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12/02/2022 23:06 ConJur - A linguagem jurídica exige precisão técnica

PARADOXO DA CORTE

A linguagem jurídica exige precisão técnica:


processo ou procedimento arbitral?
5 de janeiro de 2021, 8h01

Por José Rogério Cruz e Tucci

Toda ciência, como representação do pensamento empírico do homem, deve se expressar


por meio de um vocabulário próprio e universal, dando sentido ao significado de seus
conceitos e institutos.

Entre os inúmeros ramos da ciência jurídica, a dogmática do


Direito processual, construída paulatinamente a partir da
segunda metade do século 19, possui estrutura formal e
linguagem técnica análogas nas mais diferentes experiências
jurídicas do mundo ocidental.

Todavia, observa-se que no âmbito da arbitragem ainda hoje há


certa imprecisão conceitual, dado o reiterado emprego
impreciso e equivocado de alguns termos, que não condizem
com o ideário de conceber tal importante meio alternativo de
solução dos conflitos como ramo científico autônomo.

E isso porque quando nada, desatendida, de modo persistente, por considerável número de


arbitralistas, a contundente exortação, formulada há quase uma década por Cândido Rangel
Dinamarco, no sentido de que "toda teoria geral só será uma ciência merecedora de ser
havida como tal na medida em que seja capaz de refletir com harmonia e perfeita
integração todos os elementos das ciências mais particularizadas que a integram. Assim
como o direito processual arbitral jamais chegará a um nível satisfatório de excelência
científica quando visto sem os aportes da teoria geral do processo, assim também essa
teoria geral jamais será metodologicamente legítima enquanto se preocupar somente com
os fenômenos inerentes à jurisdição estatal, sem considerar a jurisdição dos árbitros". Daí
a importância de dar "valor à busca de uma linguagem adequada", compatível com a
inserção da arbitragem no âmbito de uma ciência propriamente dita, dotada de conceitos,

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estrutura e finalidade bem definidos. É nesse sentido "que devemos aspirar, empenhando-


nos em enriquecer a linguagem do sistema arbitral com a assimilação de dizeres e
conceitos correntes nas seara do processo civil comum, para então afinarmos nossa
linguagem com a maior harmonia possível" (Dinamarco, "A arbitragem na teoria geral do
processo", São Paulo, Malheiros, 2013, pág. 13-14 e 19), aliás, como a própria lei da
arbitragem se refere, com rigor técnico, a inúmeros institutos da dogmática processual,
como, e. g., causa de pedir, pedido, incompetência, impedimento, suspeição, revelia,
depoimento pessoal, prova pericial, livre convencimento, sentença, litigância de má-fé...

Não obstante, dúvida não há de que a arbitragem é regida por textos legais específicos: lei
da arbitragem e, subsidiariamente, regulamento das câmaras de arbitragem, não sendo
aplicáveis, excetuando-se algumas específicas situações, as regras do Código de Processo
Civil.

O capítulo IV da Lei nº 9.307/96 (Lei da Arbitragem), sob a rubrica "Do Procedimento


Arbitral", estabelece, de forma absolutamente adequada, regras de regência do respectivo
procedimento. Pergunta-se: procedimento do quê? Sem qualquer outra opção, a resposta é
uma só: do processo arbitral!

O artigo 21 desse referido capítulo contém seis vezes o vocábulo procedimento, sendo que,
no respectivo §3º, o legislador equivocou-se ao utilizar "procedimento" ao invés de
empregar o termo "processo", que seria o correto.

O regulamento de arbitragem do CAM-CCBC, nos itens 5.2, letra "i", 7.4 e 12.11, alude
corretamente a "despesas do processo", "estado do processo" e "extinção do processo". Nos
itens 7.6, 11.3, 11.4 e 14.2, contudo, ao se referir a aspectos do objeto e aos autos do
processo arbitral, utiliza mal a locução "procedimento arbitral". Estes e muitos outros erros
plasmam também o regulamento do Centro de Arbitragem da AMCHAM.

Seja como for, na minha experiência como árbitro, observo que, possivelmente pelo supra-
aludido título do capítulo IV da Lei da Arbitragem ("Do Procedimento Arbitral"), não
apenas o regulamento da maioria das câmaras de arbitragem, mas também árbitros
especialistas, empregam, de modo errôneo e impreciso, a expressão "procedimento
arbitral" no lugar de "processo arbitral". Esse equívoco, na verdade, é comezinho!

Lembro-me, a propósito, das magníficas aulas do saudoso professor Sérgio Marcos de


Moraes Pitombo, que realçava o inseparável liame entre as pessoas que agem em juízo e
seus respectivos atos protraindo-se conjugados, em sistema de movimento e mudança, e
acrescentava que esta visão leva a compreender o fluxo, ou processo, como série numerável

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de atos coordenados — verdadeiro método —, que se vão justapondo, num espaço ideal, ou
procedimento.

Traçando a evidente distinção conceitual entre processo (continente) e procedimento


(conteúdo), é clássica a lição de João Mendes de Almeida Júnior, ao ensinar que "o
processo é uma direção no movimento; o procedimento é o modo de mover e a forma em
que é movido o ato. Omnis operatur motus dicitur...". Enquanto aquele corresponde ao
movimento no seu aspecto intrínseco, este é o mesmo movimento, visualizado, todavia, em
sua forma extrínseca, "tal como se exerce pelos nossos órgãos corporais e se revela aos
nossos sentidos" ("Direito judiciário brasileiro", 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos,
1960, pág. 243-244).

E essa distinção, como se sabe, "além de ter dado o passo decisivo para a autonomia do
direito processual, ao isolar a relação material da processual, implicou igualmente postura
metodológica renovadora, abrindo caminho para passar-se a entrever o fenômeno
processual não mais como mero procedimentalismo, mas sim dentro da perspectiva da
atividade, poderes e faculdades do julgador e das partes. A sedimentação dessas ideias
obrou com que hoje se encontre pacificado o entendimento de que o procedimento não deve
ser apenas um pobre esqueleto sem alma, tornando-se imprescindível ao conceito a
regulação da atividade das partes e do órgão julgador, conexa ao contraditório paritário e
ainda ao fator temporal, a fatalmente entremear essa mesma atividade" (Carlos Alberto
Alvaro de Oliveira, "Do formalismo no processo civil", 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012,
pág. 36; Salvatore Satta, Dalla procedura civile al diritto processuale civile, Rivista
trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, Giurffrè, 1964, pág. 31 e ss).

O processo — direção no movimento — consubstancia-se, pois, um instituto


essencialmente dinâmico, porquanto não exaure o seu ciclo vital em um único momento,
mas é destinado a desenvolver-se no tempo, até a prolação da sentença. Os atos
processuais, embora tenham uma determinada ocasião para serem realizados, não se
perfazem de modo instantâneo, mas, sim, desenrolam-se em várias etapas do respetivo
procedimento.

Sob outra perspectiva, permito-me invocar a conhecida doutrina de Elio Fazzalari


("Procedimento e processo (teoria generale)"), Enciclopedia del diritto, vol. 35, Milano,
Giuffrè, 1969, pág. 827), para quem todo procedimento, qualquer que seja a sua natureza
— administrativa, judicial ou arbitral —, quando caracterizado pelo contraditório,
transforma-se em processo.

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É de ter-se presente, destarte, que as atividades do árbitro e das partes nos domínios do
processo arbitral efetivam-se e se concatenam em um procedimento, no qual cada um
desses atores dispõe de poderes, deveres, faculdades e ônus, todos exercidos em
cooperação e em contraditório, numa autêntica relação jurídica processual.

Conclui-se, assim, que o processo arbitral se desenvolve por meio de um procedimento


lógico e dinâmico, regido pelos princípios constitucionais da imparcialidade, do
contraditório e da isonomia, e por normas procedimentais próprias, estabelecidas pela lei e
pela vontade das partes.

José Rogério Cruz e Tucci é sócio do escritório Tucci Advogados Associados, ex-
presidente da AASP, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP e membro da
Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

Revista Consultor Jurídico, 5 de janeiro de 2021, 8h01

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