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EDITORIAL

Editorial

Sendo o processo um limite à jurisdição, entre um e outro existe uma relação


de proporção inversa: uma concepção fraca do processo importa em uma concepção
forte da jurisdição, e vice-versa.
Da mesma forma, existe uma relação de complementaridade entre as três
funções do Estado: a concepção forte sobre uma delas importe em concepções
fracas sobre as outras duas.
Assim, por exemplo, defender uma jurisdição potenciada implica defender uma
jurislação e uma administração despotenciadas na mesma medida.
Nota-se, portanto, que:
1) em todo modelo de processo está implicado um modelo de jurisdição;
2) em todo modelo de jurisdição está implicado um modelo de Estado;
3) logo, em todo modelo de processo está implicado um modelo de Estado.
Isso mostra que o processo não é uma «técnica bacteriologicamente asséptica».
Opções por modelos processuais são opções políticas.
E opções políticas são sempre opções ideológicas.
Ora, a Constituição Federal de 1988 fez uma opção político-ideológica sobre o
processo: fê-lo um direito subjetivo fundamental de liberdade [art. 5º, LIV].
Em outras palavras, fê-lo um «direito de defesa» [Abwehrrechte].
Enfim, positivou uma concepção forte de processo e, em consequência, uma
concepção fraca de jurisdição.
Embora a CF/1988 tenha instituído um Estado Liberal, Social e Democrático de
Direito, ela radicou o processo na primeira camada e, por isso, nas preocupações
liberais clássicas.
Pois a essa opção político-ideológica fundamental deveria curvar-se o jurista do
processo (ao menos o jurista que se apresenta como um dogmático).
Todavia, nem sempre é o que se vê.
Intrusões antiliberais extraconstitucionais tentam desnaturar o processo de
garantia do jurisdicionado em instrumento da jurisdição, de proteção da parte em
ferramenta do juiz, de armadura do cidadão em utensílio do poder.
Nesse sentido, as correntes instrumentalistas são um esforço retórico-argu-
mentativo de obscurecimento autoritário do caráter garantista do processo.
De todo modo, a disputa garantismo versus instrumentalismo revela a disputa
político-ideológica que sempre se ocultou por trás do «tecnicismo dos processualistas».
Aliás, a crença infantil nesse tecnicismo bloqueia o desenvolvimento de uma
ciência política do direito processual e, desse modo, contribui sobremaneira para a
alienação da própria comunidade dos processualistas.

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EDITORIAL

Ainda assim, já há quem atente à ideologicidade das concepções processuais.


A presente edição tem a felicidade de contar com dois preciosos textos,
ambos atentos a essa realidade: «La ideología del Código Procesal Civil Peruano
de 1992-1993», de FERNANDO MEDINA ALVAREZ; «La ideología tras el proyecto de
Código Procesal Civil chileno», de CLÁUDIO PALAVECINO CÁCERES.
Com isso, a Revista Brasileira de Direito Processual se sente realizada por
contribuir para o desvelamento de conexões que se tentam renhidamente esconder.
Enfim, sente-se realizada por abrir espaço a trabalhos corajosos de desalienação.

A seguir, o conteúdo da presente edição.

Ribeirão Preto, 17 de novembro de 2021.

Eduardo José da Fonseca Costa

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EDITORIAL

Ronaldo Cunha Campos e o Processo Civil Brasileiro. José Marcos Rodrigues


Vieira homenageia Ronaldo Benedicto Cunha Campos, apresentando um estudo
comparativo do pensamento do jurista com a atualidade do direito processual civil
brasileiro.
Imparcialidade e neutralidade: distinção dogmaticamente relevante? O ensaio
de Diego Crevelin de Sousa aponta a diferença entre imparcialidade e neutralidade com
escopo funcional, trazendo críticas e teses que negam o seu valor jurídico-dogmático.
O monopólio interpretativo do direito pelas “Cortes Supremas” na obra de
Daniel Mitidiero. O texto de Júlio César Rossi apresenta uma análise crítica ao
modelo proposto pelo Professor Daniel Mitidiero, na obra “Cortes superiores e cortes
supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente”.
La ideología tras el proyecto de Código Procesal Civil chileno. Claudio Palavecino
Cáceres revela a incongruência da ideologia do projeto do Código Processual Civil
no Chile, com os valores constitucionais que lá prevalecem.
La ideología del Código Procesal Civil peruano de 1992-1993. O artigo de
Fernando Medina Alvarez versa sobre a ideologia trazida no Código de Processo
Civil peruano de 1992-1993, cuja ideia é a de que os indivíduos são instrumentos
do Estado.
La carga dinámica de la prueba. Por meio de uma concepção do processo
como instrumento da liberdade, Jorge I. González Carvajal discute questões acerca
da carga dinámica probotória.
Puentes entre los hechos y el derecho aplicable en la verificación probatoria:
estandar y valoración de la prueba. Álvaro Pérez Ragone apresenta uma análise
sobre os padrões legais de prova.
O uso do QRcode no peticionamento eletrônico e o ordenamento jurídico
processual civil brasileiro. O estudo de Ágatha Gonçalves Santana, Carla Noura
Teixeira, Mariano Junior Siqueira Teixeira perquire sobre a impossibilidade de utilização
do mecanismo do QRcode no ordenamento jurídico processual civil brasileiro, em
razão do conflito com os princípios de direito constitucional e processual, defendendo
a criação de um devido processo legal tecnológico.
Right to opt-out: Análise crítica do instituto e sua necessária limitação. O
tema de autoria de Gisele Mazzoni Welsch e de Matheus Moreira tem por escopo
analisar e criticar o direito à autoexclusão, defendo sua limitação, em face do
respaldo constitucional.
Releitura da tutela de evidência baseada em precedentes. Josyane Mansano
e Elias Marques de Medeiros Neto buscam demonstrar a ampliação das hipóteses
de incidência do artigo 311, II do CPC, mediante sua análise sistemática com os
artigos 927 e 332 do CPC.

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Limites cognitivos à homologação judicial de acordos. Nilsiton Rodrigues de


Andrade Aragão aborda as mudanças havidas pelo novo Código de Processo Civil e
na Lei e Mediação, discutindo a forma de atuação do julgador, bem como as matérias
que lhe compete apreciação em se tratando da vontade das partes.
Da participação do ministério público federal como fiscal da lei em processos
individuais relativos ao benefício assistencial de prestação continuada nos juizados
especiais federais. Raul Mariano Júnior e Rodrigo Zacharias demonstram a necessidade
da participação do Ministério Público nos processos envolvendo o benefício previsto
no artigo 203, V, da CF, para garantia de direitos fundamentais.
O que podemos aprender com a fealdade do direito? - Reflexões sobre direito
& arte. Danilo Nascimento Cruz apresenta um conceito aproximado entre Direito
& Arte, bem como analisa algumas situações de fealdades inerentes à teoria do
direito e do processo.

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