar por si, justificando-se a mitigação de sua
capacidade civil e a nomeação de um representante apto a decidir em seu lugar. Esse foi
o critério escolhido pelo Código Civil de 2002 para abordar a deficiência no regime das
incapacidades. Definia como absolutamente incapaz para o exercício dos atos da vida civil
a pessoa com “enfermidade ou deficiência mental” sem o necessário “discernimento” para
a prática desses atos.6 Considerava relativamente incapaz para a prática de determinamos
atos da vida civil a pessoa que, por “deficiência mental”, tinha o “discernimento” reduzido
e a pessoa “excepcional” sem o “desenvolvimento completo”.7
Acredita-se que até esse último critério – o da funcionalidade - é ofensivo à
CDPD, na medida em que aplica efeitos da deficiência como critério redutor da capacidade
civil. Nesses moldes, mantém excluída a pessoa com deficiência, sobretudo aquela que
tem uma deficiência intelectual e psíquica, uma vez que a deficiência continua sendo a
causa indireta da incapacidade (DANDHA, 2006).
Seguindo a política de inclusão da CDPD, a utilização do critério funcional de
abordagem da deficiência só terá bom uso se for utilizado para definir o espaço no qual a
pessoa com deficiência precisará de apoio! Uma vez que se aplique para justificar a
redução da capacidade, atentará contra os fins convencionais.
É necessário afirmar-se categoricamente que a CDPD garantiu a toda pessoa
com deficiência, seja ela de origem psíquica, intelectual, física ou sensorial, a plena
capacidade jurídica. Não há dúvida quanto a isso. Até o Comitê sobre os Direitos da Pessoa
com Deficiência da ONU oportunamente esclareceu e enfaticamente sustentou que os

6CC/2002, Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: (...)
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática
desses atos;
7CC/2002, Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (...)

II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento
reduzido;
III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;

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Joyceane Bezerra de Menezes, Ana Beatriz Lima Pimentel e Ana Paola de Castro e Lins
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Estados signatários não poderão usar a deficiência de um modo direto ou indireto para
restringir a capacidade.
É certo que, durante as tratativas para a elaboração da CDPD, a aprovação do
inteiro teor do art. 12 foi precedida de árduas discussões. Houve, inclusive, a proposta de
se ressalvar, em nota de rodapé, que a capacidade legal ali consignada restringia-se
apenas à capacidade de gozo ou capacidade de direito. Mas essa proposta não logrou
êxito. Ao cabo e ao fim, o dispositivo acabou realizando uma virada copernicana,
rompendo dados da tradição jurídica ancestral. Com isso, enfrentou e enfrenta muita
resistência e diversos questionamentos.

2.1. A reação dos países signatários e a oposição de reservas

Brasil, Portugal e Peru não chegaram a oferecer uma resistência formal ao teor
da CDPD, muito embora seu inteiro teor não houvesse sido efetivamente incorporado
pelos atores do mundo jurídico. Outros países, porém, foram mais incisivos nessa
resistência. Sustentaram inicialmente que a capacidade jurídica seria matéria atinente
apenas ao direito interno, escapando da esfera de interesse de um tratado internacional.
Como o argumento não prosperou nas sessões realizadas para elaboração e votação dos
dispositivos, alguns países opuseram-lhe reservas8 ou declarações interpretativas (não
importa o nome utilizado), no momento da assinatura, visando excluir ou modificar os
efeitos jurídicos de algumas de suas disposições quando de sua aplicação a esse Estado.
Tais reservas ou declarações interpretativas foram agrupadas por Francisco
Bariffi (2014, p. 414) em três grupos distintos, designados, respectivamente, como
modelo restringido, modelo moderado e modelo de efeitos indiretos. O modelo
restringido conjugou as reservas ou declarações do Egito, dos países árabes, da Estônia,
da Venezuela e da Polônia, caracterizadas pela oposição frontal à interpretação da
capacidade jurídica, prevista no art. 12 da CDPD, como a conjugação da capacidade de
gozo e de exercício. Não admitiam que o art. 12 da CDPD viesse a gerar efeitos sobre o

8Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009, que promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Art. 2º, item 1, alínea d). reserva
significa uma declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado ao
assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o
efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado;

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seu direito interno relativamente à capacidade e continuaram admitindo as limitações ou


restrições à capacidade de exercício das pessoas com deficiência no seu direito interno.
Compuseram o segundo modelo moderado as reservas ou declarações
apresentadas pelo Canadá, pela Austrália e pela Noruega. Em comum, esses países
reconheceram e aprovaram o inteiro teor do art. 12, da CDPD, embora continuem
permitindo, excepcionalmente, as medidas limitadoras da capacidade das pessoas com
deficiência e a nomeação de um representante legal apto a decidir em seu nome. Grosso
modo, o Canadá não afastou os efeitos do art. 12, mas declarou que o cumprimento
integral desse dispositivo seria adiado até que se fizesse o devido ajuste no direito interno.
Enquanto o primeiro modelo restringe o aspecto dinâmico da capacidade (a capacidade
de exercício), o modelo moderado admite-a, mas com uma possibilidade excepcional de
restringi-la.
Finalmente, tem-se o modelo de efeitos indiretos, representado pela França,
pelos Países Baixos, pela Noruega, pela Austrália e por Singapura, cujas reservas ou
declarações enfocaram diretamente os artigos 14, 15, 23 e 29, mas acabaram produzindo
efeitos indiretos no art. 12, atingindo a capacidade jurídica da pessoa com deficiência e o
próprio sistema de apoio. A França e os Países Baixos abordaram o art. 15, no que toca ao
consentimento informado, para firmar a opção pelo regime jurídico da Convenção
Europeia em Biomedicina e Direitos Humanos, que, no âmbito das investigações
biomédicas, permite a substituição de vontade na tomada de decisão. Nisso seria
incompatível com o teor do art. 12.
Neste mesmo modelo também se agruparam as reservas e declarações da
Noruega e da Austrália em face dos artigos 14 e 15. A Austrália admite, em casos
excepcionais, a possibilidade de nomeação de um representante legal para a pessoa com
deficiência e até mesmo a sua submissão a tratamento psiquiátrico involuntário, fazendo
crer que a complexidade de suas declarações e reservas podem justificar uma
interpretação restritiva ao art. 12. No mesmo sentido, segue a Noruega, quando permite
a adoção de tratamentos psiquiátricos involuntários.
O México e o Reino Unido também apresentaram declarações e reservas que
foram retiradas, atendendo à recomendação do Comitê. Mas o Reino Unido já manifestou
que não tem a intenção de migrar do sistema de substituição de vontade para o modelo

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de apoio.9
A considerar o art. 46 da CDPD, não há como se permitir quaisquer reservas que
sejam incompatíveis com o objeto e o propósito convencionais. Assim, é importante
considerar que se o teor das reservas realizadas pelos países signatários da CDPD
incorrerem nesse infortúnio, não serão acolhidas. Relembrando a Convenção de Viena
sobre Tratados Internacionais, especialmente o art. 27, vê-se que o Estado parte não
poderá invocar as disposições do direito interno para justificar o descumprimento do
tratado de que é signatário. Portanto, as reservas que integram o chamado modelo
restritivo não têm sustentação.

3. Comitê da ONU e a monitorização ao Brasil, a Portugal e ao Peru

O Brasil não opôs reservas à CDPD. Ao contrário, a Convenção ingressou no ordenamento


brasileiro com o status de norma constitucional, sendo o primeiro tratado a ser votado e
aprovado com o quórum previsto no art. 5o, § 3º, da Constituição Federal de 1988. Mesmo
com essa particularidade, não chamou a atenção dos civilistas, que se mantiveram inertes
ou alheios até o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD, quando passaram
a tecer críticas veementes. Tantas foram as publicações em jornais jurídicos semanais,
que os mesmos senadores que propuseram o projeto de lei convertido no EPD trataram
de apresentar um novo projeto de lei (PLS nº 757/2015), visando a “corrigir alguns
excessos”, como referiram na justificativa.10 Esse projeto já foi aprovado na Comissão de
Direitos Humanos do Senado sem que fosse submetido ao debate público, como se fez
em relação ao projeto que culminou no EPD. 11

9No relato de Bariffi (2014, p. 423), “Finalmente, el 21 de diciembre de 2011 el Reino Unido retiró esta
declaración par- ticular sobre el artículo 12(4), aunque, como destacan TROMMEL y DEVANDAS, no parece
haber intención por parte de este Estado de “sustituir el modelo de sustitución en la capacidad de actuar por
un sistema de apoyo”.
10Trata-se do PLS nº 757/2015, apresentado originariamente pelos senadores Paulo Paim (PT-RS) e Antonio

Carlos Valadares (PSB-SE), mas uma versão substitutiva, subscrita pelo Senador Telmário Mota (PDT-RO) foi
enviada à Comissão de Direitos Humanos da Casa, por meio de mensagem eletrônica datada de 10 de maio
de 2016, logrando aprovação junto à Comissão de Constituição e Justiça.
11“Estranha-se, porém, que o segmento diretamente afetado não haja participado ativamente até essa

presente fase do processo legislativo. O PLS já está sob exame da Comissão de Constituição e Justiça do
Senado Federal e ainda não houve uma só audiência pública para discutir seus dispositivos. Uma vez que a
palavra de ordem do movimento internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência é “Nada sobre
nós, sem nós”, então, como justificar que as alterações conduzidas por esse PLS exaram seu “melhor
interesse”? Ademais, é oportuno mencionar que, no âmbito do VII Congresso Brasileiro sobre Síndrome de
Down, realizado nos dias 15 a 17 de outubro de 2015, em Curitiba, o Comitê Jurídico da Federação e a

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Importa destacar recente orientação legal das Organizações das Nações Unidas,
pelo Comitê sobre Direitos da Pessoa com Deficiência, reforçando a necessidade de
garantir a participação das pessoas com deficiências e de suas organizações
representativas nos processos públicos de tomada de decisões sobre seus próprios
direitos humanos.12
Mesmo quando o Brasil foi visitado pelo Comitê da ONU, foi alvo de severas
críticas, inclusive, quanto às propostas carreadas no projeto que se converteria
posteriormente no EPD. Por duas vezes, o Comitê da ONU visitou o Brasil, produzindo dois
relatórios, que foram publicados em 2012 e 2015. O último relatório denuncia muitos
pontos negativos, nos quais se destaca a insistência do país em aplicar o sistema de
substituição de vontade, tão repudiado pelo inteiro teor da CDPD. In verbis,
24. Preocupa al Comité que algunas leyes del Estado parte sigan
contemplando, en ciertas circunstancias, la sustitución en la adopción de
decisiones, que es contraria al artículo 12 de la Convención, tal como se

Associação Nacional de Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com
Deficiência – AMPID compuseram a IV OFICINA DE REVISÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO para discutir sobre
os direitos da pessoa com deficiência à luz da Constituição Federal, da Convenção da ONU sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, das Recomendações do Comitê da ONU acerca da citada Convenção e do EPD.
Como síntese das discussões realizadas, lavraram a CARTA DE CURITIBA na qual não se acham críticas às
mudanças operadas pelo Estatuto ao Código Civil tampouco eventual necessidade de sua alteração. Não
houve qualquer menção ao PLS nº 757/2015 ou mesmo à intenção do legislador em alterar o EPD, o que
demonstra a baixa divulgação desse projeto modificativo.” (MENEZES, Joyceane Bezerra de. O risco do
retrocesso: uma análise sobre a proposta de harmonização dos dispositivos do Código Civil, do CPC, do EPD e
da CDPD a partir da alteração da Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Revista Brasileira de Direito Civil –
RBDCivil, Belo Horizonte, v. 12, p. 137-171, abr./ jun. 2017).
12 Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad Observación general núm. 7 (2018). “1. Las

personas con discapacidad participaron plenamente y desempeñaron un papel determinante en la


negociación, la elaboración y la redacción de la Convención sobre los Derechos de las Personas con
Discapacidad. La celebración de consultas estrechas y la colaboración activa con las personas con
discapacidad, por conducto de organizaciones de personas con discapacidad y sus asociados, influyeron
positivamente en la calidad de la Convención y su pertinencia para esas personas. También demostraron la
fuerza, la influencia y el potencial de las personas con discapacidad, que propiciaron un tratado de derechos
humanos sin precedentes y el establecimiento del modelo de la discapacidad basado en los derechos humanos.
La participación genuina y efectiva de las personas con discapacidad, a través de las organizaciones que las
representan, es, pues, uno de los pilares de la Convención. 2. La participación activa e informada de todas las
personas en las decisiones que afectan a sus vidas y derechos está en consonancia con el enfoque de derechos
humanos en los procesos de adopción de decisiones en el ámbito público1 y garantiza una buena gobernanza
y la responsabilidad social2. (…) 18. La expresión “cuestiones relacionadas con las personas con discapacidad”,
que figura en artículo 4, párrafo 3, abarca toda la gama de medidas legislativas, administrativas y de otra
índole que puedan afectar de forma directa o indirecta a los derechos de las personas con discapacidad. La
interpretación amplia de las cuestiones relacionadas con las personas con discapacidad permite a los Estados
partes tener en cuenta la discapacidad mediante políticas inclusivas, garantizando que las personas con
discapacidad sean consideradas en igualdad de condiciones con las demás. También asegura que el
conocimiento y las experiencias vitales de las personas con discapacidad se tengan en consideración al decidir
nuevas medidas legislativas, administrativas o de otro tipo. Ello comprende los procesos de adopción de
decisiones, como las leyes generales y los presupuestos públicos, y las leyes específicas sobre la discapacidad,
que podrían afectar a la vida de esas personas10. Disponível em:
https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspxsymbolno=CRPD/C/GC/7&Lan
g=en. Acesso em: 29 abr. 2019.

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explica en la observación general núm. 1 del Comité (2014) sobre el igual


reconocimiento como persona ante la ley. También le preocupa que los
procedimientos de apoyo para la adopción de decisiones requieran
aprobación judicial y que no primen la autonomía, la voluntad y las
preferencias de las personas con discapacidad.

25. El Comité insta al Estado parte a que derogue todas las disposiciones
legales que perpetúen el sistema de la sustitución en la adopción de
decisiones. También le recomienda que adopte, en consulta con las
organizaciones de personas con discapacidad y otros proveedores de
servicios, medidas concretas para reemplazar el sistema basado en la
adopción de decisiones sustitutiva por otro basado en el apoyo a la adopción
de decisiones que privilegie la autonomía, la voluntad y las preferencias de
las personas con discapacidad, en plena conformidad con el artículo 12 de la
Convención. Le recomienda además que mantenga debidamente informadas
sobre el nuevo marco legal a todas las personas con discapacidad que se
encuentren bajo custodia, y que garantice en todos los casos el ejercicio del
derecho al apoyo para la adopción de decisiones. 13

Portugal e Peru também não opuseram reservas, mas ambos os países foram
bastante criticados pelo Comitê da ONU quando visitados para averiguação da adoção das
medidas exigidas pela Convenção.
Por meio da Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 7 de maio,
Portugal aprova a CDPD, ratificando-a pelo Decreto do Presidente da República n.º
71/2009, de 30 de julho. O Protocolo Opcional, por sua vez, foi aprovado pela Resolução
da Assembleia da República n.º 57/2009, também em 7 de maio, havendo sido ratificado
pelo Decreto do Presidente da República n.º 72/2009, de 30 de julho.
Por ocasião do Relatório divulgado em 2016, o Comitê observou que o Estado
português não havia realizado uma completa revisão de sua legislação para o fim de
harmonização com a Convenção e que, em razão disto, ainda mantinha leis,
regulamentos, usos e práticas perpetuando discriminação contra as pessoas com
deficiência.14
Até então, o Código Civil português, por exemplo, aplicava a deficiência como
critério para balizamento da incapacidade civil, e, consequentemente, o direito protetivo
pautado na incapacitação (interdição), como também não autorizava o casamento à

13 Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observaciones finales sobre el informe inicial
del Brasil. Disponível em:
https://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/arquivos/%5Bfield_generico_imagens-
filefield-description%5D_174.pdf. Acesso em: 30 abr. 2019.
14Comissão sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Observações finais sobre o relatório inicial de

Portugal. Disponível em: http://oddh.iscsp.ulisboa.pt/index.php/pt/2013-04-24-18-50-23/outras-


publicacoes/item/276-recomenda%C3%A7%C3%B5es-da-onu-a-portugal-sobre-direitos-das-pessoas-com-
defici%C3%AAncia. Acesso em: 20 abr. 2019.

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pessoa com deficiência psíquica ou intelectual. Dentre outras recomendações, havia a


alteração do código civil para revisão das incapacidades, reestruturação do sistema de
apoio em detrimento da substituição de vontade, bem como a revisão do direito das
famílias, permitindo a inclusão da pessoa com deficiência, inclusive, para casar. Conforme
o relatório:
Reconhecimento igual perante a lei (art. 12)
1. A Comissão observa com profunda preocupação que no Estado parte exista
um grande número de pessoas com deficiência submetidas ao regime de
tutela total ou parcial, e consequentemente privadas do exercício de certos
direitos, como o direito ao voto, ao matrimónio, a constituir família ou a gerir
bens e propriedades e também que na actual revisão do seu Código Civil se
continue a contemplar a restrição da capacidade jurídica das pessoas com
deficiência.
2. A Comissão recomenda ao Estado parte que adopte as medidas
apropriadas para que todas as pessoas com deficiência que tenham sido
privadas da sua capacidade jurídica possam exercer todos os direitos
consagrados na Convenção, incluindo o direito ao voto, ao matrimónio, a
constituir família e a gerir bens e propriedades, como é indicado na sua
Observação Geral N.º1 (2014) sobre o Reconhecimento igual perante a lei. A
Comissão também recomenda que o Estado parte revogue os regimes
existentes de tutela total e parcial, os quais eliminam ou limitam a capacidade
jurídica da pessoa, e desenvolva sistemas de apoio à tomada de decisão, que
permitam e promovam o exercício efectivo dos direitos das pessoas com
deficiência, conforme o artigo 12 da Convenção. (grifo do próprio
documento).

O Peru, semelhantemente, foi repreendido pelo Comitê da ONU, conforme se


extrai do relatório apresentado no ano de 2012. 15 À época, o país não apresentava
estratégias eficazes para migração para o modelo social de abordagem, incluindo soluções
concretas para garantir o amplo exercício dos direitos pela pessoa com deficiência. 16
Advertia que o marco legal sobre deficiência não se adequava ao texto convencional,
determinando a imediata revogação da prática da interdição judicial e o fim do modelo
de substituição de vontade. Impôs ainda a modificação do Código Civil para que se
garantisse o exercício dos direitos civis a todas as pessoas com deficiência, incluindo-se o
direito a contrair o matrimônio.
El Comité recomienda al Estado parte que derogue la práctica de la

15Comissão sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Observações finais sobre o relatório inicial do Peru
Disponível em:
https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CRPD/C/PER/CO/1
&Lang=Sp. Acesso em: 29 abr. 2019.
16O relatório da ONU foi produzido no período entre 16 a 20 de abril do ano de 2012. A Lei Geral da Pessoa

com Deficiência foi publicada em 24.12.2012.

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interdicción judicial y revise las leyes que permiten la tutela y la curatela con
objeto de garantizar su plena conformidad con el artículo 12 de la
Convención. Le recomienda también que adopte medidas para cambiar el
modelo de sustitución en la toma de decisiones por uno de apoyo o asistencia
a las personas con discapacidad en esa toma de decisiones que respete su
autonomía, voluntad y preferencias.
26. Preocupa al Comité que el Código Civil del Estado parte no reconozca la
capacidad para ejercer el derecho a contraer matrimonio de las personas
sordomudas, sordociegas y ciegomudas, así como de las personas con
discapacidad mental o que sufren deterioro mental.
27. El Comité insta al Estado parte a que modifique el Código Civil con el fin
de garantizar adecuadamente a todas las personas con discapacidad el
ejercicio de sus derechos civiles, en particular el derecho a contraer
matrimonio.

Observa-se que as críticas apontadas pela ONU aos três países não distam
muito, notadamente no que diz respeito à capacidade jurídica e ao acesso ao exercício
dos direitos civis, em geral. Pois bem, o que houve depois de então? Quais as principais
mudanças havidas na legislação desses três países até o dia de hoje? Sem realizar uma
análise pormenorizada, apontam-se as mudanças havidas no plano da capacidade jurídica
que, por longos anos, funcionou como barreira de acesso a certos direitos cujo gozo não
se dissocia do exercício.

4. A capacidade jurídica da pessoa com deficiência no Brasil, no Peru e em Portugal

Sem a pretensão de traçar um esboço comparativo entre as soluções propostas por cada
um desses países para atender ao imperativo do art. 12 da CDPD, é o propósito do
presente artigo apresentar a capacidade jurídica da pessoa com deficiência psíquica e
intelectual a partir da Lei nº 13.146/2015 (EPD), no Brasil; da Lei do Maior Acompanhado
(Lei nº 49/2018), em Portugal; e, da Lei Geral da Pessoa com Deficiência (Lei nº
29.973/2012) e do Decreto Legislativo nº 1384/2018, que alteraram o Código Civil, no
Peru.

4.1. Brasil: O Estatuto da pessoa com deficiência ou Lei Brasileira de Inclusão

Coube ao EPD alterar os arts. 3º e 4º do Código Civil Brasileiro, excluindo qualquer


referência à deficiência para mitigação da capacidade civil. Inicialmente, o EPD reafirma
o conceito de deficiência tal qual fizera a CDPD, para qualificá-la como um impedimento

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de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação


com uma ou mais barreiras, pode obstruir a participação plena e efetiva da pessoa na
sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (art. 2º). Assim, a restrição
à capacidade de exercício pode figurar uma barreira insuperável ao gozo de muitos
direitos de personalidade, por exemplo.
A seguir, já no art. 6º, dispõe que a deficiência não afetará a capacidade civil da
pessoa. Arrola exemplificativamente que a pessoa terá capacidade para o casamento e a
união estável, o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, o planejamento familiar, a
conservação da fertilidade, vedando a esterilização compulsória, a constituição do seu
arranjo familiar, com o direito à convivência familiar e comunitária, bem como para o
exercício da guarda, tutela e adoção.
Especificamente no art. 114, revoga os artigos 3º e 4º do Código Civil,17 excluindo
a deficiência dos dispositivos, como que evitando a sua coligação à capacidade. 18
Deficiência é uma situação de diversidade que transcende até mesmo a condição da
pessoa, uma vez que resulta da equação “limitação + barreira”.
Posto que a pessoa passe à condição de sujeito capaz, não estará ao sabor da
própria sorte quando a sua vulnerabilidade impedir o exercício escorreito da capacidade
civil. O EPD é claro, no art. 5o, que a pessoa com deficiência deve ser protegida e posta a
salvo de abusos, sendo considerada especialmente vulnerável.19
Ademais, para além dos instrumentos informais e sociais de apoio que a família e
as instituições, em geral, devem dispensar, o direito oferece dois mecanismos especiais
para favorecer o exercício da capacidade jurídica: a tomada de decisão apoiada e a
curatela. A primeira constitui um negócio jurídico especial, homologado judicialmente,

17 Art. 114. A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar com as seguintes
alterações:
“Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16
(dezesseis) anos.
I - (Revogado);
II - (Revogado);
III - (Revogado).” (NR)
“Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:
.....................................................................................
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
......................................................................................
18Sobre a matéria, sugerem-se dois textos: Menezes (2018, p. 1-13) e Menezes; Teixeira (2016, p. 1-31). 2019.
19Lei nº 13.146/2015, Art. 5º A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência,

discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante.


Parágrafo único. Para os fins da proteção mencionada no caput deste artigo, são considerados especialmente
vulneráveis a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência.

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em procedimento de jurisdição voluntária que não toca a capacidade civil da pessoa


apoiada. A segunda, que leva o mesmo nome do instituto vigente no direito protetivo dos
Códigos de 1916 e 2002, migra do sistema protetivo de substituição de vontade para o
sistema de apoio, no qual a vontade da pessoa curatelada deve ser respeitada, mesmo
quando o curador for assistente ou representante legal.
Entende-se que a pessoa com deficiência sob curatela continua sendo capaz, tal
qual determina a CDPD. Seria um sujeito capaz sob apoio curatelar. Ousa-se concluir
diversamente da maioria dos civilistas para quem a pessoa sob curatela será,
inexoravelmente, relativamente incapaz. Para chegarem a essa conclusão, conjugam o
art. 1.767, I20 com o art. 4º, III do Código Civil: se quem está sob curatela são “aqueles
que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;” e estes
tais são arrolados no art. 4º, III, como relativamente incapazes, logo, a pessoa com
deficiência sob curatela seria relativamente incapaz. Por esse raciocínio, não se
consideram os dispositivos já citados do EPD e a própria CDPD.
Na expressão de Luiz Edson Fachin (2011), na aplicação de um dado dispositivo
normativo, há que se considerar o seu perfil funcional no contexto da unidade do sistema.
Destarte, as leis, tratados, convenções, decretos e regulamentos devem ser
conhecidos pelo jurista não apenas em sua literalidade, mas sob uma
hermenêutica aprofundada, funcionalizada e aplicativa, guiada pelo axioma
da promoção da dignidade pessoa humana na permanente dialética entre a
norma e fato, entre o formal e o social, cujo resultado, ainda que imprevisível,
resulta na constante reinvenção e renovação do direito.

E é bem isso: não há como considerar uma pessoa humana incapaz, sem esvaziar
a sua condição de sujeito digno. Até mesmo relativamente às crianças esse conceito pode
vir a mudar em um breve espaço de tempo. Isso não implica lançar a pessoa com
deficiência a um vazio protetivo, mas a redelinear um sistema apto a lhes assegurar
capacidade plena com um apoio integrativo, livrando-a da condição de mero objeto de
proteção.

20Art.1.767. Estão sujeitos a curatela: I - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem
exprimir sua vontade;

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4.2. Portugal: o regime do maior acompanhado

Para atender aos imperativos da Convenção, Portugal faz profundas alterações


no Código Civil, a partir da Lei nº 49, de 14 de agosto de 2018, abolindo os institutos da
interdição e da inabilitação.
Antes desta lei, a pessoa maior com deficiência psíquica e/ou intelectual era
considerada adulto incapaz (arts. 138 e 139)21 sofrendo cerceamento em sua autonomia
e em sua autodeterminação na esfera jurídica patrimonial e pessoal. Transferia-se o dever
de representá-lo a um terceiro, que seria o tutor ou o curador. De toda sorte, o maior
interdito seria equiparado ao menor – ou seja, sofreria a mudança do estado para
qualificar-se como incapaz (art. 139).
Após o advento da CDPD – que foi ratificada por este país –, a legislação
precisava ser alterada. Parecer da Ordem dos Advogados sobre a Resolução – que visa
alterar os artigos 138º a 156º, 1601º, 1850º, 1913º e 2189º do Código Civil –,22 já
denunciava essa necessidade de o Código Civil Português se adequar à CDPD.
É incontestável que o actual regime de protecção das pessoas com deficiência
– através dos institutos da interdição e da inabilitação que se assumem como
os principais meios de salvaguarda da pessoa com deficiência, regulados nos
arts. 138º a 152º do Código Civil –, se encontra hoje desajustado às
necessidades de facto e jurídicas que o justificam, e convoca diversos
questionamentos desde o prisma, designadamente, da dignidade da pessoa
humana. De resto, não escasseiam os apelos da doutrina portuguesa
reclamando uma mudança de paradigma em moldes consentâneos com a
legislação que vigora em outros países da família europeia no âmbito do
regime das Incapacidades.

Por meio da Lei nº 49/2018, a alteração se fez, e como alternativa aos institutos
da interdição e da inabilitação, instituiu-se o regime jurídico do maior acompanhado. De

21ARTIGO 138º (Pessoas sujeitas à interdição).


1. Podem ser interditos do exercício dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdezmudez
ou cegueira se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens. 2. As interdições são aplicáveis a maiores;
mas podem ser requeridas e decretadas dentro do ano anterior à maioridade, para produzirem os seus efeitos
a partir do dia em que o menor se torne maior. (Redacção do Dec.-Lei 496/77, de 25-11).
ARTIGO 139º (Capacidade do interdito e regime da interdição)
Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, o interdito é equiparado ao menor, sendo-lhe aplicáveis, com
as necessárias adaptações, as disposições que regulam a incapacidade por menoridade e fixam os meios de
suprir o poder paternal.
22PARECER SOLICITADO PELO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA À ORDEM DOS ADVOGADOS, sobre a emissão de

comentários e sugestões tidos por convenientes sobre o projeto de Proposta de Lei que visa alterar os artigos
138.º a 156.º, 1601.º, 1850.º, 1913.º e 2189.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de
Novembro de 1966. [Em linha] [Consult. 19 de nov. de 2017] Disponível em:
http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=1&idsc=135578&ida=143149#_ftn1. Acesso
em: 22 abr. 2019.

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imediato, pode-se verificar que os artigos 138º e 139º foram sensivelmente alterados, de
sorte que a pessoa maior com alguma limitação mental já não será chamada incapaz.
O acompanhamento, previsto no artigo 138º, 23 visa a um apoio em geral – de
uma intensidade mais branda a mais intensa, sempre primando pela vontade do sujeito,
em sintonia com as orientações internacionais (BARBOSA, 2018, p. 49). Nessa toada, o
acompanhamento rege-se pelo princípio da necessariedade – de sorte a incidir na medida
da demanda pessoal do acompanhado. Assim, de um mero apoio, como pode ocorrer na
decisão apoiada brasileira, o acompanhamento poderá chegar à assistência ou à
representação (art. 145º, b, do Código Civil Português). 24 De igual modo, pode ser
estabelecido em um especial domínio da vida do beneficiário ou sobre faixas mais
alargadas, desde que detalhadamente assentadas na decisão que confere o
acompanhamento.
Resta apenas destacar que a capacidade de exercício do acompanhado
permanece hígida, mesmo quando sob representação do acompanhante. A seguir a
afirmativa de Barbosa, “no quadro do regime do acompanhamento, parte-se da ideia de
que o acompanhado mantém a sua capacidade de exercício” (BARBOSA, 2018, p. 62).
Significa isto, continua, que em determinadas situações, “o regime do
acompanhamento pode redundar na limitação (mas não na exclusão) da capacidade de
exercício do indivíduo.” (BARBOSA, 2018, p. 63). E assim afirma por dois motivos: o
acompanhamento que se fizer por representação não poderá ser fixado em termos
genéricos em face do princípio da necessariedade e do respeito à autonomia; para além
dos limites do acompanhamento fixado por representação, a pessoa continuaria livre para
praticar os demais atos da vida corrente e aqueles pertinentes ao direito pessoal (art.
147).25 Acrescente-se, ainda, uma terceira razão: aquela representação, se assim for

23 Artigo 138º – Acompanhamento: O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu
comportamento, de exercer, plena e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir
os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.
24Artigo 145º – Âmbito e conteúdo do acompanhamento. 1. O acompanhamento limita-se ao necessário. 2.

Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao
acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes: a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos
meios de as suprir, conforme as circunstâncias; b) Representação geral ou representação especial com
indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária; c) Administração total ou
parcial de bens; d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos; e)
Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
25Artigo 147. Direitos pessoais e negócios da vida corrente. 1. O exercício pelo acompanhado de direitos

pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em
contrário. 2. São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar,
de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher a profissão, de se

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fixada, não poderá ser feita por substituição da vontade, mas em atenção à vontade e às
preferências da pessoa.
Chama-se atenção para três dispositivos do Código Civil Português: os art.
1.601º, art. 1850º e art. 2.189º trazem possibilidade de mitigação à capacidade de gozo.
São hipóteses em que o exercício também não se poderia fazer por terceiro.
Segundo o art. 1.601º, constitui impedimento dirimente absoluto ao
casamento: “a demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a decisão de
acompanhamento, quando a sentença respectiva assim o determine”.26 Problemático
seria identificar o que o legislador português considerou demência notória, e os efeitos
que a expressão pode causar para a vida das pessoas, em geral, com um juízo mal
realizado da autoridade que celebra o casamento. Admitindo tratar-se de uma pessoa
com deficiência psíquica grave ou situação de absoluta impossibilidade de manifestação
volitiva, como aquele que está em coma, seria razoável. Mas mesmo assim, o importante
seria saber se há ou não vontade jurígena para aquele ato em concreto. Por outro lado,
ninguém poderia decidir essa matéria pela pessoa – tampouco o seu acompanhante.
Tocante à perfilhação, prevista no art. 1.850º, também há uma restrição: o
maior acompanhado somente poderá perfilhar se não houver restrição aos direitos
pessoais, fixada em sentença. Também não poderá fazê-lo se, no momento da
perfilhação, estiver afetado por “notória” perturbação mental.27
O último dispositivo, art. 2.189º, diz respeito ao direito de testar. Diz o
dispositivo que são “incapazes de testar: b) os maiores acompanhados, apenas nos casos
em que a sentença de acompanhamento assim o determine”.
Anteriormente à Lei nº 49/2018, a pessoa com deficiência psíquica ou interdita
já não poderia casar-se, testar ou perfilhar.

deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, de estabelecer relações com quem
entender e de testar.
26A redação anterior declarava nulo o casamento. Artigo 1601º (Impedimentos dirimentes absolutos) São

impedimentos dirimentes, obstando ao casamento da pessoa a quem respeitam com qualquer outra: (…) b)
A demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a interdição ou inabilitação por anomalia
psíquica;
27Anteriormente à Lei nº 49/2018, inexistia a possibilidade de perfilhacão por pessoa interditada. “Artigo

1850º (Capacidade) 1. Têm capacidade para perfilhar os indivíduos com mais de dezesseis anos, se não
estiverem interditos por anomalia psíquica ou não forem notoriamente dementes no momento da
perfilhação. 2. Os menores, os interditos não compreendidos no número anterior e os inabilitados não
necessitam, para perfilhar, de autorização dos pais, tutores ou curadores. (Redação do Dec.-Lei 496/77, de
25-11).

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4.3. Peru e o marco legal estabelecido pela Lei Geral da Pessoa com Deficiência e pelo
Decreto Legislativo nº 1384/2018

Antes mesmo da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, o Peru


já havia introduzido em seu ordenamento jurídico leis que objetivavam garantir maior
proteção aos direitos das pessoas com deficiência. Destaca-se a Lei do trabalho para
pessoas com limitações físicas, sensoriais e intelectuais (Lei n° 23285, de 17.10.1981), que
impunha uma cota de 50% sobre a quantidade total de mão de obra para empresas do
setor privado e público que contratavam essas pessoas, assegurando a elas todos os
direitos e benefícios garantidos por lei; Lei de promoção, prevenção, reabilitação e
prestação de serviços de saúde e educação com finalidade de integração social (Lei nº
24.067, de 12.01.1985); e a primeira Lei Geral da Pessoa com Deficiência (Lei nº 27.050,
de 06.01.1999), que pretendeu o desenvolvimento e a integração social, econômica e
cultural da pessoa com deficiência, além de ter criado o Conselho Nacional da Integração
da Pessoa com Deficiência, a fim de promover políticas de incentivo à inclusão e
integração da pessoa com deficiência.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU foi aprovada
pelo Congresso da República do Peru, por meio da Resolução Legislativa nº 29.217, em 1º
de novembro de 2007; foi ratificada também pelo Presidente da República, por meio do
Decreto Supremo nº 073-2007-RE, publicado no Diário Oficial El Peruano em 31 de
dezembro de 2007.
A aprovação e a ratificação da CDPD deram origem à promulgação da Lei Geral
da Pessoa Deficiência nº 29.973, publicada em 24 de dezembro de 2012, bem como de
seu Regulamento, aprovado pelo Decreto Supremo nº 002-2014-MIMP, a qual trouxe
diversas modificações ao Código Civil peruano, tanto ao ajustar algumas denominações
utilizadas,28 como ao estender direitos de família e sucessões às pessoas com deficiência.
Mesmo com a existência da legislação apontada, foi o Decreto Legislativo nº
1384, de 04.09.2018, a norma que mais modificou o Código Civil, uma vez que seu objeto
foi o reconhecimento e a regulação da capacidade civil das pessoas com deficiência em
igualdade de condições, conforme a descrição em seu próprio texto.
A primeira modificação foi na divisão da capacidade jurídica. Antes do decreto,

28Revogou-se,por exemplo, a previsão de incapacidade absoluta dos surdos mudos, cegos mudos e cegos
surdos que não podiam externar sua vontade inequivocamente (art. 43).

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havia previsão para a capacidade de gozo (reconhecida a todos com as exceções da lei) e
para a capacidade de exercício (alcançada aos dezoito anos de idade, mas afastada nos
casos de incapacidade absoluta29 ou relativa30) em artigos diferentes e com hipóteses de
verificação fundadas, por vezes, na deficiência.
O decreto unificou o conceito de capacidade jurídica, estabelecendo que a todos
é reconhecida a capacidade jurídica de gozo e de exercício de seus direitos (art. 3º),
indicando, pois, que a titularidade de direitos não pode estar apartada da possibilidade
de exercício desses mesmos direitos ou interesses. Prevê a possibilidade de restrição (e
não de supressão) à capacidade de exercício apenas por força de lei. Declara, no mesmo
dispositivo, que as pessoas com deficiência têm capacidade de exercício em igualdade de
condições em todos os aspectos da vida, em uma clara ratificação da regra disposta no
artigo 12 da CDPD.
As principais alterações foram feitas nos artigos 42 31, 4332 e 44,33 que tratavam,
respectivamente, da capacidade de exercício, da incapacidade absoluta e da incapacidade
relativa. Com a nova redação, tem-se:
Artículo 42.- Capacidad de ejercicio plena
Toda persona mayor de dieciocho años tiene plena capacidad de ejercicio.
Esto incluye a todas las personas con discapacidad, en igualdad de
condiciones con las demás y en todos los aspectos de la vida,
independientemente de si usan o requieren de ajustes razonables o apoyos

29Incapacidad absoluta. Artículo 43º.- Son absolutamente incapaces:


1.- Los menores de dieciséis años, salvo para aquellos actos determinados por la ley.
2.- Los que por cualquier causa se encuentren privados de discernimiento.
30Incapacidad relative. Artículo 44º.- Son relativamente incapaces:

1.- Los mayores de dieciséis y menores de dieciocho años de edad.


2.- Los retardados mentales.
3.- Los que adolecen de deterioro mental que les impide expresar su libre voluntad
4.- Los pródigos.
5.- Los que incurren en mala gestión.
6.- Los ebrios habituales.
7.- Los toxicómanos.
8.- Los que sufren pena que lleva anexa la interdicción civil.
31Artículo 42º.- Tienen plena capacidad de ejercicio de sus derechos civiles las personas que hayan cumplido

dieciocho años de edad, salvo lo dispuesto en los Artículos 43º y 44º.


32Artículo 43º.- Son absolutamente incapaces:

1.- Los menores de dieciséis años, salvo para aquellos actos determinados por la ley.
2.- Los que por cualquier causa se encuentren privados de discernimiento.
33Artículo 44º.- Son relativamente incapaces:

1.- Los mayores de dieciséis y menores de dieciocho años de edad.


2.- Los retardados mentales.
3.- Los que adolecen de deterioro mental que les impide expresar su libre voluntad
4.- Los pródigos.
5.- Los que incurren en mala gestión.
6.- Los ebrios habituales.
7.- Los toxicómanos.
8.- Los que sufren pena que lleva anexa la interdicción civil.

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para la manifestación de su voluntad.


Excepcionalmente tienen plena capacidad de ejercicio los mayores de catorce años y
menores de dieciocho años que contraigan matrimonio, o quienes ejerciten la
paternidad.

Regulou-se a plena capacidade de exercício e reconheceu-se que o uso de ajustes


razoáveis ou apoio para a exteriorização da vontade não afasta ou diminui a
potencialidade da prática de atos do cotidiano. Na verdade, é um meio de garantir que o
projeto de vida pessoal traçado internamente possa ganhar expressão na vida concreta,
o que revela o cuidado do legislador com a promoção da vontade e das preferências da
pessoa com deficiência. É certo que os ajustes razoáveis devem ser tão variados como são
variadas as espécies de deficiência, ou seja, irão depender de cada caso concreto e de
suas particularidades e exigências (GONZÁLEZ; DÍAZ, 2018).
Ressalte-se que a declaração da vontade apresenta-se sob duas modalidades: 34
a expressa, que ocorrerá de forma escrita, falada, por linguagem de sinais, e a manifestada
por meio de ajustes razoáveis e/ou apoio, quando não for possível falar ou escrever; e a
revelação da vontade de forma tácita, inferida incontestadamente pelas atitudes ou
condutas reiteradas durante a história de vida da pessoa. A consideração da declaração
da vontade por outros meios diferentes dos tradicionais concretiza o melhor interesse da
pessoa com deficiência, revelado pela interpretação da vontade e das preferências da vida
real de quem esteja sob apoio.
A alteração também foi sentida na previsão da incapacidade absoluta, que,
semelhante ao direito brasileiro, passa a ser prevista apenas para os menores de dezesseis
anos, embora haja ressalva de que a lei pode autorizar a prática de certos e determinados
atos civis por esses menores. Abandonou-se o critério do discernimento como causa da
eliminação da capacidade de exercício.
Em uma iniciativa direcionada para o afastamento da incapacidade por qualquer
outro critério que não seja a idade, o Decreto 1384/2018 pôs fim à incapacidade relativa.

34Artículo 141.- Manifestación de voluntad.: La manifestación de voluntad puede ser expresa o tácita. Es
expresa cuando se realiza en forma oral, escrita, a través de cualquier medio directo, manual, mecánico,
digital, electrónico, mediante la lengua de señas o algún medio alternativo de comunicación, incluyendo el uso
de ajustes razonables o de los apoyos requeridos por la persona. Es tácita cuando la voluntad se infiere
indubitablemente de una actitud o conductas reiteradas en la historia de vida que revelan su existencia. No
puede considerarse que existe manifestación tácita cuando la ley exige declaración expresa o cuando el agente
formula reserva o declaración en contrario.

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Em seu lugar, trouxe, no artigo 44, 35 a previsão da capacidade de exercício restringida. 36


Aliada à modificação que deu fim à incapacidade relativa, foi proposto um modelo
de apoio e salvaguardas (previsto tanto nos artigos 45, 45-A e 45-B, como nos artigos 659-
A a 659-H), que deverão ser constituídas pelas próprias pessoas com deficiência, se elas
puderem exprimir sua vontade. A regra é que essas medidas sejam estabelecidas pelo
próprio beneficiado, que poderá escolher entre formalizar judicial ou extrajudicialmente.
Foi estabelecido que os apoios são formas de assistência estabelecidas formalmente com
especificação de quem exercerá o apoio, sua duração e seu alcance.
Não há mais previsão da imposição da representação, como instituto de
substituição de vontade, para a pessoa com deficiência. Será admitida a representação
apenas em casos excepcionais determinados pelo apoiado. As medidas adotadas para
garantir a realização da máxima vontade e preferência da pessoa sob apoio e a proteção
dos direitos são reconhecidas como salvaguardas pela norma.
Há, entretanto, uma segunda possibilidade de constituição do apoio e das
medidas de salvaguardas: a designação judicial. O juiz designará o apoio nos casos em que
a pessoa não possa manifestar sua vontade ou que não tenha estabelecido, quando ainda
possível, seu plano de apoio antes de ocorrer o impedimento da manifestação da vontade,
por exemplo, nos casos de pessoa em coma.
O decreto peruano faz ajustes também em artigos relacionados à capacidade
para o casamento e o exercício do “pátrio poder”, assim como na capacidade
testamentária ativa em favor da pessoa com deficiência.
Não foram extintas a curatela nem a interdição, mas sua previsão está
desvinculada de circunstância decorrente de deficiência. Ficaram reservadas, no entanto,
aos casos do pródigo, do ébrio habitual, do toxicômano e do mau gestor de negócios e/ou

35Artículo 44.- Capacidad de ejercicio restringida


Tienen capacidad de ejercicio restringida:
1.- Los mayores de dieciséis y menores de dieciocho años de edad.
2.- DERROGADO.
3.- DERROGADO.
4.- Los pródigos.
5.- Los que incurren en mala gestión.
6.- Los ebrios habituales.
7.- Los toxicómanos.
8.- Los que sufren pena que lleva anexa la interdicción civil.
9.- Las personas que se encuentren en estado de coma, siempre que no hubiera designado un apoyo con
anterioridad.
36Vitor Almeida (2019, p. 184) já utiliza essa expressão como sendo a mais adequada em relação ao estado da

incapacidade no Brasil.

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patrimônio.
Assim como no Brasil, as mudanças não foram recebidas com entusiasmo pela
unanimidade da doutrina. Há críticas tanto ao modelo social adotado pela CDPD, como à
reforma da previsão da plena capacidade de exercício para as pessoas com deficiência.
Um dos questionamentos dá-se com o confronto entre a incapacidade absoluta do menor
de 16 anos e a plena capacidade de quem tem “deficiência mental severa irreversível”, o
que, para parte da doutrina, não é razoável (ODAR, 2019).
Em que pesem as opiniões contrárias, entende-se que a alteração legislativa
peruana atende às diretrizes traçadas pela Convenção dos Direitos das Pessoas com
Deficiência da ONU, que, também no Peru, é preceito normativo e com caráter vinculante
(VIVAS TÉSON, 2010, p. 565).

5. Considerações Finais

Para garantir a inclusão de toda pessoa com deficiência - seja ela de origem psíquica,
intelectual, física ou sensorial - em igualdade de condições com as demais, a CDPD
implementou uma mudança significativa no regime de incapacidades, de modo que os
direitos civis, políticos, culturais, econômicos e sociais devem seguir o modelo social de
abordagem na sua elaboração.
Ao assegurar a toda pessoa com deficiência a íntegra capacidade legal, o art. 12
da CDPD impactou intensamente nos diversos institutos do direito civil dos países
signatários, impondo-lhes a alteração no regime das incapacidades.
Embora a CDPD não tenha revogado os sistemas de substituição de vontade,
não permite que a deficiência seja o critério utilizado para a sua aplicação. Assim, eventual
medida restritiva da capacidade deve ser justificada na situação específica do sujeito e
não no critério da deficiência, de modo que a interpretação do artigo 12 de forma a
garantir todos os direitos em vez de restringi-los é essencial para que os demais artigos
da Convenção façam sentido e possam ser implementados.
Cada país signatário da Convenção se obrigou a instituir os mecanismos de apoio
necessários às tomadas de decisão das pessoas com deficiência, protegendo-as de
ameaças ou lesão, delimitado tal apoio de acordo com caso concreto, podendo ser mais
brando ou mais intenso – mas nunca significando uma substituição de vontade,

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lembrando sempre que a proteção que se almeja garantir à pessoa com deficiência é
aquela que lhe permite realizar-se como protagonista de uma vida independente na maior
medida possível.
As críticas apontadas pela ONU ao Brasil, a Portugal e ao Peru não distam muito,
notadamente no que diz respeito à capacidade jurídica e ao acesso ao exercício dos
direitos civis, em geral. Coube ao EPD alterar os arts. 3º e 4º do Código Civil brasileiro,
excluindo qualquer referência à deficiência para mitigação da capacidade civil. Por meio
da Lei Brasileira de Inclusão, implementou-se sistema para suporte aos que necessitam
de apoio e salvaguarda (a tomada de decisão apoiada), como forma de auxiliar sem a
mitigar a capacidade jurídica.
Para atender aos imperativos da Convenção, Portugal fez profundas alterações
no Código Civil, a partir da Lei nº 49, de 2018, abolindo os institutos da interdição e da
inabilitação e instituindo o regime jurídico do maior acompanhado, cuja capacidade
permanece incólume, mesmo quando sob representação do acompanhante.
No Peru, o Decreto 1384, de agosto de 2018, estabeleceu que a todos é
reconhecida a capacidade jurídica de gozo e de exercício de seus direitos, indicando, pois,
que a titularidade de direitos não pode estar apartada da possibilidade de exercício desses
mesmos direitos ou interesses. Prevê a possibilidade de restrição (e não de supressão) à
capacidade de exercício apenas por força de lei. Merece destaque também a inovação
peruana no que toca ao respeito da vontade tácita, construída mediante vontade
biográfica da pessoa. A consideração da declaração da vontade por outros meios
diferentes dos tradicionais concretiza o melhor interesse da pessoa com deficiência,
revelado pela interpretação da vontade e das preferências da vida real de quem esteja
sob apoio.
Para além de todas as modificações ou adaptações nos ordenamentos jurídicos
mundo afora, insista-se que a sociedade é quem deve se adequar para garantir a inclusão
da pessoa com deficiência em igualdade de condições, reconhecendo-lhe a sua
personalidade jurídica, sua autonomia e sua plena capacidade jurídica. É necessário se
redesenhar uma construção social que promova e proteja, na máxima medida, as
vontades e os interesses da pessoa com deficiência, resguardando, permitindo e
facilitando o seu desenvolvimento e o exercício de seus direitos de maneira plena.

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Sobre as autoras

Joyceane Bezerra de Menezes


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará. Professora titular da Universidade de Fortaleza,
vinculada ao Programa de Pós-Graduação Strictu Senso em Direito
(Mestrado/Doutorado), na Disciplina Tutela da pessoa na sociedade das incertezas.
Professora adjunto da Universidade Federal do Ceará. E-mail: joyceane@unifor.br

Ana Beatriz Lima Pimentel


Doutoranda em Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade de
Fortaleza. Mestre em Direito Público - Ordem Jurídica Constitucional pela
Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Privado pela Universidade de
Fortaleza. Professora de Direito Civil do Curso de Direito da Universidade de
Fortaleza e do Centro Universitário Christus. Membro do Grupo de pesquisa Cnpq
Direito Constitucional nas Relações Privadas - Direito dos danos e proteção à pessoa
do PPGD/UNIFOR. E-mail: abeatrizlp@hotmail.com

Ana Paola de Castro e Lins


Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito
Constitucional na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Mestra em Direito
Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Membro do Grupo de pesquisa Cnpq
Direito Constitucional nas Relações Privadas - Direito dos danos e proteção à pessoa
do PPGD/UNIFOR. E-mail: paola@unifor.br

As autoras contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Forjando mercados com ferramentas jurídicas: uma agenda


de pesquisa sociojurídica
Forging markets with legal tools: a socio-legal research agenda

Pedro Salomon Bezerra Mouallem¹


¹ Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail:
pedro.mouallem@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2549-230X.

Artigo recebido em 16/11/2019 e aceito em 21/04/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.323-352.
Pedro Salomon Bezerra Mouallem
DOI:10.1590/2179-8966/2020/46738| ISSN: 2179-8966
324

Resumo
Este artigo apresenta uma abordagem sociojurídica para análise da institucionalização
dos mercados. Sugere-se a importância da dimensão jurídica para análise das
instituições e das disputas políticas em mercados, além de delinear um framework para
futuras pesquisas. Metodologicamente, trata-se de um exercício de organizar – de modo
crítico, mas articulado – trabalhos da sociologia dos mercados e da sociologia do direito
e da economia.
Palavras-chave: Sociologia econômica; Sociologia jurídica; Instituições; Direito;
Mercados.

Abstract
This paper presents a socio-legal approach to analyze the institutionalization of markets.
The paper suggests the relevance of the legal dimension for the analyses of markets
institutions and political struggles, as well as outlines a framework for future research.
Methodologically, the paper aims to bridge different insights through a – critical but
constructive – dialogue of workson the sociology of markets and the sociology of law
and the economy.
Keywords: Economic sociology; Sociology of law; Institutions; Law; Markets.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.323-352.
Pedro Salomon Bezerra Mouallem
DOI:10.1590/2179-8966/2020/46738| ISSN: 2179-8966
325

1. Introdução1

Mercados ainda são descritos e analisados majoritariamente por perspectivas


econômicas, que os tomam como artefatos espontâneos e naturais. Costuma ser
depurado, nestas explicações, todo contexto sociopolítico, institucional e cultural em
que mercados nascem, operam, transformam-se e, eventualmente, morrem. Em razão
disso, análises sociológicas têm endereçado críticas agudas às abordagens econômicas
mainstream, indicando como perdem parte relevante da ação social em mercados, da
estruturação institucional e do conjunto de relações que os conformam (STREECK;
BECKERT, 2008).
Mesmo as análises sociológicas, no entanto, têm sido criticadas por tratarem a
relação entre estado e empresas como “caixa-preta” e por descreverem o estado como
uma instituição externa aos mercados. Falham, em poucas palavras, em esmiuçar os
processos políticos que os permeiam. Neste artigo, apresento uma abordagem
sociojurídica para análise da institucionalização dos mercados, sugerindo um caminho
analítico capaz de preencher lacunas existentes na sociologia dos mercados.
O objetivo central deste artigo é indicar a importância da dimensão jurídica para
processos políticos de institucionalização de mercados, além de delinear uma
abordagem para futuras pesquisas. Metodologicamente, trata-se de um exercício de
articular dois principais blocos de literatura: de um lado, trabalhos da “sociologia dos
mercados” que analisam a construção de mercados desde sua dimensão institucional, e,
de outro, trabalhos que avançam uma “sociologia do direito e da economia”. 2 Da leitura
conjunta desses trabalhos, espero jogar luz às formas pelas quais o direitoatua na
institucionalização de mercados, que frequentemente são subdimensionadas (ou
ignoradas) por trabalhos no tema.
O artigo está estruturado como se segue. A segunda seção apresenta,
sinteticamente, as críticas iniciais de abordagens sociológicas aos pressupostos do
mainstream econômico e como os trabalhos da chamada “nova sociologia econômica”

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Agradeço aos coordenadores e participantes do
Grupo de Trabalho em “Sociologia Econômica”, do 19º Congresso Brasileiro de Sociologia com quem debati
uma primeira versão deste trabalho. Agradeço também às/aos revisoras/res às cegasdesta revista pelos
comentários e sugestões. Erros remanescentes são, obviamente, de minha exclusiva responsabilidade.
2 Uso o termo sugerido por Edelman e Stryker (2004) que me parece sintetizar melhor os esforços nesse

campo.

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se diversificaram na análise social dos mercados. Esta parte apresenta ainda críticas que
lhes têm sido endereçadas por estudos recentes. A terceira seção apresenta a
abordagem aqui sugerida, a partir de uma literatura sociojurídica, indicando as
propriedades do direito que o tornam uma variável relevante no processo de
institucionalização de mercados. A quarta seção apresenta considerações finais.

2. Estados e mercados: da crítica ao mainstream econômico à crítica da crítica


2.1. Desmistificando elegantes modelos econômicos

Como argumentam Hirsch, Michaels e Friedman (1987: 318-319), o pensamento


econômico foi capaz de criar um paradigma mais homogêneo e unificado de análise que
outras áreas das ciências sociais – também por isso delas se afastou continuamente.
Desde a segunda metade do século passado, as bases teóricas estabelecidas pela
economia neoclássica vêm vencendo a batalha ideológica contra heterodoxos em
economia (keynesianos, schumpeterianos, marxistas, e assim por diante), constituindo o
que se chama mainstream do pensamento econômico atual.
Nesses trabalhos, a partir de pressupostos deliberadamente simples, elegantes
modelos são construídos, dos quais se espera não apenas uma explicação sobre o
funcionamento atual da economia, mas também a predição de resultados futuros. A
microeconomia se tornou o paradigma da disciplina como um todo, baseando-se em um
tipo de abordagem altamente abstrata e dedutiva. Nessa visão, uma análise mais
abrangente (macro) da economia é derivada do nível individual (micro) por meio da
agregação de dados e resultados (HIRSCH; MICHAELS; FRIEDMAN, 1987: 318).
Esse tipo de operação é possível a partir apenas da pressuposição de
características intrínsecas à natureza humana e suas preferências. Nos termos do
mainstream econômico, todo agente econômico move-se egoisticamente, de modo
racional e visando a maximizar suas utilidades: o homo economicus seria a
corporificação da racionalidade econômica padrão. Além disso, indivíduos racionais
possuiriam preferências fixas, sempre constantes, e suas transações em mercado seriam
realizadas a partir de contratos auto-executáveis. Sendo assim, o mercado, se deixado a
seu alvedrio, operaria de modo suave e constante (HIRSCH; MICHAELS; FRIEDMAN,
1987: 321).

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Deduzindo ações em mercado a partir desses simples princípios – e com


acréscimo de outras poucas variáveis contextuais –, economistas são capazes de
formalizar em complexos modelos matemáticos o funcionamento de todo e qualquer
mercado. Com tal operação, a própria noção de mercado é tomada de forma abstrata e
ideal, visto que apenas expressaria a inclinação humana, pressuposta, à maximização de
utilidades. No mercado ideal, o egoísmo individual conduziria ao benefício coletivo, tal
qual na fábula das abelhas de Mandeville, uma vez que a competição entre indivíduos,
na compra e venda em mercado, funcionaria como mecanismo de ajuste de preços a um
patamar ótimo de eficiência. Também em razão disso, o mercado tenderia ao equilíbrio
de preços proporcionado pela competição.
Eventuais desequilíbrios são computados, por modelos econômicos, como
variáveis externas ao mercado perfeito. A intervenção estatal, por exemplo, seria fonte
recorrente de desequilíbrio, uma vez que critérios políticos alheios à naturalidade dos
princípios econômicos poderiam afetar a formação dos preços. Por essa razão, a
desconfirmação empírica de que “o mercado sempre tende ao equilíbrio” tornou-se
impossível, pois há sempre a possibilidade de se indicar uma variável externa como
responsável por sua desarmonia. Também por isso, no pensamento mainstream, há
uma defesa intransigente da limitação à ação estatal, que criaria uma série de
distorções, além da insistência de que o mercado pode e deve se autorregular (BLOCK,
2013).
A força dessas categorias do pensamento econômico, articuladas em elegantes
modelos de pretensão preditiva, resulta mais de seu prestígio político em importantes
círculos universitários e instituições internacionais que do reconhecimento de sua
acurácia empírica ou de sua profundidade teórica. Com efeito, a visão de que mercados
em geral emergem espontaneamente como produto da ação atomizada de indivíduos
racionais e egoístas por propensão natural tem sido sistematicamente desafiada por
estudos sociológicos sobre mercados. A sociologia reconhece como problemáticos os
pressupostos do pensamento econômico predominante, contra os quais oferece uma
perspectiva muito menos homogênea e elegante, mas – também por isso – mais
realista.
Ao menos desde sua “redescoberta” por sociólogos e sociólogas nos anos 1980
(BLOCK; SOMMERS, 1984), as ideias de Karl Polanyi, sobretudo de sua obra The Great
Transformation, de 1944, têm inspirado parte relevante dos esforços para confrontar a

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visão econômica mainstream. Sua crítica aos pressupostos da economia clássica e sua
visão alargada do fenômeno econômico o tornaram, aliás, uma das principais
referências no campo dos estudos sociais da economia.
Para Polanyi (2001: 3-4), a ideia de um mercado autorregulado como único
padrão institucional organizador da produção e distribuição de riqueza em sociedade,
cujo auge se dava no século XIX, implicava em uma absoluta utopia. Uma instituição
como essa, quando posta em vigência – o que, paradoxalmente, de fato, ocorreu
naquele século –, denunciava Polanyi, destruiria a substância humana e natural da
sociedade. O argumento já é conhecido: certos elementos simplesmente não são
produzidos para serem vendidos em mercado e tratá-los como se mercadorias fossem
acarreta perigos para a sociedade.
Trabalho, terra e dinheiro são apenas denominações alternativas para seres
humanos, natureza e medida do poder de compra, respectivamente. São elementos,
portanto, conectados à constituição e ao funcionamento da sociedade em múltiplas
dimensões e não apenas a econômica. Mas em uma economia de mercado, em que
tudo deve ser posto à venda por um preço, trabalho, terra e dinheiro se tornam
mercadorias fictícias. Os efeitos dessa operação, contudo, são severamente danosos à
sociedade: os caprichos do mercado criam insuportável instabilidade às relações
humanas, põem em cheque a segurança física e alimentar humana, exaurem recursos
naturais, e podem prejudicar até a própria produção capitalista.3 Como reação
espontânea e pragmática, diversos segmentos da sociedade procuram meios para
defender sua existência em uma ambiente tão antissocial.4
Uma análise histórica, demonstra Polanyi (2001: cap. 5), desmente as
pretensões universalistas do pensamento econômico. Segundo o autor, a antropologia
histórica revela que diferentes princípios e padrões institucionais têm organizado as
economias dos mais diversos povos e civilizações. Seu principal argumento é que a
economia humana, em regra, é submersa em suas relações sociais e atende aos mais
diferentes propósitos. Princípios da redistribuição, da reciprocidade e da domesticidade
foram motivações para ações econômicas mais comuns, ao longo da história, do que o
princípio do lucro. Aliás, cada princípio tornava-se efetivo a partir de um padrão

3Sobre isso, ver os capítulos 14 a 16 de Polanyi (2001).


4 É verdade que Polanyi (2001) revela uma posição cética sobre esta reação que pode ocorrer a partir de
diferentes perspectivas do espectro político – e, no limite, partir tanto de posições fascistas quanto de
posições socialistas – e causar danos iguais ou maiores à sociedade.

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institucional. O padrão da centralidade garantia a distribuição; o da simetria, a


reciprocidade; o da autarquia, a domesticidade; assim como o do mercado, o lucro.
Mesmo quando existiam em certa sociedade, em regra, a instituição do
mercado e o motivo do lucro eram marginais na dinâmica da economia e subordinados a
outros princípios e padrões institucionais. A utopia que o pensamento liberal ajudou a
criar foi elevá-los à condição de forma única e natural de ação e organização econômica,
descolada de qualquer outro motivo ou instituição social. Para tanto, a atuação do
estado foi frequentemente crucial (POLANYI, 2001: 72-73; 214-217), a ponto do autor
afirmar que o próprio “laissez-faire foi planejado” (2001: 147).
Uma lição central de Polanyi, em poucas palavras, é que economias estão
enraizadas, ou embedded, em relações e instituições sociais. 5 Ao tentar depurar a
organização econômica de sua dimensão política e social, a economia de mercado
terminou por transformar a própria constituição da sociedade que passou a funcionar
segundo seus princípios – com inúmeros efeitos socialmente destrutivos advindos da
operação. Não por outro motivo, Polanyi diz que “uma economia de mercado pode
funcionar apenas em uma sociedade de mercado” (2001: 60).
Em ensaio intitulado Economy as an Instituted Process, Polanyi (1957) retoma
sua crítica aos pressupostos da economia clássica que, após seu declínio no início do
século passado, voltaram a ser dominantes no mainstream da economia, a partir de
pensadores neoclássicos. Segundo o autor, o termo “econômico” não possui um sentido
unívoco como sugerido na noção de homo economicus – isto é, de que indivíduos agem
naturalmente de modo a maximizar suas utilidades –, como pressupunha o pensamento
liberal clássico; mas, antes, dois sentidos distintos: formal e substantivo.
O pensamento econômico compreenderia a economia apenas em seu sentido
formal. Esse sentido, segundo Polanyi, restringe-se às operações lógicas racionais, de se
escolher diferentes usos para certos meios, tendo em vista a escassez ou insuficiência
desses mesmos meios. O grande equívoco, nos termos do autor, é se ter generalizado
esta concepção a toda forma de ação econômica, tornando-a o único sentido da
expressão. Para Polanyi, contribuiu para tal generalização o desenvolvimento, nos
últimos séculos, do mercado – no qual os indivíduos operam trocas de acordo com o

5Para uma análise sobre o achado de Polanyi sobre a “economia sempre enraizada”, ver Block (2003). Para
uma versão crítica e alternativa sobre o conceito de embeddedness, ver Krippner (2017).

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sentido formal do termo econômico – como mecanismo dominante de organização da


economia.
Argumenta, entretanto, como já havia feito em 1944, que ao longo da história
humana a economia se organizou de muitas outras maneiras distintas e a partir de
diferentes princípios. Nesse sentido, o fenômeno econômico não se restringe à
operação lógica de escolha racional, mas, antes, abrange todo tipo de intercâmbio entre
seres humanos e seu ambiente natural e social para sua satisfação por meios materiais –
o que o sociólogo denomina “economia em seu sentido substantivo”. Polanyi
caracteriza, então, a economia como instituted process, cuja dinâmica de
funcionamento se dásegundo o contexto sociopolítico e institucional.
Assim, o mercado seria uma entre outras formas de interação econômica, que
não poderia ser conhecida de pronto, mas somente quando localizada nas
especificidades contextuais. Em suma, diferentemente do que supõe o pensamento
econômico mainstream, Polanyi demonstra que a economia humana se amalgama a
diversas instituições e só pode ser compreendida historicamente, pois não possui
organização única, nem universal. Com efeito, muito da produção recente no campo dos
estudos sociais da economia, partindo da inspiração polanyiana mas com perspectivas
diversas, tem se voltado a desmistificar os pressupostos do pensamento econômico.

2.2. Economia como relação social: a nova sociologia econômica


2.2.1. Um adversário e muitas armas

Em 1985, Mark Granovetter, referindo-se ao conceito polanyiano de


embeddedness, delineou uma agenda de pesquisas para a chamada “nova sociologia
econômica”. De modo sumário, sua contribuição foi argumentar que toda ação
econômica é socialmente situada e deve ser compreendida com referência ao sistema de
relações sociais a que se vincula (GRANOVETTER, 1985). Ainda que seu argumento já
estivesse implícito em trabalhos estruturalistas anteriores, como White (1981), Burt
(1983) e Baker (1984), fato é que a nova perspectiva animou uma ambiciosa agenda de
pesquisas sociológicas em economia (KRIPPNER; ALVAREZ, 2007).
Pesquisas recentes, contudo, estão longe de compartilhar dos mesmos
pressupostos e do mesmo ferramental analítico. Da crítica ao mainstream econômico em
diante os acordos do campo são pouco evidentes. Fligstein e Dioun (2015) apresentam

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quatro principais abordagens teóricas na sociologia econômica voltadas a estudar


especificamente mercados, a que denominam “sociologia dos mercados”: (i) análises de
redes sociais, (ii) análises sobre a performatividade das ideias econômicas, (iii) teorias
institucionais nos estudos organizacionais, e (iv) economia política. Cada uma delas
enfoca uma face específica da conexão entre mercados e sociedade.
A primeira procura mapear os vínculos de relações interpessoais que constituem
o estofo da estrutura social em mercado (GRANOVETTER, 2005; WHITE, 2002; PODOLNY,
2001). Argumenta-se que a forma como as relações entre atores se estrutura é um fator
explicativo de seu comportamento econômico. Segundo Fligstein e Dioun (2015: 68), já
está claro, por exemplo, que as conexões entre atores afetam preços, influencia a
sobrevivência em mercado e molda padrões de competição em mercado.
A segunda abordagem analisa a ação econômica como resultado de cálculos
esculpidos por teorias econômicas e tecnologias específicas (CALLON, 1998; CALLON;
MUNIESA, 2005; MACKENZIE 2005). Fligstein e Dioun (2015: 69-70) argumentam que
uma agenda interessante nessa abordagem dedica-se a examinar como princípios e
modelos quantitativos da economia têm, de fato, auxiliado a estruturar mercados
financeiros. A implementação das ideias econômicas por atores sociais tem sido
denominada “performatividade”, pois são performadas socialmente e surtem efeitos
concretos.
A terceira abordagem volta-se às ações de atores públicos e privados
contextualizadas a partir de regras de mercado, normas e relações de poder. O interesse
está na configuração institucional do mercado, que estabiliza suas trocas e seu
funcionamento. Mesmo as instituições estáveis, contudo, são frequentemente
contestadas por atores (empresas, organizações, sindicatos, especialistas etc.) que
mobilizam recursos para modificar as regras que balizam o funcionamento de um
mercado. Institucionalistas enfatizam a ação do estado na formatação da estrutura de
mercado, de modo que a dinâmica política interna ao estado afeta o aspecto de sua ação
(DOBBIN, 1993, 1994; FLIGSTEIN, 1996, 2001). Segundo Fligstein e Dioun (2015: 68-69),
pesquisas têm indicado inclusive que a construção do estado se dá paralelamente à
construção de mercados.
A quarta abordagem teórica, por sua vez, tem, nos termos de Fligstein e Dioun
(2015: 69), “pioneiramente pensado sobre as ligações entre estados, direito e mercados
e a emergência histórica de sistemas de governança”. A literatura sobre “variedade de

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capitalismos” (HALL; SOSKICE, 2001), por exemplo, seria um braço importante da


sociologia dos mercados. A abordagem de economia política explora também como
mercados são construções políticas e sociais que refletem “a cultura de um país, sua
história de luta de classes e as várias intervenções que seu governo realizou ao longo da
história” (FLIGSTEIN; DIOUN, 2015: 69). Tem se centrado, em boa medida, em analisar
quais os tipos de sistemas político-institucionais produzem desenvolvimento econômico
(EVANS, 1995), descrevendo as experiências históricas de países centrais e periféricos a
partir das interações entre política e economia. Os autores reconhecem que esta
abordagem guarda diversos pontos em comum com a abordagem institucionalista, e
frequentemente trabalhos se valem de ambas as abordagens.
Somadas, vale dizer, as visões expandiram a compreensão sobre múltiplas
dimensões sociais dos mercados. Análises que consideram o papel das instituições têm
se mostrado particularmente frutíferas para compreensão da dinâmica de poder e do
papel do estado na construção de mercados. Exploram, em poucas palavras, o modo
como estados conformam interesses e estratégias empresariais, ao mesmo tempo que
têm suas próprias instituições configuradas pela atuação empresarial.

2.2.2 Instituições em mercado: normas, poder e o papel do estado

Como argumenta Campbell (2007), a perspectiva institucionalista também abriga


em si uma miríade de visões.6 Trabalhos institucionalistas da sociologia dos mercados se
situam, majoritariamente, no campo dos estudos das organizações com importante
diálogo com a economia política. Nos trabalhos de Dobbin (1993, 1994) e Fligstein (1996,
2001), possivelmente os principais representantes dessa literatura, fica evidente o papel
do estado na formatação institucional de mercados.
Dobbin (1994), por exemplo, argumenta que instituições políticas e mecanismos
regulatórios institucionalizam tradições culturais nacionais que, por sua vez, influenciam
a organização econômica e industrial dos países. Neste livro, o autor analisa as políticas
de transporte ferroviário nos Estados Unidos, França e Inglaterra, entre 1825 e 1900,
procurando indicar como os diferentes padrões de policy-making podem ser explicados

6Segundo o autor, existem ao menos três grandes vertentes: o institucionalismo da escolha racional, mais
ligada às abordagens econômicas; o institucionalismo das organizações, mais ligada às abordagens
sociológicas; e o institucionalismo histórico, ligado às análises da ciência política e da economia política. Não
faz parte do escopo deste artigo esmiuçar cada uma das vertentes.

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pelas diferenças entre as tradições nacionais. Em sua análise identifica paralelo entre as
instituições que organizaram a vida econômica desses países e aquelas que regeram sua
dinâmica política.
Por exemplo, a tradição política americana de conferir autonomia política a
governos locais, sob um sistema federativo dominado por cortes, guarda afinidade com
uma política industrial descentralizada, baseada na noção de que mercados livres e
competitivos induziriam eficiência a toda a economia. Já a tradição francesa de situar a
soberania no governo central como força central de integração nacional possui paralelo
com uma política industrial igualmente centralizada, conduzida por um grupo de experts
capazes de guiar a economia. A tradição britânica, por sua vez, de situar a soberania
política em indivíduos da elite, protegendo-os de seus vizinhos, da coroa e da burocracia
estatal, mantém curioso paralelo com uma política que promoveu, primeiro, o laissez-
faire e depois ativamente protegeu empresas individuais contra intrusões de mercado,
favorecendo seus empreendedores.
Como argumento central Dobbin (1994: 20-21) indica que instituições estatais,
ao formatarem tradições culturais, influenciariam visões e estratégias econômicas.
Primeiro,determinando quais seriam os problemas a serem enfrentados; segundo,
estabelecendo os “princípios de causalidade” usados por atores públicos e privados para
a solução de tais problemas. Novos problemas (políticos e econômicos), o autor conclui,
tenderiam a ser enfrentados com as tradicionais concepções e ferramentas, o que
explica a existência e permanência de distintos padrões de organização econômica entre
países. Apresenta, assim, uma explicação frontalmente diversa das visões eficientistas
que previam a tendência de convergência institucional.
Fligstein (1996, 2001), por sua vez, desenvolve uma abordagem política-cultural
da arquitetura institucional de mercados. Seu argumento central é que estruturas sociais
de mercado e organização interna das empresas são mais bem vistas como tentativas de
mitigar efeitos da competição entre empresas, que tenderiam a conduzir os mercados à
estabilidade. A construção de estruturas estáveis de mercado seria um projeto
essencialmente político-cultural, motivo pelo qual se vale da metáfora de markets as
politics.
Duas dimensões inscrevem-se na metáfora do autor. A primeira é que a
formação de mercados deve ser vista como parte do state-building. Estados modernos
têm sido construídos a partir de sua interação com o desenvolvimento de suas

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economias. A estruturação de mercados é parte central do exercício e legitimidade de


seu poder, motivo pelo qual estados se interessam em criar condições institucionais para
a existência de mercados estáveis (2001: 37-39). A segunda dimensão é que os processos
no interior de um mercado refletem dois projetos políticos: uma disputa política interna
à empresa (sobre controle, organização, estratégia) e entre empresas com vistas a
controlar o mercado.
Competidores buscariam reduzir incertezas derivadas da competição
empresarial e o fariam a partir de entendimentos cognitivos e práticas sociais que
garantiriam “trocas estruturadas” em um mercado. Fligstein (2001: 32-36) identifica
quatro tipos de “estruturas sociais” de mercado: direitos de propriedade, estruturas de
governança, regras de troca e concepções de controle. Em cada uma delas, o patamar de
estabilidade é definido pelas interações conflitivas entre empresas e estado,
circunscritas pela dinâmica política e cultural de um país.7 A partir dessas asserções, o
autor cria hipóteses normativas para serem testadas por futuros trabalhos no tema.
Como fica indicado, a institucionalidade dos mercados é um elemento central
para sua conformação. “Estruturas sociais”, de fato, delineiam os padrões de interação
entre estado e setor privado. Com efeito, principal achado desta literatura8 está em
identificar como os mercados são atravessados e moldados pela ação estatal e por
questões políticas.
Mesmo essas abordagens, contudo, têm sido criticadas por não descreverem
adequadamente os processos pelos quais estados criam mercados.Apensar de enunciá-
las, não analisam as formas de criação, disputa e estabilização das estruturas sociais que
moldam mercados.

7Bruce Carruthers (2015) argumenta em sentido semelhante ao dizer que as mudanças na organização dos
mercados financeiros em diversos países, que culminaram no processo conhecido como financeirização,
envolveram alteração de suas “pré-condições institucionais”. O autor demonstra a existência de quatro
elementos institucionais nesses mercados, relativos: (i) ao desenho dos direitos de propriedade; (ii) à
estruturação das informações entre participantes e reguladores; (iii) ao funcionamento de sua regulação;
(iv) aos mecanismos a serem usados nos casos de falha de algum participante. Sugere que o novo padrão de
mercado foi estruturado pela emergência de novas formas de propriedades e controle, de gerenciamento
de informações em mercado, de regulação dos mercados, e de regramento de falência e insolvências
empresariais.
8 Entre importantes análises institucionalista de mercados, que, vale dizer, também dialogam com a

economia política, estão os trabalhos de Fligstein (1996, 2001), Dobbin (1993, 1994, 2004), Carruthers e
Stinchcombe (1999), Halliday (2012), Riain (2000) e Maillet (2015).

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2.3. A política do mercado como processo social

Segundo Tommaso Pardi (2015), abordagens macro-institucionalistas (que


poderiam incluir autores das correntes institucionalista e de economia política) falham
em três principais pontos. Primeiro, têm sido incapazes de captar a ação do estado como
processo social, descrevendo-o muitas vezes como “força exógena ao mercado”. 9
Segundo, não têm avançado análises mais acuradas sobre as múltiplas formas de ação
do estado na economia, tratando, não raro, as interações entre estados e empresas
como uma “caixa-preta”. Em razão disso, ações e estratégias de estados e empresas têm
sido frequentemente deduzidas por meio do cotejamento ex-post entre mudanças nas
estruturas de mercados e nas instituições estatais. Terceiro, essas análises têm sido
insensíveis aos efeitos cumulativos de ações pontuais, nem sempre planejadas, que
levam endogenamente a um processo de mudança institucional na dinâmica dos
mercados (2015: 7).
Para endereçar essas questões seria necessário endogeneizar o policy making na
análise dos mercados. Isto é, somente identificando o padrão institucional de atuação do
estado em um dado mercado (por meio de regulação, de políticas públicas, de contratos
específicos, e assim por diante) é que se poderia verificar as formas pelas quais estados,
de fato, constituem mercados. Nesse mesmo sentido, o institucionalista Theodore Lowi
(1964; 1972) já havia argumentado que distintas políticas públicas (policies) implicam em
distintos padrões de interações políticas (politics) entre estado e empresas. Sendo assim,
o desenho regulatório e de política pública passa a ser central para a conformação
derelações políticas e, em última instância, do próprio mercado, nos termos desta
discussão. Sua famosa frase de que “policy determines politics” sintetiza a ideia. As
múltiplas formas de interação e de interdependência sugerem que não haja, de fato,
uma relação de exterioridade entre estados e mercados.
Além disso, seria necessário, seguindo Pardi (2015: 8-9), esmiuçar as relações
estados-empresas a partir de métodos mais indutivos de pesquisa. Argumenta, assim,
que ainda se faz necessário desenvolver uma lente de análise capaz de ir além da análise
de markets as politics e explorar the politics of markets como um processo social

9 Por exemplo, Fligstein (2001: 84), argumenta explicitamente nesse sentido ao dizer que: “I propose an
exogenous theory of market transformation that views the basic cause of changes in market structure as
resulting from forces outside the control of producers, due either to shifts in demand, invasion by other firms,
or actions of the state”.

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subjacente ao processo de institucionalização dos mercados. Dizendo de outro modo,


institucionalização de mercados deve ser analisada, não como uma estrutura estática,
mas como processo social ativo (TOLBERT; ZUCKER, 1996).
A solução que sugere é reconstruir os múltiplos sentidos das ações e práticas
sociais, de empresas e do estado, em determinado mercado, a partir dos registros
documentais das interações concretas entre atores relevantes (PARDI, 2015: 11). 10A
reconstrução dos sentidos das ações sociais possibilitaria à pesquisadora escapar de
idealismos – isto é, da tentação de analisar instituições de mercado pelos valores de
face que justificaram sua criação ou transformação – e de funcionalismos – isto é,
racionalizar, a posteriori, a construção de um mercado, a partir dos resultados
percebidos (PARDI, 2015: 13-14).
De fato, investigar os sentidos e entendimentos atribuídos pelos atores (seja no
estado, seja no setor privado) aos processos em mercado é crucial para compreender os
padrões de interação entre estado e empresas. Para compreender, contudo, o processo
de estabilização institucional do mercado não basta analisar interações governos-
empresas. Tais interações se dão em um ambiente social mais abrangente e não
esgotam a estrutura institucional de um mercado. Essa dependerá de como um conjunto
mais amplo de atores estabelecem normas e ações que formatam o funcionamento
deste mercado, que frequentemente situam-se em mais de um poder no interior do
estado e mesmo fora das fronteiras nacionais. Para compreender essa dinâmica, uma
abordagem atenta aos mecanismos de “produção do direito” pode ser esclarecedora.
Com efeito, para que se avance na compreensão dos processos sociais concretos
que constituem mercados é necessário ir além da conclusão de Polanyi de que mercados
estão enraizados na sociedade. Como já foi dito por outras autoras e autores, o
difundido conceito de embeddeness pode ser um instrumento analítico impreciso ao ser
usado como medida quantitativa do grau de enraizamento de um mercado (KRIPPNER,
2001) ou ao não diferenciar diversas possibilidades de estruturas e arranjos de mercados
(BLOCK, 2013).
O desafio analítico, para usar os termos de Beckert e Streeck (2008: 12-13) ainda
é descrever os mercados a partir da noção de que “toda economia, de qualquer

10Pardi analisa o setor automotivo britânico sob o governo Thatcher como estudo de caso, e toma como
fontes documentos do Department of Industry (DoI) e do Department of Trade (DoT), além das negociações
sindicais de 1981 e planos corporativos de grandes empresas do setor.

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sociedade, é socialmente e politicamente construída e que tal construção, e


reconstrução, acontece continuamente no curso do desenvolvimento social e político.”
Com efeito, outra agenda – também ela polanyiana – emerge: explorar os mecanismos
pelos quais os mercados são institucionalizados e podem ser descritos como instituted
processes. Em suma, é preciso calibrar uma lente capaz de enxergar os processos sociais,
políticos e institucionais que arquitetam mercados.

3. Institucionalizando mercados: trazendo o direito para a análise

Apesar de estar por toda parte da vida econômica, o direito permanece marginal na
sociologia econômica. Ao menos é essa a conclusão de trabalhos relativamente recentes
que procuram superar a ausência teórica e empírica das conexões entre direito,
sociedade e economia. De fato, essa é uma empreitada que não se restringe à sociologia
econômica. Partindo de tradições intelectuais distintas (ainda que em sua maioria
institucionalistas), como da economia política institucional (COUTINHO, 2014, 2016;
DEAKIN et al., 2015) e dos estudos institucionais sobre organizações (SUCHMAN, 1995;
EDELMAN; SUCHMAN, 1996; 1997), autores têm enfrentado o desafio de explicitar o que
há propriamente de jurídico na organização política e social da economia.11
O chamado de Swedberg (2003) para a necessidade de se desenvolver “uma
análise sociológica do papel do direito na vida econômica” sintetiza os esforços que vêm
sendo feito por diversos estudos (EDELMAN; STRYKER, 2004; STRYKER, 2003; EDELMAN
et al., 1999; EDELMAN, 2004; CARRUTHERS; HALLIDAY, 2007; FRERICHS, 2009, 2012;
BLOCK, 2013; COTTERRELL, 2013; KOTISWARAN, 2014; PERRY-KESSARIS, 2015). Nas
diferentes versões, um ponto interessante tem sido o esforço de identificar conexões
mais ou menos explícitas entre tradições da sociologia do direito e da sociologia
econômica. A mais evidente é: da mesma maneira que a última se empenha em revelar a
dimensão política e institucionaldos mercados, a primeira descreve o direito operando
em seu contexto social mais abrangente (FRERICHS, 2009). O diálogo entre as literaturas

11 Há ainda uma diversificada literatura de estudos jurídicos da regulação econômica que pode contribuir
com essas reflexões, mas que não se inserem no escopo deste artigo, que procura apenas organizar os
trabalhos que explicitamente articulam as literaturas de sociologia jurídica e de sociologia econômica.
Apenas como exemplos (potencialmente divergentes) de trabalhos que, ao tratar da regulação jurídica de
mercados, sugerem papéis do estado e do direito em sua construção, podem ser citados: Sunstein (1990,
1997); Lothian; Unger (2011); Sabel (2007); Piccioto (2017).

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indica, em suma, que as interações entre direito, economia e sociedade são mais
relevantes do que usualmente se reconhece.
Meu argumento é que uma abordagem sociojurídica dos mercados pode
oferecer uma lente capaz de detalhar os processos de institucionalização de mercados e
ser profundamente esclarecedoras de dimensões vistas usualmente como opacas. Ao
endogeneizar a criação, interpretação e aplicação do direito à ação e à organização
econômica esse tipo de abordagem pode especificar como mercados são concretamente
construídos a partir de regras jurídicas, acordos políticos, ideias econômicas e culturais.
Uma análise dos processos sociais de mercados exige um tratamento mais
realista também do próprio direito. Como estudos sociojurídicos argumentam há
tempos, por direito não se pode tomar apenas os textos de leis, regulamentos, decretos
formais, mas também o modo como estes são aplicados em situações concretas, além de
considerar ideias, princípios e rituais relacionados ao direito que permeiam atores
privados. “Direito em ação” torna-se o foco desse tipo de análise. Pesquisas passam a
vasculhar como o direito é interpretado, mobilizado, ignorado e/ou implementado por
indivíduos em situações concretas. Chamarei de “produção do direito” esse amplo
processo de criação e implementação de normas jurídicas.
Como argumentam Halliday e Carruthers (2007: 1141-1142), é necessário, no
entanto, ir além da abordagem tradicional da literatura em Law and Society que
majoritariamente enfoca o fenômeno jurídico pela – importante, mas limitada –
separação entre o estabelecido pelo direito formal (law in the books) e o direito em sua
prática concreta (law in action). Segundo os autores, tanto a criação do direito quanto a
interação dinâmica entre criação e implementação, a partir de diversas instâncias,
devem voltar ao radar dos sociólogos e sociólogas do direito. Somente assim é possível
voltar a explorar a economia política da produção jurídica, dando tratamento mais
realista às conexões entre direito, disputas políticas e organização da economia.
Meu argumento central é que quatro principais propriedades do direito o
tornam parte crucial do processo de institucionalização de um mercado – em sua criação
ou transformação, vale dizer. 12 O interesse está em identificar como a “produção do

12Pistor (2013) também argumenta em sentido semelhante ao afirmar que mercados (financeiros,
especificamente) são construídos por meio de instrumentos, contratos e regulação jurídicos. Transações
nesses mercados dependem da existência de compromissos contratuais críveis e enforceable juridicamente,
além de regulações que estabeleçam os parâmetros de atuação em mercado. Nesse sentido, em tais
mercados, o direito é o responsável por desenhar as obrigações, repartir riscos e ônus, distribuir

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direito” evolui ao longo do tempo e o que esse processo diz sobre a institucionalidade e
sobre a conformação política de um dado mercado. Com essas lentes é possível iluminar
atores relevantes, ideias econômicas, agendas e acordos políticos contingentes, ou seja,
a economia política subjacente à institucionalização de um mercado. 13 Deve-se, para
tanto, partir das propriedades que indico na sequência.
A primeira propriedade liga-se ao fato de que o direito confere legitimidade à
ação estatal, sendo parte central de qualquer projeto político. O fenômeno jurídico está,
portanto, intimamente ligado às disputas políticas de uma sociedade. Sua relação com
poder, contudo, vai além de sua “aura de autoridade”, como parece sugerir Pistor
(2019). O processo de criação, interpretação e implementação do direito é, de fato,
altamente politizado, no sentido de que estabelece o desenho jurídico prevalente, bem
como os ganhadores e perdedores de uma nova arquitetura institucional. Conforme
Edelman e Stryker (2004: 531-535), formulando a abordagem de “sociologia do direito e
da economia”, as controvérsias sobre a interpretação do direito estão entrelaçadas a
disputas políticas.
A dinâmica política molda quais construções do direito são produzidas e se
tornam institucionalizadas, bem como quem delas se beneficia. A institucionalização de
um mercado passa justamente pelo processo de disputar e estabilizar certa conformação
jurídico-institucional. Nesse sentido, Stryker (2003) diz que os campos jurídico e
econômico se conectam muitas vezes a partir da dimensão política.14 Assim, a forma e o
conteúdo do direito são ativamente construídos e mobilizados como recursos de poder
político, tornando-se tanto o meio, quanto o resultado do embate político (EDELMAN;
STRYKER, 2004: 533).15Por um lado, como sugere Stryker (2003: 351), o valor do direito

competências, viabilizar o uso do poder regulador e garantir o cumprimento da teia contratual e regulatória.
O direito é visto como elemento interno ao mercado e, portanto, parte constitutiva de seu funcionamento.
A abordagem que delineio neste artigo, contudo, diverge em pontos importantes da Legal Theory of Finance
de Pistor, sobretudo quanto a relação entre direito e política. Para Pistor, na dinâmica dos mercados
financeiros, há uma relação diferencial entre o poder vinculante que seria produzido pelo direito e o poder
discricionário que seria especificamente político. Nesses termos, direito e política conectam-se como vasos
comunicantes, ocupando funções distintas no exercício do poder. Na abordagem aqui apresentada, direito e
política constituem-se mutuamente e não devem ser analisados como elementos externos.
13 Identificar a diferença entre law in the books e law in actioné apenas uma parte dessa história.
14Stryker (2003) define política de maneira ampla como a mobilização e contra mobilização de recursos em

conflitos baseados em interesses, em normas e valores, e visões cognitivas (cognitive-based), sejam os


conflitos dentro da esfera política ou não. Apesar de não enfatizar explicitamente que acordos e
negociações são parte da política, a definição auxilia uma abordagem abrangente sobre processos políticos.
15 Isso fica evidente em mercados regulados, por exemplo, como o de derivados do petróleo, em que a

existência ou não de uma política explícita de preços – estabelecida juridicamente – produz imediatos
efeitos distributivos deste mercado na sociedade (concentradores ou redistributivos). Sendo assim,

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como recurso político não deriva automaticamente de normas formais, mas é construído
socialmente por interpretação e disputas políticas. Por outro, contudo, deve-se ficar
claro que a forma jurídica não é irrelevante. Como argumentam Carruthers e Halliday
(2007: 1143), o fato de o direito ser primeiramente estabelecido como dispositivo
constitucional, como lei, como regulamento, como inovação jurisprudencial, ou qualquer
outra forma, determina como será implementado e compreendido, quais agentes o
mobilizarão, e quais as suas potenciais funções. Além disso, as características formais do
direito influenciam sua legitimidade, visto que diferentes formas jurídicas se conectam a
diferentes instâncias de poder.16
A segunda propriedade do direito é ser, frequentemente, taken for granted (ou
tomado como um dado, em tradução livre) e dessa forma naturalizar algumas formas
institucionais que deveriam ser vistas como contingentes. Nesse processo, o direito se
torna um pressuposto da ação política e econômica e torna natural o uso de certos
conceitos e interpretações relevantes para a organização de um mercado. Edelman e
Stryker (2004), chamam esse processo de “institucional”,17 que envolve a produção e
aceitação de construções particulares do direito e seu compliance. Essa propriedade do
direito explica a sedimentação e incorporação de certas estruturas que, de tão
pressupostas, parecem naturais e racionais.
Uma vez que certas ideias e práticas jurídicas “são construídas, interpretadas e
institucionalizadas por atores econômicos (...), o direito tende tanto a influenciar ideias

conjuntamente a argumentos econômicos e políticos para se criar ou não tal política e como fazê-la, atores
sociais elaboram e disputam argumentos jurídicos sobre competências, vedações, objetivos da regulação e
assim por diante. Essa dinâmica, contudo, pode ser visto em outros tipos de mercado. Por exemplo, novas
empresas de base tecnológica que procuram criar mercados ou ingressar em mercados consolidados têm
ativamente construído interpretações jurídicas para contornar normas trabalhistas, regulatórias, tributárias,
e outras, de forma a viabilizar um novo modelo de negócios. A reação a isso, de cunho político, tem sido
formulada também pela linguagem jurídica. É nesse sentido que divergências políticas sobre o desenho do
mercado não acontecem fora do direito em um ambiente a-institucional, mas a partir dele.
16 Sobre este ponto, pode-se pensar na disputa jurídica em torno da interpretação do parágrafo 3º do art.

192 da Constituição Federal brasileira, que estabelecia um teto de 12% para as taxas de “juros reais” e que,
se produzisse efeitos, afetaria severamente o modelo de negócios bancários no país. Além da justificativa
econômica e do arranjo político para barrar a vigência do texto constitucional, foi necessária uma
interpretação jurídica criativa pelo, então, Consultor Geral da República, Saulo Ramos, feita em parecer, de
que o dispositivo constitucional não seria autoaplicável. A interpretação foi chancelada pelo Supremo
Tribunal Federal, de modo que o parágrafo do texto constitucional não foi, de fato, aplicado até a sua
revogação. Enfim, o tipo normativo em disputa, neste caso, determinou as instituições e os atores
mobilizados na disputa, que, ao cabo, foi crucial para o funcionamento do mercado bancário brasileiro de
1988 em diante. Sobre o episódio veja Veiga da Rocha (2004).
17Evito o termo, uma vez que todos os processos que descrevo são parte da construção institucional

promovida pelo direito. As autoras evidenciaram a dimensão estabilizadora das instituições e o termo se
justifica na chave analítica em que debatem. Para os propósitos do presente artigo, será substituído pela
propriedade do direito de ser “tomado com um dado”.

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de racionalidade quanto a se tornar permeável à lógica capitalista e empresarial” (2004:


532). Nesse sentido, o direito auxilia na naturalização de certas ideias econômicas e
políticas e, ao ter alguns sentidos de suas regras e instituições taken-for-granted, o
direito se incorpora à própria lógica do campo econômico.18
A partir dessas duas primeiras propriedades, a racionalidade econômica é
construída conjuntamente à racionalidade jurídica, uma vez que o direito é (i) mobilizado
politicamente como recurso na ação e na organização econômica, e (ii) incorporado
entre os pressupostos da atividade econômica (STRYKER, 2003; EDELMAN; STRYKER,
2004; PERRY-KESSARIS, 2015). Dito de outro modo, não apenas por ser naturalizado, mas
por ser disputado e mobilizado como recurso, em certo contexto, o direito é parte
central da fabricação de sentido institucional de mercados. Compreender como o direito
foi construído, interpretado e mobilizado por diferentes atores é parte do desafio de
compreender a institucionalização de certo mercado.
A terceira propriedade liga-se ao fato de que a produção do direito assume, em
muitos momentos, uma forma híbrida. Isto é, o direito é produzido em uma “parceria
público-privada” visto que sua interpretação e compliance depende em boa medida da
ação de atores privados. 19 Trabalhos como Edelman (2004) e Edelman et al. (1999)
argumentam que o direito é, de fato, endogenamente construído pela atividade de
atores tanto privados quanto públicos. Para as autoras, a interação desses atores com
normas jurídicas não se dá como “resposta” diante de algo que lhes é externo. Antes
disso, atores interpretam as normas e lhes dão sentido próprio, que será endossado ou
não por órgãos estatais. A endogeneidade advém do fato de que o sentido do direito é
construído dentro do próprio campo social e econômico que procura regular (EDELMAN,
2004: 189).
Essa dinâmica decorre, em última instância, do fato de que o direito está aberto
a interpretações e contestações sociais. Segundo Edelman et al. (1999: 407), disposições
jurídicas que regulam empresas são especialmente abertas à "construção social", visto

18Miola (2016), por exemplo, argumenta que ideias econômicas neoliberais podem se tornar concretas
também a partir da interpretação e implementação de categorias e dispositivos jurídicos da regulação
concorrencial. No caso brasileiro, a aplicação do direito da concorrência serviu, desde meados nos anos
1990, para legitimar a concentração de poder em mercado, o que convergia com certos interesses políticos
e econômicos em detrimento de outros.
19Por exemplo, Major (2012) e Underhill e Zhang (2008) argumentam que a arquitetura do sistema

financeiro internacional caminhou no sentido justamente de conferir maiores poderes a atores privados
para interpretarem e implementarem dispositivos regulatórios a que deveriam se submeter. A aplicação de
novos padrões da regulação bancária centrou-se basicamente em análises e modelos internos aos bancos
sobre nível de capital e risco de seus ativos, o que serviu para empoderá-los diante de reguladores públicos.

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que o lobby corporativo usualmente obtém sucesso em suavizar a regulação que afronta
seus interesses, produzindo assim mandatos mais amplos e vagos ao regulador. Nessas
condições, "organizações participam ativamente construindo o sentido de compliance".
A própria noção do que seria uma “resposta” racional a certa regra jurídica é, na
verdade, construída socialmente. Edelman (2004) conclui que a própria noção de
“racionalidade” econômica, tomada como natural por economistas, é construída, por
meio de interação social, conjuntamente à racionalidade jurídica.
Nesse sentido, empresas, organizações e indivíduos ao mesmo tempo em que
respondem a uma norma jurídica (isto é, procuram se adequar a suas prescrições da
forma mais adequada segundo seus interesses contextuais), constroem essa mesma
norma que os regula (isto é, avançam um caminho específico para interpretação do
direito). De outro ângulo, a prevalência de certas interpretações entre atores privados as
torna mais aptas à chancela pelo judiciário ou outro poder do estado, conferindo maior
legitimidade e mesmo ganhos materiais aos agentes privados que as especificaram
(EDELMAN et al., 1999: 411). Essa relação de mão dupla torna a produção do direito
público-privada, híbrida.20A quarta propriedade do direito pode ser descrita pelo
processo de recursividade, descrito por Carruthers e Halliday (1998, 2007). A produção
do direito não está circunscrita às fronteiras nacionais, mas depende da atuação de
entidades internacionais ou transnacionais. Sobretudo em mercados criados ou
transformados a partir do processo de globalização, o contexto global é crítico, uma vez
que padrões normativos globais – que contribuirão para sua institucionalização –
crescentemente influenciam processos jurídicos domésticos.
Os autores argumentam que instituições globais, como o FMI, o Banco Mundial,
as Nações Unidas, entre outras, têm construído “uma arquitetura financeira global,
tendo o direito como sua principal fundação” (2007: 1136). Essa empreitada global vem

20 Edelman (2004) ilustra esse ponto analisando a criação de procedimentos internos em empresas nos
Estados Unidos para registro de queixas sobre violações de direitos, que se deu inicialmente como
interpretação privada de normas e princípios de direitos civis naquele país. Posteriormente, os
procedimentos empresariais foram chancelados pelo judiciário como boas práticas, conferindo legitimidade
e vantagem econômica de mercado para as empresas pioneiras. Em um momento seguinte, argumenta a
autora, tais procedimentos foram normalizados como as “práticas mais eficientes” de organização
empresarial em mercado, pois reduziriam o número de casos judiciais e seriam provas (em eventual caso
judicial) do tratamento não discriminatório dado pela empresa aos funcionários. Com efeito, neste caso,
noções de eficiência e boas práticas que influenciaram o funcionamento do mercado passaram também por
uma construção jurídica do que era legítimo, o que foi feito a partir da produção público-privado das
categorias e práticas do direito.

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repercutindo em diversas áreas jurídicas nacionais,21 de modo que não se pode


compreender as mudanças do direito sem referência às interações entre a produção
jurídica doméstica e global.22
Carruthers e Halliday (2007: 1138) argumentam que a “globalização do direito”
pode ser expressa em três ciclos: no nível nacional, por meio de ciclos recursivos de
criação de leis e de sua implementação; no nível global, por meio de ciclos iterativos de
criação de normas por diferentes organismos internacionais; e na intersecção entre os
dois níveis, em que experiências nacionais influenciam a criação de normas globais ao
mesmo tempo em que essas últimas constrangem a criação de leis. 23Segundo os autores
(2007: 1149-1153), os mecanismos pelos quais os ciclos de recursividade se manifestam
são: (i) a indeterminação do direito, que abre oportunidades para múltiplas aplicações
das normas e para seu redirecionamento em sentidos inesperados e não antecipados
inicialmente; (ii) as contradições internas ao direito, sobretudo diante de uma produção
descentralizada de leis e normas, que viabilizam a mobilização seletiva do direito e
explicam sua contingência política; (iii)as disputas de diagnósticos e propostas em torno
de reformas jurídicas, que conduzem a um descompasso entre normas internacionais e
leis nacionais ou entre as últimas e sua implementação; além do (iv) descasamento entre
atores que criam normas e aqueles que de fato as interpretam e implementam, o que se
torna fonte de mudança jurídica.
Todos esses mecanismos ajudam a explicar que a influência internacional na
produção do direito nem sempre se dá por meio da imposição. Antes disso, o processo
de recursividade evidencia uma via de mão dupla, em que muitas vezes persuasão e
sugestão de modelos para atores domésticos são meios de influência mais presentes em
determinada situação que a chantagem ou coerção – que também existem e são
frequentes. Nesse cenário, é relevante analisar o papel dos especialistas e profissionais

21 Os autores, obviamente, não apresentam uma lista de temas jurídicos afetados, mas dão exemplos das
mais diversas áreas como, por exemplo, falência, contratos privados, regulação financeira, contratos de
concessão, direito internacional privado.
22 O ponto é ilustrado pelos autores, como estudo de caso, pela incorporação por países de regras e

instituições padronizadas internacionalmente relativas a situações de falência privada. Sendo regras de


falência uma das pré-condições institucionais para o funcionamento de mercados (CARRUTHERS, 2015),
essa difusão normativa forjou novas oportunidades de investimento, favoreceu certas empresas, enfim,
moldou o funcionamento de mercados em diferentes países.
23Carruthers e Halliday (2007) indicam que a atenção aos ciclos de recursividade ilumina, entre outras

coisas, a influência de atores jurídicos no processo de implementação criativa do direito, além do papel de
múltiplas instituições (nacionais e internacionais) que moldam, a partir de sua atuação, o funcionamento do
direito. Nesse sentido, sua abordagem não está distante da noção de “endogeneidade do direito”, de
Edelman et al. (1999) e Edelman (2004), apesar de apontar para outras dimensões da produção do direito.

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do direito uma vez que, frequentemente, são encarregados de consultas e


aconselhamentos em processos de implementação e reformas jurídicas (2007: 1189).
Exemplo disso pode ser dado pela incorporação doméstica de regras e princípios
de regulação bancária formuladas pelo Comitê de Basiléia de Supervisão Bancária, no
âmbito do Bank for International Settlements, composto por autoridades regulatórias de
diversos países. Apesar de criados e implementados nacionalmente, categorias jurídicas,
desenhos institucionais e justificativas econômicas da regulação bancária têm sido
construídos em interação contínua entre atores nacionais e internacionais. Em outras
palavras, a dinâmica de funcionamento de mercados bancários de diversos países – suas
barreiras a entrada em mercado, seus parâmetros de competição, os tipos de produtos à
venda, a organização interna de seus participantes, entre outras dimensões – tem se
moldado também a partir de consensos técnicos globais, econômicos e jurídicos,
envolvidos na definição dos parâmetros de sua regulação (CARRUTHERS; BABB;
HALLIDAY, 2001; MAJOR, 2012).
Com efeito, o direito é produzido em uma dinâmica complexa que extrapola
fronteiras nacionais. No tocante à institucionalização de mercados, somente ao se
descrever a dimensão global da produção do direito é possível identificar a interação
entre atores globais e domésticos – que, vale dizer, pode ser de contestação ou
cooperação. Por exemplo, o processo de internacionalização e abertura de alguns
mercados, que ocorreu em países periféricos ao longo dos anos de 1990 e 2000 e que
modificou toda a institucionalidade desses mercados, pode ser mais bem compreendido
apenas se o fenômeno jurídico for devidamente explicado.
Para localizar a multiplicidade de atores e espaços de produção do direito, o
argumento de Shaffer (2009), com alguma adaptação, 24 pode ser útil ao indicar as três
principais arenas de construção simultânea de produção do direito e, portanto, de
institucionalização de mercados: (i) arenas públicas: em que o direito é criado,
interpretado e implementado a partir do legislativo, da administração pública e do
judiciário; (ii) arenas privadas: em que empresas, organizações e indivíduos criam
resoluções privadas dos conflitos e normatização interna, interpretando
construtivamente regras estatais; (iii) arenas internacionais: em que regras e padrões

24Shaffer (2009) apresenta o que chamo de “arenas” como “interações institucionais” pelas quais o direito
seria moldado pelas atividades de empresas. Essa divisão é esclarecedora para análises interessadas na
construção de mercados, pois situa os âmbitos de produção do direito, ainda que vejam a relação entre
direito e empresas (ou mercados) como de influência recíproca.

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globais são produzidos e posteriormente incorporados internamente pelos atores


domésticos, a partir do processo de recursividade.
Essas arenas, no entanto, não devem ser vistas isoladamente, pois interagem
reciprocamente e podem ser compreendidas apenas se analisadas em suas conexões. A
partir de sua interação, o direito é produzido ao mesmo tempo em que mercados são
institucionalizados. De todo modo, essa separação heurística de arenas joga luz à
complexidade e à fragmentação da construção institucional dos mercados. A abordagem
aqui proposta pode ser sintetizada na seguinte Tabela 1, a seguir.

Tabela 1 – Institucionalizando mercados: uma síntese da abordagem sociojurídica

Propriedade do Produção do direito Questões centrais Arenas


direito

Disputas políticas Direito produzido a O que está sendo


partir dos conflitos de debatido? Quais são os Poder Legislativo
interpretações de pontos mais
normas jurídicas controversos e como Poder Judiciário
têm sido disputados?
Poder Executivo
Naturalização de Direito produzido e Quais são os termos da
ideias políticas e estabilizado ao ter discussão? Quais as Esfera Privada
econômicas seus conceitos taken- categorias jurídicas
for-granted mobilizadas? Organismos
Internacionais
Hibridismo Direito produzido por Como atores privados
interpretações e internalizam e, ao
procedimentos mesmo tempo,
privados a partir de constroem novas
regras públicas e vice- regras?
versa

Recursividade Direito produzido a Como organizações


partir de interações internacionais
sucessivas de criação e influenciam processos
implementação de domésticos? E como
regras e normas em atores nacionais
arenas nacionais e percebem e interpretam
internacionais essa influência?
Fonte: elaboração própria

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Em suma, produzido em diferentes arenas, a partir de processos políticos – de


disputas e naturalização de sentidos –, por atores privados e públicos, o direito possui o
condão de influenciar estratégias de ação, moldar preferências, canalizar o exercício do
poder político, conferir ou retirar recursos de atores em mercado. Em poucas palavras,
constitui parte central da institucionalização de mercados. Revelando tais dimensões,
pesquisas sociojurídicas podem abrir a caixa preta das relações estado-empresas
iluminando the politics of markets.

4. Considerações finais

A institucionalização dos mercados deve ser escrutinada como processo social dinâmico
e contingente. Olhando para como o direito é produzido, esse é o argumento central, é
possível endogeneizar o policymaking à análise da construção de mercados, como sugere
Pardi (2015).
Apesar de parecer mais evidente para alguns mercados – mercados regulados ou
que impliquem em conflitos distributivos mais agudos, como mercado financeiro,
mercado de derivados do petróleo, mercado de energia elétrica, e assim por diante –
entendo que a abordagem aqui apresentada seja esclarecedora para muitos outros
mercados. Isso porque o direito não apenas facilita e regula, mas estrutura relações em
mercados. Isto é, cria categorias elementares para a atividade econômica e torna
possível a estabilização de expectativas futuras em torno de acordos privados.
Processos de naturalização de sentidos normativos e de disputa conflitiva entre
ideias, agendas políticas e interesses acontecem também por meio do direito. A
institucionalidade é o resultado não da espontaneidade de atores racionais e egoístas,
mas da somatória das relações sociais conflitivas que se dão a partir de tais processos.
Uma abordagem sociojurídica ilumina os meandros dos mecanismos sociais que
sustentam que um mercado tenha certo desenho e não outros possíveis. Descrevê-los é
parte da tarefa crítica de desnaturalizar estruturas dadas como etéreas.
Além disso, essa abordagem ilumina a fragmentação das interações entre
estados e mercados e a multiplicidade de processos que as moldam. O estado não é um
ente monolítico e sua atuação em mercados deve ser percebida como parte da
construção (igualmente fragmentada) de seu poder e legitimidade, sendo o direito parte

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fundamental deste processo. Com efeito, ao buscar descrever a institucionalização de


mercados de modo mais realista, apresenta-se também uma lente mais acurada para ver
o próprio fenômeno jurídico, ainda marginalizado em análises sociológicas.
Como a institucionalidade de certo mercado tem sido desenhada por normas
formais, mas também por entendimentos informais e práticas concretas dos atores
envolvidos? Quais e como as arenas estatais têm moldado tal mercado e como são
acessadas por diferentes atores públicos e privados? Como a institucionalidade existente
foi construída a partir de processos políticos de conflito e naturalização de ideias e
categorias específicas, inclusive jurídicas? Como expressa um compromisso entre
diferentes agendas, racionalidades e força política dos atores envolvidos? Essas são
algumas questões que emergem da abordagem aqui proposta.
Mercados são instituições que alocam recursos sociais, sendo também
responsáveis por distribuir de modo mais ou menos igualitário a riqueza em uma
sociedade. Evidenciar sua institucionalidade auxilia a tarefa de compreender, criticar e,
eventualmente, alterar seu funcionamento, se socialmente indesejável. No atual
contexto global,a abordagem aqui apresentada podecontribuir na empreitada crucial de
dissecar as dinâmicas políticas, econômicas e jurídicas – ainda opacas –de instituições
que alimentam desigualdades.

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Sobre o autor

Pedro Salomon Bezerra Mouallem


Doutorando em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(USP). Foi visiting researcher na University of Glasgow (2019-2020). É membro do
Grupo de Direito e Políticas Públicas, da USP, e do Grupo de Regulação Econômica,
Instituições e Finanças, da FGV Direito SP. E-mail: pedro.mouallem@gmail.com

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

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COVID-19: análise crítica da distribuição constitucional de


competências
COVID-19: a critical analysis of the constitutional division of powers

Rafael Maffini1
1 UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-
mail: rafael.maffini@rmmgadvogados.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
7349-2411.

Artigo recebido em 30/03/2020 e aceito em 3/04/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 353-378.
Rafael Maffini
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Resumo
O COVID-19 produzirá consequências ainda incalculáveis, em face da quais o Direito
precisará apresentar soluções satisfatórias para um momento de crise como este. O
Brasil, na linha do que vem ocorrendo numa série de outros países, está adotando
medidas de enfrentamento ao surto de coronavírus, de acordo com a distribuição de
competências legislativas e administrativas (materiais) prevista na Constituição Federal.
O presente artigo busca, de um lado, apresentar a sistematização de tais competências
constitucionais e, de outro, analisar criticamente se tal arranjo constitucional de funções
legislativas e administrativas é satisfatório ao enfrentamento da crise causada pelo
COVID-19.
Palavras-chave: COVID-19; Competências; Restrições.

Abstract
COVID-19 shall have unprecedented consequences. The Law needs to be able to present
satisfactory solutions for a moment of crisis like this. Brazil, similar to what has been
happening in several other countries, has been adopting measures to deal with the
coronavirus outbreak, observing the constitutional division of legislative and
administrative powers. On the one hand, this article aims to present the power
distribution of such constitutional competences and, on the other hand, to critically
analyze whether such a constitutional arrangement of legislative and administrative
functions is satisfactory in coping with the crisis caused by COVID-19.
Keywords: COVID-19; Competences; Restrictive Measures.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 353-378.
Rafael Maffini
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1. Introdução

Os impactos econômicos e sociais da pandemia de coronavírus (COVID-19) repercutirão


de modo imprevisível no plano mundial. A gravidade de tal crise colocará em prova toda
uma série de institutos jurídicos, inclusive alguns sobre os quais poucas dúvidas havia.
No tocante às relações jurídico-administrativas, o Direito Administrativo
precisará oferecer soluções interpretativas minimamente adequadas para toda uma
plêiade de situações bastante relevantes e complexas decorrentes dos efeitos
proporcionados pela crise 1, tais como as formas especiais de contratação pública com ou
sem prévio processo licitatório2, os impactos nos contratos já celebrados com a
Administração Pública3, as repercussões nas relações funcionais com os respectivos
agentes públicos4, as formas de responsabilização dos agentes públicos por decisões
tomadas em momentos de crise 5, o modo supostamente especial através do qual se
interpreta a juridicidade administrativa e os direitos e garantias fundamentais dos
cidadãos, os limites e a profundidade do controle interno e externo promovido sobre
decisões administrativas levadas a efeitos neste momento, entre tantos outras questões
que certamente demandarão equalização teórica e científica por parte da doutrina e
também da jurisprudência.
De outro lado, merece especial atenção, neste momento, e o presente artigo
trata de tema relacionado com algumas das medidas já adotadas ou ainda adotáveis pelo
Poder Público brasileiro no combate da pandemia do COVID-19.

1 CARVALHO, Guilherme; MAFFINI, Rafael. Coronavírus e o "Direito Administrativo da crise". Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2020-mar-24/carvalho-maffini-coronavirus-direito-administrativo-crise. Acesso
em: 28 mar. 2020.
2 Vide, por exemplo, o art. 4º da Lei 13.979/2020, com a redação da pela Medida Provisória 926/2020, sem

prejuízo dos demais casos de contratação sem prévia licitação existentes na legislação ordinária (v.g. arts. 24
e 25, da Lei 8.666/1993; arts. 28, § 3º, 29 e 30, da Lei 13.303/2016).
3 Certamente serão muitas e muito complexas as situações ensejadoras de pedidos de equilíbrio econômico-

financeiro que surgirão em razão dos impactos da pandemia do coronavírus.


4 Veja-se, por exemplo a questão da redução de jornada, com a redução remuneratória proporcional. Com

efeito, o art. 23, § 2º, da Lei Complementar nº 101/2000 prevê que no caso de ente público exceder o limite
com despesas de pessoal, “é facultada a redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos
vencimentos à nova carga horária”. Tal preceito legal, contudo, encontra-se suspenso por medida cautelar
deferida na ADI 2.238. Em sede de julgamento de mérito, a composição plenária do STF já formou maioria
para a declaração de inconstitucionalidade de tal preceito, em razão da irredutibilidade vencimental,
insculpida no art. 37, XV, da CF. Contudo, não é incogitável que o STF dê à questão nova leitura, neste ou em
outro processo, no tocante aos problemas fiscais e orçamentários que serão inevitavelmente causados pelo
COVID-19.
5 Aqui, calha recordar o disposto no art. 22, da LINDB, com a redação dada pela Lei 13.655/2018, pelo qual

“Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais
do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.

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Para compreendê-las, tem-se que a Organização Mundial da Saúde – OMS, em


30 de janeiro de 2020, reconheceu o coronarvírus como emergência de saúde pública de
importância nacional – ESPII, categoria de alerta mais elevado contemplado no
Regulamento Sanitário Internacional – RSI6. Em 03 de fevereiro de 2020, editou-se a
Portaria nº 188/GM/SMS, pela qual se reconheceu tal surto, nos termos do Decreto
7.616/2011, como emergência de saúde pública de importância nacional – ESPIN. Em 06
de fevereiro de 2020, surge a Lei 13.979, a qual dispõe, segundo se depreende de sua
própria ementa, sobre as “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública
de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de
2019”7.
Ocorre que a partir do início da adoção de tais medidas de enfrentamento ao
COVID-19 no Brasil, notadamente a quarentena 8, tais instrumentos de combate ao
coronavírus mostraram-se deveras desuniformes, de sorte que, por exemplo, alguns
Estados e Municípios vedaram toda e qualquer atividade econômica, ao passo que, em
outros, nenhuma restrição foi imposta 9.
Em razão desta falta de uniformização, foi editada a Medida Provisória 926, de
20 de março de 2020, que, entre outras regras legais, procurou dar maior uniformidade
às medidas, inserindo, na Lei 13.979/2020, o art. 3º, § 8º, pelo qual “as medidas previstas
neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de
serviços públicos e atividades essenciais”. A MP 926 também introduziu, na Lei

6 O texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização
Mundial de Saúde foi promulgado através do Decreto 10.212, também de 30 de janeiro de 2020.
7 Para o aprofundamento de tal relato, vide: VENTURA, Deisy de Freitas Lima; AITH, Fernando Mussa

Abujamra; RACHED, Danielle Hanna. “A emergência do novo coronavírus e a “lei de quarentena” no Brasil”.
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10.1590/2179-8966/2020/49180.
8 Quarentena é o instrumento jurídico previsto no art. 3º, II, da Lei 13.979/2020, cuja definição é prevista no

art. 2º, II, da Lei 13.979/2020, como sendo toda e qualquer “restrição de atividades ou separação de pessoas
suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais,
meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação
ou a propagação do coronavírus”.
9 Em alguma medida, tal disparidade decorre do fato de que a Lei 13.949/2020, ao indicar as autoridades

competentes para a imposição de quarentena, indicou o Ministério da Saúde (art. 3º, § 7º, I) bem como os
gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde (art. 3º, § 7º, II), tendo sido tal
autorização dada pelo art. 4º, § 1º, da Portaria nº 356/GM/MS, de 11 de março de 2020 (“a medida de
quarentena será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser
editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde
ou superiores em cada nível de gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios de
comunicação”).

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13.979/2020, o art. 3º, § 9º, segundo o qual os serviços públicos e as atividades essenciais
deveriam ser objeto de decreto presidencial 10.
Ocorre que, apesar de o art. 3º, § 1º, da Lei 13.979/2020 determinar que as
medidas de enfrentamento ao coronavírus “somente poderão ser determinadas com base
em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e
deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à
preservação da saúde pública”, já se percebe uma tensão de interesses, inclusive no plano
ideológico, que polarizam, de um lado, o apoio à adoção de medidas mais restritivas,
propagado normalmente pelos integrantes dos setores médicos público e privado; de
outro, situa-se o apoio à flexibilização das restrições estatais, normalmente capitaneado
pelo setor produtivo e por alguns segmentos do Estado brasileiro 11.
Diante de tal tensão, a qual já produz contradições entre as posturas decisórias
dos mais diversos entes federativos (União, Estados, Município e Distrito Federal) é
necessário analisar a distribuição constitucional de competências em matéria de saúde,
para que se compreendam os limites de cada um dos protagonistas das medidas estatais
que já foram e ainda estão sendo adotadas no enfrentamento do coronavírus. O
desenvolvimento de tal tema tratará, num primeiro momento, da questão da
competência legislativa em matéria de saúde e, num segundo momento, serão analisadas
as competências administrativas ou materiais relacionados com a proteção da saúde. A
par de da compreensão da distribuição de competências legislativas e materiais, o
presente artigo analisará criticamente se tal arranjo constitucional de funções legislativas
e administrativas é satisfatório ao enfrentamento da crise causada pelo COVID-19. Isso
porque, se de um lado, a Constituição, como será a seguir melhor desenvolvido, assegura
a competência legislativa da União para a edição de normas gerais em matéria de saúde,
ela reconhece a competência administrativa (ou material) concorrente de todos os entes
federativos. A partir deste aparente paradoxo, é que se analisará criticamente se a

10 Editou-se, no mesmo dia 20/03/2020, o Decreto 10.282, já alterado pelo Decreto 10.292, de 25/03/2020,
o qual indicou um rol exemplificativos de serviços públicos e atividades essenciais, que haveriam de ter seu
exercício e funcionamento resguardados. Editou-se, também, o Decreto 10.288, de 22/03/2020, que
reconheceu como essenciais as atividades relacionadas com a imprensa.
11 A decisão sobre qual dos interesses merece maior proteção não é singela, inclusive porquanto pressupõe

dados estatísticos ainda desconhecidos quanto ao COVID-19. Se de um lado, as medidas mais restritivas
importarão em atraso na proliferação do surto, dando à sociedade brasileira mais tempo para se preparar e
ampliar sua rede de atendimento médico, de outro, os efeitos da recessão causada por medidas mais
restritivas poderão ser também catastróficos. Ou seja, a parêmia proposta pelo médico renascentista
Paracelso, no sentido de que “a diferença entre remédio e veneno está na dose de prescrição”, afigura-se
plenamente subsumível ao momento que estamos vivenciando.

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competência legislativa da União não acaba por restringir ou limitar demasiadamente as


funções administrativas dos demais entes federativos, especialmente em razão do fato
de que estão, em princípio, mais apropriados das suas realidades regionais e locais.

2. Competências legislativas em matéria de saúde

A Constituição Federal vigente preceitua um peculiar sistema federativo de distribuição


de competências, o qual pode de ser compreendido a partir de dois principais quadrantes:
num deles postam-se vários níveis federativos simultâneos (União, Estados, Distrito
Federal e Municípios); noutros, dividem-se as competências em materiais (ou
administrativas) e legislativas12.
Em relação à competência legislativa em matéria de Direito Administrativo,
considerando-se a autonomia político-administrativa que cada ente federativo possui
(art. 18 da CF), bem assim o fato de que não se atribui à União (por exemplo, no art. 22
da CF) uma competência legislativa geral sobre o tema, a regra geral é de que cada ente
federativo detém competência para legislar sobre os assuntos de seus respectivos
interesses13. No entanto, tal regra geral pode ser excepcionada, desde que tais exceções
estejam previstas em normas constitucionais.
Entre as exceções constitucionais, pelas quais a União teria função legislativa
nacional (e não somente federal), situa-se a competência que esta possui para a edição
de normas gerais, nos termos do disposto no art. 24, da Constituição Federal, que trata
das competências legislativas concorrentes entre a União, os Estados e o Distrito Federal,
atribuindo à primeira a tarefa de criação de normas gerais. Ainda que não referidos no
art. 24, também os Municípios se submetem à mesma sistemática dos Estados e do

12 Da conjugação de tais quadrantes, somado ao fato de que a União ora legisla em âmbito federal, ora em
âmbito nacional, exsurgem, portanto, as seguintes combinações: a) competências legislativas privativas da
União, de âmbito nacional, ou seja, quando suas normas são aplicáveis a todos os entes federativos (ex. art.
22, I, da CF); b) competências legislativas privativas da União, de âmbito federal, quando suas normas são
aplicáveis somente no plano federal; c) competências legislativas privativas dos Estados-membros; d)
competências legislativas privativas do Distrito Federal; e) competências legislativas privativas dos
Municípios; f) competências legislativas concorrentes da União, estados-membros, Distrito Federal e
Municípios (com diferentes arranjos de concorrência legislativa); g) competências administrativas da União;
h) competências administrativas dos Estados-membros; i) competências administrativas do Distrito Federal;
j) competências administrativas dos Municípios; k) competências administrativas concorrentes da União,
Estados-membros, Distrito Federal e Municípios (com diferentes arranjos de concorrência material).
13 Neste sentido, MAFFINI, Rafael. Elementos de Direito Administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2016, p. 27-30.

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Distrito Federal, em razão do disposto no art. 30, II, da CF, quanto à concorrência
legislativa a que se refere o art. 2414, conforme será a seguir pormenorizado.
Desta forma, para a legislação sobre os temas tratados pelo art. 24, da CF, todos
os entes federativos possuem competência para a produção de normas legais,
observados, todavia, os seguintes parâmetros: a) a União terá competência para a edição
de normas gerais (art. 24, § 1º, da CF); b) existindo normas gerais editadas pela União, os
demais entes federativos preservarão sua competência suplementar (art. 24, § 2º e art.
30, II, da CF); c) na falta de normas gerais estabelecidas por lei da União, os demais entes
federativos possuirão competência legislativa plena, visando a atender às suas respectivas
peculiaridades (art. 24, § 3º e art. 30, I, da CF); d) no caso de edição superveniente de
normas gerais federais, restará suspensa a eficácia da legislação dos demais entes
federativos, no que lhe for contrário (art. 24, § 4º, da CF)15.
Inclui-se no rol de temas objeto da competência legislativa concorrente a que
se refere o art. 24 da CF, a defesa da saúde (art. 24, XII, da CF). Desta forma, em matéria
de saúde, mostra-se evidente a competência da União para a edição de normas gerais,
como são as contidas na Lei 13.979/2020, que trazem consigo uma política pública
nacional de combate ao coronavírus16.
Daí porque merece destaque a posição propagada por Dalmo de Abreu Dallari,
para quem:
No sistema constitucional brasileiro foi dada competência à União para
fixar normas gerais sobre saúde. Essas normas, que devem manter-se nos
limites de "gerais" ou "principiológicas" são obrigatórias para a União, os
Estados, os Municípios e o Distrito Federal, devendo ser observadas como
parâmetros e limites para os legisladores ordinários federais, estaduais e
municipais, assim como para os respectivos agentes administrativos.
Entretanto, carecem de eficácia jurídica e, portanto, não deverão ser

14 Os Municípios também participam de tal concorrência legislativa em razão do disposto no art. 30, II, da CF
(“compete aos Municípios [...] suplementar a legislação federal e a estadual no que couber). Neste sentido,
Fernanda Dias Menezes de Almeida assevera, a propósito da competência legislativa concorrente, que “se
mostra válido entender que aos Municípios também se conferiu participação na produção normativa
concorrente, em virtude do disposto no art. 30, II, que lhes dá competência para suplementar a legislação
federal e estadual no que couber” (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Comentários ao Art. 24. In:
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (coord).
Comentários à Constituição do Brasil. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 810).
15 Sobre o tema, vide SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI; Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito

Constitucional, 8. Ed. São Paulo: RT, 2019.


16 Lembre-se, quanto à noção de normas gerais, no tocante à distribuição constitucional de competências

legislativas, a lição de Raul Machado Horta, para quem “A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma
moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado,
mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às
peculiaridades locais" (HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte,
1995, p. 419-420).

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obedecidas ou implementadas, as normas que, sob pretexto de fixação de


"normas gerais", estabelecerem regras destinadas a reger situações
específicas, particulares a ocorrências isoladas e localizadas, ou
simplesmente relativas a aspectos formais. Em decorrência, quando
integradas em leis e regulamentos nelas fundamentados, as normas
gerais são também obrigatórias para todos os que residirem ou
exercerem atividades no âmbito da legislação que trate de situações
concretas17.

Bem verdade que a União, em temas em relação aos quais a Constituição


Federal lhe atribui competência para edição de normas gerais, não pode detalhá-los
demasiadamente, sob pena de invadir a competência suplementar ou complementar dos
demais entes federativos, os quais hão de poder adaptar as normas gerais editadas pela
União às suas respectivas realidades regionais e locais 18.
Contudo, este não parece ser o caso da Lei 13.070/2020, que trata
especificamente dos instrumentos de enfrentamento do COVID-19. Neste sentido, não se
pode desconsiderar que o status de emergência de saúde pública de importância
internacional (ESPII) significa “um evento extraordinário que, nos termos do presente
Regulamento, é determinado como (i) constituindo um risco para a saúde pública para
outros Estados, devido à propagação internacional de doença e (ii) potencialmente
exigindo uma resposta internacional coordenada”19. Ora, se internacionalmente um surto
como o do COVID-19 exige atuação coordenada, parece evidente que também, no plano
interno, as medidas de enfrentamento do coronavírus deverão estar submetidas a uma
política coordenada, razão pela qual não pareceria adequado cogitar que cada Estado-
membro ou Município, além do Distrito Federal, pudesse eleger os seus próprios
instrumentos de combate 20.

17 DALLARI, Dalmo de Abreu. Normas gerais sobre saúde: cabimento e limitações. Disponível em
http://www.saude.mppr.mp.br/pagina-359.html. Acesso em: 28 mar. 2020.
18 Neste sentido, lembre-se da advertência feita por Alexandre de Moraes, para quem “compete à União

legislar sobre normas gerais protetivas da saúde pública, enquanto aos Estados e Distrito Federal compete a
complementação dessas normas. Nem os Estados/Distrito Federal poderão invadir a disciplina sobre normas
gerais nem a União poderá editar normas por demais específicas, sob pena de inconstitucionalidade por
desrespeito à divisão de competências concorrentes feita pela Constituição Federal” (MORAES, Alexandre.
Competências administrativas e legislativas para vigilância sanitária de alimentos. Disponível em
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista53/competencias.htm. Acesso em: 28 mar.
2020.
19 Definição contida no Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da

Organização Mundial de Saúde, o qual foi promulgado no Brasil através do Decreto 10.212, também de 30 de
janeiro de 2020.
20 Isso, sem prejuízo de eventual competência de que, no exercício das competências administrativas haja

alguma customização das medidas nacionais de enfrentamento às respectivas realidades regionais ou locais
de cada ente federativo, conforme será demostrado no item a seguir.

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Contudo, como já referido, defende-se aqui que as medidas de enfrentamento


contidas na Lei 13.070/2020 se traduzem em normas gerais, adequada e
constitucionalmente editadas pela União, no exercício da tarefa que lhe foi atribuída pelo
art. 24, XII, da CF. Ao editá-las, portanto, a União não invadiu as atribuições próprias dos
Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios. Todavia, como será a seguir demonstrado,
tal conclusão não implica dizer que a União teria o protagonismo na concretização das
normas gerais por ela editadas. A competência legislativa da União para editar normas
gerais, não retira dos demais entes federativos, as competências administrativas em
matéria de saúde.
De qualquer modo, tratando-se a Lei 13.979/2020 de legislação da União que
traz consigo normas gerais de defesa da saúde, deve ser reconhecido, em relação à
legislação dos demais entes federativos, um fenômeno de bloqueio de sus competências
legislativas, decorrente da edição de norma geral de defesa da saúde, a inibir, portanto, a
incidência de normas editadas pelos demais entes federativos sobre o mesmo tema 21. Isso
porque, havendo competência da União para editar normas gerais, há de ser observada a
regra geral de que, neste caso, o direito federal/nacional prevalece sobre o direito
estadual, distrital e municipal22.
Do referido fenômeno de bloqueio de competências, decorrem duas principais
implicações. A primeira delas consiste na antijuridicidade, por violação às regras
constitucionais que conferem à União competência para produção de normas gerais
sobre determinados temas, das normas estaduais, distritais e municipais que vierem a ser
supervenientemente editadas em contraposição com as normas gerais produzidas pela
União. Desta forma, com a edição da Lei 13.979/2020, pela União, os demais entes
federativos (Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) não mais poderão editar
normas que ensejem qualquer contrariedade em relação ao disposto na Lei 13.979/2020,
quanto aos temas relativos à defesa da saúde. Caso surjam, na legislação estadual,
distrital ou municipal, normas posteriores à Lei 13.979/2020, que com ela conflitem, tais
normas incontroversamente padecerão de vício de inconstitucionalidade.

21 Sobre o fenômeno do bloqueio de competências, lembre-se da lição de Vasco Della Giustina, pelo qual a
existência d e normas gerais editadas pela União “serve, apenas para provar ou demonstrar que o Estado e o
Município estão impedidos ou bloqueados de editar normas a respeito da matéria” (DELLA GIUSTINA, Vasco.
Controle de Constitucionalidade das Leis. 2ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 163).
22 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988, 6. ed. São Paulo: Atlas, 2013,

p. 141.

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A segunda implicação do fenômeno do bloqueio de competências gerado pelo


surgimento de norma geral da União, em tema referido no art. 24, da CF, como é o caso
da defesa da saúde (art. 24, XII), consiste na perda de eficácia de todas as regras contidas
na legislação estadual, distrital ou municipal que direta ou indiretamente violem as
disposições contida na Lei 13.979/2020. Com efeito, ainda que o art. 24, § 4º, da
Constituição Federal faça expressa menção à legislação estadual (“a superveniência de lei
federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”),
tal efeito de bloqueio de competência legislativa, apto à suspensão da eficácia de normas
anteriores contrárias ao texto de normas gerais federais supervenientes, mostra-se
igualmente aplicável à legislação que tenha sido editada pelo Distrito Federal (este
inclusive referido no caput do art. 24) ou pelo Municípios. O tema das normas municipais
reclama maior atenção, porquanto se tratam de entes federativos não referidos
explicitamente no art. 24, caput, da Constituição Federal23. Ainda que não mencionado
no art. 24, da CF, a sistemática de competência legislativa concorrente, mostra-se
igualmente aplicável aos Municípios em razão do disposto no art. 30, II, da CF, pelo qual
compete aos Municípios “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”24.
Observe-se que a competência dos Municípios para a “suplementação” da legislação
federal assemelha-se à competência dos Estados a que se refere o art. 24, § 2º, da CF.
Assim, diante da competência da União para a edição de normas gerais (art. 24, I e § 1º,
da CF), não teria sentido sustentar que a competência suplementar dos Estados (art. 24,
§ 2º) houvesse de ser tratada de modo diverso da competência também suplementar
outorgada aos Municípios (art. 30, II, da CF) 25. Daí porque se impõe a conclusão de que

23 CF, art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre […].
24 Neste sentido, destaca-se o seguinte precedente do STF: LEIS 10.927/91 E 11.262 DO MUNICÍPIO DE SÃO
PAULO. SEGURO OBRIGATÓRIO CONTRA FURTO E ROUBO DE AUTOMÓVEIS. SHOPPING CENTERS, LOJAS DE
DEPARTAMENTO, SUPERMERCADOS E EMPRESAS COM ESTACIONAMENTO PARA MAIS DE CINQÜENTA
VEÍCULOS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. O Município de São Paulo, ao editar as Leis l0.927/91 e 11.362/93,
que instituíram a obrigatoriedade, no âmbito daquele Município, de cobertura de seguro contra furto e roubo
de automóveis, para as empresas que operam área ou local destinados a estacionamentos, com número de
vagas superior a cinqüenta veículos, ou que deles disponham, invadiu a competência para legislar sobre
seguros, que é privativa da União, como dispõe o art. 22, VII, da Constituição Federal. 2. A competência
constitucional dos Municípios de legislar sobre interesse local não tem o alcance de estabelecer normas que
a própria Constituição, na repartição das competências, atribui à União ou aos Estados. O legislador
constituinte, em matéria de legislação sobre seguros, sequer conferiu competência comum ou concorrente
aos Estados ou aos Municípios. 3. Recurso provido (RE 313060, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda
Turma, julgado em 29/11/2005, DJ 24-02-2006 PP-00051 EMENT VOL-02222-03 PP-00538 LEXSTF v. 28, n.
327, 2006, p. 226-230 RT v. 95, n. 851, 2006, p. 128-130).
25 Quanto ao ponto, Ana Paula de Barcellos ensina que “os Municípios não são mencionados no caput do art.

24, mas o art. 30, II, prevê que compete a eles suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.
Assim, da conjugação do art. 24 com o art. 30, II, tem-se que as competências legislativas concorrentes podem
incluir todos os entes federativos: à União cabe estabelecer normas gerais, aos Estados compete a edição de

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terão eficácia jurídica suspensa também as regras municipais editadas antes da Lei
13.979/2020, que com ela conflitem.
Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet afirma que “tendo em conta o caráter
suplementar da legislação municipal, em caso de conflito deve prevalecer a legislação
federal ou estadual, de tal sorte que a superveniência de lei estadual ou federal contrária
à lei municipal suspende a eficácia da última”26. Do mesmo modo, a lição de Gilmar
Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, para quem a competência atribuída aos
Municípios pelo art. 30, II, da CF há de respeitar as normas federais e estaduais existentes,
de modo que “não é dado ao Municípios dispor em sentido que frustre o objetivo buscado
pelas leis editadas no plano federal ou estadual. A superveniência de lei federal ou
estadual contrária à municipal suspende a eficácia desta”27.
Por fim, como será demonstrado no item a seguir, o fenômeno do bloqueio de
competências causado pelas normas gerais editadas pela União, incide tão somente sobre
a competência legislativa dos demais entes federativos, não se lhes retirando a
competência, em comum com a União, no tocante às funções administrativas de proteção
da saúde.
Assim, a título de conclusão deste tópico, tem-se que: a) a União possui
competência para legislar em matéria de defesa da saúde (art. 24, XII, da CF); b) embora
persistam as competências legislativas dos demais entes federativos (Estados-membros,
Distrito Federal e Municípios) para a adaptação de suas normas às normas gerais
federais/nacionais (art. 24, § 2º e art. 30, II), estas têm em relação àquelas uma função de
bloqueio, no sentido de que as normas anteriores que lhe forem conflitantes serão
suspensas (art. 24, § 4º) e de que as normas supervenientes que lhe contrariarem serão
inconstitucionais; c) as normas contidas na Lei 13.979/2020 são normas gerais de defesa
da saúde a que se refere o art. 24, XII, da CF, de cunho nacional e de obediência obrigatória
por Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, sem prejuízo das suas competências
administrativas a seguir analisadas.

normas suplementares, e os Municípios poderão ainda suplementar esses dois conjuntos normativos federal
e estadual, no que couber” (BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de Direito Constitucional, 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019, p. 252).
26 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI; Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional, 8.

Ed. São Paulo: RT, 2019, p. 950.


27 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 14. ed. São

Paulo: Saraiva, 2019, p. 927.

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3. Competências administrativas (ou materiais) no enfrentamento do COVID-19

A análise das competências administrativas (ou materiais) no enfrentamento do COVID-


19 mostra-se tão – ou até mesmo mais – relevante do que a compreensão das
competências legislativas em matéria de defesa da saúde.
Com efeito, a Constituição Federal enuncia, em seu art. 23, II, ser “competência
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios [...] cuidar da saúde e
assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”. A toda
evidência, tem-se caso de competência administrativa concorrente de todos os entes
federativos, o que também é reforçado pelos artigos 196 a 200, da CF.
Aliás, quanto ao ponto merece destaque a decisão monocrática exarada na MC-
ADI 6.34128. Com efeito, a referida ação direta de inconstitucionalidade foi proposta, sob
a alegação de que haveria violação da Constituição Federal no tocante à Medida
Provisória 926, de 20 de março de 2020, relativamente às alterações feitas nos incisos I,
II e VI, e §§ 8º, 9º, 10 e 11 do artigo 3º, da Lei 13.979/2020. Pleiteou-se também, mas por
arrastamento, a declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 10.282/2020. Quando
da análise monocrática da medida cautelar, o relator, Min. Marco Aurélio, entendeu que:
[a legislação impugnada] foi editada com a finalidade de mitigar-se a crise
internacional que chegou ao Brasil, muito embora no território brasileiro
ainda esteja, segundo alguns técnicos, embrionária. Há de ter-se a visão
voltada ao coletivo, ou seja, à saúde pública, mostrando-se interessados
todos os cidadãos. O artigo 3º, cabeça, remete às atribuições, das
autoridades, quanto às medidas a serem implementadas. Não se pode ver
transgressão a preceito da Constituição Federal.

Ou seja, no tocante ao objeto da ADI propriamente dito (declaração de


inconstitucionalidade das normas acima referidas), não houve deferimento monocrático
da medida cautelar, tendo sido a apreciação da questão remetida à análise plenária do
STF, que agendou tal julgamento para 15 de abril de 202029.
Contudo, o Min. Marco Aurélio deixa evidente que as normas legais impugnadas
“não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município
considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior”,

28Decisão publicada no DJE nº 72, de 25/03/2020.


29Informação obtida em http://stf.jus.br/portal/pauta/listarCalendario.asp?data=15/04/2020. Contra a MP
926/2020, tramita também a ADI 6.343.

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razão pela qual foi deferida a medida acauteladora tão somente “para tornar explícita, no
campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente”.
Tal decisão, alinha-se bem ao que dispõe a Constituição Federal, eis que ressalva
a competência legislativa da União para a edição de normas gerais, ao mesmo tempo em
que reconhece a competência administrativa (ou material) concorrente de todos os entes
federativos.
Partindo-se de tais premissas, absolutamente consentâneas com a Constituição
Federal, como já referido, surgem algumas questões merecedoras de destaque.
Primeiramente, é óbvio que o exercício das competências administrativas (ou materiais),
de cada um dos entes federativos haverá de observar os ditames veiculados por normas
gerais editadas pela União.
Disso resulta, pois, que as competências administrativas de competência de
todos os entes federativos para o enfrentamento do COVID-19 sujeitam-se aos ditames
da Lei 13.979/2020. Ou seja, evidentemente trata-se de competências administrativas
que não podem se desgarrar dos instrumentos de enfrentamento previstos no artigo 3º,
da referida lei30.
Aliás, lembre-se que, em razão do acima referido, nem mesmo lei estadual,
distrital ou municipal poderiam ampliar, ou mesmo restringir as medidas contempladas
na Lei 13.979/2020. Contudo, desde que observados tais limites contidos nas normas
gerais editadas pela União, os entes federativos poderiam, no exercício de
regulamentação do exercício do poder de polícia administrativa31, editar suas respectivas

30 Lei Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente
do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes
medidas: I - isolamento; II - quarentena; III - determinação de realização compulsória de: a) exames médicos;
b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou e)
tratamentos médicos específicos; IV - estudo ou investigação epidemiológica; V - exumação, necropsia,
cremação e manejo de cadáver; VI - restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme
recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias,
portos ou aeroportos; VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e
fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada
e saída do País; e b) locomoção interestadual e intermunicipal; VII - requisição de bens e serviços de pessoas
naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e VIII -
autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem
registro na Anvisa, desde que: a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e b) previstos em ato do
Ministério da Saúde.
31 Aliás, quanto ao poder de polícia administrativa (ordenação administrativa), importante destacar que o art.

3º, § 4º, da Lei 13.979/2020, estabelece que “As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas
previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei”.
Demais disso, em 17/03/2020, restou editada a Portaria Interministerial 5/2020, dos Ministros da Saúde e da
Justiça e da Segurança Pública, a qual ressalta a compulsoriedade das medidas impostas, com a conseguinte
responsabilização civil, penal e administrativa pelo descumprimento das medidas. Especificamente quanto ao
poder de polícia administrativa, o art. 8º, da respectiva portaria dispõe que “visando a evitar a propagação do

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normas legais ou infralegais. Daí porque o sem número de decretos editados por Estados-
membros, pelo Distrito Federal ou por Municípios nos últimos dias.
Digno de destaque que a própria Lei 13.979/2020 possui norma que propõe uma
divisão de competências administrativas, no seu art. 3º, § 7º. Considerado o fato de que
se trata de divisão de competências contidas em norma geral de competência da União
(art. 24, XII, da CF), é possível a conclusão de que a referida distribuição de competências
materiais constante da Lei 13.979/2020 não viola ao disposto no art. 23, II, também da
CF.
De acordo com tal distribuição de atribuições referida no art. 3º, § 7º, da Lei
13.979/2020, todas as medidas referidas no art. 3º poderiam ser promovidas pelo
Ministério da Saúde.
Outras das restrições poderiam ser levadas a efeitos pelos gestores locais de
saúde, desde que haja autorização do Ministério da Saúde32, por exemplo: isolamento;
quarentena; exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; restrição excepcional
e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e
fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou
aeroportos; e autorização excepcional e temporária para a importação de produtos
sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que registrados por autoridade
sanitária estrangeira e previstos em ato do Ministério da Saúde.
Por fim, há medidas que podem ser promovidas pelos gestores locais de saúde,
independentemente de autorização do Ministério da Saúde, como determinação de
realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras
clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas, ou tratamentos médicos específicos;
estudo ou investigação epidemiológica; requisição de bens e serviços de pessoas naturais
e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa.

COVID-19 e no exercício do poder de polícia administrativa, a autoridade policial poderá encaminhar o agente
à sua residência ou estabelecimento hospitalar para cumprimento das medidas estabelecidas no art. 3º da
Lei nº 13.979, de 2020, conforme determinação das autoridades sanitárias”. De qualquer modo, para o
aprofundamento do tema, vide BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação –
transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do Direito Administrativo Ordenador. Belo
Horizonte: Fórum, 2017 e SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. 1º ed. 2ª tir. São Paulo:
Malheiros, 1997.
32 Quanto à quarentena, a autorização foi dada pelo art. 4º, § 1º, da Portaria nº 356/GM/MS, de 11 de março

de 2020 (“a medida de quarentena será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente
motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou
Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente
divulgada pelos meios de comunicação”).

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Embora não seja possível realizar, neste momento, uma análise aprofundada de
todas as medidas referidas, duas delas serão aqui tratadas com um pouco mais de
atenção.
A primeira delas diz com a requisição administrativa referida no art. 3º, VII, da
Lei 13.979/2020, segundo a qual o Ministério da Saúde ou os gestores locais de saúde
podem determinar a “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas,
hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”. Ora, tal
medida possui estatura e expressa previsão constitucional (art. 5º, XXV33), além de restar
prevista no a art. 1.228, § 3º, do Código Civil34, consiste no uso ou na subtração
temporária, unilateral e autoexecutória de certos bens e serviços, em caso de perigo
público iminente. Quanto a tal instituto jurídico, trata-se de conduta administrativa que
pode ser muito útil no combate do COVID-19. Contudo, duas patologias sistêmicas podem
ocasionar, inclusive, desabastecimento de produtos imprescindíveis ao combate do
COVID-19. Primeiramente – e aí uma crítica ao disposto no art. 3º, § 7º, III, da Lei
13.979/2020 –, ao se ter atribuído tal competência a todos os gestores locais da saúde,
sem necessidade de autorização do Ministério da Saúde, viabiliza-se que milhares de
entes federativos imponham requisições administrativas de modo desarticulado,
podendo produzir, de um lado, o desabastecimento de produtos essenciais ao combate
do coronavírus e, de outro, o desvirtuamento de uma política pública que há de ser
nacionalmente articulada. Numa situação extrema, imagine-se uma requisição
administrativa de equipamentos médicos, promovida por um só Município que acabe por
comprometer o abastecimento a todo os demais Municípios de um Estado-membro.
Parece que medida tão importante haveria de ser articulada nacionalmente de modo que
o ideal é que, de lege ferenda, o art. 3º, VII, fosse “transferido” do art. 3º, § 7º, III para o
art. 3º, § 7º, I ou para o art. 3º, § 7º, II, para fins de que as requisições administrativas
fossem, respectivamente, ou de competência privativa do Ministério da Saúde ou que ao
menos fosse necessária a autorização deste para que os gestores locais da saúde
pudessem promovê-las.
A segunda questão relativa à requisição administrativa diz com a previsão de
posterior indenização, contemplada tanto no art. 5º, XXV, da CF, quanto no art. 3º, VII, da

33 CF, Art. 5º, XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade
particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.
34 CC, Art. 1.228 § 3º - O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade

ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.

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Lei 13.979/2020. Ora, a ratio da regra pela qual a indenização seja posterior diz com o
próprio fundamento da requisição administrativa, qual seja, a situação de perigo público
iminente, a justificar que a medida administrativa possa ser tomada antes mesmo de
discussões sobre os valores devidos pela subtração ou pela privação dos bens e serviços.
Num paralelo com a desapropriação, cuja indenização há de ser justa e prévia (art. 5º,
XXIV, da CF), a requisição administração mostra-se mais urgente e, portanto, relega para
um momento posterior eventuais controvérsias sobre a indenização devida. No entanto,
uma advertência aqui se impõe, especialmente se levada em consideração a realidade da
grande maioria dos fabricantes ou importadores de bens relacionados com a saúde e,
portanto, agentes econômicos imprescindíveis ao combate do COVID-19. Isso porque se
as requisições administrativas forem realizadas sem que as indenizações ocorram num
momento imediatamente posterior, em poucos dias, elas poderão descapitalizar toda a
cadeia produtiva de tais produtos a ponto de se comprometer todo o abastecimento e
um setor tão relevante e, ao mesmo tempo, sensível neste momento.
A outra medida administrativa aqui destacada é quarentena, consistente no
instrumento mais amplo de combate ao coronavírus, entre os conhecidos até o momento,
porquanto ensejador de restrições de atividades e pessoas, visando a minimizar ou
mesmo retardar a proliferação do surto. Tal medida, certamente a mais polêmica em
razão do potencial conflito de interesses econômicos e sanitários 35, suscita uma questão
muito relevante: a compatibilização das medidas administrativas perpetradas pelos
variados entes federativos (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), a
partir das normas contidas na Lei 13.979/2020. Como já apontado nas notas introdutórios
deste estudo, a partir da Lei 13.979/2020 e a partir da autorização dada pelo art. 4º, § 1º,
da Portaria nº 356/GM/MS, de 11 de março de 2020, tal medida, além de poder ser
determinada pelo próprio Ministério da Saúde,
mediante ato administrativo formal e devidamente motivado [...] deverá
ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito
Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de
gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios
de comunicação.

Daí porque se mostra relevante a compreensão das “restrições das restrições”,


ou seja, quais os limites que as autoridades administrativas haverão de observar quando

35 Vide nota 13, supra.

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da imposição da quarentena. Como também já referido na introdução, diante da falta de


uniformidade das medidas impostas, editou-se a Medida Provisória 926/2020, que trouxe
os parágrafos 8º a 11, do art. 3º, da Lei 13.979/2020.
Tais regras jurídicas podem ser assim resumidas: a) ainda que adotadas, as
medidas de enfrentamento ao COVID-19, deverão resguardar o exercício e o
funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais (art. 3º, § 8º), que devem ser
definidos por decreto do Presidente da República (art. 3º, § 9º); b) no caso de medidas de
isolamento, quarenta ou restrição excepcional e temporária de locomoção, quando
afetarem a execução de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas,
concedidas ou autorizadas, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que
em articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador (art.
3º, § 10)36 37; c) passou a ser vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa
afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, tal como definidas
por decreto presidencial, e cargas de qualquer espécie que possam acarretar
desabastecimento de gêneros necessários à população (art. 3º, § 11) 38.
No tocante ao resguardo do exercício e do funcionamento de serviços públicos
e de atividades essenciais, restaram editados até o momento, o Decreto 10.282, de 20 de
março de 2020, já alterado pelo Decreto 10.292, de 25 de março de 2020, e o Decreto
10.288, de 22 de março de 2020.
O Decreto 10.288/2020 estabeleceu, em seu art. 3º, que as medidas de
enfrentamento do COVID-19
deverão resguardar o exercício pleno e o funcionamento das atividades e
dos serviços relacionados à imprensa, considerados essenciais no
fornecimento de informações à população, e dar efetividade ao princípio
constitucional da publicidade em relação aos atos praticados pelo Estado.

Já o Decreto 10.282 traz um rol mais abrangente de serviços públicos e


atividades essenciais, fazendo-o numa extensa enumeração exemplificativa contida no
seu art. 3º, § 1º, pelo qual “são serviços públicos e atividades essenciais aqueles
indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim

36 Sobre o tema, vide: SCHWIND, Rafael Wallbach. Reflexões sobre a lei 13.979/20 e o decreto 10.282/20:
descabimento de restrições a serviços essenciais sem prévia articulação com o poder concedente e a agência
reguladora. Disponível em: https://m.migalhas.com.br/depeso/322804/reflexoes-sobre-a-lei-13979-20-e-o-
decreto-10282-20-descabimento-de-restricoes-a-servicos-essenciais-sem-previa-articulacao-com-o-poder-
concedente-e-a-agencia-reguladora. Acesso em: 28 mar. 2020.
37 Também disposto no art. 3º, § 6º, do Decreto 10.282/2020.
38 Também disposto no art. 3º, § 3º, do Decreto 10.282/2020.

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considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde


ou a segurança da população”39.
Demais disso, destaca-se o disposto no art. 3º, § 2º, do Decreto 10.282/2020,
pelo qual “também são consideradas essenciais as atividades acessórias, de suporte e a
disponibilização dos insumos necessários a cadeia produtiva relativas ao exercício e ao
funcionamento dos serviços públicos e das atividades essenciais”. Ou seja, não somente
os serviços públicos e as atividades essenciais é que estão resguardadas, mas tudo o
quanto seja necessário na cadeia produtiva ou na viabilização da atividade tida como
essencial. Por exemplo, a fabricação de torneiras deve ser resguardada, eis que
relacionada com assistência à saúde, ao tratamento de esgoto e a distribuição de água,

39 Decreto 10.282/2020, art. 3º, § 1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao
atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos,
colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como: I - assistência à saúde,
incluídos os serviços médicos e hospitalares; II - assistência social e atendimento à população em estado de
vulnerabilidade; III - atividades de segurança pública e privada, incluídas a vigilância, a guarda e a custódia de
presos; IV - atividades de defesa nacional e de defesa civil; V - transporte intermunicipal, interestadual e
internacional de passageiros e o transporte de passageiros por táxi ou aplicativo; VI - telecomunicações e
internet; VII - serviço de call center; VIII - captação, tratamento e distribuição de água; IX - captação e
tratamento de esgoto e lixo; X - geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, incluído o
fornecimento de suprimentos para o funcionamento e a manutenção das centrais geradoras e dos sistemas
de transmissão e distribuição de energia, além de produção, transporte e distribuição de gás natural; XI -
iluminação pública; XII - produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por
meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, higiene, alimentos e bebidas; XIII - serviços funerários;
XIV - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, de equipamentos e de materiais nucleares; XV -
vigilância e certificações sanitárias e fitossanitárias; XVI - prevenção, controle e erradicação de pragas dos
vegetais e de doença dos animais; XVII - inspeção de alimentos, produtos e derivados de origem animal e
vegetal; XVIII - vigilância agropecuária internacional; XIX - controle de tráfego aéreo, aquático ou terrestre;
XX - serviços de pagamento, de crédito e de saque e aporte prestados pelas instituições supervisionadas pelo
Banco Central do Brasil; XXI - serviços postais; XXII - transporte e entrega de cargas em geral; XXIII - serviço
relacionados à tecnologia da informação e de processamento de dados (data center) para suporte de outras
atividades previstas neste Decreto; XXIV - fiscalização tributária e aduaneira; XXV - produção e distribuição de
numerário à população e manutenção da infraestrutura tecnológica do Sistema Financeiro Nacional e do
Sistema de Pagamentos Brasileiro; XXVI - fiscalização ambiental; XXVII - produção de petróleo e produção,
distribuição e comercialização de combustíveis, gás liquefeito de petróleo e demais derivados de petróleo;
XXVIII - monitoramento de construções e barragens que possam acarretar risco à segurança; XXIX -
levantamento e análise de dados geológicos com vistas à garantia da segurança coletiva, notadamente por
meio de alerta de riscos naturais e de cheias e inundações; XXX - mercado de capitais e seguros; XXXI -
cuidados com animais em cativeiro; XXXII - atividade de assessoramento em resposta às demandas que
continuem em andamento e às urgentes; XXXIII - atividades médico-periciais relacionadas com a seguridade
social, compreendidas no art. 194 da Constituição; XXXIV - atividades médico-periciais relacionadas com a
caracterização do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial da pessoa com deficiência, por meio
da integração de equipes multiprofissionais e interdisciplinares, para fins de reconhecimento de direitos
previstos em lei, em especial na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência;
XXXV - outras prestações médico-periciais da carreira de Perito Médico Federal indispensáveis ao
atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade; XXXVI - fiscalização do trabalho; XXXVII - atividades
de pesquisa, científicas, laboratoriais ou similares relacionadas com a pandemia de que trata este Decreto;
XXXVIII - atividades de representação judicial e extrajudicial, assessoria e consultoria jurídicas exercidas pelas
advocacias públicas, relacionadas à prestação regular e tempestiva dos serviços públicos; XXXIX - atividades
religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde; e XL - unidades
lotéricas.

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especialmente no combate de um surto cuja primeira recomendação é justamente que


lavemos as mãos. O fornecimento de tecidos e a confecção de uniformes hospitalares
deverão ser mantidos, para dar suporte à ampliação de equipes contratadas para o
combate do COVID-19. A locação de veículos deverá ter seu exercício e funcionamento
resguardados, se considerado que o Decreto 10.282/2020 resguarda atividade de
transporte de passageiros por aplicativos, sobretudo se consideradas as estatísticas no
sentido de que grande parte dos veículos locados se presta a referida atividade 40.
Duas derradeiras observações se impõem quanto à sistemática acima referida.
A primeira delas consiste no fato de que na qualificação dos serviços públicos e
das atividades essenciais que devem ser resguardadas, ou seja, cujo funcionamento
haverá de ser preservado, o decreto presidencial necessariamente deverá, nos termos do
que dispõe o já referido art. 3º, § 1º, da Lei 13.979/2020, ter como base “em evidências
científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser
limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da
saúde pública”. Isso implica dizer que o Presidente da República não poderá livremente
qualificar ou desqualificar os serviços públicos e as atividades essenciais que ele
pessoalmente “acha” que devem ter o seu funcionamento mantido. Com efeito, neste
momento e neste tema, as evidências científicas e as análises sobre informações
estratégicas presidem mais o país do que o próprio Presidente da República. Assim, se as
autoridades sanitárias, notadamente o Ministério da Saúde, recomendam, com bases
científicas, a adoção de medida de quarentena mais restritivas, nem mesmo o Presidente
da República poderia, sponte propria, flexibilizar tais as restrições tecnicamente
recomendadas.
Não se pode olvidar que, uma vez determinada a quarentena, esta passa a ser a
regra, e o resguardo de atividades, a exceção, razão pela qual a liberação de atividades há
de ser interpretada com a devida parcimônia. Assim, o resguardo de exercício e
funcionamento de certas atividades, além de observar as diretrizes científicas e as
estatísticas manejadas pelos órgãos sanitários, deverá ser utilizado tão somente para “o
atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles
que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da
população” (art. 3º, § 1º, do Decreto 10.282/2020). Ainda que tal comando normativo

40 Estes é o objeto da ADPF 666, cujo pedido cautelar ainda pende de apreciação, diante de restrições à
locação de veículos por parte de alguns Estados-membros e Municípios.

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esteja situado em decreto presidencial, parece que há se servir de limitador conceitual


para o próprio Presidente da República que não poderá, em razão de uma noção de
autovinculação administrativa, rever tal parâmetro41.
E caso o Presidente da República venha se desgarrar dos parâmetros científicos
e estatísticos, para os fins de qualificação das atividades que, em época de quarentena,
devam ter o seu exercício e funcionamento resguardado, seus atos poderão – e deverão
– ser sujeitos os variados modos de controle, inclusive judicial, existentes para a
sindicabilidade das condutas administrativas.
A segunda observação diz com o papel dos demais entes federados (Estados-
membros, Distrito Federal e Municípios) no tocante aos serviços públicos e atividades
essenciais cujo exercício e funcionamento devem ser resguardados.
A partir da sistemática decorrente da conjugação do art. 3º, § 8º, da Lei
13.979/2020 com os decretos presidenciais já editados (Decreto 10.282/2020 e Decreto
10.288/2020), impõe-se conclusão de que os demais entes federativos, ao decretarem a
quarentena, somente poderiam liberar atividades em parâmetro diversos do que as
resguardadas pelo ato normativo federal, se houvesse igualmente fundamento científico
e estatístico a justificar tal liberação, a partir da customização das medidas restritivas com
suas respectivas realidades regionais e locais.
Explica-se: considerado o fato de que a legislação impõe sejam resguardados o
exercício e o funcionamento de serviços públicos e de atividades essenciais (trata-se, pois
de um verdadeiro “limite do limite” ou “restrição da restrição”), os quais são
exemplificativamente indicados em decretos do Presidente da República 42, os Estados-
membros, Distrito Federal e Municípios até podem se valer de suas respectivas
autonomias administrativas para resguardarem (liberarem, portanto) mais ou menos
serviços públicos e atividades essenciais, desde que fundamentados seus atos em critérios

41 Neste sentido, lembre-se do disposto no art. 30, da LINDB, com a redação dada pela Lei 13.655/2018, pelo
qual “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas,
inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”. Daí porque se impõe
concordar com Egon Bockmann Moreira e Paula Pessoa Pereira, para quem “por meio do art. 30, torna-se
patente o dever de incrementar a segurança jurídica por meio de atos regulamentares e não regulamentares,
formalizando a segurança e a estabilidade indispensáveis para o Estado de Direito. Demais disso, é celebrada
a Administração autovinculante – em verdadeira proibição do venire contra factum proprium – e se confere
legitimidade reforçada às suas decisões” (MOREIRA, Egon Bockmann; PEREIRA, Paula Pessoa. Art. 30 da LINDB
- O dever público de incrementar a segurança jurídica. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição
Especial - Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - LINDB (Lei nº 13.655/2018),
p. 243-274, nov. 2018, p. 270).
42 Aqui, pressuposto o fato de que os decretos presidenciais se valeram adequadamente dos critérios

científicos e estatísticos manejados pelos órgãos sanitários.

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científicos e estatísticos e desde que observadas suas respectivas realidades regionais e


locais.
Há de ser esclarecido que isso não significa que os Estados-membros e os
Municípios possam qualificar como essenciais quaisquer atividades. Além da necessidade
de que sejam observados os critérios científicos e estatísticos manejados pelos órgãos
sanitários (art. 3º, § 1º, da Lei 13.979/2020), há de ser observar, quanto ao ponto, uma
racionalidade sistêmica, também de índole material no sentido de que sejam resguardas
somente aquelas atividades que venham a conferir concreção ao disposto no já referido
art. 3º, § 1º, do Decreto 10.282/2020, pelo qual “são serviços públicos e atividades
essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da
comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a
sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. Evidentemente, eventual
qualificação, como essencial, de atividade que não se enquadra em tal noção de
“atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade” mostrar-se-á antijurídica e, por
conseguinte, sujeita a controle, inclusive judicial.
Por fim, um derradeiro ponto que já vêm surgindo com elevado grau de
complexidade no tocante à competência comum de todos os entes federativos: como
devem ser interpretados os casos em que há normas administrativas – sejam normas
gerais e abstratas emitidas no típico exercício do poder regulamentar do poder de polícia,
sejam normas com efeitos concretos e destinatários específicos – que impõem restrições
diversas sobre uma mesma atividade. Imagine-se, por exemplo, que um determinado
Estado-membro autorize atividade que é vedada pelo Município situado em sua
circunscrição territorial43. Tais conflitos, que evidentemente também repercutem no
ambiente político44, precisam ser solucionados do modo mais compatível com a
Constituição Federal, que até preceitua, no art. 23, parágrafo único, que “leis
complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar

43 Pode-se indicar, quanto ao ponto, um exemplo real: o Decreto Estadual 55.154, de 1º de abril de 2020, do
Estado do Rio Grande do Sul não cria vedação à construção civil (ainda eu proibido o atendimento ao público
que importe aglomeração ou grande fluxo de clientes), ao passo que o Decreto Municipal 20.534, de 31 de
março de 2020, do Município de Porto Alegre, proíbe a atividade de construção civil ressalvadas somente as
obras realizadas para fins de saúde, segurança e educação.
44 Quanto ao ponto, vide matéria jornalística que evidencia comportamentos bastante diversos do Presidente

da República e Governadores do Distrito Federal e dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/03/21/interna_politica,835720/pandemi
a-de-covid-19-agrava-a-crise-politica-entre-bolsonaro-e-governa.shtml

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em âmbito nacional”. Mas o que fazer se inexistente, em matéria de combate ao COVID-


19, lei complementar que fixe a desejável cooperação? Aliás, embora seja evidente a
conveniência de soluções tomadas num ambiente de cooperação, o que fazer se as
pessoas que capitaneiam as instituições não parecem ter vocação para uma atuação
articulada e cooperativa? Como se aplicar, em conflitos entre medidas de enfrentamento
ao COVID-19, a ideia da preponderância dos interesses 45, costumeiramente referido na
jurisprudência do STF?
Embora as particularidades de uma crise sanitária como esta, somada à rapidez
como que os fatos se sucedem nesta temática, inviabilizem a apresentação segura de
hipótese e, sobretudo, de conclusões sobre tal questão, seja no plano dogmático seja no
plano sociológico, apresenta-se, como proposta teórica, a utilização sucessiva dos
seguintes critérios decisórios: a) maior embasamento em base em evidências científicas
e em análises sobre as informações estratégicas em saúde (art. 3º, § 1º, da Lei
13.979/2020); b) maior compatibilidade das medidas impostas com as realidades
regionais ou locais; c) maior restrição em prol da proteção à saúde e da proteção da
coletividade (art. 1º, § 1º, da Lei 13.979/2020).
Assim, se houver um conflito entre restrições impostas por mais de um ente
federativo, predominará aquela que demonstrar, por meio da sua fundamentação, o
maior embasamento em evidências científicas e em análises sobre informações
estratégicas em matéria de saúde. Se tais restrições forem igualmente embasadas, ou – o
que é pior – igualmente não embasadas, ou, ainda, não fundamentadas, haverá de
predominar aquela restrição mais compatível com a realidade social sobre a qual incide,
priorizando-se as particularidades regionais e locais46. Mas se tais critérios forem ineptos
à solução do problema, sustenta-se a adoção da medida mais restritiva, porquanto tal é a
postura de prevenção e de precaução47 recomendável em casos como tais (lembre-se que
o art. 23, II, da CF, que reconhece competência comum de todos os entes federativos, o
faz mencionando que se trata de uma atribuição incumbida de “cuidar da saúde”).

45 V.g. ADI 5.521, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 09/05/2019.


46 O comércio não é igual em todos os Municípios, por exemplo, tampouco é a construção civil. Daí o critério
pelo qual se leva em conta a realidade da comunidade sobre a qual a restrição incide.
47 Sobre a aplicação dos princípios da prevenção e da precaução ao Direito Administrativo, vide: FREITAS,

Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública. 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

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Todas estas decisões administrativas e os seus respectivos fundamentos


sujeitam-se a todo o conjunto de mecanismos de controle, inclusive judicial, que recai
sobre a função estatal de administração pública.
De qualquer modo, ainda que diante do predomínio de uma restrição
determinada por um dos entes federativos, não estará subtraída dos demais entes
federativos, a autonomia administrativa ou a competência material concorrente prevista
no art. 23, II, da CF, uma vez que a eles se preservará ainda o modo de executar o
resguardo do exercício e do funcionamento da atividade essencial. Um exemplo poderá
ilustrar o que aqui está sendo referido: o comércio de alimentos está resguardado pelo
art. 3º, § 1º, XII, do Decreto 10.282/2020, de modo que determinado Município não
poderia restringir tal atividade em sua circunscrição territorial, mas poderia, em razão das
suas competências administrativas, determinar que os supermercados reservassem
determinado horário para o acesso privativo de pessoas integrantes dos grupos de risco.
Desta forma, a título de conclusão deste tópico, propõe-se o seguinte: a) o art.
23, II, da Constituição Federal reconhece a competência administrativa (ou material)
concorrentes a todos os entes federativos para o cuidado da saúde; b) o exercício se tais
competências concorrentes haverá de observar as normas gerais contidas na Lei
13.979/2020; c) o art. 3º, § 7º, da Lei 13.979/2020 estabelece que, em todos os casos, as
medidas administrativas de enfrentamento ao COVID-19 podem ser impostas pelo
Ministério da Saúde, em outros por gestores locais de saúde desde que autorizados pelo
Ministério da Saúde e, por fim, há casos em que algumas medidas podem ser levadas a
efeito por gestores locais de saúde independentemente de autorização; d) quanto à
requisição administrativa, prevista no art. 3º, VII, da Lei 13.979/2020, deve-se atentar
para que o emprego de tal instrumento não cause desabastecimento de bens e serviços
imprescindíveis ao combate ao coronavírus, seja pela atual desarticulação dos entes
federativos na sua imposição, seja pelo demasiado atraso no pagamento das ulteriores
indenizações, o que importará descapitalização de um dos setores econômicos mais
relevantes para a superação de tal crise; e) quanto à quarentena, medida mais
abrangentes de enfrentamento do COVID-19, ainda que necessária a adoção de tal
medida, devem ser resguardados o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e
das atividades essenciais; f) as autoridades administrativas não poderão se desgarrar dos
dados científicos e estatísticos manejados pelos órgãos sanitários, fundamentalmente o
Ministério da Saúde, quando da qualificação ou desqualificação de serviços públicos e

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atividades essenciais, a terem seu exercício e funcionamento resguardados (mantidos),


sob pena de violação ao art. 3º, § 1º, da Lei 13.979/2020; g) da sistemática normativa que
se extrai do art. 3º, § 8º e 9º, da Lei 13.979/2020 e dos decretos presidenciais já editados,
tem-se que as atividades neles exemplificativamente referidas não podem ser ampliadas
ou restringidas por Estados-membros, Distrito Federal ou Municípios, os quais igualmente
devem ser fundamentados em critérios científicos; g) havendo divergência entre medidas
de quarentena impostas por diferentes entes federativos, devem predominar aquelas que
tenham a maior fundamentação científica; se forem igualmente fundamentadas (ou mal
fundamentadas) quanto aos aspectos científicos, devem predominar aquelas mais
compatíveis com as respectivas realidades locais; não sendo possível aferir quais as mais
compatíveis com as respectivas realidades locais, devem predominar aquelas medidas
mais restritivas, em nome da precaução e prevenção recomendáveis neste momento.

4. Considerações finais

O Mundo passa por uma grave crise, causada pela pandemia do COVID-19. Ainda não é
possível compreender os impactos que tal surto ocasionará, embora já se possa cogitar
de que as soluções aos inúmeros problemas advindos da pandemia dependerão de
intepretações jurídicas que revisitarão inclusive institutos já aparentemente
sedimentados.
Neste artigo, tratou-se da questão que diz com a distribuição constitucional de
competências legislativas e administrativas (ou materiais).
Buscou-se demonstrar que a competência da União para editar normas gerais
em matéria de saúde (art. 24, XII, CF) deve ser devidamente articulada com a competência
administrativa comum de todos os entes federados (art. 23, II, da CF). No exercício das
competências administrativas, os entes federativos devem primar por uma atuação
cooperada, mas havendo divergências entre as medidas empregadas, sobretudo as
medidas de quarentena, devem predominar aquelas que estiverem mais bem
fundamentadas em critérios científicos, atendando-se para as respectivas realidades
regionais ou locais sobre as quais incidem, minimizando, pois, interferências pessoais e
ideológicas.
Porto Alegre, RS, 02 de abril de 2020 (em quarentena).

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19/03/2020.

Sober o autor

Rafael Maffini
Doutor e Mestre em Direito pela UFRGS, Professor Adjunto na UFRGS, Porto Alegre,
RS, Brasil. Advogado. E-mail: rafael.maffini@rmmgadvogados.com.br

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

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Teoria da Reprodução Social: apontamentos para uma


perspectiva unitária das relações sociais capitalistas
Social Reproduction Theory: notes for a Unitary Theory of capitalist social relations

Rhaysa Ruas¹
¹ Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
rhaysaruas@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1726-4363.

Artigo recebido em 22/10/2019 e aceito em 09/03/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Resumo
O presente artigo visa discutir os traços distintivos da Teoria da Reprodução Social (TRS).
Argumento que, ao resgatar a noção marxiana de totalidade social, a TRS avança em
relação à formulações anteriores da perspectiva unitária no sentido de desenvolver uma
compreensão da dinâmica que envolve a produção capitalista e a reprodução da vida
cotidiana da classe trabalhadora, i.e., as relações de opressão, exploração, expropriação
e alienação nas sociedades contemporâneas. Trata-se de importante e distinta chave de
análise das interações entre classe, raça, gênero e sexualidade no capitalismo.
Palavras-chave: Teoria da Reprodução Social; Gênero; Raça; Totalidade Social.

Abstract
This paper aims to discuss the distinctive aspects of Social Reproduction Theory (SRT). I
argue that by recovering Marx’s notion of social totality, SRT moves forward from
previous formulations from the unitary perspective in order to develop a understanding
of the dynamics surrounding capitalist production and the reproduction of the daily life
of the working class, i.e., the relations of oppression, exploitation, expropriation and
alienation in contemporary societies. This could be an important interpretative key for
the comprehension of class, race, gender and sexuality interactions in capitalism.
Keywords: Social Reproduction Theory; Gender; Race; Social Totality.

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Introdução

A Teoria da Reprodução Social (TRS) é fruto de um acúmulo histórico de debates que, tão
antigos quanto o próprio capitalismo, foram retomados no interior de movimentos
feministas-socialistas1 e antirracistas após as lutas por emancipação e reconhecimento
das décadas de 1950 e 1960 nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa ocidental.
Em um primeiro momento2, a nascente perspectiva da reprodução social buscou
desenvolver um problema antigo colocado diante da teoria marxista do valor-trabalho:
incluir uma compreensão sobre as formas não-remuneradas de trabalho e responder qual
seria a base material da opressão das mulheres no capitalismo (VOGEL, 2013 [1983]).
Entretanto, tal perspectiva se diferenciava de outras elaborações teóricas que,
contemporâneas a ela, buscaram explicar a opressão de gênero no capitalismo. Isto
porque ao invés de partir de uma concepção dualista sobre a realidade social (i.e.,
considerar a persistência de um sistema patriarcal pré-capitalista independente e
transhistórico que em uma determinada fase de seu desenvolvimento se combinaria com
o sistema capitalista), suas raízes podem ser encontradas na busca por uma explicação
unitária e sistêmica para este fenômeno (YOUNG, 1981; VOGEL, 2013 [1983]).

1 Diante das dificuldades em desenhar uma linha divisória clara entre o feminismo-socialista e o feminismo-
marxista, neste trabalho, sigo a proposta de Ferguson e McNally (2017 [2013], p. 27), e me refiro ao
feminismo-marxista para designar a tradição que se identifica, do ponto de vista teórico, explicitamente com
o materialismo histórico dialético e com a crítica da economia política. O feminismo-socialista designa,
portanto, um campo mais amplo e diverso. Neste sentido, ver também Vogel (2013 [1983], p. 183).
2 Este primeiro momento pode ser identificado ainda no final do século XIX, através do ativismo e teorização

de mulheres socialistas. O debate central levantado por elas sobre o trabalho doméstico e o caráter da
opressão feminina – foi retomado, décadas mais tarde no bojo do Debate sobre o Trabalho Doméstico,
iniciado em 1969 com a publicação do artigo The Political Economy of Women’s Liberation [A economia
política da libertação das mulheres] de Margaret Benston nos EUA. Este debate tomou a forma de uma série
de artigos divulgados e discutidos por intelectuais feministas-socialistas, em um esforço internacional que,
embora concentrado no Norte Global, procurou levar as experiências das mulheres – até então
epistemologicamente marginalizadas – ao coração da teoria marxista sobre o capitalismo (MORTON, 1970;
DALLA COSTA; JAMES, 1971, SECCOMBE, 1974). Inconcluso, este debate se ocupou de duas questões centrais:
1. se o trabalho doméstico produzia valor ou mais-valia (e, portanto, se era produtivo ou improdutivo); e 2.
se trabalho doméstico constituía um modo de produção em si mesmo, distinto ou análogo ao modo de
produção capitalista. Vogel (2013 [1983]) considera a primeira questão já superada pelas feministas-marxistas
que a precederam, tais como Benston (1969) e Young (1981): o trabalho doméstico produz apenas valor de
uso, não valor de troca e, portanto, não produz diretamente mais-valia. Essa é a principal diferença entre a
perspectiva da reprodução social tal como defendida pela TRS e a de Silvia Federici. No que tange à segunda
questão, grande parte das autoras envolvidas no debate concluíram que “possivelmente”, o trabalho
doméstico seria um modo de produção próprio, que opera de acordo com uma lógica distinta, pré- ou não-
capitalista (VOGEL, 2013 [1983], p. 28-29). Para Vogel, entretanto, esta conclusão indica que nenhuma autora
do debate sobre o trabalho doméstico foi capaz de superar completamente a perspectiva dualista, deixando
o caráter dessa relação inexplicado (VOGEL, 2013 [1983], p. 134-135).

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A perspectiva dualista, também conhecida como “teoria dos sistemas duplos”,


até hoje predominante nos estudos feministas e marxistas, rapidamente se mostrou
problemática para as autoras que defendiam uma concepção unitária. De acordo com sua
lógica implícita, dois motores impulsionariam o desenvolvimento da história: a luta de
classes, a ser revelada a partir da análise do capitalismo, e a luta entre os sexos, a ser
revelada através de uma investigação sobre o patriarcado (VOGEL, 2013 [1983]), p. 135).
Do ponto de vista lógico e histórico, tal perspectiva, que também pode ser encontrada na
formulação de Engels (2012 [1884]) sobre a Questão da Mulher, era incapaz de fornecer
uma explicação consistente das dinâmicas existentes entre a exploração capitalista e a
opressão de gênero, reproduzindo, ironicamente, a posição que tentava evitar: a ideia de
que o modo de produção capitalista – a “lógica do valor” – poderia se reproduzir
independentemente das relações de opressão e vice-versa. Ou seja, recorrentemente,
reforçava uma concepção teórica que separava a esfera da economia das esferas cultural,
política e social: o capitalismo corresponderia à primeira, enquanto o patriarcado às
últimas. Sua principal consequência prática foi levar o feminismo e o marxismo a uma
disputa que incluía a hierarquização entre as relações de classe e de gênero, de
exploração e de opressão. Esta ideia ora se manifestava entre aquelas autoras que viam
a classe acima do gênero, ora entre aquelas que viam o gênero acima da classe, ou ainda,
o gênero como classe (ARRUZZA, 2019 [2010]; RUAS, 2019, p.30-35; 49-52).
Por outro lado, uma perspectiva unitária se lança à compreensão do sistema
capitalista como complexo de relações sociais de exploração, opressão, dominação e
alienação, que se relacionam de forma integrativa, ontológica. Subordinadas à “lógica do
valor”, tais relações constituem este sistema na mesma medida em que constituem esta
própria “lógica”. Uma teoria feminista-marxista unitária pressupõe, portanto, desde sua
gênese, a tentativa de aproximação da totalidade social no sentido marxiano. Ela clama
por uma perspectiva que supere as dicotomias entre produção e reprodução social,
natureza e cultura, e em última instância, base econômica e superestrutura política.
A viabilidade de construção de uma teoria unitária das relações sociais sob o
capitalismo foi intensamente debatida por intelectuais marxistas antirracistas,
anticolonialistas e feministas no século XX. Os movimentos culturais no Norte Global, a
luta anti-imperialista na América Latina e os processos de descolonização da África e da
Ásia evidenciaram a importância de uma elaboração teórica unitária: uma vez que a
forma como um problema é enquadrado, colocado e pensado determina sua solução,

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uma teoria unitária seria fundamental para estabelecer uma alternativa viável à
totalidade das relações sociais de desigualdade que compõem o mundo em que vivemos.
Entretanto, historicamente, este projeto foi mais bem postulado do que de fato realizado.
Em diversas elaborações feministas-marxistas, atingia-se apenas uma visão parcial da
realidade e recorrentemente a análise das relações raciais ficava de fora, sintoma
decorrente da universalização da categoria “mulher” à luz da experiência das mulheres
brancas nos Estados de Bem-Estar Social europeus e norte-americanos. Estes projetos
negligenciavam a totalidade das relações de gênero, sexualidade, raça e classe, ora
hierarquizando-as, ora invisibilizando algumas dessas dimensões, recaindo nas mesmas
análises dualistas que eram objeto de sua crítica.
A construção de uma teoria unitária das relações sociais no capitalismo,
portanto, continua em aberto. Forjada por formulações contemporâneas que buscaram
superar as limitações históricas da construção desta perspectiva, a TRS se reaproximou
da noção marxiana de totalidade social, recuperando-a explicitamente em contribuições
mais recentes como, por exemplo, as obras de Bhattacharya (2017b) e McNally (2017).
Este artigo busca apresentar os principais traços distintivos da TRS, que surge como
reação prático-teórica às três décadas de acumulação neoliberal e traduz uma importante
possibilidade de renovação da teoria marxista no século XXI. Para tanto, no primeiro item
faço uma reconstrução da noção marxiana de totalidade social, que deve servir de chave
para a compreensão da proposta unitária tal como apreendida hoje pela TRS. Em seguida,
passo à uma breve exposição da obra de Vogel (2013 [1983]), primeira sistematização da
teoria unitária a reconceitualizar a crítica marxiana do capital a partir da perspectiva da
reprodução social e ponto de partida da TRS. Meu argumento central é que embora Vogel
esboce preocupação com a noção de totalidade ao localizar a dinâmica político-
econômica da relação entre produção de mercadorias e reprodução da vida, e nesse
sentido, avance em relação às perspectivas que lhe eram contemporâneas, sua
interpretação reflete os desafios de se elaborar uma teoria unitária, o que se evidencia,
dentre outras coisas, por sua teorização cega à raça. No terceiro item, reconstruo
brevemente o cenário de crise do marxismo que dominou o debate acadêmico na década
de 1980, coincidindo com a publicação de Vogel e contribuindo para que esta
permanecesse no ostracismo, para, em seguida, contextualizar o surgimento da TRS. Por
fim, demonstro de que formas a TRS tem resgatado a noção marxiana de totalidade social
para recentralizar classe nos debates sobre as relações de opressão que constituem o

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2020, p.379-415.
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mundo em que vivemos. Faço isso através da apresentação do que considero suas
principais contribuições para este debate hoje.

Resgatando o pensamento de Marx enquanto teoria da totalidade social

Nos Grundrisse, Marx (2011 [1857-1858]) define de forma explícita a categoria de


totalidade social e articula as noções de aparência (identidade) e essência (diferença)3 ao
enfrentar a questão de qual seria a relação do modo de produção capitalista com o
movimento histórico geral. A categoria de totalidade social aponta a complexidade da
realidade material e dos processos de apreensão desta realidade através do
conhecimento científico.
Uma das afirmações mais famosas de Marx acerca da totalidade social é: “O
concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da
diversidade” (MARX, 2011 [1857-1858], p.54). Esta afirmação sintetiza um dos aspectos
centrais de sua filosofia e resume o sentido do materialismo histórico dialético que
pretendo aqui resgatar: a unidade da diversidade; uma compreensão segundo a qual o
real é entendido como síntese de múltiplas determinações concretas que são específicas,
singulares, particulares e distintas – apenas na mesma medida em que formam um todo
contraditório, um universal. Neste complexo de relações sociais concretas, cada categoria
ganha sentido sistemático apenas por meio de seu posicionamento com respeito às
outras categorias e ao todo. Assim, a noção marxiana de totalidade social nos permite
afirmar a distinção de cada relação social específica que constitui o capitalismo sem
suprimir a sua unidade e determinação, e nem subordinar, homogeneizar ou diluir o
particular no universal.
Ao analisar a produção material, i.e., a produção socialmente determinada dos
indivíduos, Marx (2011 [1857-1858], p. 39-40) evidencia que a concepção dos
economistas e liberais clássicos – de que haveria um impulso natural que condicionasse o
comportamento dos indivíduos isolados em uma espécie de “contrato social” garantidor
da igualdade e da liberdade e viabilizador da troca de equivalentes entre proprietários

3Aqui, enquanto o termo “identidade” refere-se à equivalência formal entre trabalhadores e capitalistas no
momento da troca de mercadorias, o termo “diferença” refere-se estritamente à desigualdade material
resultante do processo contínuo de separação dos produtores dos meios de produção e subsistência (meios
de existência).

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dos meios de produção e de força de trabalho – é apenas uma visão parcial e idealizada
da realidade, uma aparência da sociedade burguesa. Tal relação social aparece, para estes
autores, como ponto de partida natural da história. A partir do ponto de vista daqueles
que são constantemente expropriados e explorados pelo capital, Marx propõe uma
investigação histórico-dialética que é capaz de demonstrar como o indivíduo produtor,
em verdade, é membro de um todo social maior, que o coloca em uma relação desigual
com aquele que compra sua força de trabalho. Assim, Marx se contrapõe à perspectiva
sustentada pelos liberais, e afirma que por trás dessa igualdade aparente há também
desigualdade, diferença, não-identidade. Do ponto de vista dos expropriados, essa
sociedade é, na verdade, o seu oposto. A troca de equivalentes é também uma relação
extremamente desigual e violenta: a acumulação de capital é um processo histórico de
pilhagem, de roubo, e colonização.
Marx (ibidem, p. 41) demonstra esse duplo caráter da sociedade capitalista
através da análise da produção e da relação geral existente entre esta e as esferas da
distribuição, circulação e consumo nessas sociedades. Ele destaca que, embora toda a
produção seja específica de um determinado momento social, todas as épocas históricas
da produção têm certas características em comum, determinações em comum, que
decorrem do fato de que o sujeito e o objeto da investigação são os mesmos: a
humanidade e a natureza. A produção em geral, então, seria uma abstração razoável, na
medida em que destaca e fixa este elemento comum, um universal. Este universal, por
sua vez, quando isolado por comparação histórica, “é ele próprio algo multiplamente
articulado, cindido em diferentes determinações” (ibidem, p. 41). Ele contém também
uma diferença, e é precisamente esta diferença o que constitui seu desenvolvimento e
não pode ser esquecida.
Isto porque o foco nas determinações comuns e o esquecimento da diferença
implicariam, necessariamente, em uma perspectiva deturpada da realidade social. Como
exemplo, o autor demonstra que nenhuma produção é possível sem um instrumento de
produção, e que este instrumento é ele mesmo trabalho passado, acumulado (ainda que
o instrumento seja a mão de quem produz, o trabalho passado seria a habilidade
concentrada nesta mão para produzir). A produção, portanto, é sempre um ramo
particular da produção geral, isto é, um momento da totalidade. Enquanto momento, ela
é em si também uma totalidade na medida em que ela “é sempre um certo corpo social,
um sujeito social em atividade em uma totalidade maior ou menor de ramos de produção”

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(ibidem, p. 41). Toda a produção é a apropriação da natureza pelos indivíduos no interior


de e mediada por uma determinada forma de sociedade (ibidem, p.43).
Ao analisar a relação geral existente entre produção, distribuição, troca e
consumo, Marx avança no sentido de ressaltar que uma compreensão segundo a qual a
produção é a universalidade, a distribuição e a troca são a particularidade e o consumo a
singularidade na qual o todo se unifica é apenas uma compreensão superficial desta
relação (ibidem, p. 44). Na realidade, cada uma destas particularidades (ou diferenças,
como destacado acima) é imediatamente a outra: a produção é imediatamente, em todos
os seus momentos, um ato de consumo, uma vez que o indivíduo que desenvolve suas
capacidades de produzir, ao fazê-lo, se desgasta, consome sua própria energia, meios de
produção, matérias-primas, etc. Cada momento, cada particularidade, possui em sua
forma imediata o seu contrário. Marx chama atenção aqui, entretanto, para esta
identidade entre produção e consumo: ela é também aparente – uma é imediatamente a
outra somente na mesma medida em que uma é imediatamente o oposto da outra. O
autor demonstra que assim como estes dois momentos (produção e consumo) produzem-
se mutuamente, tal produção é também mediada por ambos, e neste movimento uma
produz a finalidade da outra (ibidem, p. 46-47).4 Entretanto, nem por isso esses momentos
tornam-se a mesma coisa. Pelo contrário, eles conservam suas particularidades. São,
neste movimento, – ainda enquanto unidade – opostos. Há uma não-identidade (FAUSTO,
1987, p. 293) entre eles que se conserva, mesmo que ambos se constituam mutuamente.
Isso significa que o entendimento do sentido da totalidade social depende não
só da articulação entre diferenças que compõem uma unidade complexa e dinâmica. Em
Marx essa totalidade é acima de tudo contraditória: o capitalismo tem a especial
particularidade de compor um tecido social que é e não é ao mesmo tempo (FAUSTO,
1987, p. 86-87; 128; 298). A igualdade e liberdade estão postas, mas coexistem com a
desigualdade, o arbítrio e a opressão. Por isso mesmo – e isso é fundamental – o

4 Marx exemplifica essa questão de forma bastante didática: “A produção medeia o consumo, cujo material
cria, consumo sem o qual faltaria-lhe o objeto. Mas o consumo também medeia a produção ao criar para os
produtos o sujeito para o qual são produtos. Somente no consumo o produto recebe o seu último
acabamento. Uma estrada de ferro não trafegada, que, portanto, não é usada, consumida, é uma estrada de
ferro apenas potencialmente, não efetivamente. Sem produção, nenhum consumo; mas, também, sem
consumo, nenhuma produção, pois nesse caso a produção seria inútil. (...) O consumo cria o estímulo da
produção; cria também o objeto que funciona na produção como determinante da finalidade. Se é claro que
a produção oferece exteriormente o objeto do consumo, é igualmente claro que o consumo põe idealmente
o objeto da produção como imagem interior, como necessidade, como impulso e como finalidade. (ibidem,
p. 46-47; grifos meus; itálico do autor)

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capitalismo necessita desenvolver suas contradições, algo que Marx capta com a noção
de formas sociais necessárias à reprodução social do capital. Consequentemente, é a
figura da mediação social a responsável por amalgamar as diferenças sociais, criando com
isso uma unidade social indispensável à construção da (instável) ordem social moderna.
Ora, se Marx está bastante consciente de que aquilo que é também traz em si
sua negação, é necessária uma forma particular de compreender essa realidade. Mais
importante ainda, é indispensável uma ferramenta que permita expor as contradições
constituintes do capitalismo. Mas como apresentar um objeto contraditório? Como
demonstrar aquilo que o ser é, mas também aquilo que ele não é?
A resposta às questões acima passa necessariamente pela compreensão do
método dialético, exposto por Marx nos Grundrisse, enquanto método de investigação.
Ele é fundamental para compreender o método de exposição nos livros que compõem O
Capital. Se o primeiro livro de O Capital aparece como “o processo de produção do
capital”, o segundo como “o processo de circulação do capital” e o terceiro como “as
formações do processo como um todo”, isso não deveria levar à interpretação de que há
uma separação analítica entre produção, circulação e distribuição. Não se pode perder de
vista que aquilo que amalgama esses componentes – e isso é fundamental em um
trabalho atento à exposição dialética categorial do sistema conceitual marxiano – é o
movimento contraditório do capital. É ele que é produzido, circulado e distribuído e que,
por isso mesmo, está presente em todos os livros em um movimento dialético5.
Por isso mesmo, a categoria da totalidade social – em sua representação
conceitual tal qual elaborada por Marx – é fruto de um movimento dialético. Se o objeto
analisado é contraditório, então é indispensável apresentar sua contraditoriedade. Por

5 É neste sentido que se constitui o itinerário de investigação de O Capital: Marx recompõe o capital, a partir
de seu movimento real, como totalidade, isto é, como a unidade complexa (livro III) entre seu processo de
produção (livro I) e de sua circulação (livro II). O método de exposição de cada momento se inicia nas suas
formas mais abstratas e gerais e se dirige em direção à suas determinações mais concretas e aparentes. Por
exemplo, no livro I, o autor parte da mercadoria enquanto forma aparente mais geral e abstrata (mais
facilmente apreensível na realidade imediata) para chegar à realidade mais profunda – e, portanto, não-
aparente – da relação social que a compõe: a expropriação dos trabalhadores (separação de seus meios de
produção da vida) e sua exploração no processo de produção capitalista (GONÇALVES, 2018, p. 101-104).
Marx demonstra, assim, que a mercadoria não é apenas o produto que se vê e que satisfaz uma necessidade
humana imediata; ela contém em si esta relação social de exploração e expropriação, trabalho humano vivo
passado, cristalizado. Ao mesmo tempo, se observarmos o livro I em relação ao livro III, no primeiro, o capital
aparece em sua forma abstrata, genérica, enquanto no segundo, ele aparece como a relação contraditória
entre os diversos capitais individuais, ou seja, em sua forma mais complexa. Entretanto, não podemos perder
de vista que o conceito de capital – que só se põe de forma completa no Livro III, quando o “capital em geral”
é situado na “pluralidade dos capitais” – está essencialmente formulado já no Livro I. Neste último, embora
não esteja posto, o capital está pressuposto; a sua gênese já está compreendida: a valorização do valor
mediante a extração da mais-valia (exploração), o que pressupõe a expropriação contínua das massas.

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isso o significado das categorias iniciais possui o que Fausto denomina “zonas de sombra”
(FAUSTO, 1983, p. 35). Ou seja, não é possível obter um esclarecimento conceitual total
logo no início de uma exposição dialética categorial. Se se compreende a obscuridade
inicial como “intenções não preenchidas”, então a tentativa de preenchê-las “não ilumina
as significações, mas as destrói” (FAUSTO, 1987, p. 149). Dessa perspectiva, é possível
afirmar que cada categoria ganha sentido sistemático apenas por meio de seu
posicionamento com respeito às outras categorias e ao todo.
Consequentemente, a chave do argumento marxiano está em considerar o
avanço das categorias como um impulso derivado de suas próprias insuficiências para
reconstruir a totalidade social. A crítica da economia política é uma exposição dialética
das categorias que desconstroem não só a escola clássica, mas a ciência que a embasava.
Essas categorias possuem uma estruturação lógica interna que se desdobra para
reconstruir a totalidade de objeto contraditório e, simultaneamente, desvelar
gradativamente sua aparência mistificadora, o reino da liberdade e igualdade da
sociedade burguesa. Daí a fundamental ideia de que a crítica de Marx se constitui
enquanto crítica social imanente. O arsenal teórico de Marx não avança pela sequência
de modelos cada vez mais complexos, mas por uma reconstrução progressiva – a
exposição dialética categorial – das formas do mesmo objeto contraditório cuja exposição
denuncia a exploração essencial que subjaz à sua aparência (FAUSTO, 1987, p. 293-294).
Essa reconstrução progressiva das formas está relacionada à particularidade que
reveste a totalidade social capitalista, em que capital e trabalho se encontram em uma
situação assimétrica. Ou seja, na contradição entre capital e trabalho, o trabalho está
subordinado ao capital, que, como um vampiro, “vive apenas da sucção de trabalho vivo,
e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga” (MARX, 2013, p. 307). Na sociedade
capitalista, os meios de produção (capital constante, i.e., trabalho morto/trabalho vivo
passado cristalizado) são a encarnação do capital que, assim, permitem que ele se
apresente ao mesmo tempo como parte e totalidade de seu processo de valorização.
Isso significa que embora o trabalho esteja subordinado ao capital, inserido em
seu processo de valorização, ao mesmo tempo o capital não consegue por ele mesmo se
pôr enquanto totalidade, já que sua substância não provém dele. Daí ser possível dizer
que “essa assimetria na relação entre capital e trabalho assalariado é a forma assumida
pela contradição na dialética materialista” (GRESPAN, 2002, p. 41). Por isso mesmo, na
crítica marxiana à economia política é impossível compreender o processo de acumulação

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do capital como algo equilibrado. O capital tem sempre um “impulso cego e desmedido”
(MARX, 2013, p. 337), pois sempre será inadequado à “substância”, já que ela consiste
não nele mesmo, mas em “seu outro” (GRESPAN, 2002, p. 43). Consequentemente, a
contradição tal como posicionada por Marx jamais pode se resolver num fundamento
positivo, precisamente porque a “inadequação crônica” entre forma (capital) e conteúdo
(trabalho) repousa na “inversão da posição lógica da identidade e da diferença”
(GRESPAN, 2002, p. 44).
Por isso mesmo, em Marx a totalidade social jamais pode ser vista como um
resultado da soma das suas diferentes partes. Ela necessariamente é um processo de
apreensão dialética da realidade aparente sensível como concreto no pensamento, isto
é, um processo de entendimento e questionamento da dimensão de sentido que aparece
para nós. Deste modo, a abordagem teórica marxiana é um movimento que, na tentativa
de uma maior apreensão da totalidade, parte das determinações mais simples, gerais,
abstratas para recompor, no pensamento, o real como materialidade complexa, concreta,
“não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas
determinações e relações” (MARX, 2011 [1857-1858], p.54). Assim sendo, a totalidade
não é o real-imediato, mas a sua unidade como concreto concebido pelo pensamento e,
por isso, vivo e determinado. Não é apenas o que está exposto, mas também o que está
pressuposto nas relações sociais (FAUSTO, 1987).
Por todo o exposto, Marx demonstra que agir sobre o nosso mundo com base
em um conhecimento empírico ou factual da realidade, ou seja, apenas com base em
nossa percepção imediata, envolve necessariamente um erro. Entretanto, como vimos, a
realidade não fica à disposição, esperando ser descoberta. Sua revelação depende de
investigação científica. No mesmo sentido, não é todo o tipo de investigação científica
que nos leva à sua revelação; ao contrário, é necessário uma investigação dialética cujo
ponto de vista específico para que esta possa ser revelada é o ponto de vista do
proletariado6, o sujeito histórico capaz de dirimir, através de sua organização política, a
contradição existente entre capital e trabalho.

6 Aqui, não considero o proletariado no sentido vulgarmente apropriado por parte da tradição marxista,
segundo o qual este se restringiria à uma classe trabalhadora urbana e assalariada. Ao contrário, para uma
concepção expandida desta categoria, considero os escritos tardios de Marx e as contribuições
contemporâneas da teoria da reprodução social (BHATTACHARYA, 2017), como será exposto mais adiante.

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A perspectiva da Reprodução Social segundo Lise Vogel: uma teoria unitária

Embora não tenha sido a primeira tentativa feminista-marxista de elaborar uma teoria
unitária sobre a opressão das mulheres no capitalismo, o livro Marxism and the
Oppression of Women: Toward a Unitary Theory7, de Lise Vogel, publicado em 1983 nos
EUA, foi o primeiro a tentar fazê-lo no mesmo nível de abstração de O Capital e se
propondo a reconsiderar suas principais categorias lógicas. Ao partir de uma perspectiva
que privilegiava a análise das dinâmicas sócio-históricas da produção da força de trabalho,
esta seria uma fonte central para a elaboração da Teoria da Reprodução Social cerca de
trinta anos mais tarde.
No início da década de 1980 – mesmo após a ebulição de lutas sociais
protagonizadas pelos povos subalternizados no Sul Global e do exaustivo debate
feminista-socialista que compusera os movimentos de libertação das mulheres até ali – o
campo marxista permanecia, em sua maior parte, hostil à ideia de revisão teórica. Até
uma teoria como a da dependência, que vivenciou seu auge nos anos 1960/70 e buscava
uma ampliação da definição ortodoxa de trabalho e capitalismo, pouco influenciava o
núcleo duro dos debates marxistas sobre o valor.
Ao contrário, a dinâmica da acumulação capitalista era frequentemente
reduzida à exploração do trabalho assalariado, o que restringia a noção marxiana de
totalidade social. As relações “de classe” eram compreendidas como aquelas que se
desenvolviam no espaço exclusivo da produção, i.e., no local de trabalho. Da categoria
“classe” eram abstraídos os componentes de raça, gênero e sexualidade, de modo que
prevalecia a indiferença de parte considerável do campo marxista quanto às
especificidades locais e configurações sociais no interior da classe trabalhadora. A
categoria proletariado, portadora da subjetividade revolucionária, era ligada, de forma
idealista, ao típico trabalhador formal do Estado de Bem-Estar Social europeu: homem,
branco e provedor. Prevalecia, ainda, uma concepção funcionalista e determinista, que
tendia a ver as relações sociais como uma superestrutura determinada pela base
econômica, em uma relação de causa e consequência na qual cada uma teria seu papel
específico para o funcionamento do modo de produção capitalista.8

7Marxismo e a Opressão das Mulheres: Por uma Teoria Unitária, ainda não traduzido no Brasil.
8A metáfora da “base” (ou infraestrutura) e “superestrutura”, popularizada pelo Prefácio à Contribuição à
Crítica da Economia Política, aparece raras vezes na obra de Marx. Ela guarda a ideia de que a realidade social
é composta por diferentes “esferas”: uma base, a economia, e uma superestrutura, que reuniria política,

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Neste contexto, na busca pela base material da condição de opressão das


mulheres sob o capitalismo, Vogel (2013 [1983]) desafiou a tradição marxista hegemônica
ao propor o retorno à teoria marxiana sobre as relações de produção em O Capital. A
autora estabeleceu como premissa de sua investigação a produção diária e geracional da
força de trabalho, categoria essencial para a teoria do valor. Vogel (2013 [1983])
questionou como essa mercadoria especial – responsável pela produção de mais-valia e
de todas as outras mercadorias – seria produzida e reproduzida em uma sociedade
capitalista. A pergunta conduziu a autora à uma análise mais profunda da relação lógica e
sistêmica existente entre produção capitalista e os processos cotidianos de produção da
vida, realizados, em sua maioria, através de trabalho feminino – remunerado ou não – no
âmbito doméstico e na esfera do cuidado (trabalho reprodutivo). A esta análise, caberia
explicar a permanência do caráter desvalorizado deste trabalho, que engloba as
estratégias de sobrevivência individuais e coletivas da classe trabalhadora, bem como
uma série de tarefas socialmente naturalizadas, geralmente privatizadas no lar e não-
remuneradas, como a gestação, parto, lactação, cuidado das crianças, adultos, doentes e
idosos, limpeza e nutrição.
Uma das conclusões de Vogel é que o trabalho reprodutivo se constitui
historicamente como condição necessária para o funcionamento do modo de produção
capitalista (VOGEL, 2013 [1983], passim). Ao desenvolver sua argumentação, a autora
localiza, no interior da categoria marxiana “trabalho necessário” 9, uma dupla dimensão,
específica das sociedades capitalistas: sua divisão em dois componentes, o social e o
doméstico. O componente social do trabalho necessário estaria, como Marx conceituou,
indissoluvelmente ligado ao trabalho excedente no processo de produção capitalista (um

direito, cultura, ideologia, etc. Estas duas esferas manteriam uma relação externa entre si e a esfera
econômica determinaria a superestrutura. Como aponta Wood (2011 [1995], p. 51-72), nesta concepção, a
esfera econômica seria praticamente sinônimo de “forças técnicas de produção”, i.e., compreenderia o
processo e as relações de produção e estaria separada da política e da cultura. Esta noção se tornou
hegemônica durante décadas no marxismo ocidental, sobretudo através da obra de Louis Althusser. Porém,
diversos autores como E.P. Thompson (1987) se dedicaram a demonstrar que esta constituía uma metáfora
equivocada da realidade social.
9 Embora em um primeiro momento localize o trabalho doméstico no interior da categoria “trabalho

necessário", posteriormente Vogel (2013 [2000], p. 192-193) admite que talvez essa não seja a melhor forma
de conceituar a questão, deixando claro, por outro lado, que isto não altera o cerne de sua argumentação.
Para ela, o trabalho doméstico não produz valor, embora desempenhe um papel fundamental no processo
de apropriação de mais-valor. O trabalho doméstico é, assim, socialmente necessário para o capital. Ela afirma
que “aprisionados na realização do trabalho necessário, o trabalho social e seu novo companheiro, o trabalho
doméstico, formam um casal estranho nunca antes encontrado na teoria marxista” (VOGEL, ibid., p. 193). Esta
passagem é considerada por alguns autores (FERGUSON; MCNALLY, 2017 [2013], p. 46-47) como uma
importante autocrítica de Vogel, embora a autora nunca tenha apresentado outra formulação conceitual da
questão.

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define o outro); já o componente doméstico do trabalho necessário – ou trabalho


doméstico10 – seria a porção que é realizada fora da esfera da produção capitalista,
ignorada por Marx em O Capital. Ambos os componentes seriam indispensáveis para a
produção diária tanto da força de trabalho, quanto das mercadorias (VOGEL, 2013 [1983],
p. 157). Se, por um lado, a relação de apropriação do trabalho excedente (componente
social do trabalho necessário) seria ocultada pelo pagamento de salários no processo de
trabalho capitalista, por outro lado, o componente doméstico do trabalho necessário
seria realizado na esfera privada e apareceria como dissociado do trabalho assalariado
performado na esfera pública (ibid., p. 159).
A partir dessa relação, a autora destaca que há uma contradição entre trabalho
produtivo e trabalho reprodutivo, que se aprofunda à medida que a acumulação
capitalista avança:
o impulso do capitalismo para aumentar a mais-valia através do aumento da
produtividade (...) força uma separação espacial, temporal e institucional
severa entre o trabalho doméstico e o processo de produção capitalista. Os
capitalistas devem organizar a produção de modo que cada vez mais ela
esteja sob seu controle direto em oficinas e fábricas, onde o trabalho
assalariado é executado por períodos de tempo específicos. O trabalho
assalariado chega a ter um caráter que é totalmente distinto da vida do
trabalhador fora do trabalho, incluindo o envolvimento dele no componente
doméstico do trabalho necessário. Ao mesmo tempo, o salário medeia tanto
os processos de manutenção diária quanto os de substituição geracional,
suplementados ou às vezes substituídos por contribuições do Estado. Ou
seja, o componente social do trabalho necessário do trabalhador facilita a
reprodução da força de trabalho indiretamente, fornecendo dinheiro que
deve então ser trocado para adquirir mercadorias. Estas duas características
– a separação de trabalho assalariado do trabalho doméstico e o pagamento
de salários – são materializados no desenvolvimento de locais e unidades
sociais especializados para o desempenho de trabalho doméstico. As famílias
da classe trabalhadora que vivem em lares particulares representam a forma
dominante na maioria das sociedades capitalistas, mas o trabalho doméstico
também toma lugar em campos de trabalho, quartéis, orfanatos, hospitais,
prisões, e outras instituições. (VOGEL, 2013 [1983], p. 159, tradução e itálico
meus)

10 Aqui, assim como Vogel, não diferencio o trabalho doméstico-assalariado do não-assalariado; para a autora,

neste nível de abstração, ambas as formas correspondem ao componente do trabalho necessário com o qual
Marx não contou: a porção de trabalho performada “fora” da esfera da produção capitalista da qual depende
a reprodução da força de trabalho. A autora define “trabalho doméstico” da seguinte forma: “O trabalho
doméstico é a porção do trabalho necessário que é realizado fora da esfera da produção capitalista. Para a
reprodução da força de trabalho acontecer, tanto o componente doméstico como o componente social do
trabalho necessário são exigidos. Ou seja, os salários podem permitir que um trabalhador compre
mercadorias, mas um trabalho adicional - o trabalho doméstico - deve ser geralmente realizado antes que
elas sejam consumidas. Além disso, muitos dos processos de trabalho associados à substituição geracional da
força de trabalho são realizados como parte do trabalho doméstico”. (VOGEL, 2013 [1983], p. 159, tradução
minha).

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Dessa forma, há uma relação de contradição e necessidade entre o trabalho para


a produção de valor e o trabalho para a produção da força de trabalho no capitalismo. A
necessidade do capital em aumentar a produção de mais-valia também implica uma
contradição estrutural entre o trabalho doméstico (do qual depende a reprodução da
força de trabalho) e o trabalho na produção capitalista. Enquanto um componente do
trabalho necessário, a redução da mão-de-obra doméstica criaria potencialmente mais-
valia11. Portanto, do ponto de vista do capital, o trabalho doméstico seria
simultaneamente indispensável e um obstáculo à acumulação. A longo prazo, a classe
capitalista procuraria estabilizar a reprodução da força de trabalho a um baixo custo e
com um mínimo de trabalho doméstico12, degradando-o sempre que possível. Ao mesmo
tempo, a classe trabalhadora, seja como uma força unida ou fragmentada em setores
concorrentes resistiria, esforçando-se para conquistar as melhores condições possíveis
para sua própria renovação, o que poderia incluir um determinado nível e tipo de trabalho
doméstico. Vogel destacou que, da mesma forma, o valor do salário de um trabalhador –
correspondente a sua cesta básica, valor total das mercadorias necessárias para sua
manutenção e substituição – dependeria das condições historicamente estabelecidas (ou
seja, da luta de classes) e demandaria análise empírica específica (ibid., p. 164).
É assim que, historicamente, na maioria das sociedades capitalistas, se construiu
uma relação na qual o fardo do trabalho reprodutivo repousa desproporcionalmente
sobre as mulheres, enquanto o fornecimento de mercadorias tende a ser
desproporcionalmente a responsabilidade dos homens, cumprida através de sua
participação no trabalho assalariado. Esse posicionamento diferenciado de mulheres e
homens em relação aos dois componentes do trabalho necessário geralmente é

11 Segundo Vogel (2013 [1983], p. 161-162, tradução minha): “Como um componente do trabalho necessário,
o trabalho doméstico potencialmente é extraído do compromisso que os trabalhadores possuem para a
realização do trabalho excedente através da participação no trabalho assalariado. Objetivamente, então, ele
compete com o impulso do capital pela acumulação. Se uma pessoa tende a cultivar a própria horta, cortar a
sua própria lenha, cozinhar suas próprias refeições, e caminhar seis milhas para trabalhar, a quantidade de
tempo e energia disponível para o trabalho assalariado é menor do que se ela comprar comida em um
supermercado, viver em um prédio de apartamentos com aquecimento central, comer em restaurantes e
utilizar o transporte público para ir para o trabalho”.
12 Vogel demonstra que este fenômeno pode incluir uma série de medidas que inclusive ultrapassam as

relações familiares. Ela pode se dar tanto através da automação (introdução de máquinas de lavar roupa, por
exemplo), quanto através da socialização das tarefas domésticas (quando o Estado as assume, através da
educação e da rede de saúde pública, por exemplo) e/ou transferência destas para o setor de serviços (por
exemplo, lavanderias, lojas de roupas prontas e redes de fast-food). A autora destaca ainda que o trabalho
reprodutivo total de uma sociedade também pode ser reduzido empregando-se populações
institucionalizadas (trabalho prisional, trabalho militar) e atraindo trabalhadores migrantes de outros países.
(VOGEL, 2013 [1983], p. 162).

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acompanhado por um sistema de supremacia masculina, e origina-se como um legado


histórico das divisões do trabalho das sociedades de classes anteriores (VOGEL, 2013
[1983], p. 159-160). Vogel destaca que tais divisões são então fortalecidas pela separação
particular entre o trabalho doméstico e o trabalho assalariado gerado pelo modo de
produção capitalista, na qual o primeiro passa a estar isolado no espaço e no tempo em
relação ao segundo.
Cabe destacar que diferentemente das feministas-socialistas de sua época, a
autora demonstra que em uma sociedade capitalista, o trabalho reprodutivo pode se
organizar de diversas formas como em creches, orfanatos, escolas, internatos e
restaurantes (privados ou públicos), e sua reposição geracional pode ser feita também
através da escravidão ou da migração (ibid., p.159-160). Portanto, não seria a necessidade
do trabalho doméstico em si, a divisão sexual deste trabalho ou a forma da família
nuclear13 que constituiria a base material para a opressão das mulheres. Esta base, para
Vogel, estaria situada na relação contraditória-porém-necessária entre a reprodução da
força de trabalho e a acumulação capitalista – o que historicamente traduziu uma relação
entre a condição biológica do corpo sexuado feminino e as relações sociais de produção
dominantes. Cabe ressaltar aqui que, precisamente, “não é biologia per se que dita a
opressão às mulheres, mas, em vez disso, a dependência do capital dos processos
biológicos específicos das mulheres – gravidez, parto, lactação – para garantir a
reprodução da classe trabalhadora.” (FERGUSON; MCNALLY, 2017 [2013], p. 40). Assim,
para Vogel, mesmo que homens assumam grande parte do trabalho reprodutivo ou que
este não seja realizado no interior da unidade familiar, o fato de que esta é uma tarefa
predominantemente privada, e sobretudo realizada de acordo com o fato biofísico de que
a procriação e a amamentação requerem corpos sexuados-femininos, explica as pressões
sociais que fazem com que a forma família se mantenha e que nela haja uma
conformidade com a desigualdade de gênero (FERGUSON; MCNALLY, 2017[2013], p. 35)
Após identificar a base material da posição social diferenciada das mulheres
enquanto um fenômeno econômico, Vogel (ibid., p. 168) teoriza sobre a esfera da
superestrutura. A relação contraditória-porém-necessária entre trabalho produtivo e

13 Vogel (ibid., p. 177) percebe que a dupla e específica dinâmica da opressão das mulheres no capitalismo
também imprime uma característica específica sobre o caráter da família neste modo de produção. Uma vez
que o trabalho doméstico tem sido historicamente realizado principalmente por mulheres em um contexto
de supremacia masculina, a família da classe trabalhadora poderia se tornar um repositório altamente
institucionalizado da opressão das mulheres. Mas, assim como o trabalho reprodutivo, a família poderia
assumir diversas formas, não necessariamente opressoras.

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reprodutivo formaria a base para a diferenciação entre homens e mulheres na esfera


ideológica: sobre ela criar-se-ia toda a superestrutura que permitiria a sua perpetuação
(ibid., p. 160). A autora destaca que do ponto de vista da experiência de homens e
mulheres, o isolamento das unidades domésticas apareceria como uma separação natural
entre ambos. A vida, sob o capitalismo, apareceria então dividida em uma série de
dicotomias: homem/mulher, público/privado, trabalho/família, produção/reprodução,
etc. Esta ideologia de esferas separadas, cuja base é o próprio funcionamento do modo
de produção capitalista, rapidamente se institucionalizaria (VOGEL, 2013 [1983], p. 160-
161).
Então, a autora passa a analisar de que maneira esta realidade se articula com
outro desdobramento político e ideológico fundamental ao funcionamento do modo de
produção capitalista: a tendência à igualdade entre todos os seres humanos. Vogel (ibid.,
p. 169) argumentou que essa forma particular da sociedade capitalista derivaria, em
última instância, do caráter duplo das mercadorias e do processo de abstração do
trabalho, indispensáveis para a existência da forma do valor. As relações sociais
assumiriam então a forma de uma troca de equivalentes, responsável por ocultar uma
realidade de desigualdade (ibid., p. 170-171). Assim, pela própria lógica contraditória
deste sistema, o fenômeno da igualdade e da liberdade individual acompanhariam a
exploração: ao expandir-se os primeiros, expande-se também a última, o que acentua e
pode revelar o caráter desigual e opressor do capitalismo (ibid., p. 172).
Vogel (ibid., p. 173) distinguiu também o sentido da desigualdade de direitos
civis entre homens e mulheres. A posição das mulheres nas sociedades capitalistas seria
definida por dois aspectos: homens e mulheres possuírem posições sociais diferentes no
que tange à relação entre produção e reprodução social; e mulheres de todas as classes
sociais possuírem seus direitos democráticos negados 14 (ibid., p. 173). Para Vogel, este
último aspecto teria o potencial de revelar, de forma mais contundente, que sob o
capitalismo, não só a aparência de igualdade oculta uma essência de desigualdade social;
a aparente desigualdade seria capaz também de ocultar uma essência também desigual
(apesar de todas estarem em uma posição de desigualdade em relação aos direitos civis,

14 Neste momento, Vogel retoma o argumento de que a localização diferencial de mulheres e homens em
relação à reprodução social varia de acordo com a classe, e ressalta outra contradição: enquanto apenas
algumas mulheres realizam trabalho doméstico na sociedade capitalista – ou seja, mulheres da classe
trabalhadora, cujos esforços mantêm e renovam a força de trabalho explorável –, todas as mulheres sofrem
com a falta de igualdade no capitalismo (ibid., p. 174). Em consequência, as mulheres de todas as classes
passam então a lutar juntas contra a desigualdade de gênero.

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apenas mulheres da classe trabalhadora exercem trabalho reprodutivo). Em alguns países


de capitalismo avançado de sua época, a expansão das camadas médias, o
reconhecimento das desigualdades de gênero e o desenvolvimento de um estilo de vida
consumista, por vezes fazia parecer que as diferenças entre homens e mulheres
superavam as diferenças de classe, impulsionando a união de mulheres de diferentes
classes e setores em sua luta por igualdade de direitos e produzindo hierarquias e
dicotomias entre as relações de classe e gênero. Este aspecto, bem como o caráter
transversal da luta feminista por igualdade de direitos e a realidade de violência de
gênero, contribuiriam para que se originassem relações ideológicas antagônicas entre os
sexos. Vogel alerta que a opressão das mulheres passaria a aparecer apenas “como uma
opressão desencadeada pelos homens, enraizada em uma divisão sexual do trabalho
transhistoricamente antagonista e corporificada na família” (ibid., p.177, tradução
minha).
Assim, a conclusão de Vogel (ibid., p.177) é que as mulheres seriam oprimidas
na sociedade capitalista por uma multiplicidade de fatores que derivariam da relação
estrutural contraditória entre a reprodução da vida humana e a reprodução do capital. É
esta relação, construída historicamente, que impulsionaria o capital e o Estado a regular
a capacidade biológica das mulheres e a restringir e degradar os meios de produção da
vida dos trabalhadores, de modo que a força de trabalho esteja sempre disponível para a
exploração e para uma maior extração de mais-valia.

Limites da construção da teoria unitária no século XX e a crise do Marxismo clássico

Tanto as conclusões quanto o método utilizado por Vogel foram alvo de críticas e de
desenvolvimentos posteriores, e hoje configuram o ponto de partida da TRS. Dentre as
críticas sofridas por Vogel, uma é especialmente importante para o estudo das opressões.
Apesar da dimensão unitária proposta pela autora e de sua aproximação com a noção
marxiana de totalidade social no que tange a dinâmica que envolve a unidade
contraditória entre produção e reprodução e entre a aparência e a essência dos
fenômenos sociais, a autora reproduzia uma concepção metodológica hiper abstrata, de
matriz althusseriana, que mantinha uma separação entre base e superestrutura
(BRENNER, 1984). A pior consequência desta concepção era que ela não rompia nem com

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a hierarquia entre “o econômico” e “o cultural”, nem com a universalização da categoria


“mulher”, quando da formulação teórica. A abstração de suas determinações concretas
no que tange à raça, e sexualidade/identidade de gênero, e, por vezes, à própria classe,
ironicamente a aproximava da concepção marxista ortodoxa que ela própria propunha
combater (RUAS, 2019). A maior parte da tradição feminista-marxista de sua época
continuava a incorrer no mesmo problema, o que contribuiu para o isolamento de
teorizações do tipo ao longo das décadas de 1980 e 1990 (BANNERJI, 1995; DAVIS, 2016
[1981]).
Em contraste, desde fins da década de 1940, feministas-socialistas negras como
Jones (2017 [1949]), Beale (2005 [1969]), as ativistas do Combahee River Colective (1977)
e Davis (2016 [1981]) buscavam abordar a totalidade social e suas relações particulares
de classe, raça, e gênero como inseparáveis. Elas compunham uma tradição que
remontava às lutas abolicionistas do século XIX e que posteriormente ficou conhecida
como Feminismo Negro. Pelas limitações de espaço e escopo deste trabalho, não será
possível desenvolver aqui a proposta do Feminismo Negro, bem como seus pontos de
convergência e diferença em relação à perspectiva da reprodução social, tópico que deixo
para futuros trabalhos. Entretanto, cabe destacar que as mulheres negras socialistas
foram pioneiras em denunciar a relação contraditória-porém-necessária existente entre
os processos de produção de valor e os processos de produção da vida (o que implica a
desvalorização da vida e processos múltiplos de controle e desumanização). Para estas
autoras, se as múltiplas relações de opressão e exploração eram imbricadas na realidade,
deveriam ser inseparáveis também analiticamente. Porém, apesar de convergir e apontar
importantes soluções aos limites a perspectiva da reprodução social, esta perspectiva não
encontrou espaço no interior do feminismo-marxista, que, por sua vez, era cego em
relação à raça. Também permaneceu minoritária em relação ao marxismo, hegemonizado
por uma perspectiva masculina e branca. Esta falta de abertura, traduz um importante
elemento do racismo nas sociedades capitalistas afrodiaspóricas: o isolamento e exclusão
dos espaços de produção e validação do conhecimento. Este elemento impediu que estas
mulheres, embora pioneiras, pudessem desenvolver uma teorização sistemática da crítica
da economia política marxista e que fosse assim considerada. A construção de uma teoria
unitária, assim como os debates feministas-marxistas sobre o trabalho doméstico da
década de 1970, permaneceu em aberto.

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A publicação do livro de Vogel (2013 [1983]) se deu em um momento de crise


do campo marxista (THERBORN, 2012). Diante da ascensão e estabilização da ordem
neoliberal, o quadro hegemônico de intervenção teórica passou a ser ocupado pelas
teorias pós-modernas, impulsionadas pela virada linguística. Estas teorias repudiavam as
chamadas “grandes narrativas” e dispensavam por completo a crítica à economia política
como modelo explicativo válido para compreender suficientemente as relações sociais de
exploração, dominação e poder em sua complexidade (FERGUSON; MCNALLY, 2017
[2013], p. 25). Recorrentemente, neste período, a filosofia marxiana – e a noção de
totalidade – foi questionada enquanto teoria da sociedade, reforçando um movimento de
desqualificação já deflagrado pela crise do socialismo soviético. Neste período, mesmo as
análises marxistas que buscavam articular gênero, raça e/ou pós-colonialidade com a
noção de classe, totalidade ou estrutura social, passaram a configurar campos de
investigação minoritários diante do giro antiprodutivista que atingiu a teoria social crítica
(GONÇALVES, 2014).
Durante as décadas de 1980 e 1990, a adoção parcial e fragmentada da teoria
de Marx – ora pelas organizações socialistas que permaneciam na defesa de uma noção
limitada de classe, ora pelas organizações feministas ou antirracistas que buscavam
construir teorias próprias para explicar as relações de opressão a que estavam submetidas
– estabeleceu uma maior confusão quanto à compreensão dialética da totalidade.
Relações entre essência-aparência, teoria-prática e natureza-cultura embaralhavam-se, e
refletiam aquilo que Vogel caracterizou como indistinção entre nível de abstração teórico
e empírico (VOGEL, 2013 [1983], p. 184-195). Políticas identitárias (HEIDER, 2018, p. 23),
emergidas da luta radical no interior de movimentos de emancipação em oposição à uma
noção restrita do proletariado e ao dogmatismo de alguns setores da teoria marxista,
foram progressivamente cooptadas pela ideologia neoliberal e institucionalizadas sem
quaisquer alterações na política econômica global. Elas passaram a constituir, com
frequência, um campo teórico-prático individualista, baseadas na demanda individual ou
setorizada por reconhecimento e restritas às fronteiras nacionais (ibid., p. 23-24). Se, por
um lado, estas políticas foram responsáveis por um período de plena expansão do que se
convencionou chamar “direitos das minorias” em todo o mundo, abrindo importantes
condições de possibilidade para uma transformação mais profunda da realidade, por
outro foram incapazes de reduzir, através de sua política institucional, os níveis

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estruturais de desigualdade social e de reprodução das hierarquias sociais existentes, que,


por sua vez, se aprofundam progressivamente.
Na segunda década do século XXI, este processo culminou em uma conjuntura
global de crise: intensificação das desigualdades sociais, extrema fragmentação político-
teórica da classe trabalhadora e ascensão de um ciclo conservador e autoritário em todo
o mundo. É neste cenário que, na última década, a perspectiva feminista-marxista da
reprodução social volta a ganhar força. Após um longo período de ostracismo, a proposta
de criação de uma teoria unitária toma forma enquanto campo teórico-prático
contemporâneo, sob o nome de Teoria da Reprodução Social (TRS), e se insere em um
contexto de ebulição de múltiplas experiências de luta e mobilizações espontâneas de
massas que traduzem as contradições do período em que vivemos. Recorrentemente, o
conflito social tem sido traduzido por pautas que relacionam produção e reprodução
social, exploração e opressão. Saúde, moradia, terra, água e alimentação, mudanças
climáticas, a defesa do direito à vida, lutas por direitos sexuais e reprodutivos, reações a
leis discriminatórias, ao racismo e à violência policial, reivindicações por salários e contra
a precarização das condições de trabalho e de vida são alguns exemplos de reivindicações
que dominaram a indignação e os protestos, progressivamente, a partir da segunda
metade da década de 1990, e, sobretudo, após a crise 2008 em todo o mundo 15.
Ao mesmo tempo que tais movimentos têm sido alvo de intensa repressão por
parte do Estado, ainda é recorrente que sejam caracterizados por intelectuais marxistas
como ações que não ameaçam a dinâmica do sistema capitalista em razão de seu alegado
caráter “econômico-utilitário” e “reformista”, que seria avesso ao projeto
revolucionário/anticapitalista (HARVEY, 2015a; 2015b). Opondo-se a esta perspectiva,

15Como exemplo recente de algumas dessas manifestações, podemos citar o movimento Black Lives Matter
e destacar as mobilizações feministas como a Marcha das Mulheres em 21 de janeiro de 2017 nos EUA, cuja
pauta incluía uma oposição ao controle de direitos sexuais e reprodutivos e as leis anti-imigração de Donald
Trump. Estas prepararam o terreno para a Greve Internacional de Mulheres em 8 de março de 2017,
mobilização massiva de mulheres em mais de 50 países, seguida da publicação do manifesto que ficou
conhecido como Manifesto Feminismo para os 99% , liderado por feministas-marxistas da reprodução social.
Em 2018, na Argentina, o movimento Ni Una a Menos levou milhões de pessoas às ruas na luta pela legalização
do aborto, em pautas que problematizavam a desigualdade do acesso ao procedimento – bem como à
educação e à saúde de qualidade – entre as diferentes classes sociais. No Brasil, é possível perceber um
movimento similar. O ressurgimento do movimento de mulheres no contexto de resistência ao neoliberalismo
têm tido forte protagonismo de mulheres negras que, com intensa produção teórica, e mantendo diálogo
direto com ativistas de diversos países da diáspora africana, em 2015 marcharam por todo o país ocupando a
capital, Brasília, em um movimento que reuniu mais de 50 mil mulheres pelo fim do genocídio da população
negra e por melhores condições de vida, na Primeira Marcha Nacional De Mulheres Negras: Contra o Racismo,
a Violência e o Bem-Viver. Parte das mulheres que marcharam em 2015 se somaram também nas mobilizações
da Greve Internacional de Mulheres de 2017.

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feministas-socialistas e autores marxistas engajados na tentativa de desenvolver uma


teoria unitária têm debatido o potencial revolucionário e o caráter classista destas
mobilizações (BHATTACHARYA, 2017; ROEDIGER, 2017).
Essa nova onda de ebulição política internacional levou a um ressurgimento do
interesse na obra de Vogel, reeditada em 2013. Tal ressurgimento é também
impulsionado pelos crescentes esforços de recuperar e desenvolver a teoria da sociedade
de Marx. Estes esforços visam a superação das representações reducionistas ou
deterministas do marxismo ao expor a totalidade orgânica do capitalismo enquanto
sistema dinâmico e contraditório, em constante movimento (BHATTACHARYA, 2017, p.
14). Assim, o primeiro passo para a compreensão da TRS, é captar o seu
reestabelecimento do pensamento de Marx enquanto uma teoria da totalidade social.

A Teoria da Reprodução Social: totalidade e o nexo gênero-raça-classe

A TRS nasce, no século XXI, a partir de um movimento de convergência16 entre diversas


intelectuais feministas-marxistas que desde o final do século XX vinham se engajando no
desenvolvimento da perspectiva unitária no sentido de uma maior aproximação com a
realidade concreta. Estas intelectuais incorporavam em sua teorização, estudos empíricos
e ativismo muitos dos questionamentos, demandas e horizontes dos movimentos
feministas, antirracistas, pós-coloniais e Queer. Este diálogo possibilitou que estas
intelectuais suprissem as lacunas da obra de Vogel, propondo um reposicionamento do
campo marxista em relação aos debates sobre classe, opressões, identidades e a questão
ambiental. Isto traduz um esforço de recuperar e desenvolver a teoria de Marx na direção
específica de compreender a conexão entre as relações sociais econômicas e
extraeconômicas, destacando como as categorias de opressão são produzidas de forma

16 Esse movimento de convergência pode ser percebido no volume editado por Bhattacharya (2017) e que
marca o estabelecimento desta teoria no século XXI. O volume recebe a contribuição de dez autores com
trajetórias intelectuais distintas e que se engajam nesse sentido ao analisar diversos temas à luz dessa
possibilidade teórica que se convencionou chamar de Teoria da Reprodução Social. Cabe ressaltar que entre
1983 e 2017, diversas teóricas feministas-marxista, sobretudo ligadas à tradição da Economia Política
Feminista Canadense, desenvolveram e atualizaram a perspectiva da reprodução social. Essa produção é uma
referência fundamental para as autoras que hoje defendem a construção da TRS, constituindo “o parente
teórico mais próximo” desse projeto (BHATTACHARYA, 2017). Para mais sobre essa perspectiva da reprodução
social, conferir BEZANSON; LUXTON, 2006.

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simultânea e imbrincada à produção de mais-valia e, assim, não podem ser


hierarquizadas.
A noção marxiana de totalidade social apresentada no primeiro item deste
artigo é especialmente importante para a TRS, que busca captar quais são as
determinações e contradições constitutivas e essenciais ao funcionamento do modo de
produção capitalista para desenvolver uma teoria integrada das relações sociais
(BHATTACHARYA, 2017, p.7-14). Bhattacharya (2017, p. 14), exemplifica a importância
prático-teórica do retorno à noção de totalidade ao posicionar
no centro da TRS a ideia marxiana de que agir sobre o nosso mundo com base
em um conhecimento empírico imediato ou factual da realidade, ignorando as mediações
que estão pressupostas nesta percepção, envolve necessariamente um erro com
consequências práticas. A autora destaca que a realidade tal como a enxergamos
(aparência), nos diz, recorrentemente, que como os trabalhadores brancos normalmente
ganham salários maiores do que os trabalhadores negros, jamais haveria pautas comuns
de luta unindo-os. A diferença real, empiricamente documentada, entre eles sempre iria
alimentar o racismo branco. Segundo a autora, o mesmo poderia ser dito sobre as
diferenças materiais entre homens e mulheres: tentar desafiar estas questões dentro do
contexto estabelecido pelo capitalismo resultaria ou no fracasso (por exemplo, como nas
numerosas experiências históricas em que o sexismo e/ou racismo sufocaram o
movimento dos trabalhadores) ou culminando em uma estratégia política fraca, que
procuraria superar tais diferenças de raça e gênero entre trabalhadores por meio de
apelos morais, pedindo que estes “fizessem a coisa certa” e fossem feministas e
antirracistas, sem que eles enxergassem um motivo concreto para fazê-lo
(BHATTACHARYA, 2017, p. 14-15).
Neste caso, quando temos a noção de que a desvinculação entre a posição social
do homem em relação a da mulher, do branco em relação ao negro é na verdade apenas
uma visão parcial da realidade, e olhamos sob o prisma da totalidade, podemos ver que
há um interesse material para que trabalhadores brancos se unam aos negros na luta
antirracista e os homens às mulheres, na luta feminista (essência). No capitalismo, apesar
das vantagens sociais (status e privilégios)17 que tais relações conferem aos homens
brancos da classe trabalhadora, sua própria condição social de exploração e degradação

17Para uma maior compreensão destas “vantagens sociais”, inclusive das origens do que se convencionou
chamar amplamente hoje de “privilégios” da branquitude, cf. Roediger, 2007 [1991].

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de seus meios de reprodução da vida, está diretamente ligada à condição social de


subordinação e desumanização dos trabalhadores negros e das mulheres. Compreender
esta questão depende de um processo de tomada de consciência coletiva e, no plano
concreto, uma luta em comum dependeria do compromisso por parte desses
trabalhadores brancos em abrir mão destas vantagens e reconhecer pessoas negras como
seres humanos e sujeitos políticos – mas simplesmente enxergar o problema desta forma
já nos abre outras possibilidades de análise teórica e de traçar estratégias para a luta
política. A mesma lógica poderia ser aplicada no que tange às diferenças entre homens e
mulheres.
O exemplo dado por Bhattacharya ressoa uma concepção de fragmentação das
pautas políticas que se tornou cada vez mais comum no seio dos movimentos feministas
e antirracistas na virada do século XX para o século XXI. Tal concepção reflete uma
elaboração teórica que negligencia a dimensão da totalidade social e exemplifica em que
medida a forma como conceituamos as relações sociais impacta diretamente o
desenvolvimento de estratégias políticas efetivas. Uma das consequências de se
recuperar a noção marxiana de totalidade social é, portanto, resgatar a compreensão de
que a multidimensionalidade da vida social não pode ser compreendida pressupondo-se
que suas partes – as relações de classe, raça, gênero, sexualidade – sejam
ontologicamente autônomas. Neste sentido, McNally (2017, p. 105-106, tradução e grifos
meus), um dos autores da TRS, localiza as relações de raça e gênero no interior da
totalidade social capitalista:
O racismo tem características específicas que nos permitem distinguir, em
primeira instância, do sexismo. Mas essas distinções não fornecem definições
exaustivas. Eles fornecem um ponto de partida do qual o pensamento
desdobra as relações internas de partes com outras partes e com o sistema
orgânico como um todo. O racismo, em outras palavras, pode ser entendido
como uma totalidade parcial com características únicas que devem, em
última análise, ser apreendidas em relação às outras totalidades parciais
que compõem o todo social em seu processo de transformação. Cada
totalidade parcial, cada sistema parcial dentro do todo, possui características
únicas (e uma certa “autonomia relativa” ou, melhor dizendo, autonomia
relacional). O "sistema coração-pulmão", por exemplo, constitui uma
totalidade parcial dentro do organismo humano como um todo. Mas
nenhuma parte (ou totalidade parcial) é ontologicamente autônoma em si.
Cada parte é (parcialmente) autônoma e dependente, (parcialmente)
separada e ontologicamente interconectada. Consequentemente, ninguém
pode ser adequadamente compreendido como uma unidade autossuficiente
fora de sua condição de membro de um todo vivo. Naturalmente, o todo
orgânico é constituído em e através de suas partes – são estas partes que
lhe dão determinação e concretude – mas ele não é redutível a suas partes.

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É algo maior e mais sistemático que uma mera soma aditiva. (…) Uma
totalidade concreta alcança a concretude (“determinação”) através das
diferenças que a compõem. Ao mesmo tempo, cada uma dessas diferentes
partes carrega o todo dentro dela; como elementos da vida, sua reprodução
é impossível fora do todo vivo.

Ao conceituar relações como o racismo (ou o sexismo) como uma totalidade


parcial com características únicas, pertencente a um todo social orgânico, McNally (2017)
eleva a compreensão das conexões entre as relações de opressão e o modo de produção
capitalista a uma concepção muito mais próxima da complexa realidade social. Assim, no
lugar de cruzamentos, ou combinações entre sistemas/relações de opressão ou de
dominação externas umas às outras – como supõe a teoria da interseccionalidade 18 –, há
um processo no qual as partes contêm o todo e o todo contém as partes. Ao mesmo
tempo que constituídas e mediadas mutuamente – ou seja, unidas em um único processo
vital – as relações de opressão guardam características específicas, particulares,
ontologicamente interligadas. Daí o entendimento marxiano de que o capital, no seu
processo de se impor enquanto totalidade, unifica as relações sociais sem suprimir as
totalidades parciais que o constituem. Isso não implica afirmar que as partes são
redutíveis ou funcionais ao todo; implica apenas dizer que há uma unidade, uma lógica
subjacente que determina – no sentido de exercer pressões e colocar limites reais sobre
– todas as relações parciais que constituem essa totalidade histórica aonde o todo não é
externo à suas partes. Segundo Ferguson (2017 [2016], p. 22-23),
esse é um todo (capitalista) unificado, mas um que é também diferenciado e
contraditório. As distintas opressões não são redutíveis umas às outras, mas
suas diferenças estão expressas no interior e através de (e algumas vezes
excedendo) uma lógica compartilhada. Compreendida dialeticamente,
portanto, uma narrativa totalizante não exclui reconhecer, entender e
explicar a diferença entre suas partes constitutivas, e a co-constituição no
interior de um processo total. Ela assume essas partes como integrais à
reprodução social do todo, um todo que somente se constitui no interior, e
através, da história concreta e real. “Capitalismo” como uma simples
abstração não existe “realmente”. Há apenas o capitalismo racializado,
patriarcal, no qual a classe é concebida como uma unidade de relações
diversas que produzem não apenas lucro ou capital, mas o capitalismo.
Apesar de podermos (e precisarmos) pensar sobre relações discretas para
entender a diferença, elas são distintas apenas abstratamente, no
pensamento. Uma teoria integrativa é incompleta a menos que ela se mova

18 A teoria da interseccionalidade (CRENSHAW, 1989) considera a incidência de múltiplos sistemas de


opressão/dominação sobre um determinado indivíduo ou grupo social. A própria ontologia do conceito –
interseccionar – não só permite a compreensão de que cada forma de opressão constitui um sistema distinto,
como deixa em aberto a compreensão da existência de um sistema único. A visão de totalidade apresentada
aqui, assim como a defendida por Davis (2016 [1981]), é diferente neste sentido.

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dessa abstração para nomear a lógica social que informa a unidade existente,
concreta, dessas relações.

Neste mesmo sentido, McNally (2017, p. 106) destaca ainda que as totalidades
ou universais não são abstrações da diversidade concreta e da multiplicidade de coisas
para Hegel e Marx. Pelo contrário, as totalidades são constituídas na e pela diversidade e
dinamismo dos processos da vida real. Uma relação social só pode ser apreendida em
relação às outras relações sociais que compõem o todo social em seu processo contínuo
de transformação.
Portanto, por mais que as origens do patriarcado, da supremacia branca, da
família, possam remontar à períodos históricos nos quais o capitalismo não estivesse
ainda mundialmente consolidado, fato é que o capitalismo, em sua gênese e
universalização, reestrutura hierarquias sociais anteriores e se beneficia delas na mesma
medida em que elas o constituem enquanto sistema19. Autores como Almeida (2018) têm
lido esse fenômeno sob a chave das relações estruturais, como o racismo estrutural: uma
relação social que estrutura a sociedade ao mesmo tempo em que é estruturada por ela,
mas que foge aos indivíduos. Essa é uma compreensão fundamental, mas que se encarada
apartada de uma perspectiva dialética que considere a noção de totalidade recai
facilmente em explicações dualistas e não-dialéticas sobre as relações de opressão e o
capitalismo. Neste sentido, como destaca Ferguson (2017 [2016], p. 15), a TRS se distingue
das demais teorias porque ao retornar ao quadro conceitual marxiano, retoma a
“compreensão ampla e complexa do trabalho como uma ‘unidade concreta’, uma
categoria ontológica que captura – e uma experiência vivida que medeia e produz – uma
totalidade contraditória, histórica e ricamente diferenciada”. É essa
multidimensionalidade da atividade humana, onde o trabalho enquanto atividade

19 Assim, para a TRS, o capitalismo é um


sistema que nasce de antigas hierarquias sociais, rompe com algumas
delas, reestrutura e preserva outras, unificando diferentes relações sociais em uma totalidade complexa, e
nesse processo, modificando todas. Isso é simplesmente dizer que algumas formas sociais que preexistiam ao
capitalismo foram preservadas porque foram defendidas pelas pessoas – por pessoas que pertenciam tanto
às classes subalternizadas quanto às classes dominantes e que por razões diferentes, muitas vezes
contraditórias, as preservaram – ao mesmo tempo em que elas também foram reforçadas e modificadas por
políticas intencionais por parte dos Estados capitalistas. Dessa forma, “através de processos históricos
complexos e às vezes contraditórios”, formas sociais “compatíveis com a reprodução privatizada da força de
trabalho foram tanto preservadas quanto adaptadas, a uma ordem de gênero burguesa moderna”, branca e
heterocispatriarcal (FERGUSON; MCNALLY, 2017 [2013], p. 36). Esta ressalva, que considera, inclusive, o papel
da própria classe trabalhadora como instrumento de manutenção das opressões, explica ao mesmo tempo a
permanência e reestruturação de algumas formas e hierarquias sociais, e sobretudo o caráter específico
dessas relações no capitalismo.

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humana prática é a premissa ontológica de uma unidade integrada e, ao mesmo tempo,


diversa, que convida a uma compreensão dialética – não essencialista, não estática e
realmente integrada – das relações sociais. Desse modo, a
TRS permite uma concepção diversa-mas-unificada das relações sociais
(FERGUSON, 2017 [2016]), apresentando forte e diferenciado potencial explicativo para
as formas sobrepostas/cruzadas através das quais essas relações se apresentam para nós.

Seis contribuições teórico-práticas da TRS à luz da noção de totalidade social

Como vimos até aqui, a renovação da perspectiva unitária da reprodução social no século
XXI ressurge como uma reação prático-teórica de intelectuais críticos, marxistas e ativistas
de esquerda às três décadas de reestruturação neoliberal, que, com o aprofundamento
de sua crise estrutural desencadeada a partir de 2007-2008, avança através da
intensificação das formas de expropriação e exploração, e do despertar do autoritarismo
em escala global (GONÇALVES; MACHADO, 2018). A precarização das relações de trabalho
e o rebaixamento das condições de vida dos trabalhadores, conduzidas através da
comodificação, financeirização e militarização das relações sociais, marcam a presente
conjuntura. Diante deste cenário, uma reconfiguração contemporânea da teoria unitária
exige a reconstrução de pontes transnacionais de solidariedade que possibilitem à classe
trabalhadora uma compreensão universal da condição humana e ofereçam alternativas
concretas de emancipação.
Tal reconstrução depende diretamente tanto da consideração das múltiplas
relações de opressão que constituem o capitalismo quanto da capacidade de recentrar
nossa compreensão das relações de classe, reelaborando a conceitualização sobre quem
é a classe trabalhadora, e, portanto, quais seriam os “sujeitos revolucionários” em cada
conjuntura e realidade social específica. Esta conceitualização passa por uma reflexão
sobre sob quais mediações sociais as frações desta classe estão enredadas e quais seriam
os mecanismos materiais que possibilitariam a sua união. A TRS traz reflexões
fundamentais neste sentido. Dentre suas muitas contribuições, destaco seis que,
diretamente ligadas à perspectiva marxiana da totalidade social, considero as mais
relevantes para recentralizar o debate sobre classe e assim fazer avançar alguns embates
práticos e teóricos que enfrentamos hoje também no Brasil.

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Uma primeira contribuição é que, ao resgatar a elaboração inicial de Vogel


(exposta acima), esta teoria recupera a noção de que a força motora do capitalismo é o
trabalho humano e não as mercadorias. Ao fazer isso, ela desmistifica “a esfera da
economia” e restaura ao processo econômico o seu componente fundamental: as
relações racializadas e generificadas nas quais os seres humanos estão imbricados e a sua
agência (BHATTACHARYA, 2017, p. 19). Ao fazer isso, a TRS nos oferece, também, uma
visão expandida da produção capitalista e do trabalho, e revela um pressuposto universal
humano: as pessoas precisam ser produzidas (ou produzir-se), e tarefas como dar à luz,
cuidar e manter seres humanos demanda grandes quantidades de tempo, recursos e
trabalho (ARRUZZA, et al., 2019, p. 105-106).
A TRS destaca que, historicamente, nas sociedades capitalistas, este trabalho é
feito pelas mulheres, naturalizado, invisibilizado (na maioria das vezes lido socialmente
como “atos de amor”), e desvalorizado. Isso tem consequências desastrosas para a vida
de muitas mulheres, que têm triplas jornadas de trabalho. Esta teoria então se refere à
centralidade desse trabalho reprodutivo como pressuposto da produção capitalista, e
assim novamente politiza o domínio mais específico da renovação e da manutenção da
vida que abrange três elementos fundamentais: a) a reprodução biológica da espécie
(correspondente à maior parte da reprodução geracional da força de trabalho); b) a
reprodução cotidiana da força de trabalho; e c) a reprodução das necessidades de
provisão e cuidado dos potenciais portadores da força de trabalho ou dos que se tornaram
inaptos para ele. De um modo geral, esta dimensão foi ignorada pela tradição marxista e
negligenciada nas interpretações mais famosas da teorização de Marx.
Aqui é importante observar que, por sua vez, para que o trabalho reprodutivo
ocorra, há uma dependência direta da provisão de recursos básicos de infraestrutura que
permitem o acesso aos meios de subsistência. Por exemplo, ainda que comprados pelo
salário, a água e os alimentos não chegam aos lares dos trabalhadores sem canos,
estradas, portos, etc. Essa provisão é regulada pelo Estado e controlada pelo capital, e as
regras sobre sua disponibilidade se organizam através das linhas de gênero, raça, classe e
status de cidadania. A organização dessas regras depende do desenvolvimento histórico
específico de cada país diante do sistema global.
Esta perspectiva expandida da produção capitalista, central à TRS, nos leva a
uma segunda contribuição importante: ela permite uma mudança na forma em que
vemos o trabalho, propondo uma noção ampliada da categoria “classe trabalhadora”, que

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destaca a relação oculta entre trabalho reprodutivo e produtivo. A TRS revela que a
dicotomia entre produção e reprodução social, sendo a primeira ligada à esfera pública,
econômica, ao local de trabalho, e a segunda ligada à esfera privada, social, identificada
com o lar, é uma forma histórica de aparência específica do capitalismo, na qual o capital
se põe enquanto processo. Para a TRS, o trabalho realizado nas duas esferas deve ser
teorizado de maneira integrada: a relação contraditória-porém-necessária entre ambas
revela que o trabalho não-remunerado realizado pelas mulheres é o pressuposto da
produção capitalista e, portanto, está na base desse sistema. Romper com as dicotomias
que surgem da reificação dualista das duas esferas nos permite: a) enxergar que esta
relação sustenta a permanência da opressão das mulheres sob o capitalismo (FERGUSON,
2017 [2016], p. 25); b) e reinterpretar as relações existentes entre outras formas de
produção e de propriedade dos meios de existência, reconsiderando as realidades de
resistência anticolonial (HALL, 2016, passim).
A terceira contribuição trazida pela TRS é a noção de que embora as atividades
de reprodução ocorram de uma forma ou de outra em todas as sociedades, nas
sociedades capitalistas elas estão, especificamente, subordinadas ao capital. Há um
impulso que subordina a vida à produção do lucro, ao mesmo tempo que exige que o
trabalho reprodutivo produza e substitua o seu oposto, a “força de trabalho”. Essa relação
é um desdobramento da contradição fundamental entre capital e trabalho. O trabalho
reprodutivo é então determinado e constrangido pela própria produção capitalista:
enquanto, de um lado, a reprodução social é a condição da acumulação sustentada de
capital; por outro lado, a compressão dela é um meio de aumentar a mais-valia extraída.
Assim, para produzir cada vez mais valor, o capital tende a precarizar as condições de
reprodução da vida, restringindo, progressivamente o acesso dos trabalhadores aos
meios necessários à sua subsistência (FRASER, 2017, p. 22). Há uma tendência ao
empobrecimento da classe trabalhadora e à crise do cuidado, a partir de uma pressão
constante para que a esfera da reprodução social seja cada vez mais reduzida pelos
proprietários do capital e através do Estado. Assim, o capitalismo gera um cenário no qual
duas relações opostas são contraditoriamente unificadas (BHATTACHARYA, 2017, p.11).
Há uma permanente crise reprodutiva-social (FRASER, 2017).
A percepção desta dinâmica nos leva à quarta contribuição da TRS: o ponto da
reprodução social é um local privilegiado do conflito de classe. Ao abordar a contradição
entre produção e reprodução, Bhattacharya (2017b, p.73, et seq.) destaca que o padrão

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das necessidades de existência dos trabalhadores é determinado, contingencialmente,


pela luta de classes e, portanto, pelo desenvolvimento histórico de cada sociedade. Como
vimos anteriormente, este padrão é composto pela “cesta básica” dos trabalhadores, que
determina o valor da força de trabalho através das tendências contraditórias descritas
acima.
Cabe destacar que, ao comandar o processo de produção, a classe capitalista
tende a limitar as necessidades de consumo da classe trabalhadora. No entanto, para
assegurar a constante realização da mais-valia, o capital também precisa ampliar e criar
novas necessidades. Neste sentido, a posição da classe trabalhadora sob o capitalismo é
relativa: se o padrão de consumo das classes dominantes aumenta, aumentam também
as necessidades da classe trabalhadora, que aspirará atingir um padrão igual ou similar
(BHATTACHARYA, 2017b, p.79). A elevação no padrão das condições de reprodução da
vida se torna uma aspiração, um “objetivo ideal” da classe trabalhadora, que, entretanto,
jamais consegue se realizar no interior deste modo de produção (que, como vimos, é
voltado para a valorização do valor e não para a melhoria das condições de vida dos
trabalhadores). Assim, “os trabalhadores, devido à própria natureza do processo, são
sempre reproduzidos como carentes do que necessitam”20 (ibid., p. 82), o que pode gerar
grande insatisfação social.
Neste sentido, um grande desafio à organização da classe trabalhadora é o fato
de que uma luta que aborde o problema nesta extensão, ou seja, que confronte o capital
“em geral”, o capital em sua totalidade, não possui marcos bem delineados de confronto.
Diferentemente da luta contra o capital individual no local da produção, onde os atores
estão bem definidos (de um lado o chefe ou dono da empresa, e do outro, os seus
empregados e sindicatos), o poder do capital “fora” do local de trabalho é
qualitativamente diferente (ibid., p. 84). Ainda assim, para a TRS lutas mais amplas,
inclusive aquelas que emergem “fora” do local e das relações de trabalho, como as
revoltas contra o Estado ou contra a ordem política vigente, devem ser consideradas
como aspectos da luta de classes. Todo o “movimento social e político ‘tendendo’ na
direção de ganhos para a classe trabalhadora como um todo, ou de desafiar o poder do

20 Aqui, o argumento de Bhattacharya se aproxima da realidade denunciada pelas feministas negras


estadunidenses na década de 1960, como a alegação de Francis Beale (2005 [1969]) de que a maioria dos
trabalhadores negros nos EUA permaneciam em condições sub-humanas de trabalho, sem se revoltar, com a
perspectiva de atingir um padrão de vida (e portanto, também de consumo) da classe média branca,
inalcançável às comunidades negras. Pelas limitações de espaço e escopo, a relação entre o feminismo negro
e a TRS, será aprofundada em outro trabalho.

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capital como um todo, deve ser considerado um aspecto da luta de classes” (ibid., p. 85-
86). Assim, lutas por melhores condições de vida, pelo bem-viver, por recursos naturais,
por direitos humanos, por moradia, pelo meio-ambiente, contra as medidas de
austeridade, carga tributária injusta/regressiva e contra a violência policial, por exemplo,
devem ser consideradas aspectos da luta de classes. Esta pode assumir diversas formas
(ibid., p. 86-88).
Tal compreensão nos leva à quinta contribuição fundamental da TRS: a
reconstrução do significado da categoria “classe trabalhadora” ou “proletariado”. Para a
TRS “é essencial reconhecer que os trabalhadores têm uma existência para além do local
de trabalho. O desafio teórico reside, portanto, na compreensão da relação entre essa
existência e a de suas vidas sob o domínio direto do capitalista” (ibid., p. 69), o que
necessita uma investigação que leve em consideração as especificidades da concretude
de cada realidade a ser analisada. Dessa forma, compreender a complexidade da vida sob
o capitalismo depende da percepção e da consciência de que a classe trabalhadora é
produzida através de processos diferenciados. É preciso considerar que, concretamente,
as diversas frações da classe trabalhadora possuem diferentes níveis de acesso a aspectos
básicos para produção e reprodução de sua força de trabalho, o que molda diferentes
subjetividades e diferentes estratégias de resistência no interior dessa classe.
Historicamente, o acesso à infraestrutura básica, aos meios de subsistência e ao trabalho
foi diretamente regulado pelo Estado através das relações de raça, gênero, sexualidade e
classe.
Aqui, vale destacar que o objetivo da TRS é providenciar respostas a questões
concretas como “que tipos de processos permitem que os trabalhadores cheguem
diariamente em seu local de trabalho, prontos para produzir a riqueza da sociedade?”
(BHATTACHARYA, 2017, p. 2). O esforço de responder a tal pergunta, nos leva a uma
compreensão sobre quem compõe a classe trabalhadora global hoje em toda sua diversa
subjetividade, e a uma abordagem mais holística da relação entre exploração,
expropriação, dominação e opressão. Essa reflexão questiona não só que papel a
educação, os espaços de lazer, a segurança, a rede de transportes públicos, a qualidade
do café da manhã ou do sono possuem na reprodução cotidiana dos trabalhadores, mas
também nas consequências das diferenças de acesso a estas condições.
Segundo Bhattacharya (2017b, p. 89), devemos adotar uma concepção ampliada
de classe trabalhadora, para considerar como proletariado “todos os membros da classe

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produtora que tenham participado, durante algum momento de sua vida, da totalidade
da reprodução da sociedade – independentemente de o trabalho ter sido pago ou não
pelo capital”. Isso deve incluir todos aqueles despossuídos dos seus meios de produção e
subsistência, que compõem a força de trabalho ativa (formal e informal, na cidade e no
campo, remunerada ou não), e a superpopulação relativa, incluindo o exército industrial
de reserva. Esta reconsideração restaura um sentido de totalidade social à noção de
classe, e a partir daí reformula a percepção geral da classe trabalhadora sobre a arena da
luta de classes e sobre possíveis laços de solidariedade.
A última contribuição da TRS que quero ressaltar aqui consiste na
reconsideração teórica das relações de opressão exposta no item anterior. Ela oferece
uma chave interpretativa única para analisarmos a interrelação entre as múltiplas
relações sociais que constituem as sociedades capitalistas, na medida em que permite
considerar as relações econômicas e sociais como ontologicamente inseparáveis e
integradas, i.e., como diferentes momentos de uma mesma totalidade social. Assim, "a
participação econômica, o valor do trabalho, a participação social e política e o direito, a
marginalização ou a inclusão cultural, fazem todos parte desta formação social global"
(BANNERJI, 2005, p. 149). Como modos de mediação (MARX, 2011 [1857-1858], p. 177),
as relações sociais de gênero ou raça ajudam a produzir a constante desvalorização e
desumanização de certos grupos sociais e assim garantem a reprodução de formas
entrelaçadas de exploração e expropriação/despossessão; organizam as relações de
trabalho e propriedade; enquadram as formas concretas de competição e acumulação
capitalista; e estabelecem um código cultural para a sociedade como um todo que
compreende formas de consciência e de institucionalização (BANNERJI, 2005, p. 153). O
capitalismo é, então, racializado e generificado, na mesma medida em que gênero e raça
não são mais do que formas através das quais a classe é vivida (DAVIS, 1997). O mesmo
pode ser dito de todas as múltiplas relações de poder social. Estas relações,
historicamente constituídas, formam um todo social complexo, no qual “cada um dos
momentos individuais são essencialmente a totalidade do todo” 21 (MCNALLY, 2017, p.
107). A raça não pode ser desarticulada da classe, do gênero ou da sexualidade, porque
constituem, essencialmente, o mesmo fenômeno.

21 Aqui, McNally parafraseia expressamente a frase de Hegel em A Ciência da Lógica (HEGEL, Science of Logic,
p. 769 apud MCNALLY, 2017, p. 105): “in reproduction life is concrete and is vitality... Each of the individual
moments is essentially the totality of all; their difference constitutes the ideal form determinateness, which
is posited in reproduction as the concrete totality of the whole.”

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Considerações Finais

O presente artigo procurou apresentar as principais características e contribuições da


Teoria da Reprodução Social para a reorganização da proposta prático-teórica do
marxismo no século XXI. No item 1, reconstruí a noção de totalidade social em Marx,
centro de força da proposta elaborada pela TRS. Em seguida, passei à exposição dos
principais elementos da obra de Lise Vogel (2013 [1983]), pioneira em sistematizar uma
proposta de teoria unitária cujo ponto de partida fosse a análise da produção e da
reprodução da força de trabalho. Tal proposta, bem como as críticas que sofreu, constitui
a base para a atual formulação da TRS. No item 3, contextualizei brevemente o período
de crise do marxismo e do giro antiprodutivista que coincidiu com a publicação da
elaboração de Vogel, relegando-a, junto ao feminismo-marxista, ao ostracismo por quase
trinta anos. Tal conjuntura limitou as possibilidades de construção da teoria unitária. No
item 4, apresentei brevemente a proposta teórica da TRS campo de convergência forjado
em reação à conjuntura pós-crise de 2008. Ao final, indiquei seis contribuições
interrelacionadas da TRS que considero fundamentais para recentralizar o debate sobre
classe e sobre o funcionamento do modo de produção capitalista, considerando a
totalidade que conforma as relações de exploração e opressão que constituem esse
sistema.
Por fim, como evidencia a discussão exposta até aqui, ainda que em sua
formulação inicial a perspectiva da reprodução social tenha teorizado apenas a opressão
de gênero, a TRS surge, no século XXI, influenciada pelos feminismos negros, pós-coloniais
e pela teoria Queer. Esta influência, bem como o retorno a Marx, reposiciona o debate
sobre classe e capitalismo, reabrindo condições de possibilidade para a renovação teórica
do marxismo. Isto inclui uma compreensão expandida da produção capitalista, a
reformulação da noção de classe trabalhadora e dos mecanismos materiais que
possibilitariam sua união – sem que suas especificidades de raça, gênero e sexualidade
sejam subsumidas ou hierarquizadas, tanto na teoria quanto na prática. Neste sentido,
acredito que a TRS pode contribuir centralmente para guiar futuras pesquisas empíricas
que possam ampliar o horizonte de compreensão teórica acerca da complexidade da
realidade social no século XXI. Este é um horizonte particularmente importante ao
pensarmos a realidade brasileira hoje (da crise econômica à militarização e ascensão de
Bolsonaro) e o acirramento da crise/contradição reprodutiva social com o avanço do

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autoritarismo em todo o mundo. Ela representa também uma importante possibilidade


de reestabelecimento de um projeto político de solidariedade transversal no interior da
classe trabalhadora, rumo a um horizonte anticapitalista global. Tal projeto fora
recentemente apresentado por Bhattacharya, Arruzza e Fraser (2019) no Manifesto
internacionalista Feminismo para os 99% e tem mobilizado mulheres em todo o mundo.
A construção da teoria unitária, bem como de um movimento internacional de
trabalhadores, unificado e transversal, que consiga dar conta de respeitar as
particularidades, compreendendo a importância destas para o universal a ser construído,
é, necessariamente, uma tarefa inacabada. Mas a TRS torna, novamente, a construção
desta tarefa – pensar e agir em termos universais –, uma alternativa viável.

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DOI: 10.1590/2179-8966/2020/46086| ISSN: 2179-8966
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Sobre a autora

Rhaysa Ruas
Doutoranda em Teoria e Filosofia do Direito no Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD/UERJ). Bolsista da CAPES.
E-mail: rhaysaruas@gmail.com

A autora é a única responsável pela redação do artigo.

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Elementos para uma análise da formação das políticas de bem-


estar na Grã-Bretanha a partir da Teoria da Reprodução Social
Elements for an analysis of welfare policy making in Great Britain through Social
Reproduction Theory

Thiago Romão de Alencar¹


¹ Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
thiagobono@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9179-2469.

Artigo recebido em 13/10/2019 e aceito em 09/03/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Resumo
Esse artigo aborda a relação das políticas sociais britânicas com as contradições de gênero e
raça específicas do sistema capitalista e a maneira como este se desenvolveu naquela
formação social. A partir do arcabouço da Teoria da Reprodução Social, traçamos essa relação
desde a sua gênese, mostrando como a formulação e aplicação dessas políticas no começo
do século XX ajudaram a cristalizar materialmente determinadas relações de gênero e
concepções específicas de cidadania, nação e trabalho assalariado que na prática
consagravam divisões internas à classe trabalhadora como um todo, instituindo papeis sociais
hierarquizados entre os diferentes grupos subalternos.
Palavras-chave: Grã-Bretanha; políticas sociais; Teoria da Reprodução Social

Abstract
This article addresses the relationship of British social policies to the gender and race
contradictions specific to the capitalist system and how it developed in that social formation.
Based on the framework of the Social Reproduction Theory, we trace this relationship from
its genesis, showing how the formulation and implementation of these policies at the
beginning of the 20th century helped to materialize certain gender relations and specific
notions of citizenship, nation, and wage labour that in practice enshrined internal divisions
within the working class as a whole, establishing hierarchical social roles among different
subordinate groups.
Keywords: Great Britain; social policies; Social Reproduction Theory

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Introdução

O pós-Segunda Guerra representa, ainda hoje, um período peculiar e excepcional no interior


da história do modo de produção capitalista. Os altos níveis de produtividade, o boom de uma
sociedade de consumo de massas e a relativa estabilidade social e política que caracterizaram
os trinta anos “gloriosos” do capitalismo nos países centrais sob o que se convencionou
chamar de “Estado de bem-estar social” (BEHRING; BOSCHETTI, 2017) permanecem como um
marco que norteia boa parte das atividades e manifestações da esquerda, principalmente em
uma conjuntura de crise econômica prolongada, austeridade, cortes de gastos sociais e
esvaziamento de políticas públicas, como a que vivemos desde os anos 1980, tanto em países
centrais do capitalismo como em sua periferia.
No entanto, sempre importante lembrar, o estabelecimento dos Estados de bem-
estar social no centro do capitalismo foi resultado dos conflitos de classe em uma conjuntura
específica: na esfera interna, como parte da solução para a crise capitalista e como resposta
à organização da classe trabalhadora desde os anos 1930, no contexto da crise de 1929 e da
resistência ao nazifascismo; na esfera externa, como contraponto ao avanço político-
ideológico dos soviéticos, acompanhando o movimento mais geral das metamorfoses por que
passava a forma-Estado na Europa ocidental do pós-Segunda Guerra. O boom do capitalismo
central nos trinta anos seguintes deveu muito a esse rearranjo político ancorado nas políticas
macroeconômicas e nas medidas anticíclicas inspiradas na teoria do economista inglês John
M. Keynes.
A defesa do pleno emprego e a extensão da previdência e do bem-estar através de
políticas sociais eram vistas como essenciais para a manutenção da coesão social, e tal visão
foi consagrada no relatório parlamentar do economista inglês William Beveridge, de 1942,
cuja conclusão foi a necessidade de maior intervenção do Estado em áreas sociais para salvar
a economia britânica no período de guerra e após o fim desta (PEREIRA, 2011). De acordo
com o chamado “relatório Beveridge”, as novas políticas estatais de habitação, educação,
emprego, saúde e assistência social deveriam ter por objetivo combater a “ignorância, a
sujeira, a enfermidade, a preguiça e a miséria” (idem, p. 93) ao abarcar todos os cidadãos, e

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não apenas os mais necessitados, universalizando, racionalizando e reformando um conjunto


de políticas estabelecido desde a primeira década do século XX. Coube aos trabalhistas
recém-eleitos em 1945 implementarem tais medidas: em 1946 foi editada a Lei Nacional de
Seguro, seguida da Lei Nacional de Assistência, em 1948, reunindo no mesmo ministério a
nova regulamentação e concessão do auxílio-doença e desemprego, pensão aos aposentados
(aos 65 anos para homens e 60 para mulheres), auxílio-maternidade, viuvez e funeral que,
aliados ao NHS1 e às políticas de emprego, educação e habitação desenvolvidas, deram novo
sentido ao funcionamento do esquema de Seguridade Social.
No entanto, tal modelo na verdade se constituiu de contradições que por muito
tempo permaneceram ignoradas pelas análises dessa quadra histórica, apesar de
representarem aspectos fundantes e estruturantes do sistema capitalista. O estudo da
formação das políticas sociais no período anterior à Primeira Guerra traz à luz tais
especificidades. Neste artigo buscaremos, a partir da Teoria da Reprodução Social, trazer para
o centro do debate a relação entre essas contradições, a formação das políticas sociais e a
lógica histórica da acumulação capitalista, mostrando, dessa forma, como o fenômeno do
bem-estar social no pós-1945 se sustentou em exclusões e definições específicas de cidadania
e de trabalho produtivo que passaram pela ampliação e consolidação das políticas sociais em
moldes keynesianos.

A Teoria da Reprodução Social e o desenvolvimento das relações capitalistas2

Ao analisarmos as particularidades das políticas sociais e do seguro social britânico


desenvolvidos no começo do século XX, salta aos olhos como essas políticas se alicerçaram a
partir das opressões de gênero e raça características do capitalismo, geradoras de tensões e
hierarquias no interior da classe trabalhadora que, em última instância, beneficiam o capital
e seus detentores (mas não apenas eles, como veremos) de diversas formas. Neste sentido,
a ideia de reprodução social torna-se central para o desvelamento do sentido de tais tensões.

1NationalHealth Service, o Serviço Nacional de Saúde britânico.


2 Agradeço àRhaysa Sampaio Ruas da Fonseca pelos importantes debates e ricos ensinamentos sobre essa teoria,
isentando-a de qualquer equívoco teórico presente neste artigo. Para mais, cf. FONSECA, 2019.

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Uma definição clara e simples do que é a reprodução social pode ser encontrada no trabalho
Laslett e Brenner (1989, p. 382-383, tradução nossa): segundo as autoras,
feministas utilizam “reprodução social” para se referirem às atividades e atitudes,
comportamentos e emoções, responsabilidades e relacionamentos diretamente
envolvidos na manutenção da vida diariamente e “inter-geracionalmente”. (…)
Reprodução social deve então ser vista como incluindo vários tipos de trabalho –
mental, manual e emocional – no sentido de prover o tipo de cuidado definido
historicamente, socialmente e biologicamente, necessário para manter a vida
existente e reproduzir a próxima geração. E a organização da reprodução social
se refere a uma variedade de instituições no interior das quais esse trabalho [de
reprodução social] é realizado, as estratégias variáveis para cumprir tais tarefas,
e as diferentes ideologias que moldam e ao mesmo tempo são moldadas por ele.

O trabalho de reprodução social, realizado essencialmente por mulheres, é


fundamental e indispensável para a economia capitalista ao reabastecer o mercado com sua
energia vital e fonte de suas riquezas, a força de trabalho, seja renovando as gerações de
indivíduos que um dia serão trabalhadores, seja recarregando a energia psicofísica e
mantendo o padrão de vida dos trabalhadores já existentes para um novo dia de trabalho.
Mas, como bem identifica Fraser (2017, p. 22, tradução nossa), a existência do trabalho de
reprodução social – e sua relação com os impulsos da economia capitalista – não se dá sem
contradições:
qualquer forma de sociedade capitalista possui, de maneira profundamente
arraigada, uma “tendência de crise” ou “contradição” reprodutiva-social. Por um
lado, a reprodução social é a condição da possibilidade de acumulação sustentada
de capital; por outro, a orientação do capitalismo para a acumulação ilimitada
tende a desestabilizar o próprio processo de reprodução social no qual ela se
apoia.

Assim, um dos grandes problemas históricos e políticos com que a Teoria da


Reprodução Social (TRS) se defronta são as diversas formas em que tal contradição
reprodutiva-social se materializou a partir das disputas entre capital e trabalho 3 em suas
diversas frações em diferentes contextos, além de prestar especial atenção em como as
forças sociais em confronto lidaram com as modificações demandadas pelo capitalismo e sua

3 “Trabalho” entendido aqui como qualquer atividade que contribua direta ou indiretamente para a acumulação
capitalista – definição que, ao incluir o trabalho reprodutivo descrito anteriormente, amplia de sobremaneira a
ideia de “classe trabalhadora” para além do assalariamento direto. Para uma importante e fundamental discussão
sobre tal ampliação,cf. Bhattacharya (org.), 2017, obra que lançou as bases teóricas da TRS.

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relação com o trabalho de reprodução. Vejamos como isso se deu na prática, tomando por
norte as sociedades do centro do capitalismo.
Na economia pré-industrial, cuja produção era basicamente doméstica, “lar e
comércio, reprodução social e produção, homens e mulheres, crianças e adultos, se
localizavam no mesmo mundo de experiência cotidiana” (LASLETT; BRENNER, 1989, p. 386,
tradução nossa). O avançar e a disseminação da Revolução Industrial aprofundou a retirada,
dos trabalhadores, dos seus meios de produção e subsistência, ao mesmo tempo em que,
consequentemente, lhes roubou o controle sobre o próprio processo de trabalho, agora
confinado entre as paredes das modernas fábricas e regulado pelo relógio do pátio em seu
novo ambiente de trabalho. Como afirmam Laslett e Brenner (1989, p. 389, tradução nossa),
“ao perder o controle sobre a propriedade produtiva e sobre o processo de trabalho para os
seus patrões capitalistas, as famílias perderam sua capacidade de coordenar tarefas
produtivas e reprodutivas”. A perda de tal capacidade significou a separação irrevogável entre
o trabalho de reprodução social e o que passou a ser conhecido como “trabalho produtivo”,
realizado de forma independente deste nas fábricas e minas. Ao mesmo tempo, a
preservação e a reprodução da força de trabalho cada vez mais se vinculava às relações de
mercado e se tornava ainda mais mediada pela forma-salário.
Essa separação tornou mais visível ainda as contradições que se instalariam entre o
que consideramos aqui a esfera doméstica e a esfera industrial da produção capitalista.
Comparando as sociedades industriais com suas predecessoras, E. P. Thompson (1998, p.
300), em um importante artigo, concluiu que “sociedades industriais maduras de todos os
tipos são marcadas pela administração do tempo e por uma clara demarcação entre o
‘trabalho’ e a ‘vida’”. Neste processo, a esfera da “vida” passou a ser identificada de forma
isolada, como uma esfera particular e privada localizada no lar, apartada da esfera pública do
trabalho remunerado. A reestruturação dessas esferas, ocorrida ao longo do século XIX,
correspondeu igualmente a uma reorganização da relação entre os gêneros. Como explica
Fraser (2017, p. 23, tradução nossa), “isolando o trabalho reprodutivo do universo maior das
atividades humanas, onde o trabalho das mulheres possuía anteriormente um lugar
reconhecido, relegou-se este a uma ‘esfera doméstica’ recentemente estabelecida, onde sua
importância social foi obscurecida”.

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No entanto, em um contexto em que trabalhar significava longas e exaustivas sob


condições insalubres vastamente documentadas e salários baixíssimos onde, em um primeiro
momento, mulheres e crianças eram inclusive preferidas por seu trabalho tratado como mais
barato e por sua pretensa docilidade, os imperativos de produção e de reprodução social
entraram em contradição direta, posto que a exploração sobre crianças e mulheres resultou
numa
crise em ao menos dois níveis: uma crise de reprodução social entre os pobres e
as classes trabalhadoras, cujas capacidades de sustento e recuperação foram
exploradas até um ponto de ruptura, e um pânico moral entre as classes médias,
que se escandalizaram com o que entenderam como a “destruição da família” ou
a “dessexualização” da mulher proletária (FRASER, 2017, p. 23, tradução nossa).

A solução para tal problema, que ameaçava esgarçar o tecido social ultrapassando
limites incontornáveis, foi a criação de legislações específicas sobre o trabalho infantil e o
feminino, para assim “estabilizar a reprodução social” (ibid., p. 27, tradução nossa), limitando
o trabalho fabril de mulheres e crianças. Vosko (2010) mostra como, ao longo do século XIX,
os países centrais do capitalismo, sob a justificativa de “proteção” da mão-de-obra feminina,
impuseram limitações legais com relação ao trabalho noturno e ao manejo de substâncias
nocivas à sua saúde, além de estabelecerem salários mínimos menores para indústrias
predominantemente femininas e instituírem proteções à maternidade, regulando de forma
incisiva o trabalho fabril das mulheres. No entanto, como aponta a autora, os argumentos da
maioria dos grupos em prol dessa legislação
enfatizavam os deveres maternos de proteger aqueles por nascer e cumprir com
suas obrigações domésticas, a “preservação da nação”, e uma suposta aptidão
física e moral menor para tomar parte em certas formas de emprego e ocupação.
Em muitos casos, tais proteções não se aplicavam a categorias de trabalho
consideradas aceitáveis para mulheres, percebidas ou como intermitentes,
realizadas na esfera doméstica, ou como relacionadas ao trabalho de cuidado,
como no caso das empregadas domésticas, trabalhadoras rurais, trabalhadoras
casuais, trabalhadoras da família e trabalhadoras em pequenos locais de trabalho,
como garçonetes e enfermeiras (VOSKO, 2010, pp. 27-28, tradução nossa).

Com a limitação e em muitos casos proibição de seu trabalho, vivendo em uma


sociedade onde o assalariamento era cada vez mais a única garantia de acesso à subsistência,
as mulheres sofreram um rebaixamento de seu papel econômico e político e de sua cidadania
ao terem sua atuação relegada à esfera doméstica (fosse recebendo salários ou não),

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tornando-se assim dependentes dos homens, economica e politicamente. Ao mesmo tempo,


ganhou força nesse contexto uma espécie de culto à maternidade e à domesticidade na
Inglaterra vitoriana, que reforçava a dependência feminina com relação aos homens e a sua
exclusão do trabalho fora do lar ao exaltar a maternidade e o cuidado do lar enquanto única
função da mulher, dessa forma disciplinando e recriando, à imagem e semelhança das classes
altas, os lares da classe trabalhadora de forma específica.
Dorothy Thompson (2015) mostrou como essas ideias se expandiram para a própria
classe trabalhadora. Em seus estudos sobre o cartismo inglês, a autora mostrou as
contradições desse histórico movimento da classe trabalhadora com relação à essas
modificações: segundo a autora, ao mesmo tempo em que muitas das vezes as lutas das
mulheres cartistas se limitavam a apoiar as demandas políticas dos homens trabalhadores ou
em insistir nos direitos e necessidades femininas enquanto componentes das famílias
operárias – onde o lema “Não ao trabalho das mulheres a não ser no lar ou na sala de aula”
(THOMPSON, 2015, p. 44, tradução nossa) era comum –, sua participação na esfera pública
era fundamental para o desenrolar do movimento em suas fases iniciais, seja participando
dos protestos e enfrentamentos com as forças repressoras, seja organizando as reuniões
comunitárias que levariam a tais protestos. No entanto, “as manifestações da política de
massa foram abandonadas em favor de tipos de organização mais ‘modernos’, como a
Associação Nacional dos Cartistas”, e
apesar de haver evidências da participação de muitas mulheres nessa
organização, no geral este tipo de estrutura, que iria se tornar mais usual à
medida que o movimento trabalhista moderno se desenvolvia, tinha menos
espaço para as trabalhadoras não-assalariadas, os imigrantes e os trabalhadores
não-qualificados no interior da classe trabalhadora. Mudanças nos padrões de
trabalho que também ocorreram nesses anos tenderam a retirar o trabalho dos
lares e das pequenas oficinas, afastando-o da produção familiar. Tais fatores
aparentemente reduziram a participação ativa das mulheres na política popular
que, como tantos outros aspectos da vida pública na Grã-Bretanha, se tornou
amplamente ‘masculinizada’ durante a segunda metade do século XIX (ibid., p.
46, tradução nossa).

Essa “masculinização da vida pública” sofreu forte impulso da ideologia utilitarista


e do impulso conformista do evangelismo cristão. O século XIX na Grã-Bretanha, conhecido
como o século das reformas (HALL, 1998), viu no utilitarismo e na sua ênfase no cálculo
racional enquanto forma mais adequada de se desenvolver as instituições sociais e melhorar

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as condições de felicidade do maior número possível de cidadãos, uma saída adequada para
os temores que a revolução industrial e a nascente “questão social” traziam. E para seus
adeptos entre boa parte das classes médias aburguesadas e da gentry vitoriana, um tipo
específico de família – formado por um homem que trabalhasse e sustentasse seus
dependentes, dentre os quais a mulher cuidadora da casa e dos filhos – era a pedra
fundamental para uma sociedade reformada e socialmente estável. Desta forma, ganhava
força a ideia do modelo homem-provedor/mulher dona de casa, a partir do qual “um elo foi
criado entre o lar privado separado do local de trabalho, uma mãe cuidando do marido e dos
filhos, um homem trabalhador e uma nação sadia” (idem, p. 20, tradução nossa).
Trazer a questão da nação para o centro do debate é essencial para o desenrolar da
discussão que viemos travando até aqui. Se o século XIX na Grã-Bretanha é o século das
reformas, ele é também, a partir da segunda metade, o século da expansão imperialista e da
consolidação do discurso racista e racializante em bases supostamente científicas sustentadas
pela biologia da época (LEWIS, 1998).4 Tal discurso se expandiu para diversas áreas de
conhecimento, tornando-se a principal lente de estudo, compreensão e interpretação da
realidade social, influenciando diretamente a consolidação e auto-representação desse
Estado nacional imperial britânico. Como explica Hall (1998, p. 15, tradução nossa), “a
linguagem da hierarquia racial e étnica se tornou uma maneira de diferenciar os Ingleses dos
‘outros’, fossem eles irlandeses católicos em Liverpool ou Birmingham, judeus em Londres,
indivíduos escravizados das Índias Ocidentais ou livres depois da emancipação, ou ‘hindus’
indianos”. Tal distinção e hierarquização em bases raciais valia tanto para o interior das ilhas
britânicas – onde o branco inglês anglo-saxão protestante assumia lugar de domínio sobre os

4Importante fazer a ressalva de que o termo “raça” e seus derivados serão usados nesse artigo com um sentido
específico e determinado, de construção social que se impõe aos indivíduos, que passama ser lidos sob esta ótica,
ou seja, que se tornam racializados. Conforme explica Banerji (2005, p. 148-149, tradução nossa), “o fenômeno
social a que me refiro como ‘raça’ não é uma distinção biológica que na realidade seja herdada pelas próprias
pessoas. É uma forma, e uma forma de poder inscrito, de ler ou estabelecer diferenças e encontrar formas
duradouras de reproduzir tais leituras, organização e prática. No geral é a isto que as pessoas sinalizam quando
dizem que "raça" é uma construção. A inexistência da ‘raça’ como uma entidade física tem sido observada por
darwinistas críticos (...), [buscando evitar] o perigo de o termo ser considerado como um fato real da natureza.
‘Raça’, portanto, é uma organização social ativa, uma constelação de práticas motivadas, consciente e
inconscientemente, por imperativos políticos ou de poder com formas culturais implícitas – imagens, símbolos,
metáforas, normas que vão desde o cotidiano até o institucional.”

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irlandeses celtas católicos e os galeses, por exemplo – como para o exterior, na ampla gama
de povos e etnias subjugados pelo império britânico. A partir de tal visão de mundo, as
práticas de melhoria da nação a partir da reformulação do lar e da família eram formuladas e
levadas a cabo, tomando “a particular forma de construção de uma fronteira a partir das
noções de diferença racial e/ou étnica” (idem, p. 29, tradução nossa).
Os paralelos entre a biologia e os estudos sociais faziam com que as propostas de
reforma legislativa do mundo do trabalho tivessem por intuito promover uma espécie de cura
do corpo social da nação. O caso dos irlandeses é explícito quanto a isso: vistos como raça
inferior e indesejável, parasitas que contaminavam o outrora saudável tecido inglês,
tornaram-se bode expiatório das primeiras políticas higienistas britânicas, que se limitavam a
tratar graves problemas sociais decorrentes da industrialização e urbanização desordenada a
que tal povo estava submetido como problemas morais inerentes a “raça celta”. De acordo
com esta visão, seria a pretensa imoralidade e o barbarismo dos irlandeses5 a grande causa
de sua pobreza e de suas doenças, como no caso do surto de cólera ocorrido em Manchester
– berço da Revolução Industrial e da imigração irlandesa – na década de 1830. Portanto, a
inadequação do lar e das famílias operárias frente ao modelo pretendido pelas classes
dominantes não era lida em termos de classe pura e simplesmente, mas em termos étnicos
cada vez mais racializados, construindo uma fronteira interna entre os nacionais anglo-saxões
e os celtas de fora, definindo os contornos simbólicos da nacionalidade inglesa ao mesmo
tempo em que reforçava a branquitude desse povo a partir dessas hierarquias, posto que
enquanto pregava-se reforma social para os nacionais com vistas a recuperar sua essência
inata e curá-los do “mal irlandês”, determinava-se que o problema que tal reforma buscava
curar tinha sua causa na presença de elementos de fora que deveriam ser excluídos – no caso,
os irlandeses. Criou-se dessa forma um potente nexo entre reforma social/reforma nacional,
lar/nação, mediado por redefinições de gênero e raça que atuavam diretamente na
consolidação de fronteiras tanto do lar como do próprio Estado-nação, o que em

5 Vistos como imorais justamente porque não se adaptavam às demandas que o ritmo industrial e o modelo de
família proposto por utilitaristas e evangélicos vitorianos exigiam. Quanto à ideia do seu barbarismo, esta se
relacionava ao fato deles não terem “acesso aos prazeres da ‘civilização’, que na mente dos economistas políticos
eram as mercadorias com que uma casa poderia ser mobiliada de forma apropriada, com uma dieta alimentar
nutritiva e variada, e o uso de roupas decentes. A ideia de ‘Civilização’ encorajava desejos que eram artificiais, e
era isso que distinguia o homem de uma fera selvagem. A barbárie nada mais era do que a vida sem as
mercadorias” (HALL, 1998, p. 33, tradução nossa).

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contrapartida teve consequências concretas para os acessos aos bens que propiciavam uma
ampliação da cidadania desses indivíduos, conforme veremos a partir da próxima seção.

A grande transformação: interiorização da fronteira do Estado e surgimento das modernas


políticas sociais

O problema de queda de natalidade entre as classes mais altas e aumento da mortalidade


infantil entre os trabalhadores assumiu importância nacional e virou problema de Estado nos
fins do século XIX (HALL, 1998; DAVIN, 1989). Se para Malthus, na primeira metade deste
século, a relação de desequilíbrio estabelecida entre o aumento populacional – em
progressão geométrica – a produção e oferta de alimentos e meios de subsistência – em
progressão aritmética – o fazia bradar por controle de natalidade baseando-se em
argumentos abertamente racistas e classistas envolvidos em um discurso religioso e moralista
radical, na segunda metade do mesmo século, tal aumento tornara-se objetivo de Estado. O
que trouxe tal mudança de atitude? O império, e a necessidade de habitá-lo: “era um dever,
um dos mais nobres deveres, ajudar a aumentar a raça inglesa tanto quanto possível”
(KINGSLEY, 1858 apud DAVIN, 1989, p. 203, tradução nossa). A visão imperial voltada para
esse problema específico advogava que as crianças e os recém-nascidos pertenciam “não
apenas aos pais, mas à comunidade nacional como um todo” (CADBURY, 1906 apud DAVIN,
1989, p. 204, tradução nossa), eram um “recurso nacional” (idem), e deles dependiam a saúde
e o desenvolvimento sadio do país e do Império, afinal de contas, eles eram os cidadãos do
futuro.
Os males sociais agora atingiam de frente os ingleses, escapando à fronteira traçada
contra os irlandeses e outros estrangeiros, e novamente uma onda de controle moral se
espalhou nos escalões do Estado, motivando diversas medidas de cunho disciplinador com
relação ao modo de vida dos trabalhadores. Os primeiros resultados apareceram logo no
início do novo século: legislações com relação ao treinamento das parteiras (1902),
fornecimento de refeição escolar para crianças carentes (1906) e depois inspeção médica
(1907), além da institucionalização do registro de nascimentos (nacional a partir de 1907,

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antes de caráter municipal), foram reunidas em legislação nacional no Children Act de 1908
(DAVIN, 1989).
O temor de uma “degeneração física da raça inglesa” – como era referido o
problema – gerou debates, relatórios e inquéritos parlamentares, e todos eles chegaram à
mesma conclusão: a queda de qualidade na “oferta de mão-de-obra e de soldados” para a
nação era causada pela situação de penúria da classe trabalhadora, mas principalmente pela
ignorância das mães dessa classe ao cuidarem do seu lar e criarem seus filhos (idem).
Chegava-se assim a um novo estágio na rota de disciplinamento e produção de novas
subjetividades no interior do lar operário. Uma gama de iniciativas buscou intervir nesse
quadro, desde o desenvolvimento da Educação Física nas escolas, aulas de higiene alimentar,
asseio e culinária para as colegiais e também para mulheres trabalhadoras, até a recusa de
licenças de casamento para casais considerados degenerados ou inaptos fisicamente para o
matrimônio e para a reprodução geracional de acordo com a ideologia dominante da época,
permeada de eugenismo (alcóolatras, tuberculosos, mendigos, e também os cronicamente
desempregados).
Nesse contexto, associações ideológicas e materiais entre classe, gênero e raça
ganharam corpo e espírito nas políticas públicas que caracterizaram o período. A associação
mais comum era aquela que igualava as classes trabalhadoras, o gênero feminino e os
africanos colonizados. A preocupação com relação à degeneração da raça inglesa, era lida de
forma ainda mais explícita nesses termos. Como sintetiza McClintock (2010, p. 76),
por volta da segunda metade do século XIX, a analogia entre degeneração de raça
e de gênero passou a exercer uma forma especificamente moderna de dominação
social, com o surgimento de uma intrincada dialética – entre a domesticação das
colônias e a racialização da metrópole. Na metrópole, a ideia do desvio racial era
evocada para policiar as classes "degeneradas" – a classe trabalhadora militante,
os irlandeses, os judeus, as feministas, os gays e as lésbicas, as prostitutas, os
criminosos, os alcoólatras e os loucos –, que eram vistas coletivamente como
desviantes raciais, atávicos em regressão a um momento primitivo na pré-história
humana.

Para tornar inteligível a hierarquização racial que cada vez mais definia o mercado
de trabalho e a forma de vida dos trabalhadores e trabalhadoras da Inglaterra vitoriana, criou-
se a complexa figura do “negro branco”. Essa analogia servia para se referir àqueles grupos
sociais cujo lar não se adequava aos modelos das classes dominantes e cuja raça se desviava

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da essência inglesa6: irlandeses, prostitutas, a classe trabalhadora com mulheres trabalhando


fora do lar. Analisando a iconografia do que os contemporâneos chamavam de “degeneração
doméstica”, McClintock (idem, p. 93) mostra como, em charges e caricaturas da época,
“estigmas raciais foram usados sistematicamente, ainda que muitas vezes
contraditoriamente, para elaborar mínimas nuanças de diferenças em que as hierarquias
sociais de raça, classe e gênero se sobrepunham num gráfico tridimensional de comparação”,
lançando mão de desenhos com caracteres simiescos nas fisionomias: lábios exagerados,
testas baixas, cabelo desleixado, entre outras características, associando estas com os
habitantes dos lares que guardavam qualquer dessemelhança com o modelo dominante
proposto. Para muitos investigadores sociais e inspetores governamentais, por exemplo, as
favelas em Londres se assemelhavam a navios negreiros. As reportagens sobre as descobertas
da Comissão de Emprego de Crianças se referiam sempre às “expedições” dos fiscais do
governo enquanto “viagens a um remoto país bárbaro” (idem, p. 179), com referências a
descobrimentos e conquistas no interior do império. Tal analogia servia para difundir a ideia
de que os cortiços, habitação primordial das classes trabalhadoras pauperizadas nos grandes
centros urbanos ingleses, eram habitados por indivíduos com as mesmas características dos
que eram colonizados no além-mar: como habitantes, sem capacidade ou racionalidade, de
um espaço de atraso e pré-história no interior da modernidade industrial metropolitana, o
que permitia o disciplinamento, a vigilância, a despossessão, a invasão dessas áreas e a
reconfiguração de suas características e de seu modo de funcionamento interno, uma espécie
de colonização no interior da própria Londres e de seus cortiços, onde o papel da mulher no
lar e na família recebia atenção primordial para o desenvolvimento da nação.
Foi, portanto, nesse arcabouço – que vinculava racismo, culto à domesticidade,
controle da reprodução social e desenvolvimento do Estado-nação – que as leis e reformas
sociais que ganharam força começo do século XX estiveram sustentadas. Tudo era pensado e
feito com intuitos específicos: desenvolver a raça inglesa, mantendo sua superioridade com
relação às outras, através de projetos e medidas que, ao mesmo tempo em que melhoravam
as condições de vida dos trabalhadores e de seus filhos no lar – os futuros cidadãos – para

6Aqui, a função da mulher e o seu comportamento no interior do lar era fundamental para esse julgamento.

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que fossem bons trabalhadores e bons defensores do império7, incentivavam e reforçavam


esse modelo de um homem-provedor/mulher dona-de-casa, apropriado apenas para os lares
ingleses.
O complemento fundamental dessa visão, que firmou tais desigualdades em bases
materiais, foi o surgimento e a consolidação do chamado “salário-família”, um salário
suficiente para garantir os custos de subsistência do trabalhador inglês e de seus dependentes
não-assalariados – esposa e filhos. Os exemplos de políticas sociais das primeiras décadas do
século XX possuem, como ideologia explícita ou implícita, a ideia do salário-família e das
relações desiguais complementares entre homens e mulheres – no lar e fora dele – que o
salário-família cristalizava. É o salário-família que regula a reprodução social em boa parte do
século XX no Norte Global, consagrando a divisão generificada das esferas doméstica e
industrial da produção capitalista. Neste longo processo de separação, hierarquização de
gênero e nova regulação da reprodução social em moldes nitidamente racializados, como já
explicamos, o papel normativo do Estado-nação imperial redefiniu as fronteiras das
instituições privadas – como a própria família e o lar – e públicas envolvidas no trabalho
reprodutivo, cada uma com suas particularidades e em relação direta entre si, pois como
ressalta Picchio (1996, p. 94, tradução nossa),
quando o Estado assume responsabilidades diretas em relação à reprodução,
nunca pretende substituir o trabalho doméstico, mas apenas complementá-lo. As
obrigações domésticas da mulher são sempre tacitamente aceitas na formulação
de políticas sociais. Os serviços de saúde e as escolas não poderiam funcionar se
não fossem sustentados por muito trabalho doméstico dentro da família.

Os posicionamentos do movimento trabalhista britânico frente a tais questões


trariam à tona as diversas e instáveis mediações que sustentavam as desigualdades de gênero
naquele contexto. Já em 1909, o TUC 8 e o Partido Trabalhista – fundado em 1900 – debateram
resoluções proibindo mulheres casadas de aceitarem trabalho remunerado sob a justificativa
de que elas estariam roubando empregos dos homens, e por consequência tornando-se mais
negligentes com relação aos seus deveres domésticos enquanto mãe e esposa (LAND 1980;

7Davin (1989) alerta para o fato de que, na maioria dos projetos de leis referentes a essas questões, partia-se do
pressuposto de que os recém-nascidos a quem essas políticas seriam voltadas eram todos do sexo masculino,
futuros cidadãos que guardariam a “virilidade” do Império. O “estoque racial” deveria ser melhorado, e dentro
dessa melhora incluía-se a “demanda” por mais indivíduos do sexo masculino.
8Trade Union Congress, principal central sindical britânica.

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PEDERSEN, 1989). Além disso, para as mesmas instituições, uma esposa trabalhando e sendo
paga por isso também acabaria por encorajar seu marido ao ócio, pois reduziria o impulso
masculino em procurar trabalho para sustentar sua família ou buscar melhorias salariais,
ameaçando, dessa forma, a própria instituição do casamento ao eliminar a dependência
econômica das mulheres com relação a seus maridos. Um trabalhador independente
garantindo a subsistência de si próprio e de sua família com a ajuda de seu sindicato, a partir
de seu próprio suor: esse era o ideal de “respeitabilidade” que inspirava os homens do
movimento trabalhista britânico.9 Como se vê, o ideal do salário-família e tudo o que ele
representava tinha valiosos defensores nas fileiras do movimento trabalhista, e o
questionamento desse ideal equivalia a atacar as próprias bases da masculinidade dos
trabalhadores. Como conclui Pedersen (idem, p. 99, tradução nossa), “a construção da
identidade masculina enquanto detentora natural de direitos econômicos sobre mulheres e
crianças foi uma das conquistas mais poderosas do movimento trabalhista, que
compreensivelmente a protegia com zelo”. Tal zelo acabava por reforçar a ideia de separação
de esferas por gênero tão cara ao capitalismo, como explicamos no ponto anterior.
Ao mesmo tempo, a visão do homem-provedor, hegemônica no movimento
trabalhista, possuía respaldo na ciência social da época. Na virada para o século XX, as
pesquisas sociológicas de Charles Booth (1902) e Seebohm Rowntree (1901; 1941) marcaram
época ao servirem de suporte científico para a construção das políticas sociais em torno do
salário-família, constituindo-se numa “representação da economia familiar da classe
trabalhadora que normalizava o modelo do homem-provedor, alçado agora ao nível de
‘verdade’ científica e aceito como única base razoável para a elaboração de políticas”
(PEDERSEN, 1989, p. 93, tradução nossa). Um dos apontamentos de Rowntree a partir dos

9 A relação do movimento trabalhista com os esquemas estatais de bem-estar social em seus primórdios não foi
unívoca, e na verdade reuniu diversos debates que, por falta de espaço e fuga do escopo deste artigo, não
abordaremos. Basta aqui mencionar que, para muitas sociedades de auxílio mútuo – que na virada do século XIX
para o XX possuíam mais membros do que os sindicatos –, era moralmente adequado e politicamente preferível
manter seus esquemas particulares e contributivos (e a independência que estes traziam) frente à “capitulação”
aos esquemas controlados por um Estado que, àquela altura, ainda não lhes garantia nem direito ao voto e que,
ainda assim, requisitava contribuições pecuniárias dos trabalhadores. Naquela correlação de forças, tais
sociedades defendiam o aumento de salários, que garantiria controle total dos trabalhadores das quantias e do
destino de suas contribuições e manteria sua independência de classe. Mas tais reivindicações, como estamos
argumentando, se mantinham no interior do arcabouço do modelo do homem-provedor e tinham por pilar a
reivindicação do salário-família. Para um relato mais detalhado de tais posicionamentos, ver a importante obra de
Thane (1996).

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estudos realizados no condado de York, no norte inglês (1941 apud LAND, 1980), foi de que
o salário dos homens representava 70% da renda familiar dos trabalhadores em um lar padrão
com cinco integrantes, o que significava a admissão de que as mulheres deveriam prover, à
sua maneira – e sem afetar suas tarefas prioritárias no lar –, os 30% restantes. Geralmente,
essa renda complementar feminina vinha através de trabalho fora de casa envolvendo
atividades de reprodução social que as mulheres já realizavam no lar, trabalhando como
faxineira, passadeira, babá, lavadeira ou cozinheira nos lares da classe média e da burguesia
vitoriana, como aponta Land (1980). No entanto, em um contexto em que o ideário do
homem-provedor cada vez mais se solidificava, a argumentação de Rowntree ia no sentido
da reivindicação do aumento dos salários masculinos, de modo que o trabalho assalariado
feminino fora do lar não fosse necessário. Nos casos em que não houvesse um homem na
família capaz desse provimento, Rowntree defendia a pensão para viúvas, para filhos de pais
inválidos e subsídio complementar para famílias com mais de cinco integrantes (a partir do
quarto filho).
As propostas de Rowntree serviram de base para as políticas institucionalizadas a
partir da primeira década do século XX, o que contribuiu para “deixar intocadas – na verdade,
agora codificadas – as duas condições que as feministas explicitamente combatiam: a
desigualdade salarial e a determinação das vidas das mulheres pelas mãos masculinas”
(PEDERSEN, 1989, p. 94, tradução nossa). Por outro lado, o apoio a essa configuração da
relação entre os gêneros, mediada pela forma específica que as políticas sociais tomaram e
pelos acordos coletivos buscados pelos sindicatos através do argumento do salário-família,
acabava por impor um limite às demandas salariais da classe trabalhadora como um todo,
rebaixando assim o nível de subsistência geral ao impedir que mulheres ganhassem salários
no mesmo nível que os homens e que lutassem a seu lado por amplas melhorias em suas
condições de existência. Sem falar na exclusão desse modelo do homem-provedor dos
trabalhadores não-ingleses, cujas condições de vida eram precarizadas, algo que, no conjunto
da classe trabalhadora, tinha o mesmo efeito que os baixos salários femininos. Tais
contradições surgiam e beneficiavam prioritariamente a burguesia, relação já apontada por
Marx (2014, pp. 275-276, grifos nossos) em um de seus pronunciamentos sobre a “Irlanda e
a classe trabalhadora inglesa” na I Internacional, em 1864:

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ao rebaixar ainda mais a classe trabalhadora por meio da imigração forçada da


população irlandesa pobre, a burguesia inglesa não apenas explorou a pobreza
irlandesa, mas também dividiu o proletariado em dois campos hostis. (...) em
todos os grandes centros industriais da Inglaterra há um profundo antagonismo
entre os proletários irlandeses e os ingleses. O trabalhador inglês comum odeia o
trabalhador irlandês como um concorrente que rebaixa seu salário e seu padrão
de vida; também alimenta contra ele antipatias nacionais e religiosas. (...) Esse
antagonismo entre os dois grupos de proletários no interior da própria Inglaterra
é artificialmente mantido e alimentado pela burguesia, que sabe muito bem que
essa cisão é o verdadeiro segredo da preservação de seu próprio poder.

Família, nação e trabalho nas políticas públicas britânicas

Como já ficou claro, a história das políticas sociais no Reino Unido não começou no pós-1945
e seguiu, na verdade, a evolução e as necessidades do regime capitalista naquela nação, além
de responder, de forma mediada, às demandas da classe trabalhadora organizada. O período
de 1870 a 1920 assistiu a mudanças significativas no sistema capitalista, com a intensificação
da competição internacional, a maximização da produção e da eficiência, o aumento dos
investimentos e da mecanização. Ao mesmo tempo em que esse processo ocorria, no Norte
global surgiram também os primeiros esquemas de bem-estar a cargo do Estado, tentativas
de implementação de educação e saúde públicas, mas também seguridade social e
provimentos de maternidade. As políticas de bem-estar introduzidas no Reino Unido na
primeira década do século XX, a partir do liberal National Insurance Act de 1911 – que reunia
aposentadorias, um incipiente seguro de saúde nacional, refeições escolares, supervisão de
pessoas portadoras de problemas de saúde mental, bem-estar de mães e crianças e habitação
pública em um único fundo orçamentário – eram parte das tentativas do Estado de disciplinar,
supervisionar e controlar uma classe trabalhadora cada vez mais militante, desde 1900
organizada no Partido Trabalhista, tomando para si a gerência do regime de reprodução social
que se estabelecia (THANE, 1996).
O desenvolvimento de benefícios de maternidade e serviços de bem-estar infantil a
partir de 1911 atendeu necessidades genuínas da classe trabalhadora, mas, ao mesmo tempo,
serviu para reforçar o lar como o lugar da mulher, já que seus salários continuavam muito
abaixo ao do nível dos homens, isso quando elas conseguiam de fato trabalhar. Além disso,
tais políticas deram um novo status à maternidade, posto que a intenção principal dessas

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medidas era “resguardar” – ou, melhor dizendo, limitar – o papel das mulheres à sua
capacidade reprodutiva: devia-se, fundamentalmente, proteger as reprodutoras dos novos
cidadãos, britânicos10 de nascimento. O atrelamento do papel da mulher na família ao
desenvolvimento da raça e da nação ganhava chancela do Estado a partir de suas políticas
públicas, que se consolidavam a partir do modelo do homem-provedor/mulher dona de casa
e do salário-família. Alguns exemplos, abordados a partir de uma visão comparativa de média
duração que abarca também o resultado de tais políticas no pós-Segunda Guerra, fazem-se
necessários, a fim de reforçar os argumentos até aqui apresentados.
O caso do auxílio-desemprego já deixa explícita tal configuração: além de ser
previsto apenas para trabalhadores em regime integral de trabalho e com tempo longo e
estável de contribuição – o que por si só excluía grande parte das mulheres casadas 11 –,
apenas famílias onde a mulher recebia menos da metade do salário médio para trabalhadores
não-especializados tinham direito ao auxílio. Assim, tal benefício agia como uma espécie de
incentivo para que as mulheres desistissem do trabalho assalariado caso seus maridos
ficassem desempregados, uma vez que apenas uma minoria de mulheres conseguia estar
empregada recebendo um salário alto ao ponto de garantir o sustento da família sem
qualquer outra renda complementar, nem mesmo do marido ou do seguro desemprego dele.
Do ponto de vista da renda total familiar, de fato era mais vantajoso que a esposa deixasse
de trabalhar e a família se apoiasse no auxílio-desemprego do marido, fato que mostra por si
só a desigualdade desse sistema. Mas mesmo se isso acontecesse, as tarefas do lar
continuavam nos ombros das mulheres, mesmo com os maridos desempregados. Dessa
forma, indiretamente, o sistema de seguridade acabava por manter inalterada a divisão de
trabalho no interior do lar mesmo quando o homem estava fora do mercado de trabalho e
dependia de benefícios estatais.
O caso do auxílio-doença – para trabalhadores incapacitados temporariamente de
trabalhar por motivo de saúde –, era ainda mais explícito. Com o já citado National Insurance
Act em 1911, 700 mil mulheres tornaram-se elegíveis ao sistema, o que aumentou

10 Leia-se: ingleses. Cada vez mais “o inglês” se confundia com “o britânico”, apagando da constituição da
“britanidade” o galês, o escocês e o irlandês.
11 Que costumeiramente interrompiam sua carreira profissional quando tinham filhos ou, nesse contexto, mesmo

ao se casarem, graças a existência, formal ou informal, das chamadas “cláusulas de solteirice”, que impediam
mulheres casadas de trabalharem.

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exponencialmente os pedidos de seguro por parte delas e levou o governo a investigar a


veracidade e viabilidade de suas requisições (LAND, 1978, p. 262). A noção de “incapacidade
de trabalhar” era levada ao pé da letra, e as autoridades fiscalizadoras começaram a cortar o
benefício de mulheres que fossem encontradas pelos fiscais do serviço social realizando
tarefas domésticas enquanto estavam afastadas do trabalho nas fábricas recebendo o auxílio-
doença. Para as autoridades, seguindo o espírito da lei, um fator necessariamente excluiria o
outro, e tal visão permaneceu ao longo das décadas, como mostra uma recomendação do
Departamento de Saúde e Seguridade Social em 1976, que perguntava se a mulher
requerente desse auxílio era capaz de cuidar da família ou fazer seu próprio trabalho
doméstico. Em caso de resposta afirmativa, a mulher perdia o direito ao auxílio. Tal pergunta
não existia nos formulários masculinos para o mesmo auxílio (idem, p. 263). Se levarmos em
conta a baixa participação masculina nos serviços domésticos mesmo nessas situações de
enfermidade da esposa, percebe-se a injustiça de tal medida por parte das autoridades.
O caso do seguro para “governantas” era ainda mais específico: criado em 1918,
serviu primeiro para atender homens viúvos com filhos pequenos, mas já em 1919 foi
ampliado para viúvos sem filhos. Tal seguro permitia um desconto no imposto de renda dos
homens viúvos para que esses pudessem contratar governantas ou empregadas para
cuidarem de suas casas, mas não era previsto para mulheres viúvas, posto que essas “já eram
acostumadas a cuidar da casa sozinhas”, como justificava ainda em 1953 um relatório da
Comissão Real de Impostos de Renda e sobre Lucros 12. Dessa forma, como ressalta Land
(1978), não se esperava dos homens que combinassem seu habitual trabalho assalariado com
a nova necessidade do trabalho doméstico, e portanto esses ganhavam o direito de serem
auxiliados com os custeios de prover uma substituta para a esposa doente ou falecida. A
substituta, claro, deveria ser outra mulher, deixando claro os papeis sociais que as políticas
esperavam de cada gênero.
Quanto ao cuidado dos filhos e dos idosos, a teia ideológica e emocional que atrela
mulheres a tais tarefas se faz ainda mais perceptível e indiscutível perante os dados. Uma
pesquisa dos anos 1960 (SHANAS, 1968 apud LAND, 1978) mostrou que o número de idosos

12 Royal Comission on the Taxation of Profits and Income 1951-5, Evidence, vol. 4, HMSO, Londres: 1953, p. 55,
citado por Land, 1978.

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morando com suas filhas casadas era três vezes maior do que os que moravam com os filhos
casados. Quando acontecia de morarem com esses últimos, a mesma pesquisa apontou a
importância do trabalho doméstico de suas noras para o seu cuidado. No caso de casais de
idosos sem filhos, geralmente as mulheres cuidavam mais dos maridos em casa do que o
contrário, o que fez com que idosas casadas e sem filhos fossem maioria nos asilos, que
recebem diminuta parcela de idosos na mesma situação. Tal questão se imbricava com a
questão do serviço domiciliar de cuidados para idosos, fornecido pelo Estado nas residências
dos segurados: quem recebia mais o serviço eram idosos morando sozinhos e longe de filhos.
E já que, quanto mais incapacitados os idosos, maior era a chance de eles morarem com suas
filhas (casadas ou não), o serviço domiciliar nem sempre ajudava os idosos mais
incapacitados, os mais necessitados de tal auxílio estatal, pois o cuidado desses ficava por
conta dessas filhas. Dentre os que recebiam o auxílio de tal serviço, a comparação da
qualidade da situação de homens e mulheres faz saltar aos olhos algumas características:
“89% dos homens conseguiam andar sozinhos na rua, contra 68% das mulheres; 29% dos
homens não tinham nenhuma dificuldade de mobilidade em tarefas pessoais, contra 8% das
mulheres” (idem, p. 268, tradução nossa). Ou seja: idosas, para conseguir o auxílio,
precisavam estar mais incapacitadas do que os idosos.
Os cuidados com os filhos pequenos também explicitavam os papeis sociais
reforçados pelas políticas sociais, e possuem resultados práticos importantes que explicitam
as contradições do que viemos apontando até aqui. Não espanta que, em 1975, 84% dos 4 ¼
milhões de empregados em meio período no Reino Unido eram mulheres, em sua grande
maioria casadas. Dessas, 2/5 afirmaram trabalhar em meio-período por causa da obrigação
do cuidado de filhos pequenos, e geralmente trabalhavam apenas na hora do expediente da
pré-escola. Outro 1/5 nomearam como justificativa o cuidado com parentes idosos ou
doentes. Ao mesmo tempo, 60% das mulheres que se encontravam totalmente excluídas do
mercado de trabalho, deram circunstâncias domésticas ou gravidez como motivo para se
demitirem do último emprego. A partir de tais dados, Land (1978) mostrou como o modelo
do homem-provedor interferiu diretamente na inserção das mulheres no mercado de
trabalho. Como só uma diminuta parcela – branca, protestante e inglesa – da classe
trabalhadora realmente tinha possibilidade de fazer jus ao modelo, em 1977, a maioria das

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mulheres casadas que possuíam empregos pagos recebiam salários que representavam
apenas ¼ da renda familiar total13. Tais exemplos – e poderíamos acrescentar ainda outros –
servem pra mostrar como, na própria concepção das diferentes políticas sociais, papeis de
gênero delimitados e hierarquizados inspiravam tais seguros e auxílios, reforçando
estereótipos infundados que serviam de base para determinada configuração das relações
tanto no interior do lar e das famílias, como fora dele, definindo o sentido da cidadania das
mulheres (donas de casa e mães) e dos homens (trabalhadores).

Raça e bem-estar social

De forma até mais explícita, para além dos impulsos racistas que, como já vimos, motivavam
e na verdade forneciam aos reformadores sociais de fins do século XIX as estruturas
ideológicas para a sua visão de mundo, a questão da raça se fez presente nas políticas públicas
especialmente através das regras de elegibilidade, mecanismo extremamente útil para tal
intuito. Assim, a permissão para o acesso a certas formas de benefícios de bem-estar deveria
se relacionar, como não podia deixar de ser, com a nacionalidade/raça do requisitante,
beneficiando os indivíduos brancos cristãos e que tinham a língua inglesa como nativa.
Algumas políticas sociais conectavam de forma bem próxima provimento de bem-estar e
controle de imigração, sob duas formas principais: ameaçando de deportação os estrangeiros
(alien) que buscavam fundos públicos – partindo do princípio de que, para ter aceito o pedido
de permanência no país, os imigrantes deveriam comprovar que conseguiam, por seus
próprios meios e sem acesso aos programas de assistência pública, se manter
financeiramente no país; ou se relacionando com a teia de relações internacionais e de povos
no interior de seus impérios coloniais, que determinava diretamente quais nacionalidades
teriam direito a benefícios. Assim, por exemplo, o Aliens Act de 1905 na Grã-Bretanha marcou
o início do processo de controle de imigração mais restritivo e de maior delineação da
coletividade nacional-imperial ao impor restrições a imigrantes judeus da Rússia e do leste

13O que mostra que, quase setenta anos


depois da pesquisa de Rowntree e de todas as políticas sociais e do Estado
de bem-estar do pós-Segunda Guerra, a contribuição das mulheres casadas à renda doméstica total na verdade
diminuiu.

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europeu, tendo apoio da maioria dos partidos e sindicatos do espectro político, inclusive dos
trabalhistas; o Pensions Act de 1908 negava aposentadoria a quem não fosse residente e
súdito britânico pelos últimos vinte anos – o que excluía imigrantes recentes e os que não
faziam parte do império britânico; e o já citado National Insurance Act de 1911 dava menos
benefícios aos cidadãos não-britânicos que fossem residentes no país há menos de cinco
anos. Como afirma Lewis (1998, p. 95), “a ‘raça’ pode ser identificada como ‘a nação’ para
produzir uma estrutura para excluir grupos de pessoas de entrar nas fronteiras da nação ou,
se ‘dentro’ dela, de ter acesso à gama completa [de benefícios de bem-estar]”.
Bonnett (1998) mostra como o imperialismo e as inéditas políticas sociais de
começo do século XX aqui descritas se fundiram num amálgama ideológico e material que
serviu de base de sustentação para os impulsos expansionistas e nacionalistas do império
britânico. Se antes do século XIX as menções às classes trabalhadoras na Inglaterra vitoriana
eram permeadas de argumentos e menções a “raças inferiores”, como já vimos aqui, – e se
antes, a burguesia se apresentava como a única representante autêntica dos ideais nacionais
e raciais ingleses –, com o avançar do imperialismo na virada para o século XX, principalmente
após o surto de nacionalismo popular advindo da Guerra dos Boeres e com a criação dos
primeiros programas e seguros sociais, há um deslocamento e expansão dessa chamada
“britanidade”, que passa a abarcar não apenas a burguesia, mas também as classes
trabalhadoras brancas inglesas. A relação cada vez mais tensa com os irlandeses, que
culminou na independência da República da Irlanda em 1922, agregou a minoria protestante
da porção norte da ilha, incluindo-a na nacionalidade britânica e lhes garantindo direitos de
cidadania na Irlanda do Norte, mas negando-os aos católicos do norte irlandês (WILLIAMS,
1995).
O sentido segregacionista das políticas de bem-estar torna-se cada vez mais
explícito, principalmente se for conjugado à hierarquização racial existente em outras áreas,
como o acesso à qualificação, moradia e a entrada no mercado de trabalho. Em um dos mais
importantes estudos sobre imigração na Grã-Bretanha, Ramdin (2017) mostra a dificuldade
encontrada pelos imigrantes caribenhos e do sudeste asiático no pós-1945 para serem
contemplados por benefícios de habitação e emprego – tradicionalmente e por motivos
óbvios, as áreas de política social mais demandadas por imigrantes recém-chegados. Os

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imigrantes acabavam sendo empurrados para guetos, tanto no que tangia aos bairros e
regiões que habitavam, como também nos setores de emprego que ocupariam de forma
precária ou rebaixada14. É conhecida, por exemplo, a importante participação de mulheres
provenientes das antigas colônias inglesas no Caribe (Jamaica, Barbados e Trinidad,
principalmente) no NHS, imigrando para trabalhar como enfermeiras. No caso de Barbados,
inclusive, um esquema de subvenção estatal foi desenvolvido entre o governo do país e a
administração do NHS para que o primeiro arcasse com os custos de viagem dessas
imigrantes. Ao desembarcarem na Inglaterra, essas mulheres eram direcionadas para os
postos mais baixos do trabalho de enfermeira nos hospitais públicos, mais insalubres e de
menor remuneração e rara possibilidade de promoção15. O caso das enfermeiras revela uma
característica específica da imigração feminina caribenha para a Inglaterra: devido ao fato de
a maioria emigrar sem os filhos em um primeiro momento, seu salário tinha duas justificativas
ideológicas para ser rebaixado com relação à média geral: o fato dela ser mulher e o fato de
não estar com os filhos. Como resume Lewis, “desenvolvimentos no interior da divisão sexual
do trabalho agiram de forma orquestrada com os desenvolvimentos da economia de uma
forma mais ampla, o que, junto da ideologia do racismo e da prática do racialismo determinou
o lugar das trabalhadoras negras na economia britânica”. 16
Além disso, essa posição subalterna de tais grupos com relação a habitação,
qualificação e mercado de trabalho não era amenizada pelos programas sociais – que
hierarquizavam e estratificavam os beneficiários através de múltiplos mecanismos e
justificativas contidas nas regras de elegibilidade – o que acabava por reforçar estereótipos
racistas e rebaixar sua forma de acesso aos bens de subsistência, acesso esse
comparativamente mais dificultado se comparado ao dos trabalhadores brancos ingleses que
agora faziam jus ao modelo do homem-provedor. Como explica Williams (1995, p. 134,
tradução nossa), baseando-se no exemplo britânico,
deveríamos examinar sob que medida as modificações do modelo do homem-
provedor no século XX foram racializadas e sofreram interferência das divisões de

14 Principalmente nos setores onde a demanda por mão-de-obra em um país reconstruindo-se da guerra era maior:

nos nascentes serviços públicos de transporte, na construção civil e no sistema de saúde pública recém-criado.
15 Para mais, ver McDowell (2013). Para relatos em primeira pessoa em um belo e inovador trabalho de história

oral, ver Bryan, Dadzie & Scafe (2018), obra considerada clássica do feminismo negro britânico.
16Disponível em: https://www.versobooks.com/blogs/3176-the-sexual-division-of-labour. Acesso em:
10/10/2019.

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classe. Assim, por exemplo, tal modelo no Estado de bem-estar social britânico no
pós-guerra teve aplicabilidade diferencial. Muitas mulheres afro-caribenhas que
migraram como trabalhadoras nos anos 1950 foram forçadas economicamente
para empregos de período integral – muitas vezes com horários fora do comum
(turnos irregulares e noturnos) – com vistas à auxiliar dependentes familiares na
Grã-Bretanha ou no Caribe. O fato de estas atividades não serem reconhecidas,
auxiliadas e nem legitimadas pelas provisões de bem-estar existentes reproduzia
o discurso racista acerca da natureza patológica das famílias negras.
Ao mesmo tempo, poderíamos especular sobre até que ponto a decisão de
governos do pós-guerra de usar migrantes ao invés de trabalho feminino local
para fazer frente à escassez de mão-de-obra dependia não apenas da sua
capacidade de fazê-lo (no caso da Grã-Bretanha, enquanto poder colonial) mas
também do seu comprometimento com a hegemonia do modelo do homem
branco provedor. Posto de forma franca e simplista, teria o trabalho migrante –
incluindo o trabalho migrante feminino – tornado possível o modo de vida do
trabalhador branco provedor?

A pergunta de Williams expõe as contradições e complexidades a que está sujeito


um estudo sobre o Estado de bem-estar social e as políticas sociais em geral. Podemos, sem
equívoco, respondê-la afirmativamente: havia uma hierarquia específica tanto no mercado
de trabalho como no acesso a direitos sociais, e foi sobre essa hierarquia que se sustentou o
modelo do homem-provedor. Tal modelo, já demonstramos, tinha no topo apenas uma
fração da classe trabalhadora, aquela de homens brancos qualificados empregados numa
relação de emprego padrão, com direitos sindicais e sociais garantidos e reconhecidos.
Percebe-se como a dinâmica entre as políticas de bem-estar reconfigurou de forma
determinante as noções de família, nação e trabalho, necessariamente criando hierarquias
internas a estas políticas que são indissociáveis da lógica dos Estados de bem-estar social.

Conclusões

Apenas uma análise histórica mais detida pode fornecer elementos para uma caracterização
mais correta e aproximada do que foi o fenômeno do bem-estar social na Europa ocidental
do pós-guerra, atentando para as especificidades do desenvolvimento histórico de cada
nação desde a criação dos primeiros esquemas de seguridade social no início do século e da
relação destes com as modificações por que passaram o Estado e a economia capitalistas no
pós-1945. Tal ressalva torna-se importante na medida em que ajuda a desmistificar parte das

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ideias que sustentam a noção de “trinta anos gloriosos” do capitalismo, ressaltando, na


realidade, como tal período é único e excepcional na história, resultado de uma conjuntura e
de uma correlação de forças muito específicas, além de mostrar como as características
geralmente apontadas como definidoras de tal período na verdade abarcaram apenas parte
da classe trabalhadora, principalmente se esta for vista de forma ampliada, abarcando
também a esfera do trabalho reprodutivo não-pago, como orienta Bhattacharya (2017).
Serve, assim, para contrapor a uma visão por muito tempo hegemônica nos estudos dos
Estados de bem-estar e de suas políticas públicas e desmistificar grande parte das visões
consagradas a respeito dessa quadra histórica.
No caso específico do fordismo-keynesianismo britânico do pós-1945, as
hierarquias e dependências mútuas entre gêneros e raças eram, desde o início do século,
princípios formadores e definidores de tal regime de acumulação. Reforçou-se a suposição do
salário-família e do trabalho doméstico feminino de forma a manter o consumo, a produção
em massa e o pleno emprego masculino de determinado estrato da classe trabalhadora
inglesa empregado no setor mais desenvolvido da economia. Mas tal configuração era
sustentada tanto pelo trabalho invisível realizado no lar pelas esposas desses trabalhadores
brancos, como pelo trabalho precarizado de mulheres e homens negros, imigrantes e
racializados. Assim, nação, cidadania, direitos sociais e, indiretamente, o próprio império,
mais uma vez se mesclavam numa narrativa que sustentava a hegemonia burguesa, agora
readaptada ao pós-guerra, reforçando de modo ainda mais explícito as vantagens da
branquitude inglesa em comparação aos “outros”. Bonnett (1998, p. 329, tradução nossa),
numa potente metáfora, afirmou que “o bem-estar social veio embalado na Union Jack”17.
Como aponta Williams (1995, p. 153, tradução nossa), sintetizando essa relação,
na Grã-Bretanha, o Estado de bem-estar se tornou central para a reconstrução do
país no pós-guerra e representou a domesticação da missão civilizatória britânica.
Civilização – tudo o que restava do poder e dos lucros declinantes do Império –
era o que o Estado de bem-estar parecia representar, somado a uma esperança
de que este poderia substituir o velho ideal imperial ao sustentar a coesão
nacional. O relatório Beveridge (1942) reproduziu ideais de família, nação,
trabalho e bem-estar: mais uma vez, o casamento e a maternidade eram tarefas
pessoais e nacionais da mulher branca sem deficiências, e o papel de homem-
provedor era designado ao seu marido. Esse ideal capturava a subordinação da

17Union Jack é como os britânicos se referem à bandeira do Reino Unido, que por sua vez é representativa do
império britânico.

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mulher ao poder econômico de seu marido, o acesso limitado das mulheres ao


trabalho pago, e o destino heterossexual permanente dos relacionamentos.

Tal dispositivo, gerador de consenso interclassista nos limites do Estado nacional, se


apoiava diretamente nas políticas sociais excludentes, em um Estado cada vez mais
intervencionista e no capitalismo regulado keynesiano, o que permitia agora que os ideais
nacionais e raciais britânicos fossem compartilhados com todos os cidadãos britânicos de
nascimento, mas excluindo negros, imigrantes e estrangeiros. O reforço de tal configuração,
se de certa forma beneficiava a classe trabalhadora branca inglesa em comparação com
outras frações de trabalhadores, globalmente falando, com relação ao conjunto da sociedade,
mantinha intocadas e até reforçadas as relações que opõem de forma definitiva capital e
trabalho. É a partir dessas contradições e desse ponto de vista que a TRS analisa o
desenvolvimento das políticas sociais e do Estado de bem-estar. Tal abordagem mostra-se
fundamental para uma completa reavaliação desse fenômeno à luz da perspectiva de atores
e relações sociais por muito tempo ignorados quando se trata dos trinta anos não tão
gloriosos do capitalismo.

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Sobre o autor

Thiago Romão de Alencar


Doutor em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense (2020). Mestre em História pelo PPGH-UFF (2015). Graduado em
História pela UFF (2010). E-mail: thiagobono@yahoo.com.br

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

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They’re talking about penal abolition: The urgency of re-


imagining different paths as alternatives to the criminal
justice system
Eles estão falando sobre abolicionismo penal: a urgência de re-imaginar
caminhos alternativos ao sistema de justiça criminal

Jehanne Hulsman1
¹ Hulsman Foundation, JR Dordrecht, Países Baixos. E-mail:
info@hulsmanfoundation.org. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4091-9797.

Diogo Justino2
² Faculdade Vale do Cricaré, São Mateus, Espírito Santo, Brasil. E-mail:
diogopjs@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0313-2482.

Artigo recebido em 23/01/2021 e aceito em 10/02/2021.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Resumo
Este artigo pretende afirmar a centralidade dos temas da segurança pública e do
populismo penal para a compreensão da conjuntura política atual. A partir desta
premissa, mostraremos como estes temas são trabalhados por setores antagônicos da
sociedade. Então, a partir da crítica da pena de prisão e do controle, será possível
oferecer chaves para compreensão do momento em que vivemos e respostas que
rompam com o punitivismo.
Palavras-chave: Abolicionismo penal, populismo penal, segurança pública.

Abstract
This article affirms the centrality of the themes of public security and penal populism for
the understanding of the current political situation. From this premise, we will
demonstrate how these themes dealt with by antagonistic sectors of society. Then,
based on the criticism of the prison and control, it will be possible to offer keys for
understanding the moment in which we live and responses that oppose punitivism.
Keywords: Penal abolitionism, penal populism, public security.

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“Don’t you Know? They´re talking about a revolution”.


Tracy Chapman

Introduction1

Last year an unpublished letter from Primo Levi went public. It had been written in 1945
and sent to his family in Brazil. Its content is impressive today: “fascism has shown to
have deep roots, changes its name, style and methods, but it is not dead, and the
material and moral ruin to which the people have led remains acute. (...) The war is over,
but there is still no peace”2. Levi thought about how the seeds of fascism were
germinating even in the countries to which the world owes the defeat of Nazifascism
(like Brazil and the USA) - each era has its fascism - says Levi when he recalls the Soviet
labor camps, Vietnam War, dictatorships and tortures in Latin America.
The concentration camp survivor pointed out to the world the existence of
prisons, juvenile institutions, psychiatric hospitals where, as in Auschwitz, the human
being loses his name and face, dignity and hope - “Above all, fascism did not die:
consolidated in some countries, cautiously awaiting retribution in others, has not
stopped promising the world a New Order”3. If Primo Levi is right, and we believe he is,
then the foundations that constitute today's neo-fascisms have always been present in
our societies, creating situations of violence, racism, xenophobia and various forms of
discrimination. It would be a case of unraveling these phenomena, which in the paper
presented here, are shown in the new and old speeches for public security and
incarceration of vulnerable sectors.
In recent times, we have seen the rise of authoritarian and neo-fascist ideas
and practices around the world. They are movements that are globally articulated and
affect each society differently, causing a series of tensions, debates and possibilities of

1 We thank Antonio Bastos, Renata Davis and Thayla Fernandes, for the review and suggestions to the
paper.
2 “Il fascismo ha dimostrato di avere radici profonde, cambia nome e stile e metodi ma non è morto, e
soprattutto sussiste acuta la rovina materiale e morale in cui esso ha indotto il popolo. Fa freddo, c’è poco
da mangiare, non si lavora; fiorisce il banditismo, e mentre si parla di democrazia sociale, crescono
mostruosi nuovi capitalismi nati dal traffico nero: è l’aristocrazia più antisociale. La guerra è finita, ma non
c’è ancora la pace.” LEVI, Primo. Non Eravamo piu uomini. Available at:
<https://www.agenziacomunica.net/2019/02/24/non-eravamo-piu-uomini/>. Acess on: 16 jan. 2021.
3 LEVI, Primo. Aos Jovens. Prefácio a É isto um homem?. In: A assimetria e a vida: artigos e sensaios (1955-
1987. (tradução: Ivone benedetti) São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 50.

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ruptures. Analyzing this moment is not an easy task, although it is essential. There are
many ways to look at each case, but demands for order, punishment, increased
penalties, security, personal weaponry and repression seem to underlie the rise of the
extreme right in the world - it is possible to perceive these speeches and practices of
penal populism4 from Brazil to the Philippines, passing through the US, Europe and many
other places where the Extreme-Right gains strength.
However, two premises must be stated: First, penal populist discourses are not
recent. Understanding the rise of authoritarianism means, first of all, understanding the
presence of authoritarianism in our societies for a long time. Second, if, on the one
hand, there is an increase in violent and anti-democratic discourses and practices in the
criminal justice system, on the other hand, it is also evident the rise of protest
movements, which are also not new, but which have publicly affirmed - with even
greater strength - the possibilities of alternatives to a justice system that historically
showed an extraordinary capacity to reproduce injustice, racism, xenophobia, sexism
and other forms of violence, without offering positive results with regard to its declared
functions.
These two premises guided the present work so that, from them, it is possible
to offer some paths in the complex political moment in which we live.

1. Consciousness of the use of systemical language

In the relative framework of this paper, it is not possible to go into all the reasons, all the
underlying work done by countless professionals in various interdisciplinary scientific
areas, as to why the legitimacy of the criminal justice system as a concept should be
questioned in all its functions and in its very existence.
History repeats itself is a well-known phrase. The significance of this phrase
seems to elude, time and again. There appears to be a form of collective oblivion, about
prior loss of humanity, known suffering and all the consequences thereof. South
America has an ancient and recent history of abuse of power by governments, so has

4 "Penal populism" or "punitive populism" is the discourse or political practice based on the idea that
various problems of public insecurity can be solved with more arrests, police and legislative changes that
toughen the criminal justice system. In general, they are speeches widely used by mass media outlets to get
more audiences and politicians to get more votes, showing that they are acting against criminals.

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Europe, in countries like Romania, Spain, Portugal and there is of course the lingering
knowledge of the period of occupation by the Nazi regime to all those living under
occupation, this not being a restricted summary. Even in periods of relative peace, there
will be an unequal balance of power, regarding vulnerabilities with people being less
recognized or less represented within a state or a society. The basic principle of
democracy, that it would protect the rights of minorities, has yet to be embodied and
fulfilled.
Donald Black made it abundantly clear that the basic system of law making and
the enforcement of law are direct consequence of the power balance of that particular
time and state:
The seriousness of an offence by a lower against a higher rank thus
increases with the difference of wealth between the parties, whereas the
seriousness of an offence by a higher rank against a lower rank decreases as
this difference increases. The wealthier thief is, for instance, the less serious
in his theft. Thus in modern America, department stores are less likely to
prosecute shoplifters who are middle class and white than those who are
lower class and black, and, in court, the same applies to the likelihood of
conviction, a jail sentence, and a sentence 30 days or more 5.

Politicians want tangible, direct results, when they are faced with a social
problem and the easy way to show their commitment is to give the solution in the form
of a criminal law, to be enforced by the criminal justice system. The intent, any idealism
that forms the basis for the desire to change the problematic situation perceived by
them, may even stem from integrity and a genuine wish to improve the situation
addressed. However, no evaluations of those criminal laws take place in regard to the
problematic situations addressed. Enforcement can pose a serious problem and
experience teaches that more often laws are used for another purpose, than the ones
they were supposedly designed for. The process compares to making a baby and leaving
it into the care of someone else without looking back. The other problem is, that in the
law making process, there appears to be only focus on the intended result. There is
during that process as far as known, no attention for any side effects of the law. In trying
to influence the behavior of people, unintended effects occur that are not registered,
because they were not intended. Thus laws often appear to have the effect of a canon
shot, to kill a fly: the fly might well die, but all around the fly everything is also dead or

5 BLACK, Donald. Behavior of law. New York: Academic Press Inc, 1976, p. 25.

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affected. Therefore, to rely on criminal laws and the criminal justice system, to ‘improve’
problematic situations in society, appears unrealistic and very idealistic.
The systemical language used6 legitimizes the institution by which it is used.
Viktor Klemperer has painfully described how the language of the Third Reich (Nazi
regime) could change the legitimacy of dehumanizing certain groups and people to the
point where they could be treated as objects and in great numbers could be killed. 7 Louk
Hulsman objects to the use of systemical language stating that you cannot escape from
the logic of the criminal justice system, if you do not also discard the use of wording
underlying this logic. Thus, Words as ‘crime’, ‘criminal’ and ‘criminal policy’, etcetera,
belong to the criminal dialect and they reflect the ‘a priori’ of the criminal justice
system.
An occurrence labeled as ‘crime’ will instantly be taken out of its context,
removed from the ligament of individual and collective interactions and
presupposes a guilty perpetrator. No longer has to be proven how
important the use of words is: everybody knows to which extend someone’s
inner status can change if not any longer called ‘maid’, but ‘housekeeper’, or
if someone is no longer ‘an unmarried mother’ but becomes ‘a single
parent’. It also goes without saying that also in a scientific indicated context,
terminology like, criminology, sociology of criminal behavior, crime sciences,
etcetera, are in a negative way connected to the discriminating notions of
the criminal justice system, that will be unconsciously adopted. 8

To call an event a "crime" means to limit extraordinarily the possibilities of


understanding what happened and providing answers. Each event has a value and an
explanation. If the events are completely different, the answers should also be. We will
have to teach ourselves a new use of language, fit to express a non-stigmatizing outlook
on people and the situations experienced by them. Thus, you could enter into a new
mentality, using expressions like ‘unwanted behavior’, ‘involved persons’ and
‘problematic situations’.
In that respect and as a legacy to independent thinkers, as an avenue towards
inclusion instead of labeling, dehumanizing and exclusion, it would be very appreciated

6 Many all over the world yet have memories of encounters with Louk Hulsman, heated discussions with
him. He has cautioned many to be extremely careful as to the wording and type of language they used in
those encounters. If in a seemingly innocent discussion, someone would for instance say, most people
would..., he most probably would stop that person in their tracks and ask what he meant, which ‘most
people’ was that person speaking about, how would he know that (if one could define the people that he
had in mind when he started talking) there was a majority of people involved and the final blow would
come, when he would say to that person, whatever would give him the idea that the fact that a majority
would have an opinion, would make that opinion more true.
7 KLEMPERER, Viktor. LTI: Notizbuch eines Philologen. Stuttgart: Philip Reclam jun, 2007.
8 HULSMAN, Louk & DE CELIS, Jacqueline Bernat. Afscheid van het strafrecht. Houten; Unieboek BV, 1986.

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if the reader would try to ‘translate’ any systemic language used in this article, to
imaginable actual problematic situations, and its actors, the involved persons, in the
hope of awareness of all who are part of those problematic situations, be it institutional,
be it representatives of minorities or vulnerable groups, or individuals.

2. Former and current developments, inequality and the use of the criminal justice
system

In the 60s, when the Black Panthers published their Ten-Point Program, there were
already several demands related to the justice system. Understanding that a racist
society would create a racist criminal justice system which, on its turn, would reflect
racist discrimination in its sentences, the movement asked, among other things: an
immediate end of police brutality and the killing of black people; liberty to all
incarcerated black people, because they never got a fair, impartial trial; that all black
people presented to trials should be judged in a jury formed by their peers or people
from their black communities. Meanwhile, in others parts of the world, a range of social
actors, activists, movements and academics set in motion theories and practices that
delegitimize penalty and prison, also entailed in antiprison struggles, in a movement
that has been academically consolidated in the fields denominated “critical criminology”
and “penal abolitionism”. This wary approach to the penal system produced several
movements of abolition or reform 9, not to mention academic research that put the
doctrine of punishment, its limits and functionalities, in its due historical place.
It is possible to say that current antifascist and antiracist struggles make part of
a tradition that for a long time points for the centrality of the criminal justice system in
promoting discrimination and injustice. From there, concrete demands of reform or
abolition of police and prisons have reappeared, reanimating the anti-punitive ideal. In
2013, during the great popular demonstrations in Brazil, a watchword was “it did not
end, it has to end, I want for the military police to end”, and today, after the brutal

9 There are many organizations and movements; among the most notorious we can mention: Copel (Spain),
Krum (Sweden), Krom (Norway), PROP (UK), Os Cangaceiros (France), Mothers Reclaiming Our Children
(USA), Coornhert-Liga (Netherlands), Krak (Germany), Liberarsi (Italy), Sasid (Argentina). See more: ALVES,
Tamires Maria. Enjaulados: escolha punitiva brasileira e perspectivas desencarceradoras. Curitiba: Appris,
2020, p. 160-161.

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murder of João Alberto in a Carrefour supermarket, all the structure of public and
private security in the country is put in question. The same has happened in the USA
with demonstrations against police violence after several cases of racism. The
relationship between Black Lives Matter and the topic of public security and penal
abolitionism can be seen from a variety of perspectives10, but it seems to us that it can
be well summarized in the sentence “if black lives matter, we must abolish prisons” 11.
The penal abolitionist 12 struggle is a constant struggle, it was present in the
Black Panthers, it is present in the Black Lives Matter movement, and it will exist as long
as injustice is practiced in the justice systems; but it does not come from a moral opinion
over the inhumanity of prison, but from the scientific and social finding of its sounding
failure.

3. Populist movements and use of the criminal justice system

At the same time, conservative sectors in several countries are increasingly proposing
populist measures within the scope of the criminal justice system, expanding its scope,
punishments and violence. This event challenges us, because such proposals, although
innocuous, appear convincing for most people who still believe in the power of
legislation to change behavior. For politicians introducing or changing legislation is the
fastest and most easy solution, to problematic situations that through media attention
demand a political solution.

10 For two different and interesting perspectives, see: PORTER, Nicole. Expanding Public Safety in the Era of
Black Lives Matter. Available at: <https://www.sentencingproject.org/wp-
content/uploads/2016/05/Expanding-Public-Safety-in-the-Era-of-Black-Lives-Matter.pdf>. Acess on: 16 jan.
2021, and LAWRENCE III, Charles. The Fire This Time: Black Lives Matter, Abolitionist Pedagogy and the Law.
Journal of Legal Education, Volume 65, Number 2 (November 2015).
11 PRASHAR, Ashish. If Black Lives Matter, we must abolish prisons. Available at::
<https://www.theneweuropean.co.uk/brexit-news/if-black-lives-matter-we-must-abolish-prisons-86396>.
Acess on: 16 jan. 2021.
12 The terms "penal abolitionism" and "prison abolitionism" are common and may depend on certain

contexts and places. We prefer the term "penal abolitionism" because it is not limited to the prison space,
but it expands our scope of looking and analyzing other forms of control and incarceration. In the current
American movements the expression "prison abolition" has been more common, but it is possible to find
references to the expression "penal abolitionism" in English as well, such as in Ruth Morris. See: MORRIS,
Ruth. Penal Abolition, the Practical Choice : A Practical Manual on Penal Abolition. Toronto: Canadian
Scholars Press. 1995.

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In Europe, far-right parties also approach themes such as public security and
criminal justice in a populist and expanding way. The Alternative for Germany 13 has an
entire chapter in its program about Security and Justice, called “National Security and
Justice”, stating that the “national security is increasingly on the decline” and the police
force is “over-stretched”. They demand to lower the age of criminal responsibility, a
populist measure that is commonplace in this debate. Besides that, they demand a new
statutory offense to be instituted to punish attacks on officials and police officers; they
claim for no restrictions regarding personal firearms legislation, as to guarantee the
freedom for people to own and use their weapons; and they advocate for the
simplification of the processes of eviction of immigrants, considered to be the main
source of criminality in the country by them.
In Spain, the Vox14 party considers safety to be the first obligation of the
government, demonstrating its centrality in their discourse. As a means to obtain the
desired safety, this far-right party also demands measures of penal populism such as the
establishment of life imprisonment; the end of “penitentiary privileges” to incarcerated
illegal immigrants and general propositions of police improvement. In a document for
city electoral campaigns15, Vox advocates for camera surveillance and repression to the
okupas and islamic persons, clearly demonstrating who are the targets of potential
security policy.
Likewise, the program of the Portuguese party Chega!16 contains several
spanish Vox’s program copies. The far-right Portuguese party only bothered to translate
most of the Spanish party’s propositions, demonstrating that this is indeed about penal
populism, with generic demands that repeat themselves and are not based in local
conjuncture analysis, as to bring any effectiveness in terms of security of the citizens,
including vulnerable citizens. Among the propositions fully copied are, for example: the
suppression of any financing to radical feminist organizations and effective prosecution

13 AFD. Manifesto for Germany. The Political Programme of the Alternative for Germany. Available at::
<https://www.afd.de/wp-content/uploads/sites/111/2017/04/2017-04-12_afd-grundsatzprogramm-
englisch_web.pdf>. Acess on: 16 jan. 2021.
14 VOX. 100 medidas para la espana viva. Available at:
<https://www.voxespana.es/biblioteca/espana/2018m/gal_c2d72e181103013447.pdf>. Acess on: 16 jan.
2021.
15 VOX. Programa electoral para las elecciones municipales de 2019. Available at::
<https://www.voxespana.es/wp-content/uploads/2019/05/Programa-Municipales-2019-1.pdf>. Acess on:
16 jan. 2021.
16 CHEGA!. Programa político 2019. Available at: <https://partidochega.pt/programa-politico-2019>. Acess

on: 16 jan. 2021.

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of fake complaints (labeling complaints fake when hard to prove in a domestic


situation); withdrawal of all privileges in prisons for prisoners convicted for terrorism
and any illegal immigrants; reform of the Justice System for a real independency of the
political power; all the members of the Supreme Court shall be elected by merit contest
by and among those who make part of the Justice community; and enlargement of the
possible plea for self-defense for cases of break in and entry.
In France, Le Pen’s party17 produced a specific document about police forces,
in which it insists on comparing the French and American experiences regarding police
violence and racism cases. As for the French far right, they claim there is no racism in
France, which puts them in a different situation from the USA. Thus, the problem with
the police forces is not racism, but the lack of decent work conditions. Because of that,
the party proposes a series of measures of protection for the police officer, transforming
him/her into a super civil servant, with a series of rights, guarantees and privileges.
In Brazil the same sentiment is happening, with the speech by the public
security being determinant for the elections of Jair Bolsonaro. In fact, this theme is not
new and has been present in Brazilian political debates for a long time, making it
possible to characterize the rise of the current government as an aggravation of a logic
that already existed, it imposes on us a rethinking of politics towards a critique of
punishment and control. The difficulty in producing and consolidating an alternative
discourse on public security is a historic challenge for the progressive wing and for all
those who wish to live in democratic societies. There is no democracy with mass
incarceration, indefinite to provisional detentions, police violence in poor
neighborhoods and the extermination of black people.
In this sense, the investigation by the Grupo Clandestino de Estudos em
Controle, Cidade e prisões18 becomes an essential document to understand the election
of Jair Bolsonaro in 2018, in particular, and the rise of authoritarianism in Brazil, in
general. This is because it focuses on the fundamental issue of the political history of the
Bolsonaro family and on one of the key issues of the elections (and of the Brazilian

17 RASSEMBLEMENT NATIONAL. Plan de confiance républicaine pour la Police. Available at:


<https://rassemblementnational.fr/telecharger/publications/Plan-confiance-republicaine.pdf>. Acess on: 16
jan. 2021.
18 BARRETO, Ana Luisa et all (orgs). Política sob gatilho. A questão criminal nos discursos eleitorais de 2018.

Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisões. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2021. In press.

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political debate in general), presenting the speeches of all the candidates on the subject
of public safety.
During the campaign, the inability of the far-right candidate to answer basic
questions about politics and everyday life (equal pay for men and women, investment in
basic education, economics) was redirected, leading everyone to the public security
debate. - "We will play hard on the issue of security, because without security there is
no economy", said the candidate while directing another debate to punitive populism. 19
Proposals to increase penalties, to allow citizens to carry weapons, to exclude the
illegality of the actions of the police, among other examples, were part of Bolsonaro's
vocabulary in any public intervention. According to the aforementioned research, the
themes "urban violence", "organized crime" and "fight against corruption" colonized the
Brazilian public debate even before the elections, being decisive for the electoral debate
on these issues to be conducted by the candidate from the extreme right, accompanied
by everyone else (from left to right). 20
The main reason for mass incarceration in Brazil is its drug policy21, that is, the
policy of repressing the retail trade of substances proclaimed illegal by the state. Rosa
del Olmo shows how it developed in Latin America - in the period of transitions to
democracy - the transformation from the internal "communist" enemy to the internal
"trafficker" enemy. In order to connect the two wars, two main enemies were spoken of
and terms such as narcoguerrilla, narcoterrorism, narcosubversion or narcoinsurgency
were spread out22. The war on drugs trade would then promote a re-militarization in
countries that were making a transition to democracy, allowing police advances,
relegitimation of executions and torture in exchange for combating the new internal
enemy.

19 ATHAYDE, Juliana; BARRETO, Ana Luisa. “A dança das direitas: a questão criminal reposicionando o
cenário político”. In: BARRETO, Ana Luisa et all (orgs). Política sob gatilho. A questão criminal nos discursos
eleitorais de 2018. Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisões. Rio de Janeiro: Editora
Revan, 2021. In press. p. 86.
20 The candidacy that collided with the others on this issue was that of the PSOL (Socialism and Liberdade

Party), which obtained only 0.58% of the votes. Despite the fact that this candidacy presented important
criticisms of the current logic of public security, it has not yet managed to completely break with the
criminalizing discourse. See: FERNANDES, Daniel & MATOS, Lucas. Encruzilhadas da punição: encontros e
desencontros da esquerda institucional brasileira. In: BARRETO, Ana Luisa et all (orgs). Política sob gatilho. A
questão criminal nos discursos eleitorais de 2018. Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e
Prisões. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2021. In press. p. 58, 62-63 y 68.
21 The same is true of many other countries in the world, including the USA as shown by Ruth Gilmore.

GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prisons, surplus, crisis, and opposition in globalizing. California,
University of Califórnia Press, 2007, p. 18.
22 DEL OLMO, Rosa. Geopolítica de las drogas. Revista Análisis. Vol. 2. Nº 1. Medellin. 1998, p. 61.

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In the same way, the use of the decrees of "Guarantee of Law and Order" has
been a constant in the Brazilian democratic period, whether by center-left or right-wing
presidents, such as Fernando Collor in the 1990s, and Michel Temer latter, which means
a continuity of militarized social control strategies, commonly directed at marginalized
communities23. This violent process permeated all democratic governments in Brazil and
the discourse culminated with the election of Bolsonaro in 2018.
The populist discourse of public security has a rhetoric of fear, of the
amplification of the police control apparatus over society, of repression, of mass
incarceration, of the hardening of criminal legislation and of criticism of human rights.
These ideas have not emerged now, but have always been latent in any society, that is
organized in inequality where its citizens are daily witness to structural conflicts and
structural violence.

4. Dealing with problematic situations, political selection of the criminal justice system

The world is vast and ancient. An indeterminable amount of peoples and territories have
preceded us, to get to the point we are now. In each place and time, humanity has
thought of different ways of dealing with problematic situations like conflict, unwanted
situations, violence and differences. These many ways have been communal or
individual, violent or appeasing, destructive or restorative. The juridical way, or penal
legal way, is somewhat recent 24, and, ever since it exists, its countercharge is well
known. There have always been voices contesting its goals and operability, and aiming
to expose its selectivity, brutality and inefficiency. In a more elaborate manner, the
critique of the prison dates back at least to the 18th century, with William Godwin.
The critique of the punitive models and the punishment culture grew
substantially in the 20th century, and hit in the 60s and 70s its peak in terms of
formulation and agglutination of ideas. From this movement has risen what we call
critical criminology and penal abolitionism. The Critical Criminology emerges from the
sociological criticism of etiological criminology’s (based on searching for the criminal

23 FERNANDES, Thayla. “O rio da secura deságua na guerra”: integração, comando, controle e Intervenção
militar no Rio de Janeiro contemporâneo. Revista de Estudos Empíricos em Direito. Vol. 7. n. 2, jun 2020.
24 Prisons, for example, were only disseminated in the XIX century.

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ethos). Thus, traditional criminology has searched for explanations of the motivations of
the offenses, the causes of criminality. The critical criminology’s25 reverse the object of
research, observing the processes of criminalization and social control, that is, why some
people or social groups are the targets of the penal system and others are not. This is
explained, greatly, by the selectivity of the penal system.
Every penal system is selective. The State proposes a criminalizing program
(primary criminalization) which itself cannot fulfill its intended goals because of the lack
of material conditions. Thus, many people who commit acts that are criminalized
(crimes) do not get the formal-state response. Those who are selected by the agencies
of the State (secondary criminalization) the process of enforcement, represent a
minority. The difference between the number of crimes committed and the number of
crimes that come to the knowledge of the State and receive formal treatment is called
dark (or hidden) figures of crime.

5. Assumed Justification of punishment

In terms of justifications of punishment, as Frederic Gros26 shows us, the concepts


multiply: expiation, rehabilitation, regeneration, retorsion, education, restoration,
reform, restructuring, revenge, recognition, defense, mourning of victims, improvement,
security, exemplarity (Without forgetting other terms like prevention, retribution,
deterrence, incapacitation)27. Nilo Batista28 sums up very well the legitimations of the
penalty in one phrase: attributing a utility to suffering (a principle that also legitimates
torture). The utilities of suffering vary, deviate or articulate to one another depending
on historical and political conjectures, not always easily explainable.
By and large, academics try to group the many meanings of punishment to
better understand the phenomenon. An interesting division is that which addresses the

25 Amongst what is conventionally called critical criminology are heterogeneous theoretical movements, that
sometimes agree with each other and other times do not, having as paradigm the symbolic interactionism
and the idea of the selectivity of the penal system. The radical criminology, which has a marxist focus, can
be cited as an example.
26 GROS, Frederic. “Os quatro centros de sentido da pena”. In: Punir em democracia – e a Justiça será.

Lisboa: Instituto Piaget. 2001. p. 12.


27 GILMORE, Ruth Wilson. Golden gulag: prisons, surplus, crisis, and opposition in globalizing. California:

University of Califórnia Press, 2007, p. 16.


28 BATISTA, Nilo. “Relembrança de Louk Hulsman”. In: BATISTA, Nilo & KOSOVSKI, Ester (Org.). Tributo a Louk

Hulsman. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 61.

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theories that answer the question why punish?. They split into absolute and relative
theories. The absolute theories are those, which advocate retribution, which,
theoretically, would be an equal response. Historically, it arises in the model of primitive
vengeance in interpersonal and intrafamily relationships. Vengeance has always been
one of the ways of dealing with problems. And not necessarily was worse or more
violent than prison. For Klaus Gunther, the idea of an eye for an eye, a tooth for a tooth
was a limitation of vengeance 29. For a lost tooth, nothing more than another tooth.
There was an idea of proportionality in vengeance. The main risk was disproportionality
in the answer (retribution), which could cause an escalation of infinite retribution. Gros,
on the other hand, reminds us, from Verdier and Courtois’ studies, that the idea of
vengeance as the monstrous childhood of a pre-juridical and pre-social humanity is like
the state of nature: historically inapprehensible and coming from a modern conception
posterior to the State.30 Also in the words of Ignacio Anitua:

There was no public reaction to the damage caused, but the one who
claimed to have suffered it should indicate the person allegedly responsible
for it as an opponent. In any case, the group answered to the damage - and
to the complaint of the damage - with the loss of the offender’s
peacefulness, who was, accordingly, expelled from the community and at
the mercy of the victim’s or the victim’s family’s reaction. This did not
always mean that death would occur; in truth, the ones affected used to
demand compensation.31

The Talion principle, distorted by Kant32 to fit in the modern juridical reason,
appears in many ancient texts. From the Bible to the Quran, passing by the roman Law
of the Twelve Tables and the Code of Hammurabi. An universal law which, according to
François Ost, must be read with the separation of the vindicative system (blind desire of
vengeance) from the vindicatory system (that arises from the idea that the offense
involves a duty of reparation)33. Thus, the vengeance of the past may mean a

29 GUNTHER, Klaus. Teoria da responsabilidade no estado democrático de Direito. São Paulo: Saraiva, 2009.
p. 58.
30 GROS, Frederic. “Os quatro centros de sentido da pena”. In: Punir em democracia – e a Justiça será.

Lisboa: Instituto Piaget. 2001. p. 116


31 ANITUA, Gabriel Ignacio. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan. 2008. p. 43-44.
32 In Kant, the ius talionis must be applied by a Court (and not by private trials) and the crime would mean

that the law which was violated ceases to have validity to the offender. If you steal, you cease to have the
right to property. See KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO,
2003. p. 175-176.
33 OST, François. O tempo do Direito. Lisboa: Instituto Piaget. 2001, p. 132.

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requirement of Justice, with a new temporality that carries meaning and hope34. Reyes
Mate seeks for an understanding similar to the category of resentment, beyond its
relation to vengeance.35 It would be understandable a desire of the executioner sharing
with the victim the feeling that the violence produced should not have happened.
The substantial change of this model happens after the Modern State takes to
itself the right to retribution 36: having in sight the insufficiency of private vengeance37,
the State must intervene through a serene, just, balanced and rational retribution. This
is a common thought and many authors talk about how the punitive power confiscated
the conflict from the victim (Foucault 38, Zaffaroni39, Batista40), withdrawing them from
the resolution of the problem and leaving them in a disadvantageous position 41. What is
at stake is not the conflict characterized by the damage to a person, but the offense, the
violation to the legal rule42. Thus teaches Zaffaroni:
During the 13th century, when, definitely, it ceased to be a trial of parties
with mediation of the authority to convert itself in an exercise of power in
which the authority suppressed one of the parties (the victim), and even
more so, since its modern reformulation from the 18th century on, the
penal-juridical discourse has always been based in fictions and metaphors,
that is, in made up elements or brought from outside, without ever
operating with concrete data from the social reality. 43

On its more contemporary phase, the Theory of Punishment is substituting the


retribution for preventive justifications; these are the relativistic theories. The
prevention theories are divided in negative special prevention and positive special
prevention, and positive general prevention and negative general prevention.

34 OST, François. O tempo do Direito. Lisboa: Instituto Piaget. 2001, p. 138.


35 The victim would not want the other’s suffering, but to feel the immorality of his actions. See MATE,
Reyes. La herencia del olvido. Ensaios en torno de la razón compassiva. Madrid: Errata Naturae Editores.
2008, p. 174.
36 Kant, for example, relocates the Talion principle in legislative reasoning. If you break a law, that law does

not apply to you anymore. In the example used by him; if you steal, you are deprived of your assets. Hegel,
in turn, thinks about this question in terms of value. If you remove a tooth, you deserve to have removed
from you something that has the same value of another tooth.
37 The thesis that affirms a penal system was originated in the vindicative system is, at the very least,

controversy. According to Mauss, the origin of the public penalty is sacred/religious. GROS, Frederic. “Os
quatro centros de sentido da pena”. In: Punir em democracia – e a Justiça será. Lisboa: Instituto Piaget.
2001. p. 16.
38 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3. Ed. Rio de Janeiro: NAU editora, 2002, p. 65-66.
39 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p 30-31.
40 Nilo Batista talks in terms of expropriation of the conflict. BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema

penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan. 2002, p. 13.


41 HULSMAN, Louk & CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói.

LUAM, 1993. p. 154.


42 ACHUTTI, Daniel. Justiça restaurativa e abolicionismo penal. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 38.
43 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan. 2001, p. 48.

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The positive special prevention seeks the resocialization of the subject, while
the negative special prevention has an intimidating and/or neutralizing character. They
are both directed at the criminal. First, it is necessary to take into account the selectivity
of the penal system and the dark figures of crime, that is, that most people who commit
crimes are not the object of state intervention. This means that, despite the fact that
people selected by the penal system are considered criminals and, thus, should be
resocialized or neutralized, this assessment is false once it is measured up only to the
smallest part of the authors of actions considered crimes.
Even if this fact is not taken into account and the theories of special prevention
are analyzed, one can observe that they do not hold up: resocialization assumes that
there is an asymmetry among the incarcerated people and the common citizens, with
the prison being an instrument of improvement, that is, of construction of positive
values within the incarcerated person. Contrary to what the theory suggests, the prison
system can be seen increasingly more as a form of degradation of the subject, that ends
up desocialized. The rates of recidivism indicate that; which also rebuts the intimidating
character of the passage through prison. Equally, it would be ethically questionable that
part of the society imposed on another an education so that the latter lived according to
the imposed social morals. In that case, in practice, the subject ends up apprehending
the existing moral in prison.
The negative special prevention, with its neutralizing craving, is based on an
indemonstrable premise: that the subject, when free, be it after punishment or not, will
necessarily go back to committing crimes. If there really was any way to verify with
precision that someone will commit a crime, we would have, in fact, a form of
preventing crimes. With the absence of precision, the referred theory becomes a
justification to create penalties increasingly greater, that violates individual guarantees
and human rights, which will affect the usual targets of the penal system.
General prevention suggests an educational function of punishment, betting
on Criminal Law’s communicative capacity to strengthen positive values in the society,
so that other people do not repeat the convicted subject’s conduct. The negative side of
the prevention is the discourse of the fear of punishment, when the penalty would serve
to dissuade other people not to commit the same conduct of the one who was
convicted.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p. 444-471.
Jehanne Hulsman e Diogo Justino.
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In Zaffaroni, Nilo Batista, Alagia & Slokar, it is seen that negative general
prevention does not find grounds if compared to social reality and brings us to
consequences that are incompatible with the Rule of Law44, because (1) it works with a
market-rational-mechanic notion of men, that in all cases will evaluate the cost-benefit
of his conduct; (2) it does not have dissuasive capacity proved, the only experiences of
dissuasive effect of the punitive power capable of verification being those of the states
of terror, with cruel and indiscriminate penalties; and (3) it mistakes the power of Law in
general, of social ethics and culture with punitive power and it is not convenient for a
society that people stop engaging in problematic situations out of the fear of
punishment and not because they are conflicted acts, nor it would be possible to sustain
a society whose members performed only actions they know are not criminalized 45.
The notion of positive general prevention indicates (1) a reaffirmation of the
norm protective of legal goods that are important to reinforce the trust in the legal
order and (2) the promotion of socially important values; which brings us to the
question of whether the imposition of a harm is a valid instrument to promote desired
social values. The answer must also take into consideration the historical load of
oppression of the punishment, that has vicious effects of exclusion and selection46.
It has not been proven that the penal system prevents criminal attitudes from
people who have not committed crimes (from Hannah Arendt to Louk Hulsman) 47, since
the criminal statistics themselves are flawed on that subject. Normally, when criminality
statistics are discussed, in reality they are criminalization statistics, the actual criminality
being impossible to demonstrate. Hence criminology mentioning the dark or hidden
figures48.
Besides, we should take into account that the idea of general prevention
thoroughly demonstrates the negligence of Criminal Law towards the victim, since even

44 ZAFFARONI, E. Raul, BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro:
Primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan. 2003. p. 121.
45 ZAFFARONI, E. Raul, BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro:

Primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan. 2003. p. 118.
46 MARTINS, Antonio. “Sobre Direito, punição e verdade: reflexos acerca dos limites da argumentação

jurídica”. In: DIMOULIS, D. et al. Justiça de Transição no Brasil: Direito, Responsabilidade e Verdade. São
Paulo: Saraiva. 2010. p. 86.
47 “No punishment has ever possessed enough power of deterrence to prevent the commission of crimes.”

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das
letras. 1999. p. 296.
48 The difference between the crimes that were committed and the crimes that make it to social awareness,

normally through the penal system. Most crimes do not get known by the authorities and do not get
punished.

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if the penalty does not heal their wounds or repair the damages, it is necessary to
impose a harm to the author of the crime to promote social cohesion or consensus49.
There are also victimless criminalized behaviors like traffic offences or drug offences,
which are tended to be forgotten in those theories. The penalty is aimed at the public
opinion, which means that crimes that are not enforced by the penal systems will never
be seen as crimes, and the responses are directed at the executioners or possible
executioners for future victims, so that the victim’s suffering is not taken into
consideration. As for the result, the positive general prevention does not differ from the
negative general prevention, and the more quarrelsome is a society because of its
structural injustice, the less consensus there will be, and we will always need higher
forms of punishment.50
On the insufficiency of the theories that justify the punishment, Klaus Gunther
teaches us that both retribution and prevention do not resist a more detailed analysis,
leaving us the issue of non-official justifications, in a context of great confidence and
demand of punishment, a demand that would be beyond evidence and would still be
waiting for the arrival of enlightenment.51 Going further on punishment justifying
theories, Salo de Carvalho states that before asking “why punish?” we should ask
whether or not to punish, that is, do we need to punish? Here, penal abolitionism
appears as a negative answer52.

6. Abolition of the criminal justice system, the development

Penal abolitionism is a broad movement that escapes from dogmatism. There can be no
precise definition. Abolition of prison, of punishment and control culture, of punitive
power; these are common grounds of abolitionism criticism. A minimalism53 with an

49 ZAFFARONI, E. Raul, BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro:
Primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan. 2003. p. 121.
50 ZAFFARONI, E. Raul, BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro:

Primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2003. p. 122-123.


51 GUNTHER, Klaus. Teoria da responsabilidade no estado democrático de Direito. São Paulo: Saraiva. 2009.

p. 57.
52 CARVALHO, Salo. Antimanual de criminologia. São Paulo: Saraiva. 2015. 243-44.
53 Maximum limitation to the punishing power and progressively diminishing criminal offenses as defined by

law.

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abolitionist orientation of the future, or even an abolitionism as a way of life - abolishing


the punishment within ourselves and in our relationships - also arises.
In Louk Hulsman’s abolitionism, personal accountability does not need to be
suppressed, but would only be used for civil rules on reparation that are already applied
to many fields. There would not be the need to refer to the concept of culpability - to
the Dutch criminologist, an ambiguous, imponderable, incomprehensible, metaphysics
and scholastic. The proposition would be to abolish punishment as it is applied by the
penal system, a state organization invested in the power of producing evil without
taking into consideration the voices of interested parties. This does not mean rejecting
any coercive means, making it necessary to investigate in which conditions the
application of certain restraints to individuals may have any effect on pacifically
reactivating the social fabric.54
Another of Hulsman’s idea is that the existence of guilty persons is not
indispensable to the reparation of the damages that were caused; the insurance
systems, for example, work with the notion of risk and not culpability55; add to that the
fact that many crimes (perhaps, most of them) do not even get to be solved, that is,
their authors shall remain unknown; and in other cases, not addressed by the penal
system, such as workplace accidents, the ultimate goal is the compensation of the victim
and not the punishment of a guilty person56. By criticizing the bureaucratization of the
penal system, which does not allow a satisfactory agreement among the parties and that
puts front to front the state organization and an individual, being therefore unbalanced,
the conclusion is that such a model lacks the conditions to produce a humane
punishment and that, at the macro level, the ideas of punishment and individual
responsibility end up fictitious, unfruitful, traumatizing 57. There are many forms of
responding to undesirable behavior. Hulsman points to the existence of the punitive

54 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói.
LUAM, 1993. p. 86-87.
55 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói.

LUAM, 1993. p. 72.


56 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói. LUAM,

1993. p. 73
57 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói.

LUAM, 1993. p. 87.

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model, the reparatory model, the therapeutic model and the conciliatory model58. The
punitive solution simply excludes the other possibilities. 59
A ponderation about “the right” or “the need” to punish, that intends to be
situated on this level is, therefore, aberrant. Only in the closest contexts,
where concrete meanings can be attributed to the ideas of individual
responsibility and of “punishment”, is where it will eventually be possible to
resume such ponderation, be it at mezzo level of relations among individuals
and groups or institutions to whom they are close, be it at the micro level of
interpersonal relationships - there, where it is possible to recover what was
lived by the persons.60

Mireille Delmas-Marty inscribes abolitionism in the desire of seeing conflicts


being dealt with outside of the State and under the responsibility of the people directly
implicated and the community of which they are part 61. The question would be whether
such a community exists or meets the conditions to exist. The author mentions the
appearance of two distinct species of community networks, which have in common
resorting to instances of societal regulation. The comrades’ courts or people’s courts62,
established in the USSR to respond to small conflicts in the work, family and societal
areas (cases such as indiscipline in the workplace, drunkenness in public places,
insulting, minor wounds and small equity litigations). Those courts did not enforce
penalties, but social influence measures - such as warnings, reprimands, apologies and
fines. According to Delmas-Marty, however, despite the comrades’ willingness of making
themselves liable for the infraction-wrongdoing, it was the State that imposed such a
framework through a regulation, firmly controlling its functioning 63. Another model, the
neighborhood communities64, would theoretically be freer from the State.
The aforementioned case appeared in San Francisco (USA), where the
community boards reach over a third of the population, composed of voluntary
members belonging to the neighborhood, who mediate local conflicts. This system is

58 ZAFFARONI, E. Raul & PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro – Parte Geral. 2004.
p. 59
59 ZAFFARONI, E. Raul & PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro – Parte Geral. São

Paulo: Revista dos Tribunais. 2004. p. 60.


60 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói. LUAM,

1993. p. 88.
61 DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Barueri: Editora Manole. 2004, p. 308-

309.
62 DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Barueri: Editora Manole. 2004, p. 309-

310.
63 DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Barueri: Editora Manole. 2004, p. 310.
64 DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Barueri: Editora Manole. 2004, p. 311-

313.

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based on four principles: a) searching for and accepting the positive side of each conflict;
b) pacific manifestations in the interior of the community reduce the existing tensions
and increase the chances of finding a real solution; c) that the individual and the
community accept the responsibility of their own conflicts; and d) the voluntary solution
of a conflict is necessary and encourages a spirit of cooperation within the community.
According to Nils Christie, in the current model we are trapped by the
necessity of punishment, and we are not able to think of alternatives. For him, the
penalty may be an option, but it should not be the only one, nor the first one.
Punishment should be used in rare cases when the non-utilization ends up causing
greater damage65. To Matías Bailone, this possibility is incredibly rare, because, in the
best case scenario, the penalty leaves conflict as it is, and in the worst case, it worsens
the situation66. To the conflicts we do not know how to solve, but to which, as a false
solution, we attribute a criminal nature, Zaffaroni proposes answering with the so-called
grocer logic. Thus, if a person goes to the grocery looking for antibiotics, the grocer will
tell them to go to the pharmacy, because he only sells greens. Penalists would have a lot
to learn with the grocer67.
Christie mentions the case of a Nazi hanged at the door of a concentration
camp after the liberation of the inmates, and proposes a solution with attribution of
responsibility. There would be a judgment. Day after day, survivors would describe what
had happened and express their drama. The commander would be able to defend
himself, in front of the survivors and of who else would be judging. If the judge were
free, he could deliver the following sentence:
You have clearly done it. You have administered the death of more than a
million human beings. You are guilty. Your acts are morally repulsive to an
extent beyond what can be imagined. We have heard it. Everyone in the
civilized world will get to know about your horrible acts carried out at this
horrible place. No more can be said and done. Go away in shame.68

65 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan. 2011. p. 131.
66 BAILONE, Matías. Abolicionismo, o cómo destruir el arrogante imperio del poder punitivo. Available at:
<http://www.terragnijurista.com.ar/doctrina/abolicionismo.htm>. Access on: 16 jan. 2021.
67 The penalty is not the only form of state coercion. Batista and Zaffaroni indicate us that the state coercion

can be (1) the reparatory or restitutive, normally used in private law, where the State imposes by force the
fulfillment of a debt, by garnishment, for example; (2) the direct or police coercion, in cases where it is
necessary to deter an imminent injustice or one that is in course, the latter being the case of the
imprisonment of a person caught in the act; (3) finally, the penalty by which the state force imposes a
suffering because of a past act. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR,
Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 101.
68 CHRISTIE, Nils. A suitable amount of crime. New York: Routledge, 2004, p. 88.

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If guilt and shame must be applied, then it should be in a restorative model,


that reconstructs the house and maintains the community 69, keeping distance from the
ideals of the criminal law70. Close to this idea, Antoine Garapon understands that
punishment was not entirely absent from the Truth and Reconciliation Commission from
South Africa; it may have taken the form of shame, that took over the great number of
persons who had to publicly confess their crimes71. Shame played as a substitute to
penalty. The forgiveness requests were judged in public audiences, with television and
radio transmissions. Friends, neighbors and family wound up knowing what those
people had done72. Likely, Klaus Gunther points out that if the goal is to publicly state
that there has been an injustice and to attribute it to a person, a declaration of guilt
should be enough, being unnecessary an additional infliction of harm 73. Juarez Tavares
stands for something similar when reckoning the illegitimacy of the penalty, and,
considering that legality is nothing but a symbolic appeal of justification of power, it
would only be up to the State to deplete the guilt also through a symbolic proceeding,
without any other consequence. Then, we would have a declaratory judgment of guilt,
without the consequential imposition of a penalty. This should be the true and only
mission of the penal system74.
Sebastian Scheerer says that punishment has always existed and will always
exist. The idea of a negative sanction is a part of any society. He affirms that punishment
must exist (as well as the legal system that makes living together as society possible) and
questions if there should exist a criminal Law 75. Among the main concerns of
abolitionists is the reinclusion of the victim in the process of conflicts resolution. Thomas
Mathiesen, for example, states that the victim does not get anything from the current
model, and, instead of worsening the punishment according to the gravity of the
transgression, he proposes increasing the support to the victim according to such

69 To Garapon, the reconstruction of the legal community weighs on the legal process, through the
acknowledging of the victims, honoring the memory, telling the story and preventing a war. GARAPON,
Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Piaget. 2004. p. 17.
70 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan. 2011. p. 147
71 GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Piaget. 2004. p. 240.
72 GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Piaget. 2004. p. 240-241.
73 GUNTHER, Klaus. Teoria da responsabilidade no estado democrático de Direito. São Paulo: Saraiva. 2009.

p. 61
74 TAVARES, Juarez. Os objetos simbólicos da proibição: o que se desvenda a partir da presunção de

evidência. Available at: <http://anima-opet.com.br/pdf/anima5-Seleta-Externa/Juarez-Tavares.pdf>. Access


on: 16 jan. 2021.
75 SCHEERER, Sebastian. A punição deve existir! Deve existir o Direito Penal? Revista Brasileira de Ciências

Criminais: RBCCrim, São Paulo, v. 23, n.117, p. 363-372, nov./dez. 2015.

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gravity76. He seeks ways of supporting victims, such as financial compensations from the
State, insurance systems, financial support in case of mourning, shelters and help
centers.

7. Some paths on abolition and reform

In this work, we affirm the centrality of the theme of public security and prison in the
current political scenario, whether from the demands of progressive movements in a
critical perspective or, on the other hand, in the populist-punitive proposals of
conservative sectors. This tension between dissonant ideas forces us to think of
solutions that break a punitive almost-consensus that we have observed for some time.
According to Angela Davis77, the most difficult and urgent challenge today is to
creatively explore new terrains of justice, where prison no longer serves as our major
anchor. Similarly, to Vera Malaguti Batista one of the challenges in the near future will
be formulating a radical critique of the penal system and its constituent functions: the
control of resistant ones and the maintenance of capital accumulation process’ order 78.
For that, it will be necessary to put before us the old dilemma between
abolition and reform. While there was no horizon for the abolition and production of
new ways to do justice to problematic situations, reforms were thought to improve the
system, making it less violent. Some of these proposals were made to emerge in
scenarios where the minimum dignity of prisoners was denied. Other reforms
contributed to increased control and increased incarceration.
We believe that an important key to thinking about this theme is the idea of
non-reformist reforms, expressed by Patrisse Cullors 79, one of the founders of the Black
Lives Matter movement. These are changes in the system that contribute to its decline,
not to its reorganization. Reforms that are going to get us closer to abolition.

76 MATHIESEN, Thomas. “A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível?”. In: PASSETTI, Edson
& BAPTISTA, Roberto. (orgs.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade
punitiva. São Paulo, IBCcrim/PEPGCS-PUC/SP, 1997, p. 276.
77 DAVIS, Angela. Are prisons obsolete? New York: Seven Stories Press. 2003, p. 21.
78 BATISTA, Vera Malaguti. “Adesão subjetiva à barbárie”. In: Loic Wacquant e a questão penal no

capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.


79 Interview available at: https://www.teenvogue.com/story/black-lives-matter-patrisse-cullors-interview-

prison-abolition-angela-davis-yara-shahidi.

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In this sense, there are requests for Defund the Police, which gained strength
in the USA and directly affect the police budget, redirecting them to communities and
other public policies. In the State of Rio de Janeiro, for example, the budget of the
Department of Public Security corresponds to the budgets of the Departments of Health
and Education combined.
The redirection of the police budget to the communities poses another way of
responding to conflicts diametrically opposed to the legal form, which individualizes the
problem and the supposed solutions. Because of this, critics of the criminal justice
system should look carefully at alternative proposals to the system that use an
individualizing logic, as can happen in restorative models or in civil responsibility. One of
the tasks of critics of the prison will be to think of other forms of accountability that go
beyond individual responsibility, to think in multi-disciplinarity.
One of the problems of the simplification that inevitably is a consequence of
using such a complex and vast system as the criminal justice system to address social
problematic situations, is that those situations are often not that clear cut. In public
space when young people challenge each other, it is not always the one injured that is
the victim, the person injured might even have started the fight. In domestic situations it
is not always easy to find out where the real problem lies, and who would be
responsible for that problem. In cases where society does not answer to the needs of
people that are excluded and without housing or enough means to feed themselves and
their children, could you really see them only as ‘breakers of the law’ and therefore
responsible or could you also see them as a victim of those shaping policies that exclude
and use people, taking their land and properties, abusing their labor potential for fast
profit at the expense of the health of the workers.
In the abolitionist struggle many tools are good. At the same time that it is
important to formulate radical criticisms of punitivism, denouncing its innocuous
violence and above all its dysfunctionality, it is also necessary to intervene politically to
create spaces for change that will move us towards the end of prisons.
The Breath Act 80, for example, presented at the US Congress, formulates
several policies of new, non-punitive, non-carceral approaches to community safety that
lead states to shrink their criminal-legal systems, with an abolitionist horizon. It is a
proposal for legislative change that not only changes the laws, but puts the public

80 Learn more: <https://breatheact.org/learn-more/>. Acess on: 16 jan. 2021.

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debate the way it should be put: in terms of overcoming the current criminal justice
system. In Brazil, several platforms against incarceration have been produced in the last
few years, with proposals for concrete measures, such as the Agenda Nacional pelo
Desencarceramento81, which claims fund suspension in order to stop new prisons’
construction and also the resumption of community autonomy for non-violent
resolution of conflicts; and pressure on politicians in national and municipal elections. It
would also be important for abolitionists to support and elect representatives who are
committed to this cause.
Furthermore, it is mainly important to conduct this debate honestly with the
general public; that is, clearly affirming penal abolitionism as an answer to what to do
about the events that we call "crimes". Otherwise, we will always be hostages to
populist agendas, always placed against a wall, formulating restraining responses, which
alleviate the problem or serve to reorganize and nurture the control and prison system.
Don’t you know? They’re talking about a revolution.

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81 Learn more: < https://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2018/11/AGENDA_PT_2017-1.pdf>. Acesso


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About the authors

Jehanne Hulsman
Journalist, Writer and Attorney. Director of the Hulsman Foundation. Board
Member of the Human Rights Foundation (2005 - 2010). Invited lecturer on
postgraduate courses in Dubrovnik (Croatia), in Johannesburg (South Africa), in New
Delhi (India), and in the European Group of Critical Criminology and at ICOPA
(International Conference on Penal Abolition). Guest Teacher at the Free University
in Berlin and in Kiel University. E-mail: info@hulsmanfoundation.org

Diogo Justino
Master and PhD in Theory and Philosophy of Law (State University of Rio de
Janeiro), with sandwich period at the Superior Council of Scientific Investigations
(CSIC - Spain). Coordinator of the Working Group on Law, Memory and Transitional
Justice at IPDMS (Institute for Research, Rights and Social Movements). Member of
the Laboratory of Critiques and Alternatives to Prison (LabCap). Master's Professor
at Vale do Cricaré University (FVC-ES). E-mail: diogopjs@gmail.com

The authors equally contributed to the writing of this article.

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Prisión global: dicotomías del encierro en la actualidad


Global prison: dichotomies of confinement today

Diana Restrepo Rodríguez¹


¹ Universidad de San Buenaventura Cali, Valle del Cauca, Cali, Colômbia. E-mail:
diana.restrepo.rodriguez@gmail.com, dmrestrepor@usbcali.edu.co. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-4366-9401.

Artículo recibido en 15/01/2021 y aceptado en 10/02/2021.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Resumen
La cultura hegemónica de nuestra sociedad parte de las dicotomías, y entre ellas una
nuclear que permite la existencia del castigo y su uso como principal método de control
social: la división entre buenos y malos. Sin embargo, en la complejidad de esta
modernidad las dicotomías son muchas y entrelazadas. En este artículo se explora la
existencia de una prisión global que presenta múltiples rostros y que sirve como
diagnóstico y a la vez como pronóstico de los variados encierros del siglo XXI, y ojalá como
herramienta para su comprensión y futura abolición, en el marco del actual capitalismo
de la vigilancia.
Palabras Clave: Prisión; Abolicionismo; Capitalismo de la vigilancia; Pandemia.

Abstract
The hegemonic culture of our current globalized society is based on dichotomies and
among them a nuclear one that allows the existence of punishment and its use as the
main method of social control is: the division between good and evil. However, in the
complexity of this modernity the dichotomies are many and intertwined. This article
explores the existence of a global prison that presents multiple faces and serves as a
diagnosis and at the same time as a prognosis of the varied confinements of the 21st
century, and hopefully as a tool for understanding and abolish them in the future, in the
current surveillance capitalism.
Keywords: Prison; Abolitionism; Surveillance capitalism; Pandemy.

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1. Introducción: un mundo dicotómico1

La división entre buenos y malos, división fundamental que permite todo tipo de castigo
(HULSMAN e BERNAT DE CELIS, 1983) (GUAGLIARDO, 2013), junto con la jerarquización
social fruto de la organización patriarcal (GALINDO) (FEDERICI, 2010), y la imposición del
sistema cultural (de origen occidental) y total del capitalismo globalizado (MARINAS,
2012) (ZUBOFF, 2020) con sus mutaciones a lo largo del tiempo, han diseñado nuestro
mundo actual. Un mundo absolutamente castigador (GARLAND, 1999) (2012),
dicotómico, inequitativo, destructor y despreciador de la vida humana, animal, y de la
tierra en general (RADFORD RUETHER, 1990) y lleno de mentiras.
Una de esas mentiras es que necesitamos el castigo, en cualquiera de sus
formas, para generar personas responsables y posibilitar una convivencia respetuosa de
los derechos humanos. Dentro de ello, muy especialmente, encontramos la gran y popular
mentira de que las prisiones tienen que existir. En la academia ha sido ampliamente
demostrado que esto no es cierto, que la prisión en lugar de prevenir la criminalidad o
disminuirla, la aumenta (MATHIESEN, 2003) (FRANCÉS LECUMBERRI e RESTREPO
RODRÍGUEZ, 2019); y que sus funciones (para lo que sirve realmente) son otras muy
diferentes: controlar poblaciones marginalizadas (WACQUANT, 2001), continuar e
incrementar las divisiones sociales de clase (BARATTA, 2004), generar la ilusión de que los
gobiernos de cada Estado aún son quienes deciden y gobiernan, producir las riquezas que
se dejaron de producir con el “fin” de la esclavización de las personas negras (CHRISTIE,
1993) (DAVIS, 2003), generar tranquilidad y distraer a la población de las soluciones reales
a los problemas sociales.
Sin embargo, la prisión no solo sigue existiendo, sino que cada día crece más y
más, especialmente para las mujeres (METAAL e YOUNGERS, 2011) (ANITUA e PICCO,
2012) (INTER-AMERICAN COMMISSION OF WOMEN (CIM), 2014) en dimensiones antes
inconcebibles, y en nuevas formas también, algunas extramurales (por fuera de los muros
tradicionales de las penitenciarías y otros centros de encierro masivo).
En la base de todo está la idea que niega la unidad de todo, que separa, que
marca nuestra lógica dualista (CAVALLÉ CRUZ, 2008). De allí el poder de lo simple, porque

1Este artigo é o resultado de uma investigação do Grupo de pesquisa GIPCODEP da Universidad de San
Buenaventura Cali, Facultad de Derecho y Ciencias Políticas, Valle del Cauca, Cali, Dirección: Cra. 122 # 6 – 65,
Código Postal: 760008, Colômbia, onde a autora é professora pesquisadora.

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con solo lograr que cada persona no creyera que otra puede ser mala mientras ella es
buena, y por ende no pudiera juzgar y arrogarse el derecho de castigar, el ciclo destructor
del castigo se terminaría, y con él ese mundo dicotómico señalado. Pero, aunque con esta
esperanza, en este texto se quiere algo menos pretensioso: tratar de evidenciar las formas
que adquiere la prisión en la actualidad, en nuestra realidad atravesada por pandemias,
tecnologías sin par, sensaciones de libertad y de miedo que solo esconden mayores
opresiones, o como lo representa tan bien ZUBOFF (2020), en este capitalismo de la
vigilancia2.

2. Las estratificaciones del encierro

Los encierros hoy se estratifican como el resto de manifestaciones de nuestra sociedad:


ya no solo el derecho penal es selectivo y desigual, como lúcidamente lo enseñó la
criminología crítica (BARATTA, 2004) (ZAFFARONI, 2009) (DEL OLMO, 1981) (DEL OLMO,
1990); la prisión, dentro de su propio universo conectado y desconectado de la sociedad
también lo es. Lo que se quiere decir con que la prisión es un universo a la vez conectado
y desconectado (una dicotomía más), es que dentro de cárceles y penitenciarías vemos el
reflejo más claro de la sociedad de afuera de sus muros, y que las personas que allí se
encuentran, en contra de las lógicas de exclusión promovidas por estas formas de castigo,
siguen haciendo parte de la sociedad, de ella vienen, con ella siguen manteniendo
vínculos (difíciles) y a ella volverán, quienes puedan sobrevivir. Pero también es cierto que
la lógica del encierro penitenciario (y de todos los encierros colectivos3) busca separar,
excluir, alejar y generar la sensación de que los problemas se han ido de la sociedad, de
que se encuentran en un lugar que es a la vez un no lugar: invisibilizado, desconectado. Y
esto es aún más así en los actuales modelos arquitectónicos de las prisiones que pueblan
las afueras de las ciudades, en donde se aumenta la despersonalización con la
masificación del encierro, y se dificultan las visitas familiares, al tiempo que la prisión

2 “El capitalismo de la vigilancia no es una tecnología; es una lógica que impregna la tecnología y que la pone
en acción. (…) Es el capitalismo -no la tecnología- lo que pone precio a la subyugación y a la impotencia”
(ZUBOFF, 2020, p. 30).
3 Piénsese en las experiencias que narran las personas secuestradas por la guerrilla en las selvas colombianas,

(BETANCOURT, 2010) (ROJAS GONZÁLEZ, 2009) donde se observa la importancia de los premios, los castigos,
la ruptura de cualquier solidaridad entre quienes sufren el cautiverio.

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como espacio tangible sale de los paisajes cotidianos y sigue cerrando sus puertas a la
comunidad, facilitando su olvido y deformación en las mentes de las demás personas.
En una mirada global, podríamos pensar en las diferencias que hay entre una
prisión, con altos éxitos de reinserción y respeto por los derechos humanos como la de
Halden, en Noruega (¿Qué invadimos ahora?, 2015) (PRATT, 2008) (SELKE, 1993),
(JOHNSEN, GRANHEIM e HELGESEN, 2011) en donde no hay hacinamiento, los y las
funcionarias están al servicio de las personas presas para tratar de generar buenas
condiciones de vida, diálogo, reflexión y desarrollo humano. Se trata de prisiones que,
vistas desde la periferia, ofrecen mejores condiciones de vida (mucho mejores) que las
que tienen la mayor parte de la población en libertad en estas amplias regiones del
mundo. Pasando a otros escenarios, fuera de los países escandinavos, podríamos pensar
en las prisiones europeas, con las diferencias existentes entre aquellas suizas,
portuguesas, alemanas, españolas, italianas, etc., en las que, a pesar de haber grandes
problemas, se respetan medianamente los derechos humanos y las condiciones de vida
son ligeramente confortables.
La estratificación continuaría, quizá, con las prisiones asiáticas, las
latinoamericanas y africanas, en donde los derechos humanos son una ilusión, y las altas
tasas de hacinamiento, entre otros problemas estructurales, impiden las condiciones de
vida digna, e incluso, en muchas de ellas, la vida misma, por los insoportables problemas
de higiene, atención en salud, y los altos índices de violencia tanto por parte de quienes
garantizan la vigilancia como por riñas entre las personas privadas de la libertad. Podría
hacerse toda una clasificación de las prisiones del mundo, con sus cerca de once millones
de habitantes en contra de su voluntad (PRISON INSIDER, 2020) y un buen número de
vigilantes o guardias que también viven allí. Y aún así, en cada país, habría luego que hacer
una nueva clasificación, porque ningún estado tiene todas sus prisiones en el mismo nivel
(con las mismas condiciones de vida, programas, espacios, oportunidades, tasas de
violencia, etc.), no podrían funcionar, porque para gestionar la disciplina, generar acceso
a los programas más ventajosos, y en general para poder controlar a la población
encerrada, se requiere que haya “cárceles de castigo” con que presionar y continuar la
dinámica del control social del castigo: “compórtate como se te indique, porque siempre
habrá un lugar peor donde puedas ir”.
Tampoco cada patio, pabellón, módulo, o como se quiera llamar a los diferentes
espacios dentro de cada prisión puede ser igual, por los mismos motivos. Quizá vale la

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pena detenernos un poco en cómo se da esta estratificación al interior de una prisión,


para comprender el sentido de esta dinámica.
Diferentes estudios sobre varios programas “exitosos” en las prisiones
demuestran que el aconductamiento, el control al interior de las prisiones, depende en
gran medida de poder movilizar a las personas a distintos espacios con diferentes
condiciones de vida y beneficios (FRANCÉS LECUMBERRI, 2015). El poder disciplinario del
que tanto se ha escrito hace ya muchos años se ha perfeccionado y ha evolucionado, hasta
aterrizar en los sistemas premiales actuales de los que se hablará más adelante, pero los
cuales requieren de esta intrincada red de estratificaciones, tal y como sucede afuera, en
el mundo extramural.
Todo lo anterior obedece a la cara actual del castigo: el sistema premial, pero
antes de abordar ese tema, debemos entender por qué las prisiones, a pesar de su
reconocido fracaso tanto para la prevención de los delitos como para la “resocialización”,
“reinserción”, o en general para la pacificación social, siguen existiendo y ampliándose.

3. Prisión global

Michel FOUCAULT (2005) (2010) decía que la prisión solo terminaría cuando toda la
sociedad fuese una gran prisión. Y esa fue quizá la ilusión de varias personas, seguramente
de algunas privadas de la libertad y sus familias, cuando en los primeros días de la
cuarentena o aislamiento obligatorio frente al COVID-19 se empezó a ver cómo varios
países e incluso varios estados de USA empezaban liberaciones, y también increíblemente
el gobierno colombiano parecía interesado en que de la prisión salieran (no de sistema
penal, pero sí de las conocidas como medidas intramurales) unas 10.000 personas. Muy
poco, pero para este gobierno, en Colombia, mucho. Eso por supuesto desde la noche del
14 de abril se desmintió, cuando salió el tan esperado y vergonzoso Decreto 546 de 2020,
que no sirvió para prácticamente nada, pues sólo pudieron salir de las prisiones 4.000
personas, y se incrementó el hacinamiento, ya insoportable, en estaciones de policía y
centro de detención transitoria del país, cuando sólo para que no haya hacinamiento se
requeriría que salieran unas 40.000 personas.

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Pero se estaba hablando de Foucault y sus predicciones: las prisiones


desaparecerán cuando todo el mundo sea una gran prisión… Entonces siguiendo esa línea
tendríamos que preguntarnos dos cosas:
1- ¿Es el mundo entero hoy una gran prisión, o al menos está convirtiéndose en
eso a grandes pasos?
2- Y si es así, ¿por qué no está desapareciendo la prisión de “siempre”?
Frente al primer punto, puede decirse que con la pandemia actual, en unas
pocas semanas, o días, el mundo empezó a vivir un confinamiento sin precedentes…
Algunas personas se sienten “encerradas”, y como en la prisión, los encierros son todos
muy diferentes, no sólo porque cada persona vive esta experiencia de manera totalmente
única, sino por las condiciones externas. Todas las casas, así como todas las cárceles, son
diferentes: unas más estrechas que otras, unas un lugar tranquilo, otras un lugar de
sometimiento, de terror: piénsese por ejemplo en las mujeres y niñas que han tenido que
vivir el encierro con sus agresores. Y recuérdese también el incremento de casos de
violencia intrafamiliar y feminicidio en estas épocas de aislamiento por el COVID-19: por
ejemplo en Cali (Colombia), según cifras de la Secretaría de Seguridad y Justicia y la
Secretaría de Equidad de Género, entre el 1 de enero y el 6 de abril de 2020 se registraron
10 feminicidios, mientras que en el mismo período del año anterior se presentaron 4
casos, y de esos 10, 3 sucedieron durante la cuarentena obligatoria (PERIODICO EL PAÍS,
2020). Hay quienes viven en casas sin espacio y otras personas en grandes manciones con
jardines, piscinas, etc.
Pero ¿puede decirse que el mundo sea una gran prisión porque argumentando
una necesidad de salud se ha restringido a todos la libertad de locomoción? No lo creo
así, porque entiendo que el avance hacia esa gran prisión ya estaba presente desde hace
mucho más tiempo, y que la emergencia de salud del COVID solo nos ha permitido darnos
cuenta con mayor facilidad de algunas cosas que ya existían, del poder de los más ricos y
del uso de los Estados para el control global.
La gran prisión entonces se refiere a toda una serie de mecanismos de control
social y disciplinamiento perfeccionados, que se evidencian con mayor facilidad en la
Pandemia, pero que seguramente aún estamos por presenciar: el control a través de los
smartphones, de los sistemas de rastreo y localización, del rastreo de compras,
reconocimiento facial (GARLAND, 2012), etc., toda la vigilancia electrónica… Todo el
capitalismo de la vigilancia:

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Buena parte de esta nueva labor se efectúa bajo el paraguas de la


personalización, que es un modo de camuflar una serie de agresivas
operaciones de extracción que explotan las profundidades íntimas de la vida
cotidiana como si de una mina se tratara. A medida que la competencia se
intensifica, los capitalistas de la vigilancia aprenden que no basta con extraer
experiencia humana. Las existencias de materia prima más predictivas de
todas son las que proceden de intervenir en nuestra experiencia para moldear
nuestro comportamiento de tal modo que favorezca los resultados
comerciales pretendidos por los capitalistas de la vigilancia. Se diseñan así
nuevos protocolos automatizados para influir en la conducta humana, y, a su
vez, modificarla, mientras los medios de producción se subordinan a un nuevo
(y más complejo) medio de modificación conductual (ZUBOFF, 2020, p. 36).

No quiero que se piense que digo que “el encierro” que vivimos las personas en
el confinamiento sea equiparable al encierro que viven las personas presas, pero sí creo
que la privación de libertad, no sólo física sino mental y emocional sí va avanzando a pasos
agigantados hacia una gran prisión global. Y la vigilancia se ha facilitado enormemente en
estos tiempos de pandemia, y para entender eso, estudiar más la prisión nos puede
ayudar mucho.
Y es que la prisión, al ser un reflejo de la sociedad, pero mucho más condensado
y crudo, es decir, al ser el espejo ampliado del resto de la sociedad, de sus desigualdades,
de sus lógicas, de sus miserias y de sus crueldades, nos ayuda a comprender, cuando nos
permitimos verla, no sólo lo que pasa adentro sino lo que pasa afuera.
Por eso ahora se hablará de la prisión premial. Pero antes recordemos lo que se
venía diciendo. Se supone que si el mundo es o se está volviendo una gran prisión global,
la prisión que veníamos conociendo hasta ahora debería desaparecer… Y desde ahora
diremos que esto no es así. No es así porque en la época de Foucault aún no se tenía tan
claro como hoy cómo iban a ser esas prisiones. Entendiendo la prisión actual, podemos
entender por qué, al contrario, cuando el mundo termine siendo una gran prisión, dentro
de ese proyecto de opresión y desigualdad global que consolida el sistema consumista, la
prisión “de siempre”, aunque con cambios, sigue teniendo un rol fundamental.
Esa transformación de la prisión es la que nos hace hablar de un Sistema
premial. Cuando uso la palabra sistema me refiero a eso, un sistema, no solo
penitenciario, sino un sistema de gestión de comportamientos, de control social, que se
basa en el premio. Porque el premio es una de las evoluciones actuales más importantes
en las lógicas del castigo.

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4. El castigo en los sistemas premiales

El castigo ha existido siempre, pero ha evolucionado y sigue evolucionando, como todo.


Un autor que explica este proceso con gran lucidez es David Garland (GARLAND, 1999,
2012). De todas sus indicaciones, la que más nos sirve para entender lo que se quiere
exponer en este texto es la de que el castigo ha ido pasando de centrarse en el cuerpo a
hacerlo sobre la consciencia. También GUAGLIARDO (2013) (1991) (1994) (2005) (2012)
nos muestra lúcidamente, desde su experiencia de más de 30 años en prisión, este
fenómeno.
El tipo de castigos que se han privilegiado en la sociedad moderna, tanto en el
ámbito familiar, escolar, como en el estatal y específicamente en el del sistema penal, ha
ido de la mano de la evolución del capitalismo.
La prisión surge a finales del siglo XVIII, a la par del surgimiento y consolidación
del capitalismo, no sólo como sistema económico sino como sistema cultural. Y desde su
inicio ambos sistemas han evolucionado juntos. Antes de su consolidación, diferentes
formas de encierro de mujeres (en sus hogares, en manicomios, en centros de corrección)
permitieron experimentar cómo controlar a las personas en medios así (lo que se
terminaría de perfeccionar con la igualmente trágica experiencia de los campos de
concentración (FRANKL, 2015) y en la época del protocapitalismo o capitalismo comercial
(en el siglo XVI) se empezó a explorar con el castigo de la galera o el presidio con trabajos
forzados orientados a reforzar el sector primario de la economía, que para entonces se
ubicaba en la base del comercio naciente y que aún tenía como base de la identidad social
de las personas el linaje (MARINAS, 2012).
Luego, con el capitalismo de producción industrial nace también la prisión
moderna (SANDOVAL HUERTAS, 1998), y el trabajo se posiciona como el centro del valor
de las personas que venden su tiempo de vida; así mismo, la prisión despoja de ese valor
que el capitalismo asigna a cada persona: su tiempo (MESSUTI, 2001)4.

4 “El Fordismo empresarial (…) tiene que ver con la transformación del sistema fabril del capitalismo industrial
manchesteriano en una organización calculable y previsible de la producción mediante un sistema de
dominación jerárquica, es decir, con la conversión de las empresas en un sistema de comando. Para que esto
fuera posible, la influencia de la reproducción social y los factores individuales debían ser neutralizados en la
producción. El objetivo era realizar una producción planificada, llamada a alcanzar una posición dominante
sobre el mercado y el consumo, que deberían quedar subordinados a aquella. Para esto resultaba esencial
integrar la fuerza de trabajo en una rígida estructura de producción de carácter técnico-organizativo y en un
sistema de poder fuertemente jerarquizado. La estructura organizativa de la empresa se debía asemejar a
una organización militar cuyo principio es la renuncia a la propia voluntad, para hacer aquello que es

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Con la llegada del siglo XX se materializa el capitalismo que algunos autores


llaman la variante posfordista neoliberal del capitalismo (ZAMORA, 2013, p. 158), y que
MARINAS (2012) describe como el capitalismo del consumo, en el que la identidad social
ya no se determina por el tipo de trabajo que se desempeña sino por lo que se consume:
vestuario, vehículos, restaurantes, lugares de esparcimiento, etc., y es el sector terciario
o de los servicios el principal motor de la economía. Allí, como indica ZAMORA (2013):
…es la persona misma la que es cooptada e incorporada al proceso
productivo. La subjetividad deja de ser un “factor distorsionante” para
convertirse en un factor central de producción. Esto pasa por una
responsabilización del trabajador asalariado de los resultados y, por tanto, del
funcionamiento del proceso de producción, lo que le convierte en “sujeto”
que ha de dirigir dicho proceso. (…) La totalidad de la persona con todo lo que
constituye su vida personal adquiere nueva relevancia en el funcionamiento
de la empresa (p. 157). / Los modelos de competitividad, consumo y
comportamiento abarcan el conjunto de la vida, también la vida íntima, las
relaciones sociales, la familia, el entretenimiento, etc. Se produce así una
congruencia entre las nuevas exigencias y el nuevo carácter flexible en un
nuevo mundo laboral. El “employable man” es flexible, autónomo y
arriesgado, busca permanentemente su autooptimización y por ello se
orienta por las demandas del mercado, trabaja en red y en base a proyectos,
es espontáneo y reacciona con prontitud a los cambios. Evidentemente estas
características no sólo son efectivas en el mundo laboral, sino que se
trasladan al mundo de vida (p. 165). / La neurosis que se gestaba en la
sociedad disciplinaria en torno al conflicto entre el deseo de trasgresión de la
norma y el miedo al castigo ha dejado paso el cuadro depresivo del
capitalismo postdisciplinario. La crisis crónica del yo tiene su origen en una
desmesurada responsabilización de sí y una exigencia desbordada de
autenticidad e individualidad. Por un lado se alimenta la ficción de un yo
soberano y por otro se minan las posibilidades de su realización. La
ampliación formal de la capacidad de decisión y acción de los empleados y la
valoración de la subjetividad, en un marco de flexibilización, de
deslocalización y de permanente confrontación con mercados inestables, son
experimentadas por los trabajadores no como una ampliación de su
autonomía sino como una heterodeterminación que favorece el desgaste
agotador (pág. 168).

También se afirma que en este periodo empieza a nacer el capitalismo


informacional (ZUBOFF, 2020, p. 29). En tal modelo las prisiones entran teóricamente en
el auge resocializador, y esto da pie a la legitimación de la intervención sobre las
conductas (tratamiento terapéutico) de las personas capturadas por las prisiones
(GARREAUD e MALVENTI, 2008), así como a que se termine el uso masivo de la mano de
obra presa, para en su lugar utilizar a consumidores cautivos. Esto se explica porque en

mandado. Para ello había que establecer un sistema de comando y control, así como de penalización efectiva”
(ZAMORA, 2013, p. 154).

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esta fase del capitalismo, no se requiere más mano de obra que incremente la producción,
sino que se necesitan más consumidores, puesto que la industria y la tecnología ha ya
permitido que la oferta supere la demanda, y con ello se requiere crear falsas necesidades
que activen el consumismo (MARINAS, 2012).
Sin embargo, finalizando el siglo XX y en lo que va del siglo XXI, hacen su entrada
en las prisiones la fidelización (GARREAUD e MALVENTI, 2008), los sistemas penitenciarios
actuariales (RIVERA BEIRAS, 1998) (RIVERA BEIRAS, 2017) (GARCÍA BORÉS ESPÍ e RIVERA
BEIRAS, 2016) y el sistema premial que en mi opinión engloba a los dos anteriores. Todo
ello en el marco de lo que ZUBOFF (2020) ha denominado capitalismo de la vigilancia.
El capitalismo de la vigilancia que inicia Google se da cuando lo que era un
buscador que usaba datos de los usuarios para mejorar el servicio de búsqueda, se pone
al servicio de la publicidad dirigida: ante la crisis del 2000 se da este giro en la compañía
y se empieza a usar toda la inteligencia artificial que se venía desarrollando para que ya
no importara tanto la palabra clave de quien buscaba sino los datos sobre el usuario que
realiza la búsqueda. Así, a través de ese excedente conductual que eran los datos que
quedaban sobre los usuarios del motor de búsqueda de google (en su momento inicial,
pues las fuentes de extracción de datos en la actualidad son mucho más amplias y
sofisticadas), formando la UPI – información de perfil de usuario por sus siglas en inglés-,
que esta compañía pudo obtener rentabilidades sostenidas y exponenciales como las que
exigía el mercado (ZUBOFF, 2020, p. 102-110). En 2002 fue totalmente claro que la
vigilancia informática era asombrosamente lucrativa (ZUBOFF, 2020, p. 108-110): “…la
combinación de una inteligencia de máquinas en continuo aumento y de unas existencias
igualmente crecientes de excedente conductual se convertirían en la base sobre la que
fundar una lógica de la acumulación sin precedentes” (p. 111). Y la vigilancia se amplia, a
través de medios informáticos, no solo al ámbito virtual sino a la realidad: a través de
dispositivos económicos como cámaras, mapas, reconocimiento facial, etc. Todo ello,
además, bajo el manto de lo que la autora llama “…una división excluyente del aprendizaje
protegida por el secretismo, la indescifrabilidad y el saber experto” (p. 441) y en donde
“Los procesos automáticos realizados por máquinas reemplazan a las relaciones humanas
para que la certeza pueda sustituir a la confianza” (p. 471).
En esta actual fase del capitalismo según explica la autora, se da una apropiación
de las experiencias humanas, como materia prima, a través de la vigilancia, e incluso
mediante estrategias para que paguemos para que nos vigilen y se lucren también de ello.

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Todo esto dentro del nuevo “mercado de futuros conductuales” (p. 21). Así no solo se
busca conocer las conductas sino también moldear los comportamientos.
En esta fase de la evolución del capitalismo de la vigilancia, los medios de
producción están supeditados a unos cada vez más complejos y exhaustivos
“medios de modificación conductual”. De este modo, el capitalismo de la
vigilancia da a luz a una nueva especie de poder que yo llamo
instrumentarismo. El poder instrumentario conoce el comportamiento
humano y le da forma, orientándolo hacia los fines de otros. En vez de
desplegar armamentos y ejércitos, obra su voluntad a través del medio
ambiente automatizado conformado por una arquitectura informática cada
vez más ubicua de dispositivos “inteligentes”, cosas y espacios conectados en
red” (ZUBOFF, 2020, p. 22).

¿Qué será lo determinante para la identidad social en estos momentos? Según


adelantara MARINAS (2012) sería la popularidad. Podríamos entender esta como una
nueva forma de acumulación, relacionada con la acumulación de capital y las
posibilidades que este ofrece, pero que se centra en la acumulación de buenas opiniones
(likes) que generan ciertos hábitos de consumo y ciertas opiniones expresadas en redes
sociales y afianzadas por los medios de comunicación masiva. Pero también podríamos
relacionarlo con el “yo empresario” que expone ZAMORA (2013):
Una nueva máxima pasa a presidir la orientación de las biografías individuales
y profesionales: ¡actúa de modo empresarial! El “yo empresario” se define
por la creatividad, la flexibilidad, la responsabilidad individual, la conciencia
del riesgo y la orientación al intercambio comercial en todas las áreas de la
vida y no sólo en la laboral. La competitividad somete al “yo empresario” al
dictado de una permanente optimización de sí mismo. Incluso la crisis se
presenta como un reto para la gestión creativa de las propias capacidades y
ventajas comparativas, con una apelación constante a “reinventarse” (en
realidad a renunciar a toda seguridad adquirida y adaptarse a las nuevas
condiciones del mercado de trabajo). A la destrucción masiva de empleo se
responde acusando de pasividad a los desempleados y convirtiendo el
“emprendimiento” en panacea. / El relajamiento actual de las formas
tayloristas de organización del trabajo va acompañado de nuevas ofertas de
cualificación y participación por parte de los directivos de las empresas a una
parte de sus plantillas que en realidad profundizan la lógica de la
identificación y el autocontrol. Lo que del lado de las empresas se denomina
corporate identity, adquiere del lado de los empleados el carácter de self-
management. La personificación de las empresas va de la mano de una
reducción del yo a objeto de planificación bajo criterios empresariales. La
“personalidad” de directivos y empleados se convierte así en blanco de
infinidad de intervenciones que promueven la identificación, estimulan la
motivación, impulsan la flexibilidad, etc. por medio del empleo sistemático de
técnicas psicológicas que se presentan como supuestas medidas de
“humanización del mundo laboral” o de fomento del “espíritu de grupo” (p.
158-159).
Siguiendo entonces las evoluciones del capitalismo, la prisión y el castigo en
general, siguen adaptándose al servicio de la civilización que sostiene. La forma que

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adquiere el castigo en la actualidad se esconde en el premio. Esto se ve si se comprende


que el premio es la manifestación más refinada del castigo, como hace mucho lo utiliza el
adiestramiento canino, y como se viene trabajando por la psicología conductual, tanto en
las esferas familiares, escolares, como en las prisiones posmodernas, donde aunque el
marco general sigue siendo el castigo en negativo: el encierro y todas las limitaciones y
violaciones de derechos humanos que implica en cada contexto, es utilizado el castigo en
positivo (el premio) para mantener en control dentro de las prisiones de la manera más
económica posible, y tratar de privar a las personas de su libertad interior.
Esto corresponde, como lo menciona ZUBOFF, al paradigma económico
neoliberal: “su economía política, su transformación de la sociedad y, en especial, su
pretensión de dar marcha atrás, a reprimir, a impedir e incluso a destruir el anhelo
individual de autodeterminación psicológica, libertad y capacidad de acción (agencia)
moral” (ZUBOFF, 2020, p. 50).
Este es el tránsito natural del enfoque del castigo en el cuerpo hacia la mente,
la consciencia. La prisión posmoderna es esa que ataca sobre todo la libertad de
consciencia (GUAGLIARDO, 2005, 2013). E incluso el modelo del sistema premial se
expande a otras esferas. Mencionaré dos situaciones así que, aunque se presentaron en
Colombia, son ejemplo de lo que es global.
La primera tiene que ver con la gestión estatal de los conflictos armados
internos, o de las luchas contra diferentes enemigos: narcotráfico, terrorismo. En
Colombia, antes de que se dieran los acuerdos de paz entre el gobierno y parte de las
guerrillas más antiguas de Latinoamérica (Las FARC), el Estado logró debilitar a las
guerrillas a partir del uso de premios para los miembros de las fuerzas armadas, lo que
también tuvo como efecto el fenómeno de los falsos positivos (donde se asesinaron a
personas civiles haciéndolas pasar por guerrilleros para cobrar las recompensas o acceder
a los beneficios que esto generaba: ascensos, bonificaciones, vacaciones), junto con la
política de delaciones, con casos tan terribles y sonados como el de alías Rojas cuando
asesinó a alias Iván Ríos y su compañera para cobrar 2.700 millones de pesos de
recompensa, u otros que permitieron bombardeos de alta precisión antes impensables
en las selvas colombianas, que terminaron con la muerte de, entre otros, Alfonso Cano,
el Monojojoy, etc.
En el derecho penal el sistema premial lo ha trastocado todo. Desde que se
introduce el sistema acusatorio de corte estadounidense en Colombia (como ha sucedido

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en los demás países latinoamericanos, pero también en Europa, y en el mundo en


general), aunque sin algunas de sus características como el jurado popular, las decisiones
se toman realmente en los preacuerdos. Esto hace que gran parte de la actividad de los
penalistas, al menos de la academia, empiece a perder en parte sentido, en lo que tiene
que ver con la disminución abrupta de los juicios y los debates de teoría del delito, para
centrarse todo en las capacidades de negociación, y muchas veces de aceptación de
cargos incluso en casos de inocencia, con tal de no enfrentar las altísimas penas y
dificultades y costos procesales que implica ir a juicio5.
Ahora bien, en las prisiones colombianas, el sistema premial se manifiesta
precisamente desde que surgen las denominadas prisiones de segunda generación, con
la asesoría estadounidense e impulsadas inicialmente por el Plan Colombia6 en los años
90 del siglo pasado7.
EEUU lidera este modelo, pero su recepción ha tenido casos famosos, como el
de España. Y, siendo Colombia un país postcolonial con gran dependencia académica aún
a España, lo que allí sucede, especialmente en términos legislativos, se refleja en el país
latinoamericano. En España se implementa el modelo de los Módulos de respeto, en la
prisión de Mansilla de las mulas en León (FRANCÉS LECUMBERRI, 2015). Y probablemente,
aunque no se dice, se inspiraron en Brasil y el APAC, que es muy anterior en el tiempo, y
que por supuesto, siendo un programa impulsado por la Prison Fellowship, toma la
experiencia de control penitenciario estadounidense, pues esta organización evangélica,
que tiene presencia en más de 115 países (PRISON FELLOWSHIP, 2021), fue creada en
1976 por Charles W. Colson (ex consejero del presidente norteamericano Richard Nixon).
El modelo APAC impulsado por este grupo, tiene su origen y mayor desarrollo
actual en Brasil. Específicamente fue creado en 1972, en la ciudad de San José de los
Campos, São Paulo, por Mario Ottoboni.

5 Sobre esta misma experiencia, en Perú, véase a PARCO MESIA (2017).


6 El Plan Colombia es el acuerdo que convirtió a Colombia en el principal receptor de ayuda militar y policial
de Estados Unidos en el mundo, durante el mandato de Bill Clinton. Este acuerdo también influyó, entre
múltiples cosas, en la configuración de las prisiones colombianas. Sobre éste véase el análisis de Noam
CHOMSKY (2000).
7 Por supuesto, la influencia estadounidense está atravesada no solo por el Plan Colombia, de escandalosa

importancia, sino también por múltiples convenios y acuerdos. Para señalar uno reciente y de gran
importancia para los temas penitenciarios, se puede señalar el proyecto para el apoyo de la reforma y
fortalecimiento del Sistema Carcelario, Penitenciario y de Resocialización de la República de Colombia, el cual
tiene una duración de 5 años, y fue firmado en 2017 entre el Gobierno de los Estados Unidos de América, el
Ministerio de Justicia y del Derecho y el Instituto Nacional Penitenciario y Carcelario – INPEC- para, entre otras
cosas, realizar procesos de acreditación para prisiones por parte de la ACA (Asociación Americana de
Prisiones) (PRESIDENCIA DE LA REPÚBLICA DE COLOMBIA, 2020, p. 42).

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APAC significaba originalmente: “Amando al Prójimo Amarás a Cristo”


(OTTOBONI, 2001) pero luego se le dio la connotación de “Asociación de Protección y
Asistencia a los Condenados”. Desde 1984, en el estado de São Paulo, con algunas
experiencias anteriores controlando algunos patios o módulos de prisiones existentes, se
abre la primera prisión totalmente administrada por el grupo APAC (MACAULAY, 2007, p.
71), con un llamativo modelo de “cárcel sin rejas”, con subvenciones estatales
establecidas desde 1996 con un sistema de costos por prisioneros (esto es, una forma de
prisión privada). Es de resaltar que hay varias ONGs no religiosas, o de otras religiones,
que han tomado también el nombre de APAC en el mismo estado de São Paulo, y que
administran Centros de Resocialización, teniendo el APAC de la Prison Fellowship
actualmente una mayor actuación, aunque no solo, en el estado de Minas Gerais, lo que
ha generado importantes confusiones, como lo resalta Fiona MACAULAY (2007, p. 72).
Pero a Colombia llega de la mano de la Confraternidad Carcelaria de Colombia,
parte de la Prison Fellowship internacional, con los patios APAC8, y gracias en parte a la
importancia que el Modelo APAC ha adquirido en Brasil, donde controla varias prisiones
e innumerables patios, así como a las experiencias en el sistema penitenciario español.
Dentro de este modelo, muy similar a los Módulos de Respeto, pero con un alto
componente religioso, las personas obtienen condiciones de vida considerablemente
mejores a las de otros patios: cero hacinamientos, agua caliente en un lugar de bajas
temperaturas, comida caliente con adecuadas porciones de sal y más abundante,
mayores programas educativos y de recreación, contar con sillas y mesas para estar en
los patios durante el día y no en el piso, visitas más frecuentes y también visitas familiares
adicionales (con una mayor cantidad de familiares de las que por reglamento se permite:
3 personas por persona privada de la libertad en promedio cada 15 días9) y una mayor
posibilidad de acceder a beneficios penitenciarios como permisos de 72 horas, prisión
domiciliaria o libertad condicional. Esto resulta en una motivación bastante alta para
seguir las reglas que permiten el ingreso y permanencia a estos espacios: participar
activamente de prácticas de culto religiosas, no tener relaciones homosexuales o lésbicas,
delatar cualquier conducta contraria a la disciplina por parte de compañeros o

8 En Colombia, actualmente, hay patios APAC aunque aún no prisiones completamente bajo el control de la
Confraternidad Carcelaria de Colombia, que sin embargo hacen importante presencia en muchas prisiones
del país. Al respecto vid (COLECTIVO ABOLICIONISTA CONTRA EL CASTIGO, 2012).
9 Claro, antes de la Pandemia, pues en Colombia las personas privadas de la libertad se han visto totalmente

privadas de sus visitas familiares e intimas, y también de sus abogados y abogadas desde marzo de 2020.

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compañeras de encierro (lo que rompe cualquier lazo de solidaridad entre prisioneros y
prisioneras10), y en general presentar un comportamiento dócil, en donde no hay lugar a
reclamaciones o disensos con la administración penitenciaria o las prácticas y estilos de
vida que se quieran imponer.
Estableciendo prisiones “privilegiadas”, o “módulos” privilegiados, o “patios
mejores”, ofreciendo allí todos esos tesoros para la vida de una persona privada de la
libertad y de otros derechos, el comportamiento se controla con relativa facilidad. Pero si
afuera de las prisiones ahora también el comportamiento se controla con el capitalismo
de la vigilancia, muy seguramente (como lo muestra la historia) éste se sirve de
experimentos realizados en prisión y a la vez empezará a aplicarse en estos espacios para
optimizar el control.
Ahora bien, nada de esto funcionaría si todas las prisiones, todos los patios
fueran así, porque el premio desaparecería y con él las posibilidades de controlar a través
de una “obediencia voluntaria”, mucho más económica y efectiva que la que se impone a
golpes, que en todo caso tiene que seguir existiendo, con todo su poder real (reducido a
pocos casos en la medida en que la presión funcione más) y sobre todo su gran poder
simbólico.
Podría decirse que se trata de un fractal social: así como la prisión tiene poder
simbólico en la sociedad, para que todo el engranaje del derecho y el Estado occidental,
y el soft law puedan funcionar, así mismo el castigo más brutal, su posibilidad, permite
que otras formas de castigo “más suaves” y aquellas en positivo puedan funcionar.

5. La mirada abolicionista

La cultura punitiva se sigue expandiendo, a pesar de los fortalecimientos actuales del


abolicionismo, con algunas iniciativas académicas, el surgimiento de varios grupos de
personas privadas de la libertad, sobrevivientes y familiares con perspectiva abolicionista,

10 Algo usado también al interior de Google, el gran iniciador del capitalismo de la vigilancia: “En 2016, una
demanda interpuesta contra la compañía por un director de producto denunciaba la presunta existencia de
un programa de espionaje interno que pide que pide a los empleados que delaten a cualquier compañero de
trabajo que infrinja el acuerdo de confidencialidad de la empresa: se trata de una prohibición amplia que
impide divulgar nada a nadie acerca de la compañía” (ZUBOFF, 2020, p. 94) Además del uso de técnicas de
control muy sutiles (psicológicas), como las de las cárceles sin rejas, que se pueden observarse en el
documental: (Inside google, 2012).

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como por ejemplo, por mencionar uno muy importante: el National Council for
Incarcerated and Formerly Incarcerated Women and Girls (que traduce Consejo nacional
para mujeres y niñas encarceladas y previamente encarceladas) en Estados Unidos, o en
Colombia, la Corporación Mujeres Libres, y también el auge (en algunos lugares y no de
manera hegemónica) de algunas nuevas formas educativas que rechazan abiertamente el
castigo y acuden a prácticas restaurativas, así como las resistencias de algunos grupos
indígenas a conservar en sus derechos prácticas tradicionales de justicia no punitiva, etc.
En mi recorrido académico como penalista interesada en temas criminológicos,
sociológicos y de antropología jurídica, la única propuesta que encuentro responsable y
realista, a pesar de las acusaciones de utopía tan generalizadas, es el abolicionismo. En
concreto, un abolicionismo de la cultura del castigo (FRANCÉS LECUMBERRI e RESTREPO
RODRÍGUEZ, 2016) que por supuesto busca eliminar las prisiones (FRANCÉS LECUMBERRI
e RESTREPO RODRÍGUEZ, 2019), pero también todo el engranaje y lógicas del sistema
penal, a través del avance hacia un cambio cultural que permita entender cómo el castigo
no sirve para que las personas asuman responsabilidades ni las sociedades puedan
encontrar sistemas de convivencia pacífica (RESTREPO RODRÍGUEZ, 2015). La justicia
restaurativa, la justicia transformativa, la justicia consensual (RESTREPO RODRÍGUEZ,
2018) y en general el enfoque restaurativo que en las herramientas que estas miradas
ofrecen se encuentra, pueden ayudarnos a construir desde ahora las respuestas a las
violencias y los conflictos que se requieren para perder ese miedo (MALAGUTI BATISTA,
2003) que sustenta la existencia de las prisiones y del castigo en las personas que no se
benefician económica o políticamente de su mantenimiento (es decir, la mayoría de
quienes habitan este mundo).
En el libro que escribiera con Paz Francés (FRANCÉS LECUMBERRI e RESTREPO
RODRÍGUEZ, 2019) se exponen en detalle los pasos que proponemos para avanzar de
manera realista hacia la abolición de las prisiones y del castigo, y donde básicamente se
habla de tres tipos de cambios que deben empezarse a adelantar, y que se pueden
complementar en la actual pandemia:
Los cambios hacia adentro, dejando de juzgar a otras personas y al propio ser,
renunciando también a la culpa y dejando entonces de creer que existen monstruos, para
empezar a construir relaciones que no se funden en el poder, sino en el respeto y en los
vínculos afectivos donde no se asigne a nadie un papel expiatorio. Durante los encierros
de la pandemia, tratar de mantener buenas relaciones familiares en el confinamiento, y

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en el estrés que a muchas personas les genera la situación. Tratar bien a quienes tenemos
cerca, y generar solidaridad también con quienes mantenemos contacto: ¿cómo están?
¿Cómo podemos ayudar a que estemos mejor? Tratar de recuperar algo del tejido social
que ha arruinado el capitalismo.
Los cambios hacia afuera parten de la conciencia crítica frente a cualquier forma
de castigo y premio, así como buscar una transformación del sistema económico y social
que tenemos, a través de políticas de decrecimiento (PICAZO CASARIEGO, 2017) y del
fomento de las llamadas economías de subsistencia. También debe verse la familia, la
escuela y el cuidado de personas con sufrimiento mental como espacios de acción
abolicionista, además de las prisiones. Frente a estas últimas, hay que aceptar la idea de
que no tiene que esperarse a que tengamos una sociedad perfecta para que dejen de
existir, al contrario: abolir la prisión es necesario para que esa nueva sociedad se pueda
realizar. En la pandemia, hay que tratar de evitar la total desconexión de las personas
privadas de la libertad con sus familias y presionar para que sean atendidas en salud y
puedan acceder a medidas extramurales que mermen el contagio.
Los cambios en el modelo de justicia, para abandonar el modelo punitivo o
retributivo y pasar a uno de enfoque restaurativo (RESTREPO RODRÍGUEZ, 2015), con una
idea de la justicia propia de los modelos del Chtonic Law (GLENN, 2004), sin medidas
impositivas, donde lo justo se construya colectivamente, a partir del reconocimiento de
los puntos comunes y diferentes.
En el contexto descrito del avance de la prisión global en el capitalismo de la
vigilancia, hay una nueva tarea que surge para el abolicionismo y que es importante
vislumbrar: la lucha por la recuperación u obtención (pareciendo absurdo, en este
momento histórico, hablar de mantenimiento11) de la privacidad en todos los ámbitos12.
Por supuesto, este es un derecho perdido hace mucho en las prisiones, donde
ni siquiera para defecar se cuenta con tal posibilidad (al menos no en las prisiones del
tercer mundo), donde la vigilancia (pensemos en la tradicional idea del panóptico, citada
también por ZUBOFF (2020, p. 624), lejos de ser algo propio del siglo XXI se presentó como
piedra angular desde el nacimiento mismo de la prisión moderna, y solo ha ido
perfeccionándose.

11 A pesar de que en la Unión Europea, por ejemplo, se intente esto a través del Reglamento General de
Protección de Datos (RGPD) de 2018.
12 Queda pendiente un trabajo que desarrolle el tema de la privacidad dentro y fuera de las prisiones, de cara

al accionar abolicionista.

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También, por supuesto, seguirá siendo transcendental combatir el miedo al otro


o la otra que permite deshumanizar a las personas que han cometido delitos, y entender
que el adentro y el afuera de las prisiones, aunque muy diferentes como experiencias de
vida, tienen también mucho en común, y que si somos parte de la mayoría de la población
que no se lucra de la vigilancia y el castigo, sino que los sufre directa o indirectamente,
tenemos que buscar transformaciones culturales profundas, crear y fortalecer todos los
lazos de solidaridad posibles entre las personas y darle a la privacidad el lugar que se
merece para la obtención de la libertad de consciencia que nos permita ser personas
responsables que puedan aprender a convivir armónicamente como especie y como parte
de este planeta.

7. A modo de conclusión

Entre dicotomías nos mantenemos en constantes enfrentamientos internos y externos,


nos ocupamos tanto, que ya no podemos vivir siendo conscientes de la existencia que
somos y de cómo afectamos y nos vinculamos con todo lo demás que existe.
La prisión que roba el tiempo, el tiempo que se nos escapa angustiantemente,
entre unos encierros y otros. Las múltiples estratificaciones sociales, adentro y afuera de
la prisión, permiten el control a través del miedo, y la modificación conductual a través de
premios evidentes o sutiles13, que se hacen ver como reconocimientos al esfuerzo
individual que exaltan nuestra visión de nosotros y nosotras mismas, mientras
construimos nuestras identidades atravesadas por medios informáticos que, junto con la
inteligencia artificial o de máquinas, van configurando una identidad útil para el mercado
y las ganancias de unos pocos, que nos quieren convertir en una especie de ganado
egocéntrico y dócil.
La prisión se amplía bajo nuevas formas, y empieza a adquirir los caracteres
globales que habían anunciado, aunque con características que antes no se hubieran
podido imaginar y que son propias del capitalismo de la vigilancia en el que vivimos: “Esta

13 ZUBOFF habla en su libro (2020) sobre la modificación conductual que se adelanta en el capitalismo de la
vigilancia a todas las personas que acceden a diferentes medios informáticos, desde buscadores hasta redes
sociales, pasando por mapas y correos electrónicos, pero también menciona (p. 435) experimentos previos
de modificación conductual adelantados en espacios no virtuales en Estados Unidos, y llevados a cabo de
manera masiva e involuntaria en personas recluidas en prisiones e instituciones mentales.

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nueva forma de mercado representa una lógica única de acumulación en la que la


vigilancia es un mecanismo fundamental para la transformación de las inversiones en
beneficios” (ZUBOFF, 2020, p. 78). Y dentro de esta nueva lógica de explotación humana
y de opresión, es que en este ya consolidado siglo XXI el castigo oculta sus fauces en el
premio.
El castigo actual, centrado en el sometimiento de la libertad de consciencia está
listo y al servicio del actual capitalismo de la vigilancia y su ampliación, desde los ámbitos
digitales, a todas las demás realidades sociales.
Fue con la industria de las prisiones (CHRISTIE, 1993) que la vigilancia floreció
como negocio sumamente lucrativo, entrando a llenar el “vacío” que había dejado el fin
de la esclavización como se la conocía desde el siglo XII. Vigilancia que luego se extiende
fuera de los muros para proporcionar seguridad, y se hace popular con el ascenso a las
politicas criminales de corrientes criminológicas como los realismos de izquierdas y de
derechas (LEA e YOUNG, 2001) y de la prevención situacional (GARCÍA PABLOS DE
MOLINA, 1999) (SERRANO MAÍLLO, 2003), pero que luego se expande a toda la sociedad
con la consolidación del capitalismo de la vigilancia, en donde ya no se cobra por vigilar,
sino que se vigila gratis para obtener datos conductuales que luego pueden venderse y
usarse ampliamente para manipular a los consumidores según las necesidades del
sistema14, llegando a vislumbrarse el desarrollo de la prisión globlal.
Entonces podemos decir que, aunque se de esa prisión global profetizada por
Foucault, la prisión de siempre no desaparecerá, sino todo lo contrario, porque cumplirá
el rol que hoy cumple en las prisiones una celda de castigo. Es decir, si todo el mundo es
una gran prisión, las cárceles y penitenciarias servirán para que la amenaza de ir allí, en
peores condiciones, nos haga aceptar la disciplina y el control de la prisión amplia cuando
seamos capaces de verla y nos opongamos a ella.
Así que el Abolicionismo de la prisión y de la cultura del castigo tiene ahora
mucho más trabajo, pero como siempre valen sus advertencias: mientras no se elimine la
cultura del castigo no se eliminará ninguna prisión realmente.

14“A medida que la competencia se intensifica, los capitalistas de la vigilancia aprenden que no basta con
extraer experiencia humana. Las existencias de materia prima más predictivas de todas son las que proceden
de intervenir en nuestra experiencia para moldear nuestro comportamiento de tal modo que favorezca los
resultados comerciales pretendidos por los capitalistas de la vigilancia” (ZUBOFF, 2020, p. 36).

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Dedicação

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A todas las mujeres libres que están en prisión y las que han sobrevivido al encierro
estatal, y a todas sus familiares y amigas, mis compañeras, así como a todas las personas
abolicionistas de la prisión y del castigo en el mundo.

Sobre la autora

Diana Restrepo Rodríguez


Doctora en Ciencias Jurídicas, profesora de la Universidad de San Buenaventura Cali,
en Colombia. E-mail: diana.restrepo.rodriguez@gmail.com,
dmrestrepor@usbcali.edu.co. Cofundadora del Colectivo Abolicionista Contra el
Castigo y de la Corporación Mujeres Libres. Investigadora activa del grupo de
investigación GIPCODEP de la Universidad de San Buenaventura Cali en temas de
criminología crítica, abolicionismo, justicia transformativa y consensual, y prácticas
restaurativas. Este artículo es resultado de investigación dentro del Grupo GIPCODEP.

La autora es la única responsable de la redacción del artículo.

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Uma imaginação anticolonial: a epistemologia do


abolicionismo penal em torno dos sentidos da violência
An anti-colonial imagination: the epistemology of penal abolitionism around the
meanings of violence

Vitória de Oliveira Monteiro1


1
Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil. E-mail:
vitoria.monteiro93@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0335-6494.

Roberta Amaral Damasceno2


2
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
damaroberta@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0443-467X.

Rômulo Fonseca Morais3


3
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
romulofmmiri@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9154-0974.

Artigo recebido em 13/01/2021 e aceito em 21/01/2021.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p.497-523.
Vitória de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno e Rômulo Fonseca Moraes.
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Resumo
Este trabalho tem como objetivo explorar a epistemologia do abolicionismo penal como
um campo fértil para pensar os sentidos da violência, especialmente, no tocante ao
contexto e permanências das violências coloniais. Assim, partindo de uma linguagem-
percurso para imaginar novas sociabilidades que não se pautem em uma única saída para
as situações-problema.
Palavras-chave: Abolicionismo penal; Violência; Colonialismo.

Abstract
This article aims to explore the epistemology of penal abolitionism as a fertile field for
thinking about the meanings of violence, especially with regard to the context and
permanence of colonial violence. Thus, starting from a language-route to imagine new
sociability that is not based on a single solution to the problematic situations.
Keywords: Abolicionism; Violence; Colonialism.

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Vitória de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno e Rômulo Fonseca Moraes.
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Introdução

A violência é uma categoria-senha para leitura do mundo, mas também para leitura de
fissuras possíveis desse mesmo mundo. Pensar o abolicionismo penal, suas perspectivas
e estratégias nos localiza e endereça a partir da margem, da borda, da beira.1 A
epistemologia desta teoria consiste em um fértil campo de pesquisa, especialmente no
tocante aos seus estudos sobre o que se entende por sociabilidade autoritária.
Essa chave nos permite pensar como a questão da autoridade e da hierarquia
permeia as formas de enfrentamento e de imaginação de novos mundos possíveis. Isto se
dá em razão desta categoria atravessar diretamente a problemática ligada aos discursos
e sentidos da violência. Ademais, para que o abolicionismo penal proponha a abolição da
pena, do poder punitivo e da lógica de castigo, é necessário que ele trave uma discussão
ainda mais fundamental: a linguagem do sistema penal.
Assim sendo, o artigo se propõe a questionar: quais as potencialidades e os
limites da epistemologia do abolicionismo penal na compreensão sobre esses sentidos da
violência na linguagem do sistema penal?
Nesse sentido, o busca-se, em primeiro lugar, tratar sobre como se dá essa
sociabilidade centralizada na autoridade2, onde as relações sociais se dão a partir de uma
educação baseada na ideia de castigo, os discursos em torno do que seria ou não violência
se tornam um forte campo de disputa ideológica. Nesse limiar, reside a potência de
imaginarmos as estratégias para além das conformidades de um reformismo ou
minimalismo, pois nessa margem é onde mais se recrudesce, é onde mais se empilha
corpos, e onde se acentua os efeitos da tônica estatal de vidas matáveis. Isto posto,
destacamos o problema da linguagem do sistema penal para situar essa disputa ideológica
sobre os sentidos da violência.
Posteriormente, analisamos como a violência colonial se coloca como um
contexto importante para situar os debates do abolicionismo penal no Brasil, tanto
quanto à urgente necessidade de estremecer as categorias e discursos forjados no

1 O debate presente neste artigo foi travado a partir de reflexões nas reuniões e produções científicas do
Grupo Cabano de Criminologia, criado em 2015, o qual tem como premissas de atuação: a) a reverberação
das raízes movidas por um espírito de subversão, protesto e contestação da ordem, o que entendemos como
inegociável para a construção de um saber criminológico comprometido com uma prática libertária; e b)
destacar a perspectiva da “margem da margem” a partir do nosso chão, marcando geopoliticamente a
construção do saber criminológico na região amazônica e no norte, em relação à centralidade e status quo
dado ao sul e sudeste.
2AUGUSTO, Acácio. Abolicionismo penal como ação direta. Verve, 21, 2012. p. 154-171.

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contexto moderno/colonial, em que as concepções de Estado, Direito Penal, Criminologia


e Poder Punitivo precisam ser problematizadas enquanto saberes e práticas implicados
ou explicitamente comprometidos com a lógica de dominação colonial, quanto para
encararmos o assunto da violência enquanto significado que possa ser mobilizado
ideologicamente, ou seja, com o fim de acobertar ou justificar a atuação violenta e
brutalizada dos aparelhos de repressão criminal.

1. O problema da linguagem no abolicionismo penal: sobre a violência naturalizada do


sistema penal

A ruptura com a ideia de universalização da pena é uma das bases da epistemologia do


abolicionismo penal, pois é a partir dela que se sedimenta uma vida livre de punições.
Esse movimento busca revirar as naturalizações construídas em volta da punição, do
castigo, incluindo aquelas instauradas pelos processos de criminalização.
Essa criação de novos modelos de solução das situações-problema se deve a um
esforço imaginativo na criação de percursos experimentais3, rompendo com modelos
fechados nesse processo de resolução pautado na universalização da pena. É por esta
razão que se propôs analisar como os significados em torno do que é categorizado como
“violento” são mobilizados ideologicamente pelo sistema de repressão criminal,
questionando como a epistemologia do abolicionismo penal compreende essa discussão.
Para isto, é preciso apresentar como o sistema penal se constrói também a partir
de uma linguagem própria, responsável por naturalizar essas categorias que rodeiam o
funcionamento do poder punitivo, além de negar as relações de dominação que são
promovidas pelos aparelhos de repressão criminal, principalmente em contextos de
dominação colonial.
A partir de escritos de autores como Edson Passetti, Acácio Augusto, Louk
Hulsman e Salete Oliveira se desenvolve como a linguagem assume essa importância para
o cumprimento das finalidades reais do poder punitivo, de forma que o abolicionismo
penal buscaria romper e construir uma nova forma de linguagem para tratar das situações
problemáticas.

3 PASSETTI, Edson. Ensaio sobre um abolicionismo penal. Verve. v. 9. 2006. p. 83-114.


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Nesse contexto, apresenta-se como a “violência” é mobilizada na linguagem que


atravessa o funcionamento do sistema penal, com o objetivo de naturalizar processos de
discriminação e negar o sofrimento de populações subalternizadas, especialmente a
população não-branca4.

1.1 A ruptura do abolicionismo penal com a linguagem-fronteira do sistema penal:


práticas emancipatórias contra uma sociabilidade autoritária

O conceito de “campos de concentração à céu aberto”5 trabalhado por Edson


Passetti nos desvela que a prisão não se constitui somente em um lugar, ou numa
instituição pública. É a partir dele que podemos ver como as tecnologias de controle se
constroem não mais em regimes fechados ou apartados de um mundo exterior, já que se
caracterizam por uma espécie de administração de território.
Aquele autor parte da definição de sociedade de controle de Gilles Deleuze6
para explicar como o controle passa a ser “a céu aberto”, ou seja, punindo-se mais, pois
a prisão deixa de ser esse lugar preferencial, amplificando-se as possibilidades de justiças
punitivas estatais, sem que haja, de fato, aprisionamentos.
Novas modalidades de encarceramento vêm, assim, se legitimando, somando
às tecnologias disciplinares. À despeito da formulação de críticas mais ou menos radicais,
como a superlotação, tratamento degradante e desumano, não ressocialização dos
encarcerados etc., chega a ser um aparente paradoxo que a prisão não só resista, mas se
expanda para novos setores da sociabilidade 7.
É instaurado um processo de flexibilização das práticas da prisão, em que, às
técnicas disciplinares, foram somadas novas formas de punição e controle para além dos
muros dos prédios, o que tornou, e ainda torna, possível a constituição de periferias como
campos de concentração à céu aberto.
É importante frisar que a continuidade da prisão para além dos seus muros é
possível através de uma naturalização procedida por saberes e discursos em torno de uma

4 Considerando que o artigo parte da realidade amazônica na qual são mobilizadas categorias como
afroamazonidas, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, além de outras populações tradicionais, esta
nomenclatura foi empregada para abarcar a pluralidade do nosso contexto.
5 PASSETTI, Edson. op.cit., loc. cit.
6DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução: Peter Pál Perbart. São Paulo: Editora 34, 2013.
7 AUGUSTO, Acácio. Para além da prisão-prédio: as periferias como campos de concentração a céu aberto. In:

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Vitória de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno e Rômulo Fonseca Moraes.
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linguagem própria do sistema penal, a qual sedimenta uma busca pela verdade através
da punição. Verificamos que a lógica do castigo se sustenta enquanto práticas edificadas
e naturalizadas, utilizando-se de fronteiras de saberes arbitrários, voltados à existência de
uma autoridade e hierarquia8. Entretanto, em que pese essa linguagem da punição seja
mobilizada nos discursos oficiais do sistema de justiça criminal, ele não se trata de um
sistema destinado a punir propriamente.
O sistema penal se utiliza dessa linguagem com a finalidade de esconder os reais
processos em curso, produzindo um consenso a partir de uma apresentação ilusória. A
punição é uma “forma de interação humana em diversas práticas sociais: na família, na
escola, no trabalho, no esporte”, o que é diferente das finalidades reais do poder
punitivo9. Essa linguagem produz e reproduz uma sociabilidade autoritária, que atravessa
as relações sociais a partir de uma pedagogia do castigo e assujeita através da obediência
às hierarquias em um contexto legitimador de mentiras necessárias10.
Assim, o abolicionismo penal, enquanto um movimento que finaliza romper com
a essa sociabilidade, é um percurso construído com a participação tanto de intelectuais
das universidades quanto dos envolvidos na situação-problema, em que aqueles não
assumem mais uma posição de superioridade na formulação dessas novas respostas11. Na
medida em que, para a abolição do direito penal, é necessária uma abdicação da
universalidade da lei e da uniformidade dos modelos, a construção de uma linguagem
distinta é um elemento essencial para a construção dessas novas práticas.
O lema de defesa da sociedade é, na real incidência do sistema penal, defesa
dos interesses dos dominantes, de forma que as suas políticas são estruturalmente
seletivas. A grande maioria da população encarcerada é negra e empobrecida, de forma
que verificamos como o poder punitivo vulnerabiliza, estigmatiza e criminaliza populações
específicas, havendo um estereótipo penal para tanto.
Isso significa que a linguagem oficial, ou seja, a do discurso público, esconde a
realidade das situações-problema(crimes), assim como dos próprios processos de
criminalização. É por esta razão que refletir sobre as alternativas à justiça criminal é

8 OLIVEIRA, Salete. Linguagem-Fronteira e linguagem-percurso. In: PASSETTI, Edson (coord.). Curso Livre de
abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan. 2004.
9 HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In: PASSETTI, Edson (coord.). Curso Livre de abolicionismo

penal. Rio de Janeiro: Revan. 2004. p. 35.


10PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: PASSETTI, Edson (coord.). Curso livre de

abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan. 2004.


11Ibid.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p.497-523.
Vitória de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno e Rômulo Fonseca Moraes.
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necessariamente buscar compreender os valores que dão sustentação à linguagem do


sistema penal.
Como nos alerta Angela Davis12, na maior parte do mundo, é visto como natural
que uma pessoa condenada pela prática de algum crime seja levada à prisão, como se
fosse um aspecto inevitável e evidente de nossa vida social.
A partir de rupturas com esse consenso em torno da punição do direito penal, o
abolicionismo penal se insere enquanto uma teoria que revira a naturalização do castigo,
orbitando fora dessa linguagem punitiva, além de criticar a universalização da aplicação
da pena. De acordo com Passetti13, o abolicionismo propõe modelos e percursos
experimentais para lidar com uma expansão da educação livre do castigo, lidando,
portanto, com cada infrator em liberdade.
Questionar-se sobre os valores e a linguagem do sistema de justiça criminal é
partir de uma ruptura com a cultura do castigo, rompendo com o discurso de moral
superior da aplicação da pena. Logo, a epistemologia do abolicionismo penal não se
restringe à supressão do direito penal14, tendo em vista que busca enfrentar as práticas e
os costumes que partem de uma sociabilidade fundada na autoridade e na hierarquia, e
é nessa sociabilidade que surge uma noção baseada na naturalização da punição.
O abolicionismo penal se coloca enquanto ruína das linguagens-fronteira,
inventando outras formas de lidar com as situações problemáticas, construindo não uma
linguagem fechada em uma racionalidade voltada a naturalizar a aplicação da punição.
Por isso verificando outras formulações possíveis em uma linguagem-percurso15.
Para desvelar a violência do castigo e do poder punitivo, precisamos nos
questionar sobre esses elementos dentro da linguagem-fronteira do sistema penal. Ao
mesmo tempo em que temos uma sociabilidade que constantemente nega e silencia o
sofrimento de populações marginalizadas e povos colonizados, a exemplo do que ocorre
com a população não-branca, a violência do sistema penal é tida como uma consequência
natural de um processo civilizatório que se funda no racismo ancorado na dominação
colonial.
É a partir desse estudo sobre os significados, discursos, que entendemos que o
processo de ruptura da epistemologia do abolicionismo penal tem que pautar a criação

12 DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2018
13 PASSETTI, Edson. Op.cit. 2006.
14Ibid.
15 OLIVEIRA, Salete. Op.cit.

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dessa nova linguagem. Privar-se de compreender e tomar parte desse exercício


imaginativo na criação desses novos modelos é não enfrentar um elemento essencial
nessas relações de dominação reproduzidas pelo sistema penal.

1.2 A importância da linguagem sobre os significados da violência para o abolicionismo


penal

O processo de naturalização em torno do funcionamento racialmente seletivo do


sistema penal é um elemento central na negação do sofrimento negro em nossa
sociabilidade autoritária. Isto posto, verificar essas permanências históricas quanto às
relações de dominação colonial através do poder punitivo é o que nos permite analisar
como a criação de uma linguagem é importante nesse processo de negação de direitos.
Os sentidos e moralismos empregados às violências raciais cometidas contra a
população negra estão em constante disputa ideológica, o que é marcado pela
permanência da violência colonial em nosso processo de formação social. Como nos alerta
Juliana Borges16, a seletividade racista e estrutural do sistema penal brasileiro é ainda um
tema pouco debatido, em razão do mito da democracia racial brasileira, além das teorias
e dos discursos universalistas de classe. Estamos diante de uma negação do racismo, ou
seja, com o verniz de uma garantia de universalidade e da igualdade das leis, gerando a
imagem de que se trataria de discriminação restrita ao âmbito privado17.
As discussões, em geral, se limitam à relação com fatores sociais, deixando de
lado as contínuas violências sofridas pela população negra brasileira, o que se reflete de
sobremaneira na atividade policial. Esse fenômeno é consequência da naturalização do
sofrimento negro, no qual se constrói um imaginário de que o reconhecimento político-
institucional de violências praticadas é inacessível a esse segmento social.18
Tal contexto materializa políticas criminais que resultam tanto em massacres
quanto no encarceramento em massa advindos do funcionamento brutalizado do sistema
penal. Criou-se uma imagem de negros e negras como associados à reprodução da
violência; logo, o status de vítima lhes é negado: “emulando uma estrutura paradoxal que

16 BORGES, Juliana. O que é encarceramento em massa? Belo Horizonte: Letramento, 2018.


17 SCHWARTZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na sociabilidade brasileira.

São Paulo: Claro Enigma, 2012.


18FLAUZINA, Ana Luiza; FREIRAS, Felipe da Silva. Do paradoxal privilégio de ser vítima: terror de Estado e a
negação do sofrimento negro no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 135. Ano 25. P. 49-71.
São Paulo: Ed. RT, set. 2017.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p.497-523.
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segue operando numa dinâmica em que se tem a violência como prerrogativa do racismo
e a vitimização como privilégio da branquitude”19.
O processo de racionalização do poder punitivo e do direito penal no Brasil
consistiu nessa criação de espaços de reprodução de racismo, sedimentando a
criminalização e o extermínio da população negra. Assim, é possível verificar que o direito
e a justiça criminal não são um mero aparato que apresentam características racistas,
visto que são em si estruturados para cumprirem essa função de discriminação racial,
perpetuando as estratégias de apartamento sedimentadas no contexto colonial.
Vimos no subtópico anterior como os processos de criminalização se sustentam
em torno de significados conferidos às finalidades do sistema penal, considerando que o
poder punitivo se sedimenta em naturalizações no tocante ao castigo, punição e
processos de criminalização, de forma que temos uma linguagem própria com esse
objetivo.
Assim, para romper com essa lógica de silenciamento e negação da violência
praticada pelo sistema penal contra determinados segmentos sociais, é essencial
partirmos daquilo que nos ensina Slavoj Zizek20 no tocante à necessidade de se destacar
a violência fundamental do Estado, ou seja, aquela que garante o seu funcionamento.
Para isso, deve-se criticar as distorções ideológicas que são mobilizadas para naturalizar
certas formas de violência em detrimento de outras, as quais são tidas como naturais na
linguagem que é construída pelo sistema penal.
É nessa mobilização ideológica que o poder punitivo garante que determinados
conceitos, como justiça penal, sejam edificados enquanto práticas naturalizadas em nossa
sociabilidade, o que só esconde as relações raciais discriminatórias e violentas do sistema
penal, principalmente em territórios colonizados.
Na incidência do poder punitivo pelas instituições de repressão criminal, é clara
a narrativa de que a punição vem para pacificar uma situação problemática violenta,
recobrando o sentido de justiça, o que reforça uma perspectiva maniqueísta. Contudo,
para compreender o funcionamento estrutural do poder punitivo, é necessário, antes de
tudo, “resistir ao fascínio da violência subjetiva, da violência exercida por agentes sociais,
indivíduos disciplinados e multidões fanáticas”.21

19Ibid. p. 59.
20 ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.
21Ibid.,p. 25.

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Um importante aspecto dessas violências é a linguagem universalizante do


sistema penal, já que é ela que confere naturalidade e consenso no tocante à legitimidade
da autoridade estatal em instaurar processos de criminalização, negando que haja
tratamentos e violências institucionais diferenciados conforme o alvo dessas políticas
criminais.
Assim, vemos como as disputas ideológicas em torno dos discursos sobre
violência incidem de forma a naturalizar essas estruturas desiguais e discriminatórias. A
respeito disso, Frantz Fanon22 nos ensinou como o discurso da não-violência foi utilizado
enquanto esforço da burguesia de negar a violência do sistema colonial, objetivando
apaziguar as insurgências revolucionárias, o que, inclusive, justificava a incidência do
controle punitivo contra os povos colonizados.
A burguesia colonial é, portanto, quem introduz essa noção: a não-violência. De
acordo com Fanon, essa categoria é repassada às elites intelectuais e econômicas
colonizadas de que elas teriam os mesmos interesses que a burguesia colonialista,
levando-se a concluir que seria urgente um acordo entre elas para se chegar à “salvação
comum”. Logo, vemos como esse significado específico sobre violência é utilizado como
estratégia de dominação, de controle, objetivando a desarticulação política de
movimentos de insurreição.
Em “Condenados da terra”, no prefácio escrito por Jean-Paul Sartre23, é
destacada como a violência enquanto resistência anticolonial representa a recomposição
do próprio homem, segundo Frantz Fanon, em um resgate de sua humanidade em meio
à violência anticolonial desumanizadora:
[...] essa violência irreprimível, ele o demonstra cabalmente, não é uma
tempestade absurda nem a ressurreição de instintos selvagens e nem mesmo
um efeito do ressentimento: é o próprio homem que se recompõe. Sabíamos,
creio eu, e esquecemos essa verdade: nenhuma suavidade apagará as marcas
da violência; só a violência é que pode destruí-las.

Assim sendo, vemos como os sentidos, discursos e significados conferidos à


violência estão atravessados pelas estratégias políticas de dominação e resistência em
curso, de forma que os abolicionistas penais não podem se esquivar desse debate, que se
funda também em estudos sobre essas permanências de saques e violências coloniais.

22FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.


23SARTRE, Jean-Paul. Prefácio. In: FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1968.
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Portanto, para atravessarmos essa discussão sobre “violência” e “não-


violência”, enquanto discursos que influem no funcionamento do poder punitivo, é
importante nos questionarmos a respeito do que é interessante que seja visto como
violento pelo sistema penal. Logo, vemos como a construção de uma nova linguagem se
insere enquanto elemento central nesse processo de naturalização e silenciamento dos
subalternizados.

2. Pensar as categorias de Estado, direito penal e poder punitivo a partir da colonização

Para nós do campo criminológico que pretendemos com a construção dessa nova
linguagem abrir fissuras nas estruturas de poder/saber para alargar as margens do
abolicionismo penal, pensar a partir da “hipótese colonial”24 é imprescindível. Esse
pressuposto nos obriga a problematizar concepções, discursos, práticas e instituições da
modernidade que foram construídas e implicadas com o processo de colonização. Isso nos
leva não só a apreender as estratégias de dominação do colonialismo, com seu papel
decisivo na (re)produção do racismo estrutural, mas também da relação entre os sistemas
penais e os povos colonizados.
É a partir dessa chave de leitura que Evandro Duarte, Marcos Queiroz e Pedro
Costa25, nas sendas de autores como Fanon e W. E. B. Du Bois, nos instigam a perceber
que o colonialismo, enquanto dominação política e econômica sobre um território
habitado por raças e povos de culturas diferentes, está implicado com “[...] a construção
da criminologia como uma ciência social a serviço do imperialismo e com repercussões
profundas nas realidades pós coloniais”. Para eles, a omissão da pesquisa criminológica
contemporânea, ainda que auto-intitulada crítica, “faz parte das permanências e
continuidades do modelo colonial na produção do conhecimento.”26
Isso reflete não só nos desdobramentos mortíferos da atuação do sistema penal
em nossa margem periférica, já que os saberes hegemônicos atuam racionalizando e
legitimando suas práticas, como também atua como barreira epistêmica contra os

24 DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos V. Lustosa; COSTA, Pedro Argolo. A Hipótese Colonial, um diálogo
com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema penal.
Universitas JUS. v. 27, n. 2, 2016, p. 05.
25 Idem.
26 Idem.

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saberes insurgentes que visam romper com a linguagem e a forma de gestão de conflitos,
os quais se amparam numa sociabilidade autoritária em que impera as ideias de castigo e
punição.
Para superação dessas barreiras, é imprescindível saber quais os alicerces e os
discursos das estruturas que sustentam o que visamos romper e combater. As concepções
de Estado, Direito Penal, Criminologia e Poder Punitivo precisam ser problematizadas
enquanto saberes e práticas implicados ou explicitamente comprometidos com a
dominação colonial.
Nesse sentido, é urgente pensar essas instituições, saberes e práticas visando
alargar as margens do imaginário criminológico, mas também trazer à tona que os
abolicionismos penais pensados a partir do nosso contexto periférico só podem emergir
com a ruptura promovida pelo saber decolonial. Ou seja, um estremecer dos alicerces que
sustentam o colonialismo por meio dos sistemas penais contemporâneos.
Se pensarmos o processo de colonização como uma acumulação de corpos em
um território, aos moldes de uma “gigantesca instituição de sequestro”27, veremos que a
lógica colonial e seu projeto de dominação se assentou na objetificação e
desterritorialização de seres humanos. O “despedaçamento cognitivo e identitário”28,
como parte desse processo de objetificação provocado pela escravidão, é acompanhado
de um deslocamento não só geográfico desses corpos, mas também em direção a um não-
lugar em termos de humanidade. É nesse sentido que o colonialismo vai se edificar em
detrimento ou como negação daquilo que ele objetifica e considera como o outro: negros
e indígenas.
Para levar a cabo esse processo, a agenda colonial, segundo Luiz Antônio Simas e
Luiz Rufino29, vai trabalhar na descredibilização das inúmeras formas de existência e de
saber, produzindo, assim, a morte física desses corpos, através do extermínio, e a morte
simbólica através do que eles irão chamar de “desvio existencial”, que contribui para a
aniquilação de outros modos de ser, viver e sentir a vida.

27 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad.
Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 77-78.
28 SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Editora Mórula, 1ª

ed, Rio de Janeiro, 2018, p. 11.


29 SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Editora Mórula, 1ª

ed, Rio de Janeiro, 2018, p. 11.


Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p.497-523.
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O olhar apurado de Vera Malaguti30, ao tratar do positivismo criminológico31, vai


perceber que este se alimentou dessas estratégias de objetificação e hierarquização de
corpos, bases do poder punitivo inquisitorial, servindo mais a frente como um “saber
funcional à conquista europeia, substituindo argumentos teológicos por científicos na
legitimação da dominação do mundo colonial”. Esses dois processos serão alicerces do
direito penal e do desenvolvimento das estruturas do Estado moderno no ocidente.
Em nossa margem periférica essas estratégias de dominação irão produzir
deslizamentos para a figura do colonizado, já enquadrado como selvagem, animalesco,
como ser que habita zonas do não-ser. Mais tarde, no século XIX, esse discurso irá se
intensificar com a densa patologização dos povos africanos e indígenas e a
“comprovação” científica de sua inferioridade, sua degenerescência e os perigos que
representam.32
Aquele poder punitivo que se estruturou em torno da caça às bruxas vai agora
ganhar novos argumentos legitimantes tanto pelo discurso jurídico-penal quanto pelo
discurso médico. A selvageria e a degenerescência do povo são acompanhadas do
discurso da pena como salvação. É aqui que podemos ver o fundamental papel do poder
punitivo na continuidade das estratégias de colonização, já que a pena ou “as medidas de
segurança que derivam desse olhar darão conta [...] de assegurar controle penal além do
crime, mantendo (ou tentando manter) as hierarquizações sociais do colonialismo e do
escravismo.”33

2.1 A atualização das estratégias de dominação colonial pelo poder punitivo

Marcos Queiroz e Jonhatan Guimarães34, ao proporem o desafio de colocar frente


a frente a “punição no direito moderno” e o “paredão colonial”, fazendo uma espécie de

30 Idem.
31 Ver: BATISTA, Vera Malaguti. Positivismo como cultura. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/revistapassagens/artigos/v8n2a52016.pdf>. Acesso em: 9 mar. 2017.
32RODRIGUES, Raimundo Nina. As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil. Salvador, Livraria

Progresso, 1957.
33 BATISTA, Vera Malaguti. Positivismo como cultura. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em:

<http://www.historia.uff.br/revistapassagens/artigos/v8n2a52016.pdf>. Acesso em: 9 mar. 2017.


34 QUEIROZ, Vinicius Lustosa; GUIMARÃES, Jonhatan R. F. Frantz Fanon e criminologia crítica: pensar o estado,

o direito e a punição desde a colonialidade. Revista brasileira de ciências criminais, ISSN 1415-5400, Nº. 135,
2017.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p.497-523.
Vitória de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno e Rômulo Fonseca Moraes.
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“giro decolonial”35, nos abrem importantes chaves de leitura para problematizar as


narrativas hegemônicas sobre o surgimento e a função da punição na modernidade. Isso
nos instiga a questionar de que “Estado” estamos falando, que “Direito Penal” é esse e
que “Punição” é essa. Visando alargar o imaginário abolicionista, o que nos interessa
nesses questionamentos é que, a partir da crítica anticolonial de Frantz Fanon, eles
apontam “os limites e possibilidades da construção de narrativas críticas minimamente
responsáveis ou, ao menos, condizentes com os impactos da produção da raça e do
racismo pela aparelhagem bélica mobilizada pelo sistema penal.”36 Isso porque o discurso
ou a produção da raça tem uma ligação intrínseca com as práticas e formas de punição
levado a cabo pelos sistemas penais contemporâneos.
É nesse sentido que Carlos Henrique de Siqueira37 afirma que a ideia e a prática
da raça, através e no sentido que conhecemos como racismo, dependeu da segregação
espacial perpetrada pelos sistemas punitivos. Para ele, “as sociedades ocidentais, nas
quais o problema do racismo é persistente, constituíram e reconstituíram a identidade
negativa das raças pela punição.”
As práticas punitivas na margem brasileira terão um papel crucial na reafirmação
da ordem e hierarquia social/racial, delimitando os espaços e os lugares (ou “o lugar do
não ser”, como nos diz Fanon38) que cada um deve ocupar na estrutura social,
reafirmando principalmente o abismo que separa os brancos e os indivíduos de cor. Por
isso, Zaffaroni afirma que é impossível falar do exercício de poder punitivo pelos nossos
sistemas penais sem atentar para uma rede de poder planetário, que coloca nossas
sociedades vinculadas a relações de poder decorrentes do colonialismo que perduram até
hoje.39
Dentro desse contexto, a punição tem um papel fundamental/central não só na
intensa verticalização das sociedades para condicionar-lhe seu caráter colonizador e

35 BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. Ciênc. Polít., Brasília , n. 11, p. 89-
117, Aug. 2013 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
33522013000200004&lng=en&nrm=iso>. access on 27 Nov. 2020.
36 QUEIROZ, Vinicius Lustosa; GUIMARÃES, Jonhatan R. F. Frantz Fanon e criminologia crítica: pensar o estado,

o direito e a punição desde a colonialidade. Revista brasileira de ciências criminais, ISSN 1415-5400, Nº. 135,
2017.
37 SIQUEIRA, Carlos Henrique R. de. A alegoria patriarcal: escravidão, raça e nação nos Estados Unidos e no

Brasil. Tese de Doutorado. Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas da Universidade de Brasília.
2007.
38 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
39 ZAFFARONI, Eugenio. Descolonización y poder punitivo. Texto de la Lectio Doctoralis em ocasión de recibir

el grado de Doutor honoris causa por la Universidad Real, Mayor y Pontificia de San Javier de Chuquisaca, em
Sucre, Bolívia. 2012.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p.497-523.
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racial, como também é imprescindível para transformar o território conquistado em um


imenso campo de concentração, como já abordado na seção anterior.40 Para dar conta
dessa transformação do território em campo, o poder punitivo, desde a chegada dos
colonizadores, precisou ser exercido através de uma formidável ocupação policial do
território colonizado que perdurou entre nós até a decadência dos impérios ibéricos no
século XIX. É a partir daí que vamos ser submetidos às novas demandas por ordem do
capitalismo neocolonial.
O poder punitivo se retroalimenta da lógica colonial não só porque as bases
ideológicas de sustentação das práticas de violência irão se sustentar nesses pressupostos
de inferioridade, mas também porque o poder punitivo será o seu elemento estruturador.
A prisão, então, irá funcionar com a preponderância da tortura e da morte no lugar do
disciplinamento.
Para Zaffaroni41, não seria razoável pensar que a prisão desempenharia as
mesmas funções do centro, uma vez que em nossa margem ela deveria “tratar” de uma
maioria “selvagem”, e, portanto, deveria se adequar às funções exercidas pela própria
“instituição colonial”. O extermínio torna-se prática fundamental do exercício dos
sistemas penais para dar continuidade às estruturas e relações de poder da colonização.
É nessa perspectiva, a qual coloca a colonialidade como constitutiva da
modernidade, que podemos perceber como o aparelho penal do ocidente e os
saberes/práticas que o sustentam (direito penal, punição, prisão e etc.) nada têm de
contraditório com as formas como irá se estruturar o controle social no contexto do
empreendimento colonial. Como podemos ver, a gestão e administração dos corpos nas
colônias estão diretamente implicados com as estruturas do Estado Moderno, ou seja,
“[...] o colonialismo é o passo inicial necessário de aprendizagem na montagem do
aparelho estatal e penal na modernidade.”42
Se a formação do que conhecemos como estado moderno é decorrente das
vicissitudes coloniais, Marcos Queiroz e Jonhatan Guimarães43 nos provocam a

40 Idem.
41 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad.
Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 77-78.
42 QUEIROZ, Vinicius Lustosa; GUIMARÃES, Jonhatan R. F. Frantz Fanon e criminologia crítica: pensar o estado,

o direito e a punição desde a colonialidade. Revista brasileira de ciências criminais, ISSN 1415-5400, Nº. 135,
2017.
43 QUEIROZ, Vinicius Lustosa; GUIMARÃES, Jonhatan R. F. Frantz Fanon e criminologia crítica: pensar o estado,

o direito e a punição desde a colonialidade. Revista brasileira de ciências criminais, ISSN 1415-5400, Nº. 135,
2017.
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descortinar o silêncio que as narrativas hegemônicas no campo jurídico produziram em


torno do seu surgimento, questionando o seu caráter universal e apontando que sua
estrutura e o direito que o justifica surgem como práticas coloniais. Nas fissuras abertas
por essa perspectiva, a violência genocida perpetrada pelos sistemas punitivos, que vão
do apagamento simbólico e epistemológico à aplicação em larga escala da tortura física e
da morte, não pode ser encarada como anomalia no funcionamento da máquina estatal,
que supostamente teria como escopo a legalidade, “mas como a própria permanência da
colonialidade enquanto elemento constitutivo do sistema penal”.
A crítica criminológica pretende abrir imaginações abolicionistas para além das
categorias e estruturas da colonialidade. Para isso, precisa ser retomada com a
compreensão da estruturalidade da violência do sistema penal baseada na
“epidermização do mundo”. A permanência da lógica colonial através da
operacionalidade do poder punitivo, mas também tendo esse poder como seu elemento
estruturador, é uma premissa fundamental para aprofundamos radicalmente nossa
crítica abolicionista à lógica da punição e sua linguagem.
Isso começa pela sacudida nas concepções de Estado e direito penal que lhe dão
suporte, caso contrário, estaríamos ignorando que as concepções da modernidade estão
comprometidas com a violência estrutural do sistema penal e, por consequência, “[...]
eternizando ad infinitum nossa autocolonização.”44
É aqui fundamental pensar então que o contraponto à violência estatal ilegítima
ou sem justificação, ou seja, aquelas “penas perdidas” que já conhecemos em nossa
margem periférica com o intenso processo de criminalização, como é o caso da
militarização do cotidiano, do superencarceramento, do eficienticismo penal e da guerra
às drogas, não pode estar simplesmente ancorado nas saídas dadas pela defesa de
direitos humanos e de um Estado democrático de direito, principalmente quando estas
mesmas perspectivas estão entrelaçadas e se sustentam exatamente na violência
aterrorizante do genocídio em marcha levado a cabo pelos sistemas penais
contemporâneos na periferia do capitalismo. Nesse sentido, é preciso dar um giro
abolicionista-decolonial para deslocar a narrativa que contrapõe os horrores da violência
colonial ao restabelecimento do monopólio da violência pelo Estado, ou dos direitos

44 BATISTA, Vera Malaguti. Positivismo como cultura. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/revistapassagens/artigos/v8n2a52016.pdf>. Acesso em: 9 mar. 2017.
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fundamentais, para uma leitura que, criticamente, não vê outra possibilidade de se


contrapor a nossa sociabilidade autoritária senão abolindo a prisão e o sistema penal.

2.2 A problematização da violência (anti)colonial

Esse giro abolicionista-decolonial nos obriga a perceber que, se a violência


genocida do sistema penal na contemporaneidade é estrutural e atua dando continuidade
e mantendo as estratégias de dominação colonial, tendo o estado moderno e as práticas
e concepções jurídicas como racionalizadoras dessa violência, tornando-a legítima e
aceitável no cotidiano através de uma série de disfarces como a guerra contra o crime ou
contra as drogas, por exemplo, é preciso não só o aprofundamento da mencionada
radicalidade da crítica abolicionista ao poder punitivo e às categorias e saberes que o
sustentam, mas também a problematização e resgate de táticas de resistência a essa
dominação que historicamente foram apagadas ou estigmatizadas como irracionais,
bárbaras e violentas a partir de concepções da modernidade, como o discurso jurídico,
que estão diretamente comprometidas com a violência colonial.
É nas trincheiras do pensar-prático de “Condenados da Terra” de Frantz Fanon45
que podemos vislumbrar um abolicionismo combativo, como ação direta comprometida
com a luta contra as estruturas do sistema penal e automaticamente contra o arranjo de
poder colonial. Os muros físicos e simbólicos que impedem os processos comunicativos
horizontais - a punição e sua implicação com a raça e seus dispositivos de verticalização,
que delimitam um lugar desumanizante e do não-ser para os corpos colonizados - só
podem ser superados com lutas violentas que, antes de mais nada, restabeleçam a própria
condição de sujeitos ativos no processo comunicacional para os povos subalternizados.
Se com Fanon aprendemos que a situação colonial se assentou no marco da
violência, “[...] e sua coabitação - ou melhor, a exploração do colonizado pelo colono - foi
levada a cabo com grande reforço de baionetas e canhões”46, e que o colonizado desde o
nascimento percebe que o mundo estreito das fronteiras coloniais “não pode ser
reformulado senão pela violência absoluta”47, é preciso retirarmos “[..] a teorização e o
uso da violência campo da moral abstrata para formulá-la no âmbito da crítica ao

45 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora: Civilização Brasileira, 1968.
46 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora: Civilização Brasileira, 1968, p.26.
47 Ibidem, p. 27.

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colonialismo, da estratégia e da práxis de libertação”.48 Isso porque, diferente do mundo


das “sociedades de tipo capitalista”, o poder é exercido e se utiliza de uma “linguagem de
pura violência”49 e historicamente os agentes e órgãos do sistema penal, como
intermediários dela, levam “[...] a violência à casa e ao cérebro do colonizado”50. Essa
violência, a qual persiste até hoje na manutenção dos arranjos coloniais, deve ser
reivindicada e assumida pelos povos subalternizados (ou criminalizados), já que “a
discussão do mundo colonial pelo colonizado não é um confronto racional de pontos de
vista” que possa se dar a partir das categorias tidas como universais de estado e direito.
Nas palavras de Fanon, “o colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo,
dotado de razão. É a violência em estado bruto e só pode inclinar-se diante de uma
violência maior”.51
A imobilidade imposta aos povos colonizados só pode ser contornada com a
superação do “mundo compartimentado” ou do “mundo de estátuas” edificados pela
colonização52. É com Fanon que podemos aprender que as ações de destruição das
estátuas dos generais que efetuaram a “conquista” ou de engenheiros que construíram
pontes e barragens - e porque não das prisões e territórios construídos para dar
seguimento a esses mundos -, desqualificadas cinicamente como ações de bárbaros,
podem fazer parte do descobrimento do real e da sua transformação em práxis, no
exercício da violência que abre caminhos ao projeto de libertação.53
Para Fanon54, o discurso da “não-violência” é uma tentativa de equacionar o
problema colonial e manter seus arranjos, e para nós que estamos tentando destruir os
alicerces, por meio do qual a dominação da colonização persiste no cotidiano das
sociedades colonizadas, é urgente chamar atenção para as práticas de violência
legitimadas de forma sutil. Essas práticas são racionalizadas por meio dos discursos e
instituições que sustentam o estado na modernidade, abrindo passagem para lutas
abolicionistas que lancem mão da violência como tática imprescindível na ruptura de
espaços verticalizados.

48 QUEIROZ, Vinicius Lustosa. Fanon e a violência revolucionária. Disponível em:


https://jacobin.com.br/2020/07/fanon-e-a-violencia-revolucionaria. Acesso em: 9 outubro de 2020.
49 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora: Civilização Brasileira, 1968, p. 28.
50Idem.
51 Ibidem, p. 46.
52 Ibidem, p. 38 e 39.
53 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora: Civilização Brasileira, 1968, p. 44.
54 Ibidem, p. 46 e 47.

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A partir dessa inversão de sinais, a violência pode se apresentar como ruptura a


um dos alicerces do sistema de justiça criminal, atuando no sentido de restaurar e
reconhecer os envolvidos com vozes e sujeitos protagonistas na resolução de suas
“situações problema”.
É nessa perspectiva que essa violência anticolonial serve para questionar a
cegueira daqueles que se agarram em proposições pacifistas, reduzidas à defesa de
direitos fundamentais ou da legalidade que pressupõe a manutenção da ordem
hegemônica. Ou, ainda, os garantistas da chamada “segurança pública” com direitos,
aqueles que se apresentam como guardiões da ordem e colaboracionistas legítimos do
extermínio perpetrado pelas políticas criminais contemporâneas.
É por isso que “Fanon, portanto, nos ajuda a expandir nossa imaginação política
e a dar outro estatuto filosófico e político à violência, mais condizente com a tradição dos
oprimidos”55. Mas dentro desse contexto de alargamento de margens, é preciso se livrar
das categorias do “ser branco e ocidental”, no sentido de ter somente como horizonte
suas teorizações universalistas, principalmente a de “direitos humanos”, a qual é
mobilizada como contraponto às violências do sistema penal.

3. Falência do modelo punitivo e o imaginário abolicionista

O irromper de novos modelos de resolução de conflito passam por questões políticas e o


poder criativo se entrelaça com o poder destrutivo56. Há um moralismo que atravanca
debates e táticas de ação em um mundo neoliberal de empreendedores de si mesmo,
apostando no individualismo e enfraquecendo a potência de malha coletiva.
Quando se menciona moralismo nos referimos a ideia de que toda violência,
agressividade ou força significariam um mal em si. A principal chave para pensar esse
moralismo é imaginar que isso desloca o ato de seus considerados contextos. O outro
aspecto que relaciona a moralização da violência é o apagamento da formação do Estado,
a mistificação de conquistas e disputas sociais como algo dado.

55 QUEIROZ, Vinicius Lustosa. Fanon e a violência revolucionária. Disponível em:


https://jacobin.com.br/2020/07/fanon-e-a-violencia-revolucionaria. Acesso em: 9 outubro de 2020.
56 BENJAMIN, W. Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. Trad. Celeste H. M. Ribeiro de Souza. São

Paulo:Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1986. p.187


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Assim, Matos57 fala que há uma incapacidade de fazer distinções sistemáticas


entre os usos da violência. Sendo assim, esse sistema liberal-capitalista vai “deixando de
perceber o óbvio: que ele próprio, em si e por si, é violência de classe; que para controlar
a violência extralegal é preciso lançar mão de outro tipo de violência”. Esse outro tipo de
violência que se centraliza no Estado e é exacerbado no poder político-jurídico58.
A formação do Estado tem essa violência constitutiva, ao passo que o
esquecimento dessas forças revolucionárias e violentas que o formaram59, seja o
congresso, o Estado ou uma lei, se faz notável. Lembra-se da assinatura da caneta, mas
há um esforço para que se pense que as greves em nada influenciaram no rumo de
conquistas trabalhistas, por exemplo.
Somando o desprezo pelos contextos e forças que tensionam um ato violento,
além do apagamento dessa relação com a disputa política, se desenha o cenário no qual
a criminalização e o grande encarceramento operam na hipersimplificação entre bem e
mal, entre os que merecem viver ou morrer, entre os que podem falar e elaborar pautas
e os que se ouvem menos que ruídos.
Quando Mathiesen fala da prisão como sistema profundamente sem sentido
diante de seus próprios termos, é o pontapé que se repete em um olhar desnaturalizante
da categoria de crime, e da seletividade penal. A fragilidade desse funcionamento da
prisão, em especial no Brasil, hoje, traduz contradições, crueldades e absurdos e deveria
conduzir a recusa disso.
Mathiesen nos ensina que o conhecimento acerca do absurdo do sistema
prisional é secreto, mas a negação dessa realidade segregadora, racista e colonial, no
nosso contexto, faz parte de uma encenação que inverte o que é regra e o que é exceção.
Assim, o genocídio, os abusos policiais, e essa carga de violência disposta pelo Estado
entra ironicamente em uma nomenclatura de “caso isolado”, enquanto este se repete
cotidianamente. A informação fria e seca sobre o contexto criminal é insuficiente60, visto
que ela demanda “um nível emocional mais profundo”61.

57 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia Radical e Utopia: inapropriabilidade, an-arquia, a-nomia.

Rio de Janeiro: Via Verita, 2014.


58MATOS, op. cit. p.171
59MATOS, op. cit. p.172
60MATHIESEN, Thomas. A caminho do século XXI — abolição, um sonho impossível? Verve (PUCSP), v. 4, p.

80-111, 2003.
61MATHIESEN, op. cit. p.95-96

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Há toda uma mobilização em colocar a vítima como centro do que se desdobrará


diante da situação-problema, e isso costuma ser retomado e proposto de maneiras
diversas pelo abolicionismo penal. Mas propor seria suficiente sob uma sociabilidade
autoritária que valora a morte de maneira muito diferente? Propor que vamos sempre
criar novos caminhos, novos modelos para solucionar as situações problemáticas não
parece dar conta sozinha de criar uma prática abolicionista, de operar o desejo de outra
forma possível de se organizar, e lidar com conflitos que não esse que arrasta correntes.
Isso porque pensar o abolicionismo em nosso chão tem desdobramentos outros. Então
abrange coisas além dos muros de uma prisão (ou da derrubada desses muros).
A falência desse modelo punitivo e também da sociabilidade autoritária que
consagra o castigo como algo quase mágico, se torna até de uma certa ironia quando diz
respeito ao medo de táticas organizadas para enfrentá-la. É preciso pensar os horizontes
que desenhem uma pluralidade de táticas. Pensar sobre o abolicionismo e sua prática,
que não é uma única, não se distingue de um modo de vida e de uma construção de
mundo. A ação direta é algo que se comunica com a história e raízes de revoltas populares,
mas também com a organização de bairros, e assim também com a ideia de um mundo
sem prisões. Sendo assim, tanto o molotov quanto a horta comunitária são igualmente
ação direta, pois recaem na definição anarquista de uma amplitude de recusa ao
intermédio ou representação.
O desenvolvimento disso passa por enfrentar, como situação-problema, um
evento que seria naturalizado como crime. Essa mudança de perspectiva, de olhar, passa
pela linguagem. É necessário equacionar os eventos a partir dos diretamente envolvidos.
A linguagem, em que pese não exaure o processo de ruptura, é instrumento essencial de
um desprender-se para uma outra construção. Por isso, Acácio Augusto pontua que “uma
política abolicionista é uma atitude pessoal, que ocorre no presente, como convite aberto
a outros interessados em potencializar liberdades, sem esperar pela redenção futura ou
por uma situação política favorável” (2012, p.159).
Por essa atitude reiterada começa a ser desenhado um abolicionismo
combativo, que se organiza a tensionar também descriminalizações como pautas
políticas, apontando sempre o horizonte outro, não tendo reforma como fim. Isso porque
esse pensar-prático não fica suscetível à uma pauta esvaziada de não-violência e nem
submetido a imobilização política.

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Por isso, quando Augusto (2012) fala da atualidade do abolicionismo de


Hulsman e direciona para ação direta, diz respeito também a um deslocamento que nos
é importante sobre ir “além da estática posição do resistente, da crítica acadêmica ou da
atuação pela denúncia”. Isso se relaciona com uma ética e estética libertária, como fala
Passetti.
O impacto dessa construção implica diretamente na ideia de um imaginário,
pensando que “Imaginário poderá ser entendido como um conjunto de imagens mais ou
menos próximas umas das outras ou, pelo menos, que podem entre elas constituir uma
história ou uma ficção paralela ao mundo real”62. A composição desse imaginário
abolicionista, diante de uma ética e estética libertária toma contornos em cada
experiência, e pensar prático sobre o qual nos debruçamos.
Esse pensar-prático costuma esbarrar no problema da utopia, que
estranhamente tem tomado sentidos sobre algo infantilizado ou irrealizável. É uma
reação recorrente diante de propostas que remetem às causas e não somente aos efeitos,
ou seja, até a raiz do fenômeno. Foucault63 considerava utopias como algo mais preciso
no mapa, algo pelo qual se desenha um horizonte, um objetivo, uma aspiração.
O tal problema da utopia aparece na análise de Mathiesen64 e de Augusto65.
Mathiesen devolve a ideia do impossível olhando para vitórias abolicionistas do passado
e registrando:
[...]Em um trecho provocativo sobre as vitórias abolicionistas do passado, o
criminologista alemão Sebastian Scheerer lembra-nos que “nunca houve uma
transformação social significante na história que não tenha sido considerada
irreal, estúpida ou utópica pela grande maioria dos especialistas, mesmo
antes do impensável se tornar realidade"66

Isso é algo também argumentado por Zizek67 (2015), sobre o deslocamento da


ideia de impossível. Por isso, pega-se o fio do raciocínio dele para acender algumas
questões: "a própria ideia de transformação social radical parece um sonho impossível;
contudo, a palavra “impossível” deveria nos fazer parar para pensar"68. Neste trecho,
Zizek traça uma relação com a pós-política de uma redução das decisões políticas a

62 TAVARES, Gonçalo M. Atlas do corpo e da imaginação. Lisboa: Editorial Caminho, 2013. p. 379
63 FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. São Paulo: Edições n-1,
2013
64 MATHIESEN, op. cit. p.82.
65 AUGUSTO, Acácio. Abolicionismo penal como ação direta. Verve, 21, 2012. p.157-158
66 SCHEERER, Sebastian Apud MATHIESEN.“Towards abolitionism” in Contemporary Crisis, 1986, p. 7.
67 ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 2011.
68 ZIZEK, op.cit., p.12

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questões puramente econômica, é também um molde da ideologia dominante que


"pretende nos fazer aceitar a impossibilidade da mudança radical, da abolição do
capitalismo, da democracia não restrita ao jogo parlamentar". Essa articulação tem a
direção de tornar impossível, tornar impraticável, tornar invisível, aquilo que realmente
altera a ordem social existente69. Isso dialoga com esse questionamento sobre a abolição
do sistema penal. Tanto que a pergunta feita aos abolicionistas, exemplificada por
Augusto70, sobre "Mas colocar o quê no lugar?" é a argumentação subsequente, depois
de pensar ser impossível.
Nesse aspecto, há direções para caminhar com isso. Uma é reelaborar a ideia de
substituição (quando se pergunta o que colocar no lugar do sistema penal), que é mais
conectada com a reforma do que com abolição. Outra é abrir o convite a tomar parte de
criações como justiça restaurativa, associações de bairro, ou até sobre educação no
núcleo familiar que dialogue com a extinção da lógica do castigo. Em meio a tudo isso se
reforça pensar as condições da abolição como um todo também, e sair de um imaginário
descrito por Mathiesen, no qual "sabemos muito mais sobre as condições que sustentam
os sistemas do que sobre aquelas que favorecem sua mudança radical"71.
As imagens recorrentes de "humanizar" um sistema que empilha corpos,
aprofunda a brutalidade, e não reduz índices criminais em seus próprios termos, ainda
são as que comandam ou congelam a imaginação. Então como pensar a abertura para um
outro imaginário na epistemologia abolicionista?
Ao retornar a Foucault72 vemos que ele fala de utopia, como um horizonte
palpável, em contraste a pensar sobre o lugar sem lugar: a heterotopia. É nessa definição
que se considera o Navio, esse “pedaço de espaço flutuante, lugar sem lugar, com vida
própria, fechado em si, livre em certo sentido, mas fatalmente ligado ao infinito do mar”73.
Essa expressão que Foucault faz de pensar o barco de como a maior reserva de
imaginação lembra o poema de Ana Cristina César dizendo que “é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço74”. O abolicionismo como navio se aproxima de Ana Cristina,

69 "Esse real é impossível no sentido de que é o impossível da ordem social existente, ou seja, seu antagonismo

constitutivo – que, entretanto, de modo algum implica que não se possa tratar diretamente com esse
real/impossível e transformá-lo radicalmente num ato “maluco”, que muda as coordenadas
“transcendentais” básicas de um campo social." ZIZEK, op. cit. , p.13
70 AUGUSTO, op. cit.
71MATHIESEN, op. cit., p.84
72 FOUCAULT, op. cit.
73 FOUCAULT, op. cit., p.30
74 CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.p.61

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mais do que de Foucault. O navio do abolicionismo existe no espaço, ou seja, está em um


lugar sem lugar. Portanto, essa heterotopia vaga nesse tempo, mas só enquanto não se
ancorar na matéria, nas experiências antipunitivistas. Esse espaço primeiro com mais
dificuldade de ancorar é a imaginação, porque é preciso abrir essa porta a qual
arrancaram a maçaneta.

4. Considerações finais

Assumir a urgência de uma práxis abolicionista não se confunde com propor uma
docilidade perante os abusos e reiterações de um sistema de justiça criminal que opera
sobre o absurdo. Contudo, para essa contribuição, é preciso olhar a violência nos termos
abordados por Frantz Fanon como algo essencial à práxis. Não só no sentido de violência
revolucionária, mas como algo presente enquanto motor transformador, enquanto
possibilidade, de forma que não seja visto como errado ou desprovido de razão, como é
comum no discurso liberal.
Analisamos como a epistemologia do abolicionismo penal sugere um contínuo
percurso experimental, ou seja, hábil a abarcar discussões que possam romper com velhas
fantasias sobre a violência, pois são elas que alicerçam a construção do conceito de
“crime” como algo natural. Ademais, não são só as violências revolucionárias que são
objeto desses misticismos e ilusões, as próprias violências estruturais/institucionais
decorrentes da lógica colonial são colocadas em um lugar de consequências “naturais” de
um processo civilizatório que a todo custo nega o sofrimento de populações
marginalizadas.
Neste sentido, os abolicionistas penais precisam estar munidos de saberes que
dêem conta de permanências históricas e contextos sociais para pensar as produções e
reproduções das relações de dominação colonial pelo sistema punitivo. O poder punitivo
incide a partir dessas mobilizações ideológicas em torno da violência, seja para justificar
a incidência brutalizada dos aparelhos de repressão criminal, seja para negar o sofrimento
de determinados segmentos sociais.
Portanto, sendo feitas essas ressalvas necessárias, em que se insere a
epistemologia do abolicionismo penal a um contexto de relações de dominação, vemos
como a transformação do real se coloca como consequência das movimentações de

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revolta, o que nos apresenta novas formas de solução das situações problemáticas para
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Sobre os autores

Vitória de Oliveira Monteiro


Mestra em Direitos Humanos pela UFPA, especialista em Ciências Criminais pelo
Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA), pesquisadora do Grupo de Estudos
sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia (CESIP-MARGEAR) e do
Grupo Cabano de Criminologia (GCRIM). E-mail: vitoria.monteiro93@gmail.com

Roberta Amaral Damasceno


Mestra em Direito com área de concentração em Direitos Humanos, Arte e Sociedade
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrante do Grupo Cabano de
Criminologia (GCRIM) e do Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das
Vidas na Amazônia (CESIP-MARGEAR). E-mail: damaroberta@gmail.com

Rômulo Fonseca Morais


Professor de Criminologia e Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Escola
Superior Madre Celeste (ESMAC/PA), Doutorando em Direito pelo PPGD da UERJ e
Pesquisador do Grupo Cabano e Criminologia (GCRIM). E-mail:
romulofmmiri@hotmail.com

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p.497-523.
Vitória de Oliveira Monteiro, Roberta Amaral Damasceno e Rômulo Fonseca Moraes.
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/57082| ISSN: 2179-8966
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As particularidades fundantes do punitivismo à brasileira


The founding particularities of the Brazilian punitivism

Monique de Carvalho Cruz¹


¹ Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
moniqueccruz@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6246-3447.

Artigo recebido em 15/01/2021 e aceito em 21/01/2021.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N.01, 2021, p. 524-547.
Monique de Carvalho Cruz
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/57150| ISSN: 2179-8966
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Resumo
O objetivo deste artigo é contribuir para a produção e promoção de propostas
abolicionistas que se dediquem às especificidades das lutas no Brasil contemporâneo.
Para tanto será discutida a formação socioespacial brasileira em sua relação com a
democracia e os argumentos legitimadores da expansão punitiva. Por fim, serão trazidos
exemplos de lutas empreendidas por mulheres negras que podem colaborar com
objetivo inicial.
Palavras-Chave: Formação socioespacial; Racismo; Resistência.

Abstract
The aim of the present article is to contribute to the production and promotion of
abolitionist proposals that consider the specificities of the struggles in contemporary
Brazil. For this purpose, the Brazilian socio-spatial formation will be discussed in its
relationship to democracy and to the legitimizing arguments of punitive expansion.
Finally, examples of struggles undertaken by black women who can collaborate with this
purpose will be pointed out.
Keywords: Socio-spatial formation; Racism; Resistance.

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Introdução

Há cerca de 10 anos, quando iniciei o estágio curricular obrigatório em Serviço Social na


Secretaria Estadual de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP-RJ) em um
presídio masculino de regime fechado no Complexo Prisional de Gericinó, no bairro de
Bangu, me deparei com uma realidade a qual ouvia falar apenas de fora. As ausências de
longo prazo de pessoas queridas nem sempre são explicáveis pela morte, pelo menos
física, e podem ser explicadas por frases como “fulana está presa ou fulano passou a
vida toda preso”.
A partir da experiência de dois anos realizando atendimentos aos homens
privados de liberdade, às suas mães, companheiras, irmãs, amigas e, em alguns casos,
pais, assim como das participações em seminários, simpósios e debates sobre o campo
sociojurídico de atuação de assistentes sociais, fui apresentada às pautas abolicionistas
como parte das lutas anticapitalistas (Davis, 2018a; 2018b). Reconhecer a estrutura
racial e patriarcal do encarceramento seletivo em massa (e da sociedade brasileira),
estudar e atuar politicamente no movimento de favelas também colaboraram para a
elaboração das reflexões e propostas que trago neste artigo.
O objetivo principal deste artigo é colaborar para a produção e promoção de
propostas abolicionistas que se dediquem às especificidades das lutas no Brasil
contemporâneo, como forma de produzir diálogos mais profícuos com os movimentos
sociais em geral. Ainda que reconheçamos a importância do pensamento e experiências
estrangeiras, estou convencida de que não há possibilidade de transformação de nossa
realidade sem o necessário conhecimento sobre ela. Para tanto, busquei traçar um
caminho talvez pretencioso para um artigo, mas que reconhecendo seus limites
pretende “colocar ideias no mundo” como forma de cooperar com pensadoras/es que
vêm se dedicando a este tema.
Analisar possibilidades de questionamento radical da realidade em que vivemos,
na qual o punitivismo é um elemento constituinte das práticas institucionais,
interpessoais e, portanto, estruturais requer um retorno ainda que breve à nossa
formação socioespacial (Santos, 1982). Infelizmente existe uma tendência geral a buscar
soluções para as nossas questões em outras realidades sob a ideia de que nos olhamos
dentro de uma totalidade quando na verdade apenas colaborando para o

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obscurecimento das relações sociais no Brasil, promovendo por outro lado análises de
país distorcido1 (Santos, 2002).
Esse texto pretende ser um chamado à reflexão crítica com vistas a elaboração
de propostas abolicionistas, entendendo-as como antirracistas e feministas em
contraponto às práticas racistas, militarizadas, masculinistas e heterossexistas
apresentadas pela sociedade burguesa como a solução para os conflitos sociais. Nesse
contexto, a militarização também nos interessa; podemos conceituá-la como algo mais
amplo que a ideologia militarizada do funcionamento das forças policiais e militares
como conhecemos e que está marcada pelo espraiamento das práticas, símbolos,
narrativas e tecnologias, que tem na força bélica seu aspecto principal (Barros, 2018),
justificando o exercício do poder de matar, não somente a tiro, mas de maneira lenta e
gradual com o encarceramento e o adoecimento (das pessoas presas e suas familiares),
que são processos genocidas que atravessam nossa história desde antes da existência
do Estado brasileiro.
Ainda segundo Milton Santos (1982, p.88): [...] os modos de produção escrevem
a História no tempo, as formas sociais escrevem-na no espaço. [...], por isso reconhecer
nossas particularidades parece ser um caminho necessário à produção de qualquer
proposta que vise transformar a realidade. Em um primeiro momento, busco discutir as
bases raciais, heterossexistas, militarizadas e cristãs da sociedade brasileira que
promovem a existência do que venho chamando de Estado-Colonial-Penal (Cruz, 2021a,
no prelo).
Em seguida, tenho por objetivo relacionar essas bases de nossa sociabilidade a
alguns elementos que considero relevantes da história do Brasil e que se relacionam
com a forma como a expansão punitiva ganha corpo na contemporaneidade,
especialmente na relação “crime vs segurança” que atravessou os processos de
reabertura democrática e transformaram o período pós-1988 no que o movimento de

1 Para Ribeiro (apud Santos, 2002, p.8): [...] O país distorcido resultado de um olhar distorcido, fruto da
assimilação acrítica de temas de pesquisa impostos de fora. [...]. Um olhar distorcido, então, porque se
recusa a adentrar o território para conhecer a gente que nele vive, bem como suas condições de vida e
necessidades. Um olhar distorcido que enlaça o país e seus recursos naturais em uma teia de relações sociais
complexas – ditas “globais” – e que afirma um único padrão de inserção internacional para o Brasil sem
levar em conta a nossa formação socioespacial, categoria que o próprio Milton criou. Um olhar de quem tem
“preguiça intelectual”, como dizia à boca pequena o geógrafo baiano, e não quer ousar buscar o novo para
si e para o Brasil.

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Mães e Familiares contra o Terrorismo de Estado chama de Era das Chacinas (Mães de
Maio, 2012).
Por fim, abordo brevemente o que parece ser um caminho interessante trilhado
por movimentos sociais com os quais tenho interagido nos últimos 10 anos de ativismo
antiprisional e de alguns paradoxos que precisarão ser aprofundados em oportunidades
futuras, para que pensemos como o questionamento radical que é realizado por esses
movimentos podem ser colocados a favor de um maior compartilhamento de propostas
abolicionistas, que como sabemos ainda estão restritas a pequenos grupos que buscam
difundir propostas eurocentradas de transformação da realidade.

2. Colonização, raça e a formação socioespacial do Estado-Colonial-Penal brasileiro

O Estado brasileiro se constituiu como tal a partir da exploração do trabalho de pessoas


escravizadas, ao passo que formou uma elite proprietária de terras, egocêntrica, racista
e conservadora que usufrui(u) dos produtos e recursos da exploração direta dos corpos
e do conhecimento das pessoas indígenas e negras. As instituições do Estado brasileiro,
como demonstram Dias e Prudente (2016), foram mantidas e financiadas com comércio
escravagista que também ajudou a enriquecer a Igreja Católica. Esses autores, assim
como Schwarcz (1993), Shwarcz e Starling (2018), Chalhoub (2017) demonstram que o
“medo branco da onda negra” (Azevedo, 1987) forjou as racionalidades que criaram e
mantém no tempo instituições jurídicas, leis e o próprio sistema de justiça (outras
instituições) e moralidades como instrumentos de defesa dos interesses das elites
formadas por famílias brancas escravagistas que além de tirar todo proveito possível das
estruturas estatais, encontraram maneiras de garantir lugares sociais de poder para seus
descendentes.
Os efeitos desse modelo de produção atravessaram os séculos constituindo
racionalidades e as sociabilidades que forjam as subjetividades até os nossos dias. Como
afirma Santos (1997, p.135): O modelo cívico brasileiro é herdado da escravidão, tanto o
modelo cívico cultural como o modelo cívico político. A escravidão marcou o território,
marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais deste país [...]. Ou, como
diriam Schwarcz e Starling (2018, p.500): Essa marca que continua presente ainda nos

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dias de hoje, na nossa arquitetura (nos minúsculos “quartos de empregada” ou nos


elevadores de serviço – na verdade, para serviçais), no nosso vocabulário, nas práticas
cotidianas de discriminação social e racial [...].
O racismo e o heterossexismo cristão que pautaram o empreendimento militar e
financeiro da colonização são bases fortes e bem estruturadas das nossas relações
sociais e a despeito de alguns avanços importantes no tocante ao acesso a alguns
direitos e à promulgação da Constituição Federal “Cidadã” em 1988, seguimos em uma
sociedade racial e socialmente desigual que está marcada por processos que se baseiam
em uma igualdade formal que não se concretiza na prática.
Como se sabe a chamada reabertura democrática foi fruto de lutas populares,
mas também de acordos entre as elites que mantém em grande medida as estruturas
ético-políticas que atravessam nossa história desde a colonização. Este marco temporal
– reabertura democrática –, no qual serão baseados os apontamentos deste texto, visa
trazer ao debate o fato de que a Democracia Brasileira está baseada, como afirmou
Milton Santos (1997) não na ideia de direitos e deveres, mas na manutenção dos
privilégios das classes médias, onde o sistema de justiça criminal e a violência de Estado
são importantes instrumentos que mantém o racismo, o heterossexismo e a
militarização como determinantes das relações sociais.
Em um artigo recente, destaquei a ideia de Estado-Colonial-Penal como a
conjugação do poder em um país agro-minero-exportador que possui uma elite branca,
masculinista e violenta, que ao longo dos séculos se manteve pela detenção de terras e
por se apossar do Estado para garantir seus interesses privados que se baseiam
especialmente na superexploração do trabalho (mal remunerado e doméstico) e na
eliminação das pessoas indígenas e negras. Elites essas que não abrem mão de negociar
com as vidas não-brancas, como afirma Flauzina (apud Alexander, 2018).
De acordo com autores como Schwartz (2011) e Comparato (2015), a
colonização foi um empreendimento comercial e militar europeu que envolveu
ocupação territorial, violências (inclusive sexual), e brutalidade contra povos originários
além da implementação de instrumentos administrativos que desde as primeiras
décadas dos anos 1500 já marcavam a intrínseca relação entre poder administrativo,
militar e jurisdicional dos arrendatários das terras. De acordo com Schwartz (op. cit,
p.43): A carta de doação [das sesmarias] dava ao proprietário ampla jurisdição civil e

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criminal, a ser exercida por pessoas que ele nomeasse: um magistrado superior (ouvidor)
e outros funcionários da justiça: escrivães, tabeliães e meirinhos.
Ainda que existam muitas relações complexas quando tratamos do punitivismo
à brasileira em seu desenvolvimento histórico, é fato que o sistema de justiça constitui
seu maior expoente. Nele podemos articular tanto as instituições que o compõe como
as legislações criminais, o exercício do poder de polícia, os instrumentos, narrativas e
moralidades que o alimentam como principal forma de solução dos conflitos na
contemporaneidade.
Esse sistema iniciado nos primeiros anos da colonização ficou marcado no
tempo como um espaço ocupado majoritariamente por homens brancos e proprietários
de terras e seus filhos. Ao longo dos primeiros cem anos do empreendimento colonial
foram instituídas práticas que atravessam os séculos e que mantém a estrutura de
poder econômico e social no país. Schwartz (2011) nos apresenta um amplíssimo
panorama que demonstra como o sistema de justiça no Brasil se constituiu e se mantém
e como práticas de amizade, compadrio e nepotismo garantiram (e garantem) privilégios
que se naturalizaram como mérito, talento, distinção (Santos apud Munhoz, 2020, p.1)
Esse poder não se constituiu e se manteve sem que uma maquinaria estatal
fosse mobilizada inicialmente com a necessidade de manter as terras “descobertas”
ocupadas e a partir do uso da ciência e instituições diversas que promoveram
conhecimentos e narrativas raciais que instituíram sobre o corpo das pessoas indígenas
e negras estereótipos utilizados até os nossos dias2. Estereótipos citados em reuniões

2Em agosto de 2020 em uma sentença condenatória a juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de
Curitiba (PR) escreveu que o réu, o homem negro, era “Seguramente integrante do grupo criminoso, em
função de sua raça, agia de forma extremamente discreta...”. Para mais ver:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/12/sentenca-de-cunho-racista.htm. Acesso
em: 04 Jan. 2021.

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ministeriais e palestras recentes de importantes nomes do atual governo brasileiro3 e do


próprio presidente que se referiu ao “peso” de quilombolas em “arrobas” 4.
Esses estereótipos que se mantém no tempo são fruto das teorias raciais
europeias incorporadas ao longo dos séculos, a partir do final do século XVIII, e
instituídas como políticas de Estado. Como demonstrou Schwarcz (1993), o espetáculo
das raças que se concretizou na democracia racial que obscureceu as relações raciais.
Para Nascimento (2016) esses processos criaram mitos, como por exemplo, o que
tornou a brutalidade escravista em algo brando, a violência sexual contra mulheres
indígenas e negras em amor, e outros que visaram apagar ou abrandar a história de
violência da escravização de pessoas indígenas e negras e que vale ressaltar serem
frutos de articulações diversas, especialmente do uso de instituições científicas e da
importação das teorias raciais europeias.
Por esses e outros importantes elementos de nossa história, quando analisamos
o punitivismo à brasileira, não podemos esquecer dos 400 anos de escravização e do
poder das elites proprietárias de terra nas principais instituições da justiça; dos ideários
eugênicos que em inícios do século XX promoveram políticas públicas em diversos
campos da administração estatal, incluindo práticas jurídicas e médicas que impactaram
muito na organização espacial das cidades (Schwarcz, 1993; Chalhoub, 2017; Góes,
2018), além da promoção de transformações fundamentais no espaço urbano brasileiro
que determinaram importantes estruturas socioespaciais (Santos, 1985, 2006; Santos et.
al. 1998; Santos, et. al. 2007;) que hoje são fundantes nos discursos “contra o crime e a
favor da segurança”. A diferenciação territorial dos lugares da cidade racialmente
organizada remonta deste período e como demonstrei em trabalho anterior são

3 Em palestra proferida em 2018 o atual vice-presidente Hamilton Mourão expôs todo seu racismo – que se
ressalte não diz respeito apenas ao vice do governo de Jair Messias Bolsonaro – ao dizer que ainda existe o
complexo de vira-lata aqui dentro do nosso país e nós temos que superar isso, e isso, está aí essa crise,
política, econômica e psicossocial. Nós temos uma herança cultural; uma herança que tem muita gente que
gosta do privilégio, não é [...] mas existe uma tendencia do camarada querer aquele privilégio pra ele. E não
pode ser assim. Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência
que vem da cultura indígena, e eu sou indígena, presidente, meu pai era amazonense, e a malandragem,
Edson Rosa, nada contra, mas a malandragem que é oriunda do africano. Então essa (sic) é o nosso cadinho
cultural. Infelizmente gostamos de mártires, de líderes populistas, e dos macunaímas [...]. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=uPqNLiFHxXo. Acesso em: 30 Dez.2020.
4 A declaração foi feita durante uma palestra no Clube Hebraica no Rio de Janeiro em 2017, na mesma Jair

Messias Bolsonaro expôs além de seu racismo e a misoginia característica de suas falas quando afirmou que
a viagem que fez a Israel com quatro filhos dos cinco filhos. Ele disse que tem um quinto [filho], e no quinto
eu dei uma fraquejada né, foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada foi uma mulher [...].
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fpmq8wRyyXg. Acesso em 30 Dez.2020.

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fundamentais em relação ao terrorismo de Estado que se implementa em determinados


locais das cidades contra determinadas populações (Cruz, 2020).
As dicotomias criadas pela racionalidade colonial que marcam a formação dos
Estados modernos, assim como os ideários de “desenvolvimento”, determinam no Brasil
importantes questões que implicam na atuação do sistema de justiça criminal desde a
atuação violenta e letal das polícias – repressiva e não preventiva (Kant de Lima, 2004) –
, até o encarceramento em massa de pessoas negras (Borges, 2018). Essas dualidades
que marcam práticas e ideários maniqueístas são frutos de práticas coloniais de cisão e
separação do que é bom e mau, do que é moderno e atrasado, características que dizem
respeito também às formas de vida de quem são os “colonos” e os “colonizados”, de
quem é o ser universal, humano e de quem está na zona do não ser, como demonstrou
Fanon (1968) (Idem 2008), que, portanto, pode ser morto, eliminado, seja da vista em
relação a sua territorialidade, seja da vida a partir de práticas e narrativas necropolíticas
(Mbembe, 2017).
Nesse sentido, no pensamento de Milton Santos há algo a mais que nos
interessa: a democracia no Brasil não pode ser pensada a partir de uma ideia “genuína
de democracia” na qual encontraríamos, segundo o autor, um regime político onde o
centro é o gênero humano em sua plenitude, garantindo-se “liberdade da igualdade e
da igualdade à liberdade”, mas uma democracia de mercado onde as relações
“econômicas” são priorizadas e as pessoas deixadas em segundo plano, produzindo
cidadanias mutiladas.
Essas populações que durante o processo de colonização foram relegadas ao
trabalho escravo, classificadas como “sem alma” ou “inumanas”, foram classificadas em
relação ao mercado do trabalho livre como “inaptas”, sendo deixadas de fora da
possibilidade de acesso a serviços básicos como educação, saúde e de moradias
adequadas. Não esqueçamos a produção de uma série de leis e códigos que criaram
estratégias bastante eficazes de criminalização das pessoas negras desde o Império,
especialmente na República, até que chegamos à contemporaneidade sem que a
determinação racial “dos criminosos” esteja explicitada na letra da lei.
Como vemos, são essas pessoas que vivem sob a égide dessas cidadanias
mutiladas a quem se destina a penalidade neoliberal (Wacquant, 2001), que determina
a atuação do Estado Penal-Colonial que encarcera seletiva e massivamente pessoas
negras. Em uma sociedade como a nossa, onde as classes médias se organizam e atuam

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politicamente por vias democráticas para manter seus privilégios e naturalizar


desigualdades (Biroli et. al., 2020), os obstáculos aos exercícios da cidadania é a regra,
assim como seu sistema de controle social repressivo (Kant de Lima, 2004).

2. Falsas dicotomias legitimadoras da violência de Estado e o punitivismo à brasileira

Como se buscou demonstrar, as determinações históricas fundadas na racionalidade


colonial determinam em grande medida o que é o crime, a pessoa criminosa e quais
práticas devem ser punidas jurídica ou moralmente. Quando analisamos os dados que
nos dizem quem são as pessoas colocadas nas malhas do Estado colonial-penal como
aquelas que devem ser punidas, identificamos os perfis nos quais estão colocados “os
outros”: pessoas negras, mulheres, pessoas LGBTQI+ e assim por diante. Identificamos
ainda que as relações de opressão na qual se retroalimentam as narrativas punitivistas
são as mesmas que socialmente mantém o poder indistintamente nas mesmas mãos.
Ainda que o poder punitivo no mundo encontre muitas expressões como as que
se viu nos Estados Unidos recentemente com o encarceramento de imigrantes5, a
separação de famílias, encarceramento de crianças 6 e esterilização forçada7 de mulheres
não-brancas, nos interessa, como já dito, as particularidades dessas formas punitivas no
Brasil.
Essas particularidades não podem ser analisadas à revelia do espaço (Santos,
2006) onde elas se concretizam nas relações sociais, para nós importa pensar o
punitivismo à brasileira, que possui sua principal expressão nos discursos, práticas e
moralidades que envolvem a oposição direta entre crime e segurança articulada com

5Immigration detention in United States. Disponível em:


https://en.wikipedia.org/wiki/Immigration_detention_in_the_United_States. Acesso em: 09 Jan. 2021.
6‘Baby Jails’ chronicles America’s ‘shameful’ treatment of migrant kids. Disponível em:
https://www.texasobserver.org/philip-schrag-baby-jails-trump/. Acesso em: 09 Jan. 2021.
7Immigration detention and coerced sterilization: history tragically repeats itself. Disponível em:

https://www.aclu.org/news/immigrants-rights/immigration-detention-and-coerced-sterilization-history-
tragically-repeats-itself/. Acesso em: 09 Jan. 2021.

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questões raciais, morais e de gênero, sobretudo relacionada aos lugares onde as


pessoas vivem.
Já dissemos que as pessoas negras após a famigerada abolição deixam de ocupar
um lugar (social e moral) de “inumanas” para ocupar o lugar de pessoas não-aptas ao
trabalho livre. O trabalho é o que permite que as pessoas acessem minimamente algum
direito. Educação, saúde e trabalho, segundo Gomes (2002), formam uma espécie de
tríade dos direitos sociais, tríade a qual foi impedido o acesso (formal) das pessoas não-
brancas por muito tempo.
A autora nos lembra ainda que a cultura política do Estado Novo apresentou um
vínculo entre a ideia de cidadania e a existência de direitos sociais, como direitos do
trabalho. Lembremos que durante este período só se acessava a saúde pública a partir
da “carteira assinada”. Por outro lado, é importante ainda ressaltar que em nossa breve
história os direitos sociais são garantidos a todas as pessoas (uma garantia apenas
formal e não de fato) somente a partir da Constituição de 1988.
Essas questões nos interessam a partir do momento em que o trabalho –
historicamente negado à população negra – é uma categoria acionada moralmente para
determinar quem deve ter direitos. A categoria “trabalhador” é utilizada para legitimar,
por exemplo, o direito de não ser morto pela polícia. Não são raros em programas
sensacionalistas de rádio e TV que o uso dessa categoria apareça para amenizar a ação
violenta do Estado quando os ‘jornalistas’ afirmam conhecer a realidade de que nas
favelas os trabalhadores são a maioria em relação aos bandidos.
Essas narrativas morais foram fundadas na negativa de acesso ao trabalho, que
depois passaram a determinar a punição moral e penal por vadiagem8. São também
parte importante das estratégias de diferenciação atuais entre o “bandido” e o
“trabalhador”. Esta falsa dicotomia “trabalho vs crime” promove um complexo de ideias,
práticas e discursos criminalizantes e criminalizados relacionada as formas de vida
subalternizadas, promovendo ao mesmo tempo territórios que serão também parte
desse ‘sistema’, como elemento legitimador do discurso punitivista e da violência do
Estado.

8Para mais sobre o “crime de vadiagem”. Cf.:Camila Cardoso de Mello Prando. A contravenção penal de
vadiagem no Rio de Janeiro (1900-1940): legalismo e prevencionismo nas decisões penais. Disponível em:
http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=df05dec7f743ab80. Acesso em: 09 Jan. 2021.

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Chalhoub (2017) demonstrou como os espaços de moradia (e, portanto, de vida)


das pessoas, outrora escravizadas, se formaram na cidade do Rio de Janeiro entre o final
do Século XIX e início do Século XX e o trato dado pelo Estado, muito baseado na
atuação dos poderes policiais, assim como Mattos (2007; 2012) nos apresenta a
articulada relação entre Estado, meios de comunicação, instituições cientificas etc. para
a criminalização daqueles territórios negros formados com a auto-organização das
pessoas expropriadas até da possibilidade de fazer parte do “mercado de trabalho livre”
que havia se instituído.
A produção e a retroalimentação sistêmica do medo branco da onda negra
reiterada ao longo dos séculos, são fundantes da militarização como racionalidade que
se espraia da atuação do Estado ao identificar e atuar para neutralização ou eliminação
de um inimigo, para a apropriação, ainda que não voluntária, pela sociedade em geral
que acreditando na violência e força de um “inimigo” que ameaça sua segurança, exige
que o Estado “responda à altura” legitimando práticas violadoras.
Na contemporaneidade existem alguns “fortes inimigos a serem enfrentados”
como por exemplo os movimentos de trabalhadoras e trabalhadores rurais que lutam
pelo direito à terra no campo e o “tráfico de drogas” no meio urbano. Percebe-se que
em ambos os casos os meios de comunicação de massa e os políticos de direita acabam
por colocá-los na mesma categorização, quando são completamente diferentes. O
primeiro se configura como movimento legítimo e democrático de exigibilidade de
direitos, o segundo, como um complexo moral relacionado a práticas ilegais instituídas
pela Lei n. 11.343/06 (lei de drogas), mas que no senso comum (promovido pelos atores
já citados) englobaria não só a venda e o consumo de substâncias tornadas ilícitas, mas
também crimes de porte de armas de uso exclusivo, controle territorial, homicídios,
roubos e outros crimes, todos tratados como “tráfico de drogas”.
Esse ideário militarizado que a população em geral assume para si, legitima a
ação letal do Estado e promove o que Agamben (2004) chamou de estado de
necessidade que faz com que se aceite a violação permanente dos direitos de milhares
de pessoas e os homicídios de pessoas negras (inclusive de crianças9) cometidos por

9Entre os anos de 2017 e 2019 as polícias brasileiras assassinaram mais de 2.215 crianças e adolescentes de
acordo com o levantamento encomendado pela Folha de S. Paulo ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Ressalte-se que nem todas as unidades federativas possuíam a idade das vítimas. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/12/em-tres-anos-policiais-mataram-ao-menos-2215-
criancas-e-adolescentes-no-pais.shtml. Acesso em: 09 Jan. 2020. Por outro lado é importante ainda chamar

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agentes de Estado como efeito colateral da “necessária violência para combater o


crime”.
Jorge da Silva (1996) ao falar sobre a militarização da segurança chama atenção
para o seu caráter ideológico. Ele destaca que a formação de gerações de policiais
militares constitui determinada forma de olhar o mundo e exercer suas atividades.
Nesse sentido, o período da Ditadura empresarial-civil-militar no Brasil (1964-1985) foi
importante dado o grau da institucionalização (e “reprodução ideológica”) de
determinadas práticas como a tortura e ação letal legitimada contra determinadas
pessoas (aquelas que compõem o mesmo perfil socioeconômico de quem está privado
de liberdade).
A morte pela polícia como punição por ser “bandido”, o encarceramento
seletivo como membro de facção do tráfico de drogas porque “a área onde foi presa é
notoriamente controlada por facção x ou y” são argumentos que relacionam pessoas
negras, territórios negros e formas negras de sociabilidade que carregam no tempo os
estereótipos que permitem a violação de direitos como punição. Pires (2018) nos ajuda
a compreender isto ao demonstrar como a democracia racial foi um dos mecanismos
ideológicos do regime que mobilizou práticas seculares de desumanização e inscreveu a
partir delas uma forma de atuação racista que não aparece como tal.
O período ditatorial foi marcado pela barbárie produzida contra os opositores
políticos do regime: assassinatos, desaparecimentos forçados, instituição de estado de
exceção com fechamento do Congresso, suspensão dos remédios constitucionais entre
outros elementos importantes marcaram com sangue (também da branquitude) a nossa
história. Os filhos da classe média, universitários de esquerda, passaram a ser também
torturados, encarcerados, desaparecidos como as populações negras foram (e ainda
são)10. Ou seja, práticas seculares foram reatualizadas para promover e manter o poder

atenção para os casos em que as testemunhas acusam policiais de terem assassinado crianças, mas que
houve a impossibilidade por ação ou omissão na investigação e que levaram os casos a serem arquivados
sem solução como o caso do menino Maicon de Souza, morto aos dois anos de idade na favela de Acari em
1996, e do menino Eduardo de Jesus, morto aos 10 anos de idade na porta de casa na localidade Areal no
Complexo do Alemão em 2015, ambas favelas no Rio de Janeiro. Os casos foram citados por mim na
dissertação de mestrado já referenciada (Cruz, 2020).
10 Os desaparecimentos forçados de pessoas moradoras da Baixada Fluminense (RJ) é um assunto conhecido

das pessoas que vivem naqueles municípios há décadas. Alvo de estudos pontuais, mas muito consistentes,
passaram mais recentemente a ser assunto nas redes sociais a partir da atuação dos movimentos de Mães e
Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado e de organizações que vem documentando e denunciando os
casos. Para mais ver Iniciativa Negra Direito à Memória e Justiça Racial. Disponível em:

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na mão dos militares levados ao poder por complexas redes políticas e passaram a ser
usadas também contra as classes médias 11.
Desde a promulgação da Constituição de 1988 temos experimentado o
aprofundamento e a sofisticação das formas punitivas de solução dos conflitos sociais e
o uso prático e discursivo do Estado Policial-Penal (Wacquant, 2001; 2007), que
reverberam na segunda década do século XXI, em uma população carcerária de 759 mil
pessoas e outras tantas envolvidas nas malhas do sistema. São trabalhadores e
trabalhadoras, visitantes de pessoas privadas de liberdade, profissionais que atuam nas
ruas, juízes, defensoras e defensores públicos, promotores e promotoras que,
reproduzindo determinadas ideologias, mantém vivos estereótipos racistas e
heterossexistas que retroalimentam o punitivismo em nossa sociedade contra as
mesmas pessoas “de sempre”. Por isso não parece possível esquecer o caráter colonial
dessas punições.
O discurso que coloca o “crime” em oposição direta à “segurança” está marcado
na contemporaneidade, especialmente, nas narrativas sobre o “tráfico de drogas” e as
atividades relacionadas pelo senso comum (assaltos, tortura, homicídios, que são outros
tipos penais). Além disso, há ainda a hediondez do tráfico como um fator que colabora
para que varejistas sejam punidos duramente tanto em relação à pena propriamente
dita, como em relação às violências exercidas nos territórios negros, ao contrário do que
acontece nos bairros brancos e/ou ricos, onde os varejistas são “estudantes / jovens que
vendem drogas”, ou dos “empresários” encontrados com drogas.
A capilarizada narrativa das violências urbanas promovidas por criminosos tem
sido a pedra de toque das campanhas político-eleitorais desde pelo menos o final dos
anos 1980, e incluem a atuação de grupos de extermínio e “justiceiros”. Já na década de
1990, a narrativa era a ocupação territorial das favelas por “criminosos” e a
transformação da “venda de tóxico” em “tráfico de drogas”12.
As eleições de 2018 são um bom exemplo da capilaridade dessa falsa dicotomia
(crime vs Segurança) e de seu uso eleitoral. Aquele pleito foi marcado pela eleição para a

https://dmjracial.com/2020/09/01/desaparecimentos-forcados-na-baixada-fluminense/. Acesso em: 09 Jan.


2021.
11 Um importante exemplo das relações entre militares e empresários pode ser encontrado no

documentário Cidadão Boilesen, do diretor Chaim Litewski


12 Não é possível discutir ou documentar aqui os detalhes dessa “evolução”, mas é importante destacar que

naquele momento a “questão do tráfico de drogas” avançava na América Latina e não só no Brasil. Cf.:
Castro, L. A. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC,2005.

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Presidência da República de um sujeito com discurso militar (capitão do Exército), assim


como foram eleitos nas unidades federativas policiais civis, militares e civis com
discursos militarizados.
O pleito foi marcado pelo reavivamento (em grande escala) de ideias que nunca
morreram como “minha cor é o Brasil”, “bandido bom é bandido morto”. Os discursos
marcadamente racistas, heterossexistas e cristãos foram amplamente mobilizados pela
onda neoconservadora imediatamente articulados ao discurso da garantia da segurança
que paradoxalmente se descola da ideia de que o Estado deve prover segurança para
“Todos”, para promover ideários neoliberais individualistas de que cada um deve prover
sua própria segurança, seja física, econômica ou moral.
Essas ideias que não estavam mortas, mas soterradas pelos que as personagens
citadas chamam de “politicamente correto”, vem sendo construídas há décadas com
discursos “insubordináveis” que se apresentam como algo novo ao passo que articulam
ideias como “manutenção da moral e dos bons costumes cristãos”. Biroli, Machado e
Vaggione (2020) demonstram como essa onda neoconservadora, que se expande na
América Latina, é parte de processos bem construídos ao longo dos últimos anos.
Os discursos que dominaram os reclames dos votos pelo impeachment da
presidenta Dilma Roussef em 2016 nos falam sobre isso quando colocam como
argumentos para a motivação de seus votos, os “riscos oferecidos pela esquerda aos
seus filhos, a deus e à família”. Além disso, discursos como o do Presidente Jair Messias
Bolsonaro, à época deputado federal, saudavam torturadores e a violência explícita dos
períodos ditatoriais brasileiros13.
O apoio do eleitorado foi esmagador e se articulou também a essa onda
neoconservadora, que se opõe aos avanços alcançados nas décadas anteriores. A
exemplo, relembre-se o caso do deputado mais votado no Rio de Janeiro no citado
pleito, que foi protagonista de um ato público de vilipêndio à memória da vereadora
Marielle Franco14 ao quebrar uma placa com seu nome ao lado de outros como o

13Estadão: Bolsonaro exalta Ustra na votação do impeachment de 2016. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=xiAZn7bUC8A. Acesso em: 09 Jan.2021.
14Marielle Franco foi vereadora no Rio de Janeiro. Eleita no pleito de 2016, assumiu o cargo em 2017 e foi

brutalmente assassinada em 14 de março de 2018. Nascida e criada em uma das favelas do Conjunto de
Favelas da Maré, socióloga, mestre em Administração Pública, defensora de direitos humanos, negra, mãe e
lésbica. A vida, o corpo e a memória de Marielle são a representação viva do que aqueles políticos homens
brancos heterossexistas cristãos – que implementaram o golpe contra a única presidenta de nossa história –

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governador eleito que afirmava que a polícia “tem que atirar na cabecinha”, que
também fora eleito com votação massiva.
Esses elementos são importantes ao passo que explicitam as determinações
raciais e de gênero no que diz respeito a quem são as pessoas usuárias de drogas e
quem são as traficantes, fator diretamente relacionado aos seus locais de moradia. Uns
majoritariamente brancos, os outros majoritariamente negros15, os primeiros a serem
protegidos e os segundos a serem controlados.
Nessa dicotomia principal localizamos o elemento essencial que nos interessa
como proposta: aquelas mulheres que se organizam para atuar contra o genocídio
(Nascimento, 2016; Flauzina, 2008; 2014) tornando-se sujeitas e promovendo
questionamentos à ordem imposta que encarcera, adoece e mata através do terrorismo
promovido pelo Estado (Cruz, 2020) sob a face da chamada guerra às drogas.

3. Mulheres negras, movimentos de resistência e algumas e reflexões sobre um


paradoxo útil

A guerra às drogas, que se configura como uma guerra contra pessoas negras, é
responsável pelo encarceramento seletivo em massa, especialmente de mulheres. Nas
últimas décadas a taxa de encarceramento feminino cresceu vertiginosamente,
fundamentalmente por crimes relacionados à lei de drogas. Além disso, a atuação de
forças militarizadas (públicas e privadas) em regiões empobrecidas das cidades é o que
gera milhares de mortes violentas todos os anos entre massacres, chacinas e homicídios
cerca de 60 mil pessoas são assassinadas anualmente no país 16.

apresentavam como “risco”, ou seja, o avanço no tocante à garantia de direitos das pessoas consideradas
por eles, como “os outros”.
15 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentou em 2019 uma publicação ressaltando as

principais desigualdades raciais no Brasil que determinam as condições de moradia, acesso a emprego,
renda, saneamento básico, água potável entre outras informações que colaboram para demonstrar como o
racismo se estrutura e se mantém a partir da vulnerabilização sistemática das pessoas negras e seus
descendentes. Cf.: Desigualdades sociais por raça ou cor no Brasil. Disponível
em:https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101681. Acesso em:
22 Dez.2020.
16 Essa é uma informação de conhecimento público e notório, contudo, sugere-se, para informações

estatísticas os Atlas da violência, produzidos anualmente pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas
(IPEA), e as pesquisas produzidas por organizações da sociedade civil como o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública e os núcleos especializados das universidades públicas. Há ainda importantes pesquisas realizadas
pelas Defensorias Públicas Estaduais e Ministérios Públicos Estaduais.

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Desde o início dos anos 1990 o encarceramento seletivo em massa avançou,


assim como processos que envolveram chacinas e massacres, o que promoveu a
articulação de pessoas vitimadas direta e indiretamente nesses e outros casos. Os
movimentos de Mães e Familiares (Freitas, 2000; Araújo, 2007; Farias, 2007; Farias e
Vianna, 2011; entre outros) tem construído reflexões críticas e atuações organizadas
contra os processos que constituíram (e constituem) o que elas chamam de Era das
Chacinas (Mães de Maio, 2012)17.
Esses movimentos formados majoritariamente por mulheres negras vêm se
articulando e construindo redes em todos os estados do país ao longo das últimas
décadas. Através de incidências em espaços públicos (na rua e nas instituições estatais e
privadas) elas têm apresentado suas demandas por memória, verdade, justiça e
liberdade exigindo a responsabilização pelas mortes e encarceramentos de seus filhos e
filhas. Incidindo no legislativo e no judiciário participam de audiências públicas, reuniões
fechadas com autoridades, assim como produzem textos que viram leis e atuando como
assistentes de acusação em casos de homicídios.
Essas mulheres que compõem o quadro dos sujeitos em suas cidadanias
mutiladas, tem se tornado sujeitas – para usar os termos de bell hooks18 – no processo
de luta que vêm travando por vias democráticas no tocante à exigibilidade de direitos,
muitos dos quais violados sistematicamente. As exigências se baseiam no “direito à
vida”, não no sentido neoconservador cristão, mas no sentido mais amplo de ter direitos
no plural. Elas têm enfrentado os processos genocidas que encarceram e matam seus
filhos, que as adoece, que implementa ambientes de terror em seus locais de moradia e
que impede o desenvolvimento pleno das vidas negras, faveladas e periféricas, ao
mesmo tempo em que se reconhecem em suas dores e potencialidades, reconhecendo
ainda sua capacidade de transformar a realidade (Cruz, 2020).

17Tristemente ocorreram tantas chacinas que não caberiam todas neste artigo, mas destaco algumas:
Chacina de Acari-RJ (26/07/1990), Massacre do Carandiru-SP (02/10/1992), Chacina da Candelária-RJ
(23/07/1993), Chacina de Vigário Geral-RJ (29/08/1993), Massacre de Eldorado dos Carajás-PA
(17/04/1996), Massacre do Presídio Urso Branco -RO (02/01/2002), Chacina do Borel-RJ (02/04/2003),
Chacina do Amarelinho-RJ (28/06/2003), Chacina do Caju-RJ (06/01/2004), Chacina da Baixada-RJ
(31/03/2005), Crimes de Maio-SP (12/05/2006), Chacina do Pan-RJ (27/06/2007), Massacre de Pedrinhas-
MA (01/11/2010), Chacina de Costa Barros-RJ (28/11/2015), Massacre do Compaj-AM (01/01/2017),
Chacina do Fallet-RJ (06/02/2019), Chacina de Manaus-AM (30/10/2019), Chacina do Alemão-RJ
(15/05/2020).
18 O nome é escrito em letras minúsculas de acordo com o desejo da própria autora. Para mais informações

ver: Mar de Histórias. bell hooks: uma grande mulher em letras minúsculas. Disponível em:
https://mardehistorias.wordpress.com/2009/03/07/bell-hooks-uma-grande-mulher-em-letras-minusculas/.
Acesso em: 09 Dez.2019.

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Nessa atuação coletiva capilarizada nacionalmente e que as mobiliza, começa na


dor vivida a partir das violências executadas direta ou indiretamente “pelo Estado” e se
desdobra em processos que já duram décadas, especialmente na espera da tão
demandada justiça. Exigibilidade de direitos, muitas vezes entendida como o direito a
ver punidos penalmente os responsáveis por suas perdas, marca o que chamei
inicialmente de paradoxo: enquanto lutam contra uma estrutura punitiva que encarcera
e mata as pessoas que amam, as Mulheres-Mães19 (Idem) vêm na responsabilização por
meio do sistema penal o objetivo de suas lutas.
Esse paradoxo que identifico a partir de minha atuação militante abolicionista e
apoiadora desses movimentos, somente se torna compreensível a partir da análise que
identifica as racionalidades que fundam nossa sociabilidade (no Brasil) e que coloca as
mulheres negras como sujeitas em uma sociedade punitivista, racista, heterossexista,
cristã e militarizada, compreendendo-as (a elas e a mim), portanto, como passíveis de
reproduzir determinados valores que nos atacam.
Por outro lado, em nossa constituição como sujeitas, promovemos reflexões
críticas sobre o sistema penal e as violências que vivemos, sobre o Estado em suas
características coloniais, que o forjaram criando assim outras possibilidades de
questionamento desses sistemas complexos que estão entranhados em nossa
sociabilidade e que moldam nossos locais e modos de vida. O reconhecimento do
caráter racial e de gênero dessas violências tem proporcionado ainda importantes
reflexões coletivas que reverberam para dentro das famílias e comunidades onde estas
Mulheres-Mães atuam.
A relação intrínseca entre a violência letal da polícia e as violências promovidas
pelo cárcere como a fome, o adoecimento e a tortura são reconhecidos pelas Mulheres-
Mães nas práticas, nos discursos e moralidades que as atingem durante o percurso da
luta por memória, verdade, justiça e liberdade e desde 2016 elas protagonizam a
articulação nacional da Agenda Pelo Desencarceramento, que já fundou Frentes
Estaduais em 18 unidades federativas e que vem promovendo a luta anti-cárcere com
um grande potencial abolicionista.

19Trabalha-se a categoria como uma categoria complexa que identifica as mulheres articuladas nos
movimentos, não somente as mães, mas outras mulheres que ali se junta à luta, tias, irmãs, amigas,
companheiras e às vezes, os pais.

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Esta discussão é feita a título de exemplo (sem grandes aprofundamentos), e


visa chamar atenção das pessoas abolicionistas penais para algumas das possibilidades
com as quais nos deparamos. Fatalmente o debate abolicionista contemporâneo, assim
como outros que balizam a atuação militante/ativista contra o capitalismo e seus males
são baseados em propostas e reflexões, que tem por sua vez bases em sociedades que
nada se assemelham a nossa. Ainda que façam parte de realidades produzidas a partir
da exploração de países como o Brasil, necessitam de conhecimento próprio, das nossas
particularidades e partindo do reconhecimento de que aquelas pessoas que são alvo do
sistema punitivo e suas artimanhas que estão se colocando contrárias a ele, mesmo
quando o acionam, e que podem construir possibilidades eficazes de promoção de
ideias abolicionistas e anticapitalistas.

4. Considerações finais

A proposta deste artigo, mais do que apresentar saídas para a expansão punitiva, é
colaborar para uma reflexão que nos leve a produzir e promover coletivamente
propostas de transformação radical da sociedade. A punição penal, as violências, a
militarização estão na base da nossa sociabilidade, fundaram o Estado brasileiro
promovem muito mais problemas que soluções para as questões propagadas como seu
alvo.
As violências produzidas, promovidas ou exercidas pelo Estado brasileiro se
sofisticaram ao longo dos séculos como se buscou demonstrar. Contudo, aqui interessa
o que passa a haver na sociedade brasileira entre o final dos anos 1980 e início dos anos
1990. Fatalmente, nestas análises, se notará um hiato entre as políticas higienistas dos
anos 192020, as políticas eugenistas implementadas a partir dos anos 1930 21,
brevemente citadas anteriormente, assim como as ditaduras pelas quais passamos 22.
Analisar um país distorcido nos impede de reconhecer as cidadanias mutiladas
que deixam vulnerável a maior parte da população brasileira, que é alvo de um sistema

20Para análises sobre esse período, especialmente em relação ao Rio de Janeiro Cf.: Chalhoub (2016; 2017);
Mattos (2011; 2012).
21Cf.: GÓES, W. L. Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato

Kehl. São Paulo: Liber Ars, 2018.


22Cf.: SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. M. Brasil: uma biografia. São Paulo : Cia. das Letras, 2018.

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punitivo complexo desde que se repartiram as terras durante a invasão colonial. Ou seja,
análises que tem por base apenas teorias eurocêntricas que não dialogam com a nossa
realidade nos levam a erros que nos impedem de avançar rumo a uma sociedade sem
prisões e sem polícias que promova práticas e valores anticapitalistas.
A racionalidade colonial e moderna que se utiliza de maniqueísmos de base
cristã para determinar falsas dicotomias como o bem e o mal, novo e o velho, que
promovem como afirma Bispo (2019) formas de organização baseadas no monoteísmo,
desterritorializado, exclusivista, vertical e/ou linear são a base das sociabilidades que
somente enxerga “isso ou aquilo” como solução para os conflitos sociais. Em nossos
termos, poderíamos chamar atenção para outro bordão racista e conservador: cadeia ou
caixão como únicas saídas para as pessoas que não se adequem ao contrato social.
Por outro lado, não esqueçamos: este mesmo contrato social que fundou o
Estado brasileiro excluiu da humanidade pessoas não-brancas, que de uma maneira ou
outra serão consideradas “desviantes” do caminho linear de desenvolvimento e que na
lógica moderna deve ser traçado por aqueles ou aquelas que querem sobreviver.
Processos de contra-colonização (Bispo, 2019) devem ser iniciados, continuados
e mantidos em todas as propostas que tenham por ambição transformar a sociedade.
Essa cosmovisão que tende a ser hierarquizada e que coloca o gênero masculino e
branco como universal deve ser questionada e nossas propostas devem buscar formas
de organização que foram apagadas dos nossos espaços de letramento. Há um longo
caminho ainda a ser traçado para enfrentar o genocídio antinegro e indígena que se
mantém no tempo. Como nos ensina Angela Davis (2018a): a liberdade é uma luta
constante e as mulheres negras são aquelas que, segundo Lélia Gonzalez (2018),
carregam a sua chama.

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Sobre a autora

Monique Carvalho Cruz


Assistente Social, doutoranda em Serviço Social, membro do GPSEM - Estado e
Sociedade (PPGSS/UFRJ) e do Fórum Social de Manguinhos, pesquisadora da Justiça
Global. E-mail: moniqueccruz@hotmail.com

A autora é a única responsável pela redação do artigo.

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Permanências estruturais e ausência de rupturas na política


criminal e de segurança nos governos do Partido dos
Trabalhadores (2003-2016)
Structural permanence and absence of disruptions in criminal and public security
policies in the Partido dos Trabalhadores governments (2003-2016)

Carla Benitez Martins¹


¹Universidade Federal de Jataí, Jataí, Goiás, Brasil. E-mail:
carla.benitez.martins@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1365-560X.

Artigo recebido em 16/01/2021 e aceito em 21/01/2021.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Resumo
O artigo, tomando o repertório teórico da economia política da pena, parte de leitura
histórico-estrutural da função do controle penal nas diferentes etapas de acumulação no
capitalismo brasileiro com vistas a expor a ausência de rupturas experimentadas nas
políticas criminais e de segurança pública durante os governos social-liberais do Partido
dos Trabalhadores (2003-2016).
Palavras-chave: Política criminal; Segurança pública; Social-liberalismo; Partido dos
Trabalhadores.

Abstract
The article, taking the theoretical repertoire of the political economy of punishment,
starts from a historical-structural reading of the function of penal control in the different
stages of capital accumulation in Brazilian capitalism viewing to expose the absence of
disruptions experienced in criminal and public security policies during social-liberal
governments of the Partido dos Trabalhadores (Workers' Party) (2003-2016).
Keywords: Criminal policy; Public security; Social-liberalism; Partido dos Trabalhadores
(Workers’ Party).

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Introdução1

Partindo de uma leitura histórico-estrutural da função do controle penal nas diferentes


etapas de acumulação de capitais e de reflexões já consolidadas acerca da economia
política da pena, o artigo busca enfrentar as insuficiências generalizantes das explicações
teóricas formuladas desde o ponto de vista dos países centrais da ordem capitalista na
busca de compreender as políticas criminais e de segurança pública experimentadas na
particularidade periférica e dependente do Brasil.
Assim, visamos formular análise do controle penal calcada nas especificidades
tecidas nas perenizações coloniais a forjarem uma “nação fraturada”, que transpõe o
escravismo através da conjunção do arcaico/moderno em um capitalismo patriarcal e
racista sui generis: o capitalismo dependente brasileiro.
Estas permanências serão focalizadas no período entre os anos de 2003 e 2016,
no qual a gestão do Executivo Federal foi protagonizada pelo Partido dos Trabalhadores
(PT), período em que se verificou, desde a nossa percepção teórica, a implementação de
um projeto político-econômico de matiz social-liberal.
O estudo se debruçará no destino da política criminal e de segurança nestes
anos, percebendo suas características, contradições e a tendência ao aprofundamento de
uma militarização da segurança pública acompanhada de uma inflação de um direito
penal de emergência e políticas de recrudescimento penal.
Assim, o escrito buscará destrinchar o quanto o sentido colonial brasileiro não
foi transcendido em toda a sua história, inclusive durante as gestões federais petistas,
ocorrendo aí um aprofundamento de um processo de reversão neocolonial caracterizador
da Nova República, e que traz evidentes efeitos na lida com as políticas criminais e de
segurança.
Apresentará, assim, as ideias principais desenvolvidas na tese de doutorado
“Distribuir e punir? Capitalismo dependente brasileiro, racismo estrutural e
encarceramento em massa nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)”
(BENITEZ, 2018), estruturando-se expositivamente em três principais momentos: i. Estudo
e caracterização da formação socio-histórica brasileira, sua conformação capitalista

1 Não poderíamos deixar de registrar nosso profundo agradecimento (e admiração) ao Gustavo Seferian,
quem nos auxiliou na compilação deste artigo que tanto significado apresenta pessoalmente, enquanto
síntese da trajetória teórica e política até aqui. Obrigada pelo incentivo de todos os dias.

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dependente e as especificidades e permanências do período marcado pela gestão social-


liberal petista; ii. Apresentação dos marcos analíticos de uma economia política da pena
atenta às particularidades dos países dependentes, em especial o caso brasileiro; iii.
Apreensão dos principais aspectos da onda punitiva brasileira durante os anos de gestão
do executivo federal pelo Partido dos Trabalhadores, com ênfase nas ações
protagonizadas por este e buscando delinear as razões da ausência de uma política
criminal e de segurança anti-neoliberal neste período histórico estudado.

1. Brasil, permanências de uma nação fraturada

Não nos parece ocioso, ainda que em ousado vôo panorâmico, iniciar nossa exposição
com um diagnóstico de nação acerca de nosso país, base social e histórica que serve de
redução concreta de nossa problemática.
O nosso território foi tornado “Brasil” não como um projeto de nação, mas sim
como um projeto mercantil que deveria cumprir uma promessa de imensa lucratividade.
Se, no decorrer do processo histórico, forjamo-nos enquanto povo, isso ocorre, de acordo
com palavras de Darcy Ribeiro (1978, p.19), “como uma espécie de subproduto
indesejado e surpreendente de um empreendimento colonial, cujo propósito era produzir
açúcar, ouro ou café e, sobretudo, gerar lucros exportáveis”.
Assumindo que não há possibilidade de pensar nossa história ou de buscar
compreender nossas instituições de controle social sem olhar para a escravidão no país,
tomamos como base reflexiva as elaborações de maior maturidade de Clóvis Moura
(1994). Este desenvolve uma tipificação que comporta dois momentos históricos: o do
escravismo pleno (até 1850) e o do escravismo tardio. As transformações entre estas duas
etapas decorrem de elementos estruturais, de esgotamento de modelo econômico, mas
também, imbricadamente, dos conflitos entre as classes, exigindo uma negação da ideia
difundida pela historiografia de passividade e aceitação dos escravos.
Quanto aos elementos econômicos e extraeconômicos que garantiam esta
sociabilidade escravista, Clovis Moura descreve tanto valores sociais e instrumentos de
controle social por parte dos senhores, tais como os instrumentos de tortura, a
prostituição forçada, a cristianização imposta, como também as múltiplas formas de
reação e resistência negra, concluindo que são esses dois conjuntos de comportamentos,

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valores e subjetivações que projetam “a racionalidade do sistema” (MOURA, 1994, p. 23).


Com a Independência do país denota-se uma nova etapa caracterizada como de
neocolonização, passando a se constituir mais nitidamente uma burguesia nacional,
promovendo mudanças com a modernização capitalista que se concretizam com o fim do
tráfico, a posterior abolição da escravidão e a passagem do Império para a República.
Mudanças estas que ocorrem de maneira gradual e sem rupturas, acomodando, sob
diferentes marcos, velhos e novos grupos minoritários de poder.
Para Clóvis Moura, no período de 1850 em diante, marcado pela Lei Eusébio de
Queiroz – proibindo o tráfico internacional – e pela consolidação de uma burguesia
nacional sui generis, autoritária para dentro e subalterna aos interesses ingleses,
inaugura-se a etapa do escravismo tardio, caracterizado como um “cruzamento rápido e
acentuado de relações capitalistas em cima de uma base escravista” (MOURA, 1994, p.
53).
Esta incipiente modernização, acelerada com as injeções financeiras inglesas e
o intenso processo de urbanização, aprofundam a combinação do arcaico e do moderno,
por exemplo, com o uso das tecnologias recentemente introduzidas para esticarem a
corda do que resta das relações econômico, política e sociais baseadas no escravismo. Do
escravismo tardio se origina uma modernização dependente.
Com a industrialização, houve a crença na possibilidade de mudança no status
do país no cenário internacional, mas o papel do Brasil na divisão internacional do
trabalho permaneceu o mesmo e a forma como se dará a nossa modernização somente
aprofundará a condição de dependência. O desenvolvimento industrial mundial impacta
o gerenciamento da economia do café, já apoiada em uma movimentação comercial e
financeira que demanda a criação de um mercado consumidor e da industrialização a
partir da produção de bens leves, em um primeiro momento. Processo este acompanhado
da consolidação de direitos trabalhistas e previdenciários, um misto de pressão da classe
trabalhadora organizada e de necessidade de regulação da exploração.
Especialmente a partir da década de 1950, ocorre um processo de acumulação
do capitalismo brasileiro que não conta com uma acumulação prévia (pois se baseia na
importação das tecnologias descartadas dos países de capitalismo avançado) e, sendo
assim, a acumulação capitalista brasileira se fundamenta na exploração do trabalho vivo
quase que exclusivamente (a denominada mais-valia absoluta), sendo, portanto, a
entrada massiva de capitais estrangeiros via financiamento público um importante

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diferencial, o que faz com que a dependência externa apenas se agudize, mais e mais. A
nossa indústria pesada, importante passo, não foi garantida autonomamente em relação
ao capital internacional. O nosso sentido de colonização (PRADO JÚNIOR, 2000) se
mantinha mesmo com essas mudanças tão significativas (CAMPOS, 2017, p.257).
O período imediatamente anterior ao golpe empresarial-militar significou a
possibilidade de inflexão de um sentido de uma revolução brasileira. Segundo Fábio
Campos (2017, p. 267), tínhamos dois possíveis destinos, um era o aprofundamento do
atrelamento dependente, com o complexo multinacional garantindo “rentabilidade por
meio da extração de mais-valor à custa da superexploração da força de trabalho e dos
benefícios do padrão de consumo elitizado”, o outro era a guinada nacionalista e
democrática que um grupo de intelectuais e ativistas reivindicavam, exigindo, “por meio
de um complexo nacional popular, reformas estruturais capazes de domesticar o
capitalismo para o bem-estar da maior parte da coletividade brasileira”. A década de 1960
apresenta uma cada vez mais nítida divisão social do trabalho e maior delimitação de
classes e de seus opostos interesses, com o fortalecimento da classe trabalhadora e a
forte repressão a ela dirigida durante as próximas décadas perdidas. Instaura-se uma nova
relação de forças para que seja permitida maior acumulação.
O Golpe de 1964 foi o enterrar da possibilidade de uma alternativa.
Podemos dizer, portanto, que os caminhos trilhados em nosso específico
processo de industrialização pavimentaram nossa sina dependente, sendo “sob a
aceleração do crescimento econômico, portanto, sob a ‘integração do mercado interno’
e o industrialismo, que ela iria mostrar o que significa dependência sob o capitalismo
monopolista e o imperialismo total” (FERNANDES, 2008, p. 33). Assim, para Florestan, o
nosso desenvolvimento adquire a feição de capitalismo dependente nas últimas décadas
do século XIX, quando a dominação externa atinge a etapa imperialista, com maior
concentração industrial e criação de monopólios, concomitante a um domínio cada vez
mais forte do capital financeiro. Esta classificação é usada por este autor - e por nós aqui
compartilhada – como definição de nosso desenvolvimento a partir deste momento e não
como característica per si, associando-se, como em um laço de continuidade, com a
periodização de escravismo pleno – escravismo tardio de Clóvis Moura.
A hipótese complementar para a percepção da dependência em nosso país que
aqui lançamos é a de que o momento de inflexão das escolhas políticas e econômicas que
determinaria a ruptura ou não para um caminho autônomo de desenvolvimento também

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dependeria de um acerto de contas no que tange às relações raciais. O mito da harmonia


racial se consolidou exatamente neste período, sendo mais um elemento da possibilidade
de afirmação da perpetuação do nosso sentido colonial.
Abdias Nascimento (2016, p. 200) descreve quais seriam os objetivos da
construção do mito da democracia racial:
O preconceito de cor, a discriminação racial e a ideologia racista
permaneceram disfarçados sob a máscara da chamada ‘democracia racial’,
ideologia com três principais objetivos: 1. Impedir qualquer reivindicação
baseada na origem racial daqueles que são discriminados por descenderem
do negro africano; 2. Assegurar que todo o resto do mundo jamais tome
consciência do verdadeiro genocídio que se perpetra contra o povo negro do
país; 3. Aliviar a consciência de culpa da própria sociedade brasileira que
agora, mais do que nunca, está exposta à crítica das nações africanas
independentes e soberanas, das quais o Brasil oficial pretende auferir
vantagens econômicas.

Esta descrição de Abdias nos é muito cara por demonstrar a perfeita utilidade
do mito da democracia racial para tornar impotente a vocalização do racismo vivido,
sendo este silenciamento o próprio mecanismo de sua intensificação e perpetuação. Do
mesmo modo, o mito serviu para criar uma possibilidade de falsear uma identidade
nacional a ser vendida, inclusive servindo de modelo para outros países. O mito precisava
ser sustentado justamente porque o racismo nosso continha (contém) a mesma força
destrutiva dos outros países-símbolo, porém sem a explicitação, pois, como afirma
Florestan Fernandes (2007a, p. 67), aqui “se confundem padrões de tolerância
estritamente imperativos na esfera do decoro social com igualdade racial propriamente
dita”.
Assim, podemos afirmar que o desenrolar da trajetória industrializante
demonstrou, mais do que nunca, que o desenvolvimento capitalista em países como o
Brasil ocorre de maneira diferenciada dos países capitalistas centrais e a sua classe
dominante não assumirá para si a realização das possíveis tarefas de uma democracia
burguesa, como a reforma agrária, urbana, dentre outras. Florestan Fernandes explica
que o caráter conservador é inerente à classe burguesa em si, não se tratando de uma
peculiaridade brasileira, porém, diferentemente do período de ascensão fundado no lema
da “igualdade, liberdade e fraternidade”, nos países colonizados apresenta suas vestes
apropriadas a seu momento de consolidação, não assumindo qualquer caráter
revolucionário.
Desta maneira, compreender as especificidades da nossa formação burguesa é

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fundamental para interpretarmos o dilema de nosso desenvolvimento e a impossibilidade


da própria ideia de nação. Florestan Fernandes justifica que, em “nações com
desenvolvimento capitalista induzido e controlado de fora”, a dominação burguesa se
estabelece em dois âmbitos, o interno e o externo. O segundo, mais facilmente
compreensível, trata-se da interferência “organizada”, “direta” e “contínua” da burguesia
dos países centrais e o primeiro seria a complexa metamorfose da elite brasileira, que
habilmente mantém as estruturas patriarcais e autocráticas e as potencializa sob os
moldes da nova etapa de acumulação do capital, representada por “classes dominantes
que se beneficiam da extrema concentração da riqueza, do prestígio social e do poder,
bem como do estilo político que ela comporta, no qual exterioridades ‘patrióticas’ e
‘democráticas’ ocultam o mais completo particularismo e uma autocracia sem limites”
(FERNANDES, 2008, p. 35). Portanto, estruturas coloniais econômicas, culturais e políticas
coabitam com os novos padrões capitalistas.
Houve um casamento entre uma nova oligarquia interna, dominada por esta
ascendente burguesia industrial e o capital estrangeiro; casamento concedido e
consentido pela oligarquia latifundiária tradicional. A nossa burguesia, portanto, forja-se
desde um profundo autoritarismo, calcado em absurdos privilégios e tendo o Estado
como garantidor de seus próprios interesses. E, mais do que isso, para que tal façanha
exclusivista se realize, precisa de um Estado que funcione como braço de repressão e
violência. Isso tudo significa dizer que o gradual processo de proibição do tráfico negreiro,
Independência, abolição da escravidão, republicanismo, estímulo à imigração e processo
de industrialização por substituição de importações de fato significou, nos termos de
Florestan Fernandes, “uma revolução burguesa de tipo especial”, uma verdadeira
“revolução dentro da ordem”, profundamente conservadora e dependente (FERNANDES,
2008, p. 38).
Tais transformações se conformavam com as tradicionais formas coloniais,
como “uma espécie de afluente, que desaguava em um rio velho, sinuoso e lerdo”
(FERNANDES, 2008, p. 48). E dentro desta especificidade em nossa construção peculiar de
modernidade, conjugando, de maneira combinada, relações sociais coloniais com
modelos competitivos capitalistas, a questão racial adquire característica estratégica, pois
a sua mutação – da condição de escravo para de liberto e suposto cidadão em uma
sociedade dita harmônica racialmente – é garantidora da consolidação desta nova etapa
de acumulação capitalista no país, profundamente marcada pela concentração de capitais

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e pela desigualdade social/racial em níveis abismais.


Isso significa que a violência é prática política permanente e não episódica,
tendo em vista que a manutenção de uma ordem social nesses termos – racista e
concentradora de riquezas – só é possível por meio da permanência de instrumentos de
repressão continuada. As demandas sociais são tratadas como “casos de polícia”, o
espaço para a negociação é reduzido e a criminalização dos movimentos sociais se mostra
uma constante. E é por isso que o Estado autocrático brasileiro tem o racismo como um
de seus fundamentos.
Diante deste quadro estrutural da constituição de nossa nação fraturada,
caberia nos perguntar se o processo de redemocratização e da constituinte e,
posteriormente, no decorrer dos 14 anos de gestão do executivo federal pelo Partido dos
Trabalhadores, poderiam também significar momentos-chave de alteração dessas
tendências de dependência/subdesenvolvimento. Defendemos a tese de que não, nem
no que tange às escolhas econômicas e políticas, ocorrendo, na realidade, um paulatino
efeito reverso de reprimarização da economia, nem mesmo nos aspectos referentes à
segregação social e racial.
Dando um breve passo atrás à Nova República, o país com a indústria mais
complexa da América Latina sofre uma regressão profunda das suas forças produtivas. A
nossa desindustrialização acompanhada de reprimarização, intensificada nos últimos
vinte anos, precisa ser entendida desde as opções político-econômicas do país, mas
também as situando nas condições estruturais das transformações mundiais do padrão
de acumulação do capital, nas quais “aquele sistema industrial que sustentava
determinada rota desenvolvimentista seria substituído por uma regressão produtiva”
(CAMPOS, 2017, p. 248). O rentismo e a especialização marcam o papel de países de
capitalismo dependente com desenvolvida estrutura econômica, como o Brasil, nesta
nova etapa de divisão internacional do trabalho.
O desenvolvimento tecnológico do período gera uma corrida global por mais
eficazes tecnologias e por um processo de trabalho capaz de aumentar a produtividade
do trabalho, fazendo com que as potências imperialistas e as empresas transnacionais
alterem, a partir da grande crise dos anos 1970, suas relações com os países que até então
vivenciavam o ascenso industrial, pois este desenvolvimento não mais interessa ao
grande capital.
A adoção de saídas neoliberais – com a revolução tecnológica (microeletrônica),

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acompanhada de uma reestruturação produtiva das grandes corporações e a unificação


dos mercados nacionais à lógica do capital financeiro (com o fim do Acordo de Bretton
Woods) - passou por uma aguda flexibilização das relações de trabalho e o desmonte de
políticas sociais já estruturadas anteriormente com debilidade. O choque dos juros
estadunidense é o principal fator da crise da dívida das economias latino-americanas. As
respostas são desiguais e pesadas para os países periféricos, uma vez que os governos
assumem os estoques em dólares e as filiais quitavam seus passivos em moeda
estrangeira.
Imiscuindo elementos políticos na compreensão desta transição regressiva, no
Brasil a derrota das “Diretas já” em 1984, bem como a da candidatura de Lula, em 1989,
contribuíram na consagração no país da absorção desta nova etapa do projeto capitalista,
na era do capitalismo financeiro. Essas derrotas políticas somadas às transformações
decorrentes da neoliberalização do país alteraram em muito a correlação de forças. A
estabilidade da moeda, garantida com o Plano Real de Fernando Henrique Cardoso em
meados dos anos 1990, não era necessariamente para conter a inflação enquanto um
anseio popular, mas também para garantir as condições do novo negócio que o Brasil
poderia se tornar, pela “especulação com juros da dívida pública e de estoques com o
câmbio em permanente desvalorização nos anos 1980” (CAMPOS, 2017, p. 268).
O pacote foi engolido devido a promessas de que privatizar faria com que o
investimento se ampliasse. A sua não concretização pode ser traduzida em números, com
o crescimento do PIB a menos de 2% como média e a renda per capita sendo diminuída
(SAMPAIO JÚNIOR, 2017).
Desde o início da década de 1980, quando o país ingressa nessa atualização dos
mecanismos de acumulação e expansão da ordem do capital, nós tivemos um desmonte
da crescente indústria nacional, associado ao desemprego, subemprego e precarização
do emprego, desnacionalizações e privatizações e nenhuma sequer esperança de
crescimento ou progresso, como a cartilha neoliberal vendia, muito pelo contrário. Os
elementos acima narrados constituem a base do entendimento da razão da perpetuação
de nossa condição dependente nesta etapa específica do capitalismo ter gerado um
processo de aprofundamento do que alguns autores denominarão como “reversão
neocolonial” (SAMPAIO JÚNIOR, 2017), que se inicia com os governos estritamente
neoliberais de Collor e Fernando Henrique Cardoso e se perpetua com Lula e Dilma.
No início do século XXI, mais precisamente de 2003 a 2016, nas gestões

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presidenciais do Partido dos Trabalhadores, o processo continua, com novas roupagens,


mas com características semelhantes. Foram anos de administração por uma frente
política, coordenada partidariamente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que alguns
denominam como pós-neoliberal, social-liberal, outros como neodesenvolvimentista ou
simplesmente a continuidade da política neoliberal, com suas especificidades. Aqui
buscaremos traçar alguns elementos e se posicionar quanto ao seu perfil.
Podemos afirmar que o rumo dependente e reprimarizador se perpetuou neste
período, mas com alteração de ritmo. No bojo deste processo ocorre – o que muitos
autores vão corroborar da tese de Carlos Nelson Coutinho e Francisco de Oliveira (2010)
– uma “hegemonia às avessas”, com a administração estatal também sendo pautada pela
administração daqueles que originariamente não compunham as franjas da burguesia, o
que fundamentalmente se dá pela gestão de fundos de complementação de
aposentadoria, burocratizando e despolitizando de setores tradicionalmente combativos
da sociedade brasileira. A desmobilização popular se dá em muitos sentidos, desde
transformar lutas sociais em questões administrativas; em garantir políticas de renda
mínima voltadas ao consumo e não a uma nova conscientização popular baseada em
igualdade e justiça; em cooptar importantes lideranças de movimentos sociais, seja as
incluindo na máquina burocrática ou concedendo-lhes certas pautas reivindicadas; e,
talvez o mais grave, a criação de uma nova condição social de privilégio a parte da
burocracia sindical, que inclusive passa a participar da gestão do capital financeiro, por
meio dos fundos de pensão.
Nesta sopa de possíveis conceitos para caracterizar a forma de gestão petista do
Estado, adere-se à concepção de que o neoliberalismo foi regido no Brasil, especialmente
nas gestões capitaneadas pelo Partido dos Trabalhadores, por uma ideologia social-
liberal, que ganha forma a partir das seguintes diretrizes:
No Brasil, a ideologia social-liberal gira em torno de três proposições políticas
e analíticas: 1) o crescimento econômico, por si próprio, não traria a redução
das desigualdades, havendo a necessidade de políticas públicas específicas e
direcionadas para este problema; 2) os gastos sociais não seriam baixos, ao
contrário: eles deveriam tornar-se mais eficientes com a melhora da alocação
de recursos com sua focalização nos estratos sociais miseráveis; 3) propostas
de desenvolvimento baseadas no investimento em capital humano, reformas
tributárias, previdenciárias e trabalhistas e ampliação do microcrédito
(CASTELO, 2013b, p.356).

Desse modo, promove-se uma gestão do Estado que parte da ideia de

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crescimento econômico alinhado com a garantia de medidas sociais, a partir da inclusão


no mercado e incentivo à educação da parcela da população dela historicamente alijada.
Vale destacar que esta proposta foi exitosa na primeira gestão do Governo Lula devido à
conjuntura externa favorável, especialmente o crescimento chinês e as suas demandas
daí derivadas.
Conforme Rodrigo Castelo desenvolve, a noção do social liberalismo surge dos
centros imperialistas diante da impossibilidade de empurrar algumas contradições
geradas pelo neoliberalismo, devendo este incorporar também uma agenda social.
Este ajuste complementar pode ser chamado de social-liberalismo, que muda
certos aspectos do neoliberalismo para preservar a sua essência, a saber, a
retomada dos lucros dos grandes monopólios capitalistas via o novo
imperialismo, a financeirização da economia, a reestruturação produtiva e
precarização do mundo do trabalho, o aumento das taxas de exploração de
força de trabalho, a reconfiguração das intervenções do Estado ampliado na
economia e na “questão social”, o apassivamento e cooptação da classe
trabalhadora e, em determinados casos, a decapitação das suas lideranças
mais combativas (CASTELO, 2013b, p. 122).

Desde a campanha eleitoral de 2002 – confirmada com a “Carta ao povo


brasileiro” – já estava anunciado que Lula iria respeitar os ditames neoliberais, com sua
faceta social-liberal, porém sem colocar em risco os setores hegemônicos do capital,
inclusive fazendo-lhes promessas de bons ventos. O anúncio seria de ausência de ruptura
e de uma transição pactuada.
Para Leda Paulani, o governo petista perpetua aí um discurso de “estado de
emergência permanente”, que serviria como justificativa para sua continuidade da
ortodoxia econômica neoliberal:
(...) quando Lula assume e abraça com determinação inimaginável o
receituário ortodoxo de política econômica, o discurso oficial justificou tudo
isso com a tese de que estávamos à beira do abismo, a economia derretia
como manteiga e desfazia-se como gelatina, ou seja, estávamos num típico
estado de emergência que implicaria a admissão, mesmo por um governo “de
esquerda”, mesmo por um governo do PT, de medidas o mais duras possível
(e, até um mês antes, injustificáveis), a saber: - elevação do superávit
primário, para além do exigido pelo FMI (de 3,75% para 4,25% do PIB); -
enorme aumento da então já elevadíssima taxa básica de juros (de 22% para
26,5% ao ano); - brutal corte de liquidez (pelo aumento do compulsório dos
bancos), que, da noite para o dia, tirou de circulação 10% dos meios de
pagamento) (PAULANI, 2010, p. 123).

E daí em diante muitas outras medidas seguiram este caminho, sendo algumas
delas: i. pagamento do serviço da dívida ultrapassando 8% do PIB, ao mesmo tempo em

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que se repetia que não havia recursos para outros investimentos públicos; ii.
transformação do sistema previdenciário brasileiro, abrindo espaço para as previdências
privadas; iii. aprovação da lei de falências, atendendo, especialmente, aos interesses dos
credores; iv. defesa da independência do banco central; v. ausência de uma reforma
tributária que altere a desproporcionalidade da incidência de tributos entre ricos e
pobres, inalterando a Lei de Responsabilidade Fiscal; vi. privatizações de rodovias, portos,
hidrelétricas, bem como as sofisticadas privatizações indiretas da saúde, educação,
cultura e outras áreas sociais via administração terceirizada por organizações sociais e
fundações; v. defesa e sustentação do agronegócio, com a aprovação da Lei de
Biossegurança, autorizando a comercialização dos transgênicos; entre outros pontos.
Para além da independência do Banco Central e sua presidência por Henrique
Meirelles, anteriormente vinculado ao BankBoston e que havia sido eleito deputado
federal pelo PSDB, Plinio de Arruda Sampaio Júnior. (2017, p. 69) complementa que “os
cargos estratégicos do Ministério da Fazenda responsáveis pela formulação da política
macroeconômica, a Secretaria do Tesouro e a Secretaria da Receita, foram entregues a
técnicos da confiança do FMI, totalmente desconhecidos do PT e do ministro Palocci”.
E então podemos nos perguntar qual é a função e o impacto das políticas
públicas de combate ao pauperismo, ampliadas significativamente a partir deste primeiro
mandato. Sem negar a relevância destas políticas, faz-se importante perceber que
impactam os efeitos dos problemas sociais gerados por essa escolha histórica (e não
rompida) de desenvolvimento do país, não tocando em suas causas.
O que se concretiza é uma política pautada no “melhorismo”, pois atende a
redução dos efeitos provocados pela própria perpetuação de um modelo e desde uma
combinação individual e pelo consumo, distanciando-se das reivindicações coletivas de
direitos e, principalmente, das mudanças nos processos de produção e trabalho. E não é
apenas o instrumento partidário que se burocratiza, mas também o sindical, perdendo
sua radicalidade e se rendendo ao papel negocial limitado.
Esta conjuntura econômica favorável e a implementação deste pacote
econômico apoiado na ideologia social-liberal explicam como a crise política de 2005, com
a investigação e processamento dos casos de corrupção do Mensalão, não chegaram a
atingir profundamente a popularidade de Lula. Faz-se interessante observar que, neste
momento, a estabilidade do governo foi também respaldada pelos grupos financeiros que
articularam a queda de Dilma alguns anos depois, destacando-se a Fiesp.

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Entretanto, a crise de 2008 que conseguiu ser relativamente administrável nos


primeiros anos, por essa condição exportadora e dependente do Brasil, foi sentida com
mais força nos anos subsequentes, com taxas menores de crescimento e aumento do
desemprego até então estabilizado (ainda que precarizado).
Quanto a esta etapa, neste momento o governo brasileiro - atento aos efeitos
que, inevitavelmente e com força, alcançarão em breve o Brasil – aponta para uma política
anti-cíclica que alguns chamariam de pós-neoliberal ou um fortalecimento do discurso do
novo desenvolvimentismo, no que tange à política externa e a gestão do BNDES, sendo
“um dos poucos postos-chave dirigidos por defensores do novo-desenvolvimentismo”
(CASTELO, 2013a, p. 129). O BNDES passou a ter um papel estratégico no financiamento
direto ou indireto para a concentração e centralização dos capitais nacionais,
patrocinando os grandes oligopólios nacionais, especialmente os vinculados ao ramo das
commodities.
Por fim, para melhor caracterização do período, importa investigar qual era o
papel dos rentistas nestas gestões do Partido dos Trabalhadores e se perderam ou tiveram
diminuída sua hegemonia no grupo de monopólio do poder no país. Rodrigo Castelo vai
trazendo elementos, da política tributária regressiva, do compromisso com o pagamento
dos juros da dívida, com a política monetária do Banco Central para alcançar as metas da
inflação e agradar o grande capital, pela política aprofundada de reprimarização, com as
privatizações, disfarçadas ou não. Tais elementos nos fazem concluir que o social-
liberalismo permaneceu hegemônico em toda a condução da política econômica, “ou
seja, o social-liberalismo ainda domina setores-chave do Estado, angariando ganhos
multibilionários de renda e riqueza para as frações rentistas da burguesia e demais aliados
do bloco de poder dominante” (CASTELO, 2013a, p. 128-129).
Mesmo com o aumento do salário mínimo, ainda se perpetua no país diferenças
muito significativas entre os ganhos de produtividade do trabalho e a melhoria dos
salários. Esse aumento do salário mínimo não andou desacompanhado da flexibilização
das relações de trabalho, do aumento da informalidade e de uma quantia substancial de
desempregados. Por isso, ainda que seja notável este aumento do salário mínimo e a
massificação de políticas contra o pauperismo, o impacto das políticas melhoristas dos
governos do PT não se deu na diminuição da concentração de renda, mas sim em uma
atenuação das rendas da força de trabalho mais e menos qualificadas.
No período seguinte, de diminuição do ritmo da economia chinesa e queda

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abrupta no mercado das commodities, a situação econômica brasileira encontra-se


agravada e os índices de desemprego aumentam. Dilma Rousseff iniciou seu primeiro
mandato em uma conjuntura já bem mais desfavorável. O Brasil neste turbilhão, como
em toda sua história, encontra-se em uma condição um tanto vulnerável, pois tem sua
calmaria ou seu desespero nas mãos das flutuações comerciais internacionais, por tender
cada vez mais a depender da exportação de produtos primários.
Dessa maneira, nestes 13 anos, podemos concluir que se implementou no país
um processo conservador de desenvolvimento que conjugava políticas assistenciais de
distribuição de renda com a maior centralização de capitais da história brasileira. Os
ganhos sociais são mínimos perto da “Bolsa Empesarial” (PAULANI, 2010, p. 128)
concedida ao longo desses anos, sendo inegável que isso resulta em um fortalecimento
não apenas econômico, mas também, e principalmente, político da burguesia brasileira.
A decorrência dessa aparente conciliação de interesses tão contrapostos foi a sua
insustentabilidade.

2. Particularidades da economia política da pena desde a realidade brasileira

Diante desta caracterização da formação sociohistórica brasileira e das peculiares


tendências durante os anos de social-liberalismo capitaneado pelo Partido dos
Trabalhadores, nas páginas que seguem trataremos com mais detalhes das
particularidades do controle penal em terras brasileiras, com enfoque no período
histórico de 2003 a início de 2016.
Como atenta Vera Malaguti Batista (2003, p.53), “em nossa região, o sistema
penal adquire características genocidas de contenção, diferentes das características
‘disciplinadoras’ dos países centrais”, desde sempre. Desse modo, partimos do
entendimento de que não há rupturas paradigmáticas de modelos de controle penal
desde a margem, o hibridismo entre autoritarismo, disciplina e pura neutralização
compõe o sistema penal latino-americano desde sua gênese.
Para esta breve síntese de apresentação do nosso olhar a tal particularidade,
sentimos a necessidade de caracterizar, primeiramente, o nosso ponto de partida, qual
seja uma leitura que compartilha dos pressupostos teóricos da economia política da pena,
ainda que buscando percebê-la desde o capitalismo dependente latino-americano e, mais

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precisamente, brasileiro.
Tratam-se de “estudos que descrevem o papel exercido pelos sistemas punitivos
na afirmação histórica das relações de produção capitalista” (DE GIORGI, 2006, p. 34) e o
primeiro deles, muito antes da consolidação da criminologia crítica no campo intelectual
(que se deu apenas na década de 1970), foi o de George Rusche e Otto Kirchheimer, com
sua primeira versão em 1933, que se propõe a analisar o surgimento da pena de prisão
como pena por excelência e a consolidação do capitalismo, a fim de perceber a relação
codeterminada entre ambas. Este estudo, acompanhado de Evgeni Pachukanis (1988) e
depois Michel Foucault (1987) tiveram importante função na inauguração do debate
sobre a violência estrutural e a função não declarada da pena de prisão, imbuída de
objetivos políticos, peça importante no controle social do capital.
Muitas questões necessariamente se complexificaram do final do século XIX,
início do século XX para cá e existe uma discussão se o constructo teórico da economia
política da pena estaria ultrapassado. Para nós, a grande questão para que se possa
pensar a pertinência e atualidade deste tipo de enfoque de pesquisa criminológica é
delinear o que se entende por economia, por controle social e por controle penal. Estamos
a tratar de uma relação mecanicista entre cárcere e fábrica? Entre encarceramento e
desemprego? Entre economia e pena? Trata-se da relação entre modelos de produção (e
as intrínsecas metamorfoses no mundo do trabalho e, evidentemente, nas subjetividades
das e dos trabalhadores) e controle penal?
Os estudos que rotulamos realizar uma “economia política da pena” procuraram
detectar no início da história da pena de prisão sua relação, na Europa, com a
domesticação e docilização da nova classe trabalhadora. Em um segundo momento, com
o desenvolvimento mais orgânico das correntes críticas do pensamento criminológico e
com as oscilações nas taxas de encarceramento nos Estados Unidos e em alguns países da
Europa, a depender do momento econômico, houve estudos que buscavam “medir” a
relação entre desemprego e encarceramento. Com a passagem para o período de maior
domínio tecnológico, financeirização da economia e flexibilização e precarização das
relações de trabalho, alguns afirmarão que a relação entre essas principais instituições de
controle social com a “fábrica” está de algum modo perdida ou se teria tornado obsoleta.
Para De Giorgi (2006, p. 56), a análise não deve ser pautada na relação entre
desemprego e encarceramento, mas sim entre economia e dispositivos de controle,
levando-se em conta as transformações dos processos de produção e de exploração do

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trabalho.
Tal leitura se aproxima, com especificidades, do que pretendemos definir aqui
como leitura histórico-estrutural do sistema penal no capitalismo, uma continuidade
atualizada e aperfeiçoada dos intentos de George Rusche e Otto Kirchheimer.
Parece-nos que, mais do que nunca, é preciso que se estabeleça um olhar
teórico de longa duração sobre os padrões estruturais do controle penal, pois em um
período histórico no qual o hiperencarceramento se apresenta como um fenômeno
mundial, independentemente de um aumento real dos índices de criminalidade e, além
disso, gerido por governos desde os de extrema direita aos ditos progressistas, há, de fato,
algo de tendencial e estrutural neste processo.
Desde uma leitura consolidada de que os padrões de acumulação capitalista e
as relações do tripé capital-trabalho-Estado no século XX tiveram um grande giro a partir
de 1970, criminólogos como Alessandro De Giorgi afirmariam que viveríamos nesta etapa
de acumulação capitalista da pós-grande indústria (por ele denominada como pós-
fordismo) uma sociedade do controle ou sociedade da vigilância, sendo superado o
regime disciplinar a partir do esgotamento da estrutura produtiva fordista.
Na sociedade disciplinar teria sido superada a ideia de suplícios e mortes e se
instaurado a ordem da recuperação, disciplinamento e docilização dos corpos, “passíveis
de constituir uma massa que as nascentes tecnologias da disciplina podem forjar, plasmar,
transformar em sujeitos úteis, isto é, em força de trabalho” (DE GIORGI, 2006, p. 27).
Entretanto, da transição da década de setenta em diante teria havido o desfalecimento
deste projeto disciplinar da modernidade. O processo de essencialização necessário para
a construção de inimigos opera-se por instituições que não possuem mais a disciplina
como objetivo primeiro, mas sim a neutralização, seja pelas múltiplas formas de vigilância,
seja pela guetização ou pelo encarceramento.
O novo internamento se configura mais do que qualquer outra coisa como uma
tentativa de definir um espaço de contenção, de traçar um perímetro material ou
imaterial em torno das populações que são 'excedentes', seja a nível global, seja a nível
metropolitano, em relação ao sistema de produção vigente (DE GIORGI, 2006, p. 28).
Dessa maneira, para ele, viveríamos a transição da sociedade disciplinar à sociedade de
controle, sendo que a “biopolítica do poder global” garantiria mecanismos sofisticados de
regulação da mão de obra útil e descartável em um espaço tornado imperial.
Nesse sentido, cabe-nos colocar algumas ponderações importantes acerca do

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caráter dúbio, contraditório e desigual dessas mudanças tendenciais, bem como reforçar
a continuidade, ainda que mais sofisticada, da alienação do trabalho no capital.
Assim, compreender o esfacelamento dos laços sociais, os processos de
essencialização do outro, a fragmentação das lutas, o hiperconsumismo, o surgimento de
novos sujeitos históricos, a intensidade e os mecanismos de controle de grupos sociais se
traduz como a ressignificação qualitativa do sociometabolismo do capital. As
especificidades da subsunção do trabalho ao capital nesse período exigem um
compromisso integral da e do trabalhador(a), um “vestir a camisa” da empresa, o que
causa impactos incalculáveis na sofisticação dos níveis de sua exploração e na produção
de sua subjetividade. Do mesmo modo, há a concomitância, de um lado, da alta
tecnologização da produção, permeada pela aparente lógica colaborativa e cooperativa
da e do trabalhador(a), de outro, uma acumulação flexível, que demanda terceirizações e
flexibilizações das relações laborais, bem como a intensificação dos processos de
desenvolvimento desigual entre setores de produção e entre regiões geográficas.
Portanto, há concomitâncias de processos, na velha dicotomia do arcaico e do moderno,
que sustenta ainda mais as possibilidades de expansão do capital nesta era.
É nesse contexto de transformações que De Giorgi (2006, p. 89) busca responder
“quais tecnologias de controles e formas de racionalidade do domínio se constituem a
partir do esgotamento do fordismo, do encerramento do ciclo industrial do capitalismo e
da transformação da força de trabalho pós-fordista em multidão”.
A reflexão passa pela noção de que os mecanismos de controle não são
individualizados, mas operam por grupos denominados “de risco”, não são a partir do
conflito, mas sim em uma afirmação de periculosidade e em um exercício de antecipação
do provável crime a ser cometido por determinado indivíduo, componente de um
determinado grupo social. Ou seja, um processo de essencialização, no qual eles se
tornam em si o risco, independentemente de sua conduta. Como afirma De Giorgi (2006,
p. 91), “esta condição de não-saber qualifica os dispositivos de controle e os orienta para
uma função de supervisão, de limitação do acesso, de neutralização e de contenção do
excesso” . O que passa a acontecer é que a força de trabalho excedente começa a ser
controlada menos por mecanismos assistenciais e mais por “instituições penais de gestão
da pobreza”, sob novas técnicas e objetivos, bem como por monitoramentos eletrônicos
que estabelecem novas dinâmicas nas grandes cidades. Daí que, para De Giorgi (2006, p.
104) “o controle se materializa numa arquitetura que não regula o encontro, mas o

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impede, não governa a interação, mas cria obstáculos a ela, não disciplina as presenças,
mas as torna invisíveis”.
A realidade brasileira sempre foi particular e essa mudança paradigmática não
se aplica de maneira absoluta. O que não quer dizer que não sintamos os impactos da
lógica gerencial na política criminal brasileira, mas, primeiro, não vivenciamos uma
sociedade disciplinar tal como nas realidades europeia e estadunidense e, segundo, tal
lógica é necessariamente híbrida com técnicas da máxima modernidade de cárcere e
fábrica e, sobretudo, pelo histórico e constitutivo autoritarismo escravagista e patriarcal
que funda nossa nação fraturada. Por aqui, o sistema penal sempre foi alicerce
fundamental de uma política autoritária, conservadora, de repressão crua à classe
trabalhadora e sustentação de privilégios da classe dominante, de naturalização de
instrumentos de tortura e outras crueldades.
Os “anos dourados” do capitalismo foram viáveis também pela ampliação do
consumo massivo nos países de economia dependente. Como tratamos no primeiro
tópico, enquanto os Estados de Bem-Estar Social se desenvolviam em outras realidades
do globo, por aqui se forjavam gestões desenvolvimentistas de Estado, com uma
industrialização que importava a tecnologia descartada dos países que já abriam suas
portas para a revolução tecnológica e cujo crescimento aqui dependia de empréstimos
cada vez maiores dos bancos internacionais; até que a crise fiscal e social consolidada na
década de 1970 impõe saídas e respostas ainda mais duras para os países
latinoamericanos.
Sendo assim, na América Latina o funcionamento dos órgãos repressivos e
punitivistas sempre operaram em outro patamar qualitativo. Além de cumprirem um
papel político de contenção violenta dos grupos populares desde sempre, também
podemos perceber que a divisão estanque, paradigmática entre mecanismos de controle
penal disciplinar e de gestão dos riscos (neutralização) não se apresenta aqui. O que não
significa que em tempos neoliberais não sintamos, e muito, o impacto da incorporação da
política criminal eficientista, seja nas alterações legais quanto a organizações criminosas,
típicas de um direito penal do inimigo; seja pela execução penal com incorporações
assumidamente neutralizadoras; seja com alterações no processo penal de cunho
negocial e restritivas de garantias fundamentais; seja pela própria violência policial; pelo
cada vez maior encarceramento; pelas taxas de homicídio de jovens negros das periferias;
pela explosão e desproporcional porcentagem de mulheres em situação de prisão, etc.

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Desde o Brasil, como pudemos constatar em nosso primeiro tópico de


desenvolvimento do texto, a dimensão da escravidão foi incomparável e os desafios para
controle desta população avolumada e potencialmente revoltada passaram por todo o
processo ideológico de desumanização, pela tentativa de aculturação e por mecanismos
de repressão penal legalmente vinculados às Ordenações portuguesas de cunho
inquisitorial, mas majoritariamente garantidos no espaço privado, sendo o senhor de
engenho seu principal fiscalizador.
Segundo Ana Luiza Flauzina (2006, p. 45), constitui-se, no período de 1500 a
1822, a “espinha dorsal da lógica de atuação do aparelho repressivo no país”, enquanto
um sistema naturalizador da subjugação, “de base fundamentalmente corporal”. Assim,
nestes três séculos coloniais, “o sistema punitivo se municiou com todos os instrumentos
de contenção que agregam uma legislação repressiva, recrutamento de milícias e
capitães-do-mato, além de um sofisticado aparato de tortura” (FLAUZINA, 2006, p. 49).
Um sistema penal consolidado para controlar os meios de reprodução da vida da ampla
massa de pessoas escravizadas no Brasil. No período colonial consolidam-se formas
públicas e privadas de punições, que se misturam.
Com a independência e a crise do escravismo, o sistema penal irá transcender a
esfera das penas privadas controladas pelo senhor de engenho e ganhar corpo mais
institucionalizado, ainda que sob parâmetros similares. Portanto, este período é de maior
regulação legal penal interna, com uma série de previsões criminalizantes de tipificações
sem vítimas, majoritariamente atreladas a aglutinação de pessoas negras em espaços
públicos ou no controle de levantes e insurreições.
Consolida-se, então, o monopólio institucionalizado da violência, voltado ao
controle não declarado de populações – e não indivíduos – a fim de controlar sua potência
insurgente – desenvolvida pelo fortalecimento de suas identidades coletivas – e reforçar
seu lugar marginal na relação de produção que se gestava aí. O esgarçamento da
escravidão vem acompanhado da constituição de um sistema penal agora mais ancorado
no espaço público e no controle ainda mais intenso da vida da população negra.
Deste modo, deve ficar nítida que a atuação do sistema penal neste período foi
imprescindível para que se administrasse a transformação do escravo em liberto sem se
perder o total controle social. A única maneira de bloquear o poder insurrecional da
população seria transformando ex-escravos em marginais, criminalizando-os.
Buscando construir um raciocínio não homogêneo e eurocêntrico sobre as

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características e funções reais do controle penal na realidade do capitalismo dependente,


compartilhamos da percepção de Luciano Goés (2016) de que em nossa realidade não
houve a absorção de um modelo disciplinar corporal - modelo benthamiano do panóptico
-, mas sim uma adaptação, uma tradução do modelo lombrosiano, sendo “o marco da
construção do primeiro ‘apartheid criminológico’ marginal” (GOÉS, 2016, p. 198). E o
autor justifica:
Isto porque aqui não houve o disciplinamento de mão de obra para as
fábricas. A disciplina na periferia sempre decorreu da necessidade da
manutenção da ordem racial estabelecida, alcançada por meio da extrema
violência física e mortes, instrumentos indispensáveis na dominação que
afligia o corpo negro, objeto de propriedade da raça branca e de atuação da
domesticação direta, ou indireta pelo medo que deveria inculcar aos demais.

Ainda que as linhas desta contribuição textual não nos permitam alongar no
desenvolvimento, a continuidade desta função estrutural do sistema penal brasileiro se
complexifica ao notarmos, desde o marco de 1940 e o Código Penal da República, a
consolidação da racionalidade penal iluminista atrelada a uma prática genocida
subterrânea que, combinadas, configuram aspecto fulcral do mito da democracia racial
no país. Este é importante elemento da caracterização genocida do Estado brasileiro,
agudizado com o aprimoramento autoritário nos anos de ditadura empresarial-militar e
sofisticado na Nova República, conforme detalharemos a seguir.

3. Política criminal e política se segurança nos anos de gestão federal pelo Partido dos
Trabalhadores

Apresenta-se como aparente paradoxo uma suposta gestão do Estado mais social e
redistributiva pelo Partido dos Trabalhadores e que, ao mesmo tempo, mais encarcerou
e recrudesceu penalmente em nossa história, verificando ser uma disruptiva da máxima
Estado Penal máximo-Estado Social mínimo. Desde esta indagação e entrando mais
diretamente no objeto delimitado deste escrito, como poderíamos fazer uma análise dos
13 anos do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República se falar em política
criminal e política de segurança significa tratar de esferas do executivo, do legislativo, do
judiciário, da mídia e de outros mecanismos de controle social informal, bem como tratar
destes poderes em competência federal, estadual, municipal e local?

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Para citarmos alguns exemplos: o papel fundamental do legislativo e sua saga e


sua sanha por intensificar processos de criminalização primária, com proposição e
aprovação de leis mais criminalizadoras e mais endurecedoras do regime penal; a relação
intrínseca deste primeiro elemento com os discursos políticos policialescos, alimentados
pela cultura do medo e do ódio difundida pela grande mídia; a cultura punitiva
impregnada por promotores de justiça, procuradores da república e juízes, que se
“confundem de profissão” e pensam ser seu papel o combate à criminalidade e a resposta
aos clamores populares de lei e ordem; o papel fundamental das políticas públicas
estaduais na gestão da política criminal, desde o modelamento das polícias até o
funcionamento do sistema prisional.
Nossa hipótese é que todos estes elementos são de fato fundamentais para a
composição desta onda punitiva brasileira e não há como apreender tal fenômeno com
homogeneidade, como se um pacote de maldades fosse imposto por uma força superior
em cada país. Entretanto, ao nos propormos a analisar a gestão do Estado brasileiro pela
frente política capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores, a partir da indagação
apresentada anteriormente, também queremos perceber concretamente qual foi a
ousadia ou a capacidade de mudanças estruturais da política criminal e de segurança em
âmbito federal, em todos os níveis cuja influência, intervenção e alteração de política e
de cultura punitiva lhe eram possíveis
Quais foram as intervenções do governo federal nestes 13 anos para alteração
do papel do Brasil na geopolítica de drogas? Quais foram as iniciativas para alteração da
composição e funções das polícias? Até onde foi o esforço pela desmilitarização das
polícias e da política? Como se comportou o governo federal no que tange à
criminalização das lutas e dos movimentos sociais, especialmente em momentos
delicados socialmente, como as Jornadas de Junho de 2013, a Copa das Confederações e
a Copa do Mundo? Qual foi a política federal para o crime organizado? E para a
calamidade penitenciária? No que tange à cultura punitiva, qual foi a política pública de
conscientização de outro tipo? E o combate aos oligopólios midiáticos, sustentadores da
política a ser combatida? As promessas eleitorais quanto à segurança pública foram sendo
concretizadas? As promessas foram se rebaixando ao longo das gestões? O que seria (e
existia?) um programa descarcerizante desde a concepção destas quatro gestões
petistas? O modelo implementado de redução de desigualdades sociais radicalizava
cidadania, mudava cultura política e promovia menos violência individual, institucional e

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estrutural?
Para além de buscar captar elementos de tais perguntas, nossa maior
interrogante está na caracterização do projeto de sociedade buscado nestas quatro
gestões (ou melhor, três e parte de uma quarta interrompida por um golpe jurídico-
midiático-parlamentar em abril de 2016), o quanto ele estava atrelado a mudanças mais
ou menos impactantes no campo econômico e da organização da produção e do trabalho
e, consequentemente, na mudança radical de uma cultura política e social brasileira. O
nosso objetivo é perceber o que este projeto de governo tem a ver com o funcionamento
de mecanismos de controle penal aprofundados neste período. Temos que analisar as
peças, mas também, e principalmente, as regras do jogo, a composição do tabuleiro. Esta
é a difícil, mas necessária, tarefa que aqui nos propomos e que sabemos que nos limites
de um artigo apenas apresentaremos possibilidades de análise e compreensão do
problema.
Desde meados dos anos noventa, aprofunda-se no Brasil um novo papel da
União como mediadora da política de segurança pública. Momento histórico no qual o
holofote do “inimigo social” se desloca do lutador político para o traficante. A Guerra às
Drogas torna-se o cerne do processo repressivo. Foi neste cenário que o programa e a
política de segurança pública da Nova República se estabelecem, especialmente e de
maneira mais sistematizada a partir dos anos de governo de Fernando Henrique Cardoso,
oscilando entre: i. a manutenção das estruturas policiais, o fortalecimento dos serviços
de segurança privada e uma concepção de Lei e Ordem norteadora das práticas e
discursos, ii. um maior enraizamento de uma política de direitos humanos
institucionalizada.
Ao ser eleito, em 2003, Lula herda o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP)
e o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), bem como o Programa Nacional de
Direitos Humanos (I e II – 1996 e 2002). Em seu primeiro mandato lança um novo Plano
Nacional, em alguma medida dando continuidade às diretrizes anteriores, com forte
discurso de controle de armas, combate ao crime organizado e
qualificação/fortalecimento das polícias, especialmente a Polícia Federal. Como afirma
Mello (2015, p.72), o Plano “consistia num conjunto articulado, sistêmico e intersetorial
de propostas de reforma das polícias, do sistema penitenciário e de implantação de
políticas preventivas”.
Luiz Eduardo Soares, antropólogo com vasto acúmulo teórico e experiência na

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área, esteve como Secretário Nacional de Segurança Pública entre janeiro e outubro de
2003, porém foi desligado neste momento e a interpretação consolidada é de que seria
“por pressões de grupos ligados aos órgãos de segurança pública, notadamente da Polícia
Federal, interessada em manter seu papel central na articulação das políticas na área”
(AZEVEDO; CIFALI, 2017, p. 43).
Tarso Genro, já no primeiro ano do segundo mandato, em 2007, apresentou o
Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI). A proposta era de
uma articulação de política pública para que os membros federados (estados e
municípios) pudessem “desenvolver ações de prevenção à violência adaptadas à sua
realidade local e com o aporte de recursos da União” (MADEIRA, RODRIGUES, 2015, p.
12).
Rodrigo Azevedo e Ana Cláudia Cefali (2017, p. 44) classificam dois grandes eixos
do Programa: um composto de medidas de caráter estrutural, como aquelas relacionadas
às condições do sistema penitenciário e das instituições policiais e outro permeado por
medidas territorializadas, de caráter eminentemente preventivo, com o objetivo de
proporcionar “a garantia do acesso à justiça e a recuperação dos espaços públicos, por
meio de medidas de revitalização e urbanização” (AZEVEDO, CEFALI, 2017, p. 44).
O PRONASCI, nesta medida, seguiria as diretrizes da segurança cidadã por
conceber o fenômeno da violência individual de maneira multifatorial e integrante de
uma realidade estruturante de violência. Desde esta concepção, as “soluções” só
poderiam partir de uma priorização de medidas de caráter preventivo, garantidas com
políticas públicas especializadas. O Programa se traduzia como a combinação entre
investimento nas polícias, em sua estrutura, mas especialmente em sua formação;
melhoria das condições do sistema prisional, passando centralmente pela sua ampliação;
combate ao crime organizado e ao tráfico de drogas; e garantia de efetivação de uma
série de projetos de acesso a direitos e melhorias das condições de vida nos territórios
cujas vidas se encontram em maior condição de vulnerabilidade. Este combo resultava
em um maior protagonismo do governo federal na condução das políticas, sendo uma
espécie de mediador, envolvendo as localidades na construção de suas específicas
respostas, desde o poder público municipal até membros das comunidades e
organizações sociais, mas sendo o gerenciador dos processos.
Deste breve panorama nos questionamos: Seria a reunião de tais perspectivas
díspares compatível com a intencionalidade de ruptura de paradigmas? Até que ponto

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poderia haver superação do paradigma punitivo?


A professora Vera Regina Andrade (2013, p. 340) nos demonstra que a
perpetuação da noção de garantia da segurança pela manutenção da “ordem” e contra a
dita “criminalidade” individual, “de rua”, pode não ser compatível com a noção de
segurança dos direitos, pois a primeira perspectiva necessariamente se pauta na ideia de
“bem” versus “mal”, o que muito provavelmente colocará a segunda em xeque ou, ao
menos, subordinará as políticas de acesso a direitos à de controle sociopenal de novo tipo,
como se a extensão destes direitos para a parcela da população mais vulnerável ocorresse
não pela busca por vida digna, mas devido a uma probabilidade criminógena a ser evitada.
Este parece ser o ponto-chave para a reflexão sobre a importância da iniciativa
do PRONASCI em nossa história de absoluta truculência no campo da segurança.
Entretanto, por outro lado, observa-se os perigos e incompatibilidades destas inovações
caminharem pari passu com o fortalecimento da Guerra às drogas, acompanhada de
outros processos de inflação penal, assim como a desistência de se tocar no calcanhar de
aquiles das polícias, qual seja sua democratização interna e externa. Esta seria a linha
bamba, caso a proposta do PRONASCI fosse até as últimas consequências do que se
propôs, mas seu tempo de existência foi breve demais para tal balanço, a corda afrouxou
antes da sua tentativa de travessia.
Ligia Madeira e Alexandre Rodrigues (2015, p. 10) descrevem abaixo qual era o
plano original do governo federal:
(...) negociação com o Banco Mundial e o BID, tencionando um aporte a juros
subsidiados de US 3,5 bilhões, por sete anos. O Fundo Nacional de Segurança
seria aceito pelos credores como a contrapartida do governo federal.
Também competiria ao governo federal enviar ao Congresso Nacional a
emenda constitucional da desconstitucionalização das polícias e, como
matéria infraconstitucional, a normatização do Sistema Único de Segurança
Pública. Uma vez endossados os termos do acordo com os 27 governadores,
o presidente os convocaria para a celebração solene do Pacto pela Paz,
reiterando politicamente o compromisso comum com a implantação do Plano
Nacional de Segurança Pública.

O referido plano não se efetivou.


De qualquer modo, ficamos com a precisa definição de Vera Malagutti Batista
de que segurança pública só pode conter alguma perspectiva liberalizante e garantidora
de direitos se for fruto “de um conjunto de projetos públicos e coletivos que foram
capazes de gerar serviços, ações e atividades no sentido de romper com a geografia das
desigualdades no território usado. Sem isso não há segurança, mas controle truculento

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dos pobres e resistentes na cidade” (BATISTA, 2014).


Ademais, existe uma ilogicidade que permeia todas essas supostas alternativas,
qual seja a impossibilidade de se eliminar as decorrências do tráfico enquanto a proibição
for vigente, pois demandará discursos moral, médico, jurídico e bélico que legitime sua
proibição, significando policiamento treinado para sua contenção/combate e vidas jovens
negras valendo pouco, muito pouco, quase nada.
Dito isso, qual foi o real impacto do PRONASCI na política de segurança pública
neste período? Ele foi de fato uma prioridade? Um estudo que traz algumas pistas
importantes sobre estas questões é o de Fabricio Bonecini de Almeida (2014), em sua
dissertação de mestrado, quando pode analisar as Leis orçamentárias, de 2008 a 2013,
especialmente focado no orçamento do programa, bem como nos valores efetivamente
empenhados. Segundo o autor, o PRONASCI representava apenas 10% do valor total do
orçamento da segurança pública, porém, mais do que isso, era importante que se
analisasse os orçamentos destinados a cada subfunção do mesmo. Notou-se que parcela
significativa deste orçamento, desde 2011, foi destinada à política de segurança nas
fronteiras, expressando uma alteração de prioridades. Em contrapartida, o que a análise
dos dados revelou ao pesquisador foi que as políticas sociais e de prevenção da violência
doméstica e urbana obtiveram uma parcela orçamentária significativamente inferior.
Em síntese, podemos afirmar que, desde a nossa perspectiva, tratou-se de um
Programa que, corajosamente, trouxe pistas das dificuldades políticas e institucionais que
existiria caso a tentativa de ruptura paradigmática ocorresse. Mas esta só seria possível
se o programa de segurança cidadã significasse a totalidade do programa de segurança
pública, bem como se, absolutamente, fosse acompanhado de uma mudança profunda
nas polícias – com a reestruturação, a formação prioritária em direitos humanos, a
possibilidade do ciclo completo e a desmilitarização – e mudanças legislativas fundantes
para o desencarceramento, especialmente no tocante à criminalização da venda e do uso
de drogas.
Dilma Rousseff no início de seu governo desvalorizou o PRONASCI e enfatizou
investimentos financeiros no controle das fronteiras e em políticas de segurança para a
realização dos Megaeventos desportivos no país (Copa do Mundo e Olimpíadas),
estabelecendo maiores interações entre Forças Armadas, Polícia Federal e polícias
estaduais. O PRONASCI sofre cortes orçamentários severos e é acompanhado do discurso
da presidenta Dilma de que seria reformulado. Na contramão, a verba destinada ao Fundo

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Nacional Antidrogas teria aumentado cerca de 500% entre 2011 e 2013. Neste terceiro
mandato abandonou-se o eixo de reforma das estruturas policiais e mais ainda o de
participação popular na gestão da segurança. O foco estava naquilo que se compra desde
o campo da aparência, ou seja, o que pode ser permeado por discursos sensacionalistas
das “teorias de todos os dias” e gerar votos, bem como o que pode ser vendido para fora,
em busca de uma performance internacional do país.
Essas mudanças de enfoque também foram acompanhadas de um
fortalecimento e maior protagonismo das Forças Armadas. Para Eduardo Granzotto Mello
(2015, p.81) não se trataria de um fenômeno exclusivamente calcado em interesses
eleitoreiros ou coisa semelhante, mas sim na corroboração para que se edifique no país
um novo paradigma bélico de segurança, constituído desde a “relativização dos limites
entre defesa nacional e segurança pública, inimigo interno e inimigo externo,
normalidade e crise, em plena sintonia com o conceito de emergência que marca
historicamente o sistema penal”.
Para ele, no período dos governos Lula e Dilma – analisados em seu trabalho de
2003 a 2014 – verificou-se a formação de um “subsistema penal federal”, como um
fortalecimento deste novo padrão de segurança – bélico – e, mais que tudo, como
elemento componente de um novo lugar geopolítico almejado pelo país, de dominação e
exploração regional. Para além de perceber as novas funções atribuídas às Forças
Armadas, Eduardo Granzotto Mello (2015, p. 80) também destaca a criação da Força
Nacional de Segurança Pública, bem como a implementação do Sistema Penitenciário
Federal.
Neste espaço do artigo, pudemos apresentar brevemente alguns elementos de
política criminal e de segurança mais diretamente bancados pelo governo federal, sendo
marcados pela dubiedade. Outro passo importante é perceber o contexto criminalizador
mais geral no período, capturando suas relações. Desde os principais elementos de
inchaço de processos de criminalização primária – com novas leis e novas incriminações,
bem como mudanças na execução penal e no processo penal, tendentes a uma mais
profunda caracterização neoinquisitória.
O encarceramento em massa brasileiro, por exemplo, só pode ser
compreendido pela conjunção de processos expansionistas. De um lado, uma expansão
quantitativa do controle, com novos tipos penais e penas mais longas. De outro, uma
expansão qualitativa, com sofisticação de métodos, dispositivos e tecnologias de seleção

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penal. No recheio, naquilo que de fora não se vê, uma expansão dos braços penais, com
institutos aparentemente mais brandos, porém que possibilitam tratamento penal ou sua
mais efetiva intervenção em conflitos dantes solucionados de outras maneiras. Nas
bordas, situações de criminalização do cotidiano por meio de mecanismos de controle
informal, que escapam o sistema penal propriamente dito – os elementos que envolvem
a militarização dos territórios e das vidas de seus pertencentes, por exemplo. O que
envolve todos estes elementos, como embalagem, é a Guerra às Drogas, enquanto veículo
impulsionador de uma cadeia de excepcionalidades e ampliações de interferências. Como
guerra, construída desde discursos alarmistas e rotulantes, imprimindo-se também em
leis.
Em um exercício dialético de compreensão da realidade, precisamos perceber a
ausência de uma política criminal e de segurança anti-neoliberal nos anos de gestão do
executivo federal pelo Partido dos Trabalhadores observando tendências da atuação mais
diretamente responsável desta instância, bem como observando os outros atores e os
outros elementos determinantes da onda punitiva deste período histórico e, mais ainda,
conectando a leitura sobre o perfil do controle social do capital e a ausência de rupturas
profundas sob a gestão social-liberal petista e as determinações do controle penal
propriamente neste período. Foi essa a acrobacia que se intencionou ensaiar neste artigo,
como um primeiro movimento para sua captação, a ser aperfeiçoado.

Considerações finais

Temos a impressão, por todo o refletido, que a linearidade da presença autoritária e


genocida do Estado brasileiro e suas instituições de controle penal se mostra em cada
letra, espaço e vírgula deste artigo. Não vivenciamos rupturas profundas. Porém, mais do
que isso, os elementos coletados nos evidenciam o alcance de outro patamar qualitativo
punitivo nas duas últimas décadas. A política de segurança pública se remilitariza neste
último período, as excepcionalidades processuais dantes subterrâneas agora se legalizam,
o velho dilema processual penal do inquisitivo versus acusatório ganha tons mais
preocupantes com a introdução de institutos de tradição jurídica diversa. O
encarceramento explode.
Esta tendência não nasceu em 2003, com a eleição de Lula à presidência do país,

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mas o estudo científico realizado aponta que ela ganhou marcas muito fortes neste
período estudado, se aprofundou e abriu porteiras para a barbárie permanente e
escancarada após o golpe de 2016 e ainda mais com a eleição de Jair Bolsonaro.
Ainda que combinada, em um primeiro momento, com uma política voltada a
construir outro parâmetro de segurança, não se dispôs ou não teve forças para tocar nos
elementos determinantes, sendo, paulatinamente, conforme a crise econômica avançava
e a subalternização internacional brasileira se aguçava, abandonada. Para nós, uma
política dualista que desmoronou.
Perceber tais contradições e o quanto, ao contrário da construção de bases de
uma política criminal e de segurança anti-neoliberal é importante para que tenhamos as
melhores ferramentas críticas e de transcendência para o abismo que se abriu diante de
nós a partir de 2016. Perceber os erros e limites do social-liberalismo petista no que tange
aos mecanismos de controle sociopenal é fundamental para fazermos o melhor combate
ao que vivenciamos depois dele.
O que buscamos evidenciar ao longo deste artigo é que o autoritarismo é
estruturante do sistema penal brasileiro e se operacionaliza, desde os seus primórdios, de
maneira não-oficial. O sistema penal brasileiro é constitutivamente uma instituição de
extermínio justamente porque esta qualificação só se dá pela não-dito, pela razão racista
que veicula ações de segregação e morte. Ocorre que, na atual etapa, elas passam a se
imiscuir com o discurso oficial – não através de seu conteúdo racista propriamente dito,
mas sim pelo combate incessante ao criminoso, especialmente o organizado – tornando-
se, nas palavras de Salo de Carvalho, “absolutamente preocupante quando as funções
reais (genocidas) passam a ser defendidas como base de um novo discurso oficial (funções
declaradas), pois a transferência da programação real do direito penal do terror ao nível
enunciativo potencializa o incremento da violência na nova realidade que se deseja criar”
(CARVALHO, 2006, p. 255).
Todo o desenvolvimento prévio nos aponta a complexidade que é pensar o
papel político, econômico e social das instâncias formais e informais que compõe os
mecanismos de controle penal. Ao mesmo tempo, negamos a impossibilidade de reversão
dos processos barbarizantes da realidade social. Nós nos negamos a acreditar que este
seja o único caminho possível.
Por isso, admitimos a possibilidade de construção de uma política criminal
“utópica”, que só se realiza enquanto parte do processo próprio de superação desta

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ordem social (im)posta, portanto, inserida em um projeto mais amplo de alteração radical
da realidade. Isso significa dizer que só é possível resistir à etapa de emergência
punitivista neoliberal com um projeto de ruptura do sentido dependente brasileiro.

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Sobre a autora

Carla Benitez Martins


É professora efetiva no curso de Direito da Universidade Federal de Jataí. Doutora em
Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (2018). Mestra em Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2011). Bacharela em Direito pela
Universidade Estadual Paulista (2008). Integrante do GT de Criminologia Crítica e
atualmente Secretária Geral do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais
(IPDMS). E-mail: carla.benitez.martins@gmail.com

A autora é a única responsável pela redação do artigo.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 548-579.
Carla Benitez Martins
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/57154| ISSN: 2179-8966
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(Sobre)vivências negras: desafios da cidadania diante da


violência
Black survivance: the challenges of citizenship when dealing with violence

Fernanda Lima da Silva¹


¹ Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
ffernanda.slima@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5225-1253.

Rodrigo Portela Gomes²


² Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
rodrigoportelag@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5179-6024.

Maíra de Deus Brito³


³ Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
jornalistabrito@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9190-0762.

Artigo recebido em 7/01/2021 e aceito em 20/01/2021.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 580-607.
Fernanda Lima da Silva, Rodrigo Portela Gomes e Maíra de Deus Brito
DOI:10.1590/2179-8966/2020/56991| ISSN: 2179-8966
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Resumo
O presente artigo busca, de um lado, analisar discursos e práticas racistas na agenda do
governo brasileiro – sobretudo dos últimos anos e a partir das ADPF 635 e 742 – e, de
outro, refletir sobre as respostas que os estudos sobre violência têm sido capazes de
articular. Para isso, acionamos a ideia de cidadania negra para observar as mediações que
o negro elabora sobre si para ser sujeito de direito, e, consequentemente, para
sobreviver.
Palavras-chave: Cidadania negra; Crítica afrodiaspórica; Discursos e prática de violência.

Abstract
On one hand, this work aims to analyse racist discourses and practices present in the
agenda of the Brazilian government – particularly in these last two years and taking the
ADPF 635 and 742 as parameters. On the other, it aims to reflect about the responses
articulated by the studies on Violence. To do so, we explore the idea of black citizenship
to observe the mediations Black people elaborate about themselves to become a Subject
of Rights and, as a consequence, to survive.
Keywords: Black citizenship; Afrodiasporic critique; Discourses and practices on violence.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 580-607.
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Introdução1

No dia 4 de dezembro de 2020, as primas Emily Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca


Beatriz Rodrigues Santos, de 7, foram mortas a tiros em Duque de Caxias, na Baixada
Fluminense. Moradores relataram que não havia tiroteio ou operações policiais na região,
porém, que viram o carro da polícia passando no bairro2. Alguns meses antes, no dia 8 de
maio, Antônio Correia dos Santos foi assassinado em sua casa, no Quilombo do Barroso,
no município de Camumu, Baixo Sul da Bahia. Liderança quilombola e diretor do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Camumu, seu Antônio, como era conhecido, estava sob
medida protetiva em razão das ameaças sofridas durante acirramento de conflito
agrário3.
Longe de serem pontuais ou excepcionais, as mortes de Emily, Rebeca e seu
Antônio jogam luz sobre a perversidade do racismo no Brasil. Suas mortes dão conta,
ainda, das continuidades entre campo e cidade em uma geografia do extermínio (JAMES;
AMPARO-ALVES, 2017), na qual agentes do Estado, milícias e forças constituídas pelo
agronegócio e pela mineração disputam o controle e a gestão dos territórios. Nesse fazer,
sem cerimônias, a máquina racista amplia seus alvos e insere crianças e idosos negros em
trágicas estatísticas.
Esse texto é motivado, então, pela interpelação dos estudos sobre violência
quanto às formas como têm – ou não têm – sido abordada a violência racial. Analisamos,
a partir de experiências dos territórios de favelas e quilombos, as possibilidades de
compreensão da produção da violência, no continuum campo-cidade, mas também do
protesto negro e suas demandas frente ao Estado. O que esses atores, em geral
invisibilizados até mesmo pelos estudos autointitulados críticos, nos informam sobre a
violência no Brasil e sobre os modos de lhe fazer frente?
Inicialmente tecemos algumas considerações sobre os estudos sobre violência,
no intuito de interpelação e diálogo com o campo. Em seguida, a partir das experiências
de favelas e quilombos, particularmente no contexto da pandemia de Covid-19,

1 Este artigo sistematiza reflexões empreendidas coletivamente no Maré – Núcleo de Estudos em Cultura
Jurídica e Atlântico Negro (FD/UnB), grupo de pesquisas integrado pelos autores.
2 SATRIANO, Nicolás. Emily e Rebecca: laudos indicam que tiros atingiram fígado, coração e cabeça. Disponível

em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/10/emily-e-rebecca-laudos-indicam-que-tiros-
atingiram-figado-coracao-e-cabeca.ghtml. Acesso em: 14 dez. 2020.
3 CONAQ. Nota de Pesar. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/nota-de-pesar/. Acesso em: 14 dez.

2020.

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realizamos uma análise das Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)


635 e 742. Por fim, apresentamos contribuições para a reflexão sobre as possibilidades de
uma cidadania radical no Brasil, que dê conta do enfrentamento da violência racial.

1. Interpelando os estudos sobre violência e controle social no Brasil

Não há novidade no apontamento de que os estudos sobre violência e controle social no


Brasil ou têm sistematicamente ignorado raça e racismo como elementos analíticos
importantes, ou têm reduzido, em termos teóricos e metodológicos, as possibilidades de
alcance de uma crítica racial (FREITAS, 2016; PRANDO, 2017; PIRES, 2017; CASSERES;
SANTOS, 2018; SILVA, 2018). Em razão disso, suas produções não alcançam a dimensão
do terror historicamente vivido no país.
É verdade que nos últimos anos experimentamos um avanço na abertura de
espaços de discussão sobre os pressupostos do campo4, mas ainda é questionável o
quanto essas discussões têm reverberado na produção de seus autores de maior
destaque. Em geral, parte-se de uma análise social focada na desigualdade de classe,
compreendendo a dimensão da economia como principal fator estruturante do poder.
Discussões sobre raça, gênero e sexualidade, por exemplo, tendem a aparecer de modo
“anexo” ou adjetivo. Vale destacar que, mesmo em termos de crítica à dominação
capitalista e imperialista, há pouco diálogo com as produções de teóricos negros que
discutem como o racismo é um elemento central para a produção e distribuição de poder
no capitalismo. O problema, nesse sentido, é menos a análise marxista em si do que as
articulações feitas em seu bojo (HALL, 1996).
Em termos de Brasil, o campo ainda precisa enfrentar os pressupostos
epistemológicos e teóricos mobilizados para a compreensão de nossa formação social. Em
que medida os repertórios utilizados se aproximam ou se afastam do pensamento racista?
Qual o lugar, por exemplo, do positivismo e do mito da democracia racial em suas
análises?

4Exemplo disso foram os últimos encontros do Grupo Brasileiro de Criminologia Crítica e a última edição do
Grupo de Mulheres das Ciências Criminais. Mais do que encontros pontuais, é importante mencionar também
a ampliação da discussão dentro das próprias universidades, especialmente após a implementação de cotas
raciais nos cursos de graduação e, mais recentemente, em alguns cursos de pós-graduação.

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No Brasil, a ideia de criticidade, sobretudo para a criminologia, faz oposição,


dentre outras questões, às leituras positivistas sobre crime e sujeito criminoso. De fato,
essas teorias tiveram – e ainda hoje têm – um enorme impacto na estruturação do nosso
sistema de justiça criminal e na formação de seus atores. Sua articulação, sabemos
também, está profundamente imbricada ao racismo científico (FRANKLIN, 2017; GÓES,
2016). A despeito da crítica, porém, o campo ainda investiga pouco como essas matrizes
têm sido acionadas contemporaneamente a partir do dispositivo de racialidade
(CARNEIRO, 2005).
Algumas leituras de Brasil opõem-se, a nível discursivo, à herança positivista e
também, de outro lado, ao pensamento freyreano e à articulação por ele proposta do
mito (como o qualificamos) da democracia racial. Apesar disso sabemos que, ao longo dos
anos, o mito tem passado por reformulações – observáveis inclusive em expoentes do
pensamento crítico – e tido sucesso em acompanhar as mudanças do país e perpetuar
uma matriz de pensamento mantenedora de assimetrias raciais (FREITAS, 2020: 115-120).
Outras interpretações sociais, formuladas por diversos teóricos negros,
responsáveis inclusive por interpelar o pensamento crítico brasileiro, ainda não são
sistematicamente analisadas e tomadas como referência para os diálogos do campo
(GONZALEZ, 2018; NASCIMENTO, 2018; RAMOS, 1995; CARNEIRO, 2005). A contribuição
desses teóricos é destacada aqui como possibilidade de desestabilização de valores
racistas acionados por algumas matrizes teóricas tidas como canônicas. Sua compreensão
sobre poder, saber e ser, ainda, modifica o regime de verdade implícito nas interpretações
consagradas de Brasil, de modo a não reforçar imagens e representações racistas sobre o
papel social da população negra no pacto político.
Entendemos que é relevante destacar, ainda, que os estudos sobre violência se
estruturaram historicamente em torno de análises focadas no espaço urbano, dirigindo
pouca ou nenhuma atenção à violência no campo. Isso nos induz a conceber uma ruptura
entre campo e cidade que não é necessariamente verdadeira. Considerando a formação
do Brasil, movimentos campo-cidade estão nas origens de instituições e práticas de
controle (ALENCASTRO, 2000), e têm se atualizado ao longo dos anos. Momentos de
escalada de violência urbana tendem a corresponder também ao acirramento de conflitos
no campo, com ambas as dinâmicas obedecendo a um regime marcadamente racializado,
que produz impactos desiguais sobre negros e também indígenas. A reflexão sobre as
possibilidades de um continuum campo-cidade, portanto, pode nos informar sobre as

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condições de produção de desigualdades, a estruturação do controle social e o avanço do


genocídio no país.
Vale ainda observar que, embora seja imprescindível destacar a relação entre o
processo de colonização, o sistema escravista e a violência no país, reduzir as análises ao
apontamento da gênese do sistema penal é limitado e pouco producente. Se, em termos
teóricos e metodológicos, utilizamos essa estrutura de pensamento para nos esquivar de
análises sobre as formas de produção da violência hoje, esvaziamos uma agenda de
pesquisa e de interpelação das agências de controle.
Nesses termos, é paradoxal conceber uma crítica ao sistema penal, enquanto
abolicionismo, minimalismo ou garantismo, que não se dirija à compreensão de que nosso
sistema se sustenta na produção de violência racial, sobretudo antinegra. Qualquer crítica
que não consiga enxergar nos discursos negros, sejam eles acadêmicos ou militantes,
muito mais que sectarismo ou punitivismo, provavelmente se lastreia numa noção de
horizonte político utópico que, por sua fragilidade, se constitui como um olhar vagamente
sonhador e pouco comprometido com um amanhã – que não virá porque não pode ser.
Nesse ponto é importante destacar os problemas da noção de punitivismo. Não
pretendemos, nesse texto, discutir a categoria – ou mesmo discutir se realmente se trata
de uma categoria – mas destacar como sua denúncia, via de regra, está associada a uma
leitura diminuidora do protesto negro. Quando militantes e acadêmicos pedem a
responsabilização – inclusive, mas não só, criminal – de indivíduos ou instituições pela
prática de racismo, há mais do que simplesmente o pronto acionamento da violência de
Estado. Há, isso sim, a compreensão de que o Estado tem se colocado como um dos
principais violadores de direitos e que seu silêncio diante de violações chancela mais uma
vez a subcidadania negra, passível de violências várias e diárias.
[...] Pessoas negras, inseridas em contextos de morte social são descartáveis
e são objetos de violência gratuita independentemente do que fazem. O
mundo da política, da sociedade civil, do estado-império, é um mundo cuja
lógica depende da morte negra, social e física. A pessoa negra, por definição,
morre violentamente sem causa. “Amarildo desapareceu a caminho de casa.”
Ou “Cláudia estava indo comprar pão e foi morta pela polícia.” E outros tantos
casos. Previsíveis em sua imprevisibilidade. Imprevisíveis em sua
previsibilidade. Todos paradigmáticos: emblemáticos da lógica social
antinegra, do mundo antinegro (VARGAS, 2017: 99).

Talvez seja elementar observar que este abandono simbólico tem efeitos
concretos no cotidiano dos negros. Como destacado por Ana Flauzina e Felipe Freitas
(2017: 65), mesmo a condição de vítima no Brasil obedece a um regime de poder e
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branquitude. Largados ao terror, sem que sua dor gere sensibilização nem acione
mecanismos de reparação, os negros vivem o aprofundamento do genocídio no âmbito
penal, assim como o reforço de representações sociais racistas que os aprisionam na
imagem do mal e da brutalidade. Imagens estas que, ao fim e ao cabo, serão acionadas
para a produção de mais violência e invisibilidade social.
Limitar, portanto, a compreensão do protesto negro ao reforço do sistema penal
implica ignorar a crítica mais profunda que se faz à violência produzida pelo próprio
Estado ou legitimada por ele. Conforme abordaremos no próximo tópico, o movimento
negro não tem centrado suas lutas numa demanda simplista por mais criminalização,
como se, nessa panaceia, fosse possível barrar o avanço do genocídio. Tem, na verdade,
destacado como o enfrentamento à violência passa pela mudança na distribuição do
poder e pela defesa de outras formas de vida. Interpela-se o Estado criticamente,
compreendendo que não nos é dado viver “fora” dele e que seu silêncio, tanto quanto
sua ação, impactam diretamente nossas vidas. O diálogo com o sistema penal, nesse
sentido, é muito mais complexo.

2. Enfrentamentos à violência racial desde os territórios negros

Neste texto, escolhemos discutir a partir de duas recentes Ações de Descumprimento de


Preceito Fundamental (ADPF), a ADPF das Favelas (ADPF 635) e a ADPF Quilombola (ADPF
742). Outros substratos analíticos seriam possíveis, mas entendemos, seja pela
capacidade de mobilização em um contexto particularmente desafiador, como é o atual
período de pandemia da Covid-19, seja pela articulação de demandas frente ao Estado,
que as ações permitem a apreciação dos discursos e práticas de violência racial.
Não acreditamos que o momento presente seja excepcional em termos de
produção de violência racial – não apenas dirigida aos negros, mas também aos indígenas
– mas certamente se trata de um momento de aceleração e aprofundamento do
genocídio. No que diz respeito à presidência, desde sua campanha eleitoral, Jair Bolsonaro
apresenta discursos e práticas simultâneas de negação à existência de racismo no país e
de reforço a representações degradantes sobre a população negra. Eleito, tem sido
responsável também pelo desmonte de estruturas de Estado que impactam diretamente

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a vida desta população. Ao lado disso, vemos disseminar-se no país a legitimação da


violência policial5 e do poder miliciano, associado também à figura do presidente.
Obedecendo a uma geografia do exterminío (JAMES; AMPARO-ALVES, 2017) há
muito estabelecida nas cidades brasileiras, tem-se uma escalada da violência nas favelas,
territórios negros urbanos. Fora do perímetro do espaço urbano, a escalada do terror
racial se faz presente sobre territórios indígenas e quilombolas, alvos de investidas de
empreendimentos ligados ao agronegócio e à mineração, sobretudo. Com a chegada da
Covid-19, a vulnerabilidade desses territórios e o descompromisso do governo federal
com a população foram novamente postos a nu.
Enquanto a doença exige distanciamento social e condições sanitárias
adequadas para seu enfrentamento, 6,35 milhões de famílias (mais de 30 milhões de
pessoas) no Brasil não têm uma casa para morar6, outra parcela significativa, moradora
das periferias urbanas, precisa dividir um espaço de pequenas dimensões com muitas
pessoas7. Problemas de acesso à água e atendimento médico, além da drástica redução
de renda, colocaram a população negra e indígena como a maior vítima da crise sanitária.
Sabemos que pretos e pardos são os que mais morrem em decorrência da doença 8; entre
os quilombolas, foram confirmados 4.703 casos (até 5 de dezembro) e 170 mortos9.
A postura do governo federal diante deste cenário foi um somatório de
negacionismo das dimensões da crise sanitária e da ameaça representada pelo
coronavírus com empenho em sabotar ações contingenciais nas esferas municipais e
estaduais – o que ficou expresso, por exemplo, na campanha “O Brasil não pode parar” 10.
Alinhado a isso, identificamos a ausência de um plano de emergência federal, conduzido
pela União, para reduzir as vulnerabilidades socioeconômicas que potencializam a

5 VEJA. Wilson Witzel: ‘A polícia vai mirar na cabecinha e… fogo’. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/politica/wilson-witzel-a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo/. Acesso em: 14 dez.
2020.
6 HABITAT. Tanta gente sem casa, tanta casa sem gente. Disponível em:
https://habitatbrasil.org.br/impacto/nossa-causa/. Acesso em: 16 dez. 2020.
7 RAMALHOSO, Wellington. Alicerce: Pandemia escancara crise de moradia no Brasil, mas produzir casa

adequada para todos é possível e urgente. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-


especiais/moradia-digna-e-prioridade-para-refazer-cidades-pos-covid/. Acesso em: 16 dez. 2020.
8 FREITAS, Sueli de. Pesquisa revela que pardos e negros morrem mais por COVID-19. Disponível em:

https://coronavirus.ufes.br/conteudo/pesquisa-revela-que-pardos-e-negros-morrem-mais-por-covid-19.
Acesso em: 16 dez. 2020.
9 QUILOMBOS SEM COVID. Observatório da Covid-19 nos Quilombos. Disponível em:
https://quilombosemcovid19.org/. Acesso em: 16 dez. 2020.
10 TRINDADE, Naira; GULLINO, Daniel. Governo prepara campanha com slogan 'O Brasil Não Pode Parar'

Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/governo-prepara-campanha-com-slogan-brasil-nao-pode-


parar-1-24332284. Acesso em: 09 dez. 2020.

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disseminação do vírus e gerenciar a crise econômica, sanitária e de saúde a partir das


demandas regionais. Assim tem sido inviabilizada a proteção à saúde da maioria da
população que depende do sistema gratuito e universal, a população negra.
A construção desse enredo projetou um evento biológico e imprevisível como
instrumento do projeto da morte negra. A partir do momento que o governo opta por
fragilizar as intervenções sanitárias, opor proteção social às políticas de austeridade,
enquanto simultaneamente endossa a investida contra territórios negros urbanos e
rurais, observamos o acoplamento ideal de peças que integram o regime de verdade do
atual contexto de violência: instabilidade econômico-política, redução de direitos e
discursos negacionistas. Numa sociedade de historicidade colonial e racialmente desigual,
o desdobramento dessa conjuntura é a fragilização dos pactos democráticos e
constitucionais, com a desconstituição dos fragilizados estatutos jurídicos e políticos da
população negra.
Como mencionado no início, para compreender a atualidade deste projeto
genocida e contribuir analiticamente com apontamentos para enfrentá-lo, optamos pelo
enfoque sobre duas realidades. Apesar das territorialidades muitas vezes distintas, o
mundo antinegro a partir das favelas e quilombos (VARGAS, 2017: 95) compartilha a
experiência moderna. Acionar elementos das ADPF 635 e 742 possibilitou o acesso
sistemático a práticas e discursos que investem contra a vida nos territórios negros.
Possibilitou, ainda, tematizar a violência no Brasil, sob o ponto de vista diaspórico, qual
seja, evidenciar o projeto de sociedade que estes territórios têm desenvolvido para
garantir a (sobre)vivência negra.

2.1. O agenciamento das favelas frente à violência policial a partir da ADPF 635

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635,


conhecida como ADPF das Favelas, é resultado das lutas do movimento negro, com
destaque para os movimentos de moradores de favelas do Rio de Janeiro e os
movimentos de mães, em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
(DPE-RJ) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Por meio dela, busca-se o fim das ações
policiais violentas e violadoras de direitos, bem como o estabelecimento de mecanismos
de controle, a médio e longo prazo, da atividade policial nas favelas do Rio de Janeiro.

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Diferentemente da ADPF Quilombola, a ADPF das Favelas não se origina


propriamente no contexto de pandemia. Protocolada no fim de 2019, a ação se dirige
diretamente à escalada da letalidade policial na cidade do Rio. O cenário de agudização
da violência nas favelas, do qual foram vítimas Ágatha Felix, Kauan Peixoto e Kelvin
Gomes, para citar apenas alguns nomes, pode ser pensado, a nível estadual, a partir da
gestão do governador Wilson Witzel, e, a nível federal, do governo do presidente Jair
Bolsonaro. Adversários políticos após a dissolução de sua aliança, ambos, não obstante,
se colocam na esfera pública como apoiadores da violência policial e defensores da
máxima “bandido bom é bandido morto”.
Sob esse discurso, tem sido endossado o uso de tecnologias de morte – como
helicópteros, a partir dos quais se atira, e snipers – de par com instrumentos jurídicos que
também têm se provado letais, como mandados de busca e apreensão coletivos, a partir
dos quais se produz uma legalidade que acolhe a gestão letal do território. É contra o uso
desse instrumental e, mais que isso, desta forma de gerir a atividade policial que a ação é
construída.
Os seguintes pedidos resumem a discussão por ela proposta: i) elaboração, pelo
Estado do Rio de Janeiro, de plano de redução da letalidade policial; ii) fim do uso
helicópteros como plataformas de tiro ou instrumentos de terror, com a declaração de
inconstitucionalidade de sua previsão em lei; iii) fim da expedição de mandados coletivos
e genéricos de busca e apreensão domiciliar; iv) respeito a direitos e garantias previstos
na Constituição e na lei quando do cumprimento de mandados; v) presença obrigatória
de ambulâncias e de equipes de saúde em operações policiais; vi) preservação das cenas
de crime; vii) excepcionalidade das ações policial no perímetro de escolas, creches,
hospitais e postos de saúde, com a proibição do uso de suas dependências e a observância
de protocolo especial para essas áreas; viii) fim do sigilo nos protocolos de atuação
policial; ix) produção obrigatória de relatório sobre as ações; x) instalação de GPS e
câmeras nas viaturas e nas fardas policiais; x) documentação, por meio de fotografias, das
perícias realizadas em cenas de crimes contra a vida; xi) investigação, pelo Ministério
Público, das violações cometidas pelos policiais; xii) escuta das vítimas e de seus familiares
durante os procedimentos investigatórios; xiii) investigação prioritária de casos que
envolvam crianças e adolescentes; xiv) designação, pelo Ministério Público, de promotor
específico para o acompanhamento dessas demandas; xv) declaração de
inconstitucionalidade do art. 1º do Decreto Estadual 46.775/2019, que exclui, do cálculo

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das gratificações policiais, os indicadores de redução de homicídios decorrentes de


oposição à intervenção policial; xvi) determinação de que governador, órgãos e agentes
públicos estaduais se abstenham de qualquer manifestação de incentivo à violência
policial.
Como se nota, o cerne da ação está no controle da atividade policial. Já por este
motivo, representa um marco na interpelação das agências do Estado e no processo de
tensionamento para a produção do direito. Vai-se além do diagnóstico da violência para
a propositura e análise de mecanismos para contê-la. Foge às possibilidades deste
texto uma análise completa e esmiuçada da ação e seus significados, cabe, no entanto,
chamar a atenção para alguns pontos. O primeiro deles é como são questionados os
contornos do mandato policial (FREITAS, 2020). A polícia aparentemente descontrolada é
situada numa estrutura jurídica que chancela seu funcionamento – seja criando leis que
favorecem a produção da violência, expedindo mandados de busca e apreensão coletivos
que, por esta natureza, ampliam o mandato policial, ou eximindo-se do dever de
investigação das violações produzidas.
Esta ampliação do mandato policial nos territórios das favelas, endossada pelos
Poderes do Estado, se sustenta da produção de uma subcidadania negra, ao mesmo
tempo em que a reforça. É possível, e aceitável, a policialização opressiva da vida nas
favelas porque negras e negros não são tomados como vidas dignas de proteção. A recusa
do Estado a se manifestar sobre essas violações, investigando e responsabilizando seus
agentes, criando mecanismos de escuta e reparação para as vítimas, garante,
ironicamente, a manutenção desse “estado de coisas inconstitucional”.
Uma outra face dessa recusa, como se nota pela análise da ADPF e de sua
discursividade, está na inexistência – ou na ocultação, pois em muitos casos há alguns
parâmetros – de mecanismos de controle administrativo que disponham regras sobre o
transcurso da ação policial. O silêncio, no plano simbólico, sobre racismo e violência
policial, se desdobra para um afrouxamento do controle da própria instituição, inclusive
com o achatamento de um debate no âmbito da dogmática sobre o tema.
No entanto, se atores do campo político e jurídico, colocados na condição de
técnicos e sujeitos autorizados a pensar e planejar políticas de segurança pública, se
esquivam do dever de controle e reforçam a produção de violência, os movimentos
negros têm propostas sistematizadas de interpelação ao direito e ao Estado. Nos
acúmulos do cotidiano de enfrentamento da ação policial, potencializados pelas formas

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de associação e, recentemente, pelas experiências de midiativismo 11, as comunidades


constroem saberes e práticas de controle da ação policial.
Nesse sentido, a demanda por instalação de GPS e câmeras nas viaturas e nas
fardas, a identificação dos agentes e a publicização dos protocolos pode ser
compreendida também a partir do relativo sucesso, ao menos para fins de denúncia e
publicização das violações, da prática de filmagem das ações e troca dessas mídias entre
os membros da comunidade como forma de preservação dos dados e proteção dos
indivíduos.
Importa destacar, ainda, como a ação contrapõe às abstrações generalistas do
direito, inclusive no que diz respeito à proteção de direitos humanos, a materialidade da
vida. As favelas são apresentadas como territórios vivos, nos quais encontramos crianças
em idade escolar, como Ágatha e Kauan, trabalhadores ocupados das atividades diárias
de cuidado e manutenção da vida, como Cláudia Silva Ferreira, e tantos outros. Seres
humanos com projetos de vida palpáveis, que transitam pelas ruas, por creches,
comércios, hospitais, que brincam e conversam à noite nas calçadas. O que fundamenta
a demanda por abstenção do uso de tecnologias massificadas de morte, como snipers,
mas também por proibição de discursos que incentivem a violência policial é a dignidade
de formas de vida ameaçadas, é a recusa à ocupação da zona do não-ser (FANON,1968).
Com a chegada da pandemia, o cenário de dupla tensão expôs, sem qualquer
mediação, o projeto de morte em curso nas favelas. Enquanto muitos brasileiros se
isolavam como forma de resguardo da ameaça sanitária, moradores de favelas se viam
expostos ao vírus pela falta de infraestrutura, enquanto ainda conviviam com a ameaça
policial, não raro a lhes invadir as casas. As ruas dos bairros nobres se esvaziavam,
enquanto os tiros se multiplicavam nos morros. Os movimentos sociais, particularmente
os movimentos de moradores de favela, pediam o fim das operações. No dia cinco de
junho de 2020, o ministro Edson Fachin decidiu, em sede de liminar, pela proibição das
ações policiais enquanto perdurar a pandemia. A decisão foi confirmada pelo plenário do
Supremo Tribunal Federal no dia quatro de agosto.

11Experiências de midiativismo têm se multiplicado pelas favelas do país, como se vê nas seguintes notícias:
VADAKATTU, Sharonya. Midiativismo de Favela: Contrapúblicos para Direitos Humanos no Brasil. Disponível
em: https://rioonwatch.org.br/?p=35418. Acesso em: 15 dez. 2020. CISCATI, Rafael; ALBINO, Airan. Papo reto
quer criar uma "nova narrativa sobre a favela". Disponível em:
https://www.brasildedireitos.org.br/noticias/506-papo-reto-quer-criar-uma-nova-narrativa-sobre-a-favela.
Acesso em: 15 dez. 2020. COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA. Coletivo Força Tururu fortalece vozes comunitária
e popular em Recife. Disponível em: http://www.midiacidada2012.unb.br/referencias/estudo-de-caso/140-
coletivo-forca-tururu-fortalece-vozes-comunitaria-e-popular-em-recife.html. Acesso em: 15 dez. 2020.

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Diante desta decisão, o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos – GENI, da


Universidade Federal Fluminense, produziu o importante estudo “Operações policiais e
ocorrências criminais: Por um debate público qualificado” (HIRATA, GRILLO, DIRK, 2020).
De modo sucinto, o estudo observou que a interrupção das ações policiais não apenas
não produziu o aumento da criminalidade – como atores da segurança pública insistiam
em afirmar – como também reduziu significativamente os números de mortes e lesões
corporais. Em relação ao número de feridos, entre 5 junho e 5 de julho de 2020 a redução
foi de 49,6% em relação à média de feridos do mesmo período de 2007 a 2019; em relação
ao número de mortes, a redução foi de 72,5% (HIRATA, GRILLO, DIRK, 2020: 9).
Este estudo demonstra, numericamente, aquilo que tantos militantes e
acadêmicos negros têm denunciado há anos: nosso sistema penal e nosso modelo de
segurança pública estão dirigidos para a produção do genocídio. É discutível até mesmo
o nível de mediação de controle à criminalidade. Sua finalidade é a produção da morte do
corpo e da morte de formas de vida. Como é possível, então, produzir qualquer análise
robusta que não se enderece e faça frente aos desumanos efeitos do racismo?

2.2. O enfrentamento da violência de Estado nos quilombos: entre a ADPF 742 e a luta
pelos territórios

A ação foi articulada pela Coordenação Nacional de Articulação das


Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) com o apoio de partidos políticos e
organizações da sociedade civil em defesa dos direitos humanos. A ADPF 742 objetiva
suspender as violações dos preceitos fundamentais à vida e saúde nos territórios
quilombolas, tendo em vista a inércia dos órgãos federais para implementação de um
“Plano Nacional de Combate aos Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas Comunidades
Quilombolas”12.
O projeto das mortes nos territórios quilombolas, agudizado na pandemia, não
foi interrompido: eis o retrato indicado no boletim epidemiológico, atualizado até o dia
05 de dezembro, constante do “Observatório da Covid-19 nos Quilombos”13. O

12 Petição Inicial da ADPF 742. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/racismo-tambem-se-combate-no-


stf/. Acesso em: 13 dez. 2020.
13 Iniciativa autônoma do movimento quilombola desenvolvida pela Coordenação Nacional de Articulação das

Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA).
QUILOMBOS SEM COVID. Observatório da Covid-19 nos Quilombos. Disponível em:
https://quilombosemcovid19.org/. Acesso em: 13 dez. 2020.

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monitoramento registra 170 óbitos entre quilombolas. A situação se agrava, pois até o
momento a ação não foi julgada14 e não há, por parte do governo federal, tomada de
medidas de contingenciamento da Covid-19 nos territórios quilombolas. Na ação foram
destacadas como cruciais para o estado de precariedade dos quilombos as ações e
omissões do governo federal. Por isso, no corpo da ação foram apresentados estudos
sobre as vulnerabilidades quilombolas no âmbito territorial, socioeconômico, sanitário e
de saúde, decorrentes da postura institucional de abandono.
Para compreender o cenário das mortes nos quilombos, destacamos os dados
sistematizados pelo Centro de Documentação Quilombola Ivo Fonseca (Universidade de
Brasília) no documento “Vulnerabilidade Quilombola na Covid-19 – um estudo na base de
informações do IBGE” (CDIF, 2020). O estudo mobiliza insumos de órgãos da
administração federal, que evidenciam o seguinte cenário: i) apenas 5,34% das
localidades quilombolas identificadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) têm assegurado o direito territorial nos termos do art. 68 do ADCT (CDIF, 2020: 46);
ii) o rendimento médio mensal per capita nos municípios com localidades quilombolas é
23% inferior ao dos municípios sem localidades quilombolas – a diferença é ampliada para
44% quando considerada a média mensal per capita dos municípios com 30 ou mais
localidades quilombolas, conforme do IBGE de 2010 (CDIF, 2020: 51); iii) no quesito
saneamento básico, os municípios com localidades quilombolas têm 23,6% dos domicílios
em condições inadequadas e 44,4% semiadequadas – a situação é aprofundada nos
municípios com 30 ou mais localidades quilombolas, contando com 32,8% dos domicílios
inadequados e 56,3% semiadequadas, a partir de dados do demográficos de 2010 do IBGE
(CDIF, 2020: 57); iv) dados do DataSUS a respeito da estrutura de saúde (verificada em
agosto deste ano) indicam que, entre os 1.672 municípios com localidades quilombolas,
46 não possuem médicos do SUS, 1.465 não possuem leitos de UTI do SUS e 948 não
dispõem de respiradores do SUS (CDIF, 2020: 58-63).
O contexto acima, apresentado na ADPF 742, por meio de outras pesquisas,
notas técnicas e informações oficiais, denota que as vulnerabilidades quilombolas
decorrem de práticas institucionais protagonizadas pelo Estado brasileiro, violador de
direitos e garantias fundamentais dos quilombos. O ponto central da inviabilização da vida

14 Por decisão do relator Min. Marco Aurélio, proferida em 17 de setembro, a ADPF foi submetida para decisão

do colegiado, mas sem qualquer deliberação sobre as medidas cautelares incluídas dentre os pedidos da ação.
Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6001379. Acesso em: 13 dez. 2020.

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quilombola é a política pública territorial, pois como medida transversal garante o acesso
aos programas públicos de saúde, educação e crédito fundiário, assim como protege o
patrimônio cultural, ambiental e memorial dos territórios.
Partindo da centralidade do território para vida negra, integra o estado de
genocídio sobre os quilombos o controle social a partir da gestão territorial. O
crescimento da violência no campo é revelador também dessa interdição sobre os direitos
quilombolas, especialmente as garantias constitucionais para concretizar os modos de
fazer, criar e viver do quilombo. Assim, além das práticas omissivas quanto à
implementação de políticas públicas, temos na agenda institucional do governo a
promoção de conflitos socioambientais15.
Não há informações precisas sobre a violência nos quilombos nos anos de 2019
e 2020, mas duas produções recentes indicam o aumento do número de conflitos no
campo e assassinatos de quilombolas. Assim, antes mesmo de uma agenda contra os
quilombos institucionalizada pelo governo Bolsonaro, já temos um contexto de
aprofundamento da violência, controle social e morte nestes territórios. Os dados sobre
violência no campo no ano de 2019, apresentado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT),
através do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, indicam um pico de 1.254
ocorrências de conflitos, o maior índice em toda a série registrada pelo (2020: 101) desde
1985. Surpreende que o aumento de 12% das ocorrências do ano de 2019 na comparação
com o ano de 2018, foi observado no período de menor índice de retomadas, ocupações
e acampamentos que a série histórica já registrou (CDDTB, 2020: 101).
Em muitas ocorrências, o território quilombola foi cerne do conflito. Nos
auxiliando nesta análise, acionamos um segundo estudo, o dossiê “Racismo e Violência
contra Quilombos no Brasil”16 que apresenta as ocorrências de assassinatos de
quilombolas entre 2008 e 2017 (CONAQ, Terra de Direitos, 2018: 29). Enquanto no ano

15 No ano de 2019 o Presidente Jair Bolsonaro institucionalizou o imperativo de violência no campo: “não
pode continuar assim. 61% do Brasil você não pode fazer nada. Tem locais aqui que você, para produzir uma
coisa, você não vai produzir porque você não pode em uma linha reta para exportar, tem que fazer uma curva
enorme para desviar de um quilombola, uma terra indígena, uma área de preservação ambiental. Estão
acabando com o Brasil. Se eu fosse fazendeiro, eu não vou falar o que eu faria, não, mas eu deixaria de ter
dor de cabeça”. GULLINO, Daniel. 'Estão acabando com o Brasil', diz Bolsonaro sobre restrições da preservação
ambientalDisponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/estao-acabando-com-brasil-diz-bolsonaro-
sobre-restricoes-da-preservacao-ambiental-23881657. Acesso em: 14 dez. 2020.
16 Estudo realizado pela CONAQ e Terra de Direitos (2018) com o apoio de organizações da sociedade civil,

contribuindo com o levantamento de dados sobre a violência nos territórios quilombolas foram caracterizadas
as principais formas de violência; a intersecção entre violência raça e gênero no contexto dos territórios
quilombolas; as situações de agravamento da violência contra quilombolas (CONAQ, Terra de Direitos, 2018:
35).

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de 2016 foram registrados pela CONAQ 4 assassinatos, a maior taxa do período mapeado,
no ano seguinte o Brasil registrou o assassinato de 18 quilombolas, um aumento de 350%
que equivale quase à metade de todo o período sistematizado.
Constitui-se, assim, um cenário favorável para violência gratuita (VARGAS, 2017:
91), violação de direitos fundamentais e desterritorialização. Todos os mecanismos da
morte nos quilombos que remontam ao arcabouço colonial se encontram hoje presentes
no cotidiano quilombola. Esse projeto de mortes já em curso é atualizado na pandemia
com a omissão do governo federal na promoção de medidas emergenciais, especialmente
diante das condições de vulnerabilidade apresentadas, incluindo a ausência de
monitoramento epidemiológico para formular ações estruturais de saúde e sanitária nos
territórios.
Aqui temos um aspecto importante na compreensão da estrutura de violência
nos territórios negros, a inviabilização material da vida negra. Essa condição é observada
nos territórios quilombolas e decorre da fragilização de seu estatuto jurídico-político, o
que é substancial na forma colonial-racista de desumanização, pois se volta à
desidentificação dos quilombolas como sujeitos de direitos (GOMES, 2020).
O conteúdo dessa operação encontra respaldo no contínuo restabelecimento
de imagens e representações de controle sobre os quilombos (COLLINS, 2019). Vale
destacar o seu aprisionamento como experiência restrita ao passado escravista, uma
redução de sua complexidade que encontra repercussão na afirmação e negação de seus
direitos no presente. O problema de reduzir o quilombo a “mera” oposição da escravidão,
revela um equívoco analítico apresentado pela historiadora Beatriz Nascimento (2018:
72) quando interpela o signo pejorativo produzido sobre o mecanismo da fuga.
A intelectual pontua que a valoração negativa da fuga tomava como
pressuposto um sentido de liberdade desenvolvido a partir da experiência de matriz
branca, que usufruía dessa condição, intrínseca ao sujeito moderno, em sua plenitude,
tendo em vista a integridade do seu patrimônio jurídico-político. A colonização-escravidão
fratura essa condição perante os sujeitos negros, pois a subjugação opera tanto legal –
quando se institui a objetificação – quanto politicamente, por naturalizar a
hierarquização. Desse modo, para viabilizar as experiências de liberdade e igualdade, a
fuga foi fundamental, pois significava o desmantelamento desta estrutura jurídico-política
e viabilizava a reconstrução autônoma da vida negra (NASCIMENTO, 2018; GOMES, 2020).
Portanto, o signo pejorativo da designação constante aos quilombos como “negro fujão”,

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também significa a inferiorização das estratégias de sobrevivência da população negra. A


invisibilidade das favelas como quilombos urbanos, em sua dimensão viva, também deve
nos alertar sobre as interfaces entre racismo e cidadania entre o campo e as cidades.
A desqualificação dos mecanismos de luta por direitos, decorre exatamente das
premissas sob as quais se constituem os paradigmas modernos de fazer, criar e viver,
marcadamente não negros. Nesse sentido, o pacto ontológico moderno conduz à negação
da negritude, incluída assim, a agência da população negra na conformação dos arranjos
sociais, políticos, culturais e jurídicos. Desse modo, recuperar o sentido de quilombo como
“reorganização e contestação da ordem estabelecida” (NASCIMENTO, 2018: 71) no
presente, desloca a compreensão das articulações negras para fora do espectro reativo e
espontaneísta consolidado no enredo da escravidão como única narrativa da população
negra.
No contexto pandêmico, as estratégias autônomas das comunidades e
movimento social quilombola têm sido fundamentais para o projeto das vidas negras, o
que reforça o equívoco analítico apontado por Beatriz Nascimento (2018), quando
reconhece no quilombo uma tecnologia social de reconstrução da vida negra em diáspora.
Há, portanto, uma proposta política estabelecida por uma matriz civilizacional distinta da
antinegritude. Fundado nas experiências de liberdade, igualdade e acesso à terra da
população negra. Os quilombos, como agência negra da diáspora africana, apontaram
como horizonte a reordenação estrutural do mundo moderno em que a negritude é
sinônimo de vida.
Orientado por esse sentido histórico de (sobre)vivência negra, os quilombos na
atualidade têm enfrentado os mecanismos de morte em seus territórios em diversas
frentes, incluindo litigâncias perante poderes do Estado brasileiro e órgãos de proteção
internacional dos direitos humanos. Nesse sentido, além da ADPF 742 destacamos o
acionamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização
dos Estados Americanos (OEA) pela CONAQ e Terra de Direitos para defesa da vida de 258
quilombos localizados no estado do Amapá, tendo em vista a crise humanitária,
provocada pelo desabastecimento de energia e água potável na região17.

17TERRA DE DIREITOS. Organizações sociais acionam Comissão Interamericana para garantir direitos básicos
à quilombolas do Amapá. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/organizacoes-
sociais-acionam-comissao-interamericana-para-garantir-direitos-basicos-a-quilombolas-do-amapa/23509.
Acesso em: 14 dez. 2020.

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Outras medidas foram cruciais para visibilizar, denunciar e desmantelar o estado


genocida nos quilombos: ressaltamos as articulações com o movimento indígena no
Congresso Nacional para que o Plano Emergencial para enfrentamento à Covid-19
incluísse os territórios quilombolas. A despeito dessa articulação, por força dos vetos
presidenciais, os quilombolas e outros povos tradicionais foram excluídos do plano
emergencial sancionado na Lei Ordinária 14.021, de 7 de julho de 2020 18.
As estratégias que têm sido mobilizadas na pandemia da Covid-19, como o
monitoramento epidemiológico autônomo dos quilombolas, as denúncias de violação dos
direitos fundamentais pelo Estado brasileiro e a articulação da sociedade civil para
enfrentar a política de morte, constituem também uma memória do presente. Uma das
disputas fundamentais que o quilombo tem empregado é quanto à narrativa elaborada
sobre a experiência negra. Os recursos empregados para apagar as cenas de violência nos
quilombos, por exemplo, para não contar as próprias mortes durante ou ocultar as
disputas por políticas públicas na pandemia, indicam que a produção dos signos e a
descrição da realidade se sujeitam aos desígnios de poder, saber e ser que a antinegritude
fundou.

3. Cidadania radical: crítica à violência racial a partir da diáspora africana

Com o propósito de formular respostas sobre a lógica de violência antinegra descrita no


tópico anterior, acionamos a ideia de cidadania informada por uma matriz político-jurídica
da diáspora africana (GOMES, 2020). A cidadania negra surge aqui como ideia que permite
observar as mediações que o negro elabora sobre si para ser sujeito de direito, e,
consequentemente, para sobreviver. A categoria também contribui para enfrentar a
noção idílica de cidadania ainda informada por uma lógica antinegra, a qual
constantemente é atualizada para desconstituir e desidentificar o negro como sujeito.

18 BRASIL. Lei n. 14.021, de 7 de julho de 2020. Dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do
contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas; cria o Plano Emergencial para
Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas; estipula medidas de apoio às comunidades quilombolas,
aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19;
e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a fim de assegurar aporte de recursos adicionais nas
situações emergenciais e de calamidade pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 de agosto de 2020.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L14021.htm. Acesso em: 14
dez. 2020.

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Trata-se, portanto, de uma compreensão fora dos contornos dados pela


experiência normativa branca. Falamos de uma noção de cidadania que considera a
historicização da população negra e isso implica no reconhecimento da contínua
fragmentação do status social e jurídico da maioria populacional no Brasil. Apesar dos
últimos processos constituintes, especialmente o de 1988, quando “a Constituição
Cidadã” operou na lógica de universalização dos direitos, a presença negra – como
evidenciado anteriormente – é marcada pelo signo da morte física e política inaugurada
pela colonização.
Exemplo disto foi o ocorrido no dia 06 de agosto de 2017, na comunidade
quilombola de Iúna, município de Lençois, região da Chapada da Diamantina. A
comunidade foi palco da chacina que resultou na morte de seis quilombolas: Adeilton
Brito de Souza, Gildásio Bispo das Neves, Amauri Pereira Silva, Valdir Pereira Silva, Marcos
Pereira Silva e Cosme Rosário da Conceição19. A área da comunidade, já reconhecida
como quilombo pela Fundação Cultural Palmares (FCP), era objeto do processo de
regularização fundiária perante o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA).
A constância negra nas cenas de violência, reveladora do contínuo genocídio
antinegro, exige um esforço analítico que extrapole a órbita política dominada pela
branquitude. É nesse sentido a interpelação apresentada por Ana Flauzina (2019: 67),
quando qualifica a democracia brasileira como genocida. A contradição intrínseca
proposta pela autora não decorre do agrupamento de conceitos que a priori seriam
desconformes, mas do modo como descrevemos democracia e genocídio. A
incompatibilidade está na suposta integridade dos contornos da democracia, mesmo
diante da realidade de violência vivida pelos negros que a informa e condiciona.
Outra evidência desse contínuo de violência antinegra, foi o crescimento de
homicídios durante a pandemia. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública houve
um aumento de 7% na taxa de mortes violentas intencionais quando comparado ao
primeiro semestre de 2019 (FBSP, 2020: 12). Observe-se, aqui, que a decisão de
suspensão das ações policiais, no bojo da ADPF 635, se refere aos limites do Rio de Janeiro.
No restante do país, fica evidenciada a escalada da violência. Mas é importante destacar

19 CONAQ. Líder quilombola em Simões Filho é o 9º assassinado este ano na Bahia. Disponível em:
http://conaq.org.br/noticias/lider-quilombola-em-simoes-filho-e-o-9o-assassinado-este-ano-na-bahia/.
Acesso em: 16 dez. 2020.

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que, mesmo no Rio, nos meses que se sucederam à decisão liminar, outras mortes
demonstraram que a decisão não havia sido cumprida plenamente. As primas Emily
Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7, foram mortas a tiros
em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense20. Moradores relataram que não havia
tiroteio ou operações policiais na região, porém, que viram o carro da polícia passando
no bairro.
Um mês antes, desta vez no bairro Curuzu, em Salvador, no dia 08 de novembro,
cena semelhante se observou. Railan Santos da Silva, de 7 anos, morreu após ser baleado
quando assistia uma partida de futebol amador. As testemunhas afirmaram que “ninguém
sabia o que estava acontecendo. A polícia entrou atirando. Não foi para o alto, foi para
matar”21. A dimensão estrutural é recordada pelo Sr. Roberto, avô de Railan: "Ele era um
menino inocente, autista. Sempre a polícia chega lá e faz isso, já chega atirando. Nós
queremos justiça. Ele não é o primeiro, tem vários. Quero ver qual a providência vai ser
tomada"22
Analisando o cenário de extermínio, João Vargas (2016) estabelece como
proposta o deslocamento da base ontológica sobre a qual analisamos as relações sociais
brasileiras. A partir da ideia de presença ausente – referência da negação da negritude –
(VARGAS, 2017: 95), mobiliza a filosofia fanoniana para tomar a antinegritude como um
anteparo das estruturas modernas do saber-poder. Por esse pressuposto, temos que a
reconstrução da cidadania fora do espectro em que foi estabelecida inicia com
reconhecimento de que o seu sentido normativo é a negação da população negra.
O autor coloca lado a lado as dessemelhanças entre os mundos não-negro e
negro. Se no mundo não-negro, as experiências passam pelas ideias do “Trabalhador/a”,
do “Estado-Império” e da “Cidadania”, no mundo negro seus correspondentes são
“Escravo/a”, “Não lugar” e “Morte social”. Dessa maneira, “[...] ser negro significa ser,
desde sempre, excluído das esferas de cidadania, do consumo, de pertencimento político.

20 SATRIANO, Nicolás. Emily e Rebecca: laudos indicam que tiros atingiram fígado, coração e cabeça.
Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/10/emily-e-rebecca-laudos-indicam-
que-tiros-atingiram-figado-coracao-e-cabeca.ghtml. Acesso em: 16 dez. 2020.
21 CORREIO. 'Como tiram a vida de uma criança especial?', diz mãe de garoto autista baleado no Curuzu.

Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/como-tiram-a-vida-de-uma-crianca-


especial-diz-mae-de-garoto-autista-baleado-no-curuzu/. Acesso em: 16 dez. 2020.
22CORREIO. 'Como tiram a vida de uma criança especial?', diz mãe de garoto autista baleado no Curuzu.

Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/como-tiram-a-vida-de-uma-crianca-


especial-diz-mae-de-garoto-autista-baleado-no-curuzu/. Acesso em: 16 dez. 2020.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 580-607.
Fernanda Lima da Silva, Rodrigo Portela Gomes e Maíra de Deus Brito
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De humanidade. Ser negro significa não ser; significa ser, desde sempre, socialmente
morto” (VARGAS, 2017: 92).
Diante de um quadro tão cruel, o arcabouço teórico e político fanoniano é
substancial para sintetizar a equação na qual negritude é igual à morte:
Em Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon estabelece que a pessoa negra é
negra sempre e somente em relação à pessoa branca. Ou seja, a ontologia
negra depende e deriva da ontologia branca. A ontologia branca, então, é
base de toda e qualquer ontologia. Ser negro é ser não branco. É importante
lembrar que, de acordo com Fanon, a recíproca nunca é verdadeira. O ser da
pessoa branca, diz ele, não depende da pessoa negra porque a pessoa negra,
por ser uma derivação, um subproduto, “não apresenta resistência
ontológica” aos olhos da pessoa branca (VARGAS, 2017: 94-95).

Esta negação da população negra como agente político, fundamental para a


manutenção de relações racialmente desiguais no Brasil, evidencia o enraizamento da
antinegritude nas relações sociais brasileiras, que sustenta e atualiza os mecanismos de
produção da morte, como se vislumbra na evolução da pandemia nas favelas e quilombos.
Deste modo, desenvolver análises sobre a violência racial neste parâmetro idílico de
cidadania nos parece limitador. Assim fazendo, restaria apenas a denúncia da incoerência
ontológica assentada nas nossas relações políticas e o reconhecimento de que a cidadania
moderna é não-negra.
Se a referência de cidadania é não ser negro, opera a fragmentação do status
político-jurídico e da naturalização das violações físicas e simbólicas perpetradas aos
indivíduos e a comunidade negra. Mesmo que o conteúdo moral, jurídico e econômico da
cidadania, a priori, esteja alicerçado na afirmação universal do sujeito político, o signo
marcante da presença negra na democracia brasileira ainda é a violência, caracterizando
a antítese da cidadania. Por isso, a violência precisa ser dimensionada como aspecto
estrutural da cidadania e não apenas como oposição.
Daí a importância em dialogar com a produção do pensamento negro nos
debates da crítica à violência e ao sistema penal. Sendo ponto de partida é o “outro”, o
sujeito negro e negra, o ponto de chegada será distinto e sem os vícios alçados pela
branquitude. Enquanto a lógica imposta exclui discursos não-acadêmicos e não-
hegemônicos, a diáspora ensina a ouvir os ensinamentos que estão “nas ruas”. Nesse
sentido, conforme buscamos evidenciar ao longo deste texto, nos interessa o que é
produzido pelos movimentos sociais.

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Considerando as tecnologias sociais de sobrevivência levadas a efeito pela


população negra, incluídas aquelas elaboradas no tempo presente, é necessário que os
estudos críticos sobre violência acionem parâmetros que posicionem no centro de suas
narrativas as agências negras, as quais permitam a nossa manutenção física e política.
Assim, cidadania no interior da diáspora não designa um ideal, mas sim uma prática
contínua de reconstrução da negritude, pois, na compreensão de Achille Mbeme (2018:
79), essa se conformou, desde a desterritorialização, como uma “humanidade sustada”.
Esse ponto de vista diaspórico sobre a cidadania está centrado na autonomia
negra, nos agenciamentos que viabilizaram a sua conservação como comunidade. A
tecnologia social da sobrevivência que notamos em territórios como as favelas e os
quilombos implica em uma cidadania radical, pois toma o status da cidadania na matriz
histórico-jurídica da negritude. Jaime Amparo Alves e Joy James (2017), por exemplo,
chamam atenção para as estratégias das mães negras para dar maior visibilidade ao terror
racial imposto à população negra:
“Elas têm ocupado espaços públicos com fotos dos filhos/as mortos e
denunciando o ‘terrorismo de estado’. A maternidade negra aparece em seus
discursos e práticas não como uma condição biológica, mas sim como uma
estratégia de politizar a morte” (2017: 143).

Ana Paula Oliveira, integrante e cofundadora do grupo Mães de Manguinhos,


destaca que o nascimento de sua militância coincide com a morte do filho Johnatha. O
primeiro ato em que ela e a família participaram fora da comunidade onde vivem, no
Chapéu Mangueira, no Morro da Babilônia (Zona Sul do Rio de Janeiro). “Eu queria ir até
lá para falar o que aconteceu com meu filho e com outros jovens aqui de Manguinhos.
Era preciso botar essa dor para fora, se não ela ia me matar” (BRITO, 2018: 57). O relato
de Ana Paula mostra que além de politizar a morte, a maternidade negra é fundamental
para a manutenção da vida dessas mulheres.
A luta por memória e por justiça dos jovens negros assassinados mantém essas
mulheres negras de pé diante do racismo que desfaz famílias, futuros e sonhos. Nessa
linha, a compreensão de cidadania negra está nas contra-estratégias que essa população
tem pensado para garantir a sobre(vivência). Uma dessas outras contra-estratégias tem
sido a memória coletiva e individual das perdas para o projeto de extermínio.
A renovação do projeto genocida no contexto pandêmico dimensiona a
importância da memória e da produção do registro da violência, tendo em vista que se
não fossem os mecanismos autonomamente agenciados pelos movimentos negros, as
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mortes sequer seriam quantificadas. Nesse sentido, vê-se que a autoinscrição das
resistências é um instrumento que desloca a constatação da violência com discursos de
inferiorização para enfrentamento da violência pelo reconhecimento da cidadania.
Pelos registros das comunidades e familiares temos a denúncia da violência,
mas, também, a reivindicação da humanidade, pois foi a interdição desse atributo que
produziu a perda. Assim, o luto pelos projetos de vida que sucumbiram é um direito pelo
qual se luta a partir da memória. Por isso, é um mecanismo que opera contra violência
que ultrapassa o sentido físico, atuando no âmbito subjetivo e político; reconstruindo
sentidos afetivos e simbólicos de sociabilidade e poder, que são articulados na
solidaridade do território negro afetado.
Essa dimensão está latente no testemunho de Maria Bernadete Pacífico: “os
nossos filhos deixaram uma história, deixaram um legado e isso é que incomodou”.
Bernadete é mãe da liderança da comunidade Pitanga dos Palmares, Flavio Gabriel
Pacifico dos Santos (Binho do Quilombo) 23, assassinado no dia 19 de setembro de 2017,
na frente da escola do território quilombola, localizado no município de Simões Filho (BA).
A sua oralidade é um registro dessa memória de resistência que ela recorda ter
historicidade, “só em dizer que eu sou quilombola, a resistência está aqui” e segue:
“Meu filho lutava muito pelos direitos do quilombo, ai foi recebendo
ameaças, ameaças, e outras ameaças dentro do quilombo veio a acontecer
isso. Mas ele derramou sangue, esse sangue de quilombola, sangue de vitória,
mesmo sangue que Zumbi dos Palmares largo pelo povo dele. Ser quilombola
faz parte da nossa ancestralidade, da nossa cultura... E nós queremos nossa
liberdade, nossos direitos e dai por diante ter paz nas nossas comunidades
quilombolas. Que Deus e Xangô, que é o homem da justiça, eles peguem na
caneta e respeite a nossa ancestralidade. Muita resistência pra hoje eu ta
aqui, com essa cara aqui olhando pra todos vocês, pedindo força a Deus... É
muita resistência”24.

A família de Ágatha Vitória Sales Félix, 8 anos, também testemunha a memória


do projeto de vida que estava sendo construído coletivamente. A garota era boa aluna,
fazia balé, estudava inglês e tinha um cotidiano intenso e carinhoso com os familiares na
Fazendinha, uma das comunidades do Complexo do Alemão, onde vivia. Ainda assim, todo
aparato de cuidado não foi suficiente para proteger Ágatha da violência que assola as

23 CONAQ. Mãe de Marielle Franco une forças com mãe Binho do Quilombo. Disponível em:
http://conaq.org.br/noticias/mae-de-marielle-franco-une-forcas-com-mae-binho-do-quilombo/. Acesso em:
16 dez. 2020.
24 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Ouça as #VozesDoQuilombo! - Maria Bernadete Moreira. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=c495IOeLv2s&ab_channel=InstitutoSocioambiental. Acesso em: 16 dez.


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periferias do Brasil. Em setembro de 2019, ela foi vítima de um tiro efetuado por um
agente do estado, como comprovou o laudo pericial25. O discurso de seu avô, Airton Félix,
durante o velório e o enterro, aciona novamente as relações entre memória, cidadania e
resistência à violência:
“Sabe qual era a arma que tinha dentro da mochila da minha neta? Lápis,
caderno, apontador, livro. Tinha um simulado que ela fez nessa semana e
tirou 7! Essas eram as armas que a Ágatha gostava de usar. Ela tinha um
futuro, ia crescer e entrar na faculdade. Mas o estado não quer isso. E se
continuar dessa forma, o que vai acontecer?”26

Quisemos, ao longo deste tópico, pensar os discursos e práticas negros que


põem ao avesso a noção de cidadania para apontar sua inseparabilidade da violência. Esse
fazer é também uma forma de interpelação direta ao Estado e sua produção de terror
racial, conectada finamente ao controle social sobre os territórios negros, no campo e na
cidade. Entendemos que as dimensões, inclusive afetivas, da memória e da resistência
aqui levantadas nos ajudam a compreender a complexidade dos agenciamentos e das
críticas negras à violência de Estado.

Conclusão

Esse artigo é uma discussão inicial sobre violência, cidadania e (sobre)vivências. Partindo
do pressuposto de que a geografia do extermínio atua tanto na cidade como no campo,
observou-se a intensidade da máquina racista que a cada dia amplia o perfil de suas
vítimas, comprovando o racismo estrutural e estruturante mantido historicamente pelo
governo brasileiro em discursos e práticas diversas. A delimitação da violência antinegra
ao espaço urbano fragmenta a compreensão de práticas de controle social que se
desenvolvem como um continuum campo-cidade.
Além disso, o cenário de agudização da violência antinegra provocou reflexões
sobre os estudos da violência e sobre como tem sido trabalhada a dimensão racial no

25 BARBON, Júlia. Investigação conclui que PM atirou na menina Ágatha no Rio. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/investigacao-conclui-que-pm-atirou-na-menina-agatha-
no-rio.shtml. Acesso em: 12 dez. 2020.
26 ZARUR, Camila; OUSHANA, Giselle. 'A arma que ela gostava de usar era lápis, caderno, redação nota 10', diz

avô durante enterro de menina baleada no AlemãoDisponível em: https://oglobo.globo.com/rio/a-arma-que-


ela-gostava-de-usar-era-lapis-caderno-redacao-nota-10-diz-avo-durante-enterro-de-menina-baleada-no-
alemao-23966403. Acesso em: 12 dez. 2020.

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Brasil. Em geral, sujeitos e sujeitas de territórios negros como favelas e quilombos, assim
como suas demandas, não estão no cerne do debate. Desse modo, a redução das
demandas da população negra, contra e a favor do Estado, aos problemas da punição,
oculta projetos de vida, liberdade e igualdade, ou seja, cidadania, agenciados contra a
violência colonial-racial. Entendemos ser urgente e fundamental que o racismo deixe de
ser preterido para que produções acadêmicas possam, enfim, dar conta de todo espectro
de horror que essas populações têm vivido.
Outro ponto importante é o entendimento entre movimento negro e sistema
penal. Conscientes da relevância da contemporaneidade, citamos experiências de favelas
e quilombos que, no contexto da pandemia de Covid-19, denotam as agências da
população negra na política de justiça, bem como o alinhamento das demandas por
direitos à redução do controle social e violência. Estas experiências informam que,
independentemente da forma político-jurídica adotada nos pactos sociais, a conservação
da vida negra requer a sustação da ordem antinegra. Nesse sentido, as Ações de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 e 742 foram estratégias para
garantir – minimamente – a manutenção da vida nos territórios negros. As ações
evidenciam também a legitimação, por parte do Estado, das violência contra a população
negra, enquanto mecanismo de interdição de sua cidadania.
Por fim, concentramos esforços na disputa de narrativa que a população negra
tem produzido sobre si e as relações raciais no Brasil. Por exemplo, o agenciamento da
memória afetivas e da resistência para contrapor as imagens e representações racistas
que fragmentam a humanidade e desqualificam a subjetividade. Um dos aspectos
enfrentados nessa memória da diáspora africana é a vinculação da experiência negra à
política de um tempo passado que reafirma discursos de controle social e reduz a
experiência social vivida pela população negra à violência, dor e morte.
Essas contribuições constituem possibilidades de uma cidadania radical no
Brasil, em que seja possível enfrentar verdadeiramente a violência racial. Apesar de
pretensos avanços com instrumentos como “Constituição cidadã”, a existência negra
segue definida pela morte física e política. E se ser negro e negra é um processo muito
mais de (sobre)vivência do que de vivência, não resta outro caminho do que revindicar
outras vozes e saberes para que a experiência negra não seja um esforço, mas uma
totalidade.

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Traço, 2016, pp. 13-30.

Sobre os autores

Fernanda Lima da Silva


Doutoranda e Mestra em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Professora do
Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Bacharela em Direito na Universidade
Federal do Pernambuco (UFPE). Pesquisadora dos grupos Núcleo de Estudos em
Cultura Jurídica e Atlântico Negro – Maré (UnB), Asa Branca de Criminologia
(UNICAP/UFPE) e Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação - CEDD (UnB).
E-mail: ffernanda.slima@gmail.com.

Rodrigo Portela Gomes


Doutorando e Mestre em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Professor
Substituto da Faculdade de Direito da UnB. Bacharel em Direito no Instituto de
Ciências Sociais e Jurídica Profº Camill Filho (ICF). Pesquisador dos grupos Núcleo de
Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro – Maré (UnB), Direitos Humanos e
Cidadania – DiHuCi (UFPI) e Desafios do Constitucionalismo (UnB). E-mail:
rodrigoportelag@gmail.com.

Maíra de Deus Brito


Doutoranda e Mestra em Direitos Humanos e Cidadania na Universidade de Brasília
(UnB). Professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Especialista em
Gestão de Políticas Públicas para Gênero e Raça pela UnB. Bacharela em Jornalismo
no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Pesquisadora do Núcleo de Estudos em
Cultura Jurídica e Atlântico Negro – Maré (UnB). E-mail: jornalistabrito@gmail.com.

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Para além do “mundo jurídico”: um diálogo com as equipes


multidisciplinares de Juizados (ou Varas) de Violência
Doméstica
Beyond the “legal world”: a dialogue with members of multidisciplinary teams
serving in Brazilian domestic violence courts.

Marilia Montenegro Pessoa de Mello¹


¹ Universidade Católica de Pernambuco e Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
Pernambuco, Brasil. E-mail: marilia.montenegro@unicap.br; marilia.pmello@ufpe.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5540-389X.

Fernanda Cruz da Fonseca Rosenblatt²


² Universidade Católica de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil; Instituto
Internacional de Justiça Restaurativa, Pensilvânia, EUA. E-mail:
fernanda.rosenblatt@unicap.br; ffrosenblatt@iirp.edu. ORCID: http://orcid.org/0000-
0002-4136-990X.

Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros³


³ Universidade Católica de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail:
carolina.salazar@unicap.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2048-8739.

Artigo recebido em 14/01/2021 e aceito em 21/01/2021.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.608-641.
Marilia Montenegro Pessoa de Mello, Fernanda Cruz da Fonseca Rosenblatt e Carolina Salazar
l’Armée Queiroga de Medeiros
DOI:10.1590/2179-8966/2020/57098| ISSN: 2179-8966
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Resumo
O presente artigo tem como objetivo entender o funcionamento das equipes
multidisciplinares atuantes em Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher. Buscamos identificar e compreender as possíveis modificações
desenvolvidas nesses espaços especializados, inaugurados há mais de uma década, na
direção de novas respostas, desafiadoras daquelas tradicionalmente oferecidas pelo
Sistema de Justiça Criminal. Para tanto, e tendo por base pesquisa empírica realizada em
sete capitais brasileiras, utilizaremos de falas e reflexões extraídas dos grupos focais
realizados com as equipes multidisciplinares estudadas, bem como das percepções
extraídas de entrevistas com magistrados que atuam na violência doméstica e vítimas
desse tipo de conflito. Ao final, propomos o reconhecimento da importância das equipes
multidisciplinares na busca de novas saídas à violência doméstica contra a mulher no
Brasil, bem como a necessidade de enxergar/admitir as rígidas fronteiras do nosso
“mundo jurídico”.
Palavras-chave: Violência Doméstica contra a Mulher; Equipes Multidisciplinares; Lei
Maria da Penha.

Abstract
This article aims to understand the workings of multidisciplinary teams in Domestic
Violence Courts in Brazil. We seek to identify and understand the possible changes
developed in these specialised spaces, which now exist for over a decade, that are turned
to new responses capable of challenging the traditional way of doing things in the
country’s Criminal Justice System. For that purpose and based on empirical research
carried out in seven Brazilian capital cities, we will highlight some of the reflections
extracted from focus groups carried out with the aforementioned multidisciplinary teams,
as well as draw on the perceptions extracted from interviews with magistrates who work
with domestic violence and victims of this type of conflict. In the end, we highlight the
need for recognition of the importance of multidisciplinary teams when searching for new
“ways out” in the domestic violence against women arena, as well as the need to
see/admit the rigid borders of our “legal world”.
Keywords: Domestic Violence against Women; Multidisciplinary Teams; The Maria da
Penha Act (Brazil’s Domestic Violence Law)

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.608-641.
Marilia Montenegro Pessoa de Mello, Fernanda Cruz da Fonseca Rosenblatt e Carolina Salazar
l’Armée Queiroga de Medeiros
DOI:10.1590/2179-8966/2020/57098| ISSN: 2179-8966
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1. Introdução

Para a construção do presente artigo utilizaremos 1 um recorte da pesquisa “Entre Práticas


Retributivas e Restaurativas: a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder
Judiciário”2, que objetivou compreender a aplicação da Lei Maria da Penha depois de mais
de 10 (dez) anos de sua vigência. A pesquisa, financiada pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), foi coordenada, conjuntamente, pelas três autoras do presente artigo e abarcou 7
(sete) capitais brasileiras, sendo 3 (três) cidades na região nordeste (João Pessoa, Maceió
e Recife) e 1 (uma) cidade em cada uma das demais regiões (Belém do Pará, Brasília, São
Paulo e Porto Alegre). O trabalho foi realizado com a utilização de diversas técnicas de
pesquisa e contou com uma equipe de mais de 50 (cinquenta pesquisadoras/es). A equipe
de pesquisa realizou entrevistas com magistrados, entrevistas com vítimas3, grupo focal
com as equipes multidisciplinares, análise quantitativa de processos e revisão
bibliográfica de literatura estrangeira sobre a aplicação da justiça restaurativa em casos
de violência doméstica4.
Com base nessa pesquisa e nos resultados alcançados, este artigo tem como
finalidade estabelecer um diálogo com as equipes multidisciplinares das sete cidades
pesquisadas, para entender a atuação dessas equipes nos Juizados (ou Varas) de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher5 e o papel desempenhado pelas/os profissionais

1 Optamos por apresentar a pesquisa de campo e seus resultados na primeira pessoa considerando o papel
tão direto e íntimo que tem o pesquisador, tanto na coleta como na análise de dados (ROSENBLATT, 2015a).
2 O referido projeto foi contemplado na 2ª Edição da Série “Justiça Pesquisa”, do Departamento de Pesquisas

Judiciárias (DPJ), em 2016, tendo sido financiando, portanto, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). As
autoras declaram não haver conflito de interesses que comprometa a cientificidade do trabalho apresentado.
3 Reconhecemos a maior pertinência da expressão “mulheres em situação de violência”, por acreditarmos

que ela remete à possibilidade de modificação da realidade sociocultural da violência doméstica e familiar
contra a mulher (PASINATO, 2015) e, também, por entendermos que a expressão “mulher vítima” engessa a
mulher numa situação única de vulnerabilidade, o que faz com que o complexo problema da violência
doméstica e familiar contra a mulher seja interpretado a partir de uma causalidade unilateral e simplista, cuja
compreensão precisa ultrapassar “os limites de uma leitura bidimensional, fundamentada em categorias fixas
como ‘mulher-vítima’ e ‘homem-agressor’” (SOARES, 2012: 191). No entanto, para efeitos deste artigo,
utilizaremos com frequência o termo “vítimas” por ser conciso, por estar na Lei Maria da Penha e
corresponder à linguagem jurídico-penal e também porque o objetivo deste trabalho não está focado nas
discussões em torno da terminologia mais apropriada. Do mesmo modo e por razões semelhantes,
utilizaremos o termo “agressor” com frequência, apesar de entendermos que se trata de referência
estigmatizante marcadora de uma identidade – e não de uma prática social, tal como compreendemos se
tratar a violência contra a mulher (MEDRADO; MÉLLO, 2008; SOARES, 2012).
4 O componente qualitativo da pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Católica de

Pernambuco, tendo sido aprovado (CAAE: 66958616.7.0000.5206).


5
O art. 14 da Lei 11.340/2006 apresenta a seguinte redação: “Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela

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que as integram. Para tanto, vamos destacar não só a atividade de campo desenvolvida
com as equipes multidisciplinares, mas também as reflexões extraídas das entrevistas
com as vítimas e com a magistratura.
Cabe pontuar, desde já, que, apesar de as esquipes multidisciplinares terem sido
celebradas por sua previsão no bojo da Lei Maria da Penha – tanto a fim de conferir um
atendimento holístico às mulheres em situação de violência e a sua família, mas também
para a produção de pareceres técnicos subsidiadores das tomadas de decisão pelos
magistrados (DE KATO, 2016) –,durante a realização da pesquisa, nos chamou atenção a
atuação periférica das esquipes multidisciplinares nos Juizados (ou Varas), ao menos em
termos de aproveitamento e interferência das atividades realizadas no procedimento
penal. A “ausência” das equipes multidisciplinares inicialmente se evidenciou na fase
quantitativa da pesquisa, ou seja, no momento da análise dos processos criminais e se
confirmou nos grupos focais com as equipes – o que não significa, entretanto, que as
equipes têm pouco trabalho, mas que os seus esforços não se exprimem nos processos.
Neles, inclusive naqueles em que se teve acesso ao inteiro teor, não encontramos
qualquer menção à existência de encontros com a equipe multidisciplinar – seja pela
vítima, seja pelo acusado –, tampouco houve menção ao trabalho da equipe nas
sentenças. A ausência desse dado nos processos analisados na pesquisa torna a
importância do presente artigo ainda maior, pois muitas vezes a dimensão dos trabalhos
das equipes multidisciplinares, bem como o seu potencial transformador, não cabe (nem
é recepcionado) na ritualística do processo penal e nem pode ser captada em números.
Dividiremos o artigo em três momentos distintos, apesar de entrelaçados:
começaremos apresentando uma fotografia das equipes multidisciplinares à época da
pesquisa; num segundo momento, destacaremos falas e reflexões extraídas dos grupos
focais e entrevistas realizados que trazem alguns pontos que consideramos importantes
para, na última etapa do artigo, projetarmos outras saídas – para além da lógica
retributivo-punitiva – aos conflitos domésticos. Esse caminho nos levará a uma reflexão
acerca do protagonismo das equipes multidisciplinares dentro das estruturas já

União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das
causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”. Embora a nomenclatura
dada pelo legislador seja Juizado alguns Tribunais de Justiça alteraram a expressão Juizado para Vara de
Violência Doméstica, assim optamos por utilizar, durante o presente texto, o seguinte formato: Juizado (ou
Vara), para contemplarmos as nomenclaturas utilizadas em todas as cidades pesquisadas.

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existentes, bem como sobre a importância de reconhecê-lo quando do desenho de novas


abordagens à violência doméstica contra a mulher no Brasil.

2. Uma “fotografia” das equipes multidisciplinares no momento de realização da


pesquisa

Durante a pesquisa, conhecemos todas as equipes multidisciplinares atuantes nos


Juizados (ou Varas) das cidades selecionadas. Para a condução dessas conversas,
utilizamos a técnica do grupo focal. Ao longo do ano 2017 6, portanto, realizamos nove
grupos focais.
Essa técnica de investigação qualitativa apresenta como objetivo a coleta de
dados referentes à experiência das pessoas que dele participam sobre alguma vivência
em comum. Assim, o grupo focal possibilita a observação da dinâmica social que ocorre
entre os membros do grupo (NOAKS; WINCUP, 2004). Dessa forma, realizamos grupos
focais com as/os assistentes sociais, as/os psicólogas/os, as/os pedagogas/os e outras/os
profissionais das equipes multidisciplinares, com o intuito de compreender as atribuições
dessas equipes, como também entender a interação entre as pessoas envolvidas no
âmbito do funcionamento da justiça.
Os grupos focais foram feitos com o número máximo de dez participantes em
cada cidade e nós sempre nos revezávamos na função de moderadora ou observadora,
de modo que participamos de todos os grupos focais. Estávamos acompanhadas, ainda,
por um mínimo de duas pesquisadoras/es assistentes, que enriqueceram as discussões,
fizeram anotações e analisaram a linguagem corporal dos participantes. Ao término de
cada grupo focal, nos reuníamos para trocar percepções, ponderar as falas mais
significativas, tendo este momento colaborado muito na construção do relato. Por outro
lado, as/os pesquisadoras assistentes também teceram considerações acerca da atuação
da mediadora e da observadora, aprimorando, assim, a técnica para o grupo focal

6 Todos os dados que iremos apresentar se referem a informações coletadas no ano de 2017 e é possível que
tenham ocorrido mudanças nessas equipes ou no funcionamento dos Juizados (ou Varas) pesquisados. Dito
isso, qualquer mudança que possa ter ocorrido não afeta, de nenhuma forma, as propostas de reflexões do
presente artigo.

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seguinte. Ao final, todos os integrantes participaram da revisão da síntese elaborada


primeiramente por nós, gerando, assim, conclusões elaboradas pelo grupo7.
O primeiro grupo focal realizado pela equipe de pesquisa ocorreu em
Igarassu/PE, cidade não contemplada pela pesquisa. A realização do grupo focal nessa
cidade, que faz parte da Região Metropolitana da cidade do Recife, se deu para testar os
instrumentos, e, dessa forma, preparar o grupo para a realização da atividade nas cidades
efetivamente selecionadas para a pesquisa8. Assim sendo, não iremos apresentar os
dados dessa atividade no presente artigo 9, mas nos deter aos Juizados (Varas) localizados
naquelas sete capitais acima mencionadas.
Na cidade de Recife/PE temos três Varas de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, mas só contamos com duas equipes multidisciplinares. Assim,
realizamos dois grupos focais, o primeiro com a equipe da 2ª Vara e o segundo com a
equipe que atua conjuntamente perante a 1ª e a 3ª Varas. A equipe da 2ª Vara era
composta por funcionários concursados do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE),
majoritariamente mulheres. Eram três assistentes sociais e três psicólogos, sendo dois
desses últimos homens e uma mulher. Nenhum dos integrantes da equipe havia
trabalhado antes com a temática, tendo sido a escolha para funcionar nessa Vara,
aparentemente, aleatória. A equipe que atende conjuntamente a 1ª e a 3ª Varas é
também formada por funcionárias concursadas do TJPE e composta exclusivamente por
mulheres: quatro assistentes sociais, quatro psicólogas e duas estagiárias, uma de
psicologia e outra de serviço social. Destacamos que, anteriormente à investidura no
serviço público do TJPE, nenhuma das integrantes da equipe havia trabalhado
diretamente com a temática e a lotação de todas seguiu exclusivamente o critério de
disponibilidade de vagas.
Na cidade de Belém/PA, embora existam três Varas do Juizado de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, a equipe multidisciplinar é única e responsável por
todas as Varas. Dessa forma, realizamos ali apenas um grupo focal. A equipe dessa capital
era formada exclusivamente por mulheres, sendo duas psicólogas, duas pedagogas e

7Para a tomada dessas decisões, acataram-se as sugestões de como melhor conduzir entrevistas de grupo
focal propostas por autores das ciências sociais, inclusive, e especificamente, da Criminologia, tais como
Arksey e Knight (1999), Kvale (1996) e Noaks e Wincup (2004).
8 Para uma explicação detalhada acerca dos critérios de seleção dessas cidades, consultar o Relatório Final da

pesquisa (CNJ, 2018).


9 A análise dessa cidade consta no Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018).

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cinco assistentes sociais, além de duas estagiárias na área de psicologia. Todas são
concursadas do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) e começaram a atuar nas Varas entre
os anos de 2007 e 2013, quando as mais novas ingressaram. A escolha das pessoas para
atuarem nas Varas do Juizado é realizada de modo aleatória pelo Tribunal de Justiça.
Na cidade de João Pessoa/PB, existe apenas um Juizado de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher e a equipe era formada exclusivamente por mulheres, sendo
quatro psicólogas e duas assistentes sociais. Elas trabalhavam em esquema de
revezamento entre o turno da manhã e da tarde, de modo que em cada turno havia uma
equipe presente, formada por duas psicólogas e uma assistente social. O primeiro
concurso realizado pelo TJPB, para os cargos de psicólogo, pedagogo e assistente social,
aconteceu no ano de 2012 e as primeiras nomeações ocorreram em 2013. O edital do
concurso delimitava a atuação para as áreas da violência doméstica e da infância e
juventude
Na cidade de Maceió/AL também só existe um Juizado de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher e a equipe é formada exclusivamente por mulheres, sendo
duas psicólogas e duas assistentes sociais. A equipe conta ainda com apoio de estagiárias,
duas na área de psicologia e duas na área de serviço social. A escolha para elas fazerem
parte do Juizado foi realizada pelo Tribunal de Justiça de forma aleatória.
Na cidade de São Paulo/SP, embora existam várias Varas e, consequentemente,
muitas equipes, só realizamos a pesquisa no Fórum do Butantã, que tem uma Vara de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher10. A equipe é composta majoritariamente
por mulheres. Eram três assistentes sociais, três psicólogos, sendo dois desses últimos
homens e uma mulher. Todos funcionários concursados do TJSP.
Na cidade de Porto Alegre/RS existem dois Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, mas esses Juizados não possuem uma equipe multidisciplinar
própria, como nas outras capitais pesquisadas, porém contam com duas técnicas do
Tribunal de Justiça que são psicólogas, com bastante experiência. Além das duas
servidoras, a equipe é integrada também por professoras e alunas/os de instituições de
ensino superior atuantes naqueles Juizados. Nessa capital, o serviço multidisciplinar é
centralizado no âmbito da chamada Central de Atendimento Psicossocial e

10A realização de um único grupo focal em cidade da dimensão de São Paulo se deu, dentre outros motivos,
principalmente em virtude dos fatores tempo e acessibilidade. Para maiores detalhes sobre o recorte espacial
na capital paulista, conferir o Relatório Final de pesquisa (CNJ, 2018: 42-43).

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Multidisciplinar (CAPM), localizada no Fórum Central. Com efeito, em Porto Alegre, existia
uma inserção muito grande da academia, diferentemente do que percebemos em outras
cidades, por isso nesse grupo focal tivemos a participação de alunas/os e professoras do
curso de psicologia de quatro instituições de ensino superior do Rio Grande do Sul (PUC,
CESUCA, FADERGS, UFCSPA).
Em Brasília, não existem equipes multidisciplinares para os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, mas um serviço centralizado, o “Serviço de
Atendimento a Famílias em Situação de Violência” (SERAV), para onde os juízes do plano
piloto encaminham os casos quando precisam de uma intervenção ou acompanhamento
psicossocial. O SERAV é responsável por prestar assessoria não apenas aos Juizados de
Violência Doméstica, mas também aos Juizados (ou Varas) Criminais comuns do Tribunal
de Justiça do Distrito Federal (TJDF). No caso específico de violência doméstica contra a
mulher, o SERAV atua em conjunto com o “Centro Judiciário da Mulher em Situação de
Violência Doméstica e Familiar” (CJM), uma coordenadoria composta por onze
funcionários (das áreas de psicologia, serviço social, pedagogia e direito), destinada à
assessoria dos juízes que atuam no âmbito da violência doméstica. O grupo focal de
Brasília foi realizado com a participação de três analistas da equipe do SERAV, sendo duas
psicólogas e uma assistente social e, pela especificidade do atendimento em Brasília,
participaram também dois analistas do CJM, sendo um assistente social e um analista
jurídico.

3. O olhar dos juízes sobre as equipes multidisciplinares

Durante o artigo optamos por usar sempre o gênero masculino para nos referirmos à
magistratura, já que os Tribunais de Justiça brasileiros 11 são majoritariamente formados
por homens. Mesmo quando a temática é de violência contra as mulheres, encontramos

11 Levantamento feito pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), órgão do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), mostra que dos 17.670 magistrados em atividade no Brasil, 37,3% são mulheres. O número foi
extraído do Módulo de Produtividade Mensal, sistema mantido pelo CNJ e alimentado regularmente por
todos os tribunais. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84432-percentual-de-mulheres-em-
atividade-na-magistratura-brasileira-e-de-37-3. Acesso em: 09 dez. 2020.

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homens e mulheres atuando de forma paritária durante a pesquisa 12. A nossa escolha tem
como objetivo chamar atenção para como o modo de pensar masculino é ainda
preponderante no âmbito do judiciário.
Entrevistamos juízes em todas as cidades pesquisadas, num total de 24
magistrados, e, ao longo dessas entrevistas, a equipe multidisciplinar é indicada, junto às
medidas protetivas, como um dos pontos de maior relevância da lei.
É, eu acho, a equipe psicossocial, o trabalho do psicossocial é fundamental,
acho que toda vara tem que ter uma boa equipe, uma equipe
compromissada, e com essa, acho que, essa visão, né? Dos servidores, do juiz,
do promotor, do defensor, de a gente tem que trabalhar naquela família que
está doente. Às vezes é uma violência esporádica, né? Que você vê um
arrependimento muito grande naquele agressor e tudo mais, que a gente
sabe que aquilo ali foi um caso isolado. Mas há casos que não, que existe um
ciclo de violência tão pesado e que ninguém consegue quebrar, e se você não
cuidar, se você não tratar, e que a mulher não se liberta, e porque ela não
quer se libertar também. Ela tem certos medos, ou ela viu na família dela, no
pai, aquela agressão, então, aquilo, pra ela é normal, então ela não quebra
aquele ciclo, num é? Então a gente tem que tratar essa família. E, se chegou
a nós, passou por todo mundo, passou pela escola, passou por tudo e num foi
resolvido, se chega a vara de violência doméstica nós temos que ter
competência pra ajudar essas famílias, através de equipe psicossocial e
através de encaminhamento pra ele. (Juiz 3)
(CNJ, 2018a: 153)

Aqui na minha vara a equipe faz um trabalho maravilhoso. Nas outras varas
não sei muito, porque as equipes geralmente são um pouco reservadas e a
gente não tem muito acesso a elas. Mas aqui, a da minha vara faz um trabalho
belíssimo e amplo, muito amplo, né, com homens e mulheres e crianças. (Juiz
7)
(CNJ, 2018a: 153)

Nossa, todos os dias, toda hora, as portas são vizinhas. A gente tem uma
abertura muito grande pra construir soluções juntos, pra ouvir as opiniões,
inclusive esse nosso projeto da audiência de acolhimento foi pensado em
conjunto com a equipe. Quando eu cheguei [...] na qualidade de substituto, o
papel da minha equipe era apenas falar com os agressores... óbvio, eles iam
também dar palestras em escolas, mas era falar com os agressores que
haviam sido sentenciados, eu disse: “Meu Deus, é preciso repensar o papel
dessa equipe, são pessoas tão boas que estão apenas se apegando a um
cumprimento de pena”. A gente tem que fazer a diferença na vida dessas
pessoas, prevenindo, evitando a reiteração de condutas, mas, sobretudo,
dando uma proteção maior à vítima porque é, de fato, quem a gente deve
olhar primeiro, a vítima, não que nós tenhamos que esquecer dos agressores,
de forma alguma, primeiro que a competência não é nossa, né, a competência
é da vara de execução, e segundo que, para fazer um trabalho com os

12 “Dos 24 magistrados entrevistados, 12 (doze) eram homens e 12 (doze) eram mulheres. Com relação à raça,

17 (dezessete) magistrados se identificaram como brancos, 4 (quatro) como pardos, 2 (dois) como amarelos
e 1 (um) não respondeu” (CNJ, 2018: 132).

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agressores, primeiro eu tenho que fazer um trabalho com as vítimas, na


minha opinião, porque não adianta a vítima não querer romper o ciclo de
violência, é preciso ter essa consciência. (Juiz 8)
(CNJ, 2018a: 153)

Quando perguntamos se o trabalho da equipe influencia no julgamento, as


respostas costumaram ser positivas e exaltadoras do trabalho desenvolvido. As mais
representativas das falas dos magistrados são as seguintes:

Muito, a gente vive muito, muito junta. É tanto que elas me passam várias
leituras... eu vou e converso com elas, discuto com elas, depois a gente vê um
caso muito... a gente é muito, muito junta. Por exemplo, chega uma pessoa
aqui que eu fico na dúvida, eu peço pra elas ouvirem, para elas me dizerem
[...]. Eu converso com elas, entendeu? A gente tem uma interação muito
grande. (Juiz 10)
(CNJ, 2018a: 153)

Influencia demais porque elas têm uma, uma visão diferente da minha, sabe?
Porque elas vão e enxergam toda a realidade, todo contexto em que aquela
família, né? E convive, e as motivações dos crimes, né? Os casos, as hipóteses
dos crimes que surgem né? Então, essa equipe nos subsidia com pareceres
excelentes, sabe? E ajuda demais na recuperação da autoestima das
mulheres, quando elas vão lá nas residências [...] nós temos um veículo aqui,
que vive quase que exclusivamente pra essa, essa equipe, entendeu? Pra
visitar as mulheres, tanto que quando chega um veículo nosso, com a nossa
equipe, na casa de uma vítima dessas, ela já se sente prestigiada. (Juiz 13)
(CNJ, 2018a: 154)

Ah, profundamente, principalmente em matéria de crianças, é muito difícil


pra mim decidir afastar um pai de um filho; o filho tem direito de ter a
companhia do pai. E até que ponto o problema de relacionamento do casal
deve atingir o relacionamento com o filho? Isso é muito difícil de se aferir;
então, esse estudo de caso ajuda muito na minha decisão. Nas medidas
protetivas... se vem um estudo de caso indicando, mesmo sem prova, mas
indicando que a mulher está mal psicologicamente, necessitante de um
determinado encaminhamento, necessidade de uma determinada proteção,
isso chama atenção e isso me leva a mudar de ideia. (Juiz 24)
(CNJ, 2018a: 153)

A menção ao trabalho das equipes multidisciplinares aparece muito quando a


magistratura é indagada sobre questões de gênero no desemprenho de suas funções, pois
a maioria não se sente confortável com a temática e alguns mencionam que a equipe
multidisciplinar ajuda nessas questões. Um exemplo disso é a questão da aplicabilidade
da Lei Maria da Penha às mulheres transgênero13.

13 Para maiores detalhes e outros exemplos, vide o Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018).

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4. O que aprendemos escutando as equipes multidisciplinares

Nessa seção, o foco é apresentar as principais reflexões extraídas dos grupos focais
realizados com as equipes multidisciplinares. O destaque, pois, será a nossa escuta das/os
profissionais, embora, sempre que possível e relevante, cruzaremos seus relatos com
dados obtidos em outros momentos da pesquisa, como durante as entrevistas com
vítimas e magistrados.

4.1 As atribuições das equipes e a função de “triador” e de produtor de provas

Durante a pesquisa, percebemos diferentes formas de estruturar as equipes.


Todas se ocupam dos aspectos introduzidos pela Lei Maria da Penha, mas existem
concepções muito diferentes de como o próprio judiciário de cada estado pensa e
organiza a equipe multidisciplinar. Como vimos acima, a equipe pode trabalhar de forma
específica com um Juizado (ou Vara) de Violência Doméstica, como acontece em Recife,
Maceió, João Pessoa, Belém e São Paulo; ou, pode existir uma equipe mais central que
atende vários Juizados (ou Varas), como acontece em Brasília ou na situação bem peculiar
de Porto Alegre, que tenta fazer parcerias, por exemplo, com as Universidades, para suprir
a ausência de uma equipe multidisciplinar que atenda unicamente aos Juizados.
As próprias equipes, assim como a magistratura, têm dificuldades para
dimensionar suas atividades. Conforme já mencionado, a equipe multidisciplinar
apareceu em destaque nas respostas dos magistrados, porém não encontramos
uniformidade quando discorriam sobre as atribuições dessa equipe. Também extraímos
essa falta de uniformidade nos relatos das próprias equipes durante os grupos focais
realizados. Importante destacarmos, ainda, que as suas atribuições podem variar dentro
de uma mesma equipe, a depender do magistrado demandante. Essas situações
acontecem quando a mesma equipe atende a mais de um Juizado (ou Vara), como foi
visto na maioria das cidades pesquisadas.
Quatro das equipes pesquisadas demonstraram desconforto com a “função de
triador” (de triagem dos casos) que elas sentem desempenhar. Para essas equipes, grande
parte de seus esforços é para verificar se o conflito é ou não de competência daquele
Juizado (ou Vara), como em situações que envolvem idosas, irmãs e adolescentes. Parte

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das equipes acredita que essa questão de competência seria mais uma questão jurídica
do que da equipe psicossocial.
Outras equipes reportaram que, de início, sentiam-se utilizadas para “produzir
provas”, na medida em que eram demandadas a estudar casos (de violência doméstica
e/ou de estupro de menores) e emitir opiniões a respeito deles14. Algumas vezes esses
estudos de caso eram solicitados inclusive pelo Ministério Público. Com o tempo, algumas
equipes conseguiram se afastar dessa função mais instrumental e passaram a trabalhar
mais com as atividades de prevenção, de atendimento e de inclusão das pessoas
envolvidas no conflito familiar na rede de assistência.
Aliás, o tempo despendido no processo judicial em si foi uma crítica comum
entre todas as equipes pesquisadas. Três equipes relataram expressamente que a
dificuldade era, de fato, “sair do processo”. Em uma das equipes, extraímos a seguinte
fala, que sintetiza o que foi encontrado em várias outras: “gostaríamos de sair do
processo, mas o tempo é consumido pela realização dos pareceres” (CNJ, 2018a: 233).
Um incômodo frequente relatado pelas equipes, portanto, é o fato de não existir
uma sistematização sobre os casos em que devem atuar e quais as suas atribuições
específicas, pois as atribuições que chegam ao setor tendem a vir por meio de
determinação judicial e, pelo que algumas equipes podem sentir, a deliberação é feita de
forma aleatória, a depender da vontade do magistrado que está atuando naquele
momento.
Mesmo diante desses relatos, vale ressaltar, praticamente todas as equipes
realizam várias atividades que vão muito além dos processos judiciais. Com efeito, não
obstante a falta de uniformidade entre elas (ou, até, dentro delas), e para além de
atenderem a demandas do juiz para fornecer pareceres aos autos, as equipes
desenvolvem inúmeros projetos pensando na prevenção da violência doméstica, bem
como trabalham no atendimento das vítimas e dos agressores15.

14 Nem todos os Juizados (ou Varas) pesquisados são competentes para julgar casos de estupro de crianças
do gênero feminino. Há cidades em que essa competência é do Juizado (ou Vara) de Violência Doméstica e
em outras cidades essa competência é do Juizado (ou Vara) de Proteção da Criança e do Adolescente.
15 Sobre as atribuições e projetos realizados por cada equipe de pesquisa conferir o Relatório Final da pesquisa

(CNJ, 2018: 212-231).

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4.2 A linguagem jurídica e a “função de tradutor”

Durante a realização dos grupos focais também foi colocado o problema da


“linguagem jurídica” e a necessidade de as equipes realizarem “uma tradução da
linguagem do jurídico”. Essa questão não estava formulada no roteiro original do grupo
focal, mas surgiu espontaneamente nos primeiros grupos focais, tendo sido incorporada
no instrumento de coleta de dados da pesquisa desde então e até o final das atividades.
Segundo os profissionais das várias equipes pesquisadas, a “linguagem
jurídica”16 exige um esforço por parte das equipes para tornar “o mundo jurídico” mais
acessível às partes envolvidas. Com efeito, a forma de comunicação dos profissionais da
área jurídica apresenta como consequência uma incompreensão da vítima acerca do que
está acontecendo. Essa dificuldade nos foi apontada por diversas vezes, como na seguinte
fala: “Se a própria equipe tem dificuldade de compreensão, para a vítima é começar o
processo sem conseguir decifrar o que está acontecendo” (CNJ, 2018a: 235).
Nesse mesmo sentido, as equipes relataram que as vítimas apresentam uma
necessidade enorme de serem ouvidas e de entenderem o que está acontecendo. Por
várias vezes, elas chegam ao Juizado (ou Vara) com pouca ou nenhuma informação.
Algumas equipes explicam que o atendimento na delegacia é muito precário e a vítima
não consegue sequer compreender quais foram as medidas protetivas solicitadas. Essa
falta de entendimento segue para o judiciário, e foram vários os relatos por parte das
equipes que as mulheres não entendem que estão fazendo parte de um processo criminal.
Uma das integrantes de uma das equipes explica que a falta de informação e compreensão
é tão grande que a mulher, por vezes, é liberada da audiência e fica aguardando no fórum,
pois “as mulheres não conseguem nem entender que a audiência já acabou” (CNJ, 2018a:
235).
Tal-qualmente, em um grupo focal, foi-nos narrado que, por vezes, integrantes
da equipe multidisciplinar são demandados para explicar às partes que o procedimento já
acabou. Nesse sentido, foi dito: “As vítimas não entendem o que é a audiência e saem de
lá sem entender nada do que está acontecendo e nos procuram para que a gente possa
traduzir o que aconteceu” (CNJ, 2018a: 236). Em outra equipe, um dos integrantes fez

16O problema da linguagem jurídica também foi apontado em estudo realizado pelo IPEA: “Essa capacitação
também envolve o uso adequado da linguagem, porquanto o “juridiquês”, como é chamado a linguagem
jurídica exageradamente rebuscada, vem sendo cada vez mais criticado” (BRASIL, 2015: 96).

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uma reflexão parecida, ponderando que: “A informação é um empoderamento das


mulheres e quando o jurídico dificulta essa compreensão, [ele] está evitando a mulher de
sair daquele conflito” (CNJ, 2018a: 236).
Nos casos em que a mulher não teve acesso à Defensoria Pública, o relato mais
comum foi dessas informações acabarem vindo das equipes multidisciplinares. E
confirmando as narrativas dos grupos focais, as vítimas entrevistadas comumente
expressaram terem obtido informações sobre o seu processo (ou sobre o procedimento de
um modo geral) não na delegacia, nem em audiência com o juiz ou na Defensoria Pública,
mas graças ao atendimento prestado pela equipe multidisciplinar.
No confronto dos resultados dos grupos focais com as entrevistas que
realizamos com as vítimas, portanto, percebe-se o impacto da “linguagem jurídica” nos
processos de revitimização das mulheres, aos quais voltaremos mais adiante17.

4.3 “Os Doutores”

Um ponto frequentemente indicado pelas equipes multidisciplinares é que os


profissionais de formação jurídica têm dificuldade em trabalhar com conceitos como
“gênero”, “violência de gênero” e a própria “violência doméstica”. Várias equipes
apontaram que falta capacitação para as pessoas da área jurídica, as quais atuam nos
Juizados (ou Varas) sem nenhuma formação na área. Segundo a fala do integrante de uma
das equipes: “falta na aplicação da lei um alinhamento conceitual, inclusive no que
constitui violência” (CNJ, 2018a: 234).
Reverberando o sentimento dessas equipes, durante as entrevistas com os
magistrados, apenas 4 (quatro) dos 24 (vinte e quatro) entrevistados declararam possuir
algum tipo de formação na área de gênero ou em violência doméstica. As respostas mais
próximas a algum tipo de capacitação foram generalistas, como podemos observar
abaixo:

17 Outra posterior pesquisa financiada pelo CNJ e executada pelo IPEA apontou para achados semelhantes: as
mulheres entrevistadas e profissionais da rede de enfrentamento à violência (fora do judiciário) indicaram
muitos problemas com a linguagem jurídica, seja nos instrumentos de comunicação e chamatórios ao
processo (como as intimações), seja quando as vítimas solicitam informações aos atores jurídicos, aqui
entendidos de forma ampla, como oficiais de justiça, estagiários, juízes, promotores, defensores, etc. Em
alguns casos, inclusive, chegou a se apontar que, até mesmo em momentos criados para informar as mulheres
em situação de violência do procedimento processual, constatou-se a utilização de linguajar próprio do
mundo jurídico inacessível às mulheres que participam do ritual (BRASIL, 2019)

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Olha, eu não tive nenhum curso em formação de gênero. Eu diria a você que
eu sou autodidata. (Juiz 1)
(CNJ, 2018a: 133)

Curso, curso, não. Nós temos eventualmente algumas palestras, feitas por
alguns outros doutos juízes ou outras pessoas da área, que a gente até assiste
e acompanha, mas curso especificamente, de violência de gênero, eu nunca
fiz e nunca participei. (Juiz 15)
(CNJ, 2018a: 133)

A maioria dos entrevistados informou que não foi exigido, por parte do tribunal
de origem, nenhuma formação específica para atuar ou continuar atuando em um Juizado
(ou Vara) especializado em violência doméstica contra a mulher 18.
Muito relacionada a essa ausência de capacitação dos magistrados, também
existiram relatos, por parte das equipes, sobre as dificuldades que os profissionais da área
jurídica têm na hora do depoimento da vítima. Existe, por vezes, uma ausência de
compreensão que a vítima está relatando uma situação de violência e, portanto, está
“trabalhando com uma memória traumática” (CNJ, 2018a: 234). E “essa memória não
vem de forma ordenada e controlada, é necessário tempo para a mulher ordenar o que
aconteceu e esse não é o tempo da audiência” (CNJ, 2018a: 234).
As vítimas estão relatando situações de dor, sofrimento e é muito comum que
as audiências ocorram muito tempo depois do fato. Não obstante, existiram narrativas de
várias equipes no sentido de que é comum a interrupção das falas das mulheres nas
audiências, bem como a reprodução da visão cultural, estereotipada da mulher. Com
efeito, em muitos casos, a vítima tem dificuldades no relato, ou, por vezes, se emociona e, em
momentos assim, é frequentemente reproduzida a ideia de que ela é descontrolada,
exagerada e/ou histérica19.
Outra dificuldade apontada por algumas equipes diz respeito à troca do
magistrado à frente do Juizado (ou Vara). Como a dinâmica de trabalho nesses Juizados
(ou Varas) é muito atrelada à forma de demandar do magistrado, a troca de juiz pode
alterar toda a estrutura de trabalho dessas equipes, já que não existe uma política
institucional, nem sequer na escolha dos magistrados que irão atuar nessa área. Segundo
uma das integrantes de uma das equipes pesquisadas: “A justiça é personificada na

18 Para uma reflexão mais aprofundada extraída das entrevistas com os próprios magistrados, vide Mello,
Rosenblatt e Medeiros (2018).
19 Achados semelhantes são apontados nos relatos de campo de Medeiros (2015), quando versa sobre o

tratamento dispensado às “Macabéias” na Vara de Violência Doméstica pesquisada.

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pessoa do juiz e não tem uma estrutura institucional. Então é muito comum torcermos que
venha um juiz tal que tem mais perfil para violência doméstica” (CNJ, 2018a: 234).
Nesse mesmo sentido, algumas equipes criticaram a existência de mutirões,
ocasiões em que chegam vários juízes, em sua maioria provindos de varas criminais
comuns e que não têm conhecimento das especificidades de uma lesão corporal ou de
uma ameaça, por exemplo, praticadas no âmbito da violência doméstica.
A falta de capacitação em gênero e/ou em violência doméstica ajuda a explicar
aquela dependência dos magistrados nas equipes multidisciplinares para a identificação
das situações em que se deve aplicar a Lei Maria da Penha (que leva à função de “triador”
discutida acima). Na verdade, essa ausência de formação pode acarretar muitos prejuízos
na individualização dos casos que chegam aos Juizados (ou Varas) de violência doméstica,
bem como no tratamento dispensado às partes, principalmente à vítima.

4.4 “As meninas”

Entrevistadora: A senhora entendeu o que se passou na audiência?


Entrevistada: Não.
Entrevistadora: [...] Aí depois conversou com o Defensor pra poder entender?
Entrevistada: Conversei com as meninas...
Entrevistadora: Ah! As meninas da equipe multidisciplinar. Certo. (Vítima_Maceió1)
(CNJ, 2018a: 175).

Um ponto que merece destaque é a qualificação das equipes multidisciplinares. A


maioria dos integrantes das equipes, como dissemos, são concursados dos respectivos
tribunais de justiça em que estão lotados, e poucos foram os casos em que os membros
das equipes eram cedidos por outros órgãos ou tribunais. A maioria dos integrantes
chegou ao setor por decisão do tribunal de justiça e, quase sempre, não tinham
experiência na temática. Em nenhum grupo existiram relatos de capacitação prévia dos
integrantes das equipes, mas praticamente todas as equipes procuraram se capacitar por
meio de cursos, pós-graduações (stricto e lato sensu) nas universidades e parcerias com a
Secretaria Nacional ou Estadual das Mulheres.
Mesmo com pouco estímulo por parte dos tribunais de justiça, a procura por
capacitação nas temáticas relevantes ao desenvolvimento do seu trabalho é enorme. Por
exemplo, dentre os integrantes das equipes pesquisadas, percebe-se uma alta titulação,
como realização de mestrado e doutorado na área de violência doméstica e/ou de gênero

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e da justiça restaurativa. Todavia, em praticamente todos os casos, essa qualificação foi


fruto de iniciativas individuais, que contaram (ou não) com o apoio da própria equipe e/ou
do magistrado. De fato, em quase todas as equipes, encontramos relatos sobre a pouca
ou nenhuma política de incentivo à capacitação das/os funcionárias/os das equipes
multidisciplinares pelos tribunais de justiça. Em alguns estados, o apoio aparece de forma
esporádica através de editais de capacitação, embora em geral de difícil concretização.
Além da busca pessoal por qualificação, em todas as equipes registramos a
prática de grupos de estudo, reuniões de avaliação e monitoramento das práticas
realizadas e, em alguns casos, tais reuniões abrangem equipes de outros Juizados (ou
Varas) e até de outras cidades para efeitos comparativos e aprimoramentos.
É interessante quando confrontamos a titulação e a experiência dos integrantes
dessas equipes nas temáticas relevantes à especialização do Juizado (ou Vara) com a
magistratura. “As meninas”, como são conhecidas as profissionais da equipe
multidisciplinar em algumas cidades pesquisadas, apresentam uma titulação maior do
que os “doutores” da área do direito, pelo menos no que diz respeito à magistratura que
também foi objeto da pesquisa.

4.5 “O grito do estagiário de Direito”

O relato de um estagiário de psicologia pontua que a indiferença dos


profissionais do Direito começa na sua própria formação, e ele contextualiza essa situação
com a realização do pregão: “A estagiária do Direito grita o nome da mulher, mesmo
quando ela é a única mulher que aguarda no espaço reservado às vítimas” (CNJ, 2018a:
235).
Essa fala é complementada por uma profissional de outra equipe:
[...] nós da psicologia precisamos nos apropriar de certos pontos da lei, mas
sinto que existem vários aspectos psicológicos e sociais sobre os quais os
juízes precisam se apropriar também. Nós sabemos que não podemos fazer
muita coisa se não nos apropriamos da lei, e acredito que os juízes também
precisam de outros conhecimentos (CNJ, 2018a: 235).

Novamente percebemos o problema da falta de capacitação dos atores do


sistema de justiça criminal, notadamente do profissional de direito. A triangulação de

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métodos20 realizada na pesquisa nos permitiu enxergar que essa falta de formação para
realizar atividades especializadas começa na própria delegacia (“das mulheres”) e segue
durante todo o processo penal. Realmente, relatos nesse sentido surgiram em todas as
etapas da pesquisa, trazidos não só pela vítima e pelas equipes multidisciplinares, mas
também pela própria magistratura (vide MELLO; ROSENBLATT; MEDEIROS, 2018).

4.6 O processo criminal, o processo de revitimização e um novo ciclo de violências

Entrevistadora: Então o primeiro contato foi com a equipe multidisciplinar


hoje?
Entrevistada: Isso.
Entrevistadora: E se sentiu satisfeita [com o processo]? Confortável?
Entrevistada: Com eles [equipe multidisciplinar], sim. Agora
a questão é que a gente não sabe de prazos, não sabe
quando vai vir uma resposta, onde a gente procurar, assim,
o andamento desse processo pra saber a resposta... isso aí
ninguém informa a você. (Vítima_Recife13)
(CNJ, 2018a: 173)

A problemática da revitimização, sobrevitimização ou vitimização secundária é


um fenômeno compreendido pelo “paradoxo da imposição de danos à vítima no próprio
processo penal” (ROSENBLATT, 2015b: 85)21. Um relato ouvido em vários grupos focais foi
que durante o processo criminal a mulher passa por vários momentos de revitimização.
Por exemplo, algumas equipes indicaram que a audiência pode ser “um momento muito
traumático para a vítima, pois além da dificuldade de compreensão do que significa
aquele momento, ela se sente culpada por levar sua família até a justiça criminal” (CNJ,
2018a: 217). Com efeito, uma preocupação comum a todas as equipes pesquisadas diz
respeito aos processos de “vitimização secundária” vividos pela mulher ao longo do seu
contato com o sistema de justiça criminal. E as equipes frequentemente atribuem esses
processos de sobrevitimização à corriqueira reprodução de estereótipos, em vários

20 Entendemos que a triangulação dos métodos e consequente combinação de vários métodos de pesquisa
(inclusive com a articulação de técnicas de análise quantitativa e qualitativa) permitiu que um método
ajudasse a controlar o outro; em outras palavras, a triangulação de métodos nos ajuda na monitoração dos
biases (NOAKS; WINCUP, 2006: 125; GOLDENBERG, 2004: 63-67).
21 A respeito das características da vitimização secundária, Rosenblatt (2015b: 87) afirma: “a vítima também

sofre ao longo do processo penal, dentre outras razões, porque: é muitas vezes destratada em Delegacias de
Polícia; tem sua participação no processo limitada às funções de informante; segue aflita por desconhecer
sobre o andamento do “seu” caso, e sobre os seus direitos enquanto vítima; raramente é atendida nas suas
expectativas de reparação de danos; dentre outras situações de desprezo vividas pela vítima que, vale
lembrar, também é protagonista na ocorrência criminosa”.

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setores e momentos processuais, que tendem a responsabilizar essa mulher pela


manutenção da família. Como colocado por um integrante de equipe multidisciplinar: “O
discurso da harmonia familiar, ele também permanece na delegacia, no Judiciário e até
em algumas perspectivas clínicas, colocando a mulher como a âncora desse
relacionamento” (CNJ, 2018a: 236).
Com relação ao momento da audiência, duas equipes apresentaram os
seguintes relatos (CNJ, 2018a: 237):

Nós acompanhamos muitos relatos de audiência em que as mulheres se


sentem muito mal durante aquele momento, se sentem invalidadas. Elas
saem culpabilizadas, saem chorando e precisamos fazer acolhimento. [...]
Perguntas frequentes na audiência são: o que você fez para acontecer essa
agressão?

Chegamos aqui com a ideia que vamos fazer um trabalho com a violência
doméstica que foi sofrida e de repente nos deparamos que as mulheres
depois da audiência estão tão sofridas pela violência que ela passou na
audiência, pois as mulheres são ouvidas inadequadamente e isso é muito
frustrante.

A demora no processo criminal também foi apontada, pela maioria das equipes,
como uma forma de revitimização, pois a vítima precisa retomar uma situação que ela
gostaria de esquecer. Nesse sentido, um membro de equipe disciplinar nos alertou para
a necessidade de se reconhecer a “demora do processo e a dificuldade dessa vítima, que
já sofreu tantas violências, em ter que falar de uma violência que sofreu três ou quatro
anos antes”. De fato, existem situações em que a demora da resposta é tanta que a vítima
já conseguiu resolver seu problema de outra forma e o processo se torna um fardo (CNJ,
2018a: 237).
Dessa forma, todas essas percepções das equipes multidisciplinares estão de
acordo com o que escutamos das próprias vítimas entrevistadas 22.

22Para uma abordagem mais detalhada sobre os processos de revitimização vividos pelas vítimas, sob a
perspectiva delas mesmas, vide Rosenblatt, Mello e Medeiros (2018).

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4.7 A delegacia como “porta de entrada”, a prisão como ameaça e as diferentes


demandas apresentadas pelas vítimas

Na maioria dos grupos focais, as equipes apontaram que, para ter acesso à rede,
a mulher precisa passar pela delegacia, pois “a delegacia continua sendo a porta de acesso
aos serviços de apoio à mulher” (CNJ, 2018a: 236). Com efeito, embora todas as equipes
pesquisadas reconheçam que a violência doméstica acontece em todos os níveis sociais,
elas afirmam que são as mulheres com baixa renda as que mais procuram a delegacia,
pois geralmente, para elas, “essa é a única porta oferecida [pelo Estado] como forma de
resolução dos seus conflitos domésticos” (CNJ, 2018a: 236). Nesse mesmo sentido, uma
das equipes fez a seguinte afirmação: “A maioria das mulheres que chega à equipe
multidisciplinar tem raça e classe determinadas”, embora essa equipe também tenha
destacado que o problema da violência doméstica perpassa por todas as classes sociais e
reforçado que só pode falar das mulheres que chegam ao setor multidisciplinar e não ao
Juizado (ou Vara) (CNJ, 2018a: 236).
Esse diagnóstico por parte das equipes sobre o perfil socioeconômico das
mulheres vítimas de violência doméstica que buscam o sistema de justiça criminal e
trafegam nos Juizados (ou Varas) pôde ser confirmado na etapa quantitativa da pesquisa
(ROSENBLATT; MELLO; MEDEIROS, 2018). Realmente, o acesso à rede de assistência, ou
simplesmente, a uma separação do companheiro, é um problema das mulheres de baixa
renda, pois na maioria das cidades pesquisadas continua sendo mais fácil acessar as
delegacias do que as defensorias públicas. As mulheres que se encontram em situação de
violência, quando procuram algum auxílio, é porque necessitam urgentemente de algum
meio que possa fazer cessá-la de imediato. Aquelas mais independentes e que possuem
recursos financeiros, têm a possibilidade de sair de casa e procurar ajuda em outras
instâncias, que não a penal, ao lado de psicólogos, grupos de apoio, hospitais particulares
ou, até mesmo, o auxílio de outros familiares (MELLO, 2015: 232). “Para as mulheres
pertencentes às parcelas mais carentes da sociedade e dependentes financeiramente do
companheiro, entretanto, o Estado só disponibiliza o aparato policial, totalmente
despreparado para acudi-las” (MEDEIROS, 2015: 56).
No que se refere especificamente às demandas apresentadas pelas vítimas
durante os atendimentos, as equipes destacaram a vontade da mulher de interromper o

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processo penal. Na opinião de várias equipes, são muitas as vítimas que não desejam o
processo penal pelo fato de o autor da violência fazer parte de sua família, e, na maioria
dos casos, ser pai dos seus filhos. Algumas equipes compartilharam como corriqueira a
seguinte fala por parte das vítimas atendidas: “Eu não quero prejudicar ele, pois ele é um
bom pai” (CNJ, 2018a: 238). O registro da ocorrência na delegacia, defendem essas
equipes, está mais relacionado à busca da mulher por “proteção” e à expectativa de impor
“limites” ao agressor – e as medidas protetivas comumente cumprem esse papel. Quer
dizer, segundo testemunho das equipes, para um grupo marcante de vítimas atendidas,
as medidas protetivas são sentidas como suficientes e satisfatórias às suas necessidades.
Na verdade, todas as equipes destacaram a importância da medida protetiva
como principal instrumento introduzido pela lei. Uma das equipes afirmou que a medida
protetiva “é um instrumento de responsabilização para o agressor e um empoderamento
à vítima” (CNJ, 2018a: 239). Para outra equipe, a medida protetiva poderia resolver a
maioria dos conflitos sem a necessidade sequer do processo criminal, pois é comum que
a medida protetiva já tenha interrompido o ciclo da violência, “então esse processo chega
e coloca todos, e não só o autor da violência, em um processo de culpabilização” (CNJ,
2018a: 238).
A “paz” também foi uma resposta recorrente das equipes quando perguntadas
sobre o que as vítimas desejam quando procuram a delegacia e, por via de consequência,
chegam ao Juizado (ou Vara) de Violência Doméstica. Nas palavras de um integrante: “elas
querem paz” (CNJ, 2018a: 238). Essa busca por paz, explicou-se nos grupos focais,
desemboca numa expectativa por parte da vítima de que haja mudança no
comportamento do autor da violência, o que não necessariamente implica na necessidade
de sua prisão. Nesse sentido, segundo o integrante de uma das equipes, “a prisão é uma
exceção nos meus atendimentos, a maioria das mulheres deseja a paz”. O que foi
corroborado pelos seus colegas (CNJ, 2018a: 238).
De fato, quando a temática foi a pena privativa de liberdade, as equipes
afirmaram que as vítimas, em sua maioria, não desejam a prisão (provisória ou definitiva)
do agressor. Para a maioria das equipes, uma grande parte das vítimas atribui
principalmente ao álcool e às drogas ilícitas o desencadeamento dos conflitos domésticos
e, nessas hipóteses, quando não estão buscando medidas protetivas, a principal demanda
é pelo tratamento do autor da violência para que o mesmo deixe de usar essas

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substâncias, mas não pela sua punição. Nessa mesma linha, outra equipe compartilhou o
entendimento de que a prisão não deve ser aplicada na maioria das situações que chegam
ao seu conhecimento, pois pode piorar a situação da vítima. Um dos integrantes lembrou:
“um dia ele vai ser solto”. Por compreender que a passagem do agressor pelo sistema
prisional pode gerar muitas consequências à vítima e à sua família, essa mesma equipe
entende que outras modalidades de pena podem responsabilizar o homem e, ao mesmo
tempo, ser menos traumática para a família (CNJ, 2018a: 238).
A ideia de usar a prisão como ameaça surgiu em alguns momentos. Para uma
parte dos integrantes das equipes, a pena privativa de liberdade é necessária, “pois
estamos vendo o aumento dos casos de feminicídio”, ou ainda, “a ‘ameaça’ da prisão
ainda é muito importante para interromper o ciclo da violência e também para a
‘mudança’ de comportamento do homem agressor” (CNJ, 2018a: 238). Mesmo para
esses, são poucos os casos em que as vítimas, elas mesmas, demandam a pena privativa
de liberdade.
As impressões das equipes sobre o que buscam as vítimas dialogam diretamente
com as respostas que recebemos das próprias vítimas nas entrevistas que realizamos com
elas (ROSENBLATT; MELLO; SALAZAR, 2018).

4.8 Grupos reflexivos para “homens criminosos”

A maioria das equipes pesquisadas trabalha com grupos reflexivos para homens,
e aquelas que ainda não trabalham estavam, ao tempo da pesquisa, elaborando projetos
para começar a desenvolver essa atividade. As equipes, de uma maneira geral, entendem
a importância desse espaço de fala para os homens. Segundo elas, nos grupos reflexivos,
ocorrem vários desabafos por parte deles “no sentido de se sentirem injustiçados pelas
medidas aplicadas” e/ou por não terem “espaço de fala, nem na delegacia, nem no
Judiciário” (CNJ, 2018a: 240). Segundo uma das equipes, “os homens sentem muita
necessidade de falar, pois eles constantemente se vitimizam afirmando que não existe
lugar para eles no processo”.
Os relatos das equipes sobre as falas dos homens foram muito parecidos, em
todas as cidades, de norte a sul: “não existe espaço para nossa fala”; “somos vítimas de
uma lei”; “precisamos agora da lei João Maria”; “cadê a Lei Mário da Penha?”; “agora as

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mulheres querem nos ver de saia”; entre tantas outras falas, que demonstram a falta de
percepção da violência produzida por eles. De fato, um sentimento comum entre as
equipes é de que grande parte dos homens ainda não consegue entender que os seus
atos são criminosos.
Ocorre que muitos dos homens que frequentam os grupos reflexivos,
independentemente da classe social a que pertençam, nunca estiveram em uma delegacia
antes. Muitas vezes, eles ainda convivem com a vítima depois de vários episódios de
agressão. Se entendem “trabalhadores honestos”, “pais de família”, “cumpridores dos
seus deveres”. Quase todos são primários para o sistema penal, pois nunca foram
condenados com trânsito em julgado por um crime ou contravenção, mesmo que não
tenha sido a primeira vez que a vítima foi agredida moral ou fisicamente por eles. As
violências narradas nos Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica, para além de
condutas típicas, fazem parte do dia a dia das pessoas e podem até gerar certa
familiaridade entre os agentes do Sistema de Justiça Criminal, independentemente do
gênero e da classe social. O fato de encontrarmos no réu um “pai de família” ou “um
trabalhador” torna difícil encontrar nesse homem a condição de criminoso e,
consequentemente, torna ilegítima, quase que automaticamente, a condição da vítima
(VALENÇA; MELLO, 2020: 1243).
Para tornar o lugar de vítima legítimo, parece necessário que, durante o processo,
o homem passe da condição de “pai de família”, de “trabalhador” à de “bandido”. Para
tanto, o Ministério Público e o Judiciário demandam que a mulher colabore no processo
de desumanização do seu companheiro ou ex-companheiro, que na maioria dos casos é
também o pai dos seus filhos. Quando esse processo não acontece, parece que o homem
passa a ocupar o lugar de vítima e a mulher passa a ser a algoz, que levou “o pai de seus
filhos” para a delegacia. Todas essas particularidades demandam uma atenção especial
nos casos de violência doméstica para minorar os processos de revitimização da mulher.
Em pesquisa sobre as audiências de custódia realizada na cidade do Recife,
encontrou-se a realização de “sermões” por parte da magistratura quando os juízes se
deparavam com casos de violência doméstica:

[...] se acabou, por que o senhor ainda está nessa? É a segunda vez que ela foi
na delegacia. Eu tô pensando em prender o senhor, então pare. Eu já prendi
um rico, de posse, com advogado... Vai virar bandido a pulso, é isso que o

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senhor quer? Então pare. Se tiver chance, vai ficar com a tornozeleira
eletrônica... E acabou, acabou. Deixa ela em paz. Não tem mais isso de porque
ela é mulher, e você, homem. Ninguém manda em ninguém. Tem isso mais
não. Ali onde você dormiu são as flores, cinco estrelas (VALENÇA; MELLO,
2020: 1266).

O “Vai virar bandido a pulso” sugere que o problema não é apenas de auto
percepção, mas também de como o Sistema de Justiça Criminal percebe o réu da violência
doméstica. Segundo as pesquisadoras:

A agressão, a ameaça, a “surra” são condenáveis, sem dúvidas, mas ainda não
constituem “coisa de bandido”. Suspeitamos que um “traficante” reúne
socialmente estereótipos muito mais negativos que um “agressor de mulher”,
não raramente visto como alguém que escorregou, mas que não é
propriamente um criminoso (VALENÇA; MELLO, 2020: 1266).

Os grupos reflexivos, portanto, são vistos pelas equipes multidisciplinares, de


um modo geral, como uma oportunidade de educar esse homem sobre a natureza
criminosa de suas ações, como na seguinte fala:

Eu fico ambivalente com relação ao aprisionamento, pois é necessário


trabalhar a questão cultural, pois existem muitos relatos dos homens que não
acreditam que o que eles fizeram era violência, até que chegaram na
delegacia e no Judiciário e começaram a entender que o que estavam fazendo
era errado (CNJ, 2018a: 238).

Da mesma fala podemos extrair outro dado: ainda que os grupos reflexivos
tentem quebrar a lógica de uma resposta violenta nos casos que envolvem violência
doméstica, existe resistência por parte de algumas equipes de afastar a pena, inclusive a
privativa de liberdade, nos casos levados aos Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica.
Isso, na prática, significa que os grupos reflexivos ocorrem em paralelo ao processo e/ou
são adicionados à punição. No máximo, a consequência da participação desses homens
no grupo pode acarretar, em caso de condenação, que esse homem tenha uma atenuação
na pena.

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5. Sobre a possibilidade de pensar em outros caminhos

A pesquisa no qual se baseia o presente artigo aconteceu em meio a um movimento do


CNJ – ainda em curso – de estímulo à chamada “Justiça Restaurativa”. À época da
pesquisa, o CNJ já havia expedido duas Resoluções de incentivo a práticas de Justiça
Restaurativa – a Resolução n. 125/2010 (que prevê a introdução das práticas de Justiça
Restaurativa no sistema de justiça brasileiro) e a Resolução n. 225/2016 (que cria a
“Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário”). Outro sintoma
desse interesse do CNJ foi o fato de o seu Departamento de Pesquisas Judiciárias incluir
chamada para duas pesquisas na área restaurativa no edital da 2ª Edição da Série “Justiça
Pesquisa”23. Além disso, logo depois de findada a pesquisa, embora ainda não dialogando
diretamente com os resultados da mesma, o CNJ manifestou apoio ao uso de práticas de
Justiça Restaurativa especificamente em casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, emitindo recomendação aos Tribunais de Justiça por meio da “Carta da XI
Jornada da Lei Maria da Penha”, resultante de jornada de mesmo nome, realizada em
Salvador (BA), em agosto de 2017.
O apoio do CNJ à Justiça Restaurativa (ainda presente24) não surpreende diante
dos benefícios desse paradigma de justiça, já experimentados em outros países,
amplamente relatados na literatura e reconhecidos pela própria Organização das Nações
Unidas (ONU)25. Com efeito, já são muitos os estudos empíricos, mundo afora, sugerindo
que: o índice de satisfação das vítimas que participam de encontros restaurativos é alto e
tem sido consistente em todos as localidades, culturas e independentemente da
gravidade do crime; os processos restaurativos criam espaços reais para a vítima falar e
ser ouvida dentro do processo de resolução do “seu” próprio conflito, levando a vítima a
experimentar, mais facilmente, o sentimento de “justiça procedimental”; o diálogo com
“seu” infrator permite que vítimas tenham respondidas perguntas que lhes são
importantes, inclusive na tentativa de “passar a página”; por tudo isso, as vítimas tendem
a se sentir empoderadas ao longo e em decorrência do processo restaurativo; a lógica

23 De fato, além da pesquisa coordenada pelas autoras do presente artigo, foi realizada outra no mesmo
período, de mapeamento de práticas de justiça restaurativa no Judiciário nacional, essa coordenada pela
professora Vera Regina Pereira de Andrade (CNJ, 2018b).
24 Sobre esse interesse corrente e (talvez) crescente do CNJ na Justiça Restaurativa, vide as Considerações

Finais do presente artigo.


25 Vide, por exemplo, o Manual da ONU sobre Programas de Justiça Restaurativa (UNODC, 2020).

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menos formal e dialogal de resolução de conflitos tende a criar um ambiente propício e


seguro para se discutir conflitos subjacentes ao delito, às vezes mais importantes para as
partes do que o próprio crime reportado à polícia; ao invés de receber passivamente uma
punição, o infrator é chamado a assumir as consequências de suas ações através da
reparação dos danos provocados à vítima; e, não obstante as dificuldades metodológicas
para afirmar isto, até algum impacto nos índices de reincidência tem sido reportado na
literatura a partir de pesquisas empíricas de avaliação de programas de justiça
restaurativa.26
Considerando esse movimento do CNJ, incluímos o tema restaurativo em todos
os instrumentos de coleta de dados qualitativos da pesquisa. Isto é, perguntamos sobre
Justiça Restaurativa aos juízes e às vítimas entrevistadas, bem como por ocasião dos
grupos focais realizados27.
Nos grupos focais, quando a temática foi Justiça Restaurativa, ficou claro que
esse não é um assunto confortável para a maioria das equipes. Em algumas equipes foram
encontrados integrantes que realizaram cursos, especializações, e até mestrado e
doutorado na temática. Porém, também foram encontrados integrantes que tinham
apenas uma pequena noção conceitual, que não os preveniu, por exemplo, de associar a
Justiça Restaurativa à “conciliação” ou “às drogas” (nesse último caso, a confusão pareceu
ser em relação aos limites entre as Justiças Restaurativa e Terapêutica 28). Existiram outros
integrantes, mas nesse caso muito pouco representativos, que não sabiam atribuir
qualquer significado à Justiça Restaurativa. Duas das equipes afirmaram que o assunto
justiça restaurativa nunca tinha sido pauta da equipe. Uma das integrantes afirmou:
“justiça restaurativa ainda não chegou por aqui” (CNJ, 2018a: 244). Embora essas duas
equipes nunca tenham discutido sobre a temática em grupo, alguns de seus integrantes
afirmaram ter alguma leitura sobre o assunto.
Se existe divergência quando o assunto é Justiça Restaurativa, a polêmica é
ainda maior quando se associam Justiça Restaurativa e Violência Doméstica. Para alguns

26 Para uma explicação acerca desses possíveis benefícios, inclusive com referência a estudos que chegaram
a tais resultados, vide Rosenblatt (2015a). Para uma lista tentativa dos possíveis benefícios e também riscos
do uso de práticas de Justiça Restaurativa no específico caso da violência doméstica, vide CNJ (2018a).
27 As reflexões completas a respeito do tema podem ser encontradas no Relatório Final da pesquisa (CNJ,

2018a). Para uma versão resumida sobre as falas e impressões de juízes e vítimas a respeito, vide,
respectivamente, Mello, Rosenblatt e Medeiros (2018) e Rosenblatt, Mello e Medeiros (2018).
28 Acerca dos limites entre essas “justiças”, vide Achutti (2009).

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integrantes das equipes, seria “impossível aplicar justiça restaurativa em situações de


violência doméstica” (CNJ, 2018a: 243). Outros apontaram que não conseguem
compreender a aplicação da Justiça Restaurativa nos casos de violência doméstica por
conta da proximidade entre as partes.
Outro tema polêmico que surgiu em um dos grupos focais foi a chamada
“Constelação Familiar”. Existiu uma grande divergência entre essa equipe, não apenas
sobre a possibilidade desse método ser considerado Justiça Restaurativa, como também
se a “Constelação Familiar” é reconhecida pela psicologia como uma prática terapêutica.
Apenas duas equipes mencionaram aplicar Justiça Restaurativa em casos bem
específicos de violência doméstica. Nessas hipóteses, os casos são selecionados pelo juiz
e, geralmente, versam sobre situações que envolvam mãe e filho ou filha e pai. Nesses
poucos casos, foi utilizada a metodologia de círculos, com a realização de pré-círculos,
círculos e pós-círculos. As duas equipes entenderam que o resultado foi positivo embora,
em todos os casos, não existiu nenhuma influência no processo criminal que continuou
tramitando normalmente.
Uma dessas equipes que disse aplicar a Justiça Restaurativa, nessas situações bem
pontuais, expressou que não entende os grupos reflexivos como Justiça Restaurativa, mas
sim práticas restaurativas, muito embora a mesma equipe (na verdade, a maioria das
equipes) não conseguiu fazer a distinção entre Justiça Restaurativa e práticas
restaurativas. Chocando com esse entendimento, outra equipe disse acreditar que,
dentre as atividades realizadas no Juizado (ou Vara), as que mais se aproximariam de uma
prática restaurativa seriam os grupos reflexivos realizados tanto com as mulheres, quanto
com os homens.
De um modo geral, os integrantes das equipes multidisciplinares consideram
não ter capacitação para trabalhar com a Justiça Restaurativa e demonstram um grande
receio que essas práticas sejam impostas “de cima para baixo”, sem preparo das pessoas
que vão aplicar. Em algumas equipes foram encontradas falas preocupadas, como esta:
“a justiça restaurativa está vindo de cima para baixo, como uma imposição do Tribunal”
(CNJ, 2018a: 243). De fato, a maioria das equipes apontaram uma preocupação de que a
Justiça Restaurativa seja uma imposição por parte do CNJ, sem capacitação dos atores e
sem a análise de em quais situações ela realmente pode ser aplicada. Temendo os

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caminhos que essa possível “imposição” pode tomar, um outro integrante concluiu ser a
Justiça Restaurativa “mais um modismo” (CNJ, 2018a: 243).

6. Considerações finais

O tratamento desrespeitoso à mulher vítima de violência doméstica é tema no país pelo


menos desde a criação das delegacias especializadas na década de oitenta. Mas se a
história nos ensina, e ela o faz, a criação de um lugar com placa de “especializado” não é
suficiente para atender às necessidades das vítimas de crime nem para humanizar a
administração de conflitos tão complexos porque tão relacionais quanto a violência
doméstica, ainda mais quando essa está entrelaçada à violência de gênero. Para que um
lugar especializado realmente o seja, são necessários os “especialistas”. O que a nossa
pesquisa sugere, entretanto, e por diversos ângulos29, é a falta de capacitação dos atores
do sistema de justiça criminal, nomeadamente daqueles de formação jurídica, para lidar
com as idiossincrasias de um Juizado (ou Vara) onde vítima e réu, muitas vezes, não estão
(e/ou não se veem) em polos diametralmente opostos – ou, simplesmente, onde os casos
não conseguem se encaixar nos recortes dicotômicos da realidade, convencionalmente
feitos pelo processo penal.
A aposta da Lei Maria da Penha nas equipes multidisciplinares nos parece
acertada, dentre outras razões mais óbvias, porque é principalmente a presença desses
profissionais de fora do “mundo jurídico” que, hoje, mais de uma década depois, garante
algum grau de especialidade aos Juizados (ou Varas). Com esse tempo de experiência, o
óbvio seria encontramos um lugar (ainda mais) especializado (do que em sua origem). O
que os dados empíricos indicam, entretanto, é que, dentro daqueles espaços
tentativamente multidisciplinares, existe um “mundo jurídico” irradiante. Irradiante
porque, mesmo depois de tantos anos, é muitas vezes incapaz de absorver a
multidisciplinariedade do qual seria apenas uma parte. E irradiante porque invasivo,
impondo suas lógicas, linguagens e conceitos enquanto se fecha aos ensinamentos que

29 Isso é, do ponto de vista dos próprios magistrados, das vítimas e das equipes multidisciplinares (CNJ, 2018a;

MELLO, ROSENBLATT e MEDEIROS, 2018; ROSENBLATT, MELLO e MEDEIROS, 2018).

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vêm “de fora” – “essas questões de gênero”, ouvimos de magistrados, “são de


responsabilidade das equipes multidisciplinares”.
Com efeito, o testemunho de algumas equipes foi no sentido de (por vezes) se
sentirem decidindo sobre competência jurisdicional e/ou dedicando mais tempo ao
processo penal formal às expensas de mais tempo de qualidade no atendimento às partes
ou, por exemplo, na criação e implementação de programas de acolhimento e/ou
acompanhamento dessas pessoas. Isso nos diz muito sobre como esse “mundo jurídico”
é capaz de invadir outros “mundos” enquanto mantém as suas próprias fronteiras
lacradas. De fato, os Juizados (ou Varas) pesquisados funcionam ainda muito amarrados
à lógica, não apenas retributiva-punitiva, mas também generalista. A sugestão empírica é
de que os Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ainda
não se especializaram em temáticas próprias do trabalho que ali precisa ser realizado, à
exceção dos esforços mais evidentes de membros das equipes multidisciplinares. E, se é
verdade que as equipes pesquisadas tenham buscado se especializar, também é verdade
que essa busca ainda é muito dependente do esforço pessoal de cada um e tem pouco
(ou nada) a ver com realizações institucionais conscientes da imprescindibilidade desse
caminho.
A falta de capacitação para trabalhar com complexas questões de gênero, por
um lado, é evidenciada na manutenção de estereotipagens (seja sobre quem é um
“verdadeiro bandido” ou uma “vítima merecedora” de escuta e atenção) e, por outro
lado, evidencia um outro problema, igualmente complexo: os engessamentos próprios da
nossa cultura jurídica, entendida da forma mais abrangente possível, de modo a também
incluir a nossa educação jurídica. Com efeito, a “linguagem jurídica” e o “grito do
estagiário do direito” nos sinalizam um grave problema na formação das pessoas da área
jurídica, problema que não pode ser tratado como adendo em projetos de reforma, mas
sobre o qual precisamos refletir e agir.
Como dito, o movimento do CNJ, ainda hoje, continua sendo de promoção do
uso de práticas de justiça restaurativa, inclusive na seara da violência doméstica. Por
exemplo, no final de 2019, o CNJ aprovou o chamado “Planejamento da Política Pública
Nacional de Justiça Restaurativa”30, etapa importante do que vem sendo chamado de

30As versões completa e resumida do referido planejamento podem ser encontradas no sítio eletrônico do
CNJ, em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/justica-restaurativa/planejamento-da-politica-publica-
nacional-de-justica-restaurativa/. Acesso em: 16 dez. 2020.

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“segundo movimento” ou “segunda onda” do CNJ no âmbito da Justiça Restaurativa. A


“primeira onda” corresponde aos esforços empreendidos até a aprovação, em 2016, da
Resolução CNJ n. 225 – quer dizer, ao trabalho de construção e promulgação de um marco
normativo para uma tal política pública voltada à absorção da Justiça Restaurativa pelo
Poder Judiciário. Por seu turno, a “segunda onda” começou com a inauguração dos
trabalhos do Comitê Gestor da Justiça Restaurativa do CNJ (previsto na mencionada
Resolução) no sentido de concretização dessa política.
Muito embora o documento que apresenta o “Planejamento da Política Pública
Nacional de Justiça Restaurativa” não faça qualquer referência a pesquisas anteriormente
realizadas, nem sequer a pesquisas financiadas pelo próprio CNJ, os autores da proposta
parecem bem informados sobre a sensação generalizada dos atores do sistema de justiça
de que o movimento do CNJ de promoção da Justiça Restaurativa estava ocorrendo de
“cima para baixo”31. De fato, em várias passagens do documento, é feita a ressalva de que
o planejamento não objetiva impor “de cima para baixo” a adoção de certas práticas ou
de determinadas estruturas organizacionais ou de um único projeto pedagógico de
formação em Justiça Restaurativa.
O documento também repete diversas vezes a intenção do CNJ de desenvolver
a Justiça Restaurativa coletivamente, em diálogo com os mais diversos setores da
sociedade civil, com outras instituições públicas e privadas, inclusive com universidades,
para que a implementação e o funcionamento de programas de Justiça Restaurativa “seja
resultado de uma construção coletiva comunitária”32. Apesar dessa promessa, até agora,
os grupos de trabalho formados para a preparação de minutas de resoluções e do próprio
documento de planejamento, bem como o evento realizado para a aprovação desse
documento33, todos esses momentos-chave do movimento restaurativo nacional
parecem ter contado com a participação exclusiva de juízes. De fato, aparentemente, o
movimento preferido permanece sendo de dentro (do Judiciário) para fora:

31 Esse dado não apareceu apenas na pesquisa coordenada pelas autoras do presente artigo, mas também
naquela outra, de mapeamento do movimento restaurativo nacional no âmbito do Poder Judiciário (CNJ,
2018b).
32 As transcrições aspeadas foram retiradas da versão completa do referido planejamento, que pode ser

encontrado no endereço eletrônico informado na nota de rodapé n. 30, mas o documento não possui número
de páginas, daí por que a falta de menção a elas.
33 No I Seminário sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa do CNJ, realizado em Brasília, nos dias 17 e

18 de junho de 2019.

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[...] os Tribunais e Juízes, para além de desenvolverem a Justiça Restaurativa


na ambiência do próprio Judiciário, trabalhando os conflitos judicializados por
meio de práticas restaurativas, também exercem um importante papel de
disseminação dos valores e princípios restaurativos às demais instituições e
à sociedade como um todo. (sem destaque no original)

O destacado não é um problema em si. Queremos chamar atenção, tão-


somente, para os riscos de uma cultura jurídica corrente – que precisa ser desafiada – de
criação de “mundos jurídicos irradiantes” dentro de ambientes que precisam ser
investidos, verdadeiramente, dos caráteres “interinstitucional” e “interdisciplinar”
(previstos no art. 3º da Resolução CNJ 225/2016).
A importância de capacitação, treinamento e atualização permanente do
magistrado e de outros servidores nas técnicas e métodos próprios da Justiça Restaurativa
também é uma preocupação evidenciada em diversas páginas do documento de
planejamento. Mas, assim como a promessa de trabalhar coletivamente, num movimento
de mão dupla (de dentro pra fora e de fora pra dentro), esse compromisso com a
capacitação precisa sair do papel. Além do olhar para o futuro, portanto, é necessário um
olhar para o passado, um olhar crítico que traga explicações sobre o porquê, por exemplo,
de os Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica, dez anos depois, não serem lugares
(ainda mais) especializados – ou o serem, em algum medida, mais notadamente graças
aos esforços individuais de profissionais de formação não-jurídica. Finalmente, portanto,
é necessário um olhar crítico para o presente da nossa cultura jurídica e da nossa
educação jurídica. Se esses olhares forem eclipsados pelo olhar para o futuro,
arriscaremos transformar boas intenções e muito trabalho para concretizá-las em mais
uma excelente ideia de reforma que não será verdadeiramente experimentada pela
clientela do Sistema de Justiça Criminal.

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http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2020/50471.

Sobre as autoras

Marilia Montenegro Pessoa de Mello


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestra em
Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Professora da Graduação e
da Pós-graduação da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professora da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pesquisadora do Grupo Asa Branca de
Criminologia. E-mail: marilia.montenegro@unicap.br/marilia.pmello@ufpe.br

Fernanda Cruz da Fonseca Rosenblatt


Doutora em Direito pela Universidade de Oxford (Reino Unido), Mestra em Direito
pela Universidade Católica de Leuven (Bélgica), Professora da Graduação e da Pós-
Graduação da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professora do
International Institute for Restorative Practices (Estados Unidos) e Pesquisadora do
Grupo Asa Branca de Criminologia. E-mail:
fernanda.rosenblatt@unicap.br/ffrosenblatt@iirp.edu

Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros


Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestra
em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professora da
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e Pesquisadora do Grupo Asa Branca
de Criminologia. E-mail: carolina.salazar@unicap.br

As autoras contribuíram igualmente para a redação do artigo.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.608-641.
Marilia Montenegro Pessoa de Mello, Fernanda Cruz da Fonseca Rosenblatt e Carolina Salazar
l’Armée Queiroga de Medeiros
DOI:10.1590/2179-8966/2020/57098| ISSN: 2179-8966
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Os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e os


horizontes possíveis a partir da Justiça Restaurativa:
influxos abolicionistas em tempos de expansão punitiva a
partir da extensão acadêmica
The 30th anniversary of the Statute for Children and Adolescents and the possible
perspectives from Restorative Justice: abolitionist inflows in times of punitive
expansion based on academic extension programs

Ellen Rodrigues¹
¹ Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
ellen.rodriguesjf@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6952-7765.

Artigo recebido em 15/01/2021 e aceito em 10/02/2021.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.642-686.
Ellen Rodrigues
DOI:10.1590/2179-8966/2020/57201| ISSN: 2179-8966
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Resumo
O presente trabalho visa refletir sobre o sistema da Justiça Juvenil no Brasil na ocasião
dos 30 anos de aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/1990). Não
se limitando a análises meramente tecnicistas, o estudo busca destacar aspectos de
como a realidade atual foi construída ao longo dos processos históricos e político-
criminais, do período colonial à contemporaneidade. Ademais, o presente estudo
apresenta possibilidade de aplicação da Justiça Restaurativa no âmbito da Justiça
Juvenil, mesmo diante do cenário de expansão punitiva que marca a presente quadra
histórica. Do ponto de vista teórico, o recorte aqui estabelecido privilegia a pesquisa
bibliográfica, com destaque para autores como Zehr 1, Dünkel; Horsfield & Păroşanu 2,
Achutti3, entre outros. Não obstante, o trabalho conta com abordagem empírica através
da qual são relatadas as ações restaurativas realizadas no âmbito do programa de
extensão acadêmica NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais da
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora), através do projeto Além
da Culpa: Justiça Restaurativa para adolescentes, desenvolvido em parceria com a
defensoria pública local. Tal proposta metodológica propõe destacar destaca como a
Justiça Restaurativa vem sendo desenvolvida na prática, seus desafios, perspectivas e
compromisso com práticas libertárias.
Palavras-chave: 30 anos do ECA; Evolução histórica; Política-criminal, Justiça
Restaurativa.

Abstract
This paper aims to reflect on Brazil's Youth Justice system on the occasion of the 30th
anniversary of the Statute for Children and Adolescents' approval (Federal Law No.
8069/1990). Not limited to purely technical analysis, the study seeks to highlight aspects
of how the current reality was constructed throughout the political-criminal and
historical processes, from the colonial period to contemporary times. Besides, this study
presents the possibility of applying Restorative Justice within the scope of Youth Justice,
even in the face of the punitive expansion scenario that indicates the present historical
period. From a theoretical perspective, the focus established in this paper favors

1 ZEHR, 2012; 2015; 2017.


2 DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015.
3 ACHUTTI, 2013; 2016.

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bibliographic research, emphasizing authors such as Zehr 4, Dünkel; Horsfield &


Păroşanu5, Achutti6, among others. Nevertheless, the study relies on an empirical
approach through which restorative actions, carried out within the scope of the
academic extension program NEPCrim (Extension and Research Unit in Criminal
Sciences, Faculty of Law, Federal University of Juiz de Fora), are reported through the
project Além da Culpa: Justiça Restaurativa para adolescentes [Beyond Guilt: Restorative
Justice for teenagers], developed in partnership with the local Public Defender's Office.
This methodological proposition intends to highlight highlights how Restorative Justice
has been developed in practice, its challenges, perspectives, and commitment to
libertarian practices.
Keywords: 30 years of ECA [Statute for Children and Adolescents]; Historical evolution,
Criminal Justice Policy; Restorative Justice.

4 ZEHR, 2012; 2015; 2017.


5 DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015.
6 ACHUTTI, 2013; 2016.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.642-686.
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1. Introdução

Em julho de 2020 foram lembrados, em todo o país, os 30 anos do Estatuto da Criança e


do Adolescente - Lei 8069/1990 (doravante ECA). De norte a sul da nação foram
realizadas sessões solenes pelos órgãos de cúpula dos estados municípios e também do
governo federal. Diante do contexto de pandemia causado pelo novo Coronavírus, não
foi possível a realização de eventos presenciais, mas diversas foram as atividades
realizadas através de plataformas virtuais, como, por exemplo, o curso promovido pelo
Conselho Nacional de Justiça, em parceria com Conselho Nacional de Justiça, o Conselho
Nacional do Ministério Público, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Ministério
da Cidadania, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a Frente
Parlamentar Mista da Primeira Infância, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e
do Adolescentes – Conanda, a Andi – Comunicação e Direitos, a Associação Brasileira de
Magistrados da Infância e da Juventude, o Colégio Nacional dos Defensores Públicos
Gerais, o Colégio das Coordenadorias da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça, a
Fundação Abrinq, o Instituto Alana, o Instituto Brasileiro da Criança e do Adolescente, a
Rede Nacional Primeira Infância e o Unicef Brasil, em parceria com o Pacto Nacional pela
Primeira Infância e o Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estimulo à
Aprendizagem, promoveu um congresso digital sobre o tema. O evento teve o intuito de
debater as dificuldades e os novos desafios que envolvem a efetiva implementação do
ECA, o congresso digital pretendeu reunir profissionais de todas as áreas, pais, mães e
cuidadores de crianças e adolescentes e a sociedade como um todo 7.
Na Câmara dos Deputados, a Frente Parlamentar Mista de Promoção e Defesa
dos Direitos da Criança e do Adolescente promove hoje o ato virtual "ECA 30 anos: Uma
luta histórica em defesa das crianças e adolescentes". Antes da fase de debates,
representantes da sociedade civil entregaram ao presidente da Câmara uma carta
aberta assinada por diversas entidades da sociedade civil, frentes parlamentares e
conselheiros tutelares, na qual constam denúncias sobre retrocessos no panorama das
políticas voltadas à infância e juventude no Brasil. Segundo informado pelo órgão, o
documento enfatizou as lacunas na garantia de direitos em áreas como saúde,

7 Mais informações disponíveis em: https://www.cnj.jus.br/agendas/congresso-digital-dos-30-anos-do-


estatuto-da-crianca-e-do-adolescente/. Acesso em: 24 jul. 2020.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.642-686.
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educação, combate ao trabalho infantil, enfrentamento à violência sexual, de crianças e


adolescentes de povos e comunidades tradicionais ocorridas nos últimos anos8.
Já no Senado Federal, o senador Fernando Collor (Pros-AL) lembrou que era o
presidente da República na época da promulgação da lei (embora não tenha destacado
o processo de impeachment sofrido por ele em 1992). Collor destacou que nos dias 29 e
30 de setembro de 1990 participou, com outros 30 presidentes e chefes de Estado, da
Cúpula Mundial das Nações Unidas para a Infância, realizada em Nova York, nos Estados
Unidos, já com a lei sancionada. Para o senador, a “solução é mais, e não menos,
proteção integral à infância e à adolescência; é mais escola, e não mais prisão” 9.
Nos discursos das diferentes autoridades, foi possível perceber ausência de
comprometimento e de propostas efetivas, pois, ao mesmo tempo em que diziam estar
trabalhando em prol da juventude, por outro lado, não apresentaram metas e prazos
para mudanças, o que revela não haver planos efetivos de governo e demais lideranças
políticas do país para a necessária salvaguarda dos direitos, garantias e políticas públicas
assegurados às crianças e adolescentes brasileiros pelo ECA.
Tal cenário corrobora o senso comum que admite a infância, a adolescência e a
juventude brasileiras como problemas, sobretudo os meninos e meninas pretos e
pobres filhos da classe trabalhadora. Coadunando-se às falas das autoridades, a mídia,
através dos seus diferentes veículos, expõe as mazelas dessa sociedade, destacando as
situações de vulnerabilidade que afetam os menores de 18 anos no Brasil, dando, não
por acaso, maior ênfase ao envolvimento desse público com a violência e a prática de
crimes. Embora, mais recentemente, os episódios em que crianças e adolescentes
aparecem como vítimas de crimes violentos estejam ganhando mais cobertura
midiática, prevalece o destaque para as situações em que aqueles aparecem como
protagonistas de infrações penais, o que fortalece a percepção dos mesmos como
problema a ser combatido pela sociedade, o que os coloca em posição bem distante do
ideal de proteção integral propugnado pelo ECA. Em meio a esse cenário, crescem os
apelos pela redução da menoridade penal, já que a maioria das pessoas tem a impressão
de que a dita proteção conferida aos adolescentes pelo ECA termina por deixá-los em
situação de vantagem e impunidade em relação aos demais cidadãos.

8 Mais informações em: https://www.camara.leg.br/noticias/674989-frente-parlamentar-comemora-hoje-


os-30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente. Acesso em: 24 jul. 2020.
9 Mais informações em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/13/senadores-destacam-

os-30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente. Acesso em: 24 jul. 2020.

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Assim, a despeito do ECA, que ora completa 30 anos, a situação da infância e


juventude brasileiras parece continuar refém de discursos políticos e manipulações
midiáticas que visam oferecer respostas simbólicas à sociedade. Enquanto isso, os
direitos dos menores e a proteção da qual eles deveriam ser sujeitos é objeto de recusa
no que tange a um enfrentamento real e genuíno do tema.
Para analisar criticamente essa realidade, o presente trabalho remonta,
inicialmente, o período colonial, a fim de destacar as principais características da
evolução histórica da política-criminal, conhecida como tutelar, erigida para os menores
de idade no país e como ela se tornou, ao longo da maior parte do século XX, um
mecanismo de apartação social do contingente a quem se propunha proteger.
Em segundo momento, pretende-se cotejar a herança que o modelo tutelar
relegou às práticas levadas a efeito nas Vara de Infância e Juventude do país, mesmo
sob a égide do ECA. Nesse sentido, além de apresentar as principais característica do
Estatuto, pretende-se expor dados que dão conta do descompasso entre os princípios
reitores do mesmo e a práxis observada no âmbito da Justiça Juvenil e na sociedade
como um todo em face das crianças, adolescentes e jovens e as desproteções a que
estão sujeitos.
Em seguida, reflete-se sobre a aplicação da Justiça Restaurativa (doravante JR)
no âmbito da Justiça Juvenil brasileira à luz das experiências realizadas no âmbito do
projeto de extensão acadêmica Além da Culpa – Justiça Restaurativa para adolescentes,
fruto da parceria entre o NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais
da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora) e a Defensoria Pública
da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Juiz de Fora.
Do ponto de vista teórico, o recorte aqui estabelecido privilegia a pesquisa bibliográfica,
com destaque para autores como Zehr10, Dünkel; Horsfield & Păroşanu 11, Achutti12,
entre outros. Não obstante, o trabalho conta com abordagem empírica através da qual
são relatadas as ações restaurativas realizadas no âmbito do projeto de extensão Além
da Culpa. Tal metodologia é relevante na medida em que destaca como a JR vem sendo
desenvolvida na prática, seus desafios, perspectivas e compromisso com práticas
libertárias.

10 ZEHR, 2012; 2015; 2017.


11 DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015.
12 ACHUTTI, 2013; 2016.

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Sem pretender esgotar o tema, o estudo visa contribuir para reflexões críticas
acerca da lógica punitiva que, infelizmente, ainda orienta as práticas do sistema de
justiça criminal pátrio, acenando para promissores caminhos baseados na empatia e nas
possibilidades de restauração das relações interindividuais por meio da JR no âmbito da
Justiça Juvenil, além de contribuir para a prevenção de novas infrações.

2. Infância e juventude no Brasil: aspectos históricos e político-criminais

Um dos principais achados das pesquisas que se dedicam ao estudo da infância,


adolescência e juventude no Brasil é a percepção de como e por que tais contingentes
sempre foram considerados, desde o período colonial até a contemporaneidade, um
problema social, ou seja, algo que pendia de ações e resoluções, ou que deveria ser
administrado pelos agentes de poder.
Ao analisar o tema, Rodrigues13 investiga como um problema primariamente de
ordem privada ganha status de problema público e destaca que, desde o período
colonial, o abandono e a pobreza foram identificados como as causas principais para as
medidas de controle social adotadas no Brasil em face da infância e adolescência,
sobretudo no âmbito da delinquência. Do ponto de vista sociológico, esse caráter
objetivo em relação aos problemas e as causas que se lhe são apontadas não é dado,
mas sim construído, representando um processo seletivo entre uma multiplicidade de
realidades possíveis capazes de afetar a realidade.
Ao atribuir à infância, à adolescência e juventude o status de problema houve
certa atividade, por parte dos agentes de poder, no sentido de construir os contornos
desses ditos problemático grupos, bem como a forma como poderiam agir sobre eles,
tornando-os uma questão de ordem pública, e também como garantiriam que a
seletividade que se lhes era imposta se reproduzisse no tempo de forma a emergir à
consciência social.
Na análise do referido percurso, interessa destacar que, desde o período
colonial, a questão da infância esteve atrelada a relações de exploração. Ao chegarem
ao Brasil, os colonizadores, por meio dos jesuítas, se dedicaram às práticas salvacionistas
para as crianças indígenas. Em meio às preocupações com o povoamento da nação,

13 RODRIGUES, 2017.

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havia o interesse em garantir a sujeição dos nativos à Coroa portuguesa, às disposições


legais da corte e à religião católica, pois a dominação, calcada nesses três pilares,
garantiria o êxito da empresa portuguesa e legitimaria todas as ações do colonizador 14.
No século XVII, com o avanço da monocultura e execuções em massa dos povos
indígenas, houve o incremento da vinda de escravos africanos para as lavouras
brasileiras e o tratamento para com os mesmos seguiu as brutalidades e sujeições
conferidas aos indígenas. Quanto às crianças, filhas de escravos, a partir dos sete anos
deixavam de ser vistos como crianças e deveriam ser expostas ao trabalho. A Igreja
tornava essa prática legítima, através do discurso de que por meio do trabalho os
pequenos adquiririam consciência e responsabilidade. Ou seja, da aliança entre Coroa,
Igreja e senhores de engenho – os agentes de poder à época – garantiu-se a sujeição
legitimada do contingente infanto-juvenil negro, dando-lhe ares de educativa e
salvadora15.
Na centúria seguinte, começaram a surgir outras faces infantis no cenário
nacional: os mestiços, fruto das aventuras sexuais dos senhores com as escravas
africanas. Tais crianças foram relegadas ao abandono, haja vista que a moral cristã da
época considerava tal conduta reprovável. Para atender a questão do abandono das
crianças mestiças, outra prática começou a ser legitimada pela Igreja: a instalação de um
sistema de recolhimento nos portões dos hospitais, conventos e ruas dos núcleos
urbanos, que ficou conhecido como roda de expostos, que nada mais era que
recolhimento das crianças indesejáveis em instituições católicas, como uma forma de
administrar o abandono16.
Na transição do século XIX para o XX, a retórica higienista foi amplamente
recepcionada e difundida pelos agentes de poder brasileiros, que procuravam passar à
sociedade a noção de que, através de práticas eugênicas, seria garantido o
melhoramento da raça e o branqueamento da população, tido como necessário para o
desenvolvimento e progresso do país. Destarte, tem-se que, nesse momento, o discurso
deixa de ser salvacionista para adentrar no terreno das políticas públicas 17, em defesa da

14 RODRIGUES, 2017, PILOTTI, 1995.


15 Idem.
16 Ibidem.
17 Importa destacar que, antes mesmo de ser alvo de políticas públicas, a juventude já era objeto de

políticas criminais, uma vez que o primeiro Código Penal do Império, datado de 1830, já se lhes atribuía
responsabilidade por seus atos a partir dos quatorze anos, provado o discernimento. Tal discernimento,
contudo, não era objeto de comprovação ou materialidade. O que se viu na prática foi o recolhimento de
crianças e adolescentes pobres e abandonados às mesmas prisões destinadas aos adultos, daí que os jovens

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sociedade e melhoria das condições da nação, tudo com amplo respaldo nas teorias
higienistas emergentes à época.
Nessa conjuntura, despontam outros atores sociais para corroborar o discurso
higienista em torno da infância e juventude. Além da Igreja, sobrevinham médicos e
advogados, que, dotados de saberes específicos e desconhecidos pela maioria da
população, orquestravam os discursos que serviriam de base para as ações do Estado
em relação aos menores de idade. O discurso médico-higienista em torno da infância e
adolescência no Brasil do século XIX e início do século XX não foi privilégio de uma
disciplina em particular, mas resultado de formações teóricas do direito, da medicina, da
criminologia e da pedagogia, todas atreladas aos agentes de poder estatal. Segundo
Antunes, Barbosa e Pereira 18, as condições de emergência histórica desses discursos
apontam para uma modalidade de controle social - calcado na noção de infância
abandonada, perigosa e em perigo - que indicava o caminho para as ações que deveriam
ser tomadas em relação às famílias abastadas para evitar a degeneração e delinquência.
Assim, enquanto as classes privilegiadas eram orientadas a temer a delinquência,
possibilitava-se, a um só tempo, a preservação das crianças e adolescentes dessas
classes e a legitimação da exclusão social dos meninos e meninas das classes pobres, o
que garantiria a edificação de um modelo político-criminal seletivo e excludente.
Apoiados na ideia de anormalidade 19, médicos e juristas recorreram a inventivas
classificações para nomear aquilo que defendiam como sendo resultado da
irregularidade do tratamento familiar conferido às crianças e adolescentes, como se a
essas famílias tivessem sido dadas condições de adaptação às concepções de
normalidade estabelecidas conforme padrões burgueses. A partir da constatação dessa
dita inadaptação das famílias pobres, a exemplo do processo havido na Europa no século
anterior20 21, operou-se no Brasil uma cisão legitimada entre as ações destinadas às
famílias abastadas e às famílias pobres. O resultado desse processo, ao final dos anos
1920, foi a construção jurídica de uma categoria de pessoas tidas como anormais que
inevitavelmente estariam associadas à criminalidade: o menor.

punidos por tal diploma penal ficaram conhecidos como destinatários da etapa penal indiferenciada. Tal
indiferenciação se manteve até a promulgação do Código Penal em 1940, avançando até entrada em vigor
do Código Penal Republicano, de 1890 (RODRIGUES, 2017).
18 ANTUNES, E. H.; BARBOSA, L.H.S.; PEREIRA, L. M. F., 2002, p. 132.
19 FOUCAULT, 2001.
20 DONZELOT, 1986.
21 FOUCAULT, 2001.

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Para operacionalizar todo o aparato político-criminal destinado aos menores,


foram criadas instituições públicas, que, sob o argumento educacional e humanitário,
permitiram a segregação de milhares de crianças e adolescentes em cidades como Rio
de Janeiro, São Paulo, Bahia, entre outras. Para que tais instituições pudessem
funcionar, foi preciso redefinir o tratamento legal dado pelo Direito Penal a crianças e
adolescentes até então, justificando, assim, seu recolhimento em instituições
correcionais. O caráter moral do seu recolhimento às instituições era justificado através
do discurso protetivo, salvacionista e moral, na medida em que prometia regeneração
de suas personalidades degeneradas através do trabalho.
Os discursos correcionalistas, ditos protetivos, encobriam a prática de
segregação social e recrutamento do contingente infanto-juvenil pobre ao trabalho.
Destarte, a partir de 1927, sob a vigência do Código de Menores (Decreto nº
17.943/1927), foi estabelecido o chamado modelo tutelar, que propiciou a emergência
de um sistema de Justiça Juvenil excludente baseado no chamado menor como
indivíduo anormal, incompleto, irregular, anormal22.
Apoiado na retórica salvacionista, o Código de Menores legitimou a intervenção
maciça por parte das autoridades na vida das famílias pobres, que, muitas vezes,
perdiam o direito à guarda e tutela de seus filhos em favor do Estado, sob a acusação de
desestruturação e degenerescência. Dessa forma, foi edificado o chamado modelo
tutelar, que garantiu a montagem de todo um sistema de investimento estatal que
contava com estruturas e geração de empregos para os agentes envolvidos na questão
dos menores e criação de demandas orçamentárias.
Dos anos 1930 até os anos 1970, sob o paradigma do modelo tutelar, diversas
ações foram tomadas a fim de garantir a tutela dos menores ao Estado. Lembrando que,
por menores, não eram compreendidos todos aqueles com idade abaixo de dezoito
anos, mas sim a parcela da infância e da adolescência que escapava ao controle dos pais,
devendo ser alvo de controles sociais formais impostos pelos agentes estatais nas mais
variadas instâncias correcionais.
Nesse sentido, é possível observar que, que a partir da década de 1930, a
questão menoril no Brasil passou a ser considerada um fator de segurança nacional, pois
o menor, visto como sujeito irregular que trazia perigo à sociedade, deveria ser

22 RODRIGUES, 2017; SPOSATO, 2006.

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recolhido institucionalmente, daí a necessidade de engendramento de todo um aparato


político-criminal para gerir a questão.
Durante essa etapa denominada tutelar, foram criadas diversas instituições que
compunham a rede responsável pela aplicação do Código de Menores, também
conhecido como Código Mello Mattos, dentre elas pode-se citar o SAM (Serviço de
Assistência aos menores), a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), a
FEBEM (Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor). Nas décadas de 1960/1970, todo
esse complexo terminou por revelar incapacidades de seus operadores, desvios de
verbas, maus tratos para com os menores e agravamento dos níveis de delinquência
juvenil. Nesse contexto, o modelo tutelar passou a ser alvo de muitas críticas, haja vista
que os resultados prometidos não se materializaram.
Nesse ínterim, em meio à ditadura militar e às ofensas aos direitos humanos que
se lhe subjazem, a questão dos menores tornou-se mais visível aos olhos da população
brasileira e internacional. Tal fato relaciona-se às consequências do aumento dos níveis
de desigualdade nas regiões metropolitanas, cujo crescimento corria em paralelo com a
expansão da pobreza, o que contribuiu para que a marginalização de crianças e
adolescentes passasse a ser vista como um problema de massas. Ao final da década de
1970 - em meio a crises e transformações políticas e econômicas no cenário nacional,
agravadas por altos índices inflacionários e recessões - as críticas ao autoritarismo se
deram em várias frentes, entre elas o tratamento conferido aos menores nas
instituições do Estado.
No início da década de 1980, coincidindo com o fim da ditadura e o início do
período de abertura política e de redemocratização, a questão do menor passou a ser
mais um paradigma a ser quebrado pela nova cúpula administrativa. Com a presença de
um poder constituinte originário, foi promulgada a Constituição Federal de 1988,
considerada uma das melhores do mundo em matéria de direitos e garantias
fundamentais. No contexto internacional, havia pressão para que o Brasil adequasse sua
legislação juvenil à nova Constituição e à normativa internacional sobre o tema, com
destaque para a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989).
Nesse momento histórico, com apoio no discurso constitucional humanista, o
Estado chama a sociedade e a família para intervirem na questão da infância e da
adolescência sob o paradigma da proteção integral. Entrementes, tem-se, em 1990, a

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edição do ECA, diploma elogiado por toda a comunidade internacional por seu viés
garantista e humanista, mas que muito longe demonstrava estar da realidade brasileira.

3. O Estatuto da Criança e do Adolescente: aspectos conceituais, evolução no


tempo e reflexos práticos

Quando de sua edição, em 1990, a proposta do ECA era romper com a noção de
irregularidade e garantir a todos os menores de dezoito anos possibilidades isonômicas
de exercício da sua cidadania. A elaboração do Estatuto decorreu do imperativo de
pormenorizar o sistema especial de proteção dos direitos fundamentais de crianças e
adolescentes, outorgando a estes o status de cidadãos especiais, de acordo com a
Constituição de 1988, em razão de peculiaridades da personalidade infanto-juvenil.
Além de regulamentar questões relacionadas aos direitos das crianças e
adolescentes e às definições das questões familiares (família substituta, guarda, adoção,
tutela, entre outros temas importantes no âmbito cível), o ECA disciplina a política social
de atendimento a crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade social e
familiar, fixando, para tanto, medidas de proteção. No caso de práticas de infrações
penais, o ECA fixa medidas socioeducativas que podem ser cumuladas com as medidas
de proteção.
Ademais, o Estatuto regulamenta o funcionamento dos Conselhos Tutelares 23,
dispõe sobre o acesso de crianças e adolescentes à justiça, bem como define o
procedimento judicial a ser adotado nas varas especializadas de infância e juventude
(aspectos processuais; procedimentos para apreensões em flagrante e internações
provisórias; apresentação preliminar perante o Ministério Público; regras para
oferecimento de representação ou remissão por parte deste mesmo órgão;
disciplinamento das audiências de apresentação, de continuação, oitivas das partes e
testemunhas, debates orais e sentença e, finalmente, dispõe sobre a interposição de
recursos, a definição de crimes em espécie e as infrações administrativas.

23 Art. 131. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela
sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei.
Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar: I - atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas
nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII; II - atender e aconselhar os pais ou
responsável, aplicando as medidas previstas no art. 129, I a VII [...] (BRASIL, 1990).

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.642-686.
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No âmbito político-criminal, o Estatuto se orienta a partir do paradigma da


chamada proteção integral, que veda a aplicação às crianças e adolescentes das mesmas
penas destinadas aos adultos, oferecendo um rol taxativo de medidas, chamadas
socioeducativas, a serem aplicadas quando da prática de infrações penais por parte
daqueles. A doutrina da proteção integral insculpida no ECA é inspirada na Convenção
dos Direitos da Criança de 1989, ratificada no Brasil através do Decreto Nº. 99.710/1990,
e preconiza o dever, atribuído aos Estados, às famílias e à sociedade, de assegurar aos
menores de 18 anos todas as oportunidades e direitos aptos a lhes proporcionarem o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e
de dignidade e com a observância de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana.
No que tange à prática de infrações penais, que na forma do ECA são
denominadas atos infracionais24, compreende-se que os menores de 18 anos são tidos
como penalmente inimputáveis, estando os adolescentes (grupo entre 12 a 18 anos
incompletos) sujeitos à imposição das medidas socioeducativas previstas no art. 112 do
Estatuto, quais sejam: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à
comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em
estabelecimento educacional e, por fim, qualquer uma daquelas medidas de proteção
previstas no art. 101, I a VI do ECA. Já as crianças (grupo entre o a 12 anos incompletos)
ao cometerem atos infracionais, estarão sujeitas apenas às medidas de proteção
previstas no art. 101 do Estatuto.
Destaca-se que, conforme o disposto no art. 114 do Estatuto, para a fixação das
medidas socioeducativas pressupõe a existência de provas suficientes da autoria e da
materialidade da infração, ressalvada a hipótese de remissão, nos termos dos arts. 126,
127 e 128 da mesma lei, in verbis:
Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato
infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a
remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às
circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à
personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato
infracional.
Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela
autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.

24Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal (BRASIL,
1990).

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Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou


comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de
antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das
medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e
a internação.

Art. 128. A medida aplicada por força da remissão poderá ser revista
judicialmente, a qualquer tempo, mediante pedido expresso do adolescente
ou de seu representante legal, ou do Ministério Público (BRASIL 1990).

Em caso de condenações pela prática de infrações penais, a imposição das


medidas socioeducativas de natureza restritivas e privativas de liberdade, quais sejam:
semiliberdade e internação, deve ser considerada a ultima ratio. O regime de
semiliberdade, nos termos do art. 120 do ECA, pode ser determinado logo após a
sentença condenatória do ato infracional, ou como forma de transição para o meio
aberto. Neste regime são permitidas atividades externas, sendo obrigatórias a
escolarização e profissionalização. Conforme o parágrafo segundo do mesmo dispositivo
legal, as medidas socioeducativas de semiliberdade não comportam prazo determinado,
aplicando-se, no que couber, as disposições relativas às medidas de internação.
Nos termos dos arts. 121 e 122 do ECA, as medidas socioeducativas de
internação são destinadas apenas a infrações cometidas com grave ameaça ou violência,
com a devida observância dos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, não podendo ultrapassar três anos.
Não obstante, contrariando a lógica insculpida no Estatuto, verifica-se a aplicação
desmesurada de medidas socioeducativas de internação e semiliberdade em detrimento
das medidas em meio aberto. Confirmando a seletividade verificada no sistema prisional
de adultos, os últimos levantamentos do SINASE, organizados pelo Ministério dos
Direitos Humanos, revelam que, com relação ao gênero, há predominância de
adolescentes do sexo masculino (96%), sendo que a maior proporção (57%) está
concentrada na faixa etária entre 16 e 17 anos. Ademais, dentre os adolescentes em
restrição e privação de liberdade, 59,08% são de cor parda/preta. Segundo o último
levantamento realizado pelo SINASE25, no ano de 2016 havia 26.450 adolescentes
submetidos a medidas socioeducativas de privação e restrição de liberdade no país, do
total 59% eram negros, 57% tinham entre 16 e 17 anos e 99% eram do sexo masculino.

25 Mais informações disponíveis em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2018/marco/mdh-


divulga-dados-sobre-adolescentes-em-unidades-de-internacao-e-semiliberdade. Acesso em: 10 ago. 2020.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p.642-686.
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Se observados os indicadores apontados pelos referidos levantamentos nos anos


anteriores, é possível verificar o aumento sistemático do número de medidas
socioeducativas de internação e semiliberdade impostas aos adolescentes, o que, como
dito acima, se contrapõe ao comando normativo e principiológico da restrição e
privação de liberdade como ultima ratio. Senão, vejamos: em 2011, havia 19.595
adolescentes em medidas de internação e semiliberdade no país, o que correspondia a
95 a cada 100 mil habitantes entre 12 e 18 anos. Em 2012, os indicadores apontaram a
permanência de 20.532 adolescentes em unidades socioeducativas (100/100 mil
habitantes entre 12 e 18 anos). Já em 2013, o número subiu para 23.066 (118/100 mil
habitantes entre 12 e 18 anos) e, em 2016, chegou a 26.450 (135/100 mil habitantes
entre 12 e 18 anos)26.
Ao destacarem o aumento constante da imposição de medidas socioeducativas de
restrição e privação de liberdade, os levantamentos anuais do SINASE chamam a
atenção para o fato de que a recorrente elevação desses índices agravou, ainda mais, os
quadros de superlotação verificados na década anterior, sobretudo na região sudeste.
O aumento da incidência das sanções restritivas e privativas de liberdade, em
detrimento das demais, reflete o traço tutelar ainda presente na prática judicial
brasileira, que legitima a aplicação das medidas em meio não aberto sob a alegação da
inexistência de outra medida mais adequada para o caso, sem tampouco se dedicar a
maiores fundamentações a respeito, porém se respaldando nos termos do art. 122, §2º
do ECA. Ao deixar aberta essa possibilidade, o Estatuto – apesar dos vários aspectos
positivos – confirma seu caráter reformista, na medida em que não deslegitimou a
privação de liberdade, apenas a domesticou a partir da lógica da intervenção mínima.
Ocorre que, diante de operadores comprometidos com a razão punitiva, qualquer fresta
deixada pela lei pode colocar em risco todos os direitos propugnados pela mesma 27.
Além dos desacertos quanto à sua maciça indicação por parte das autoridades
competentes, as sanções restritivas e privativas de liberdade - que, no dizer do ECA, têm
natureza diversa de pena - revelam, na prática, seu caráter punitivo. Embora sejam
caracterizadas por seu viés social e pedagógico, as medidas executadas nas unidades
socioeducativas brasileiras estão, em sua maioria, divorciadas desses ideais, sobretudo
quanto à educação. Tal afirmação pode ser confirmada pelo Censo Escolar da Educação

26 SDH, 2015, 2013, 2012; BRASIL, 2018.


27 RODRIGUES, 2017; SANTOS, 2000; BATISTA, 2008, 2003; BARATTA, 2002.

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Básica, elaborado pelo Ministério da Educação, segundo o qual, no ano de 2013, dos
mais de 23.500 adolescentes recolhidos nas unidades socioeducativas, apenas 12.219
estavam matriculados em alguma instituição escolar. Apesar de esse número significar
um avanço em relação aos anos de 2010 e 2011, é inegável o déficit educativo existente
no sistema socioeducativo nacional. Ademais, de acordo com os levantamentos do
SINASE, as instituições que contam com atendimento escolar, este se apresenta de
forma extremamente precária28.
Não bastasse o incremento punitivo em relação às sanções restritivas e privativas
de liberdade, as sanções em meio aberto também contaram com sensíveis aumentos. A
elevação da incidência das medidas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de
serviços à comunidade) foi amplamente destacada pelos levantamentos do SINASE
relativos aos anos de 2011 e 2012. De acordo com o Censo SUAS, no ano de 2009 havia
40.657 adolescentes em cumprimento das medidas de prestação de serviços e liberdade
assistida. Em 2010, esse número passou para 67.045. Já no ano de 2011, foi verificado
um total de 88.022 adolescentes nessas modalidades. No ano de 2012, foram
registrados 89.718 adolescentes submetidos às medidas socioeducativas em meio
aberto (SDH, 2015, 2013, 2012). Segundo a pesquisa nacional de medidas
socioeducativas em meio aberto, realizada entre fevereiro e março de 2018 pelo
Ministério do Desenvolvimento Social 29, em 2017 o Brasil contava com 117.207
adolescentes em cumprimento de medidas de liberdade assistida e prestação de
serviços à comunidade, o que representa um aumento significativo em relação aos anos
anteriores30.
Considerando o recorte por raça/etnia, os déficits educacionais, os elevados índices
das sanções restritivas e privativas de liberdade e o aumento das sanções em meio livre,
é possível observar que, ao contrário das representações sociais quanto a um
tratamento leniente do Estado brasileiro para com os adolescentes, o que se desvela, na
prática, é uma realidade extremamente dura, que, assim como no sistema prisional de

28 SDH, 2015, 2013, 2012; BRASIL, 2018.


29 Mais informações em:
http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/relatorios/Medidas_Socioeducativas_e
m_Meio_Aberto.pdf. Acesso em: 10 ago. 2020.
30 Ressalta-se que, em que pese o presente artigo estar sendo escrito em 2020, o último levantamento anual

SINASE foi publicado em 2018, sendo referente aos dados de 2016. A pesquisa mais recente divulgada pelos
órgãos oficiais é essa publicada pelo Ministério do Desenvolvimento Social também em 2018, relativa aos
dados de 2017. Tal atraso no repasse de informações dificulta um acompanhamento mais efetivo dos
dados, sendo esta, portanto, uma das principais críticas dos pesquisadores que se dedicam ao estudo do
tema.

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adultos, é marcada pela seletividade, por constantes violações de direitos e pela


expansão punitiva31.
Na confluência dos medos que assombram o cotidiano de muitos cidadãos
brasileiros na atualidade, crianças, adolescentes e jovens que vivem em condições
precarizadas, marcadas pela luta por estratégias de sobrevivência no comércio ilegal de
drogas, no mercado informal ou que perambulam pelas ruas e comunidades são
percebidos como uma população de alto risco. A partir da lógica atuarial32, característica
do empreendimento neoliberal, esse contingente populacional não é percebido por si,
mas como um grande espectro marginal, que não pode ser integrado economicamente
e, por isso, deve ser controlado e neutralizado. No Brasil, essas estratégias atuariais de
gerenciamento e neutralização da juventude popular vão além dos toques de recolher e
da expansão do controle institucional, chegando a compor verdadeiras cadeias de
extermínio.
Tal estado de coisas, no entanto, permanece obscurecido para muitos setores da
sociedade, que, alheios aos dados objetivos, insistem na tese do aumento da
participação de crianças, adolescentes e jovens em crimes violentos e clamam por mais
controle, mais policiamento e mais punição sobre esse grupo social. Contrariando essa
percepção, diversas pesquisas vêm demonstrando que os adolescentes e jovens
envolvidos em episódios violentos figuram como as principais vítimas e não como os
principais autores desse tipo de crime. Enquanto os índices de crimes violentos,
sobretudo homicídios, praticados por adolescentes decresceu nos últimos anos, o
percentual de adolescentes e jovens assassinados só vem aumentando 33.
No último decênio, as pesquisas vêm confirmando a hipótese de que os
adolescentes e jovens são muito mais vítimas que autores de crimes violentos no Brasil.
Não obstante, o suposto crescimento de sua participação em crimes dessa natureza
enseja uma das maiores polêmicas na sociedade brasileira na atualidade, com destaque
para as plataformas políticas que defendem a redução da maioridade penal. Todavia, os

31 RODRIGUES, 2017; BATISTA, 2008.


32Como destaca Dieter (2013, p. 267), a política criminal atuarial tem por objetivo “controlar a ‘underclass’, no
que se aproxima dos projetos governamentais historicamente conhecidos, que deturpam todo o discurso
jurídico em função da instrumentalização de seus interesses”. No entanto, a grande diferença do novo
modelo consiste na estratégia de “neutralização da repressão contra os marginalizados que promove”. Sob
o signo da incapacitação dos “grupos de risco”, o modelo atuarial despreza as teorias jurídicas do “crime” e
da “pena” – que tradicionalmente se propõem à racionalização das práticas punitivas. Segundo o autor,
“esta falta de preocupação na justificação do exercício da violência representa um desafio aberto ao Estado
democrático de Direito”.
33 WAISELFISZ, 2015; 2014; 2013; 2012; SDH, 2015, 2013, 2012; BRASIL, 2018

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discursos que influenciam boa parte da população quanto à identificação dos


adolescentes como um grupo de alto risco não resistem ao confronto com os dados
reais34.
No contexto de pandemia que marca o ano do trigésimo aniversário do ECA, os
efeitos das históricas políticas de exclusão e apartação social da infância, adolescência e
juventude brasileiras se tornam ainda mais agudos. Dentre os elevados números de
mortos vitimados pelo novo Coronavírus, verifica-se que boa parte é oriunda das regiões
de periferia, pertencendo a grupos sociais que não contam com privilégios que lhes
permitam realizar o isolamento social e utilizar os mecanismos de prevenção, tampouco
acessar de forma plena o sistema de saúde. No âmbito socioeducativo, conforme os
levantamentos realizados pelo CNJ, até o início de agosto de 2020, havia 2163
adolescentes em cumprimento de medidas de internação e semiliberdade infectados,
além de 689 servidores. Foram registrados, nesse período, 17 óbitos de servidores. Não
obstante, as autoridades, ao arrepio da proteção integral, insistem em manter esses
meninos e meninas custodiados, em detrimento da adoção de outras medidas em meio
livre que lhes garantiriam maior proteção em relação ao contágio pelo Coronavírus35.
Assim, tem-se que, embora do ponto de vista teleológico, o ECA tenha como
pilares a doutrina da proteção integral e os princípios reitores do sistema de Justiça
Juvenil, passados 30 anos de sua edição verifica-se que conceder legalmente maiores
direitos às crianças e adolescentes não garantiu o seu efetivo cumprimento, uma vez
que a dinâmica brasileira se mostrou inacessível à execução plena dos mesmos.
A dificuldade em instituir propostas político-criminais emancipatórias e
protetoras dos direitos humanos em relação à aplicação do Estatuto se liga a uma série
de fatores, dentre os quais se destaca a disseminação da noção de que se desenvolveu
no Brasil, desde os anos 1980, que a defesa dos direitos humanos se relaciona com a
concessão de privilégios a bandidos e ao aumento da impunidade dos menores de 18
anos36. O ECA evidencia, portanto, que a questão da infância e adolescência no Brasil
não é judicante, mas também política e, sobretudo, social.

34 Idem.
35 Mais informações em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/Monitoramento-Semanal-
Covid-19-Info-12.08.20.pdf. Acesso em: 13 ago. 2020.
36 CALDEIRA, 1991.

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4. Breves considerações sobre a Justiça Restaurativa e sua inserção no âmbito do


sistema de Justiça Juvenil pátrio

Há algumas décadas, com destaque para os trabalhos críticos publicados nos anos 1970,
a pesquisa criminológica vem demonstrando que o modelo punitivo prisional
empregado na maioria dos países não se apresenta como apto ao enfrentamento,
redução e/ou prevenção da conflitividade social decorrente do crime e da violência. É
nesse sentido que se faz mister a busca por novos mecanismos que possam contribuir
efetiva e afirmativamente para o aprimoramento da resposta estatal e comunitária ao
acontecimento delitivo, com destaque para os programas de JR.
No âmbito infanto-juvenil esse debate remonta às grandes reformas levadas a
efeito nos anos 1980 e 1990 em diversos países, com base na normativa internacional 37
sobre o tema fixada no âmbito da ONU, com destaque para a Resolução 40/33, de 1985
(que dispõe sobre as chamadas Regras de Beijing), que preconizam a observância por
parte dos estados, mesmo em caso de infrações penais, do pleno desenvolvimento da
criança, do adolescente e do jovem, visto que se encontram em uma etapa inicial do
desenvolvimento humano e necessitam de condições dignas para o seu pleno
desenvolvimento físico, mental e social. No mesmo sentido, as Regras Mínimas das
Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, de 1990, estipulam
que, em caso de privação de liberdade em estabelecimento prisional (medida a ser
adotada somente em último caso – ultima ratio-), deve ser garantida aos menores de
idade e jovens adultos a devida proteção, devendo tal privação e/ou restrição de
liberdade ser breve.
Entrementes, cabe dizer, portanto, que o pioneirismo dos sistemas de Justiça
Juvenil na aplicação dos programas de JR não é dado, antes faz parte de um movimento
de abrangência internacional e intercontinental, capitaneado pela ONU a partir do final
dos anos 1970, no sentido de demonstrar o desacerto dos modelos marcadamente
punitivos vigentes até àquela conjuntura sob o signo da doutrina tutelar ou de situação
irregular.

37 Dentre os quais, se destacam: Convenção dos Direitos da Criança, 1989; Regras Mínimas das Nações
Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing - Resolução 40/33, de 1985, da ONU);
Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad - Resolução
45/11, de 1990, da ONU).

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Tais movimentos estão no bojo das críticas organizadas no âmbito da Criminologia


e das Ciências Sociais na década de 1970, que se dedicaram a demonstrar através de
sólidas pesquisas os efeitos deletérios do cárcere para a personalidade, sobretudo de
crianças, adolescentes e jovens adultos, com destaque para o chamado labeling
approach, a Criminologia crítica e o Abolicionismo penal.
Como bem destacado por Garland 38, diante das falhas e desacertos apontados, a
crise do sistema penal terminou por trazer à tona o debate sobre alternativas para sua
contenção. Nesse contexto, as propostas de reforma que mais encontraram eco
destacavam a necessidade de aperfeiçoar os serviços voltados à reabilitação dos
infratores e redução da opressão imposta sobre os mesmos, oferecendo possibilidades
de cumprimento de sanções em meio livre e redução das repostas formais típicas do
sistema de justiça criminal.
Nessa esteira, a JR passou a ser vista como um dos mecanismos capazes de
contribuir para as respostas alternativas almejadas, visto que, além da redução dos
fluxos de criminalização, propõem mecanismos de diversificação (diversion), na medida
em que pugna pela busca de metodologias informais de resolução de conflitos que
privilegiem a participação das pessoas envolvidas no acontecimento delitivo.
Desde as primeiras pesquisas acadêmicas acerca da JR até a atualidade, é possível
dizer que há certo consenso no sentido de que esta não possui um conceito unívoco 39,
mas sim um conceito aberto e dinâmico que se relaciona às suas diversas acepções e
práticas. Segundo Achutti,
antes de ser considerada uma ideia fechada e acabada, trata-se,
primordialmente, de uma proposta conceitual que continua aberta. Sica
(2007, p. 10) refere que “a justiça restaurativa é uma prática ou, mais
precisamente, um conjunto de práticas em busca de uma teoria”. Pallamolla
(2009, p. 54), por sua vez, acentua que “a justiça restaurativa possui um
conceito não só aberto como, também, fluido, pois vem sendo modificado,
assim como suas práticas, desde os primeiros estudos e experiências
restaurativas”. E essa construção ainda em aberto e em constante
movimento é, paradoxalmente, um dos pontos mais positivos da justiça
restaurativa, pois não há um engessamento de sua forma de aplicação e,
portanto, os casos-padrão e as respostas-receituário permanecem
indeterminadas, na busca de adaptação a cada caso e aos seus contextos
culturais40.

38 GARLAND, 2008.
39 PALLAMOLLA, 2009, p. 53.
40 ACHUTTI, 2013, p.159.

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Para Zehr41o modelo restaurativo deve ser construído pelas comunidades, pois
está atrelado à cultura e às características de cada grupo social, devendo ser
estabelecido através da experimentação e do diálogo tendente a repensar as
necessidades e desdobramentos gerados a partir da ocorrência de determinado fato
delitivo.
Já para Dünkel, Horsfield e Păroşanu 42, os valores da JR não são inteiramente
novos e podem ser traçados desde as culturas indígenas e tradicionais presentes no
mundo todo, pois muitas de suas práticas são inspiradas nos métodos de resolução de
conflitos das tribos indígenas.
Para efeitos deste estudo, concebe-se que a JR se insurge como um movimento
social que reage de encontro ao sistema de controle social institucionalizado 43, que visa
manter a ordem através de mecanismos de poder, centralizando a pessoa do infrator
como inimigo, ou, desviante, buscando respostas penais que atendam expectativas de
prevenção da sociedade, enquadrando-se em um modelo clássico de punição estatal
(punitivista e opressor). Afastando-se dessa concepção, as práticas restaurativas
repercutem um modelo integrador de justiça cujo foco é a edificação de um sistema de
justiça criminal embasado no princípio da dignidade humana44.
O fortalecimento da JR no âmbito infanto-juvenil é fruto de intensos debates
acerca dos limites entre a responsabilização penal e os direitos e garantias desse
contingente, que se caracteriza como um grupo de indivíduos que estão em processo de
desenvolvimento, e, por isso, deve ter um tratamento diferenciado por parte do Estado
e da sociedade como um todo.
As intervenções restaurativas no âmbito da Justiça Juvenil primam pela
reabilitação e reintegração dos menores de 18 anos à comunidade, para tanto contam
com a participação da vítima, do adolescente ofensor e seus responsáveis, dos
servidores de proteção à criança e ao adolescente, técnicos judiciários, representantes
da escola e da comunidade, bem como outras pessoas que, de algum modo, possam ter
sido afetadas pelo conflito. Por ser orientada pelo respeito mútuo e ter por foco o
fortalecimento das relações, o entendimento majoritário é o de que a JR pode ser

41 ZEHR, 2012; 2015; 2017.


42 DÜNKEL, HORSFIELD & PĂROŞANU, p. 4, 2015.
43 ACHUTTI, 2013, p.156.
44 NERY, 2011.

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aplicada em todas as fases do processo para apuração de infrações penais em que


crianças, adolescentes e jovens foram autores ou vítimas45.
De acordo com estudos realizados por Dünkel; Horsfield & Păroşanu46 em mais
de 28 países da União Europeia, os dados levantados permitem verificar que a JR
proporciona diversos benefícios aos participantes, a saber: i) menor tendência a
desenvolver comportamento antissocial nas relações com a família e a sociedade; ii)
maior possibilidade de reflexão a respeito das consequências do ato lesivo, para as
demais pessoas; iii) oportuniza a responsabilização; iv) produz menores níveis de medo
e de sintomas de estresse pós traumático nos adolescentes; v) oportuniza espaços de
fala aos participantes que, em um ambiente seguro, veem aumentada a probabilidade
de solucionar o conflito.
Ademais, as práticas restaurativas também vêm apresentando resultados
promissores quanto à prevenção da delinquência juvenil, embora não seja este o
objetivo principal da JR. Os estudos apontam ainda a elevação dos índices de reinserção
social de adolescentes em conflito com a lei à comunidade em diversos países do
mundo, principalmente em relação à Alemanha, Bélgica, Áustria, Canadá, Austrália,
entre outros47.
Do ponto de vista prático, as possibilidades e/ou efeitos que a adoção dos
programas de JR podem conferir aos processos criminais que se lhes subjazem são: i)
extinção do processo (pode ocorrer em determinados delitos, caso o autor se
responsabilize pelo ato e se comprometa a cumprir o acordo restaurativo pactuado com
a outra parte); ii) suspensão provisória do processo mediante período de prova para o
devido cumprimento do acordo restaurativo fixado e verificação de bom
comportamento do ofensor); iii) substituição ou redução da sentença, se cumprida a
proposta restaurativa; entre outros 48.
A fim de esclarecer distorções comuns à percepção da JR a partir de uma
perspectiva romantizada, Zehr49 esclarece que o modelo restaurativo não tem por
objetivo fundamental o perdão ou a conciliação entre as partes, ou mesmo a redução da
reincidência. Em relação aos dois primeiros aspectos, de fato, as abordagens
restaurativas oferecem um contexto em que tais possibilidades podem vir a acontecer,

45 DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015.


46 Idem.
47 RODRIGUES, 2017.
48 MIERS, 2003 apud PALLAMOLLA, 2009, p. 103.
49 ZEHR, 2017.

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mais facilmente do que no modelo tradicional, no entanto, não são tais aspectos pré-
requisitos e tampouco resultados necessários. Em relação à redução da reincidência,
pesquisas vêm demonstrando bons resultados em relação a grupos participantes de
programas de JR, não obstante o autor afirma que tal fato por si só não deve ser motivo
para promover programas restaurativos, pois, para ele,
a redução da reincidência é um subproduto, mas a JR é praticada, em
primeiro lugar, pelo fato de ser a coisa certa a se fazer. Aqueles que
sofreram o dano devem ser capazes de identificar suas necessidades e tê-las
apontadas, aqueles que causaram dano, devem ser estimulados a assumir a
responsabilidade e aqueles que foram afetados por um delito devem ser
envolvidos no processo50.

Importa destacar também, que as abordagens restaurativas não implicam o


retorno ao passado, como se o conflito não tivesse acontecido, principalmente os
conflitos mais graves, que também são abordados pelas intervenções restaurativas, e os
contextos sociais indesejáveis, pautados por opressão e traumas. Logo, não se trata de
retornar ao estado pré-conflitual, mas retornar à melhor versão de nós mesmos, que
sempre esteve presente e que foi abalada pelo acontecimento delitivo51.
Conforme destaca Achutti, dentre os diversos métodos utilizados nas práticas
restaurativas, destacam-se os seguintes: i) ações de apoio à vítima (objetiva demonstrar
que há interesse pela situação da vítima); ii) comunicação vítima-ofensor (face-to-face
meeting – viabilizar o diálogo (direta ou indiretamente, nas situações em que o encontro
não é possível); iii) conferências ou círculos restaurativos (vítima, ofensor, apoiadores,
membros da comunidade, facilitador); iv) conferência ou círculos familiares (family
group conferences); v) círculos de restauração da paz afetada por determinado conflito
na comunidade; vi) círculos de sentença ou decisórios (sentencing circles = comunidades
realizam co-julgamentos, com a presença de um juiz; processo deliberativo demanda
vários encontros); vii) comitês de paz (pacificação de disputas particulares nas
comunidades e construção de paz); viii) conselhos de cidadania (decisões tomadas pelos
conselheiros eleitos pela comunidade e não pelas partes, o que compromete, em certa
medida, a proposta restaurativa); xix) serviço comunitário (pode ser parte de acordo
restaurativo ou decisão judicial. Em todas essas diferentes modalidades, importa

50 Idem, p. 22.
51 Idem. p. 20.

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destacar que o resultado final será considerado restaurativo se for fruto de livre
deliberação entre as partes52.
Ressalta-se que é nesse sentido que foi publicada a Resolução nº. 2002/2012 53,
das Nações Unidas, que fixou os princípios básicos a serem seguidos na utilização das
práticas restaurativas e serviu de base para a implantação da Justiça Restaurativa em
vários países, entre eles o Brasil.
Nos programas de JR que vêm sendo implementados no Brasil, sobretudo no
âmbito da Infância e Juventude, é possível perceber a prevalência das conferências
restaurativas, conhecidas, entre nós, como círculos restaurativos, que consistem em
encontros realizados a partir da metodologia circular, conduzidos por facilitadores
previamente capacitados que viabilizam a participação da vítima, da pessoa identificada
como autor/ofensor, seus apoiadores, membros da comunidade e demais pessoas
afetadas pelo conflito. Para a realização dos denominados círculos restaurativos, é
necessária a construção de uma rede de apoio que envolve tanto membros da
sociedade civil, quanto operadores do sistema de justiça criminal. Pois, para que as
propostas restaurativas construídas coletivamente nos círculos produzam efeitos nos
respectivos processos, é necessário o apoio dos Tribunais de Justiça, do Ministério
Público e demais atores envolvidos na demanda.
No âmbito nacional, os projetos pioneiros de JR no âmbito da Justiça Juvenil
foram realizados através do Ministério da Justiça em parceria com o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com destaque para o programa
Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro 54 instituído em 2005
e que se tornou referência para os estudos e práticas inspiradas pelo novo modelo de
justiça estabelecido a partir da JR. A partir desse projeto, foi possível a obtenção de
apoio financeiro para a execução de três projetos pilotos, quais sejam: o programa
Justiça Para o Século 21, desenvolvido na cidade de Porto Alegre/RS55; o programa
Justiça e Educação: parceria para a cidadania, desenvolvido na cidade de São Caetano do

52 ACHUTTI, 2016, p. 79-84.


53 Disponível em:
https://juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Apoio/Resolucao_
ONU_2002.pdf. Acesso em: 10 ago. 2020.
54 Mais informações disponíveis em: http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1711.html. Acesso em: 10 fev.

2020.
55 Informações disponíveis em: www.justica21.org.br. Acesso em: 15 jun. 2019.

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Sul/SP56; e o programa Implantação De Justiça Restaurativa - Núcleo Bandeirante,


desenvolvido na cidade de Brasília/DF57.
Desde então, uma série de projetos vêm sendo desenvolvidos por todo o país,
tendo sido boa parte levantada pela pesquisa realizada em 2017, no âmbito do Conselho
Nacional de Justiça, denominada Pilotando a Justiça Restaurativa. O papel do poder
judiciário. A pesquisa, que foi coordenada por acadêmicas de destaque como Vera
Regina Pereira de Andrade, Alline Pedra Jorge Birol e outras, apontou o protagonismo
exercido pelo Poder Judiciário, seus atores e órgãos conexos (Ministério da Justiça,
Secretaria de Reforma do Judiciário, Conselho Nacional de Justiça, Sistema de Justiça,
juízes, desembargadores, psicólogos, assistentes sociais, equipes técnicas), “na
construção de uma Justiça Restaurativa no Brasil, interpretado como uma face do
contemporâneo movimento mais amplo denominado ativismo judicial”58. Ademais, o
estudo assinala que
o mapa da Justiça Restaurativa inclui, para além do espaço judicial, o
espaço policial, o espaço da educação escolar, do ensino médio à
universidade; o espaço do trabalho, o espaço comunitário, o espaço
da cidade. Menção específica merecem a interação e o diálogo, que
estão a se desenvolver, ainda que de forma residual, entre Judiciário
e Universidade, envolvendo um conjunto de atividades relativas ao
ensino, pesquisa e extensão, tal como se verificou, por exemplo, em
Santa Maria, Florianópolis, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Distrito
Federal e Santos. Todas essas interações, em princípio, contribuem
para o conhecimento, o debate e o próprio avanço da mudança de
paradigmas em justiça, além de concorrer para a formação dos
trabalhadores da Justiça Restaurativa, num mecanismo de
feedback59.

É justamente nesse mecanismo que o projeto de extensão acadêmica Além da


Culpa: Justiça Restaurativa para adolescentes se insere, tendo por fio condutor o desejo
de contribuir para o aprimoramento dos paradigmas de justiça que marcam a cultura

56 Mais informações em: Justiça e educação: parceria para a cidadania. Um projeto de justiça restaurativa da
Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul envolvendo a rede escolar da comarca.
Disponível em:
http://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/XXICongressoNacional_ABMP/1
%20Experiencia%20%20Eduardo%20Rezende%20Melo%2008.05%20-%20G7.pdf. Acesso em: 15 jun. 2019.
57Informações disponíveis em: http://www.tjdft.jus.br/institucional/2a-vice-
presidencia/nupecon/justicarestaurativa/o-que-e-a-justica-restaurativa. Acesso em: 15 jun. 2019.
58 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pilotando a Justiça Restaurativa. O papel do poder judiciário. Sumário

executivo. CNJ: Brasília, 2017. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-


content/uploads/2018/01/9055d2b8d7ddb66b87a367599abc4bf5.pdf. Acesso em: 10 fev. 2020. p. 22.
59 Idem. p. 27.

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jurídica do país. Nesse sentido, passa-se agora à apresentação do projeto desenvolvido


pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG.

5. Projeto de extensão acadêmica Além da Culpa: Justiça Restaurativa para


adolescentes: características, percursos, desafios e horizontes

Diante do cenário de descompasso entre os comandos normativos propugnados pelo


ECA e a realidade do sistema de Justiça Juvenil pátrio, bem como os aspectos sociais e
políticos que subjazem a questão da infância, adolescência e juventude brasileiras,
desde o início dos anos 2000 começaram a ser vislumbradas possibilidades de
aprimoramento do Estatuto e da rede socioeducativa como um todo. Os constantes
quadros de superlotação nas unidades socioeducativas, as graves violações de direitos,
aliados aos altos índices de adolescentes mortos em razão de causas externas, foram
objeto de amplas discussões e intensas críticas por parte dos órgãos de proteção à
infância e juventude e diversos setores da sociedade brasileira, que culminaram na
edição da Lei 12.594/2012 (Lei do SINASE) 60.
A referida lei, além de instituir o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE), regulamenta a execução das medidas destinadas a adolescente
que pratique ato infracional e preconiza, expressamente, a necessidade de observância
dos princípios reitores do ECA e da incorporação de práticas restaurativas61 no âmbito
do sistema de Justiça Juvenil, nos termos do art. 35:
Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes
princípios:
I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais
gravoso do que o conferido ao adulto;
II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas,
favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos;

60 Disponível em:
http://www.sejudh.mt.gov.br/documents/412021/9910142/Levantamento+SINASE+_2016Final.pdf/4fd4bc
d0-7966-063b-05f5-38e14cf39a41. Acesso em: out. 2019.
61 No Brasil, as práticas restaurativas, apesar de implementadas pelo Poder Judiciário com base em

resoluções emitidas pelo Conselho Nacional de Justiça, não encontram previsão legal, salvo disposição
expressa na Lei do SINASE. A possibilidade de positivação da JR entre vem sendo discutida, no entanto,
desde 2006, por meio do Projeto de Lei n. 7.006/2006, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados,
em apenso ao Projeto de Novo Código de Processo Penal. Tal projeto de lei visa a alteração do Código Penal,
do Código de Processo Penal e da Lei n. 9.099/95, para instituir e regular o uso facultativo e complementar
da justiça restaurativa no sistema de justiça criminal.

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III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre


que possível, atendam às necessidades das vítimas;
IV - proporcionalidade em relação à ofensa cometida;
V - brevidade da medida em resposta ao ato cometido, em especial o
respeito ao que dispõe o art. 122 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente) ;
VI - individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias
pessoais do adolescente;
VII - mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos
objetivos da medida;
VIII - não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia,
gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual,
ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status ; e
IX - fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo
socioeducativo (BRASIL, 2012. grifo nosso).

Não obstante a Lei do SINASE, as iniciativas para implantação das práticas


restaurativas no âmbito da Justiça Juvenil ainda contavam com muita resistência por
parte dos atores jurídicos, que demonstravam lastro histórico e ideológico com a
mentalidade tutelar e com o modelo retributivo de responsabilização penal via punição,
ou, no dizer do ECA, medidas socioeducativas.
Atento a tais dificuldades, o CNJ, em 2016, publicou a Resolução 225, que disciplinou
a criação de centrais restaurativas em todo o território nacional. Embora a JR já
estivesse presente no debate jurídico-penal brasileiro desde o início dos anos 2000 62,
somente em maio de 2016, através dessa Resolução 225, foram estabelecidas
possibilidades mais concretas para sua efetiva implantação.
Nesse sentido, com o aporte normativo fixado pela Lei do SINASE, corroborado pela
Resolução 225/2016 pelo CNJ, o sistema de Justiça Juvenil brasileiro passou a contar
com os instrumentos legais necessários para a aplicação da JR, além de reafirmar os
pressupostos apresentados desde a edição do ECA, em 1990, que, no Capítulo V, de seu
Título VI, disciplina a atuação do Ministério Público frente a Infância e Juventude à luz
do Princípio da Oportunidade 63.

62 O processo de implementação da JR no Brasil foi iniciado nos anos 2000, culminando na elaboração de um
documento intitulado “Carta de Araçatuaba”, cuja Redação foi elaborada pelos integrantes do I SIMPÓSIO
BRASILEIRO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA, realizado na cidade de Araçatuba, estado de São Paulo - Brasil, nos
dias 28, 29 e 30 de abril de 2005. Tal documento foi posteriormente ratificado na CONFERÊNCIA
INTERNACIONAL DE ACESSO À JUSTIÇA, que ocorreu em Brasília em junho de 2005. A “Carta de Brasília”
funcionou como um importante marco para impulsionar a efetivação de projetos de implantação dos
programas de JR no território nacional. Disponível em: http://jij.tjrs.jus.br/justica-restaurativa/carta-
aracatuba. Acesso em: 14 jun. 2017.
63 RODRIGUES, 2017.

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De acordo com tal princípio, embora o Ministério Público detenha, com


exclusividade, a iniciativa processual nos procedimentos relativos à apuração de
infrações, o Promotor de Justiça tem a faculdade de não proceder à ação penal caso
julgue conveniente, de acordo com o fato e com as circunstâncias de cada caso
concreto, concedendo, assim, a remissão (nos termos do art. 126 a 128 do ECA). No
âmbito da Justiça Juvenil, o Princípio da Oportunidade reafirma o compromisso do
Estado com superior interesse e com a proteção integral dos adolescentes acusados da
prática de infrações penais64. Todavia, embora já presente na legislação infanto-juvenil
desde 1990, a observância de tal princípio ganhou força a partir das últimas inovações
mencionadas.
Nesse sentido, JR brasileira parece finalmente contar com os instrumentos
normativos e político-criminais necessários para avançar no âmbito da Justiça Juvenil e
se adequar aos modernos programas já desenvolvidos com êxito em outros países do
globo. Todavia, é sabido que, para além do arcabouço normativo, é necessário que tal
modelo seja compreendido como política pública e passe a contar com apoio
institucional e orçamentário que viabilize sua execução. Ademais, é cediço que uma das
principais barreiras para o desenvolvimento de tais políticas repousa na mentalidade
seletiva e punitivista ainda existente no país, o que torna a tarefa nada fácil, mas, nem
por isso, inglória e/ou prescindível.
Imbuída desse espírito e confiante nos novos rumos da JR no país, a equipe do Além
da Culpa também passou contar com abertura e apoio necessários para a colocação em
prática das ações iniciadas em 2012, na Comarca de Juiz de Fora/MG.

5.1. Perfil da rede socioeducativa e do sistema de Justiça Juvenil na Comarca de Juiz de


Fora/MG

Boa parte da rede socioeducativa que atua em Juiz de Fora/MG é centralizada


no prédio em que funciona a Vara da Infância e Juventude local, onde também é a sede
da Promotoria da Infância e Juventude local e o núcleo da Defensoria Pública estadual
responsável por essa vara especializada. Nesse mesmo prédio também estão o
Comissariado de Justiça da Infância e Juventude e os profissionais que compõem a
equipe técnica responsável pelos processos de competência da Vara da Infância, quais

64 RODRIGUES, 2017, p. 78.

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sejam: psicólogos e assistentes sociais. Em 2015, também passou a funcionar, nesse


mesmo edifício, a central de Justiça Restaurativa criada por meio do projeto Além da
Culpa, como se verá mais detalhadamente a seguir.
Além dos atores ligados ao poder judiciário, a rede socioeducativa juiz-forana
conta ainda com órgãos responsáveis pela execução das medidas de proteção (previstas
no art. 101 do ECA) e medidas socioeducativas (previstas no art. 112 do ECA). Quanto às
medidas de proteção, o acolhimento institucional (art. 101, VII ECA) se destaca como
uma das medidas de maior incidência, sobretudo porque recai sobre crianças e
adolescentes pobres, que compõem o público alvo da rede. No município, o
acolhimento institucional ocorre em caráter provisório e é destinado a crianças e
adolescentes com idades entre zero e 18 anos incompletos que tenham sofrido violência
sexual, física, psicológica, doméstica ou negligência familiar. Todos os trâmites
necessários para o acolhimento são realizados através da Vara da Infância e da
Juventude e, excepcionalmente, pelos Conselhos Tutelares 65, cujos encaminhamentos
serão direcionados para as unidades locais de acolhimento: Casa Estância Juvenil; Casa
Lar de Laura; Casa Vivendas do Futuro; Aldeias Infantis do Brasil.
No que tange à execução das medidas socioeducativas, observa-se que é
respeitada a organização fixada legalmente, de modo que compete ao poder público
municipal a execução das medidas em meio aberto (prestação de serviço à comunidade
e liberdade assistida), ficando o governo estadual com a gestão das medidas de
internação e semiliberdade. No âmbito municipal, as medidas socioeducativas de
prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida ficam a cargo da Secretaria de
Desenvolvimento Social (SDS), que organiza a demanda junto aos Centros de Referência
em Assistência Social (CRAS)66 e aos Centros de Referência Especializado de Assistência
Socias (CREAS)67.

65 O município de Juiz de Fora conta com três Conselhos Tutelares, quais sejam: CONSELHO TUTELAR I
(REGIÃO CENTRO/NORTE); CONSELHO TUTELAR II (REGIÃO SUL/OESTE); CONSELHO TUTELAR III (REGIÃO
LESTE). Maiores informações disponíveis em:
https://www.pjf.mg.gov.br/conselhotutelar/estrutura/composicao.php. Acesso: 10 fev. 2020.
66 O CRAS é a principal porta de entrada para os serviços da Proteção Básica. Presta atendimento às famílias

e indivíduos em situação de vulnerabilidade social, com o objetivo de fortalecer os vínculos familiares e


comunitários. Oferece atendimento e acompanhamento às famílias que moram nos bairros do seu território
de abrangência. Realiza atividades individuais ou em grupo e encaminha para serviços de atendimento a
crianças, adolescentes e idosos, entre outras atividades. Mais informações disponíveis em:
https://www.pjf.mg.gov.br/secretarias/sds/centros_referencias/cras.php. Acesso: 10 fev. 2020.
67 O CREAS é uma unidade pública que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos

em situação de ameaça ou violação de direitos. Nesse espaço são ofertados serviços de proteção a
indivíduos e famílias vítimas de violência, maus-tratos, negligência, entre outros. Sua atuação proporciona à

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Com relação às medidas socioeducativas em meio não aberto, quais sejam:


internação e semiliberdade, a competência para a execução é do governo estadual,
sendo geridas através da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS). Em Juiz de Fora,
as medidas de semiliberdade ficam a cargo do PEMSE (Polo de Evolução de Medidas
Socioeducativas), organização não governamental criada a partir de convênio
estabelecido entre o Estado de Minas Gerais e a Secretaria de Estado de Defesa Social
(SEDS). Atualmente, as atividades do PEMSE estão divididas em duas unidades, quais
sejam: Casa de Semiliberdade Caminheiros de Jesus, com capacidade de 16
adolescentes do sexo masculino e Casa de Semiliberdade Bethânia, com capacidade
para 20 adolescentes do sexo masculino.
Já as medidas socioeducativas de internação são executadas no Centro
Socioeducativo Santa Lúcia (doravante CSE), coordenado pela Subsecretaria de
Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE), subordinada à Secretaria de Estado
de Defesa Social (SEDS). O CSE de Juiz de Fora tem capacidade para 56 adolescentes do
sexo masculino, sendo 33 vagas para adolescentes sentenciados com a medida de
internação e 23 para internações provisórias. Considerando o perfil da Comarca, revela
notar que o número de vagas vem se mostrando insuficiente, pois são direcionadas ao
CSE local não apenas adolescentes de Juiz de Fora, mas de toda a região da Zona da
Mata e Sul de Minas Gerais, já que não existem outras unidades socioeducativas nessas
localidades. Destaca-se que, no período de produção deste estudo, o CSE local contava
com 90 adolescentes acautelados, ou seja, quase o dobro de sua capacidade.
Destaca-se que, embora o ECA tenha entrado em vigor no ano de 1990, somente
em 2008 o município de Juiz de Fora passou a contar com uma unidade socioeducativa,
que, como dito acima, abrange a toda a região da Zona da Mata e região Sul de Minas
Gerais. O CSE local, situado na região norte da cidade, é comumente apontado pela
população juiz-forana como Cerespinho, o que corresponde a uma espécie de apelido
que significa uma versão jovem de uma das unidades prisionais locais destinadas a
adultos, denominada CERESP (Centro de Remanejamento do Sistema Prisional).

família o acesso a direitos sociais. Busca, também, a construção de um espaço de acolhida e escuta
qualificada, fortalecendo vínculos familiares e comunitários. O público alvo inclui: crianças e adolescentes
vítimas de abuso, exploração sexual e violência doméstica, em situação de mendicância e trabalho infantil;
adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas; mulheres, idosos e pessoas com
deficiência com seus direitos violados. Mais informações disponíveis em:
https://www.pjf.mg.gov.br/secretarias/sds/centros_referencias/creas.php. Acesso: 10 fev. 2020.

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Até o ano de 2018, além do atendimento feito durante a execução das medidas
socioeducativas, os adolescentes residentes em Juiz de Fora também contavam com o
programa Se liga68, executado através da SUASE e destinado aos egressos do sistema
socioeducativo. O Se Liga visava apoiar o adolescente quando do cumprimento de sua
medida socioeducativa e auxiliar em sua reinserção social, incentivando aproximações
com a família, educação, trabalho, cultura e renda. Segundo os responsáveis, desde
2018 as atividades do Se liga foram interrompidas na cidade devido a questões
orçamentárias.
Em 2012, quando foram iniciadas as atividades do projeto Além da Culpa, a rede
socioeducativa local parecia estar seguindo o padrão que vigora em todo o país,
caracterizado pela primazia da aplicação das medidas socioeducativas em meio não
aberto e pela predominância de sua imposição a adolescentes negros, pobres e do sexo
masculino69. Embora a realidade em juiz-forana não fosse tão desoladora como a
verificada em outras unidades que padecem com superlotação e maus tratos, sabíamos
que a dinâmica dos atendimentos socioeducativos na cidade estava aquém do ideário
propugnado pelo ECA e distante dos inovadores programas de JR que nos serviam de
modelo.

5.2. Início das atividades e metodologias adotadas

O Além da Culpa foi implementado na Comarca de Juiz de Fora em 2012, por


iniciativa da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, sob a coordenação das
defensoras públicas Maria Aparecida Rocha de Paiva e Margarida Maria Barreto
Almeida, responsáveis pela Defensoria da Vara da Infância e da Juventude à época. Por
meio de convênio70 assinado com o Governo Federal para a execução do projeto, o Além
da Culpa passou a contar com recursos próprios, o que tornou possível a seleção e
contratação de técnicos e estagiários, a compra dos materiais e a organização do espaço
onde passaria a funcionar a Central de Práticas Restaurativas, cuja sede, cedida pelo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, se localiza no mesmo prédio onde funciona a Vara
da Infância e Juventude local.

68 Mais informações em: http://www.seguranca.mg.gov.br/socioeducativo/programas-e-acoes/se-liga.


Acesso em: 10 fev. 2020.
69 RODRIGUES, 2017.
70 Convênio nº 777124/2012, firmado entre a DPMG e SDH/PR, através do setor de projetos e convênios da

Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.

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Passada a fase de estruturação do projeto, ainda em 2012, foram realizados


diversos treinamentos e palestras se sensibilização sobre JR, haja vista ser este um tema
muito novo à época. Com o intuito de atender às exigências da Lei do SINASE para a
implantação de programas de JR, todos os voluntários, técnicos e estagiários
participaram de cursos de capacitação enquanto facilitadores 71, para que pudessem
atuar de maneira adequada e preparada.
No ano de 2013, os integrantes do projeto, vinculados à Defensoria Pública,
realizaram visitas técnicas à Escola Municipal Gabriel Gonçalves e ao CSE, ambos em Juiz
de Fora e também passaram por treinamentos junto às equipes de outros projetos de JR
nas cidades de São Caetano do Sul/SP72 e Porto Alegre/RS73, cujo papel pioneiro nas
práticas restaurativas no país já foi mencionado acima.
No início de 2015, todos os integrantes do projeto contaram com curso de
capacitação como facilitadores, que foi ministrado pela psicóloga Monica Maria Ribeiro
Mumme74, idealizadora dos cursos para a implantação de políticas públicas para a JR
junto à Escola Paulista de Magistratura. O curso contou com representantes de diversas
instituições, como: Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Juiz de Fora, Secretaria Municipal de Educação, Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, Polícia Militar, entre outras.
Durante o período de formação, a equipe da Defensoria encontrou desafios para
a devida efetivação do projeto, o que foi possível, a partir de 2015, através das parcerias
firmadas com a 12ª Promotoria da Justiça da Infância e Juventude de Juiz de Fora e com
a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. No mesmo ano, graças a
ações de natureza interventiva, foi possível colocar em funcionamento a Central de
Práticas Restaurativas.
No âmbito da UFJF, o Além da Culpa passou a funcionar como um projeto de
extensão acadêmica em 2015, vinculado à Pró-Reitoria de Extensão (área de extensão

71 Atendendo ao disposto na Resolução n° 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os facilitadores


devem possuir alto grau de empatia e capacitação, sendo responsáveis por conduzir os círculos
restaurativos a partir de um ambiente seguro, capaz de propiciar diálogos abertos e não violentos sobre o
conflito em questão. Em todos os círculos os facilitadores são apoiados por co-facilitadores, que também
passam por treinamentos e capacitação para atuarem como tais.
72 Justiça Restaurativa e comunitária em São Caetano do Sul\SP. Mais informações disponíveis em:

http://www.tjsp.jus.br/Download/CoordenadoriaInfanciaJuventude/JusticaRestaurativa/SaoCaetanoSul/Pu
blicacoes/jr_sao-caetano_090209_bx.pdf. Acesso em:15 jun.2017
73 Justiça Restaurativa – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Mais informações disponíveis em

http://jij.tjrs.jus.br/justica-restaurativa. Acesso em 15 jun 2017.


74 Currículo disponível em: <http://laboratoriodeconvivencia.com.br/?page_id=145>. Acesso em: 14 jun.

2017.

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Direitos Humanos e Justiça). A perspectiva de JR adotada nas ações extensionistas é a


de que a JR se trata de um modelo de justiça compreendido como um conjunto de
métodos alternativos de resolução de conflitos criminais, que funciona de maneira
contraposta aos sistemas de justiça tradicionais, especialmente aqueles orientados pela
lógica retributiva, tendo por objetivo a voluntariedade das partes e a responsabilização
da pessoa tida como autora da infração penal.
As atividades de extensão interagem com as atividades do NEPCrim (Núcleo de
Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da UFJF), sediado no
NPJ (Núcleo de Prática Jurídica) da mesma instituição, e têm por objetivo promover a
aplicação do método e das técnicas da JR nos processos de verificação de ato infracional
e/ou execução de medidas socioeducativas que tramitam perante a Vara da Infância e
Juventude da Comarca de Juiz de Fora. Além disso, são promovidos cursos de
capacitação de facilitadores, palestras e seminários consentâneos à temática, o no
intuito de colaborar com a divulgação da JR na cidade e região.
Para participarem do projeto foram selecionados, inicialmente, 10 (dez)
estagiários, todos devidamente matriculados no curso de Direito da UFJF, que,
voluntariamente, passaram a atuar, juntamente com os referidos professores e com a
equipe da Defensoria e demais voluntários, na Central de Práticas Restaurativas 75. As
atividades foram exitosas que conferiram à equipe do projeto de extensão a premiação,
na categoria Direitos Humanos, na I Mostra de Extensão da UFJF, realizada em 2016 76.
Além das atividades extensionistas, a professora coordenadora iniciou, em 2016,
um projeto de pesquisa, na modalidade iniciação científica77, para refletir sobre as
possibilidades e impactos da implantação da JR em Juiz de Fora, objetivando analisar os
impactos dos mecanismos alternativos de resolução de conflitos criminais entre
adolescentes. À luz da Criminologia crítica, tais estudos buscaram contribuir para a
consolidação de uma proposta contra-hegemônica do discurso dominante que se
caracteriza por criminalizar a juventude popular, representando um esforço intelectual
para a condução dos debates acerca da Justiça Juvenil pátria a perspectivas mais
humanizadas e progressistas.

75 Maiores informações sobre o processo seletivo do referido projeto de extensão acadêmica disponíveis
em: <http://www.ufjf.br/direito/files/2010/05/Edital-Bolsista-de-Extens%C3%A3o-alem-da-culpa.pdf>.
Acesso em: 14 jun. 2017.
76 Mais informações disponíveis em:< http://www.ufjf.br/noticias/2017/01/12/causas-e-consequencias-dos-

atos-de-menores-infratores-e-estudo-de-projeto-de-extensao/>. Acesso em: 14 jun. 2017.


77 Mais informações em: <http://www.ufjf.br/propp/files/2016/07/Resultado-BIC-PIBIC-2016-
Atualizado2.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2017.

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Do ponto de vista metodológico, as práticas mais utilizadas pela equipe nas


atividades extensionistas são os chamados círculos restaurativos, que têm por objetivos:
i) apoiar os participantes a apresentarem seus pontos de vista em relação ao
acontecimento infracional e ajudá-los a se conduzirem com base nos valores que
representam quem eles são quando estão no seu melhor momento; ii) fazer com que a
ligação entre as pessoas fique visível e o mais equânime e respeitosa possível, mesmo
em face de diferenças significativas; iii) buscar o engajamento entre os participantes
para com o procedimento realizado, de modo que todos possam deliberar livremente
sobre os fatos.
Com fulcro nessa metodologia, a equipe atua em dois momentos processuais
diferentes, sendo o primeiro na fase de apuração do ato infracional, quando, diante do
fato praticado, em tese, pelo adolescente, o Parquet representa contra ele, dando início,
assim, à ação de natureza penal de competência do Juiz da Vara da Infância e Juventude.
Recebidos os autos, o magistrado avalia a possibilidade de encaminhamento do feito
para a Central de Práticas Restaurativas, que, ouvida a defesa e o MP, ficará responsável
por tomar os procedimentos junto às partes envolvidas para a realização do
procedimento restaurativo. Quando o encaminhamento à Central de Práticas
Restaurativas se dá na fase de apuração do ato infracional, o juiz procede à suspensão
do processo para a realização da prática restaurativa, e, caso o procedimento seja
exitoso, pode culminar na extinção do feito, como vem ocorrendo em vários casos desde
o início das atividades.
Ademais, a equipe do projeto também atua na fase pós-condenação, qual seja: a
fase de execução das medidas socioeducativas, através da realização de oficinas no CSE
local ou de promoção dos chamamos de círculos de reinserção familiar, que também
ocorrem na Central de Práticas Restaurativas.
Para que o procedimento restaurativo de apuração de ato infracional seja
completo, ele deve contar com três fases: i) pré-círculos (que compreendem a fase de
preparação, em que as partes são contatadas e convidadas para participar
voluntariamente do procedimento); ii) círculos restaurativos (que sucedem os pré-
círculos exitosos e compreendem a efetiva realização das atividades e encontros
restaurativos); iii) pós-círculos (que consistem em acompanhamentos feitos pela equipe
do projeto para verificar o cumprimento das propostas restaurativas firmadas nos
círculos).

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Para a realização dos pré-círculos, os membros da equipe se deslocam


pessoalmente até a residência do adolescente e o convidam, na presença de seus
responsáveis, a participar do procedimento. Caso o adolescente e os responsáveis
aceitem o convite, a equipe solicita que indiquem outras pessoas, além do ofensor e da
vítima, cuja participação consideram importante. Essas pessoas indicadas funcionam
como apoiadores (pessoas do relacionamento dos envolvidos, como parentes, amigos,
empregadores, etc.) ou como referências comunitárias (líderes comunitários ou
religiosos, policiais, testemunhas, professores e outros profissionais relacionados às
pessoas e/ou ao caso), que auxiliarão as partes na construção das propostas
restaurativas.
Feita a visita ao adolescente, a equipe se desloca à residência das demais partes
envolvidas para convidá-las a participarem do círculo restaurativo. Finalmente,
concluída com êxito a etapa de pré-circulo, a equipe responsável define data e horário
específico para a realização do encontro, que, como já dito, é realizado na Central de
Práticas Restaurativas.
Ao longo das atividades, foi possível perceber que o contato presencial entre a
equipe do projeto e as partes na fase de pré-círculo é de grande importância para o
êxito do procedimento restaurativo, na medida em que, através dele, é possível
conhecer a realidade do adolescente e de seus familiares, o que facilita as abordagens
durante os círculos restaurativos e humaniza a percepção da equipe acerca do
adolescente, que deixa de ser percebido como apenas mais um réu cuja suposta
infração foi relatada nos autos.
No que tange aos desafios enfrentados pela equipe para realização dos pré-
círculos, cumpre destacar que em razão da condição social da maioria dos adolescentes
e demais envolvidos, direta ou indiretamente, serem pobres, suas residências são de
difícil acesso, sendo necessário transporte para a locomoção da assistente social e dos
estagiários responsáveis pela visita. No entanto, como o transporte é fornecido pela
Defensoria Pública e deve ser subordinado às outras demandas da instituição, a
disponibilidade de dias e horários é restrita, o que dificulta o contato com as partes e o
efetivo agendamento dos círculos. Na tentativa de ultrapassar essa barreira, a equipe do
projeto realizou, durante o ano de 2019, diversas tentativas de contato com as partes
via telefone. Todavia, foi observado que o contato telefônico é menos eficiente ou, até

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mesmo, menos acolhedor que o pessoal, sendo possível notar maior número de faltas,
mesmo com a confirmação anterior da presença pelo telefone.
Passada a fase de pré-circulo, no círculo restaurativo, presentes os facilitadores,
co-facilitadores, as pessoas identificadas como ofensor e vítima e seus apoiadores, todos
se assentam de forma circular, no sentido de demonstrar a posição de igualdade entre
os participantes e a necessidade do respeito e atenção mútuos. Os facilitadores
posicionam objetos e materiais de apoio no centro do círculo a fim de dar apoio à fala e
à escuta dos participantes. Ademais, a equipe utiliza um objeto para demarcar o
momento de fala dos participantes, que é denominado bastão ou objeto de fala. Tal
objeto circula de pessoa por pessoa, demarcando o espaço de fala daquele que o detém
e estimulando a alteridade e a escuta dos demais, que, em seguida, também poderão se
expressar enquanto estiverem segurando o bastão.
Na condução dos círculos restaurativos, os facilitadores elaboram perguntas e
estimulam a fala dos participantes a partir de fatos, valores e sentimentos que são,
pouco a pouco, abordados pelo grupo. Ao longo dos círculos realizados, atendendo à
proposta da comunicação não violenta, os facilitadores não abordam o conflito entre as
partes de forma imediata. Ao contrário, as rodadas iniciais procuram fomentar o diálogo
a respeito de temas amenos e alheios ao cerne do conflito decorrente do ato infracional
em questão, permitindo às partes falarem sobre os sentimentos e perspectivas que,
naturalmente, permeiam os primeiros apontamentos acerca da conflitividade que será
discutida no círculo.
Importante salientar, ainda, que, ao longo de todo o encontro circular, são
exploradas as necessidades das partes, o que se dá através de um diálogo seguro e
voluntário, em que todos têm a opção de não falarem ou, até mesmo, de desistirem do
procedimento, se assim desejarem. Caso isso não ocorra e os integrantes evoluam no
diálogo acerca do conflito propriamente dito, os facilitadores procuram estimulá-los na
construção de uma proposta restaurativa coletiva que promova a pacificação das
controvérsias e, se possível, aponte possibilidades para a restauração dos laços que
foram rompidos com o ato infracional.
Ressalta-se que todas as fases do procedimento restaurativo são devidamente
documentadas e o relatório final, confeccionado após a realização do círculo
restaurativo, no qual consta a proposta restaurativa construída coletivamente pelas
partes, é juntado aos autos do processo de apuração do ato infracional para posterior

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análise do juiz responsável, que decidirá pela extinção do feito ou pela valoração da
participação como condição pessoal favorável na escolha da medida socioeducativa a
ser imposta.
No que tange às dificuldades encontradas pela equipe para realização dos
círculos restaurativos, destaca-se a dificuldade que as partes têm de se locomoveram
até a Vara da Infância e da Juventude, pois, em razão da distância dos bairros em que
residem, normalmente distantes do centro da cidade, nem sempre dispõem de dinheiro
para a condução. Outro entrave observado pela equipe é fato de a Central de Práticas
Restaurativas funcionar no ambiente forense, o que causa certo desconforto e temor às
partes, mesmo que orientada, na fase de pré-círculo, que a natureza das práticas
restaurativas é diferenciada dos ritos tradicionais das audiências.
Cumpre salientar que o perfil dos feitos encaminhados à Central de Práticas
Restaurativas corresponde a, na maioria dos casos, a atos infracionais de pequeno e
médio potencial ofensivo, com destaque para condutas análogas aos crimes de ameaça;
injúria; difamação; calúnia; lesão corporal leve, dano e furto, bem como a contravenção
penal de vias de fato, o que é visto pela equipe como um ponto negativo, já que é cediço
que a JR pode ser aplicada também em casos de infrações graves.
Apresentadas as formas de intervenção nos casos de apuração de ato
infracional, convém apresentar as demais formas de intervenção do Além da Culpa,
agora na fase de execução da medida socioeducativa imposta ao adolescente por meio
de sentença condenatória. A primeira é a realização de oficinas semanais no CSE local
com um grupo de em média 10 adolescentes por semestre, que são selecionados pela
equipe técnica do CSE. Ao final de cada módulo, as atividades são consignadas nos autos
e, caso sejam tidas pelo juiz como exitosas, podem contribuir para a progressão e/ou
extinção da medida socioeducativa. A segunda é a realização de círculos que reinserção
familiar, que ocorrem na Central de Práticas Restaurativas e contam com a participação
do adolescente, sua família e/ou membros da comunidade, com o intuito de fortalecer
laços familiares e sociais que possam ter sido afetados em razão do ato infracional.
Já os círculos de reinserção familiar, que são realizados de maneira conjunta
entre a equipe do projeto e a equipe técnica de referência dos no CSE, consistem na
utilização da metodologia circular com a finalidade de promover o diálogo entre
adolescente, seus familiares e membros da comunidade, no sentido restaurar relações
familiares e sociais, para que o adolescente, após cumprir a medida socioeducativa,

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possa retomar o convívio com sua família e grupo social. A ideia é trabalhar situações de
abandono e/ou rivalidades que correm risco de ser revisitadas quando do retorno do
adolescente ao meio livre.
Diferentemente dos círculos restaurativos para verificação de ato infracional,
que buscam a responsabilização do adolescente pelo ato cometido e pelos danos
resultantes, os círculos de reinserção social não tratam de questões de mérito e visam
tão somente fortalecer os vínculos familiares e sociais do adolescente, representando
uma espécie de apoio ao seu retorno ao lar e à sociedade após o cumprimento da
medida socioeducativa de privação e/ou restrição de liberdade. Tal perspectiva é
formulada à luz da compreensão de que a JR pode funcionar como ação afirmativa de
reinserção social, uma vez que leva em conta tanto o fato de que o adolescente ficou
deslocado de seu meio social em razão das consequências advindas da prática do ato
infracional, como também tem em mira a importância do fortalecimento dos vínculos
estremecidos, ou mesmo, quebrados em razão do conflito vivenciado pelas partes.
Quanto aos entraves, destaca-se que nos círculos de reinserção familiar a
equipe encontra uma série de dificuldades para a participação do adolescente em razão
de ele sob a custódia do CSE, ficando a presença prejudicada em razão de falta de
escoltas e/ou veículos para transporte. Ademais, o histórico de abandono e negligência
familiar vivenciado pelos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de
internação dificulta o contato com os familiares para o apoio à reintegração do jovem à
família e à comunidade de origem.
Na realização de todas as atividades, a equipe extensionista tem a clareza de
que o fato de a Central de Práticas Restaurativa funcionar no ambiente forense é um
ponto desfavorável, haja vista o constrangimento e, até mesmo medo, que muitos
adolescentes, familiares e demais participantes têm de se dirigir a esses espaços.
Ademais, a equipe mantem-se atenta aos riscos de captura do procedimento
restaurativo pela lógica do sistema de justiça criminal tradicional, por isso são feitas
reuniões periódicas de estudos, treinamentos e compartilhamento de experiências, à luz
da Criminologia crítica, para que possam ser sempre fomentados os debates críticos
acerca das práticas levadas a efeito pelo grupo e da conveniência de repasse de tais
críticas aos atores jurídicos e institucionais envolvidos. Outro ponto que merece a
atenção da equipe extensionista é o risco de a JR se tornar uma espécie de expansão do
poder punitivo estatal, sendo aplicada em casos em que a remissão em face do

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adolescente foi considerada cabível, o que implicaria em um ônus desarrazoado para o


adolescente78.

Considerações Finais

Pelo exposto, verifica-se que o tratamento conferido pelas diferentes instituições à


infância e adolescência brasileiras ao longo dos últimos século sempre esteve voltado ao
seu controle, de modo a garantir que as questões sociais, consideradas como
problemáticas, fossem administradas a depender dos interesses dominantes vigentes às
diferentes épocas. Nota-se que, nos diferentes momentos históricos destacados, os
agentes de poder conduziram as ações de modo a construir uma imagem anormal e
criminalizada da infância, adolescência e juventude pobres, tendência que, entre
rupturas e permanências, perdurou até a edição do ECA em 1990 e ainda se faz presente
na contemporaneidade.
Passados 30 anos da edição do ECA, é possível perceber importantes avanços
trazidos pela referida lei, sobretudo no que tange à elevação das crianças e adolescentes
à categoria de sujeitos de direitos e destinatários de garantias fundamentais. Forçoso
reconhecer, no entanto, que tais mudanças não garantiram o cumprimento desses
direitos e garantias, uma vez que a realidade brasileira se mostrou inacessível à
execução plena dos mesmos.
Nesse sentido, embora não se deixe de reconhecer os méritos da lei, imperioso
é refletir sobre os desajustes entre o discurso legal e mecanismos eleitos para realizá-lo
terminaram por subverter as propostas reitoras do Estatuto.
Ao trazer a noção de medidas restritivas e privativas de liberdade como ultima
ratio, o ECA esbarra em um punitivismo que, além de ser uma permanência histórica do
sistema de Justiça juvenil pátrio, vem sendo amplamente fortalecido nos últimos
decênios pelos discursos neoliberais e pelas perspectivas político-criminais de expansão
e recrudescimento. Tal percepção permite concluir que ainda há muitos desafios pela
frente para se fazer valer o arcabouço principiológico, normativo e axiológico previsto
no ECA.

78 ROSENBLATT, 2014a, 2014b.

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Nesse sentido, acredita-se que, para que se possa contribuir para a promoção da
proteção integral dos adolescentes brasileiros acusados e/ou condenados pela prática
de atos infracionais, imperiosas se fazem iniciativas capazes de dotar de eficácia os
princípios reitores do Estatuto. À luz de tais princípios, a JR se apresenta como uma
fecunda proposta de responsabilização dos adolescentes por seus atos infracionais que,
sem recorrer à ideologia retributivista, rompe com a lógica meramente punitiva e, ao
mesmo tempo, promove uma justiça integradora, participativa, preocupada em alcançar
todos envolvidos no conflito, quais sejam: a vítima, o ofensor e a comunidade.
Para garantir a difusão e concretização dos programas de JR pelo país é
necessário que haja apoio estatal para sua implantação e capacitação de novos
facilitadores, além da destinação de recursos à viabilização e melhoramento das práticas
restaurativas.
É justamente nesse movimento que vemos as universidades como agentes
parceiros desse projeto promissor de implantação da JR pelo país. Sabemos que há
muito a ser feito, mas, mesmo diante de um cenário de expansão punitiva, a UFJF,
através do Além da Culpa, já começou a avistar um horizonte de possibilidades
libertárias através da extensão acadêmica.

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______. Justiça Restaurativa. Edição ampliada e atualizada. 2 ed. São Paulo: Palas
Athena, 2017.

Sobre os autores

Ellen Rodrigues
Doutora em Direito Penal (UERJ), com estágio doutoral na Universität Greifswald
(Alemanha), Mestre em Ciências Sociais (UFJF), Advogada, Professora Adjunta de
Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da UFJF. Coordenadora do
NEPCrim. E-mail: ellen.rodriguesjf@gmail.com

A autora é a única responsável pela redação do artigo.

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As fissuras e a crise do trabalho abstrato

John Holloway¹

Versão original: “Las grietas y la crisis del trabajo abstracto”, in ADAMOVSKY, Ezequiel
(Org.) (2011) Pensar las autonomías: alternativas de emancipación al capital y el Estado.
1ª ed. México D.F.: Sísifo Ediciones, Bajo Tierra.

Tradução recebida em 21/01/2020 e aceita em 07/06/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Introdução

No presente artigo, sugiro que o fundamental para compreender as autonomias está na


revolta da oposição ao trabalho. Relaciono essa revolta com o conceito de Marx sobre o
duplo caráter do trabalho.

I1

A essência das autonomias está na negação e na apresentação de uma alternativa. A


própria ideia de um espaço ou momento autônomo indica uma ruptura com a lógica
dominante, uma fissura ou uma mudança de rumo no fluxo da determinação social.
“Não aceitaremos uma determinação alheia ou externa a nossa atividade, nós
determinaremos o que faremos”. Negamo-nos, recusamo-nos a aceitar a determinação
alheia e contrapomos essa atividade externamente imposta por uma atividade de nossa
própria seleção, uma alternativa.
A atividade que rejeitamos geralmente é vista como parte de um sistema,
parte de um padrão razoavelmente coerente de atividade que é imposta, logo, um
sistema de dominação. Muitos movimentos autônomos, ainda que não todos, referem-
se a esse padrão de atividade rejeitado como capitalismo: veem-se como
anticapitalistas. No entanto, o traço distintivo da aproximação autonomista é o que
envolve não somente uma hostilidade contra o capital em geral, mas também uma
hostilidade contra a atividade vital específica imposta pelo capitalismo aqui e agora, e
um intuito de oposição ao capital, atuando de uma forma diferente. Estabelecemos uma
atividade diferente, que busca seguir uma lógica diferente, contra a atividade capitalista.
Falamos aqui de dois diferentes tipos de atividades: uma atividade que é
imposta externamente e vivida como diretamente desagradável, ou como parte de um
sistema que rejeitamos, e outra que empurra para a autodeterminação. Na realidade,
precisamos de palavras diferentes para esses dois tipos de atividades. Atenderemos à
sugestão de Engels no roda pé da página de O Capital (Marx, 1965: 47), ao nos
referirmos ao primeiro tipo de atividade como trabalho (labour) e ao segundo

1 O argumento do presente artigo é elaborado mais profundamente no meu próximo livro


Agrietar el capitalismo: el hacer contra el trabjo (Fissurar o capitalismo: o fazer contra o trabalho)
que será publicado por Bajo Tierra Ediciones/Sísifo.
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simplesmente como fazer (doing). Dessa maneira, as autonomias podem ser vistas como
revoltas de oposição ao trabalho.

II

A opção do fazer tem um encanto ético e emocional muito forte. Dedicamos nossas
vidas às atividades que nos agradam ou que nos parecem ser importantes. Rejeitar-se a
lógica do dinheiro ou os requisitos do capital e dedicar-nos a criar um mundo mais justo,
um mundo que não toma seu ponto de partida em maximizar a ganância, senão na luta
por um mundo baseado no reconhecimento mútuo da dignidade humana, é
moralmente satisfatório e preenche-nos como pessoas.
A dificuldade se dá no fato de que nossas tentativas de atuar de maneira
diferente estão em contradição com a lógica dominante, com a síntese social
dominante. O trabalho que rejeitamos é parte de um estreito tecido social e de uma
lógica coerente do capital. Essa lógica governa o acesso aos meios de sobrevivência e
produção. Rejeitar-se essa lógica e optar por outro tipo de fazer significa que teremos
dificuldades para acessar o que precisamos para viver, assim como para realizar o
projeto criativo que temos em mente. Optar-se pelo fazer é optar pela exclusão: a
exclusão de uma lógica que está claramente destruindo as bases da existência humana,
mas uma lógica que é, ao mesmo tempo, a base da reprodução humana.
Nossas alternativas sempre existem à beira da impossibilidade. Logicamente
falando, não deveriam existir – pelo menos, segundo a lógica do capitalismo. Mas
existem: frequentemente passageiras e com muitas dificuldades e contradições,
sempre frágeis e correndo o risco de desaparecer, ou, ainda pior, de serem
transformadas em um novo elemento do sistema político ou social. Não deveriam
existir, e ainda assim existem, e estão se multiplicando e expandindo.

III

Podemos pensar nesses espaços ou momentos de outro-fazer como fissuras no sistema


de dominação capitalista. Não são precisamente autonomias porque de fato não se

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governam: são empurrões nessa direção. São empurrões contrários, porque empurram
contra a lógica do capital. Assim, precisamos de um conceito negativo no lugar de um
positivo: fissuras em vez de autonomias.
O problema com “a autonomia” é que nos leva facilmente a uma interpretação
identitária. “As autonomias” podem ver-se como unidades autossuficientes, espaços
onde escapamos e nos quais podemos construir ou desenrolar uma identidade definida,
uma diferença. Em um mundo baseado na negação da autonomia ou da
autodeterminação, a autonomia, em um sentido estático, é impossível. A
autodeterminação não existe: o único que existe é o impulso constante para a
autodeterminação, que é o mesmo que o impulso contra-e-para-além da negação da
autodeterminação, e, como parte desse impulso, a criação de espaços ou momentos
extremamente frágeis nos quais vivenciamos o mundo que queremos criar.
A fissura é um conceito negativo e instável. A fissura é uma ruptura da lógica
da coesão capitalista, um rompimento no tecido da dominação. Já que a dominação é
um processo ativo, as fissuras não podem estar quietas. Correm, estendem-se,
expandem-se, juntam-se ou não com outras fissuras, preenchem-se ou são escondidas,
reaparecem, multiplicam-se, estendem-se. Rompem a partir das identidades. A teoria
das fissuras, então, é necessariamente crítica, anti-identitária, agitadamente negativa,
uma teoria de rompimentos e criações, e não uma teoria de unidades autossuficientes.
As fissuras na dominação capitalista existem por todas as partes. “Hoje não
vou trabalhar porque quero ficar em casa e brincar com as crianças”. Esta decisão talvez
não tenha o mesmo impacto que o levantamento zapatista, mas tem a mesma essência:
“Não, não faremos aquilo que o capital nos disse, faremos o contrário, faremos o que
consideramos necessário ou preferível”. A maneira mais óbvia de pensar nessas revoltas
é em termos espaciais (“aqui em Chiapas, aqui nesse centro social, não nos
submeteremos ao capital, faremos o contrário”), mas não há razão para as quais não
devemos pensar em termos temporais (“durante esse fim de semana, ou durante este
seminário, ou pelo tempo que pudermos, dedicaremos toda nossa energia para criar
relações que desafiam a lógica do capital”). Ou, novamente, nossas provocações
poderiam ser temáticas ou relacionadas particularmente aos tipos de recursos ou
atividades: “não permitiremos que a água, ou a educação, ou o software sejam
governados pela lógica do capital, esses devem ser entendidos como bens comuns e os
faremos sob uma lógica diferente”, e assim sucessivamente.

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As revoltas contra a lógica do capital existem em todos os lados. Muitas vezes


o problema se dá no reconhecimento delas, ou seja, não as reconhecemos; porém,
conforme focamos mais nossas mentes nas fissuras, mais a nossa visão do mapa como
um todo se modifica. O mapa do mundo não é apenas um mapa de dominação, é
também um mapa de revoltas, de fissuras se abrindo, alcançando, correndo, juntando-
se, fechando-se, multiplicando-se. Conforme mais nos focamos nas fissuras, mais se
abre uma imagem diferente do mundo, um tipo de antigeografia que somente reveste
os indícios do espaço, mas que desafia em si a dimensionalidade.
Somente partindo desse ponto podemos pensar em como se pode mudar
radicalmente o mundo. A revolução só pode ser o reconhecimento, a criação, a
expansão e a multiplicação das ditas fissuras: é difícil imaginar qualquer outra forma de
modificar radicalmente o mundo.
É óbvio que essas fissuras, ou espaços-momentos de negação-e-criação,
enfrentam dificuldades, dado o fato de que não são espaços autônomos, senão
tentativas de se protegerem contra-e-para-além da lógica da racionalidade capitalista.
As fissuras estão ameaçadas pela repressão ou cooptação por parte do Estado, pela
reprodução interna de padrões de comportamento adquiridos pela sociedade que
rejeitamos e, talvez ainda mais poderosa e traiçoeiramente, pela força corrosiva do
valor, a regra do mercado. Visto sob a perspectiva da totalidade social, não deveriam
existir; sob a perspectiva da racionalidade capitalista, são lógicas impossíveis, absurdas e
loucas. Entretanto, aí estão: uma revolta crescente em reação ao trabalho.

IV

Essas fissuras são movimentos antissistêmicos, contra a coesão ou coerção do sistema


social. Se entendermos esse sistema como um sistema capitalista, então, são
movimentos anticapitalistas, usando-se ou não o termo “capitalismo”. Não são somente
as formas de lutas anticapitalistas, mas, sim, uma forma que cresceu enormemente em
importância.
Uma questão importante que surge é se a teoria anticapitalista mais
importante, o marxismo, é relevante na compreensão desses movimentos. Muitos
ativistas rejeitam o marxismo, como algo irrelevante para suas lutas, e veem-no

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estritamente ligado às formas de luta que estão rejeitando: a velha luta anticapitalista
dos sindicatos e dos partidos reformistas ou revolucionários. E muitas vezes a análise
marxista parece vagar pelas nuvens, longe e separada da recente onda de lutas contra o
capitalismo. De modo que a pergunta sobre a relevância do marxismo é tão importante
para esses movimentos, como é para a teoria marxista.
As fissuras (ou as autonomias) são revoltas que contrariam o trabalho, uma
forma de atividade contra outra. A atividade humana tem um duplo caráter, auto-
antagonista. O duplo caráter, auto-antagonista da atividade humana, ou como ele o
chamou, o “duplo caráter do trabalho”, é o tema central da obra de Marx. Qualquer
teoria sobre as fissuras, sobre as revoltas que contrariam o trabalho, devem partir do
mesmo ponto.
O jovem Marx, nos Manuscritos de 1844, fez uma distinção entre o trabalho
alienado e a atividade vital consciente. A atividade vital consciente é a atividade
autodeterminada, com sentido e é o que distingue os humanos dos demais animais.
Marx considera que sob o capitalismo, essa atividade vital consciente existe de forma
alienada, um trabalho que nos separa dos nossos próximos e do nosso ser genérico.
Marx já não utiliza o mesmo vocabulário que em O Capital, mas, desde as primeiras
páginas, insiste no duplo caráter do trabalho como “o eixo em torno do qual gira a
compreensão da Economia Política” (Marx, 1965: 41) e, portanto, uma compreensão
clara do capitalismo. Logo depois da publicação do primeiro volume, Marx escreveu para
Engels: “os melhores pontos no meu trabalho são os seguintes: 1) o duplo caráter do
trabalho, em função de se expressar como valor de uso ou como valor de troca (Toda
compreensão dos fatos depende disso. Se destaca de imediato no primeiro capítulo)”
(Marx, 1987: 407)2.
O duplo caráter do trabalho em O Capital se refere à distinção entre o trabalho
abstrato e o trabalho útil ou concreto. O trabalho concreto produz valores de uso e
existe em qualquer sociedade, mas no capitalismo existe na forma de trabalho abstrato,
trabalho captado de suas especificidades, trabalho que produz valor. A distinção entre o
trabalho abstrato e o trabalho concreto é uma forma elaborada da distinção anterior

2 Marx continua: “2) o tratamento do valor agregado independentemente de suas formas


particulares como ganância, interesse, renda, etc.”, mas isso não nos compete no momento.
Notem que Marx também considerou isso como sua contribuição distintiva: “Fui o primeiro a
destacar e examinar criticamente essa natureza dupla do trabalho contido nas mercadorias.”
(Marx, 1965: 41).
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entre trabalho alienado e a atividade vital consciente. O trabalho concreto é a atividade


humana, criativo-produtiva, ou o fazer, sem levar em conta a sociedade em que tem
lugar; o trabalho abstrato é trabalho não autodeterminante no qual toda a qualidade é
reduzida à quantidade.
No capitalismo, nossa atividade (fazer) é transformada em trabalho abstrato. É
tratada como atividade desprovida de especificidade concreta, uma atividade que há de
ser quantificada e medida frente a outras atividades no intercâmbio de mercadorias. A
abstração não é só uma abstração conceitual, ela surge sobre a qualidade do fazer em si.
Faço um bolo. Desfruto da preparação, do comer, desfruto do compartilhamento com
os meus amigos e estou orgulhoso do bolo que eu preparei. Então, decido que tentarei
ganhar a vida fazendo bolos. Faço bolos e os vendo no mercado. O bolo eventualmente
se converte em um meio de ganhar o suficiente para viver. Tenho que produzir o bolo a
uma certa velocidade e de uma certa maneira para poder manter o preço
suficientemente baixo para vender. Desfrutar deixa de ser parte do processo. Com o
tempo, dou-me conta de que não estou ganhando dinheiro suficiente e penso que, dado
que fazer bolos é, em todo caso, somente um modo para conseguir um fim ou uma
forma de ganhar dinheiro, então, realmente dá no mesmo se faço outra coisa que se
vende mais. O meu fazer se voltou completamente diferente de seu conteúdo, houve
uma total abstração de suas características concretas. Neste momento o objeto que
produzo já está tão alienado a mim que, para mim, um bolo e um veneno para ratos são
iguais, com tanto que se vendam.
O importante é que essa abstração não somente converte a atividade em algo
estranho ou opressivo para nós, essa também é a maneira com a qual a coesão social do
capitalismo é criada. As atividades de diversas pessoas são precisamente conectadas
mediante esse processo de abstração. Quando a cozinheira vende bolos e utiliza o
dinheiro para comprar um vestido, estabelece-se uma integração social entre as
atividades da cozinheira e as atividades da costureira por meio de uma medida
puramente quantitativa dos seus respectivos trabalhos. A abstração do fazer no trabalho
(ou a abstração do trabalho nas especificidades do fazer) é imediatamente opressiva
para o fazedor e é gradativamente a criação de uma coesão social (um sistema) que se
coloca fora de qualquer controle social consciente. Essa é a coesão social rejeitada pelas
nossas fissuras ou autonomias.

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A dicotomia entre o trabalho abstrato e o fazer concreto é o tema central de O


Capital. A natureza dual do trabalho cria a natureza dual da mercadoria como valor de
uso e valor (introduzido ao princípio de O Capital); estrutura a discussão sobre o
processo do trabalho (como processo do trabalho e o processo da produção de mais-
valia), e o processo coletivo do trabalho (como cooperação por um lado e divisão por
outro, de trabalho e manufatura, de maquinaria e indústria moderna). O trabalho
abstrato se desenvolve como trabalho assalariado que produz valor e capital, enquanto
que o fazer concreto é desenvolvido na categoria do “poder produtivo do trabalho
social”, ou, em termos mais simples, da “força de produção”.

Já vimos que as fissuras podem ser vistas como revoltas do fazer contra o trabalho. Isso
implica um antagonismo vivo e fundamental entre os dois tipos de atividade. Se vamos
perguntar sobre a relevância de Marx para a compreensão das fissuras, temos que
perguntar se em O Capital há um antagonismo vivo e fundamental inerente à natureza
dupla do trabalho.
Há claramente um antagonismo entre o trabalho concreto e o abstrato,
embora geralmente se entenda como um antagonismo presente, como uma dominação.
No capitalismo, o trabalho concreto existe na forma de trabalho abstrato. Minha
preparação de bolos existe na forma de uma atividade que me é completamente
indiferente. Este, na forma de, é geralmente entendido como uma presença completa,
como uma relação unilateral de dominação. Dado que o trabalho concreto está
simplesmente contido dentro do trabalho abstrato, é uma categoria que não requer
atenção.
Entretanto, dessa forma não há como ser. Certamente minha preparação de
bolos existe como algo que me é diferente, embora haja também momentos em que,
enquanto os preparo, luto contra essa indiferença abstrata e tento recapturar o prazer.
Inclusive, há momentos nos quais digo “pro diabo com o mercado!” e faço o possível
para preparar um bolo delicioso – uma fissura na qual o fazer se rebela contra o
trabalho. Em outras palavras, quando dizemos que algo existe na forma de, temos que
entendê-lo no sentido de dentro-contra-e-para-além da forma desse algo. Dizer que o

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trabalho concreto existe na forma de trabalho abstrato é o mesmo que dizer que o
trabalho abstrato é seu modo de existência. Dito de outra maneira, dado que o trabalho
abstrato é a negação das características particulares do trabalho útil ou concreto,
podemos dizer que existe no “modo de ser negado” (Gunn, 1992: 14)3. Porém, não
aceita, nem pode aceitar sua própria negação sem resistência: inevitavelmente reage
contra sua própria negação, empurra contra-e-para-além dessa negação.
O fazer concreto existe dentro-contra-e-para-além do trabalho abstrato. Todos
estamos conscientes da maneira com a qual o fazer concreto existe dentro do trabalho
abstrato, na maneira em que nossa atividade cotidiana é subordinada às exigências do
trabalho abstrato (ou, de outra forma, subordinada para gerar dinheiro). Também
experimentamos isso como um processo antagonista: o antagonismo entre nosso
impulso na direção da autodeterminação da nossa própria atividade (fazer o que
queremos fazer), e fazer o necessário para ganhar dinheiro. A existência do fazer
concreto contra o trabalho abstrato se vive como frustração. O fazer concreto também
existe além de sua forma como trabalho abstrato, nesses momentos, ou em espaços
onde, individual ou coletivamente, conseguimos fazer aquilo que consideramos
necessário ou desejável. Embora o trabalho abstrato subordine e contenha o fazer
concreto, não o resume por completo: o fazer concreto não existe somente dentro de
sua forma, mas também contra-e-para-além.
É isso que diz Marx? Claro que esta é uma questão de interpretação. A obra de
Marx é uma crítica às categorias da economia política. Marx abre as categorias e
demonstra que elas não estão de fora da história, mas pertencem a formas
historicamente específicas das relações sociais antagônicas do capitalismo. De maneira
crucial, abre a categoria do trabalho e demonstra como existe um antagonismo entre o
trabalho concreto e o abstrato. Todo O Capital pode ser visto como uma crítica ao
trabalho abstrato a partir da perspectiva do trabalho concreto e, precisamente dada
esta perspectiva, não aparece no primeiro plano dentro da narrativa. Voltar a ler Marx
no contexto das lutas atuais contra o capitalismo nos força a focar no antagonismo entre
o trabalho concreto e o abstrato e faz-nos questionar (seja com Marx ou contra-e-para-
além) a natureza dessa relação entre o trabalho e o fazer.

3 “Na concepção marxista, o êxtase existe, mas existe como luta, sustentando-se de forma
alienada (em outras palavras), no modo de ser negado” (ênfase no original).
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VI

Existe um mistério nisso tudo. Nas páginas iniciais de O Capital, Marx escreveu que a
natureza dupla do trabalho é o eixo em torno do qual gira a compreensão da economia
política; escreveu para Engels que esse era um dos melhores pontos de seu livro. O que
poderia ser mais claro? E, no entanto, ocorreu o que era aparentemente impossível: a
tradição marxista praticamente omite esse ponto. Gerações de ativistas e eruditos
analisaram O Capital, e, apesar disso, aquilo que Marx proclamou ser seu argumento
principal foi quase inteiramente negligenciado. É fato que nos últimos anos foi dado
mais atenção a esse aspecto, mas ainda assim, o foco esteve quase exclusivamente no
trabalho abstrato em vez de estar no duplo caráter do trabalho4.
Como explicamos essa indiferença extraordinária? Sem dúvida, até certo
ponto, pode-se culpar o estilo de escrita do próprio Marx; seu olhar era voltado para
fora da perspectiva do trabalho concreto suprimido. E, mesmo assim, isso não se parece
com uma explicação adequada, a negligência não pode ser explicada em termos de uma
falta de erudição, alguma explicação social deve existir.
Uma explicação possível recai sobre o fato de que o duplo caráter do trabalho
inevitavelmente dá lugar a um duplo caráter da luta anticapitalista. O capital se
fundamenta em dois tipos de antagonismo. O primeiro é o antagonismo que já
caracterizamos como central: a luta ao converter o fazer, a atividade cotidiana das
gentes, em trabalho abstrato que produz valor. Essa luta costuma ser associada à
acumulação primitiva, a criação histórica das bases capitalistas, porém, relegarem-se
essas lutas (ou a acumulação primitiva) ao passado, seria equivocado5. A luta para impor
a disciplina do trabalho sobre nossa atividade é uma luta praticada diariamente pelo
capital: o que mais fariam os gerentes, professores, trabalhadores sociais, policiais, etc.?
Somente na base desse primeiro nível de antagonismo, surge o segundo nível. Somente
quando a atividade das gentes é convertida em trabalho abstrato é que se torna possível
a exploração. A atividade humana é convertida em trabalho que produz valor, e,
portanto, somos forçados a produzir não apenas o que equivale ao valor de nosso
próprio poder de trabalho, como também somos forçados a produzir a mais-valia, da

4Para uma excelente discussão sobre as contribuições recentes para o debate sobre o trabalho abstrato, ver
Bonefeld (2010).
5 Para o debate extremamente importante a respeito da compreensão da acumulação primitiva como

processo contínuo, ver os artigos contidos em Bonefeld (2009).


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qual se apropriam os capitalistas. O segundo antagonismo, o antagonismo da


exploração, depende do primeiro, o antagonismo da abstração, ou seja, a conversão
anterior do fazer concreto em trabalho abstrato.
Por fim, existem dois tipos de conflitos. Primeiro, a luta do fazer concreto está
contra sua própria abstração, ou seja, contra o trabalho abstrato: esta é uma luta contra
o trabalho (e, portanto, contra o capital, dado que o trabalho é o que produz o capital).
Em segundo lugar, a luta do trabalho abstrato está contra o capital: esta é a luta do
trabalho. Este segundo, é a luta do movimento obreiro; o primeiro, é a luta que às vezes
é chamada de o outro movimento obreiro, mas de forma alguma é limitada ao lugar de
trabalho: a luta contra o trabalho é a luta contra a constituição do trabalho como
atividade diferente do fluxo geral do fazer. Ao falar de nossas fissuras como revoltas do
fazer contra o trabalho, estamos falando do primeiro nível, mais profundamente, da luta
anticapitalista, a luta contra o trabalho que produz capital.
Ambos os tipos de luta são contra o capital, no entanto, têm implicações muito
diferentes. Ao menos, recentemente, a luta contra o capital foi dominada pelo trabalho
abstrato. Isso supôs uma luta dominada pelas formas de organização burocrática e por
ideias fetichizadas.
A organização do trabalho abstrato está centrada no sindicato, o qual luta
pelos interesses do trabalho assalariado como trabalho assalariado. A luta sindicalista
costuma ser vista como uma forma econômica de luta que precisa ser complementada
pela luta política, geralmente organizada em forma de partidos políticos orientados para
o Estado. Tanto os conceitos “reformistas” como os conceitos “revolucionários” do
movimento obreiro compartilham essa aproximação básica. A organização do trabalho
abstrato é geralmente hierárquica, o que tende a ser reproduzido dentro das
organizações dos movimentos laboristas.
A abstração do trabalho é a fonte da qual Marx chama “o fetichismo da
mercadoria”, um processo de separação daquilo que criamos desde o processo da
criação. Aquilo que é criado, em vez de ser visto como parte do processo de criação,
acaba por ser visto como uma série de coisas que rapidamente dominam nosso fazer,
assim como nosso pensar. As relações sociais (relações entre pessoas) retornam
fetichizadas ou reificadas. A centralidade do nosso fazer é substituída pelo nosso fazer e
pensar nas “coisas” (criações sociais reificadas), tais como o dinheiro, o capital, o Estado,
a universidade, etc. O movimento obreiro (como movimento de trabalho abstrato)

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geralmente dá essas coisas por feitas, de modo que o movimento obreiro, por exemplo,
tende a aceitar a autopreservação do Estado como organizador da sociedade (em vez de
vê-lo como um momento da abstração do trabalho, o qual é a força real da coesão
social). O trabalho abstrato nos conduz a um conceito centrado no estado de troca
social. O movimento do trabalho abstrato está contido dentro de uma prisão
organizacional e conceitual, que efetivamente estrangula qualquer aspiração à mudança
revolucionária.
O marxismo ortodoxo é a teoria do movimento obreiro baseada no trabalho
abstrato, de modo que está quase totalmente cego em relação às questões do
fetichismo e da natureza dupla do trabalho.
Portanto, o que explica a razão pela qual um conceito único de trabalho
dominou tanto o movimento obreiro, como a tradição marxista, e a razão pela qual a
insistência de Marx sobre a centralidade da natureza dupla do trabalho foi quase
inteiramente ignorada, é a dominação do movimento anticapitalista pela luta do
trabalho abstrato (ou o trabalho assalariado) contra o capital. A discussão marxista
recente tratou de superar esse legado por meio de um retorno à questão do trabalho
abstrato, porém, ainda não consegue dar a devida importância ao outro lado do duplo
caráter do trabalho.

VII

Se agora insistimos na importância de voltar ao conceito de Marx sobre o duplo


trabalho, é simplesmente porque a luta do trabalho abstrato (a luta do trabalho contra o
capital) está em crise, enquanto que a luta contra o trabalho e, portanto, contra o
capitalismo, está aumentando de importância.
As indicações da crise do trabalho abstrato são claras: o declínio do
movimento sindical em todo o mundo; o enfraquecimento ou o desaparecimento
efetivo dos partidos social-democratas com qualquer compromisso de uma reforma
radical; o colapso da União Soviética ou outros “países comunistas” e a integração da
China ao capitalismo mundial; a derrota dos movimentos de libertação nacional na
África e Latino-américa; a crise do marxismo, não somente dentro das universidades,
mas, sobretudo, como teoria de luta.

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Todo o precedente é comumente visto, inclusive pela “esquerda”, como uma


derrota histórica da classe trabalhadora. Porém, talvez a derrota seria melhor vista
como uma derrota para o movimento obreiro, para o movimento embasado no trabalho
abstrato, uma derrota para a luta do trabalho contra o capital e, possivelmente, como
uma oportunidade para a luta do fazer contra o trabalho. Se esse é o caso, então, não é
uma derrota para a luta de classes, mas sim um passo para um nível mais profundo da
luta de classes. A luta do trabalho está dando lugar à luta do fazer contra e para além do
trabalho.
A crise do trabalho abstrato pode ser vista como a expressão da nossa
renúncia a sermos convertidos em robôs. A acumulação capitalista possui uma dinâmica
inerente que força o capital a aumentar constantemente o ritmo da exploração para
poder manter sua rentabilidade. O capital requer uma subordinação cada vez maior de
atividade humana perante a lógica da acumulação para poder assegurar sua
sobrevivência (isso é basicamente o que argumenta Marx em sua teoria da tendência
decrescente da taxa de lucro). Durante aproximadamente os últimos quarenta anos,
especialmente desde 1968, cada vez mais a luta contra o capital tem tomado a forma de
múltiplas revoltas contra essa lógica do capital que tenta nos transformar em robôs. A
raiz da presente crise é nossa insubordinação, nossa negação à completa subordinação
de nossas vidas pela lógica do capital, que converte todo nosso fazer em trabalho
abstrato.
A crise também pode ser vista, em termos do marxismo clássico, como a
revolta das forças de produção contra às relações de produção. Apesar disso, as forças
de produção precisam ser compreendidas simplesmente como “os poderes produtivos
do trabalho social”, não como coisas, devem ser entendidas como nosso poder-fazer
social. A forma com a qual nosso poder-fazer social está rompendo o invólucro das
relações sociais capitalistas não é a partir da criação de unidades cada vez maiores de
produção, mas a partir de milhões de fissuras, espaços onde as pessoas estão afirmando
que não permitirão a prisão de seus poderes criativos pelo capital e que farão aquilo que
considerarem necessário ou desejável.
O movimento do fazer concreto contra o trabalho abstrato sempre existiu
como corrente subterrânea e subversiva do movimento obreiro. Dado que o movimento
do fazer concreto é o empurrão em direção à criatividade socialmente
autodeterminante, suas formas de organização foram tipicamente antiverticais e

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orientadas para a participação ativa de todos. A tradição dos conselhos ou assembleias


sempre se mantiveram em oposição à tradição centrada no Estado ou no partido dentro
do movimento anticapitalista. Hoje em dia, com a crise do trabalho abstrato, essa
tradição está florescendo novamente em novas formas e muitas vezes criativas.
Dado que o fazer concreto é simplesmente a riqueza variada da criatividade
humana, o movimento tende a ser algo caótico e fragmentado em seu caráter, um
movimento de movimentos lutando por um mundo de muitos mundos. A partir dessa
perspectiva, fica fácil pensar nas lutas como lutas desconectas e com muitas identidades
distintas, a luta das e pelas diferenças. No entanto, esse não é caso. Embora o fazer
concreto e criativo seja infinitamente rico em potencial, ele sempre existe dentro-
contra-e-para-além de um inimigo em comum, a abstração do fazer em trabalho. Por
essa razão, é importante pensar-se em termos de contradição e não somente em
termos de diferença6. Essa é a luta da criatividade humana (nosso poder-fazer, o “poder
social do trabalho abstrato”) contra-e-para-além de sua própria abstração, sua redução
à produção cinzenta de valor-dinheiro-capital.

VIII

Contra quem estou discutindo e por quê?


O primeiro alvo de ataque é o modo acadêmico de tratar esses movimentos
como objetos de estudo, em vez de tratá-los como parte da luta pela humanidade, na
qual, querendo ou não, estamos todos envolvidos (tratando-os de uma forma ou de
outra e, normalmente, das duas). Tais modos de enfocar a questão são acadêmicos no
sentido de que são favorecidos pelas estruturas e tradições das universidades. Ainda
que eu seja professor universitário, reconheço que a universidade não é o melhor ponto
estratégico para uma discussão sobre as autonomias. Pelo contrário, precisamente por
ser um professor universitário, estou muito consciente da crescente fissura entre as
exigências do trabalho acadêmico e o desafio da investigação científica. No atual
momento histórico, considero que seja evidente que o trabalho científico deva ser
conduzido contra essa investida suicida para a auto-aniquilação humana. Ou seja, a
única pergunta científica que nos resta é a seguinte: “como diabos saímos dessa

6 Sobre a distinção entre contradição e diferença, e sua importância política, ver Bonnet (2009).
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bagunça?”. O que inclui a próxima pergunta: “como impedimos a reprodução dessa


sociedade autodestrutiva, o capitalismo?”. Essa é uma pergunta que está cada vez mais
difícil de levantar dentro do contexto universitário.
Em segundo lugar, o argumento se dirige contra aqueles que deixam de
visualizar o estudo de Marx como uma fonte de inspiração. Muitas das discussões
dentro da tradição marxista se desassociaram das direções atuais de luta anticapitalista,
tanto é que numerosos ativistas apontam o marxismo como algo irrelevante para as
suas lutas. Esse é um erro que facilmente conduz a uma oscilação entre a euforia e o
desespero, a veneração dos resultados das lutas e o desânimo exagerado quando
surgem as dificuldades.
Em terceiro lugar, o argumento se dirige aqui contra aquelas discussões sobre
as autonomias que se enfocam quase exclusivamente nos seus resultados. É
extremamente importante proclamar o autonomismo7, no entanto, nos últimos anos,
tornou-se evidente que deveríamos falar mais aberta e detalhadamente sobre as
enormes dificuldades que encaramos8.
Um quarto objeto de crítica são aquelas aproximações que saltam rápido
demais, desde um reconhecimento das dificuldades dos movimentos autônomos, até a
rejeição de sua importância 9. Os movimentos autônomos muitas vezes fracassam, às
vezes são patéticos e ridículos, e é lógico que podem ser atraídos pelas estruturas
descentralizadas do poder característico do neoliberalismo, entretanto, para onde
vamos de outro modo? Regressaremos novamente aos partidos? Não, obrigada.
Regressaremos ao “avestruzismo”10 das universidades? Não, é melhor ver as
dificuldades como um desafio, não como um impedimento.
Em quinto lugar, o argumento se dirige contra todas aquelas aproximações que
presumem o caráter unitário do trabalho e omitem a importância central que Marx
atribuiu ao duplo caráter do trabalho. O anterior é característico das aproximações
marxistas tradicionais e é frequentemente associado a uma definição (seja ampla ou
estreita) da classe trabalhadora como classe revolucionária: a luta da classe

7 No contexto latino-americano, o grande apóstolo do autonomismo foi Raúl Zibechi, cuja obra tenho uma
grande admiração, porém, que, porventura, não se enfoca suficientemente nas dificuldades desses
movimentos. Ver Zibechi (2008).
8 Para uma excelente discussão das autonomias no contexto da revolta argentina, porém, de uma

perspectiva geralmente oposta, ver Thwaites Rey (2004).


9 Estou particularmente pensando no artigo muito construtivo de Bohm, Dinerstein e Spicer (2009).
10 (NDT: metafórico, do inglês ostrichsm – agir como um avestruz; enterrar sua cabeça na areia ou pensar

que assim está inteiramente escondido). Diz-se “avestruzismo” porque não há nada mais belo que uma
torre de marfim nas universidades. Gostaria que houvesse!
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trabalhadora pode ou não ser considerada como uma luta complementada pelas lutas
classistas dos “novos movimentos sociais”. Ao contrário dessas aproximações, aqui o
argumento diz que a luta revolucionária não é a luta do trabalho, mas do fazer contra o
trabalho; diz, também, que a luta da classe trabalhadora é contra sua própria existência
enquanto classe, ou seja, é contra sua própria classificação.
O sexto objeto de crítica são aquelas aproximações que, excelente ou
corretamente, ressaltam a importância do duplo caráter do trabalho, porém, em
seguida, concentram-se exclusivamente no trabalho abstrato, ao supor que a categoria
do trabalho útil ou concreto ou não é problemática, ou está de fato incluída na categoria
do trabalho abstrato. Em tais aproximações, a contradição se separa do antagonismo
social, de modo que a crítica do capital seja entendida na realidade como uma crítica do
trabalho abstrato, entretanto, a crítica permanece abstrata, na medida em que a relação
entre o trabalho abstrato e o trabalho útil ou concreto não seja entendida como um
antagonismo vivo11. Essa aproximação é estimulante, mas politicamente desastrosa,
visto que nos leva de volta a antiga conclusão de que uma revolução anticapitalista é
necessária, mas deixa-nos totalmente sem resposta sobre como alcançá-la.
O sétimo, e muito importante, é o argumento contra aquelas aproximações, às
vezes influenciadas por Deleuze 12 ou Hardt e Negri, que desbancam a centralidade do
capital como categoria para compreender a natureza do antagonismo social nesta
sociedade. O argumento aqui é que a questão central é o nosso fazer, a maneira com a
qual está organizada nossa atividade cotidiana. Sob o capitalismo, nosso fazer está
subordinado ao trabalho abstrato, ou, em outras palavras, nossa atividade está sujeita a
uma força que não controlamos e que tem como sua fundamental determinante a
expansão do valor e a busca sem fim pela ganância. Essa organização da nossa atividade
tem resultados catastróficos e precisa ser mudada. As lutas atuais têm como seus
enfoques a revolta do fazer contra o trabalho, o impulso a traçar nossa própria
atividade. A ascensão do controle sobre nossa própria atividade significa a dissolução do
capital. Se substituirmos a luta conta o capital pela luta pela democracia13, então,
diluiremos a luta e, pior ainda, desviar-nos-emos do ponto essencial: uma democracia
genuína não fará absolutamente nada em si para mudar a forma e conteúdo da nossa

11 Estou pensando na obra estimulante de Portone (1996) e do grupo Krisis (na sua revista de mesmo
nome).
12 Para uma excelente discussão de Deleuze e sua influência, ver Bonnet (2009).
13 Esta me parece ser a implicação da obra de Hardt e Negri: ver em particular Parte III de Hardt e Negri

(2004).
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atividade cotidiana. Por isso, colocamos o capital como o tema central ao compreender
o capital não como uma categoria econômica, mas sim como a forma historicamente
específica de organização da atividade humana.
Um oitavo objeto de crítica implícita é o conceito de autovalorização, um
termo cunhado por Negri e amplamente utilizado nas discussões sobre movimentos
autônomos. A autovalorização, segundo Cleaver (1992:19), “[...] indica um processo de
valorização que é autônomo da valorização capitalista – um processo que se autodefine
e se autodetermina, e que vai além da mera resistência à valorização capitalista de um
projeto positivo de autoconstituição.”.
Mais adiante, no mesmo artigo (1992: 134), fala sobre “os múltiplos processos
de autovalorização ou autoconstituição que escapam do controle capitalista.”. É
evidente que estamos falando desses mesmos processos de revolta, os quais estamos
tentando compreender. O que me preocupa é a noção de que esses processos sejam
“autônomos da valorização capitalista” ou “escapam do controle capitalista”. Prefiro
insistir que a relação do outro-fazer ao capital é uma relação dentro-contra-e-para-além,
por quatro razões concordantes. Primeiro, corre o perigo de que a noção de
autovalorização, ou mesmo o êxodo, pode criar uma imagem enganosa de estabilidade.
Como já vimos na discussão anterior sobre as dificuldades das fissuras, provavelmente é
de maior ajuda ver as fissuras como pontos e momentos de ruptura, que tem uma
existência passageira, e que somente podem sobreviver mediante sua própria
reconstituição constante. Segundo, a noção de autovalorização pode conduzir à ideia de
que essa é uma forma específica de ativismo que pode surgir da rejeição do trabalho
(daí Cleaver, 1992: 130: “a rejeição do trabalho... cria a mesma possibilidade de
autovalorização”), enquanto que o conceito do fazer coloca o antagonismo no mesmo
processo de agir, não como uma possibilidade, mas sim como uma parte inevitável do
viver. De forma simples, a vida é o antagonismo entre o fazer e o trabalho abstrato14.
Terceiro, o conceito de autovalorização não nos conduz à crítica do trabalho abstrato e
suas manifestações, da mesma forma que o duplo caráter do trabalho. E, por último, a
autovalorização, externa à valorização, não constitui sua crise, enquanto que o fazer é a
crise do trabalho abstrato.

14Em outras palavras, a vida não deveria ser considerada como uma categoria trans-histórica, como já
acontece muitas vezes. Sobre esse ponto, ver novamente Bonnet (2009).
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Em nono lugar, o argumento aqui protesta contra a noção de que nossos


espaços-momentos de revolta ou de outro-fazer são externos ao capital15. O capital
simplesmente não coexiste com outras formas de fazer: a força material e hegemônica
do capital como modo de comportamento é tal que é melhor pensar no capital como
uma forma de relações sociais que constantemente se impõe e volta a impor-se,
sobretudo, no fazer do mundo. Consequentemente, o trabalho abstrato é a forma com a
qual o fazer existe dentro de uma sociedade capitalista, de modo que o fazer existe
dentro-contra-e-para-além, sendo uma rebelião expressa ou não. Brincar com os nossos
filhos não é uma atividade que ocorre fora ou em conjunto com o capital: melhor,
brincar com os pequenos ocorre dentro do capital (porque reproduzimos padrões
capitalistas de autoridade), contra o capital (porque rejeitamos esses padrões de
autoridade e empurramos contra eles quando insistimos na importância de brincar), e,
para além do capital (porque pode haver um verdadeiro ponto de ruptura onde criamos
um mundo que vai além das relações sociais capitalistas, mas sempre como uma luta e à
margem da crise). Como a ideia de autovalorização, a ideia de externalidade pode
facilmente levar a uma positivação dos conceitos e um distanciamento paulatino do
antagonismo central: o viver é uma luta contra as formas capitalistas de atividade que
tão rapidamente estão destruindo o mundo.
Basta.

IX

O argumento aqui exposto sugere que precisamos reler Marx para poder compreender
o movimento autonomista. Realmente nos ajuda? Eu creio que sim.
A releitura de Marx desde a perspectiva das lutas atuais muda a ênfase da
exploração à abstração: em vez de ver a discussão da abstração como começo da
exploração, ver a exploração como um desenvolvimento da problemática central da
abstração. Se não fizermos isso, aprisionaremos Marx a uma forma de luta de classes
que, assim como é repressiva, é decadente. Abandonar Marx dessa forma é perder a
enorme riqueza de seu estímulo, assim como perder as linhas da continuidade que,
apesar de tudo, são tão importantes para nossas lutas. O pior de tudo é que
eventualmente abandonar Marx significa perder-nos a nós mesmos, nublar as perguntas

15 A excepcional fonte para ver este tema é o livro de Massimo De Angelis (2007).
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que rodeiam nossas lutas, traçar o caminho para a reintegração de nossas rejeições no
sistema que recusamos.
Compreender as autonomias desde a perspectiva aqui exposta, como fissuras
na dominação capitalista, ou seja, como fissuras no tecido da coesão intermediada pelo
trabalho abstrato, ajuda-nos a ver que estes movimentos não são unicamente uma
moda, nem um sinal da inatividade na luta de classes, tampouco são apenas uma massa
de fragmentos, mas sim um empurrão para a humanidade que constitui a crise do
trabalho abstrato. Daí sua importância: nossos movimentos são a crise do trabalho
abstrato e o resultado dessa crise depende do futuro do mundo. i

Tradutores
Gustavo Moura de Oliveira, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio
Grande do Sul, Brasil. E-mail: comanchi@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-1994-3864.

Paula Monique Kunzler Schneider, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: paulakunzlerschneider@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-0687-0424.

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Sobre o autor

John Holloway
Professor-investigador do Instituto de Ciências Sociais e Humanas “Alfonso Vélez
Pliego” da Benemérita Universidad Autónoma de Puebla. Reconhecido autor de
diversos livros a fim de pensar a mudança social e a luta contra e além do capitalismo.
Publicou Cambiar el mundo sin tomar el poder (Mudar o mundo sem tomar o poder)
em diversos países e já foi traduzido em dez idiomas. Outros títulos como:
Keynesianismo: una peligrosa ilusión, em 2003; Clase=Lucha, em 2004, Marxismo
i Nota à tradução brasileira: algumas pequenas modificações textuais foram feitas ao longo da tradução com
Abierto: una visión Europea y Latinoamericana, junto com A. Bonnet e S. Tischler, em
o intuito de democratizar o gênero generalizante. A equipe tradutora e revisora considera que esse
2005; Zapata en Wall Street: aportes a la teoría del cambio social, em 2006, Contra y
pormenor linguista contribui para a formação de uma sociedade mais justa no que se refere à divisão de
másentre
poder allágêneros.
del Ademais,
capital,as alterações
em 2006, foramMarxismo abierto:
feitas no texto, o que nãouna visión
inclui as Europea y
citações.
Latinoamericana Tomo II, em coordenação com W. Bonefeld, A. Bonnet e S. Tischler,
em 2007; Negatividad y Revolución: Theodor W. Adorno y la política, em coordenação
com F. Matamoros e S. Tischler, em 2007; Zapatismo: reflexión teórica y
subjetividades emergentes, junto com F. Matamoros e S. Tischler, em 2008; La Rosa
Roja de Nissan, e outros escritos, em 2009.

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

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O conceito de autonomia no marxismo contemporâneo

Massimo Modonesi

Versão original: “El concepto de autonomía en el marxismo contemporáneo”, in


ADAMOVSKY, Ezequiel (Org.) (2011) Pensar las autonomías: alternativas de
emancipación al capital y el Estado. 1ª ed. México D.F.: Sísifo Ediciones, Bajo Tierra.

Artigo recebido em 21/01/2020 e aceito em 07/06/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 707-733.
Massino Madonesi
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Introdução

O conceito de autonomia, que aparece com frequência nos argumentos de diversos


movimentos antissistêmicos e nos debates sobre as alternativas ao capitalismo em
nossos dias, tem entre seus antecedentes e origens políticas e teóricas uma longa
tradição de pensamento marxista1.
Ao mesmo tempo, seu significado foi oscilando entre diferentes concepções e,
apenas em algumas ocasiões, foi objeto de desenvolvimento teórico sistemático. Dentre
eles, destaca-se o Socialismo ou Barbárie (SoB), um grupo político de nítida inspiração
marxista revolucionária que, na França dos anos cinquenta, colocou esse conceito no
centro de sua reflexão política, buscando associar e articular os dois principais
significados que circulavam no debate marxista anterior: a ideia de autonomia como
emergência do sujeito sociopolítico e a de autonomia como característica do processo e
do horizonte emancipatório propriamente dito, ou seja, da construção do socialismo.

Autonomia, independência e emancipação no pensamento de Marx

A presença e a utilização do conceito de autonomia no marxismo é, sem dúvida, difusa e


variada.
Sendo uma palavra de uso mais comum e frequente que subalternidade e
antagonismo, em seu significado linguístico geral, como sinônimo positivo de
independência, permite sua utilização por parte de Marx e Engels em numerosos e
diferentes planos que vão da autodeterminação dos povos à perda de autonomia do
operário frente à máquina, passando pela autonomia relativa do Estado e à teorização
do bonapartismo. Por outro lado, uma noção de autonomia, ainda que na ausência de
referências nominais, pode ser rastreada nas reflexões de Marx sobre o trabalho vivo e a
formação da subjetividade operária na articulação entre ser social e consciência social.
Por último, o conceito ocupa um lugar fundamental quando explicitamente designa a

1 A outra abordagem histórica de referências à autonomia remete ao pensamento e ao movimento


anarquista. Sem esquecer a origem kantiana e o desenvolvimento filosófico do conceito, ligado a
independência da subjetividade individual, que segue ocupando um lugar importante tanto nos debates
filosóficos como na psicologia e psicanálise atuais.
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independência de classe, a autonomia política do proletariado, a auto-atividade,


selbsttätigkeit2 em alemão.
Ao mesmo tempo, na medida em que um significado específico de autonomia
se afasta do uso teórico e político do conceito por parte dos anarquistas, aos olhos de
Marx e dos marxistas a palavra fica desacreditada em sua qualidade prescritiva,
orientada no plano das definições e do projeto político. Em um artigo sobre a ideia de
autoridade, Engels expressa claramente esse rechaço à ideia libertária da autonomia
como princípio organizador e como valor absoluto.
É absurdo falar do princípio de autoridade como um princípio absolutamente
mau e do princípio de autonomia como de um princípio absolutamente bom. A
autoridade e a autonomia são coisas relativas, cujas esferas variam nas diferentes fases
do desenvolvimento social. Se os autonomistas se limitassem a dizer que a organização
social do futuro restringirá a autoridade até o limite estrito em que a façam inevitável
nas condições de produção, poderíamos nos entender; mas, longe disso, permanecem
cegos a todos os fatos que fazem necessária a autoridade e arremetem com furor contra
ela (ver Engels, 1873).
Este rechaço à ideia de autonomia como essência, método e forma das lutas e
do processo emancipatório será uma constante na concepção marxista da política como
correlação de forças, na qual a autonomia figura como um dado sempre relativo na
construção da independência do sujeito-classe que não tem valor em si mesmo, mas na
relação de conflito que configura. Contudo, para além da polêmica com o anarquismo,
Marx e Engels aceitavam e promoviam a ideia do comunismo como realização de uma
autonomia social e individual, ainda que sem a nomear como tal, na forma de “uma
associação na qual o livre desenvolvimento de cada um condicione o livre
desenvolvimento de todos” (Engels e Marx, 1985: 129) e de uma sociedade regida pelo
princípio de “De cada um, de acordo com suas habilidades; a cada um, de acordo com
suas necessidades!” (Ibid.: 14), e a posterior superação da necessidade: “o reino da
liberdade” (Ibid.: 1044). A partir desse ângulo, a autonomia integral poderia ser
considerada um ponto de chegada, a autorregulação da sociedade futura, textualmente,
a condição-situação de autodeterminação na qual os sujeitos estabelecem as normas às
quais se submetem, a negação positiva da heteronomia e da dependência. Nesse

2A palavra alemã selbsttätigkeit desta passagem fundamental foi traduzida como autonomia, mas também
como auto-atividade, auto-ativação ou autoconstituição.
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sentido, Marx e Engels distinguiam um princípio de autodeterminação válido para


caracterizar o objetivo, mas não as passagens do processo de emancipação, entendido
como contraposição e luta; isto é, relacional, e, portanto, irredutível a esferas ou
âmbitos totalmente separados e independentes, que implicaria assumir a exterioridade
da classe trabalhadora da relação de dominação e do conflito que a atravessava.
Por outro lado, tampouco a ideia de autogestão – uma noção específica de
autonomia operária surgida em meados do século XX – aparece nas ideias marxianas e,
ainda assim, Marx abordou uma temática afim, a das cooperativas, assumindo uma
postura claramente polêmica que, se por um lado reconhecia seu valor como “criações
autônomas”, (Bourdet, 1977: 57-74) por outro desconfiava do seu caráter localizado e
da sua relação com o Estado e o mercado, pois considerava que poderiam ter sentido
anti e pós-capitalista apenas após o triunfo da revolução socialista e na medida em que
o modelo cooperativo pudesse estender-se à escala da sociedade em seu conjunto.
No entanto, num contexto mais geral e empírico, como sinônimo de
independência da classe proletária, a noção de autonomia aparece de forma constante e
reiterada no centro das preocupações políticas de Marx e Engels em relação a formação
da classe como construção política. Nesse sentido, aparece no Manifesto: “o movimento
proletário é o movimento autônomo de uma imensa maioria dirigida ao interesse de
uma maioria imensa” (Marx y Engels, 1988: 120). Nestes termos gerais, como adjetivo
qualificado mais do que como substantivo, a ideia de autonomia ronda o pensamento
político de Marx e Engels como uma passagem fundamental do processo de
emancipação que apenas será se for obra dos próprios operários, isto é, se for expressão
do seu poder autônomo. Apenas com esse significado relativo a uma condição que
possibilita um exercício de poder, o conceito aparece em sentido prescritivo – sendo
expressão da existência da classe para si – e se insere em uma lógica processual que se
expressa mais precisamente na ideia de autonomização e de construção e exercício de
poder do que nas de independência ou autonomia propriamente, assumindo, com
Thompson, que a classe (o sujeito) não se forma para depois lutar, mas se forma na luta.
Ainda na ausência de uma explicitação conceitual, essa ideia abre a porta para a
valoração dos processos de subjetivação correspondentes à incorporação da experiência
da emancipação, começando por seus primórdios, a condição de independência relativa
à emergência e à formação de classe.

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Como conclusão, ainda em meio às suspeitas derivadas das polêmicas com o


anarquismo, a ideia de autonomia aparece como uma peça importante na engrenagem
das categorias marxianas: como princípio de ruptura política, como expressão de
emergência, poder da classe para si; e, apenas em segundo plano e com maior
ambiguidade conceitual, como uma forma da futura sociedade comunista3.
Vejamos como, sob essas bases, o debate marxista posterior retomará esta
problemática.

A ideia de autonomia no debate marxista

O tema da autonomia tem sido indiscutivelmente o que, entre os três que estamos a
analisar, mais debates e polêmicas tem suscitado dentro do marxismo como resultado
da abertura semântica da palavra e seu maior grau de oscilação conceitual.
Mabel Thwaites (2004: 17-22), escrevendo a partir da experiência argentina de
2001-2002, indica cinco ideias possíveis do conceito: autonomia do trabalho frente ao
capital (autogestão), autonomia do sujeito social frente às organizações partidárias ou
sindicais, frente ao Estado, frente às classes dominantes (ideológica) e, por último, a
autonomia social e individual (como modelo de sociedade). Esta tipologia pode ser
reordenada à luz dos debates marxistas correspondentes. A primeira definição é, sem
dúvida, fundamental, mas poderia e deveria incluir um horizonte mais amplo do que o
da autogestão, abarcando os processos de autonomização do trabalho vivo que, como
vimos a partir das intuições de Marx, desenvolve a classe operária italiana em geral, e
em particular em Negri com o conceito de autovalorização. A segunda, de origem
anarquista, desaparece como tal, frente às abordagens marxistas sobre o papel do
sindicato e do partido, e se translada ao problema da relação entre “espontaneidade e
direção consciente”, para usar a fórmula de Gramsci. A terceira é de outra ordem –
tático-estratégica, em função do confronto com a dominação burguesa – e, portanto,
não equivalente em nível teórico na medida em que, em amplo sentido, há um consenso
no princípio que corresponde a formação de classe para si e do partido como expressão

3 Um exercício erudito de leitura libertária de Marx encontra-se em Rubel (2000: 284-327), particularmente
em relação com o tema de classe, no qual sustenta que Marx avança na ideia da “autoconstituição da
classe” (Ibid.: 289). Outra possibilidade, mais recente, de uma leitura autonomista de Marx a partir de um
conceito similar pode encontrar-se em Bonefeld (2008).
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da autonomia política dos operários frente ao Estado e às classes dominantes e como


caldeirão da sua autonomia ideológica – a quarta acepção assinalada por Thwaites. Além
disso, a quinta dimensão, a mais problemática e menos generalizada dentro do
marxismo, não deixa de se vincular à primeira, isto é, a autogestão em relação ao social,
mas ao mesmo tempo, desdobra-se fora do marxismo como autonomia individual, tanto
nas correntes libertárias como, fundamentalmente, no liberalismo e no terreno da
psicologia e da psicanálise4. Por último, nessa tipologia não aparece a noção de
autonomia como processo de subjetivação política relacionada com as experiências de
emancipação que vamos rastreando e argumentando e que não se pode resumir– ainda
que esteja esboçada – na ideia de independência de classe na sua acepção clássica e
tradicional e vinculando-se tanto ao tema do modelo de sociedade como da autogestão.
No fundo, os usos marxistas do conceito de autonomia podem resumir-se em
duas vertentes: a autonomia como independência de classe – subjetiva, organizativa e
ideológica – no contexto da dominação capitalista burguesa e a autonomia como
emancipação, como modelo, prefiguração ou processo de formação da sociedade
emancipada. A primeira, desde Marx, constitui um pilar indiscutível do pensamento
marxista. A segunda – em seus matizes – não é patrimônio comum dos marxistas, mas
foi, como veremos, desenvolvida por algumas correntes e alguns autores. Nessas
possíveis articulações entre ambas encontramos o miolo do debate marxista
contemporâneo e os caminhos de uma potencial abertura e consolidação conceitual.
Antes de entramos neste terreno, não podemos esquecer também que, em
nível nominal, a palavra autonomia aparece estreitamente associada à problemática
cultural e territorial das autonomias locais e ao problema da autodeterminação dos
povos e das autonomias locais. Este uso aparece constantemente na literatura marxista
e contribui com a perda de especificidade do conceito de outros planos teóricos. Para
dar um exemplo sobressalente, o artigo de Paul Lafargue (1881) intitulado “La
autonomia” está centrado no tema do Estado e do território e, apenas em última
instância, faz referência a descentralização produtiva em tons polêmicos que associam
as propostas pequeno-burguesas às anarquistas. Em geral, Lafargue defende a
centralização contra às autonomias e, com ironia totalmente francesa, critica o caráter

4 Ver a síntese tipicamente liberal que propõe Norman (2007) depois de analisar diversos autores. Por outro
lado, a reflexão filosófica de Mier (2009: 83-122), quem relaciona a autonomia com a experiência e a ação
coletiva, mas sem ancorá-la a uma matriz antagonista e a conformação de subjetividades políticas
concretas.
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impreciso do conceito: “Há tantas autonomias como omeletes e morais, não é um


princípio eterno, mas um fenômeno histórico”.
Ao mesmo tempo, recordemos que a linha crítica contra o autonomismo
anarquista – baseado na exaltação da espontaneidade e da ação direta – não deixará de
ser uma constante no debate marxista do século XX. A título de exemplo, é ilustrativa a
contundência polêmica dos argumentos de León Trotsky (1921) em um artigo intitulado
As lições da Comuna:
A passividade e a indecisão se viram favorecidas neste caso pelo princípio
sagrado da federação e da autonomia [...].
Se o particularismo e o autonomismo democrático são extremamente
perigosos para a revolução proletária em geral, são ainda dez vezes mais
perigosos para o exército. Um exemplo trágico da Comuna nos demonstrou
isso [...].
Por meio de seus agentes, seus advogados e seus jornalistas, a burguesia
tem proposto uma grande quantidade de fórmulas democráticas,
parlamentares, autonomistas, que não são mais do que os grilhões com que
amarra os pés do proletariado e impede seu avanço.

De fato, apenas uma acepção de autonomia, a da independência de classe


herdada do Manifesto, constitui um pilar teórico e aparece constantemente no sentido
positivo em função de uma passagem fundamental na construção do movimento
revolucionário. Por exemplo, Rosa Luxemburgo (1915), em A crise da social-democracia,
escreve:
Seu papel, como vanguarda do proletariado militante, não é se colocar às
ordens das classes dirigentes em defesa do Estado classista atual, nem de se
apartar silenciosamente esperando que a tempestade passe, mas o de
seguir na autonomia política de classe que em toda a grande crise da
sociedade burguesa golpeia as classes dirigentes e empurra a crise para mais
longe dela mesma.

Na ótica dos processos de subjetivação política, as intuições de Rosa


Luxemburgo são particularmente férteis na medida em que, ainda que sem passar pelo
conceito de autonomia que se reservava para o debate sobre a questão das
nacionalidades, insiste no “movimento mesmo” da classe (Luxemburgo, 1969: 47) de
classe e na espontaneidade como recurso – “a coordenação espontânea dos atos
políticos conscientes de uma coletividade” (Ibib.: 48) – apontado para a experiência – “a
luta cotidiana” (Ibid.: 61) – como fator fundamental de diálogo entre o ser social e a
consciência social5. Ao mesmo tempo, em meio às polêmicas suscitadas por suas

5 Ver em particular o debate com Lenin sobre o partido bolchevique, Luxemburgo (1969: 41-63);
Luxemburgo (2003; 1995). Guérin (s/f) inicia uma problematização comunista libertária do pensamento de
Rosa Luxemburgo. Para leituras luxemburguistas, ver Basso (1997) e Geras (1980).
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posturas, Rosa Luxemburgo será uma – senão a principal – fonte de inspiração para
correntes marxistas que, com maior ênfase, incorporarão a ideia de autonomia como
emancipação.
De fato, o debate suscitado pelas posturas de Rosa Luxemburgo tornou-se
crucial na medida em que o tema da espontaneidade produzia e produz curto circuitos
no marxismo na medida em que, com exceção da “abertura” operada por Rosa
Luxemburgo, dominavam as posturas que o associavam à inconsciência e que, de
Kautsky a Lenin, sustentava a necessidade de sua superação por meio de uma
intervenção externa ao partido, da vanguarda consciente. A trajetória de Trotsky – do
conselhismo ao bolchevismo centralista e, finalmente, a um bolchevismo pluralista –
nesse debate é uma mostra dos diversos matizes que pode assumir a valoração de uma
combinação entre espontaneidade e consciência e sua tradução estratégica e
organizativa6.
A tendência dominante da identificação entre espontaneidade e autonomia –
versus anarquismo – fez com que, dentro do marxismo contemporâneo, o tema da
autonomia de classe, como princípio de separação, fosse uma hipótese aceita; e que a
ideia de autonomia como emancipação, como objetivo ou como processo de
autodeterminação progressiva fosse patrimônio apenas de perspectivas e correntes
específicas. Nessa última hipótese, com exceção dos casos que mencionaremos adiante,
o conceito de autonomia não tem sido objeto de teorizações específicas, mesmo que
venha fazendo-se presente como referência constante, com diversos alcances e graus de
abertura.
Nesta linha, seria o chamado conselhismo – inspirado nas intuições de Rosa
Luxemburgo – a corrente marxista que, com mais convicção e insistência, articularia a
ideia de autonomia de classe em função da realização concreta de sua expressão de
poder e de autodeterminação, não apenas como princípio de existência subjetiva – de
fundação política de classe – para si ou em função da sua expressão na forma de

6 Mandel (1990: 35-49) e Mandel (2003). Entre parênteses, Mandel atribui a Trotsky o conceito de auto-
organização, e usa-o enfaticamente na hora de sintetizar o pensamento deste. De fato, aparece
tangencialmente no texto de novembro de 1911, titulado “Por que os marxistas se opõem ao terrorismo
individual”, publicado em Der Kampf, quando o revolucionário russo escreve: “Quanto mais eficazes são os
atos terroristas e maior é o seu impacto, mais limitam os interesses das massas por sua auto-organizaçao e
auto-educação”. Depois o conceito desaparece – ainda que não a problemática que pretende sintetizar.
Para um uso muito mais sistemático da noção de auto-organização, há que se esperar, como veremos
adiante, em Pannekoek (1938).
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partido, mas como valoração da ação das massas, da “espontaneidade consciente” e,


em particular, da apropriação imediata dos meios de produção.
Nessa corrente, ainda sem aparecer sempre no nível nominal, o conceito de
autonomia se vincula com as práticas e experiências de autodeterminação realizadas
nos conselhos de operários. Vimos o aparecimento dessa abordagem no pensamento de
Gramsci pré-cárcere, na etapa da Nova Ordem, assim como veremos sua expansão
teórica nas reflexões de Socialismo ou Barbárie promovidas por Cornelius Castoriadis e
prolongadas no debate francês dos anos setenta sobre autogestão.
O marxismo conselhista inspirado no modelo soviets das revoluções de 1905 a
1917, forma uma linha de pensamento que atravessa a história do marxismo do século
XX7. Suas origens partem, portanto, das reflexões de Lenin, Trotsky 8. Encontra em Rosa
Luxemburgo uma teorização importante. Passa por outras teorizações bolcheviques
sobre a gestão da economia socialista entre 1918 e 1921, assim como pelas reflexões
ligadas às experiências das ocupações das fábricas na Hungria em 1919, na Itália entre
1919 e 1920, na greve da Grã-Bretanha e dos delegados de fábrica entre 1918 e 1920, e
nos Conselhos na Alemanha nos mesmos anos. Desenvolve-se nas contribuições dos
trinta anos dos trotskistas, de Mao sobre os Soviets em Tsinkiang e Kiangsi, da revolução
espanhola, do comunismo libertário e, em particular, da corrente holandesa do
Comunismo e dos Conselhos encabeçada por Anton Pannekoek e Paul Mattick;
possivelmente a mais sistemática e radical neste terreno9. Depois da Segunda Guerra
Mundial, o conselhismo encontrará outros afluentes nas práticas de autogestão como
forma institucional na Iugoslávia e na Argélia, mas também como formas de resistência
nas rebeliões de operários na Polônia, Alemanha Oriental e na Hungria10. Por último, nos
anos setenta, o florescer dos debates marxistas voltará a animar as preocupações
conselhistas na Itália11 e, como veremos mais detalhadamente, na França.
Toda a produção teórica do conselhismo gira ao redor da ideia de autonomia
social e política da classe operária como conjunto de práticas e de experiências de

7 Generalizamos uma linha que está atravessada por polêmicas e conflitos, fundamentalmente no maior ou
menor papel do partido, na maior ou menor valoração da espontaneidade.
8 Sobre os soviets e a relação com o enlace revolucionário do exercício do poder e da autodeterminação da

classe operária, vinculando-se à questão do poder dual, analisado por Lenin, Trotsky; na América Latina
desenvolvido pelo boliviano Zavaleta (1974).
9 Ver Bricianer, (1975); (1976, Vol II: 314-354). Os textos de Anton Pannekoek podem ser consultados em

http://www.geocities.com/cica_web/consejistas/pannekoek/indice.html.
10 Ver Mandel (1973).
11 Elementos importantes do debate italiano podem ser revisados em Cuadernos del Pasado y Presente

(1973).
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autodeterminação que se desdobram em direção à ocupação e autogestão das


fábricas12. Ao mesmo tempo, essa centralidade não se traduz em uma teorização do
conceito de autonomia enquanto tal.
Vejamos algumas passagens conceitualmente significativas da obra de Anton
Pannekoek, o maior expoente do conselhismo mais radical, o conselhismo como
corrente política diferente e separada.
Em um texto de 1938, num parágrafo que ilustra claramente a postura
antipartidária desta corrente, a ênfase é dada na noção de auto-atividade:
As velhas formas de organização, o sindicato e o partido político, e a nova
forma dos conselhos (soviets), pertencem a diferentes fases do
desenvolvimento da sociedade e têm diferentes funções. As primeiras
precisam reforçar a posição da classe operária entre as outras classes dentro
do capitalismo, e pertencem ao período de capitalismo expansivo.
A última deve assegurar a dominação completa dos operários, para destruir
o capitalismo e suas divisões de classe, e pertence ao período do capitalismo
em declive. Em um capitalismo ascendente e próspero, a organização de
conselhos é impossível, pois os operários estão completamente ocupados
com a melhora das suas condições, a qual é possível nesse período através
dos sindicatos e da ação política. Num capitalismo decadente que navega na
crise, esses esforços são inúteis e a crença neles pode apenas dificultar o
aumento da auto-atividade das massas. Nestes períodos, de elevada tensão
e revolta crescente contra a miséria, quando os movimentos de greve se
propagam por países inteiros e atacam as raízes do poder capitalista, ou
quando, após guerras ou catástrofes políticas, a autoridade governamental
se desmorona e as massas atuam, as velhas formas de organização
fracassam contra as novas formas de auto-atividade das massas (Pannekoek
apud Bricianer, 1975: 294-295).

Em 1946, em Los Consejos Obreros, o único livro de Pannekoek e o ápice de


seu pensamento, as noções de autodeterminação, autogoverno, autorregulamentação e
autoeducação, repetem-se e vinculam-se umas às outras:
O grande e decisivo passo no progresso da humanidade, a transformação da
sociedade que agora ascende, consiste essencialmente em uma
transformação das massas operárias. Pode-se realizá-la apenas através da
ação, mediante a rebelião, pelo esforço das próprias massas. Sua natureza
essencial é a autolibertação da humanidade [...].
Os conselhos operários são a forma de autogoverno que futuramente
substituirão as formas de governo do velho mundo [...].
A autodeterminação dos operários a respeito da ação de luta não é um
requerimento idealizado pela teoria, por argumentos de praticabilidade,
senão a afirmação de um feito que surge com a prática [...].

12Assumimos nesta passagem uma ampla definição de conselhismo que não necessariamente exclui, como
no caso do Conselhismo com “C” maiúsculo, a existência de um partido comunista. Ver, por exemplo,
Varios, Consejos Obreros y democracia socialista, Cuadernos del Pasado y Presente, México (1977) e
Rossanda (1973).
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Ademais, em grande medida, pela primeira aparição de novas formas de


auto-organização dos operários em luta, conhecidas pelo nome de soviets,
isto é, conselhos [...] (Pannekoek, s/d).

E esta mudança corresponde também a uma mudança econômica que não é


imposta por uma ordem vinda do exterior, mas que é resultado da autodeterminação da
humanidade operária, que regulamenta com toda a liberdade o modo de produção
segundo sua própria concepção.
Neste texto, o conceito de autonomia aparece apenas em duas ocasiões:
As forças da solidariedade e devoção ocultas neles apenas aguardam que
apareça a perspectiva de grandes lutas para se transformarem em um
princípio predominante da vida. Ademais, mesmo as camadas mais
reprimidas da classe operária, que apenas se unem a seus camaradas de
forma vacilante desejando apoiar-se em seu exemplo, logo sentirão também
crescer nelas as novas forças da comunidade, e perceberão ainda que a luta
pela liberdade pede não apenas a sua adesão, senão o desenvolvimento de
todos os poderes de atividade autônoma e da confiança em si mesmos que
disponham. Assim, superando todas as formas intermediárias de
autodeterminação parcial, o progresso seguirá decididamente o caminho da
organização de conselhos [...] (Pannekoek, 1938).

A autolibertação das massas operárias implica pensamento autônomo,


conhecimento autônomo, reconhecimento da verdade e do erro diante do próprio
esforço mental.
Em ambos os casos, a palavra não ocupa um lugar central, é adjetivo e não
substantivo, mesmo quando o problema a que se refere seja o eixo em torno do qual
gira a concepção conselhista de Pannekoek.
A constatação de que o conceito não tenha sido objeto de teorização por parte
do marxista holandês é corroborada pelo fato de que, anos depois, em um intercâmbio
epistolar com Socialismo ou Barbárie – que embandeirava explicitamente a ideia de
autonomia –, Pannekoek não abusará do termo, mantendo-o circunscrito à ideia de
“poder autônomo” e “ação autônoma” na primeira carta, e de “autonomia das
decisões”, “autogoverno” e “autogestão” na segunda (CEDINCI, 2009: 75-76).

A contribuição de Socialismo ou Barbárie

As reflexões elaboradas no seio do grupo Socialismo ou Barbárie, nos anos cinquenta e


sessenta, na França, resultam em grande relevância teórica na medida em que articulam

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as noções de autonomia como independência e como emancipação em função do


conjunto de dinâmicas subjetivas correspondentes, o qual constitui uma perspectiva
original no sentido do debate marxista e um referencial fundamental para desenvolver
as conotações e o alcance subjetivo do conceito.
Uma ideia se converteu no eixo da reflexão do SoB e uma postura original
dentro do debate marxista: “o socialismo é a autonomia”. Essa constitui o âmbito
principal da luta de classes no capitalismo na medida em que este pretende negá-la sem
êxito, deixando assim intacto o seu potencial como tendência subversiva. A inversão
lógica se traduz em uma perspectiva analítica: é apenas na autonomia que se pode ver e
entender a dominação capitalista.
A ideia e o projeto capitalista são entendidos como ponto de partida e de
chegada, como instrumento e como processo. A autonomia era associada ao exercício
de um livre arbítrio coletivo – em conflito permanente com a heteronomia da alienação
promovida pelo capitalismo moderno – e aparece no SoB como meio e como fim da luta
espontânea do proletariado em sua vida cotidiana e em todos os aspectos da vida social,
começando pelo terreno mais imediato da exploração, que é o lugar do trabalho, e
terminando em uma nova organização da sociedade, na emancipação do proletariado:
O socialismo só pode instaurar-se pela ação autônoma da classe operária,
não é outra coisa senão essa ação autônoma. A sociedade socialista não é
outra coisa senão a organização desta autonomia, que por sua vez,
pressupõe-na e desenvolve-a (Chaulieu, 1957: 168).

A ação autônoma é o princípio, o meio e o fim; é a condição, o instrumento e o


resultado do socialismo. Retomando termos clássicos, a independência de classe –
entendida como prática de autodeterminação – não é um dado, mas um processo de
emancipação que desemboca no socialismo, um processo caracterizado por
experiências de emancipação. Abusando dos imperativos categóricos para fortalecer a
originalidade e o caráter polêmico de suas afirmações, SoB põe a autonomia no coração
da dinâmica política entendida como propriedade ou característica do sujeito e da ação
e, ao mesmo tempo, desdobra-se como processo emancipatório que passa pelo, mas
não termina no socialismo; mas sim que o socialismo amplia e “organiza”. Esse enfoque,
com todas as suas arestas, articula a noção de autonomia-independência de classe com
a de autonomia-autodeterminação como horizonte emancipatório. A autonomia não é
apenas um recurso nem um mero cenário de emancipação, mas um processo
impulsionado por um recurso e um recurso desenvolvido por um processo.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 707-733.
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Como corolário, e aqui acaba configurando-se a originalidade da perspectiva


do SoB, o conceito de autonomia se assenta na ideia de experiência que havia avançado
Lefort em 1952. A autonomia é, portanto, um processo emancipatório de caráter
subjetivo que se realiza na medida em que se desdobra a emancipação subjetiva a partir
das experiências de autodeterminação. Dito de outra maneira, a autonomia representa
o processo de subjetivação correspondente às experiências de emancipação.
Nesse sentido, se justifica e se entende a valoração sistemática – e inclusive a
exaltação e idealização – da espontaneidade por parte do SoB, na medida em que é nela
que se expressa a prática autônoma; essa se converte em experiência autônoma, a qual,
por sua vez, é a base para novas práticas e ações autônomas. Esse ciclo de produção e
reprodução da autonomia é a chave do processo revolucionário e do desdobramento da
emancipação. A autonomia é, portanto, concebida pelo SoB como um horizonte
emancipatório que se constrói no presente por meio de luta e se projeta sobre uma
nova forma social. Nesse sentido, formula-se como um dispositivo prefigurativo e
performativo do socialismo, entendido como “movimento real”: performativo na
medida em que a autonomia orienta as lutas, e prefigurativo porque essas antecipam a
forma de sociedade futura, ou seja, representam a sociedade socialista.
Coerentemente com sua confiança na capacidade autônoma do sujeito
revolucionário, SoB argumenta sobre a necessidade de eliminar a chamada “transição ao
socialismo” mediante a imediata dissolução de todas as formas burguesas (por exemplo,
a diferenciação salarial) e tendencialmente do Estado, em geral, sob o princípio de que o
socialismo é liberdade; ou seja, autonomia dos produtores associados.
Para SoB, a origem da burocratização na URSS se identificava com a perda de
autonomia dos soviets frente ao partido e ao Estado. Daí que se havia concluído que a
expropriação dos capitalistas era apenas a metade negativa da revolução proletária, a
outra parte positiva teria que ser a ditadura econômica do proletariado que promovia e
realizava em seus feitos a dissolução do Estado desde o início.
Fiel à tradição soviet, as formas concretas de autonomia são delineadas por
Castoriadis em termos relativamente “clássicos” de gestão operária, através dos
Conselhos de fábrica, os quais se articulariam em nível nacional em uma Assembleia
geral e em um Governo dos Conselhos (Ibid.: 167-168). Contudo, essa formulação
institucional, inspirada na experiência incompleta dos soviéticos, é considerada por
Castoriadis, coerentemente com o enfoque do SoB, como uma forma “adequada” e não

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“milagrosa”, sendo que nenhuma solução legal garantia o que apenas a ação autônoma
de classe poderia realizar. Nisso o SoB se posicionava explicitamente contra o
“fetichismo estatutário” e também contra o “espontaneísmo anarquista”.
Por outro lado, ainda sustentando a democracia direta a partir das “células
sociais” dos lugares de trabalho, a partir da transparência, da informação e do
conhecimento, Castoriadis defende a necessidade de um certo nível de centralização
que não seja delegável, senão expressão do poder operário (Ibid.: 168). Como já
assinalamos, o problema da autonomia se relaciona tradicional e logicamente com o
tema da organização política, ou seja, com o tema do partido. Ainda que o SoB – em
sintonia com suas origens no bolchevismo trotskista – defendia o papel histórico da
vanguarda e da organização partidária para a difusão da consciência e dos objetivos da
luta antiburocrática, pensava, também, na sua imediata dissolução no interior dos
“organismos autônomos de classe” no processo revolucionário:
Uma organização assim não pode desenvolver-se se não preparar seu
encontro com o processo de criação de organismos autônomos das massas.
Nesse sentido, ainda que se possa dizer que representa a direção ideológica
e política de classe nas condições do regime de exploração, há que se dizer
também e, sobretudo, que é uma direção que prepara a sua própria
supressão, a partir da sua fusão com os organismos autônomos de classe,
desde que a entrada da classe em seu conjunto na luta revolucionária faça
aparecer na cena histórica a verdadeira direção da humanidade, que é esse
mesmo conjunto de classe (Socialisme ou Barbarie, 1949: 34-35).

Apesar do uso mítico da ideia do “conjunto de classe” como sujeito da história,


SoB assumia os problemas de sua organização interna e propunha uma democracia
operária baseada no pluralismo interno (frações) e a revogação de mandatos em nome
de um exercício direto do poder que evitasse toda forma de delegação e burocratização.
Mesmo no longo texto de Adeus ao Marxismo, Castoriadis apresenta alguns
pontos que, paradoxalmente, especificam e aprofundam a ideia de autonomia. Em
particular, esta aparece ligada à noção de práxis:
Podemos dizer que, pela práxis, a autonomia do outro e dos outros é ao
mesmo tempo o fim e o meio; a práxis é o que aponta o desenvolvimento da
autonomia como fim e utiliza para esse fim a autonomia como meio [...].
O que chamamos política revolucionária é uma práxis que tem como objeto
a organização e a orientação da sociedade em vista da autonomia de todos,
e reconhece que esta pressupõe uma transformação radical da sociedade
que não será, por sua vez, mais do que seu desdobramento na autonomia
dos homens (Castoriadis, 1975: 112-115).

Aparecem aqui, de forma explícita, três pilares do pensamento de SoB. Em


primeiro lugar, a autonomia como práxis, que alude à experiência e à subjetivação
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política. Em segundo lugar, a articulação de sua duplicidade: como meio e como fim,
como processo e como acontecimento. Em terceiro lugar, volta a mencionar a
circularidade e a interdependência entre presente e futuro, entre a orientação das lutas
de hoje e a forma de sociedade de amanhã. A autonomia está no início e no final do
processo; em termos clássicos, é independência de classe e socialismo e, dessa maneira,
torna-se o conjunto do processo, na medida em que os seres humanos – a partir de sua
capacidade autônoma – o protagonizam.
Ao mesmo tempo, junto a uma intuição e uma abordagem original e
enriquecedora, vislumbram-se os elementos de certa confusão conceitual derivada da
ausência de uma clara distinção entre autonomia e autonominação, entre horizonte
emancipatório e processo de emancipação. Uma distinção necessária para que se
visualize plenamente a articulação que SoB esboça em traços gerais:
Queremos mostrar a possibilidade e explicitar o conjunto do projeto
revolucionário, como projeto de transformação da sociedade presente em
uma sociedade organizada e orientada no sentido da autonomia de todos, a
partir de uma transformação efetuada pela ação autônoma dos homens, tal
qual são produzidas pela sociedade presente (Ibid.: 116).

A última parte da citação revela uma das passagens mais problemáticas do


formulado pelo SoB: “os homens, tal qual são produzidos pela sociedade presente”.
Seguindo o raciocínio do SoB, trata-se dos “homens” alienados pela heteronomia ou dos
portadores de autonomia? Ambas as figuras aparecem na análise do SoB como
tipificações contrapostas, sem esclarecer a convivência ou a passagem de uma a outra,
assumindo a autonomia como uma qualidade intrínseca que aparece ou desaparece
magicamente. Contudo, ainda que se assuma a viabilidade da passagem ou se suponha a
existência da qualidade, a abordagem do SoB baseia-se no automatismo, em um
dispositivo mecânico. Nos equilíbrios e nas ponderações internas do pensamento do
SoB, a ênfase sobre a autonomia como movimento real conduz a um mero
reconhecimento das amarras alienadas e heterônomas (diríamos subalternas) como
dado social que a autonomia tende a rebaixar, sem que lhes outorguem um peso e um
lugar específicos, e sem que se constitua um problema teórico e político fundamental.
Como amostra disso, as considerações pessimistas sobre a despolitização e a
privatização da vida, de 1959 em diante, aparecem como fora da lógica do pensamento
autonomista do SoB, como contrapartida contraditória, uma interferência inaceitável e,
de alguma forma, devastadora, na medida em que desmantela não apenas o otimismo

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que regia a proposta, mas a própria proposta, desembocando no abandono do


marxismo e na dissolução do grupo.
Em termos teóricos, a aposta sobre a autonomia deixa relativamente de lado o
foco na luta de classes, desequilibra a abordagem ao colocá-la no terreno de um
essencialismo autonomista que obstrui a capacidade de visualizar a complexidade e a
profundidade da sua contrapartida subalterna, situada no interior das relações de
dominação, com a qual logo se dissolve o processo do conflito de classe em uma espécie
de “caminho livre” até a autonomia. Nesse sentido, a ausência de noções como
autonomia relativa – que, por exemplo, conduz Gramsci de forma implícita ao se referir
à autonomia integral – ou autonomização, contribui para a criação de uma noção
absoluta, um essencialismo e um imperativo que fomentam a confusão conceitual e
teórica que subjaz à abordagem do SoB.
Contudo, à margem dessas considerações, a reflexão do SoB não deixa de ser
relevante porque oferece uma elaboração marxista do conceito de autonomia que
explicitamente combina dimensões fundamentais: o princípio de independência, o
horizonte e o processo emancipatório, junto das implicações subjetivas que lhes
correspondem. Dado, instrumento e processo se fundem em uma só perspectiva.
Nessa articulação, particularmente significativa em nível conceitual, resulta
o ângulo de análise dos processos de construção subjetiva ligado às dimensões de
emancipação e de poder: a perspectiva da subjetivação autonômica, ancorada na noção
de experiência, resultado de um diálogo entre ser social e consciência social. Embora
essa, por si só, deixe descobertos outros aspectos da conformação subjetiva, ao mesmo
tempo, essa acepção eventualmente coloca o conceito de autonomia ao lado das
noções de subalternidade e antagonismo, como uma faceta fundamental da desigual e
combinada construção dos sujeitos políticos no marco da dominação, por meio do
conflito, no caminho rumo à emancipação.

O autonomismo

Junto do marxismo conselhista, entendido em um sentido amplo, surgirá uma vertente


explicitamente autonomista, que, sem maiores desenvolvimentos teóricos além dos de
Negri e Castoriadis que veremos mais adiante, defende o princípio da autonomia como

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critério de caracterização dos movimentos tanto em suas dinâmicas organizativas como


em seus projetos emancipatórios. Por exemplo, Harry Cleaver (2004: 25-65) entende a
autonomia num sentido amplo em relação a todos os movimentos históricos que
impulsionaram lutas emancipatórias e que não se concretizaram em formas estatais,
institucionalizadas ou burocráticas. Nesse sentido, a autonomia designa toda expressão
de resistência à dominação que se manifeste espontaneamente, sem mediações. De
uma perspectiva similar, George Katsiaficas, a partir da ideia luxemburguiana e
gramsciana de “espontaneidade consciente”, delimita o campo do movimento
autônomo da seguinte maneira:
À diferença da Social Democracia e do Leninismo, as duas principais
correntes de esquerda do século vinte, os Autônomos, estão relativamente
livres de cargas ideológicas rígidas. A ausência de toda organização central
(ou incluindo qualquer tipo de organização primária) ajuda a manter a teoria
e a prática em constante interação. De fato, a ação precede os Autônomos,
não as palavras, e é o acúmulo de ações descentralizadas, geradas por
pequenos grupos em função de suas próprias iniciativas, o que impede uma
sistematização da totalidade do movimento, primeiro passo quando se quer
desmantelar qualquer sistema. Não existe uma sistematização única que
possa controlar a direção das ações que se formam na base. Mesmo quando
os Autônomos não têm uma ideologia unificada e mesmo que nunca tenha
havido um manifesto do movimento, suas abordagens evidenciam que
lutam “não por ideologias, não pelo proletariado, não pelo povo”, mas (da
mesma forma que as feministas abordaram na primeira vez) lutam por uma
“política de primeira pessoa”. Eles querem a autodeterminação e a
“abolição da política”, não a liderança de um partido. Querem destruir o
sistema social existente por considerá-lo a causa da “desumanidade, da
exploração e da monotonia cotidiana.” (Katsiaficas, s/d).

Obviamente, definições dessa natureza se aproximam tanto do comunismo


libertário e do anarquismo que entram em vários aspectos na rota de colisão com
postulados do marxismo. Neste limiar, as fronteiras entre correntes se tornam porosas.
De fato, nos nossos dias, essa acepção é própria de correntes políticas que se
autodenominam autonomistas e que se reivindicam cada vez menos marxistas, ou que
alargam e abrem seu marco teórico contribuindo com a confusa proliferação de neo e
pós-marxismos, cujos perímetros escapam das definições precisas e rigorosas.
A ideia de autonomia como horizonte de emancipação volta a aparecer com
uma frequência e intensidade surpreendentes no início do milênio, associada a um
retorno do pensamento libertário e do anarquismo em consonância com as
mobilizações altermundistas, mas também com um novo surto de reflexões marxistas,

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neo ou pós13. Aparece, por outro lado, explicitamente no projeto neozapatista no


México a partir de 1994, porém, mais vinculada à temática da autodeterminação
territorial e sociocultural indígena, do que à formação de subjetividades anticapitalistas,
e, com uma explícita abertura sobre um horizonte emancipatório integral, aparece nos
movimentos argentinos de 2001-2002, com um maior apego às preocupações clássicas
sobre a autonomia como libertação, suscitando uma produção teórica particularmente
fértil e um conjunto de estudos empíricos sobre os processos correspondentes de
subjetivação política14.
Além de Negri da Multidão, cujas ideias já analisamos, um exemplo destacado
e amplamente reconhecido do pensamento que surgiu dessas experiências é o de John
Holloway, quem assume o desafio da dinâmica da subjetivação em termos bastante
similares aos que estamos destacando15.
Em seu livro mais conhecido, Mudar o mundo sem tomar o poder, Holloway
desenvolve uma importante e polêmica reflexão teórica, partindo da análise da
dominação como fetichização – o processo de separação entre quem cria e sua criação –
e assumindo a distinção Spinoziana entre poder sobre e poder fazer, como
contraposição entre subordinação e não-subordinação16:
É importante ter-se em mente que todas as sociedades de classe descansam
na subordinação dos trabalhadores insubordinados, portanto, na violência:
o que diferencia o capitalismo das outras sociedades de classe é a forma que
a subordinação assume, o fato de que está mediada pela liberdade
(Holloway, 2002: 258).

O poder fazer é para Holloway a medida da emancipação, entendida como


autodeterminação, como autonomia:
Nossa luta é claramente uma luta constante para escaparmos do capital,
uma luta por espaço, por autonomia, uma luta por afrouxar a corrente, para
intensificar a des-articulação da dominação (Ibid.:270).

13 Mostras dessas tendências podem encontrar-se em Albertani (2004). Uma análise do retorno anarquista
no altermundismo pode-se ver em Epstein (2001). Elementos de debate entre autonomistas, anarquistas e
comunistas podem ser observados em um número monográfico da revista Contretemps (2003).
14 Ver, por exemplo, alguns textos nos quais aparecem referências explícitas à ideia de autonomia: Colectivo

Situaciones (2003); Rebón (2007); El Colectivo (2007). Em particular, ver sobre o autonomismo argentino em
Ouviña (2009). Por último, para uma compreensão do autonomismo no contexto da história argentina
recente, ver obras de Svampa (2005; 2008).
15 Sobre a trajetória intelectual de Holloway, ver Altamira (2006: 181-263).
16 Ver Holloway (2002), este livro foi objeto de um extenso debate e uma intensa polêmica. Não entraremos

aqui nos seus aspectos mais profundos por não corresponderem aos propósitos do nosso estudo. Parte
significativa do debate pode ser visto em Holloway (2006).
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Em ensaio recente, esse autor assume explicitamente uma postura


autonomista “negativa” rechaçando a abordagem operária por ser “positiva”, ou seja,
por abordar uma recomposição subjetiva, quando Holloway sustenta, ao contrário, a
necessidade de um sujeito anti-identitário, um movimento de negação permanente,
uma dialética negativa17.
Por outro lado, a concepção de Holloway (2006: 5; 8; 11) aponta a ideia de um
processo onde a autonomia é um projeto e um movimento:
Não há autonomia, não há autodeterminação possível dentro do
capitalismo. A autonomia (no sentido de autodeterminação) apenas pode
ser entendida como um projeto que nos leva continuamente contra e além
das barreiras do capitalismo [...].
Cada etapa é a prefiguração da meta: autodeterminação social [...].

O impulso à autodeterminação conota um movimento constante, uma busca


constante, um experimentar.
Nesse sentido, a autonomia é uma experimentação, mas não uma experiência,
na medida em que não é, e nem sequer acaba sendo. O real seria para Holloway (2002:
271), o antipoder, a luta. Isso se traduz em uma negação – o grito – que se apresenta
nos interstícios das lutas cotidianas:
A luta pela autonomia é um rechaço à dominação, o não que reverbera de
uma forma ou outra, não apenas em locais de trabalho, senão onipresente,
em toda a sociedade.

Ao mesmo tempo, a ideia de “para além” implica uma saída – por meio da
negação – que se dá desde o interior da relação de dominação.
Da ótica que estamos propondo, o itinerário teórico sugestivo traçado por
Holloway – ainda compartilhando as principais coordenadas conceituais – opera um
salto teórico na medida em que funde o dentro e o fora, o contra e o para além, o poder
fazer com o antipoder, a negação com a afirmação. Nesse sentido, a polaridade entre a
subalternidade (fetichismo e poder sobre) e a autonomia (emancipação e poder fazer)
resume o poder contra, simplificando a passagem do conflito e ignorando a
especificidade do antagonismo. Assim como em Negri18, interioridade e exterioridade se

17 Holloway escreve (2009: 123-129): “No capitalismo a subjetividade é em primeiro lugar negativa, é um
movimento contra a negação da subjetividade (a anticlasse antitrabalhadora)”.
18 A relação entre Negri e Holloway mereceria um tratamento específico. Uma aproximação crítica, de

inspiração negriana, encontra-se em Altamira (2006: 265-327).


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sobrepõem19. O contra e para além – insubordinação e não subordinação – fundem-se e


confundem-se. Trata-se de uma operação teórica que obstrui a visibilidade de uma das
três dimensões fundamentais, na medida em que, por um lado, distingue dominação e
emancipação em termos analíticos, ao diluir a especificidade do antagonismo; e por
outro, nos termos do real processo, articula a luta e a emancipação, mas separa e isola a
dominação (a fetichização ou subalternidade), eliminando a sua influência e
permanência nos processos de subjetivação política.
No fundo, para além de vítima do fantasma do idealismo essencialista, que
Holloway tenta escapar insistindo no caráter relacional da luta de classes, sua
abordagem está mais orientada a exaltar a emergência de um potencial subjetivo de
nítida orientação antissistêmica, do que a forjar ferramentas conceituais que permitam
decifrar as contradições que atravessam a conformação das subjetividades políticas.
Sem a pretensão de mencionar e analisar a fundo todas as expressões do
conselhismo e sua extensão no autonomismo contemporâneo – que mereceriam um
tratamento monográfico atualmente inexistente – nem, muito menos, a totalidade das
referências implícitas no problema da autonomia, podemos sintetizar, em primeira
instância, o debate marxista em relação a duas dimensões ou acepções da noção. A
primeira, generalizada, de independência social, política e ideológica do sujeito-classe; e
a segunda, menos difusa, que assume a autonomia como emancipação, entendida como
processo, prefiguração ou modelo de sociedade. No interior dessa bifurcação, emergem
distinções e articulações que tornam o debate complexo. Por exemplo, ambas acepções
– como independência e como emancipação – incluem uma ambiguidade na medida em
que designam tanto um dado – o meio ou o fim – como o processo.
Com efeito, a acepção que situa a autonomia como independência toma
assento em uma tríplice determinação real (social, política e ideológica) que o marxismo
tem postulado, como:
• A autonomia-independência como dado ou como acontecimento – como
ponto de partida ou de chegada.
• A autonomia-independência como condição ou instrumento para a luta.
• A autonomia-independência como processo de construção subjetiva.

19 Mesmo Holloway (2002: 242-245) – quando polemiza a ideia de imanência negriana – insiste na
interioridade “fetichista” e, por isso, enfatiza a negação contra toda a afirmação “positiva”: no antipoder, a
antipolítica, o antissujeito.
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Ao mesmo tempo, a acepção que vincula autonomia e emancipação – mais


polêmica dentro do marxismo – pode ser desagregada da mesma maneira e, ao mesmo
tempo, abrir-se a uma vertente de análise dos processos de subjetivação que nos
interessa destacar.

Conclusão

Esta pesquisa sobre a ideia de autonomia, mas em particular as contribuições do SoB,


permitem desenvolver os alcances do conceito e especificar seu conteúdo.
Por um lado, articulam sua acepção como independência de classe a partir da
sua separação de classe dominante – o nascimento do sujeito – assumindo as
implicações subjetivas da sua formação permanente com a emancipação em sua
quádrupla dimensão: como meio, como fim, como processo e como prefiguração. Por
outro, como contrapartida dessa extensão processual, relacionam a autonomia a uma
determinada forma de subjetivação política que se desprende de práticas e experiências
de libertação, forjadas no diálogo entre espontaneidade e consciência.
De acordo com o primeiro aspecto, é preciso lembrar que a associação entre
autonomia e emancipação acarreta debates relativos à sua localização entre presente e
futuro, entre a ênfase sobre o valor em si das lutas autonômicas de hoje e a ênfase
sobre a autonomia como autorregulação societária futura. Esta última, não implica
necessariamente a existência de um modelo, senão o reconhecimento do papel político
de uma abstração, um mito – na linha traçada por Georges Sorel (1972) e retomada por
Gramschi e Mariátegui –, um eco do passado – como sugeriu Walter Benjamin –, um
horizonte de futuro e uma utopia possível – o ainda não defendido por Ernst Bloch.
Além disso, como tentativa de articulação entre temporalidades, destaca a
hipótese de prefiguração. Nesse caso a autonomia não designa apenas a forma de
sociedade emancipada do porvir – o fim – ou o significado das lutas do presente – o
processo – mas sim o que caracteriza o seu sentido e sua orientação como antecipação
da emancipação, como representação no presente da libertação futura. Nesse sentido,
apresentando-se ou não como modelo abstrato, como projeto definido ou como mito, a
autonomia começa a existir nas experiências concretas que a prefiguram, dando vida a
um processo emancipatório que adquire materialidade se a entendemos, como Marx e

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Engels entendem o comunismo, como um “movimento real que anula e supera o estado
de coisas atual” (Marx e Engels). Nessa direção, pode-se pensar na autonomia como
sinônimo de comunismo, um sinônimo que aponta para o método e para o conteúdo
libertário e democrático, uma utopia procedimental que corresponde à utopia
substancial ou matéria própria do comunismo”20.
Seja referência abstrata ou experiência concreta, a autonomia orienta um
processo real: a autonomização, o caminho para a autonomia integral, permeado de
autonomias parciais ou relativas, o qual supõe o rechaço a todo autonomismo que
comporte a idealização de uma propriedade metafísica do sujeito.
Nesses termos, a ideia de autonomia como processo de emancipação
contraditório é sustentada por Mabel Thwaites (2004: 20) da seguinte maneira:
A autonomia é um processo de autonomização permanente, de
compreensão continuada do papel subalternizado que impõe o sistema às
classes populares e da necessidade de sua reversão, que tem suas marchas e
contramarchas, seus fluxos e refluxos.

Por outra parte, se a autonomia é, por definição, a capacidade de estabelecer


normas, ela é poder, e, portanto, despende-se das relações de poder; é poder entendido
como relação e não como coisa ou objeto, relação entre sujeitos. A autonomia surge e
se forja no cruzamento entre relações de poder e construção de sujeitos. Nessa
interseção, a autonomia aparece como parte do processo de conformação do sujeito
sociopolítico, ou seja, como a condição do sujeito que, emancipando-se, dita suas
próprias normas de conduta.
Nesse sentido, pensando a democracia como “autodeterminação da massa”,
escreve Zavaleta (1989: 87):
[...] o ato de autodeterminação de massa como momento constitutivo traz
no seu seio pelo menos duas tarefas. Há, efetivamente, uma fundação do
poder, que é a irresistibilidade convertida em pavor incorporado; há, por
outro lado, a fundação da liberdade, ou seja, a implementação da
autodeterminação como um costume cotidiano.

Voltando à dupla acepção independência-emancipação, evitando sua


petrificação temporal – quer dizer que uma precede e é condição para a outra –
podemos assumi-las como caras de uma mesma moeda, manifestações simultâneas de
um mesmo processo.

20 “Associação de produtores livres e iguais”, segundo Marx.


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No debate marxista, assume-se que a independência de classe é uma condição


sine qua non para a maturação de uma luta de classes na qual são representados os
interesses dos oprimidos, a classe para si. Contudo, também se tem considerado que
essa condição é o resultado de um processo de construção subjetiva, ou seja, de uma
primeira etapa de emancipação, de saída da subalternidade. Nesse sentido, se justifica
considerar que este primeiro degrau de conquista de autonomia não tem que estar,
necessariamente, circunscrito à emergência do sujeito no seu contexto de dominação,
na sua delimitação – divisão, diria Sorel (1972: 124) – mas que se prolonga no tempo,
nas circunstâncias do conflito, até se converter na forma, por excelência, de sociedade
emancipada.
Com essa conotação processual, a ideia de autonomia entra no acervo
marxista como uma categoria fundamental para a análise e a compreensão dos
processos de subjetivação política correspondente às experiências de emancipação e,
dessa maneira, coloca-se potencialmente a par dos conceitos de subalternidade e
antagonismo.i

Tradutores:
Gustavo Moura de Oliveira, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio
Grande do Sul, Brasil. E-mail: comanchi@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-1994-3864.

Carla da Silveira Teixeira, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa


Catarina, Brasil. E-mail: carla.s.teixeira.ct@gmail.com.

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Sobre o autor

Massimo Madonesi
Doutor em Estudos Latino-americanos. Membro do Comitê de Redação da revista
Memória e Diretor da revista OSAL da CLACSO. Autor do livro La crisis histórica de la
izquierda socialista mexicana (2003) e de El Partido de la Revolución Democrática
(2009), e de numerosos artigos sobre teoria marxista e movimentos sociais latino-
americanos. Coordenou com Elvira Concheiro e Horácio Crespo, o livro El
Comunismo: Otras miradas desde América Latina (2007); com Claudio Albertani e
Guiomar Rovira, o livro La Autonomia Posible. Reinvención de la política y
emancipación (2010). Sua próxima publicação é o livro Subalternidad, Antagonismo y
autonomia. Marxismos y subjetivación política. E-mail: modonesi@hotmail.com

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

iNota à tradução brasileira: algumas pequenas modificações textuais foram feitas ao longo da tradução com
o intuito de democratizar o gênero generalizante. A equipe tradutora e revisora considera que esse
pormenor linguista contribui para a formação de uma sociedade mais justa no que se refere à divisão de
poder entre gêneros. Ademais, as alterações foram feitas no texto, o que não inclui as citações.

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RESENHA

Una nueva teoría social para América Latina


TORRES, Esteban (ed.) Hacia la renovación de la teoría social latinoamericana. Buenos
Aires: CLACSO, 2020

Santiago M. Roggerone1
1 Universidad Nacional de Quilmes – CONICET, Buenos Aires, Argentina. E-mail:

santiagoroggerone@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0813-2679.

Resenha recebida em 04/08/2020 e aceita em 08/08/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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E
l libro aquí reseñado es el producto reciente de los esfuerzos llevados a término
por el Grupo de Trabajo (GT) Teoría social y realidad latinoamericana del Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), el cual se encuentra integrado
por distinguidos académicos e investigadores de la región, contando además con
la coordinación de Esteban Torres y José Maurício Domingues. Publicado en el marco de
la Colección Grupos de Trabajo y la Serie Teoría social crítica, de CLACSO, este trabajo
colectivo busca –como bien apunta el editor en su introducción– “expandir el
conocimiento sobre tópicos clásicos que desde mediados del siglo XX inciden de modo
protagónico en la conformación de la agenda pública de las ciencias sociales en América
Latina” (TORRES, 2020a, p. 9).
Intentando entonces sentar las bases de un proyecto intelectual moderno, crítico
y con amplias pretensiones emancipatorias, y apostando en igual medida por una
“creación teórica autonomista” (TORRES, 2020a, p. 9), las contribuciones de Kathya
Araujo, Vivane Brachet-Márquez, Breno Bringel, Fernando Calderón, Enrique de la Garza
Toledo, Alfredo Falero, Guilherme Leite Gonçalves y Sérgio Costa, Aldo Mascareño, Sergio
Pignuoli Ocampo y Juan Pablo Gonnet, y los propios Torres y Domingues se agrupan en
dos grandes bloques: uno en el que América Latina es abordada y problematizada en
tanto objeto, y otro en que se atiende a cuestiones de índole más específica y se elaboran
algunas propuestas teóricas. El libro culmina con un texto de José María Aricó que hace
las veces de un legado que interpela a autores y lectores para hacer algo nuevo y
productivo a partir de lo efectuado por generaciones previas –se trata, en otras palabras,
de “un punto de referencia valioso para alimentar las expectativas de realización
autonomista que hicieron posible la producción de este libro y que permiten el avance
entusiasta de [...un] proyecto de innovación colectiva” (TORRES, 2020a, p. 19).
En el artículo que abre la primera parte de las intervenciones –“Hacia una nueva
teoría del cambio social en América Latina: Esquemas y elementos preliminares”–, Torres
lleva a cabo una propuesta provisoria a los fines de poner en pie un esfuerzo sistémico
más amplio atento a las especificidades de la región –producido, vale decir, en, desde y
para ella. Se trata de una ambiciosa apuesta por pensar a América Latina en los términos
de una dialéctica de “procesos de integración desde arriba, procesos de independencia y
procesos de integración desde abajo” (TORRES, 2020b, p. 24). Entre el amplio y complejo
abanico de categorías y nociones propuestas, destacan las de “gérmenes, impulsos y olas”
(TORRES, 2020b, p. 25). A través de las mismas, el autor problematiza a América Latina en

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su carácter de realidad y de idea, desafiando la división del trabajo académico-intelectual


según la cual a los centros les cabe la producción de teoría y a las periferias su recepción
y aplicación –a decir verdad, un gesto presente también en varios otros de los artículos
del libro–, coadyuvando así a (re)pensar al capitalismo moderno-occidental.
En “La Kamanchaka y la Latinoamérica global”, Calderón, por su parte, brinda una
mirada particular sobre la historia regional, deteniéndose y revalorizando ciertas
contribuciones y escenas en las que se halla cifrado un verdadero potencial
emancipatorio. Sospechando que la idea de modernidad en cuanto tal se encuentra
agotada, Calderón aboga entonces por la gestación de una suerte de contramodernidad
anticolonial, indígena, etc., y activada desde abajo. Por supuesto: como en el caso de
Torres y tantos otros de los autores de Hacia la renovación de la teoría social
latinoamericana, nada de esto lo conduce hacia el provincialismo. A su entender, “el
pensamiento necesita ser histórico, barroco-anticolonial, nacional y local si se quiere,
pero si no es también global y universal resulta insuficiente” (CALDERÓN, 2020, p. 71).
El siguiente texto es el de Gonçalves y Costa. En “De la acumulación originaria a
la acumulación entrelazada: Descentrando la teoría marxista de la expansión capitalista”
se busca contribuir a la renovación del marxismo, haciendo foco en la dinámica mundial
de reproducción económica y, por supuesto, el lugar que a América Latina como tal le
toca en ella. Adoptando “una perspectiva global y descentrada” (GONÇALVES y COSTA,
2020, p. 76), los autores revisan los debates clásicos y contemporáneos sobre los procesos
de acumulación. El análisis y la reconstrucción de las discusiones que tienen a Karl Marx,
Rosa Luxemburg, David Harvey y Klaus Dörre como a algunos de sus protagonistas
principales, permiten a Gonçalves y Costa proponer un concepto de cosecha propia, que
forma parte de una elaboración teórica más amplia por venir; a saber, el concepto de
“acumulación entrelazada” (2020, p. 94).
En su “Sattlezeit y transición. Fundamentos estructurales y semánticos de la
modernidad en América Latina”, Mascareño dialoga con Reinhart Koselleck a los fines de
ofrecer una novedosa interpretación sobre el devenir socio-intelectual de América Latina.
Más concretamente, Mascareño se pregunta por la semántica de la trayectoria
latinoamericana en la modernidad. La hipótesis de trabajo consiste en que, luego de
inicialmente recibir la pléyade conceptual conformada durante el Sattelzeit europeo de
1750-1850 –el vocablo significa, literalmente, período de montura–, América Latina
construye, entre la década de 1920 y fines del siglo XX, su propia e híbrida versión de él,

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gestándose y configurándose así lo central y específico de la modernidad regional. Se


trata, ciertamente, de una valiosa contribución mediante la que queda claro cuán
incompleta y transicional es la realidad de esta región del mundo. En efecto, es la
“incompletitud y transicionalidad”, apunta Mascareño, “el rasgo distintivo de la
trayectoria moderna de América Latina” (2020, p. 123).
En una clave de trabajo explícitamente luhmanniana, Pignuoli Ocampo y Gonnet
exploran el interrogante de los objetos latinoamericanos en el marco más amplio de la
sociedad mundial. El título de su intervención, justamente, es “Objetos latinoamericanos
de la sociedad mundial: De la ontología de la región a la pregunta por los límites de la
operación”. Ya que de lo que para ambos se trata es de abordar a América Latina como
objeto sociológico, es lógico que apuesten por “contribuir a la restitución de la validez”
(PIGNUOLI OCAMPO y GONNET, 2020, p. 130) del mismo. Efectivamente: a Pignuoli
Ocampo y Gonnet les inquieta que no exista algo así como “una teoría general de las
regiones” (2020, p. 130) a través de la cual sea posible aproximarse al objeto demarcado.
La pregunta que los interpela, en otros términos, es “¿qué es América Latina?” (PIGNUOLI
OCAMPO y GONNET, 2020, p. 131). De ahí que se inclinen por una operación teórica de
delimitación tan compleja como sofisticada. Centrándose en los conceptos de
comunicación, autosimplificación, organizaciones y sociedad mundial, los autores se
mueven así desde la preocupación por la región a las operaciones de regionalización y de
ahí de vuelta a la pregunta por la regionalidad.
Falero cierra el primer bloque de contribuciones con un texto titulado “América
Latina: Entre perspectiva de análisis y proyecto sociopolítico”, en el cual se sostiene que
la región debe concebirse a través de las dos dimensiones identificadas. En tanto
perspectiva de análisis, dice Falero en diálogo con André Gunder Frank, Giovanni Arrighi,
Samir Amin, Immanuel Wallerstein y algunos otros, esa unidad continental periférica que
es Latinoamérica forma parte de un más amplio sistema-mundo. La conceptualización de
ella como proyecto sociopolítico, por su parte, supone, a grandes rasgos, que es posible
desarrollar una integración regional. Entre otras cosas, a Falero le interesa pensar los
vínculos de las dimensiones en cuestión. En tal sentido, y teniendo en cuenta el estado de
las cosas, hacia el final de su artículo señala que “la perspectiva latinoamericana está
intrínsecamente integrada con una ‘perspectiva movimiento’ en tanto capacidad de
desplegar otro proyecto” (FALERO, 2020, p. 180).

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La segunda parte del libro inicia con el artículo “Formación del Estado en América
Latina: Una propuesta teórica inter-institucional”, de Brachet-Márquez. Tal como el título
lo anuncia, en su contribución, la autora aborda la relación Estado-sociedad en tanto
cuestión clave de los procesos multiinstitucionales. A Brachet-Márquez le preocupa tanto
“transmitir la naturaleza histórica de la realidad” latinoamericana como “pensar
genéricamente en busca de paralelos y contrastes en las trayectorias históricas diversas
de nuestras sociedades nacionales” (2020, p. 186). Partiendo de esto, en el texto se
presentan y desarrollan una serie de axiomas mediante los cuales se explicita cómo se
construyeron los órdenes sociopolíticos de la región, atendiendo de igual manera a las
dimensiones de la sociedad y el Estado y los vínculos con las potencias mundiales.
En una clave similar al artículo de Brachet-Márquez, el texto de Bringel se ocupa
de conceptualizar un actor clave del devenir regional. Como el título lo informa –
“Movimientos sociales y realidad latinoamericana: Una lectura histórico-teórica”–, ese
actor, por supuesto, es el de los movimientos sociales. A los fines de rebasar las
aproximaciones meramente descriptivas sobre el tema, Bringel propone una
interpretación que, a la vez, busca traspasar las fronteras disciplinares y epistémicas. El
objetivo, de esta manera, consiste en “presentar una visión panorámica de los
movimientos sociales latinoamericanos, sensible al contexto cultural, histórico,
económico y sociopolítico regional” (BRINGEL, 2020, p. 211). Más en concreto, el autor se
centra en un conjunto de matrices político-ideológicas –a las cuales define como
“filiaciones político-discursivas relativamente estables que orientan normativamente la
acción colectiva y la política contestataria de los movimientos sociales” (BRINGEL, 2020,
p. 214)–, sometiéndolas a un análisis exhaustivo.
Más preocupada por la renovación del conocimiento científico sobre la realidad
social del continente que por la trayectoria histórica de tal o cual actor, Araujo delinea los
contornos de una crítica general a la modernidad. En su contribución, titulada
precisamente “Una estrategia para las ciencias sociales: Olvidar la modernidad”, la autora
se pregunta por la posibilidad de otra forma de producción de conocimiento social para
la región. De esta manera, Araujo repasa los enfoques que han puesto a la modernidad
en el centro de la escena para, seguidamente, postular que es necesario “olvidar
estratégicamente” (2020, p. 231) a ésta. En efecto, según la autora, la modernidad en
cuanto tal supone “un obstáculo heurístico” (ARAUJO, 2020, p. 241). En último término,
olvidarla significaría entonces “establecer como objetivo central un programa de

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investigación para construir nuevas herramientas conceptuales o teorías adecuadas para


hacer frente a la diferencia” (ARAUJO, 2020, p. 243).
En sintonía con Araujo, De la Garza Toledo aboga por la reconstrucción de un
proyecto intelectual moderno para las ciencias sociales latinoamericanas, proponiendo
para eso una serie de disposiciones epistemológicas alternativas. El título de su
intervención es “¿Epistemologías del Sur? Crítica de la epistemología de Boaventura de
Sousa Santos”. Tal como el titulo lo manifiesta, De la Garza Toledo conduce su propuesta
entablando una discusión con el afamado sociólogo portugués. Pero no sólo con él. El
autor polemiza, más en general, con las perspectivas postcoloniales, decoloniales y –en
bastante menor medida– neocoloniales. Santos, de hecho, es tipificado como un
pensador neocolonial. Sometiendo sus planteamientos a una crítica implacable –entre
varias cosas, la crítica en cuestión supone subrayar “la falta de profundidad en su
pensamiento” (2020, p. 258)–, De la Garza Toledo se pertrecha en corrientes heterodoxas
del marxismo para, así, abrir las puertas a una verdadera epistemología del sur.
Domingues, co-coordinador del GT que reúne a los investigadores que participan
de Hacia la renovación de la teoría social latinoamericana, cierra el segundo bloque de
contribuciones con un texto que lleva por título “Teoría crítica, sociología política y la
reapertura del horizonte histórico”. En su artículo, el autor apuesta por “una
‘repolitización’ de la teoría crítica [...] con una clara perspectiva ‘socio-científica’”
(DOMINGUES, 2020, p. 266) mediante la cual pueda dejarse atrás el pathos melancólico
que afecta tanto a las izquierdas como a las disciplinas regionales. Domingues concibe a
la teoría crítica en un sentido amplio –“ecuménico” (2020, p. 268), dice–, y propone darle
una suerte de orientación sociológico-política, “que contemple la teoría social y
sociológica, que incluya la sociología histórica, la ciencia política y la jurisprudencia”
(2020, p. 266). A través de ello, el autor pone sobre la mesa, además, la pregunta por el
futuro. La teoría crítica, concluye, debe “abrir el horizonte político, evitando su
contracción, y proyectar la superación de la modernidad, en un futuro no especificado
pero deseable, en que se puedan cumplir su promesas” (DOMINGUES, 2020, p. 286).
Como ya fue señalado, el libro finaliza con un viejo texto de Aricó, fechado en
agosto de 1981 y publicado por primera vez en el número 14 de la mítica revista
Controversia: Para el examen de la realidad argentina. La decisión de incluir el artículo
“América como una unidad problemática”, se explica en la introducción de Hacia la
renovación de la teoría social latinoamericana, obedece a que las reflexiones de Aricó

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hacen las veces de un legado que, debido a que ya se encuentra entre aquellos de
nosotros con alguna sensibilidad de izquierda, hay que saber heredar. En efecto, “sin la
permanente recreación de los legados, y sin su transformación en nuevos impulsos”, dice
Torres, “América Latina estará condenada a ser, como imaginaba Hegel, la tierra de una
historia ajena” (2020a, p. 19).
A este respecto, resulta oportuno señalar que, sobre todo durante los últimos
años, el pensamiento de Aricó ha despertado un nuevo interés, siendo objeto incluso de
una suerte de redescubrimiento. En ese sentido, algunos han llegado a reconocer cifrado
en él el intento de poner en pie un nuevo marxismo para la región, despojado de toda
clase de garantías últimas y/o finales (CORTÉS, 2015). Jugando con esto, para concluir con
esta reseña podría decirse que los trabajos reunidos en el libro dejan en claro que,
heredando este pensamiento, recomenzando incluso con él, es posible dar paso a una
nueva teoría social para América Latina.

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Sobre o autor

Santiago M. Roggerone
Doctor en Ciencias Sociales por la Universidad de Buenos Aires. Docente de la misma
universidad e Investigador del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas con sede de trabajo en el Centro de Historia Intelectual de la Universidad
Nacional de Quilmes. E-mail: santiagoroggerone@gmail.com

O autor é o único responsável pela redação da resenha.

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Santiago M. Roggerone
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REVIEW

German Jurisprudence in the 21st century: law and its media


Teoria do direito alemã no século XXI: o direito e suas mídias

VESTING, Thomas. Legal theory and the media of law. Translated by James C. Wagner.
Cheltenham: Edward Elgar, 2018.

Lucas Fucci Amato1


1 Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail:

lucas.amato@usp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8923-8300.

Review submitted on 04/07/2020 and accepted on 21/11/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 742-753.
Lucas Fucci Amato
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Abstract
This review critically assesses the book Legal theory and the media of law, by Thomas
Vesting. The author seeks to present a multidisciplinary conception of jurisprudence,
analyzing the coevolution between legal phenomena, their self-descriptions and the
dissemination media of communication, from oral cultures to computer networks. The
paper posits Vesting’s contribution in the modern path of German jurisprudence and
philosophy of law.
Keywords: Jurisprudence; Legal theory; Legal media.

Resumo
A resenha avalia criticamente o livro Legal theory and the media of law, de Thomas
Vesting. O autor visa a apresentar uma concepção multidisciplinar de teoria do direito,
analisando a coevolução entre fenômenos jurídicos, suas autodescrições e os meios de
disseminação da comunicação, das culturas orais às redes de computadores. O texto
posiciona a contribuição de Vesting na trilha moderna da teoria e filosofia do direito
alemãs.
Palavras-chave: Filosofia do direito; Teoria do direito; Mídia jurídica.

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T
homas Vesting is a Professor at Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt
am Main, Germany, leading the chair of public law, law and theory of media. This
review aims to analyze and present Thomas Vesting’s Legal theory and the media
of law, pointing out (i) how this book fits in the path of modern German
jurisprudence and (ii) how it can contribute for the development of jurisprudential
approaches that connect legal theory to pulsing legal and social problems of today. These
are the two steps of this text.

1. German Jurisprudence: some historical remarks

The reception of Roman law in Germany led to the historical school of jurisprudence
(WIEACKER, 2004 [1952]). It worked to present that law as a system cultivated by erudite
commentators but in deep resemblance with the “true” law innate to the customs of the
German peoples. The system should be built by logic and abstraction from institutions –
the pillars of the abstract system and of the concrete social life.
Savigny (1867 [1840], p. 8-9) says that decisions about individual rights depend
on the reference to general rules of objective law, i.e. of state legislation. The “living root
and convincing force” of this decision on rights are found in the legal relationship, just as
the deepest foundation of law lies in the institutions, whose organic connection gradually
constitutes the system. Beyond the surface of decisions governed by rules, we find the
legal relationships, which are governed by institutions. That is the “truth and life” of law.
The typological and systematic method displays them in their complexity and
concreteness. Theory and practice of law are not separated, since the intuition of the
institution that dominates a specific legal relationship is a mental operation of the same
nature as the construction of the legal system by science. The true sources of law would
be the “internal forces” of a people and its history, and not the arbitrary will of the
legislator.
By making the science of law a “jurisprudence of concepts,” Puchta (1854
[1841]) develops a tension between freedom (law) and necessity (reason). The subject of
law is the free individual, capable of wanting and deciding, regardless of his moral value.
The right, as a freedom, is structured by equality, by indifference in face of diversity. The
legal form abstracts real inequalities, but the latter are immanent to the former: they re-

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enter its content. The systematic and rational construction of the law, the conceptual
pyramid, brings back the need for freedom, the inequality of relations in the equality of
subjects. The law structured in its complexity, available for selections of meaning, is
abstraction and inequality, a gradual connection of different equalities. Once positivized,
the material source of the legal content (culture, people, history) matters little; law’s
validity is formal, self-regulated. Paradoxically, legal freedom and rational necessity
become, by the science of law, formal freedom and material necessity (DE GIORGI, 1998
[1979], p. 47-60).
Savigny transforms the casuistry of Roman law into a systematic theory of
sources and interpretation (VESTING, 2015 [2007], p. 50), founding legal theory as an
auxiliary of dogmatics. Despite Savigny’s resistance to codification, the anachronistic
Romanist law came to be purified as a perfect, enduring and encompassing ensemble,
serving as a model to the positive law of the recently unified German State. The
Pandectists’ work, culminating with the Civil Code of 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch,
BGB), was the apex of that tradition. Its philosophical counterpart, that opened way for
legal positivism, is Kant’s transcendental formalism: Kant (1991 [1797]) presented as an
idea of reason the systematic unity of law, articulated in its doctrines and institutions (see
also WEINRIB, 1987, p. 478-508; WALDRON, 1996). For this reason, a person guides her
will to transcend nature and realize her freedom. The social contract, as an idea of reason
and not a historical fact, has practical reality by obliging the legislator to produce the law
according to a unitary will of the nation, as if each citizen had consented to that general
will.
In Weber’s (1978 [1922], p. 654-658) perception, the formal rationalization of
law was paradigmatic in the work of the jurisprudence of concepts. It occurred in several
dimensions. Firstly, by the analysis and abstraction of legal generalizations: the relevant
reasons for the decision of a concrete case are reduced to some “principles” or legal
propositions. Secondly: substantive legal doctrines are synthesized. Finally, the
propositions and doctrines are systematized. The highly abstract character of law is the
shield of its autonomy. This allows the analytical derivation of legal solutions from a closed
system of propositions.
Before Weber, Marx could observe in the historicist school the form of liberal
law, a perfect expression of social bonds that characterize bourgeois society: ties of
mutual dependence combined with generalized indifference. Indeed, Hegel (1991 [1820])

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had analyzed the historical transition from family-based communities to the modern
liberal market and its law, praising its upcoming evolution into an ethical order based on
the State. Therefore, Marx found a double initial inspiration for his historical materialism:
on the one hand, in the critique of Hegel’s philosophy of right – in which legal forms are
explained “by the so-called general progress of the human mind”, and not by “the
material conditions of life” (MARX, 1904 [1859], p. 11); on the other hand, in the rejection
of the historical school of jurisprudence (represented by Gustav Hugo), with its frivolous
and backward celebration of the rational necessity of some positive institutions (such as
property, marriage or the state constitution), as they were organized in liberal, bourgeois
society (MARX, 1842; see also LEVINE, 1987; KELLEY, 1978).
As Coing (1996 [1989], p. 337-343) observes, Savigny systematized in the
concept of subjective law the axis of an objective law system; subjective right would be
the zone around the person and innate to her in which she manifests the domination of
the world by her will. The domination of the will is expressed in an absolute way in relation
to things (real rights), but it is relative in relation to other people: the bonds of obligation
deal with specific transactions and activities; otherwise they would mean slavery. This
basic concept is maintained by Puchta and Windscheid, who purify the Romanist tradition
and lead it to the “jurisprudence of the concepts” that assists the codification of German
private law and its interpretation.
Only decades after this codification alternative currents develop, which observe
subjective right not as a sphere of innate will, but as a variable configuration from the
imperative order of objective law (Thon), or as a legally protected interest (Jhering) and,
to this extent, to be considered alongside other competing interests and purposes. At the
same time that the scope of the category of subjective rights (e.g., encompassing
immaterial assets) was being expanded, its absolutecontours immanent to the individual
were being dissipated. The “jurisprudence of interests” (see SCHOCH, 1948) rocked the
formalistic scene, turning social, economic and political considerations into a subject
matter of legal reasoning.
According to De Giorgi’s (1998 [1979], p. 21-22) critical assessment of the
evolution of jurisprudence in Germany, Kelsen concludes the formalist and positivist
project of 19th century “jurisprudence of concepts”, now giving full epistemological basis
(through Kantian transcendental philosophy of theoretical reason) for the understanding
of law as an autonomous abstract system, whose starting point is the (ideal) identification

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of existence and validity. However, although his “pure science” could legitimize law as
simply formal validity, it could no more inform law as a concretization of meaning through
a distinctively legal reasoning. The indeterminacy that Kelsen concedes in the process of
decision-making (by the subject authorized by a norm) undermines the certainty that 19th
century doctrinal-formalists assured through their dogmatic assumptions about facts and
value.
The following tendencies in the 20th century have been a rebirth of natural law,
the merger of jurisprudence and a constitutional theory emphasizing fundamental rights
or the reconceptualization of jurisprudence through sociological perspectives, such as
those of Habermas and Luhmann. Indeed, the latter way can be considered as the answer
to the anxiety expressed in the late 20th century by German legal philosophers: “The legal
science and the legal system are not ready to have a scientific theory, to the methodology
of social (or, better: democratic) sciences, and don’t have their own direction […]”
(WIETHÖLTER, 1991 [1968], p. xviii).

2. Vesting’s contribution

With his Legal theory and the media of law, Thomas Vesting (2018) clearly recasts this
point about basing jurisprudence on social sciences. Among other references, this
jurisprudential approach is conceptually unified through a heterodox adoption of
Luhmann’s systems theory. Luhmann’s project was to provide a general theory of society
and, within it, a sociology of law that recognizes the positivity of modern law, i.e. its
variability and evolution. However, this theory is being rephrased to serve a series of other
intellectual projects, such as the more philosophical and normative statements of a
‘critical systems theory’ (see FISCHER-LESCANO, 2012; AMATO; BARROS, 2018) and, on
the other hand, empirical socio-legal studies (see CAMPILONGO; AMATO; BARROS, 2021).
Thomas Vesting is one of the leading proponents of taking that conceptual apparatus in
order to build a contemporary theory of law (see VESTING, 2015 [2007]).
The main Luhmannian influence on Legal theory and the media of law is
Luhmann’s (2012 [1997], cap. 2) conceptualization on “dissemination media”. Alongside
“symbolically generalized communication media”, such as power, money, truth and

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(legal) validity, Luhmann explains the change in “forms of social differentiation”


(LUHMANN, 2013 [1997], cap. 4) through the technological changes in communication.
For instance, in segmentary societies, united and distinguished by kinship,
communication works in face-to-face interaction. There is a restricted, slow and low
dissemination of information, and mainly among acquaintances (members of the same
community). Customary law emerges as the sedimentation of routines and expectations
of these interactions; oral cultures work through “pithy, easily memorizable maxims and
prohibitions” and “recurring modes of conduct” (VESTING, 2018, p. 27).
The so-called “high cultures” of the Ancient word, such as classic Greece and
Rome, are based on geographical differences and center-periphery relations between city
and countryside, Empire and province. Writing is the dissemination media of these
societies, but distinguishes only its literate elites, such as those in charge of prudently
deciding controversies, and thus producing a case-by-case law. Rhetoric becomes
important as a way of exerting and practicing iuris prudentia.
The rank aristocratic society of the Ancien Régime is contrasted by the
emergence of the press, which puts side-by-side the pressures for centralization and
positivation of law and the revolutionary pressures contesting the old institutions and
stratification – this is the birth of mass media, with the press, pamphlets, literary
associations and other subversive tools that would foster the liberal revolutions. This was
the birth of public opinion, or a “public sphere” opposable to the State apparatus.
Codifications, declarations of rights and constitutions were the legal media of that age.
They express a partial democratization for a form of legal positivism that emerged within
absolutist politics: a hierarchy of valid norms and authorized sources mirrored a social
hierarchy in which those below are protected by their superiors, and the latter claim
obedience and loyalty (VESTING, 2018, p. 466).
In (post)modern society, we now watch the emergence of digital media of
communication, which enable not only mass consumption of information, but a
polycentric dynamic of production and consumption of data, with the decline of
gatekeepers for selecting and certifying information. Vesting (2018, p. 464) compares
traditional mass media such as radio and television to “regulatory agencies” that
disseminate information, attest its validity and truth, and assist its consumers (a “mass”)
to adapt their expectations to the news.

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There is decentralized mass dissemination, from acquaintances to strangers.


What is the theory able to describe this state of things? What is the profile of the law of
a digital society?
Baecker (2006) proposed to link writing to the Aristotelian finalism, to explain
Cartesian (or Kantian) individual rationalism as a semantics expressing the advent of
printing and to point out Luhmann’s social systems theory (with its concepts such as
autopoiesis, self-reference, autology, binary coding) as the expression of a society
organized through digital media. Vesting (2018) follows an equivalent path to provide a
historical balance of legal cultures and to explore their present and future scene.
A legal culture cannot be explained in “monomedial” terms, he insists (VESTING,
2018, p. xi), but the prevalence or specific mix of media is a defining attribute of it. This
shouldn’t mean to take media as Kant took “reason” or as Hegel took “the spirit”. In this
new presentation of a history of the “liberal” or “Western” law, the focus on media works
as an occasion to build a multidisciplinary approach to jurisprudence, calibrating insights
from anthropology and theories of media, culture, language and communication. For
example, only the development of printing made possible the idea of a system of symbols
(VESTING, 2018, p. 3) – with which rationalists and then historicists recasted the written
formulas of Roman Law.
A digital jurisprudence would no more focus on a perceptive and knowing
individual subject, mirrored in some unity as in national sovereignty and legal monism.
Knowledge and cognition should no more be associated with some individual
consciousness, whose integrity and objectivity would provide the certainty asked by
analytic philosophy. On the contrary, now jurisprudence should focus on the contextual
generation of knowledge from already existing and stored knowledge, in a cybernetic
conception of a self-referential dynamics taking place within fluid networks (VESTING,
2018, p. 5-7).
The rationalist model for the formalist positivists of the 19th century was Kant’s
moral philosophy: a “rigid, deductive, comprehensive rationality […] ready-made,
packaged in an unconditional imperative”, while now jurisprudence recovers practical
reason, a more pragmatic and situational morality embedding legal reasoning. Instead of
a top-down hierarchy of normative patterns, now law is to be represented as a circular
network referring endlessly to other normative and cognitive parameters. In this aspect,
drawing on Ladeur (1997), Vesting emphasizes that the image of a network serves to

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radicalize the idea of “an infinite loop of an unceasing deferral” that was latent in the
Luhmannian concept of a system, but not sufficiently “divorced from the tradition of
organological thought […] employed by Kant, Hegel, Savigny, Puchta and others to
describe and construct a hierarchical body of laws” (VESTING, 2018, p. 20-21).
Vesting’s plan is also to radicalize the “groundlessness” of legal validity that
Kelsen tried to contain through the transcendental supposition of a “fundamental norm”
– a last attempt to maintain the view of a hierarchical and unified legal order. In Vesting’s
(2018, p. 24-25) judgment, that epistemological operation worked to substitute the idea
of a God’s directive and took course on the analytical positivism of 1900’s Vienna, serving
to escape metaphysics and ontology, but in fact remained “antithetically fixated” to them.
Therefore, Vesting (2018) doesn’t present a general theory of law as one could find in
Kelsen (1967 [1960]; 1949 [1945]), with his definitions of legal norm and legal order,
sanction and validity.
For Vesting (2018, p. 22-23), law’s authority and justification rests ultimately on
“a diffuse (center-less) rationality” and “[t]he fluid combinatorial network of law thus
inevitably reveals another side of itself that cannot be controlled by law itself” – the
distance between legal communications and their structure (expectations, norms) is
inevitably marked on the moment of decision-making. Therefore, this pure contingency
of legal content, partially expressed in Kelsen and Luhmann, is emphasized as having its
last constraint only on “the shared knowledge of a practical culture”. This commitment to
particularism takes away the project of “a general theory of law”, and advances the
merger of legal theory, jurisprudence and legal history with other disciplines. Juridical
modes of thought and concepts such as duty and responsibility, validity and normativity
are taken solely as variables to be understood within a given (provincial) legal culture.
After going through spoken language, writing and then printed books, Legal
theory and the media of law arrives to its fourth and last part, which proposes to focus on
the law of a society based on computer networks. In fact, it emphasizes the changes of
the modern liberal constitutions coming out of a printing culture, comparing these
institutions – like the constitutions – in the setting of a digital order. Vesting (2018, ch. 18)
for instance shows how modern constitutions emerged as a charter, a single document
representing the unity of the sovereign nation-State, but now their equivalents – such as
the transnational orderings of human and digital rights – can only evolve as fragmented
and sectoral regulations (see TEUBNER, 2012), with multiple links and mediations among

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themselves (see NEVES, 2013), following the trans-territoriality, heterogeneity, and


endless self-reference and other-reference provided by communication in the world wide
web, with its unlimited hyper-linkage.
In the last chapter of part IV, Vesting (2018) sketches a similar movement in
other legal fields, such as marriage and family, schools and universities, communication
and media. A noticeable gap is private law in a stricter sense – property, contract,
corporations –, which is only referred when linked with international, transnational and
proto-constitutional orders of world society.
Dworkin (2006, p. 4) decreed that “[t]he idea of law as a set of discrete
standards, which we might in principle individuate and count, seems to me a scholastic
fiction”. In a balance on the legacy of the critical legal studies – maybe the last noticeable
innovation on Anglo-American jurisprudence, besides the tradition of analytical
jurisprudence (from Hart to Dworkin) – Unger (2015, ch. 1) pointed out to the result that
legal academia no longer remains under the dominance of a single approach. Critical and
political, economic and behavioral, analytic, cultural and historical approaches to law
coexist. Vesting’s (2018) work clearly shows that German jurisprudence is following a
similar direction of methodological pluralism, opening way for new and creative mergers
of jurisprudence, doctrine and other social disciplines.

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About the author

Lucas Fucci Amato


Professor at the Department of Jurisprudence and Philosophy of Law, University of
São Paulo Law School, Brazil. Bachelor’s, doctoral and postdoctoral degrees in Law by
the University of São Paulo, academic visitor at the University of Oxford, UK, and
visiting researcher at Harvard Law School, Cambridge (MA), USA. E-mail:
lucas.amato@usp.br

The author is solely responsible for writing the article.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 01, 2021, p. 742-753.
Lucas Fucci Amato
DOI:10.1590/2179-8966/2020/52054| ISSN: 2179-8966

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